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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A mulher sábia e a sabedoria mulher – símbolos de co-inspiração Um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios por Mercedes Lopes ORIENTADOR: Prof. Dr. Milton Schwantes Tese de doutorado apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Doutor. São Bernardo do Campo, abril de 2007

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A mulher sábia e a sabedoria mulher – símbolos de co-inspiração

Um estudo sobre a mulher em textos de Provérbios

por Mercedes Lopes

ORIENTADOR: Prof. Dr.

Milton Schwantes

Tese de doutorado apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de Doutor.

São Bernardo do Campo, abril de 2007

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LOPES, Mercedes, A mulher sábia e a sabedoria mulher – símbolos de co-inspiração, um

estudo sobre a mulher em textos de Provérbios, Tese de doutorado, Universidade Metodista

de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Sinopse

Nos textos de Provérbios 1,20-23; 8 e 9, encontra-se o instigante símbolo da

sabedoria mulher, que possui uma longa e controvertida história de interpretação. Ao

analisar as ligações textuais entre estes textos e o poema de Pr 31, descobrimos que o

símbolo da sabedoria mulher inspira-se na mulher da vida real, que participa corajosamente

na reconstrução da história e das relações do povo de Judá, no período pós-exílico. Estas

ligações desvelam uma grande valorização da mulher e sua proximidade com Deus ao

apresentá- la com o poder de oferecer vida (Pr 8,35; 9,6) e de cuidá-la (Pr 31), vivenciando

e transmitindo valores éticos fundamentais para as relações cotidianas da casa (Pr 1,8; 6,20;

31,2-9.26).

Este símbolo carrega ainda a memória de antigos cultos realizados na casa para

celebrar e garantir a vida. Embora estes rituais contivessem a memória de Deusas, eles não

eram opostos ao culto de Javé, pois, dentro da dinâmica da casa, estavam inteiramente

integrados na religião de Israel pela priorização da vida e pela prática da jus tiça.

Esses textos de Provérbios atestam uma grande mudança na visão da mulher. A

origem desta nova visão encontra-se na época do cativeiro, quando já não havia templo e

nem um governo que canalizasse a organização do povo e sua luta pela libertação. A casa

passa a ter funções de prover a subsistência e de transmitir as tradições religiosas do povo

bíblico com a finalidade de obter a inspiração e a força necessárias para garantir o futuro.

Na casa interiorana, a mulher tem autoridade e liderança, apesar dos preconceitos da

sociedade patriarcal. É no pequeno espaço da casa judaíta que o movimento da sabedoria

mulher situa-se, gerando relações de inclusão e de solidariedade, na época da dominação do

2º templo, com suas normas sobre a impureza.

PALAVRAS CHAVE: Provérbios, exegese, mulher, sabedoria, cotidiano.

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LOPES, Mercedes, The wise woman and the wisdom manifested through the woman- symbols of co-inspiration, a study of the woman in the book of Proverbs, Doctoral Thesis in Religious Studies, Methodist University of São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Abstract

In the book of Proverbs, specifically in chapter 1 verses 20-23 and chapters 8 and 9,

it is possible to perceive references that lead us to identify a symbol which has been called

the wisdom-woman, or wise-woman. Its interpretation has a long and polemic history.

While analyzing the textual links between these verses and the poem of Proverbs 31, it is

possible to realize that the symbol related to the wisdom of a woman seems to be taken

from the daily life of a person that, with great audacity, participates in the process of

building history and human relationships in the context of that moment (the post-exilic

period), in Judah. These links and texts emphasize the great value of the woman and her

proximity to God. She is presented as the one who has the power of offering (Pr 8,35; 9,6)

and preserving life (Pr 31), the one capable of experiencing and transmitting the ethical

values that are fundamental to every day family relationships (Pr 1,8; 6,20; 31,2-9.26).

This symbol also represents the memory of the ancient cults that were celebrated in

private homes to commemorate and guarantee on-going life. Even the memory of different

goddess were present in these rituals, in that they were not opposed to the rituals dedicated

to Yahveh. It is possible to state this because in the inner dynamic of the celebrations that

took place in those homes these divinities (goddess-Yahveh) were worshiped.

These texts show a change in the way of understanding the role of the woman in her

context. This new understanding appeared during the period of captivity, when there was

neither sanctuary nor government to provide adequate organization for the people in their

struggle for liberation. In this case, homes became substitutes for sanctuaries and women

were empowered, even in the midst of a patriarchal society. The wisdom of the women is

manifested in the home space, emphasizing relationships of inclusion and solidarity during

the period of the second temple, a time in which various laws related to impurity were

significant.

KEY WORDS: Proverbs, Exegesis, Women, Wisdom, Daily Life.

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LOPES, Mercedes, La mujer sabia y la sabiduría mujer – símbolos de co-inspiración, un

estudio sobre la mujer en textos de Proverbios, Tesis de doctorado, Universidade Metodista

de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2007.

Sinopsis

En los textos de Proverbios 1,20-23; 8 y 9 se encuentra el instigador símbolo de la

sabiduría mujer, que posee una larga y polémica historia de interpretación. Al analizar las

ligaciones textuales entre estos textos y el poema de Pr 31, descubrimos que el símbolo de

la sabiduría mujer se inspira en la mujer de la vida real que participa valientemente en la

reconstrucción de la historia y de las relaciones del pueblo de Judá, en el periodo del post-

exilio. Estas ligaciones desvelan una gran valoración de la mujer y su proximidad con Dios

al presentarla con el poder de ofrecer vida (Pr 8,35; 9,6) y de cuidarla (Pr 31), vivenciando

y transmitiendo valores éticos fundamentales para las relaciones cotidianas de la casa (Pr

1,8; 6,20; 31,2-9.26).

Este símbolo carga además la memoria de antiguos cultos realizados en la casa para

celebrar y garantizar la vida. Aunque estos rituales estuviesen penetrados por la memoria de

Diosas, ellos no eran opuestos a Yavé, pues dentro de la dinámica de la casa estaban

enteramente integrados en la religión de Israel por priorizar más que todo a la vida y

practicar la justicia.

Esos textos de Proverbios atestiguan un grande cambio en la visión de la mujer. El

origen de esta nueva visión ubicase en la época del cautiverio, cuando ya no había templo

ni gobierno que canalizase la organización del pueblo y su lucha por la liberación.

Entonces, la casa pasó a tener las funciones de proveer la subsistencia y de transmitir las

tradiciones religiosas del pueblo bíblico con la finalidad de obtener la inspiración y la

fuerza necesarias para garantizar el futuro. En la casa interiorana la mujer tiene autoridad y

liderazgo, a pesar de los prejuicios de la sociedad patriarcal. Es en el pequeño espacio de la

casa judiíta que el movimiento de la sabiduría mujer se ubica, generando relaciones de

inclusión y de solidaridad en la época del 2º templo, con sus normas sobre la impureza.

PALABRAS CLAVES: Proverbio s, exégesis, mujer, sabiduría, cotidiano.

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SUMÁRIO Introdução 6 Cap. 1 – Discussões sobre a sabedoria mulher em Provérbios 14

1.1 – Diferentes opiniões sobre a sabedoria mulher em Provérbios 1-9 16 1.2 – Fontes e tendências da sabedoria bíblica 25 1.3 – A época em que foi elaborado Provérbios 1-9 32 1.4 – O livro dos Provérbios 39 1.5 – Alguns problemas que apontam o caminho 42

Cap. 2 – A sabedoria mulher em Provérbios 1; 8 e 9 50

2.1 – Um estudo de Provérbios 1,20-23 51 2.1.1 – Tradução e comentário 51 2.1.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 52 2.1.3 – Gêneros literários 55 2.1.4 – Uma visão da sabedoria mulher 57 2.2 – Um estudo de Provérbios 8 59 2.2.1 – Tradução e comentário 60 2.2.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 65 2.2.3 – Estrutura de Pr 8,1-36 69 2.2.4 – Campo semântico 71 2.2.5 – Gêneros literários 77 2.2.6 – Uma visão da sabedoria mulher 80 2.3 – Um estudo de Provérbios 9 82 2.3.1 – Tradução e comentário 82 2.3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 86 2.3.3 – Gêneros literários 94 2.3.4 – Uma visão mais clara da sabedoria mulher 95 2.4 – O contexto de Provérbios 1,20-23; 8 e 9 97

Cap. 3 – A mulher sábia e forte de Provérbios 31 108

3.1 – Tradução e crítica textual 109 3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna 114 3.3 – Estilo e gêneros literários 116 3.4 – O contexto 122 3.5 – Conteúdo 128

Cap. 4 – O símbolo da sabedoria mulher e sua ligação com a realidade 154

4.1 – Ligações transversais entre Provérbios 1-9 e 31 157 4.2 – A atuação das mulheres nos espaços privados e públicos 163 4.3 – A religião da casa no pós-exílio 169 4.4 – A sabedoria mulher e a Deusa 174 4.5 – A sabedoria mulher e a mulher insensata 179 4.6 – Funções sociais e religiosas 185 Conclusão 192

Conclusão 199 Trasnliteração utilizada 208 Bibliografia 209

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Introdução

No livro de Provérbios 1,20-23; 8 e 9 encontram-se poemas muito bonitos, com uma

rica linguagem simbólica, que possibilita múltiplas interpretações. A personagem central

destes poemas é a sabedoria personificada em uma figura de mulher, que busca os lugares

públicos mais movimentados para transmitir sua mensagem. Estes poemas têm uma

linguagem tão forte e poderosa, que às vezes a sabedoria mulher se parece aos antigos

profetas bíblicos, e outras, parece representar o próprio Deus de Israel, em linguagem

feminina. No poema de Pr 8,22-31, torna-se quase evidente que o poeta se refere a uma

Deusa, deixando no ar uma pergunta sobre tal possibilidade. Mas, os editores do livro dos

Provérbios conseguiram encaixar de tal maneira a sabedoria mulher dentro dos padrões da

religião israelita que até hoje não há um consenso sobre seu significado. Por um lado, isto é

uma demonstração de que os “modos hegemônicos de indagação”1 não conseguiram

aprisionar a figura da sabedoria mulher. Por outro, demonstra a necessidade de se realizar

uma investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios de maneira que se

possa enfocar as diferenças e as diversidades inerentes ao texto bíblico e aos contextos em

que estes textos foram elaborados. Para realizar uma aproximação ao contexto de Pr 1-9,

buscarei relacioná-lo com Pr 31, onde a mulher sábia e forte é apresentada, também de

forma poética. Suspeito que o símbolo da sabedoria mulher seja um reflexo da realidade

das mulheres israelitas da vida real, no contexto do pós-exílio.

Faz anos que estes poemas sobre a sabedoria mulher, em Pr 1-9, me atraem e me

convidam a uma aproximação. Esta sedução provém da maneira como a sabedoria é

apresentada nesses textos e também da minha convivência com as mulheres pobres de

vários países da América Latina.2 Apesar da dedicação destas mulheres aos serviços gerais

1 Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista de la Biblia, Santander: Sal Terrae, 2004, p.53 (Colección “Presencia Teológica” 132). 2 Desde a década de 70 optei por morar no meio dos pobres, assumindo suas lutas. Durante dez anos, convivi com as comunidades indígenas da Bolívia. Com a finalidade de oferecer cursos de capacitação bíblica, percorri vários outros países, chegando a acompanhar grupos de mulheres da periferia de Santiago – Chile, durante um ano.

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nas igrejas cristãs, elas são excluídas de uma participação efetiva nas instâncias de decisão

e marginalizadas do processo de elaboração teológica. Contudo, em suas buscas e nos seus

discernimentos cotidianos, estas mulheres demonstram possuir uma sabedoria que brota das

suas lutas e resistências, de seu insistente desejo de mais vida. Ao lutar por uma vida

melhor para todas as pessoas e pela conquista dos seus direitos, elas crescem na auto-estima

e na determinação, exigindo espaços de participação na sociedade e nas igrejas. Segundo

Elisabeth Schüssler Fiorenza, “as lutas das mulheres pela transformação e pelo

reconhecimento de sua plena cidadania na sociedade, no mundo acadêmico e nas igrejas

geram conhecimentos emancipadores e intuições libertadoras”3.

Considero meu longo período de convivência com as mulheres pobres da América

Latina como uma etapa de treinamento da subjetividade e da emoção, meios importantes de

aprendizagem. Elas me levaram a comprovar como a teologia cristã, de um modo geral,

mantém engessado o discurso religioso, insistindo nas metáforas patriarcais e triunfalistas

para falar sobre Deus. O problema de tal discurso reside, em primeiro lugar, na ausência de

uma contraparte feminina em sua concepção da divindade, pois, segundo José Severino

Croatto “construímos uma imagem irreal de Deus, que não tem equivalente em nossa

experiência cotidiana. Com isso, perde seus contornos a linguagem simbólica que projeta

na divindade o que é parte de nossa experiência.”4 Outro problema é que as imagens de

Deus que tal discurso privilegia justificam e mantêm a dominação e a exclusão de leigos,

especialmente das mulheres, das estruturas da s igrejas cristãs. O que é, ainda, mais trágico é

que as estruturas de dominação e opressão que se encontram em textos bíblicos e em suas

interpretações têm influência direta sobre a vida das mulheres. Por isso, Elisabeth Schüssler

Fiorenza afirma que “devemos adotar uma ‘postura feminista’ ao lado das mulheres que

lutam no lugar mais baixo da pirâmide kyriarcal de dominação e exploração, porque suas

lutas nos revelam tanto a base da desumanizadora opressão que ameaça a toda mulher como

o poder da Divina Sabedoria, que já está no meio de nós”5.

3 Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista de la Biblia, p.124. 4 José Severino Croatto, “A sexualidade da divindade – Reflexões sobre a linguagem acerca de Deus”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/ RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.28. 5 Veja Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría – Una introducción a la interpretación feminista de la Biblia , p.125.

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Minha decisão de acolher a sedução que os poemas da sabedoria mulher em Pr 1-9

exercem sobre mim tem duas principais motivações: 1. desvelar o discurso religioso

elaborado a partir do símbolo da sabedoria mulher; 2. buscar a mulher israelita sábia, que se

reflete neste símbolo. Acredito que este procedimento poderá proporcionar um material que

possibilite novos discursos sobre a divindade, extraindo da rica tradição bíblica uma

imagem com nome, função e representação femininas. Mas, tal procedimento não deixa de

ter seus problemas. Conterá, realmente, este símbolo da sabedoria mulher uma fala sobre

Deus? Por que este símbolo feminino encontrou aceitação nos círculos sapienciais da sua

época? Que situações concretas permitiram sua elaboração e aceitação?

Silvia Schroer chama a atenção para ligações transversais muito interessantes entre

Pr 1-9 e 31,1-31.6 Seria possível ampliar esta percepção das ligações transversais entre a

primeira seção e a última do livro dos Provérbios? Que aspectos sobre a vida das mulheres

israelitas estas ligações visibilizariam? Que posturas e reações estes textos representam?

Quais os espaços ocupados pela sabedoria mulher nestes poemas? Será que a mulher da

vida real tinha acesso a estes espaços? Um diálogo com outros textos bíblicos poderia

ajudar a ver melhor esta figura da sabedoria mulher em Pr 1-9? Além do capítulo 31 de

Provérbios, que outros textos bíblicos ajudariam a encontrar os sentidos do símbolo da

sabedoria mulher?

Estas perguntas dirigem minha atenção tanto para o símbolo da sabedoria mulher

como para a mulher da vida real, com a intenção bem definida de investigar sobre a relação

entre ambas. Suspeito que o símbolo da sabedoria mulher, nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9

não seria uma hipóstase de Javé e não deixaria transparecer somente as antigas deusas, mas

seria, sobretudo, transparente em relação à situação das mulheres judaítas do pós-exílio.

Por trás do símbolo da sabedoria mulher poderia ser encontrada a situação da casa

interiorana, onde as mulheres teriam liderança e autoridade. Nos tempos conturbados do

período persa e frente às exclusões normatizadas pelos sacerdotes do segundo templo, as

6 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die Göttin – Gottesvorstellungen des biblischen Israel im Horizont feministischer Theologie, Freiburg: Herder, 1991, p.156, traduzido do alemão por Norbert H. C.Foester (manuscrito).

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mulheres de Judá insistiriam no resgate das antigas tradições, inclusive da solidariedade

tribal e da inclusão de diferentes como uma pequena saída para garantir o futuro das

famílias.

Várias são as ferramentas que utilizarei nesta minha pesquisa. Uma delas é a

hermenêutica de gênero. Segundo Delir Brunelli, “gênero indica os traços típicos, os papéis

que culturalmente foram atribuídos a homens e mulheres, estabelecendo um determinado

padrão nas relações sociais”7. Estes padrões são gerados a partir da maneira como um

grupo social se compreende e exerce o poder. Eles mostram os tabus e as dificuldades de

integração da sexualidade e da afetividade por um determinado grupo social. Mitos e tabus

servem para justificar a dominação e esconder o medo. Estes mitos e tabus estão presentes

também na Bíblia. São um reflexo da sociedade patriarcal dentro da qual a Bíblia foi

escrita, já que as antigas religiões nasceram dentro deste tipo de sociedade. Mas, uma

hermenêutica com ótica de gênero não está relacionada apenas aos textos que se referem às

mulheres, ou que as silenciam, mas a todo trabalho com um texto bíblico. Ela se preocupa

com as relações, buscando dialogar com as diferenças. Ela se pergunta pelas situações,

indagando sobre a realidade das comunidades e grupos que estão por trás de cada texto.8

A questão de gênero não somente me desperta para as históricas construções que

constituem nosso modo de viver como homens e mulheres, mas também me convida a

rever os modelos de Deus que interiorizei e a ideologia de dominação subjacente aos

discursos religiosos. Segundo Ivone Gebara, a questão de gênero “nos convida a rever

nossos modelos de construção teórica sobre Deus e a examinar as implicações culturais e

sociais na vida das mulheres e dos homens de um determinado contexto”9. Segundo Tânia

Mara Vieira Sampaio, “a concepção das relações sociais de gênero se apresentam como um

novo paradigma, capaz não somente de visibilizar mulheres e/ou grupos oprimidos, mas

também de iluminar as descobertas sobre a estrutura das opressões e dos jogos de poder que

organizam discursos normativos e estabelecem controles sociais. Mais que um encontro

7 Delir Brunelli, “O que é mesmo gênero?” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB, nº 30, 2001, p.9. 8 Veja Mercedes Lopes, “Gênero e leitura bíblica,” em Sonhos e sementes, Rio de Janeiro: Cadernos da CRB, nº 30, 2001, p.18. 9 Ivone Gebara, Rompendo o silêncio – Uma fenomenologia feminista do mal , Petrópolis: Vozes, 2000, p.109.

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entre histórias de vida, essa maneira de ler a realidade quer demarcar uma nova trajetória

dos paradigmas de construção dos conhecimentos e de decodificação dos discursos”10.

Utilizando métodos exegéticos,11 combinados com a hermenêutica feminista,

buscarei verificar a possibilidade de detectar a situação das mulheres na época da

elaboração dos poemas citados, concentrando-me na investigação sobre a situação da casa,

famílias e clãs, onde as mulheres tinham important e papel.

Outra ferramenta importante para minha pesquisa é o método histórico-crítico, que

entende o texto bíblico como um documento histórico “que deve ser analisado sem os

condicionamentos de uma visão dogmática. Na evolução desse método, exige-se uma nova

visão da história, superando a visão positivista e assumindo um conceito dialético”12.

Apesar de sua importância, o método histórico-crítico busca, às vezes, uma objetividade

absoluta, que vem sendo criticada e superada pela hermenêutica feminista. Para Ernst

Käsemann, “uma postura crítica poderia ser a expressão de uma objetividade real e deveria

constituir-se em um meio de resistir à subjetividade”13. Mas, segundo M. O’Brien, “os

estudos bíblicos contemporâneos estão muito mais autoconscientes ideologicamente do que

nas gerações passadas. Em particular, adquiriram uma aguda consciência do fator subjetivo,

do impacto que a posição do leitor tem sobre a experiência e a compreensão do texto

bíblico.”14 É com esta perspectiva que utilizarei este método, analisando o texto bíblico

como um documento histórico, consciente do fator subjetivo que provém da minha própria

experiência como leitora e da subjetividade das pessoas que elaboraram e editaram esses

textos, em suas diferentes etapas.

10Tânia Mara Vieira Sampaio, “Horizontes en discusión en el arte de hacer teología”, em Revista Alternativas, Manágua: Lascasiana, a no 10, nº 26, julho-dezembro de 2003, p.82. 11 Para a metodologia exegética vou seguir alguns autores, como Cássio Murilo Dias da Silva, Metodologia de exegese bíblica, São Paulo: Paulinas, 2000, 515p.; Hans de Wit, En la dispersión el texto es patria – Introducción a la hermenéutica clásica, moderna e posmoderna , San José: Universidad Bíblica Latinoamericana, 2002, 557p.; Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Fundamentos para exegese do antigo testamento – Manual de sintaxe hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1998, 154p.; Ernst Käsemann, Ensayos exegéticos, Salamanca: Sígueme, 1978, 299p. (Biblioteca de Estudios Bíblicos 20); Uwe Wegner, Exegese do Novo Testamento – Manual de metodologia, São Paulo: Paulus, 2001, 407p., entre outros. 12 Martin Volkmann, “Introdução”, em O método histórico crítico, São Paulo: CEDI, 1992, p.32. 13 Ernst Käsemann, Ensayos exegéticos, p.71-72. 14 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico - Experiência e ideologia”, em Concilium, vol.289, Petrópolis: Vozes, 2001, p.69.

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A hermenêutica da suspeita ajuda-me a perceber que o texto e seus leitores padecem

de preconceitos que podem passar despercebidos. Para M. O’Brien “uma abordagem

feminista ou liberacionista do texto, quando aplicada e avaliada criticamente, permite ver

coisas que podem ter sido obscurecidas por outras leituras. Uma vez que alguém toma

consciência do preconceito presente na Bíblia, isso pode ter um impacto sobre a

compreensão que essa pessoa tem da autoridade da Bíblia e sobre como ela transmite a

experiência de Deus. Apesar disso, quando tratado criticamente, este preconceito pode ser

visto numa luz menos negativa.”15 O’Brien lembra, também, que “um estudo crítico dos

textos bíblicos considera os autores como teólogos criativos e seus textos como discursos

teológicos e não como registros”16.

Nesta pesquisa, buscarei superar a tensão entre a hermenêutica da suspeita e a

hermenêutica do “crédito”, já que ambas têm se mostrado extremamente férteis para a

investigação bíblica. 17 Esta superação somente será possível, se eu conseguir identificar a

época do texto e os grupos de mulheres e homens que conseguiram expressar sua

experiência de Deus, através dos hinos e símbolos presentes na primeira e última seções do

livro dos Provérbios. Segundo Maria Izilda S. de Matos, “os estudos de gênero estão

revelando os limites da utilização de certas categorias descontextualizadas, assinalando a

necessidade de estudos específicos que evitem a tendência a generalizações e premissas

pré-estabelecidas, buscando revelar o processo artificial na construção de certos conceitos

supostamente ‘naturais’, como observar a heterogeneidade das experiências, incorporando

toda a complexidade do processo histórico”18.

15 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.77. 16 M. O’Brien, “A natureza do monoteísmo bíblico – Experiência e ideologia”, p.71. 17 Este termo “hermenêutica do crédito” encontra-se em Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, organizado por Luise Schottroff, Silvia Schroer e Marie-Theres Wacker, Darmstadt: Wissenschafttliche Buchgesellschchaft, 1995, p.5. 18 Maria Izilda S. de Matos, “De la invisibilidad al género: Odisea del pensamiento”, em Revista Alternativas, Manágua: Lascasiana, ano 10, nº 26, julho-dezembro de 2003, p.20.

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No primeiro capítulo desta tese, apresentarei um debate entre diferentes autores e

autoras sobre o significado do símbolo da sabedoria mulher, ou sabedoria personificada19.

Para obter uma compreensão mais clara do processo de elaboração destes poemas sobre a

sabedoria, buscarei ouvir diferentes autores sobre as fontes e tendências da sabedoria

bíblica e sobre a época em que foi elaborado Pr 1-9 e 31. Uma visão geral do livro dos

Provérbios ajudará a situar melhor o objeto da minha pesquisa: os capítulos 1-9 e 31.

Encerrarei o primeiro capítulo, percorrendo alguns autores e autoras para identificar a

problemática presente nas posturas de alguns estudiosos e no próprio texto bíblico.

Estes contatos com diferentes autores me permitirão obter uma visão ampla da

pesquisa bíblica sobre o símbolo da sabedoria mulher, inclusive sobre a época e o contexto

de Pr 1-9 e 31, permitindo-me adentrar na análise literária, nos dois capítulos seguintes.

Sem perder de vista as questões levantadas, seguirei os passos da exegese para uma análise

de Pr 1,20-23; 8; 9 e 31. Apresentarei uma tradução e crítica textual de cada um desses

textos, além de sua delimitação e estrutura, buscando encontrar a coesão interna de cada

poema. Esta análise compreende, ainda, o campo semântico e o gênero literário, buscando

observar as particularidades de cada um dos textos citados. Depois da análise literária,

buscarei verificar as diferentes visões da sabedoria mulher, apresentadas nestes poemas e

proporcionarei uma visão detalhada sobre o contexto sócio-econômico, cultural, político e

religioso no qual estes textos foram elaborados e editados.

Um enfoque sobre os sentidos do símbolo da sabedoria mulher e da sua ligação com

a realidade será o tema central do capítulo 4. Nesse capítulo, buscarei visualizar a realidade

subjacente ao símbolo, desenvolvendo uma análise das ligações entre a mulher sábia e forte

do capítulo 31 e o símbolo da sabedoria mulher, apresentado nos poemas dos capítulos

1,20-23; 8 e 9 de Provérbios. Diante dos questionamentos apresentados sobre a confinação

da sabedoria mulher e da mulher da vida real no espaço privado da casa, buscarei descobrir

se existem, nos textos citados, indicações sobre a atuação das mulheres nos espaços

19 A expressão “sabedoria personificada” já está condicionada pelos estudos literários sobre personificação em textos extra bíblicos. A história da interpretação de Pr 1,20-23; 8 e 9 está também condicionada pelo sentido mais amplo de personificação, na própria literatura bíblica. Deixei de usar o clássico termo “sabedoria personificada”, com a finalidade de deixar o texto mais livre para a pesquisa. Nesta tese, usarei simplesmente o termo sabedoria mulher.

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públicos. Para compreender melhor o imaginário religioso que possibilitou a elaboração

deste símbolo, buscarei encontrar dados que me permitam obter uma aproximação sobre a

religião da casa, no pós-exílio. Investigarei, ainda, sobre aspectos que possam estabelecer

relações entre a sabedoria mulher e a Deusa, assim como entre esta e a mulher insensata,

que aparece como sua antítese em Pr 9,13-18. Finalmente, farei uma investigação sobre as

funções sociais e religiosas destes textos na sua época, seja como questionamentos e/ou

como propostas de transformação social e religiosa.

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Capítulo 1

Discussões sobre a sabedoria mulher em Provérbios

O símbolo bíblico da sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8,1-36; 9,1-6; Jó 28; Eclo 24)

tem sido pouco estudado. O reduzido material que existe sobre este assunto caracteriza-se

quase exclusivamente pelo gênero comentário bíblico. Meu objetivo é oferecer uma

exegese formal dos textos de Provérbios que se referem a este símbolo, a partir de uma

perspectiva feminista, democrática e inclusiva. Um estudo sobre o símbolo da sabedoria

mulher no livro dos Provérbios com essa perspectiva poderá abrir uma janela sobre estes e

outros textos bíblicos, unindo meu esforço ao de mulheres e homens que desde algumas

décadas entraram no campo da pesquisa bíblica na perspectiva de gênero.

No decorrer dos últimos anos, já foram realizadas muitas desconstruções das

imagens patriarcais de Deus, mas faltam ainda trabalhos de construção de novos modelos.

Resgatar uma imagem bíblica poética e atraente como a da sabedoria mulher, em

Provérbios 1,20-23; 8 e 9, pode ser, no mínimo, uma pergunta frente ao monoteísmo

fundamentalista dos nossos tempos e uma proposta de organização social. Para isso,

pretendo analisar a situação social da época, que transparece nos textos e confrontá- la com

outros textos contemporâneos, para descobrir se o símbolo da sabedoria mulher contém

uma proposta alternativa de relação com Deus, além de uma utopia política e uma proposta

de relações novas entre as pessoas.

No entanto, reconheço que encontrarei muitas dificuldades para alcançar este

objetivo. Como afirma Silvia Schroer, a exegese tradicional até agora não conseguiu um

consenso sobre o significado da sabedoria nesses escritos e como situá - los no sistema

simbólico do período pós-exílico, porque esta forma de falar sobre Deus dificilmente se

deixa enquadrar nos conceitos patriarcais da religião monoteísta. No contexto da história

das religiões há referências à influência do Egito e de Deusas helenistas sobre a Sophia,

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mesmo que nesses trabalhos não se dê muita atenção ao aspecto da feminilidade.20 Estas

observações de Silvia Schroer são relevantes, ainda que suas investigações se concentrem,

sobretudo, na imagem da Sophia, pois é uma especialista no estudo do livro da Sabedoria.

Ela mostra a necessidade de situar a época em que surge a imagem da sabedoria mulher e

de analisar o imaginário simbólico dessa época. Sua experiência na investigação bíblica

sobre este tema a leva a afirmar que “metodologicamente, é decisivo para a exegese

feminista ir dos textos da sabedoria personificada até os seus contextos. Isto significa que a

sabedoria personificada deve ser lida em relação íntima com os escritos de sabedoria

correspondentes”21.

É com esta perspectiva que pretendo analisar a trama religiosa e social que se

encontra por trás de Pr 1-9 e 31. Suspeito que estes textos, que estão elaborados na sua

maioria a partir da linguagem poética, contêm um discurso sobre Deus. Um aspecto

teológico dos poemas estaria concentrado, sobretudo, no símbolo da sabedoria mulher (Pr

1.20-23; 8,22-31; 9,1-6). Mas, o símbolo não seria outra coisa que um reflexo de uma

situação vivenciada pela mulher israelita da vida real? Por trás deste símbolo, não estariam

presentes tanto a mulher contemporânea ao texto, como as mulheres sábias e profetisas

que contribuíram para a construção da história do povo bíblico? Suspeito, ainda, que estes

textos tenham sua origem na casa. É possível que as famílias pobres que cultivavam os

campos de Canaã mantivessem antigos rituais relacionados às etapas de semeaduras e

colheitas, nascimentos e funerais, enfim, ligados à sua própria subsistência e às questões

mais importantes do seu cotidiano. Já que as terras áridas de Canaã necessitavam da chuva

para a fertilidade do solo, a abundância das colheitas e reprodução dos rebanhos, esta seria

obtida através de um ritual celebrado na casa. Embora estes rituais carregassem memórias

de antigos cultos às Deusas, eles não eram opostos ao culto de Javé. Pelo contrário, dentro

da dinâmica da casa, eles estariam inteiramente integrados. O que caracterizaria a religião

da casa seria a sua abertura e a priorização da vida como seu motivo e base de sustentação.

Desta maneira, a religião da casa não seria uma religião opressora, usada para manter o

20Confira Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im Buch der Weisheit”, em Ein Gott allein? – Jhwh-Verehrung und biblisher Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen religiongeschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Freiburg/Göttingen: Göttingen,Vanderhoeck & Ruprecht, 1994, p.543. 21 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.153

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controle e para dar sustentação aos interesses de um grupo da elite. Seria, antes de tudo,

uma religião lúdica e alegre que cultuava uma Deusa bem humorada que se deliciava na

sua relação com a humanidade e que proporcionava vida e bem estar a todas as pessoas.

Antes, porém, de realizar uma investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em

Pr 1,20-23; 8 e 9, buscando uma aproximação ao seu contexto e relacionando-o com outros

textos da literatura sapiencial, quero ouvir outras autoras e autores que já investigaram este

tema. No item 1.1 deste capítulo, apresentarei diferentes opiniões de autores e autoras sobre

o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios. Para situar melhor este texto, no item 1.2,

buscarei ouvir diferentes vozes sobre as raízes da sabedoria em Israel e, no item 1.3, sobre a

época de elaboração de Pr 1-9. No item 1.4, apresentarei uma visão geral do livro dos

Provérbios. Encerrarei esta visita a diferentes autores e autoras ouvindo suas experiências e

questionamentos que apresentam dificuldades no estudo deste tema. Não são unicamente as

descobertas que transmitem conhecimentos, mas, sobretudo, as perguntas, as suspeitas e o

desconcerto frente ao inusitado.

1.1 – Diferentes opiniões sobre a sabedoria mulher de Provérbios 1-9

Em Pr 1,20-23; 8 e 9 temos alguns poemas didáticos que apresentam a sabedoria

mulher falando em primeira pessoa e buscando seus interlocutores em lugares públicos e

muito movimentados. Algumas autoras e autores têm encontrado nestes poemas e,

sobretudo, em Pr 8,22-31 o estilo próprio de proclamações dos deuses egípcios, mais

precisamente de Maat, a Deusa da verdade e do amor. 22 Há também autoras que têm visto

por trás deste símbolo da sabedoria mulher a presença da Deusa Aserá.23 Estas afirmações

22Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, Neukirchen-vluyn: Neukirchener Vesrlag, 1966, p.94-95, (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament 22); Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , São Paulo: Paulinas, 1997, p.253-254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, Madri: Fax, 1973, p. 200, entre outros. 23 Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, em Ein Gott allein? – Jhwh-Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelitischen

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são questionadas por outros autores24, já que desde a reforma deuteronomista houve uma

grande repressão em Israel contra o culto das divindades estrangeiras.

Para sair deste dilema, José Vílchez Líndez adverte que “no mundo literário existe

uma figura chamada personificação, que consiste em fazer passar como pessoa algo que

não é, como uma abstração, uma planta, um animal. É o caso dos Autos sacramentales, em

que entram em cena como personagens as virtudes e os vícios, ou das fábulas, nas quais

falam plantas e animais. Esse recurso literário é com freqüência aplicado à sabedoria nos

livros sapienciais”25, afirma o referido autor.

Frente ao símbolo da sabedoria personificada, Alviero Nicacci se interroga: “mas,

quem é a senhora sabedoria?” Sua resposta inicial é muito breve e generalizada: “é uma

figura que supera qualquer outra criatura. Estava ao lado de Deus no momento em que ele

criava o universo, encontrando suas delícias diante dele... é uma figura de algum modo

divina e humana”26. Tentando explicar sua opinião, Alviero Nicacci comenta um pouco

mais adiante, no mesmo livro, que o gênero literário dos discursos da sabedoria

personificada é próprio da auto-revelação de uma divindade e que é um gênero literário

antigo, já presente na literatura egípcia. Em seguida, este autor faz um comentário

específico sobre Pr 8: “a sabedoria convida para ouvir, como fazem os mestres, mas há uma

diferença significativa. Ela fala em lugares públicos, nas encruzilhadas dos caminhos, junto

às portas, onde o pessoal vai e vem, onde se realizam os negócios e se administra a justiça.

Ela fala a todos, indiscriminadamente, e não a um grupo de discípulos”27. E acrescenta: “o

melhor paralelo parece ser Maat, concepção egípcia da verdade e justiça”28.

und altorientalischen Religionsgeschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Freiburg/Göttingen: Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.235-268. 24 John Day, “Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte , Walter Dietrich/Martin A. Klopfenstein (Organizadores), Friburgo/Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.186. 25 José Vílchez Líndez, Sabedoria e sábios em Israel, São Paulo: Loyola, 1999, p.53, (Bíblica Loyola, 25). 26 Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.12. 27 Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.249. 28 Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.253.

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Esta é também a opinião de Christa Kayatz, para quem no texto de Provérbios não

só se detectam traços estilísticos e imagens da literatura egípcia, mas a presença da idéia de

Maat. Esta idéia constitui o núcleo da sabedoria egípcia e pode ser traduzida como “ordem

primordial”, “direito”, “justiça”29.

Silvia Schroer também afirma que a representação principal que está por trás da

sabedoria personificada é Maat. Ela abrange o divino e a natureza, o reino, a sociedade e as

relações humanas; ela representa as ordens cósmicas queridas pelos deuses, isto é, as

ordens culturais ideais. Esta Deusa faz parte do panteão egípcio, mas ela ocupa uma

posição especial, já que as outras divindades se orientam para ela como princípio cósmico.

Para mostrar com maior clareza sua identidade, Silvia Schroer afirma que “o conceito

oposto a Maat é Isfet, a condição de ausência do direito e a vigência da violência e da

opressão”30. Esclarece ainda essa autora que a ordem social que tal Deusa representa não é

uma ordem democrática e sim hierárquica. Porém o direito que ela representa é o direito

que dá chance ao mais fraco, a idéia de uma solidariedade vertical dos bem situados para

com todas as partes da sociedade... A hokmah, de maneira semelhante à Maat, representa

idéias de ordens divinas do mundo, inclusive as ordens do cosmos e da natureza. Quando o

direito é corrompido, irrompe sobre a terra uma seca (Os 4,2s); quando o enviado de Javé

restaurar a justiça, toda a ordem da criação será restabelecida (Is 11,1-9).31 Com estas

afirmações, Silvia Schroer não está fazendo somente uma relação entre hokmah e Maat,

mas sobre a sabedoria e a prática da justiça, o restabelecimento do direito e o equilíbrio

ecológico.

Para Gerhard von Rad, Provérbios 1-9 é uma coleção de poemas didático-teológicos

que parece seguir a antiga tradição de Israel. Porém, na medida em que se avança na leitura,

surge, de repente, algo totalmente inesperado. E este algo inesperado seria a separação da

sabedoria imanente, presente na criação como uma ordem harmoniosa e sábia, das obras da 29Veja Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9: eine form-und Motivgeschichtliche Untersuchung unter Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials , p.94-95. 30 Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, em Concilium, vol.288, Petrópolis: Vozes, 2000, p.74[702]. 31 Confira Silvia Schroer, “A justiça da Sophia: tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, p.75[703].

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criação propriamente ditas. Seria como uma separação ontológica dos fenômenos dentro da

criação, modificando-se também a relação do ser humano com esses fenômenos.32 “Porém,

tudo isso, separado radicalmente de seu sentido original, constitui um fenômeno

hermenêutico que ainda não foi suficientemente considerado em todos os seus aspectos: o

fato de que não só se tenham tomado idéias ou figuras egípcias, mas às vezes séries inteiras

de Provérbios puderam ser mantidas em seu primeiro teor literário”33, comenta Gerhard von

Rad. A perplexidade causada pelo texto de Provérbios 8,22-31 tem produzido mal-estar em

muitos estudiosos, levando alguns a tentar fazer correções ao texto massorético. 34

Há também aqueles que encontram no texto exatamente aquilo que a teologia cristã

definiu. Esta é a postura de Ernesto Lussier, para quem “a sabedoria em Provérbios 8 é

claramente uma personificação da inteligência essencial de Deus, atributo que presidiu a

criação. Na apresentação literária existem alguns elementos que podem sugerir uma pessoa

real e distinta na Trindade, porém são, quando muito, vagas antecipações, preparação

longínqua da revelação que se encontra no Prólogo de São João e em Col 1,16-17”35.

Há, ainda, estudiosos que interpretam o símbolo da sabedoria mulher simplesmente

como uma figura literária. Para Luis Alonso Schökel “os investigadores falam

indiscriminadamente de personificação ou de hipóstase da sabedoria, confundindo os

termos e prestando assim um mau serviço à interpretação dos textos. Hipóstase em

terminologia teológica quer dizer pessoa; personificação não chega a tanto: é uma figura

literária conhecida e empregada universalmente”36.

32Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial , p.222. Em nota ao pé da página 200, Gerhard von Rad afirma estar claro que “no poema de Provérbios 8,22-29 há formas estilísticas próprias de determinadas proclamações de Deuses egípcios e que nos versículos 30-31 está presente uma concepção egípcia de uma divindade que ama com todas as entranhas a verdade personificada, cujo nome é Ma’at”. 33Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.225. 34Veja Maurice Gilbert e Jean-Noël Aletti, A sabedoria e Jesus Cristo, São Paulo: Edições Paulinas, 1985,

p.26. Estes autores comentam que se em Pr 8,30 o termo !Ama' for lido como ’amon, que significa “artista” ou mestre de obras, daria a entender que a sabedoria teria exercido um papel ativo na organização do mundo. E, afirma: “pode-se ler, também, ’amun, no sentido de “criança de colo”, “criança querida”, “criancinha”. Na tradução e crítica textual de Pr 8, voltarei a este assunto e farei uma investigação mais apurada. 35 Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico, Bilbao: Mensajero e Santander: Sal Terrae, 1970, p.24-25 (Conoce la Biblia: Antiguo Testamento 24). 36 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez con la colaboración de A. Pinto, Sapienciales I – Proverbios, Madri: Cristiandad, 1984, p.76.

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A seguir, Luis Alonso Schökel recolhe a opinião de vários autores sobre a sabedoria

personificada, citando aqueles que a apresentam como uma hipóstase, ao menos em

algumas passagens importantes, e comenta: “quase todos os autores modernos rejeitam a

tese da hipóstase da sabedoria, admitindo a sabedoria personificada, entendendo-se como

tal, personificação literária ou poética”37. Aqui, Luis Alonso Schökel entra diretamente na

questão do monoteísmo bíblico. Ele afirma: “pode-se dizer que o recurso da personificação

da sabedoria é a melhor saída que o judaísmo encontrou para defender sua ortodoxia. A fé

monoteísta em Javé adaptou-se ao máximo às concepções pagãs, porém sem renunciar ao

seu monoteísmo.”38 Esta explicação de Luis Alonso Schökel desvela um problema que

impede os estudiosos a avançarem na investigação sobre este tema.

Apesar das opiniões contrárias, Karen Armstrong parece seguir a idéia de hipóstase.

Segundo esta autora, a sabedoria mulher representa o plano de Deus ao criar o mundo. Ela

afirma: “o autor do livro dos Provérbios, que escreveu no século III a.C., foi um pouco mais

longe e sugeriu que a sabedoria era o plano mestre que Deus idealizara ao criar o mundo e,

como tal, a primeira de suas criaturas”39.

Víctor Morla Asensio deixa transparecer sua perplexidade ante as divergentes

opiniões sobre a sabedoria mulher: “com relação à questão da possível natureza hipostática

da Sabedoria de Pr 8,22-31, as posturas dos especialistas divergem. Enquanto alguns

estudiosos opinam que aqui a sabedoria é uma realidade radicalmente intramundana, uma

qualidade do mundo, e que por isso não se pode aceitar que represente um atributo de

Javé,40 outros acreditam que o texto de Provérbios oferece ocasião para admitir-se

semelhante natureza da sabedoria”41.

37Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77. 38Luis Alonso Schökel, Sapienciales I – Proverbios, p.77. Esta mesma afirmação encontra-se em José Vílchez Líndez, Sabedoria e sábios em Israel, p.55. 39Karen Armstrong, Uma história de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo , São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.77. 40 Víctor Morla Asensio apresenta como um exemplo desta postura R. N. Whybray, “Proverbs VIII 22 -31 and Its Supposed Prototypes”, em J. L. Crenshaw (ed.), Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York, 1976, p.390-400. 41 Víctor Morla Asensio, Livros Sapienciais e outros escritos, São Paulo: Ave Maria, 1997, p.118.

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Para Leo G. Perdue “a sabedoria mulher em Provérbios 1-9 é a força divina e

criativa que origina e continua a permear o cosmos; é a justiça social que forma e

proporciona um caráter justo para as instituições humanas; é a fascinante amante do sábio

que procura encontrar bem-estar e jovialidade no seu encanto e no seu abraço vital... Mas,

antes de tudo, sabedoria mulher, através dos ensinamentos da sabedoria cuja voz ela

encarna, é a voz de Deus, cujos convites para vir e aprender dela e de suas instruções que

revelam um conhecimento e uma perspicácia divina , indicam ao simples um caminho para

a plenitude da vida.”42

Bernhard Lang tem apresentado dois tipos de interpretação deste símbolo da

sabedoria mulher: uma psicológica e outra mitológica. Discordando de C. G. Jung,

Bernhard Lang afirma que os antigos israelitas não eliminaram a figura da Anima do seu

meio. Ao contrário, fizeram dela uma Deusa pessoal. A visão poética da sabedoria seria um

resgate desse antigo mito e, ao mesmo tempo, uma projeção de arquétipos inconscientes.

No entanto, para Bernhard Lang a visão poética da sabedoria é mera figura de linguagem,

figura que continua atraindo até os dias atuais.43

Jack Miles desafia as opiniões moderadas dos estudiosos conhecidos com esta sua

opinião: “metaforicamente, a senhora sabedoria é ‘parceira de Deus’ ou ‘esposa de Deus’,

representando a humanidade cooperando com Deus e como mãe da humanidade. Nessa

metáfora da humanidade cuidando de si mesma como esposa e mãe, a sabedoria nos lembra

Aserá.”44 Para explicitar esta relação que faz entre a sabedoria e Aserá, Jack Miles chama a

atenção para a comparação da sabedoria com a “árvore”, em Pr 3,18 (confira Gn 3,22).45 É

interessante esta comparação, pois a árvore era um dos símbolos de Aserá.

42 Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister, Michael L. Barré, (organizador), Washington: The Catholic Biblical Quarterly Monograph, 1997, p.91, (Series 29). 43 Bernhard Lang, “Lady Wisdom: a polytheistic and psychological interpretation of a biblical goddess”, em Reading the Bible – Approaches, methods and strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.400-423. 44Jack Milles, Deus - Uma biografia , São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.332. 45Jack Milles, Deus – Uma biografia, p.335.

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Segundo Herculano Alves, “a sabedoria aparece ainda como figura feminina com

função mediadora na criação, em Pr 8,23-31 e Jó 28,17-27 (ver Bar 3,9-4,4); como uma

mãe que comunica sabedoria aos seus filhos: Ecl 15,1-5; Pr 8,32-36. A sabedoria divina é

como uma mãe, um mestre que conduz pedagogicamente os seus filhos ou os seus

discípulos. Aparece, pois, uma estreita relação entre a sabedoria divina e a mulher, e

acontece uma transmutação simbólica entre uma e a outra (Pr 19,14; 31, 10.26.30; Sb

7,28).”46

Em seu estudo sobre o livro da Sabedoria e especificamente sobre o cap.7, Ney

Brasil Pereira chama a atenção para as cinco metáforas da sabedoria que aparecem nos

v.25-26, pertencentes a vários campos simbólicos: “a exalação (v.25a), hálito, vapor, tem a

ver com o sopro, o ar, como no texto de Eclo 24,3: “saí da boca do altíssimo e, como névoa,

recobri a terra”. A emanação ou efusão (v.25b), leva -nos ao campo simbólico da água,

dando à “glória” uma consistência que se derrama benevolamente e que, por ser “pura”,

nada de imundo se lhe apega. Já a “irradiação” (v.26a) e, depois, o “espelho” (v.26b) se

mantêm no campo da luz e da visão, como também da imagem (v.26). Notar o enlace de

cada metáfora com uma qualidade divina: poder, glória, luz, energia, bondade.47 E este

autor acrescenta: “no pós-exílio, onde ouvimos a sabedoria como profetisa em praça

pública (Pr 1,20-23 e 8,1-36), recebemos seu convite para o banquete que ela mesma

preparou, como generosa anfitriã (Pr 9,1-6).48

Ney Brasil Pereira continua com sua análise da figura da sabedoria e sua natureza

divina, mostrando que em Sb 6,12-16 a sabedoria é apresentada como mulher que deve ser

procurada e amada. Nova alusão ao “amor” e à “posse” da sabedoria em 7,10, seguindo-se

a exaltação dos seus dons, da sua natureza divina, ou quase divina (7,22-8,1). No cap.8, é

visível o erotismo nos v.2.9.16.21, não só na relação do ser humano com ela, mas também

na relação dela com o próprio Deus, que a ama e com quem ela “convive” esponsalmente

46Herculano Alves, “Deus no Feminino no Antigo Testamento”, em A mulher na Bíblia, na Igreja e na Sociedade – Questões actuais na moral familiar, Lisboa: Difusora Bíblica, ano 2, nº 3, Dezembro de 1994, p.59, (Bíblic a série científica). 47Confira Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça, São Leopoldo: Sinodal, Petrópolis: Vozes, 1999, p.115, (Comentário Bíblico AT). 48Confira Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes, sobre a justiça , p.37.

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23

(8,3). “É essa esponsal convivência com Deus que a torna onisciente e mediadora de todos

os bens, sentada como está no trono divino (em grego páredros, conferir Sb 9,4), conceito

que evoca os divinos casais das religiões politeístas. O indubitável monoteísmo do autor

permite- lhe, porém, essa ousadia na linguagem, que evidentemente reflete seu ambiente

cultural. No cap.10 é notável como a sabedoria toma o lugar tradicional do nome de Deus,

como sujeito dos fatos salvíficos da história do seu povo: a sabedoria é o Deus de Israel em

figura feminina.”49

Para Juan José Tamayo-Acosta, “a sophia é personificada em uma mulher que goza

de sabedoria; é apresentada como mestra da justiça e aparece junto a Deus no momento da

criação”50. Segundo este autor, no símbolo da sophia unem-se o nacionalismo de Israel e o

universalismo da cultura helenista para criticar toda tirania e introduzir uma nova

linguagem sobre Deus.51

Uma autora que vem pesquisando há décadas a tradição da sabedoria é Silvia

Schroer. Ela afirma que “a tradição da sophia sempre foi um símbolo da crítica ao poder,

voltada contra a arbitrariedade e a tirania”52. Para Silvia Schroer a palavra chave “sabedoria

de mulher” liga a moldura pós-exílica do escrito de Pr 1-9 e 31 com o corpo mais antigo

das sentenças (Pr 10-30). “A mulher forte de Pr 31,10-31 possui uma casa e gerencia toda

uma empresa. Mulheres que constroem casas, ensinam e aconselham, e também as imagens

das deusas do Antigo Oriente confluem na imagem complexa da hokmah, da sabedoria

personificada, que pode ser traçada aqui pela primeira vez.”53

Mas há autoras que não vêem em Provérbios 1-9 uma “sabedoria de mulher”, mas

uma definição prática do limite nas relações dos homens com as mulheres. Esta é a opinião

de Janneke Bekkenkam e Fokkelien van Dijk -Hemmes. Elas afirmam: “a senhora sabedoria 49Ney Brasil Pereira, Livro da Sabedoria – Aos governantes , sobre a justiça, p.38. 50Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el pluralismo religioso , Revista Alternativas, Manágua: Lascasiana, ano 11, nº 27, janeiro -junho de 2004, p.85. 51Juan José Tamayo-Acosta, “Hacia un nuevo paradigma teológico intercultural”, em La teología ante el pluralismo religioso , p.86. 52Silvia Schroer “Transformações na fé, Documentos de natureza intercultural na Bíblia”, em Concilium, vol. 251, Petrópolis: Vozes, 1994, p.20. 53Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.

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e a senhora tolice são símbolos dos dois extremos entre os quais a vida dos homens se

desdobra. Elas definem os limites dentro dos quais os homens são chamados a tomar

decisões”54.

Martin A. Klopfenstein escreveu um artigo com o sugestivo título: “A ressurreição

da Deusa na sabedoria tardia de Israel, em Provérbios 1-9?”55 Depois de fazer um

levantamento sobre aspectos internos e externos a Israel que poderiam ter contribuído para

a elaboração desta imagem ou símbolo da sabedoria mulher, este autor conclui que “no

símbolo da personificação da sabedoria encontramos a expressão do fortalecimento da

posição social e religiosa da casa, da família e da mulher, no início do pós-exílio. Nele se

condensa a busca de uma contra-corrente carregada de círculos sapienciais que são

subterrâneos à religião e à cultura do pós-exílio, que marginalizava e excluía o feminino.

No símbolo se juntam expressões imaginárias das mais diversas situações e funções das

mulheres na história de Israel. No símbolo se concentram, de uma forma mais inconsciente

do que consciente, representações de Deusas cuja influência é difícil reconhecer

individualmente.”56

Para Martin A. Klophenstein, a compreensão mais importante é esta: “este símbolo

foi capaz de estourar, de alguma maneira, a imagem de Deus na religião javista durante o

exílio e no pós-exílio, marcada por uma compreensão patriarcal muito estreita. Este

símbolo amplia dimensões femininas, abrindo a possibilidade de uma participação mais

aberta na fé javista, incluindo principalmente as mulheres.”57

As opiniões dos estudiosos e estudiosas sobre a identidade da sabedoria mulher são

diferentes e até contraditórias. Uns autores a consideram simples figura ou gênero literário 54 Janneke Bekkenkamp e Fokkelien van Dijk-Hemmes, “O cânon do Antigo Testamento e as tradições culturais das mulheres”, em Cântico dos Cânticos a partir de uma leitura de gênero , Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2000, p.92. 55 Martin A. Klopfenstein,“Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Proverbien 1-9?”, em Ein Gott allein? – Jhwh-Verehrung und biblisher Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religiongenschichte, Walter Dietrich e Martin A. Klopfenstein (organizadores), Göttingen: Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p.531-541. 56 Martin A. Klopfenstein, afirma que no símbolo da sabedoria mulher há, inconscientemente, a memória de várias Deusas como Aserá, Ma’at e Isis. Veja Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1-9?”, p.540. 57Martin A. Klopfenstein,“Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1-9?”, p.541.

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já presente na literatura egípcia e próprio para a auto-revelação dos Deuses. Há autores que

descartam a possibilidade de uma hipóstase e há outros que parecem aceitá- la. Alguns

estudiosos e estudiosas ligam a sabedoria personificada à mulher forte e guerreira, que

gerencia sua casa, enquanto outros autores vêem este símbolo como uma definição prática

das relações entre homens e mulheres, no período pós-exílico.

Depois de ouvir todas estas diferentes vozes, podemos concluir que no símbolo da

Sabedoria Mulher em Provérbios 1,20-23; 8-9 pode estar incluída uma tradição oral antiga,

relacionada ao culto das Deusas. Mas, no momento em que se editou o livro dos

Provérbios, esta tradição oral foi confrontada com a situação histórica e religiosa de Israel,

através de um cuidadoso trabalho literário que ainda hoje possibilita manter escondida a

identidade da sabedoria mulher. Esta contradição entre uma evidência literária e uma

identidade oculta me atrai, chama a atenção, pede que me aproxime. Ela parece estar

ancorada na vida real de mulheres sábias (Pr 31,1-9) e fortes (Pr 31,10-31), que tomam

decisões impor tantes para encaminhar seus próprios destinos e a história do seu povo. Esta

é a relação que necessita ser verificada.

1.2 – Fontes e tendências da sabedoria bíblica

Fica latente uma pergunta incisiva sobre o imaginário simbólico presente nos textos

em relação à sabedoria mulher. Termos que se encontram tanto na moldura do livro dos

Provérbios (Pr 1-9 e 31), como no livro de Rute e no Cântico dos Cânticos chamam a

atenção para a possibilidade de haver uma tendência ou tradição comum na origem destes

textos. Um desses elos é a expressão “casa da mãe” bet’em (Rt 1,8; Ct 3,4; 8,2), 58 tão pouco

utilizada na Bíblia Hebraica, em contraposição à expressão mais repetida “casa do pai”

(bet’ab). Em Ct 3,4 e 8,2, escutamos a voz da moça que expressa seu desejo de levar seu

amado à “casa da minha mãe”. Estas expressões chamam a atenção para algo inusitado

58 Em Rt 1,8 a expressão é bet ’imah “casa de sua mãe”, já em Ct 3,4 e 8,2 a expressão é bet ’imi “casa da minha mãe”.

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dentro da cultura patriarcal da época. Indicam uma pista para encontrar uma nova atuação

da mulher na casa e na comunidade do seu tempo, capaz de influenciar na mudança da

linguagem59.

Segundo Alviero Nicacci, “a sabedoria bíblica é um grande movimento religioso

autônomo no âmbito do Antigo Testamento, mas não estranho a ele. Um movimento que

não está fundado na revelação histórica ou história da salvação, mas na experiência do

crente israelita, que vai à procura do sentido das coisas e de como orientar a sua própria

vida”60. Uma das características deste movimento é uma visão unificada do mundo, sem a

necessidade de fazer distinção entre sagrado e profano. Para Luis Alonso Schökel, esta

visão integradora dos diferentes aspectos da vida faz parte da sabedoria dos povos do

Antigo Oriente. “Não existe distinção entre sabedoria religiosa e secular no Antigo

Testamento e nem no Antigo Oriente; não se conhece a dicotomia entre o sagrado e o

profano” 61, comenta este autor.

Também Gerhard von Rad afirma que a sabedoria de Israel tem suas raízes na vida

cotidiana, sobretudo na observação da ordem ou harmonia da natureza. Além disso,

Gerhard von Rad percebe que há uma evolução literária em Pr 1-9: “ninguém pode

imaginar que este caso modelo da tradição sapiencial foi expresso por um cérebro original

ou que foi tomada do Egito. Suas raízes são muito antigas em Israel. A novidade de Pr 1-9

consiste, sobretudo, em que a ordem concebida de maneira ainda essencialmente acrítica na

sabedoria experiencial mais antiga se converte, agora, em objeto de elaboração teológica

penetrante.”62

Neste seu estudo sobre Pr 1-9, Gerhard von Rad faz um comentário sobre os poemas

de Pr 8 e os relaciona com outros textos do Antigo Testamento, observando que “a ordem

captada inicialmente de maneira imprecisa, sem reflexão e sob múltiplas formas vai se

59 Na Bíblia hebraica, encontra-se entre os Escritos a seguinte sequência: Provérbios, Rute e Cântico dos Cânticos, indicando que existe alguma relação entre eles. 60Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.36. 61Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.54. 62Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo Sapiencial, p. 221.

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convertendo cada vez mais em objeto de reflexão”63. Este autor adverte que a sabedoria

imanente na criação foi separada nos poemas didáticos (Jó 28; Pr 8; Eclo 24) das obras da

criação propriamente ditas (ventos, fontes, mar, montanhas, etc.). Esta separação ontológica

dos fenômenos da criação é o mais interessante para Gerhard von Rad, que comenta:

“ficava claro que aquilo que os mestres consideravam uma chamada procedente da criação,

auto-testemunho da sua ordem, não era algo simplesmente idêntico às obras da criação

propriamente ditas”64.

Acabo de citar fielmente o texto de Gehrard von Rad, que chama a atenção para a

novidade ou o salto hermenêutico que acontece em Pr 8, 30-31. No entanto, questiono o

termo “ordem” usado para expressar a harmonia do universo captada pelas antigas tradições

culturais e religiosas como sabedoria. O conceito de ordem é ambíguo e não permite

perceber o novo e inusitado, tanto na percepção sapiencial antiga, como na visão moderna,

que compreende o universo como um vasto oceano de energia em constante transformação.

“O universo é um movimento incessante buscando seu equilíbrio, sempre frágil e exposto a

mutações.”65

Talvez tenha sido este salto hermenêutico, este sentido novo, esta cuidadosa

elaboração poética, presente no poema de Pr 8,22-31, que tenha levado alguns autores à

conclusão de que Pr 1-9 tem sua origem nas escolas de sábios. Esta é a opinião de Leo G.

Perdue, para quem “os materiais teológicos e éticos encontrados em Provérbios 1-9

provavelmente derivam de um ou mais sistemas de escolas no início da primeira metade do

período persa: a(s) escola(s) do templo, grêmios de famílias e/ou academias civis. É mais

do que provável que surgiu uma escola do templo no período persa, educando escribas para

auxiliar aos sacerdotes na interpretação da torah escrita em hebraico para a população cada

vez mais dependente do aramaico (a língua comum do período persa), com o fim de

sistematizar e argumentar os casos da lei, para as regulamentações e disputas civis e

religiosas, para administrar e registrar os numerosos recursos do templo, e para formar uma

63Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.222-223. 64 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.223. 65Conferir Leonordo Boff, O despertar da águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade, Petrópolis: Vozes, 1998, p.66.

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maior causa teológica e política para legitimar as reclamações do poder e da influência das

classes governantes”66.

No entanto, a influência da escola de sábios aparece muito mais claramente em Ben

Sira (Eclo 51,23)67, cuja postura e conteúdo diferem de Pr 1-9. Ainda que algumas

sentenças desta primeira unidade sejam provenientes de escolas de sábios (conferir Pr

6,27s), há autores que identificam esta unidade inicial do livro dos Provérbios (capítulos 1-

9) com as preocupações das famílias, nos seus enfrentamentos diários com situações

desafiadoras e na sua busca de preparar os filhos para enfrentar tais situações.68

Outra questão que não encontra uma interpretação comum entre os estudiosos é a

respeito da influência estrangeira na sabedoria de Israel. Luis Alonso Schökel, em seu livro

Sapienciales I – Proverbios, comenta: “Desde a publicação dos ‘ensinamentos de

Amenemope’, alguns autores acentuaram a dependência da sabedoria israelita da

estrangeira, o que gerou um verdadeiro problema ainda não suficientemente resolvido.”69 A

sabedoria é mais antiga que Israel, afirma Luis Alonso Schökel.70 No entanto, a maioria

dos autores e das autoras que aceitam esta influência estrangeira na sabedoria israelita,

limita-se a encontrar aspectos das culturas egípcia e mesopotâmica na tradição sapiencial de

Israel. Faz séculos que Egito e Mesopotâmia foram considerados o principal berço de

nossas culturas ocidentais e o testificam documentos escritos até 3.000 anos a.C. Mas as

descobertas arqueológicas dos últimos anos confirmam definitivamente que o norte da Síria

foi outro grande centro de cultura, cuja capital foi Ebla71, afirma Luis Alonso Schökel.

Depois de assinalar a influência de Egito, Mesopotâmia e Síria na tradição

sapiencial de Israel, Luis Alonso Schökel busca explicar como se dá a influência de Canaã

sobre Israel: “uma vez chegados em Canaã, os israelitas tiveram que conviver com outras

66 Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, em Wisdom, You Are My Sister, p.89. 67 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.35. 68 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.83-172. 69Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p. 42. 70Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p. 40. 71 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.41.

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etnias que já possuíam uma cultura mais avançada que a própria de uns seminômades”72.

Ao reconhecer a presença de aspectos das antigas tradições de Canaã na sabedoria israelita,

Luis Alonso Schökel formula uma questão: “o pensamento sapiencial ou a sabedoria, pelo

seu caráter internacional, é realmente assimilável pela fé tradicional javista de Israel?”73.

Gerhard von Rad faz uma afirmação contundente sobre a influência egípcia na

sabedoria de Israel, especialmente no cap. 8 de Provérbios. Ele afirma: “está claro que em

Pr 8,22-29 foram tomados modos estilísticos próprios de determinadas proclamações de

deuses egípcios, e que nos v.30s encontra-se a concepção egípcia de uma divindade que

ama entranhadamente a verdade personificada”74. Mais adiante, o mesmo autor desenvolve

esta afirmação, comparando a Sabedoria de Pr 8 com Maat, a Deusa da verdade e do

amor.75

Além de afirmar a influência egípcia, Gerhard von Rad amplia a questão, mostrando

que há também outras influências na sabedoria de Israel e, especificamente, nesta unidade

literária formada pelos cap. 1-9 de Provérbios: “é impossível negar influências, tanto das

idéias e imagens egípcias como da poesia amorosa mundana”76, afirma este autor. Além

desse comentário sobre toda a seção, Gerhard von Rad considera que o texto de Pr 9,1-6,

onde aparece o banquete da sabedoria, “é uma composição dos mestres como imagem de

contraste para defender-se dos usos introduzidos também em Israel pelo culto de Astarte,

deusa do amor”77.

José Severino Croatto esclarece esta confusão entre as Deusas Astarte e Aserá,

comentando que “até à descoberta dos textos de Ugarit, em 1929 e nos anos seguintes, era

comum negar a existência da Deusa Aserá, fora e dentro da Bíblia, enquanto alguns

pesquisadores a identificavam erroneamente com Astarte. Hoje, o panorama mudou

totalmente. Não só Aserá reaparece como uma Deusa principal nos textos ugaríticos, mas é

72 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.44. 73 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.78. 74 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.200. 75 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.225. 76 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.217. 77 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.217.

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identificada claramente na Bíblia, apesar da forte repressão exercida pela religião oficial de

Israel. Além do mais, não faz tanto tempo que a arqueologia nos forneceu material

epigráfico do sul de Israel em que a Deusa Aserá aparece em notável associação com

Javé.”78

José Severino Croatto refere-se aqui às descobertas arqueológicas feitas em Khirbet

el-Qon e Kuntillet ‘Agrud, lugares que estavam situados na parte sul do reino pré-exílico de

Judá. Tais documentos foram escritos em hebraico antigo ou paleo hebraico, em alguma

época, entre a metade do final do nono século e o final do oitavo século a.C.79

Outra grande contribuição neste sentido de encontrar as raízes da sabedoria em

Israel vem de Gregorio del Olmo Lete, um estudioso dos mitos e lendas de Canaã. Ele

afirma que “no continuo cultural que forma a tradição hebraica com a cultura cananéia, em

cujo âmbito esta se desenvolveu, encontram-se numerosos elementos que têm suas raízes

na sociedade siro-palestinense do II milênio”80. Olmo Lete apresenta um exemplo concreto

da presença desses elementos da cultura siro-cananéia no culto oficial judaico: “a grande

perícope que descreve a purificação cultual, levada a cabo pelo rei Josias (2 Rs 23, 4-20.

24) vem a ser o melhor testemunho, próximo aos fatos, do cananeísmo religioso professado

por Israel ao longo da sua história. O texto recorda que se trata de usos estabelecidos no

templo oficial do javismo por seus próprios titulares, os reis de Judá, e que esses usos se

remontam à própria origem da dinastia (Salomão).”81

Gregorio del Olmo Lete acrescenta que estes usos estabelecidos no templo oficial

“afetam em primeiro lugar à redução e polarização do panteão, no qual assume um papel

decisivo a presença de Aserá no templo de Javé, que foi também o templo de Aserá. Ela é a

única divindade expressamente tirada dali e minuciosamente aniquilada, segundo um

78 José Severino Croatto, “A deusa Ashera no antigo Israel – A contribuição epigráfica da arqueologia”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.38, Petrópolis: Vozes, 2001, p.33. 79 Para mais informações sobre este tema, veja Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’”, p.235. 80Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico, em Los Caminos inexhauribles de la palabra , Buenos Aires: LUMEN – ISEDET, 2000, p.115. 81Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico”, p.116.

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procedimento que recorda a mítica e talvez ritual destruição do Deus Mot pela Deusa Anat

(KTU 1.6 II 30-35; IV 11-19).”82

Estas descobertas levantaram uma pergunta a respeito do monoteísmo israelita.

Haroldo Reimer recolhe as pesquisas recentes sobre este tema, concluindo que “o

importante é perceber que todo este processo deve ser entendido de acordo com as

coordenadas de um sincretismo religioso, em que atribuições e funções de determinada

divindade são transferidas a outra no mesmo compasso em que, na base social, isto é, junto

aos sujeitos religiosos, há um processo de amalgamação e inculturação das expressões

religiosas”83.

No desejo de ouvir vozes diferentes sobre este tema, busco ouvir também a opinião

de um judeu, de alguém que não está preocupado com as investigações bíblicas que

fazemos nas academias, mas se mantém fiel às suas tradições e às interpretações místicas

que seu povo faz de Pr 8,22-31. Segundo Adolpho Wasserman, de acordo com as visões

místicas da Cabalá, a sabedoria da torah é representada como modelo ideal da criação.

Todos os universos são descritos como formados segundo seu padrão. Além disso, a

sabedoria era o princípio inerente em todas as primordiais manifestações do criador, no seu

relacionamento providencial com o mundo criado. É isso que significa “o início do seu

caminho” (8,22). Seu caminho é seu modo de se relacionar com seu mundo.”84

Concluindo, podemos identificar a casa ou o clã como a fonte principal da

sabedoria, que surge da experiência, iluminada pela tradição religiosa e a reflexão. Não há

dúvida de que o intercâmbio com outros povos, através das diásporas, do comércio e dos

casamentos foi enriquecendo a sabedoria de Israel, que na sua evolução histórica

desenvolveu dois tipos de sabedoria: a sabedoria popular que vinha do chão da vida das

famílias, a partir da observação e da luta pela sobrevivência; e a sabedoria da corte, durante

a monarquia, que teve sua continuidade nas escolas dos sábios, no pós-exílio. Estes

82 Gregorio del Olmo Lete, “Antecedentes y concomitantes del culto hebreo-bíblico”, p.117. 83 Haroldo Reimer, “Sobre os início s do monoteísmo no Antigo Israel”, em Fragmentos de Cultura, Goiânia: UCG/SCG, (v.13, n.5, set./out.), 2003, p.985. 84 Adolpho Wasserman, O livro dos Provérbios – Tradução e compilação dos comentários, São Paulo: Mayanot, 1998, p.57.

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buscavam um sentido para o desastre que representou o exílio da Babilônia para a vida e a

teologia de Israel. Ao mesmo tempo, as escolas de sábios buscavam elaborar um

conhecimento que pudesse dar assessoria e legitimidade aos governantes. Tanto a sabedoria

da casa, como a palaciana ou oficial, sempre foram influenciadas pela sabedoria dos povos

vizinhos.

Estas afirmações de diferentes autores são importantes para minha pesquisa, porque

ampliam a visão sobre as raízes da sabedoria em Israel, mostrando sua riqueza e

diversidade. Uma complexa diversidade que necessita ser situada em seu contexto

histórico, para que se torne um pouco mais compreensível, a partir da comparação do texto

(Pr 1-9), com as tendências da sua época.

1.3 – A época em que foi elaborado Provérbios 1-9

Neste item, buscarei elementos para analisar a trama religiosa, cultural e social que

se oculta por trás da unidade literária de Provérbios 1-9. Já que o próprio texto, em seu

gênero poético altamente elaborado, não deixa transparecer informações sobre sua época e

seu contexto, será necessário confrontá-lo com outros textos bíblicos e criar um debate

entre diferentes autores e autoras para situar o momento histórico da sua elaboração. Este

trabalho torna-se necessário, porque em Pr 1; 8 e 9 apresenta-se o símbolo da sabedoria

mulher, com vários aspectos que revelam e, ao mesmo tempo ocultam, sentidos importantes

para uma interpretação deste texto.

Segundo Sharon Ringue, “os símbolos evocam significados e referências às amplas

tradições de uma cultura, comunidade histórica ou um corpo religioso particular”85.

85Sharon H. Ringe, Jesús, la liberación y el jubileo bíblico – Imagines para la ética y la cristología, San José: Editorial DEI, 1997, p.28.

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Continuando sua reflexão sobre a importância da linguagem simbólica, Sharon Ringue se

detém nas “imagens”, afirmando que elas expressam e, por conseguinte, criam o universo

no qual se desenvolve a ação. As imagens estão enraizadas em um contexto social, cultural

e político particular. Elas não são neutras, acrescenta a autora, mas “interessadas” e

representam uma estrutura de valores e significados que incidem na vida, ao mesmo tempo

em que dela brotam. Em outras palavras, esta é também a opinião de Paul Ricoeur, para

quem “a interpretação encontra sua função aplicando-se à intenção constitutiva da

experiência que se comunicou através da metáfora”86.

Convencida por estes e outros autores sobre a importância e a força da linguagem

simbólica, buscarei encontrar a época em que foram elaborados os poemas sobre a

sabedoria mulher que se encontram no livro dos Provérbios. Através de um confronto entre

as opiniões de vários autores e autoras que já escreveram sobre este tema, tentarei descobrir

as experiências que o símbolo da sabedoria mulher evoca e as funções que desempenha no

seu tempo.

Durante muitos séculos, os estudiosos afirmavam que havia material pré-exílico em

Provérbios 1-9. Gerhard von Rad nos informa que “até a metade do século XIX, ainda se

afirmava a autenticidade salomônica do Livro dos Provérbios”87. No século XX, com a

ajuda do método histórico crítico e da história das formas, conseguiu-se verificar que não

havia uma unidade literária no livro dos Provérbios, mas várias unidades escritas em épocas

e lugares diferentes. No entanto, há ainda muita divergência sobre a datação das diferentes

unidades que formam o livro dos Provérbios. R. Derek Kidner afirma que “até meados do

século 88, aceitava-se que Provérbios continha alguma matéria pré-exílica, porém a madura

concepção da Sabedoria nos Capítulos 1-9 parecia dever demais ao pensamento persa ou

grego para poder ter assumido o seu formato antes do século quinto até o terceiro século

a.C.”89.

86Paul Ricoeur, Tiempo y narración – Configuración del tiempo en el relato histórico, Madri: Cristiandad, 1987, p.26. 87Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial, p.21. 88 O autor, certamente, refere-se ao século XX, pois a primeira edição desta obra foi em 1964, em Londres. 89 R. Derek Kidner, Provérbios introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1980, p.25.

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Derek Kidner faz um comentário sobre a afirmação de que uma característica que

possibilitaria a datação de uma unidade na literatura sapiencial, seria a sua forma maxal

que, quanto mais curta fosse uma unidade literária, mais antiga deveria ser. Esta

característica ajudou a perceber que os capítulos 10ss do livro dos Provérbios eram

anteriores aos cap.1-9. No entanto, em seus estudos, Derek Kidner mostra certa

perplexidade, afirmando que os estudos sobre a literatura egípcia, babilônica e, sobretudo,

sobre a literatura fenícia de Ugarit (Ras Shamra – século catorze a.C.) mostraram que o

conteúdo de Provérbios (seja qual for a data de sua redação final) pertence mais ao mundo

do Israel primitivo do que ao judaísmo pós-exílico. Para este autor, “os capítulos 8-9, até

agora considerados como a parte mais recente do livro, têm maior proximidade do pano de

fundo cananita de Israel, recuando-se, talvez, até à data de Salomão”90, deixando aberta a

pergunta se os capítulos 1-9 teriam ou não uma história de desenvolvimento interno.

Para Teodorico Ballarini, os capítulos 1-9 de Provérbios seriam de uma data recente

pós-exílica, anterior ao Eclesiástico (Ben Sira 180 a.C.).91 Esta é também a opinião de

Claudia V. Camp, que argumenta ter sido “o livro de Ben Sira construído sobre os estudos

da lei, dos profetas e dos outros escritos, entre os quais estaria o livro dos Provérbios. As

reminiscências que faz Ben Sira do livro dos Provérbios – especialmente seu

desenvolvimento da figura da sabedoria personificada no capítulo 24 – sugerem que

Provérbios teve então um tempo anterior ao trabalho de Ben Sira suficiente para ganhar

reputação e autoridade.”92 E acrescenta: “o desenvolvimento que faz Ben Sira da identidade

da Sabedoria como Tora - desconhecido pelo editor de Provérbios – indica que houve um

espaço de tempo entre estes dois escritos.”93

Segundo Norman Gottwald, somente com consciência de método, enquanto

aplicado realmente ao texto, teremos condições de ver concretamente por que os intérpretes

bíblicos têm discordado em suas conclusões. O método histórico crítico procura estabelecer

90 R. Derek Kidner, Proverbios – Introducción y comentario, Buenos Aires: Ediciones Certeza, 1990, p.30. 91Teodorico Ballarini, Os livros poéticos – Salmos, Jó, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Eclesiáticos, Sabebdoria, Petrópolis: Vozes, 1985, p.193 (Introdução à Bíblia). 92 Claudia V. Camp, Wisdom and famine in the book of Proverbs, Sheffield: Sheffield Press, 1985, 352 p. (Bible and literature series 11). 93 Claudia V. Camp, Wisdom and famine in the book of Proverbs, p.234.

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as origens verdadeiras do texto e avaliar as probabilidades através de uma pesquisa dentro

do próprio texto e da comparação com outros documentos do mesmo período ou do mesmo

tipo.94 Esta é também a opinião de Gerhard von Rad, ao afirmar que não é possível

esclarecer o conteúdo e as tendências ideológicas dos poemas didáticos de Provérbios sem

re-situá- los dentro do horizonte das imagens do seu tempo.95

A maioria dos autores situa nosso texto no final do período persa. Segundo Luis

Alonso Schökel, Pr 1-9 e 31,10-31 são as partes mais recentes de Provérbios e foram

compostas pelo próprio editor do livro. Para esse autor, isto é mais claro em relação a Pr 1-

9, sendo que o poema final (31,10-31) poderia ser uma criação própria ou uma adaptação

do editor. Na opinião de Luis Alonso Schökel a data da composição destas últimas seções e

da edição do livro dos Provérbios seria anterior ao livro de Ben Sira (180 a.C.), pois,

segundo parecer geral dos estudiosos, Ben Sira tinha em mãos o livro dos Provérbios e a ele

se referiu (Eclo 47,17).96 Isto significa que a elaboração de Pr 1-9 e a edição final do livro,

segundo este autor, seriam anteriores a 332 a.C. Esta opinião coincide com a de Martin A.

Klopfenstein, pois este afirma que a maioria dos comentários aponta a época pós-exílica

para a redação de Pr 1-9 “sem descer até à época helenística”97. No entanto, há opiniões

diferentes: por exemplo, Karen Armstrong indica o século III a.C. como data provável para

a elaboração do nosso texto e a edição final do livro dos Provérbios. 98

Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica,

não somente em nível literário, como foi argumentado acima, mas por questões histó ricas,

culturais e sociais. Parece que a situação de enfraquecimento do império persa pelas

prolongadas guerras contra os gregos e as diferentes tendências internas ao judaísmo

criaram um espaço que permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente em outros

textos da época e também em Pr 8,22-31.

94 Norman Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica , São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.23. 95 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.21. 96 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.105. 97 Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen weisheit von Pro 1 -9?”, p.531. 98 Confira Karen Armstrong, Uma História de Deus – Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo, p.77.

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De um modo geral, esta é a opinião dos autores que situam a elaboração de Pr 1-9

no final do período persa. Há condições sócio-políticas e religiosas que possibilitam esta

elaboração, como afirma Silvia Schroer: “A queda da monarquia e a destruição do templo

de Jerusalém sacudiram maciçamente a ordem patriarcal estabelecida e, neste sentido, as

mulheres tiveram novas chances, porque os padrões sociais tradicionais de funções sociais

e os sistemas da fé já não tiveram autoridade automática. De repente, a religiosidade de

Israel estava ligada fortemente à família e ao clã, como na época pré-estatal.”99

Segundo Nelson Kilpp, a partir do início do século V, os persas sofreram imensas

perdas em pessoas e material no interminável conflito pela supremacia do comércio no Mar

Mediterrâneo. O alto custo da guerra levou o império persa a aumentar a tributação,

causando rebelião das satrapias mais organizadas. No reinado de Artaxerxes II (404 – 359

a.C.), o império persa enfrentou a revolta da satrapia do Egito, que conseguiu se liberar da

ocupação persa, aproveitando a instabilidade interna do império. Também os Povos do Mar

(fenícios) tiraram proveito desse enfraquecimento do império persa. Anteriormente, eles

haviam sido parceiros da Pérsia na luta contra os gregos, sobretudo nas batalhas navais.

Ofereciam ao império seus conhecimentos sobre as navegações marítimas e, em troca,

receberam território no litoral da Palestina, onde incrementaram o comércio internacional

através dos portos de Ascalon e Jope. A pequena e inexpressiva província de Judá parece

que se beneficiou, a longo prazo, com a proximidade dos fenícios e do seu comércio. No

entanto, a maioria das pessoas ainda trabalhava na agricultura, mesmo quando morava na

cidade. Além da produção agrícola para o mercado interno, Judá deve ter intensificado sua

produção de azeite e vinho, os tradicionais produtos de exportação, aproveitando a atuação

dos fenícios nos portos locais. Não sabemos se os efeitos da reforma de Neemias (Ne 5)

foram duradouros ou se, pelo contrário, o processo de endividamento e escravidão de

pequenos agricultores e o concomitante acúmulo de terras começaram logo após a sua

gestão. Pelo que sabemos, a instituição que mais arrecadava na época, o templo (confira Ne

10,33.36a.38), não investia em propriedades agrícolas. 100

99 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27. 100 Este é um resumo de Nelson Kilpp, Jonas, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.21-22, (Comentário Bíblico do AT).

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É interessante observar que em Pr 1-9 não se fala em templo, nem em sacerdotes, o

que nos leva a pensar em um certo distanciamento entre os autores de Pr 1-9 e o templo de

Jerusalém. Embora os camponeses se congregassem no templo por ocasião das festas,

certamente manteriam nas sinagogas das aldeias e, mesmo nas casas, a sua formação

religiosa mais diretamente ligada às diferentes situações da vida, com seus antigos rituais.

A casa, a família e a comunidade seriam um lugar importante, onde se transmitiriam não

somente normas de bem viver, mas também sagas, lendas e mitos ligados à história do povo

e também às coisas simples que teciam o dia-a-dia das famílias. Se nesta época a maioria

das famílias morava no campo, ou viviam do trabalho agrícola, estariam mais ligadas à

natureza e dependentes da fertilidade do solo e da ocorrência periódica das chuvas para

obter uma boa colheita.

Com a finalidade de obter uma visão mais aproximada sobre a situação concreta do

povo de Judá, nos séculos 4º e 3º a.C., e uma caracterização das tendências internas que

haveria nessa época, adoto um estudo de Nelson Kilpp. Em seu livro sobre Jonas, este autor

apresenta três tendências que coexistiram em Judá, nessa época. Uma primeira tendência

estava centrada no templo de Jerusalém e era formada pelos que voltaram do exílio. Estes

são considerados pela obra do cronista como o verdadeiro povo de Deus e formam uma

comunidade cúltica. Suas características principais são: a) uma celebração correta das festas

e dos ritos sagrados; b) o cumprimento da Lei; c) o combate às influências estrangeiras; d) a

promoção da pureza teológica e racial. Esta tendência conta com o apoio de sacerdotes e do

profeta Malaquias. Uma segunda tendência é profética e encontra-se, sobretudo, na profecia

de Joel, um crítico do templo de Jerusalém e do culto como centro da vida do povo. Joel

critica a expectativa pelo “dia de Javé” e apela à penitência (Jl 2). Esta tendência considera

que somente depois da destruição das nações vizinhas, Israel (Jl 3,4) conhecerá a paz e a

felicidade. A terceira tendência é representada pelos livros de Rute e de Jonas.101 Um dos

objetivos dessa tendência é incorporar estrangeiros/as no povo de Deus, baseando-se em

uma antiga convicção israelita: “em ti serão abençoados todos os clãs da terra” (Gn 12,3).

101 Segundo Nelson Kilpp, Jonas, p.22, outros livros fazem parte desta tendência. Além de Rute e Jonas, existe uma clara conexão com Jó, Cântico dos Cânticos e Isaías, entre outros. Minha hipótese é que Pr 1-9 faça parte desta tendência.

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Esta proposta foi reforçada por alguns círculos proféticos anônimos que conseguiram

exprimir-se, por exemplo, em Is 19,16-24 e em Is 56,1-7.102

Alguns autores, entre eles Hans G. Kippenberg, afirmam que o clã é uma unidade

aberta diferente de linhagem, pois esta “une os membros exclusivamente pela comprovável

descendência genealógica e limita seu acesso aos recursos”103. Sendo assim, uma casa

aberta, pronta a incluir e a partilhar, como aquela construída pela sabedoria mulher (Pr 9,1-

6), seria característica dos pobres e não das classes altas já hierarquizadas da Judéia. O

convite proclamado sobre os montes da cidade, pelas criadas da sabedoria mulher, seria

uma proposta de inclusão, elaborada a partir deste símbolo.

Concluindo, vimos que há poucas vozes contrárias à opinião de que Provérbios 1-9

seja um texto relativamente recente, provavelmente elaborado no final do período persa e,

certamente, anterior a Ben Sira. Uma caracterização das tendências que havia dentro do

povo de Judá, nesta época, não significa que já estou me definindo por alguma delas. Estas

caracterizações ajudam a ver o contexto e visibiliza a situação do povo de Judá, no período

pós-exílico. Mas uma definição pessoal sobre a tendência que deu origem a Pr 1-9 somente

será possível depois de uma análise formal do texto.

1.4 – O livro dos Provérbios

A tradição atribuiu o conjunto das coleções que formam o livro dos Provérbios ao

rei Salomão, que segundo 1Rs 5,12 “pronunciou três mil sentenças”. Esta tradição

valorizava em alto grau a sabedoria de Salomão, considerando-a “maior que a de todos os

sábios do Oriente e maior que toda a sabedoria do Egito” (1Rs 5,10). A referência a

102 Nelson Kilpp, Jonas, p.23. 103 Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, São Paulo: Edições Paulinas, 1988, p.63.

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Salomão encontra-se na introdução das duas principais coleções do livro (Pr 10,1 e 25,1). O

mesmo fez o editor final, indicando que toda a obra seria de autoria de Salomão (Pr 1,1).

No entanto, depois da publicação de um papiro de número 10474 do Museu Britânico, em

1923, foi possível reconhecer a relação de Pr 22,17-24,22 com “As máximas de

Amenemope”104. Um dos aspectos que apontou imediatamente para a semelhança foi a

menção aos “trinta capítulos”, que se encontra no texto hebraico (Pr 22,20). Uma referência

mal compreendida na história da interpretação do livro de Provérbios e que, atualmente, é

vista como procedente das Máximas de Amenemope, onde se encontra a expressão:

“considera estes trinta capítulos: eles alegram, eles instruem” 105.

Luis Alonso Schökel e Gerhard von Rad106 apontam para a diversidade de

procedência e de estilos destes materiais colecionados no livro dos Provérbios. Outros

autores107 comentam que o livro dos Provérbios possui uma ampla cronologia. Os nomes de

Agur e Lemuel chamam a atenção para a presença da cultura árabe dentro do livro, mesmo

que os sábios indicados com estes nomes não tenham sido personagens reais. Como já

vimos anteriormente, encontra-se nas diferentes coleções a presença da cultura egípcia108 e

o imaginário religioso e social dos povos de Canaã. Como afirma Luis Alonso Schökel, “o

trabalho anônimo dos sábios de Israel, como o de quase todos os autores da antiguidade

semita, foi criador, transformador e compilador”109 dos textos sapienciais. Uma afirmação

que aponta para a diversidade das experiências e dos contextos que geraram a sabedoria dos

Provérbios.

O objeto da minha pesquisa limita-se aos capítulos 1-9 e 31 do livro dos Provérbios,

no entanto, considero importante situar literariamente estas duas seções dentro do conjunto

do livro. Na minha dissertação de mestrado, apresentei uma divisão do livro dos Provérbios

104 Veja Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.49. 105 Veja Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2000, (9ª edição revista), p.1149. 106 Conferir Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.132 e Gerhard Von Rad, La sabiduría en Israel - Los sapienciales, lo sapiencial, p.23, e também Sabedoria e poesia do povo de Deus, São Paulo: Loyola, publicações Conferência dos Religiosos do Brasil, 1993, 269p. (Tua Palavra é Vida nº 4). 107 Robert Alter e Frank Kermode, Guia literário da Bíblia, São Paulo: UNESP, p.288-289. 108 Isto não significa que apenas neste texto esteja presente a cultura egípcia. 109 Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.51.

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com nove seções110, anotando outras formas de desenhar a estrutura do livro e justificando

minha postura. 111 A continuidade na pesquisa literária leva-me a encontrar ligações

semânticas e de conteúdo entre as duas últimas seções do livro dos Provérbios (Pr 31,1-9 e

31,10-31), formando desta maneira uma única unidade literária.112 Portanto, encontro, hoje,

oito seções no livro.

Depois de um título alongado (1,1-7), inicia-se a primeira seção (1,8-9,18), onde

aparece por primeira vez a metáfora ou símbolo da sabedoria mulher na Bíblia Hebraica. A

segunda seção (10,1-22,16) é formada de provérbios breves, com gêneros e conteúdos

muito variados. A terceira seção (22,17-24,22) talvez seja a mais antiga, pois tem grande

semelhança com as ‘máximas de Amenemope’ 113, escritas no Egito entre os séculos 13 e

12 a.C.114 A quarta seção (24,23-34) tem muita semelhança com a anterior, distingüindo-se

quase unicamente pelo título. Também existem muitas semelhanças entre a quinta coleção

(25-29) e a segunda (10,1-22,16). A sexta seção (30,1-14) é a mais heterogênea e deve ter

sido composta de vários apêndices. 115 A sétima (30,15-33) se distingue das outras coleções

pelos provérbios numéricos, relacionados com a máxima, o enigma e a comparação. A

oitava e última seção é constituída pelos ensinamentos da mulher sábia ao seu filho, o rei de

Lemuel, e pelo poema da mulher forte e sábia (31,1-31). A primeira seção (1-9) e a última

(31,1-31) formam um inclusio ou moldura para todo o livro dos Provérbios.116

Constato também que há uma diferença entre a maneira como o texto massorético e

a versão dos LXX organizaram todo este material. Fiz esta descoberta ao perceber que no

110 Mercedes Lopes, A sabedoria e Yahweh – Um estudo em Provérbios 8, Dissertação de Mestrado, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2004, p.35. Recentemente, Mercedes García Bachmann apresentou a mesma divisão do livro em nove seções. Veja Mercedes García Bachmann, “Livro dos Provérbios”, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana/RIBLA, vol.52, Escritos, Petrópolis: Vozes, 2005, p.68 [452]. A mesma divisão encontra-se na Bíblia de Jerusalém, p.1117-1164. 111 Luis Alonso Schökel, em seu livro Provérbios y Eclesiástico, Los libros sagrados, p.23, encontra sete coleções ou seções no livro dos Provérbios. Para obter esta divisão, ele reúne a sexta coleção: “As palavras de Agur” (30,1-14) com a sétima: “Provérbios Numéricos” (30,15-33). Também reúne as duas últimas coleções: “Palavras de Lemuel” (31,1-9) com o poema alfabético da “Mulher de poder” (31,10-31). 112 Apresentarei as justificativas para esta afirmação no capítulo 4 desta tese. 113 Veja Diccionario de la Biblia, Serafín de Ausejo (editor), Barcelona: Herder, 1964, p.1596. 114 Conferir Alviero Niccacci, A casa da sabedoria, p.50s. 115 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, Lo sapiencial , p.102. 116 No cap. 4 desta tese, apresentarei os argumentos que me permitem fazer esta afirmação de que Pr 1-9 e 31 formam uma moldura para o livro dos Provérbios.

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TM, o capítulo 31 tem 31 versos, enquanto que na versão dos LXX o mesmo capítulo tem

22 versos. Esta descoberta levou-me a perceber a forma distinta com que ambas as versões

organizam as seções do livro dos Provérbios. Se olharmos a partir do texto massorético117,

veremos que na versão dos LXX118 o material de Provérbios está organizado da seguinte

maneira: a primeira seção (1-9), a segunda (10,1-22,16) e a terceira (22,17-24,22) seguem a

mesma ordem do texto massorético. Na LXX, a quarta seção corresponde ao cap.30,1-14

do TM e a quinta ao cap. 24,23-34 do TM. Já a sexta da LXX contém o material que se

encontra no cap.30,15-33 do TM e a sétima ao cap. 31,1-9 do TM; na oitava seção da LXX

encontram-se os cap. 25-29 e a nona seção da LXX é formada pelo poema da mulher forte

(31,10-31 do TM). Isto significa que até o capítulo 23, a Septuaginta possui a mesma

ordem do texto massorético, introduzindo depois de 24,22 o cap.30,1-14. Segue com o

capítulo 24,23-34 e introduz o cap. 30,15-33, seguido por 31,1-9. Só então apresenta a

seção 25-29 e encerra com 31,10-31.

Ao fazer um comentário sobre a forma diferente com que a versão dos LXX

organiza o material do livro dos Provérbios, Luis Alonso Schökel se pergunta: “Qual seria a

ordem original destas seções? Não sabemos e nunca chegaremos a sabê-lo”, comenta este

autor.119 Buscar as causas da diferente organização do livro dos Provérbios pelo TM e pela

Septuaginta não é o objeto da minha pesquisa. Apenas constato que existe esta diferença

para exemplificar um aspecto da problemática história de interpretação destes materiais que

formam o livro dos Provérbios.

Mas, a maneira de organizar o livro pelas duas versões (o texto massorético e a

Septuaginta) não é a única dificuldade que o texto apresenta. No interior do livro há muitas

repetições e uma grande variedade de gêneros literários: máximas ou ditados populares,

discursos e também poemas didáticos muito elaborados, sobretudo na primeira seção (1-9).

De um modo geral, falta uma unidade conceitual no livro dos Provérbios não somente pela

117 Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1987, 1574p. 118 Biblia Septuaginta id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, editada por Alfred Ralhlfs, New York: American Bible Society, 1950, vol. 2, 1184p. Para uma comparação entre TM e a versão dos LXX veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic proverbs? - Concerning the Hellenistic coloring of LXX Proverbs, Leiden: Brill, 1997, 391p. (Supplements to Vetus Testamentum). 119 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.105.

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grande liberdade do verso hebraico, mas pela amplitude dos assuntos tratados no gênero

maxal.

A primeira seção do livro dos Provérbios (1-9), junto com a última (31,1-31), ao

mesmo tempo em que formam a moldura do livro e lhe dão um novo enfoque, mostram o

longo processo da sua redação. Enquanto no interior do livro temos materiais muito

antigos, já que as máximas de Amenemope (Pr 22,17-24) datam do século 13 ou 12 a.C. e a

coleção reunida pelos funcionários de Ezequias (25-29) data, provavelmente, do ano 700

a.C. A redação final do livro situa-se no final do período persa, conclusão a que se chega

através de uma análise cuidadosa da forma e do conteúdo dos poemas destas duas coleções:

a primeira (1-9) e a última (31,1-31), relacionando-as com as condições sociológicas,

políticas, culturais e religiosas do povo, no pós-exílio.

1.5 – Alguns problemas que apontam o caminho

O objeto da minha pesquisa é o símbolo da sabedoria mulher que se apresenta nos

poemas didáticos de Pr 1,20-23; 8 e 9. Investigarei sobre os sentidos de tão instigante figura

literária, buscando encontrar a mulher da vida real que se reflete no símbolo da sabedoria

mulher. É um exercício que supõe a comparação dos poemas que a ela se referem na seção

1-9, com os poemas da mulher sábia e forte da seção 31. Reconheço que uma grande

dificuldade da pesquisa feminista sobre os poemas da sabedoria mulher de Pr 1-9,

relaciona-se à suspeita de que ela seja uma imagem de domesticação das Deusas fortes do

Antigo Oriente. Tal suspeita se estende aos textos androcêntricos da Bíb lia porque não

dizem toda a verdade sobre esta figura. “Uma suspeita que tem suas razões”, comenta

Silvia Schroer. 120

120 Silvia Schroer. “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.153.

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Estas suspeitas não se limitam, portanto, ao sentido do símbolo da sabedoria mulher,

mas se estendem a outros textos bíblicos. Muitas são as mulheres que criticam o poema

sobre a mulher forte de Pr 31,10-31, por ver neste poema uma expressão da exigência do

modelo patriarcal para a vida das mulheres, no período pós-exílico. Para Mercedes Navarro

Puerto, em Pr 31 aparece o “ideal da esposa dedicada ao trabalho e à economia doméstica,

fechada em sua casa, devota do marido, aos filhos e a toda a família patriarcal, não se

permitindo um momento para o prazer, porque o tempo deve ser ocupado em tarefas úteis e

produtivas”121. A mesma autora continua sua critica afirmando que “segundo Pr 31, o corpo

da mulher vai se associando a valores como o trabalho, o esforço e a dedicação à casa

patriarcal, enquanto o resto das possibilidades corporais das mulheres, que evocam a

sedução, vai ficando do lado da negatividade moral”122.

Mercedes Navarro Puerto faz também uma relação antitética entre a mulher de Pr 31

e a mulher estrangeira de Pr 7, chamando a atenção para o julgamento desvalorizador da

graça como “enganadora” e da formosura como “vã”, opondo-as à mulher que teme o

Senhor que é elevada pelo êxito do seu trabalho e louvada por suas obras.123

Estas observações sobre a mulher forte de Pr 31,10-31 são muito comuns, na

atualidade. Elas demonstram, por um lado, a sensibilidade das mulheres para a questão da

dominação e exploração do sistema patriarcal em relação ao corpo das mulheres. Por outro

lado, demonstram a dificuldade de se fazer uma aproximação ao texto, dentro do seu

contexto histórico e cultural, para descobrir se ele expressa uma realidade de opressão ou

uma novidade em relação à autonomia econômica das mulheres do seu tempo.

Mas, além da indignação que estes textos de Provérbios causam às mulheres

sensibilizadas pelo problema da dominação e exploração dos corpos e do trabalho

feminino, encontramos também comentários de biblistas que expressam uma visão

121 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, em Para comprender el cuerpo de la mujer – Una perspectiva bíblica y ética , Estella: Verbo Divino, 1996, p.167. 122 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, p.167. 123 Mercedes Navarro Puerto, “Cuerpos invisibles, cuerpos necesarios. Cuerpos de mujeres en la Biblia – exégesis y psicología”, p.168.

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44

contaminada por velhos preconceitos em relação às mulheres. Um exemplo desta visão

encontra-se no texto de Ernesto Lussier, que comenta a antítese entre o banquete da

sabedoria mulher (9,1-6) e o banquete da mulher insensata (9,13-18). Segundo esse autor, a

figura da mulher insensata “tem suas raízes no caráter clandestino dos pecados sexuais que

predominam no contexto, ainda que não de forma exclusiva. Ela sugere com falsidade algo

especial e misterioso (9,17). Mais uma vez, volta-se a repetir que seus atrativos são mortais

(v.18)”124. O autor se refere a uma repetição sobre os atrativos da mulher estranha ou

estrangeira no interior da primeira seção do livro dos Provérbios (1-9). É interessante

observar que este autor não se pergunta se este texto seria uma reação do escritor ou da

comunidade contra a conquista de novos espaços de autonomia e de atuação pelas mulheres

do pós-exílio.

Uma investigação mais profunda sobre esta mulher de Pr 9,13-18 teria que ser feita

a partir de perguntas que levem a uma comparação entre os diferentes termos usados para

referir-se à mulher da sombra – a estranha ou estrangeira. Este é o caminho percorrido por

Judith McKinlay. Ela observa que “a contraparte da sabedoria, a mulher mortal que é

apresentada no duplo poema de Provérbios 9, parece ser evitada também em outros poemas

e instruções”125 e se pergunta se esta figura é sempre única e a mesma, já que existem

variações quanto à terminologia utilizada, em Pr 1-9, para refe rir-se à mulher que conduz à

morte.

Embora este tema da mulher insensata não seja diretamente o objeto da minha

pesquisa, ele tem a ver com a mulher da vida real e com o contexto de Pr 1-9. Portanto,

estarei atenta a este tema durante meu estudo e anotarei as observações que considerar

importantes para uma compreensão mais aproximada da situação da mulher que está por

trás destes textos.

Continuando com as dificuldades encontradas na interpretação de Pr 1-9 e as

questões levantadas sobre o símbolo da sabedoria mulher, recolho outra pergunta de Judith

124 Ernesto Lussier, Libros de los Proverbios y del Eclesiástico – Introducción y comentario, p.28. 125 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , Sheffield: Sheffield Academic Press, 1996, p.71, (Journal for the Study of the Old Testament 4).

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45

McKinlay: “O ponto aqui é que a metáfora da Sabedoria encontra seu lugar ao lado de

muitas outras metáforas antropomórficas usadas para falar sobre Deus. A questão de

interesse para este estudo não é tanto por que os escritos bíblicos falam metaforicamente da

sabedoria de Javé em termos humanos, mas por que eles deveriam falar em termos da

mulher, especialmente tendo em conta o fato de que a maioria das imagens bíblicas

antropomórficas para a divindade é masculina ou de orientação masculina. A questão

associada é como a mulher é entendida. Qual foi a associação com a mulher que trouxe tal

construção semântica, na cultura israelita, e que visão representava?”126.

Ao formular uma pergunta já estamos avançando na perspectiva da solução e,

certamente, vão aparecer novas perguntas que levam a avançar sempre mais na busca das

respostas. As críticas e questões formuladas por Silvia Schroer oferecem pistas para uma

investigação séria sobre o sentido da sabedoria mulher em Provérbios. Ela afirma que “é

insuficiente explicar a feminilidade de uma figura tão central com o simples fato de que

hokmah na língua hebraica é feminina e que a língua hebraica tem preferência por

personificações femininas. É insuficiente também desvelar a herança das Deusas que tem a

hokmah, sem responder à pergunta: o que afinal ela significava para as pessoas, em Israel,

ou por que era possível que um símbolo tão semelhante com as Deusas e, símbolo

feminino, pudesse aparecer em proximidade imediata deJavé?”127.

“O significado de mulher na personificação da sabedoria é uma chave importante

para uma compreensão certa. Somente neste caminho vamos encontrar uma explicação

sobre porque somente no tempo do pós-exílio a herança das Deusas do Antigo Oriente

tiveram uma recepção sem polêmica, enquanto essas Deusas, em grande parte, na literatura

bíblica foram demonizadas e substituídas até o exílio.”128

Ao iniciar este item, defini claramente o objeto da minha pesquisa e a decisão de

buscar a situação concreta das mulheres que se reflete no símbolo da sabedoria mulher de

126 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.42. 127 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.154 128 Silvia Schroer. “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.155.

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Pr 1-9. A observação de alguns enfoques, contaminados por visões prefixadas sobre a

realidade que se oculta por trás deste texto, contribuiu para que me colocasse de sobreaviso

em relação às ciladas que podem impedir minha aproximação do contexto de Pr 1-9 e 31.

Da mesma maneira, as perguntas formuladas por algumas autoras despertam meu sentido

crítico e desafiam-me a fazer outras perguntas que possam conduzir-me a uma análise mais

profunda a respeito do símbolo da sabedoria mulher no livro dos Provérbios. Esta busca

não pode ser realizada sem uma indagação séria sobre a situação da mulher neste período e

os significados que a mulher apresenta nestes textos. Além disso, ao examinar as ligações

existentes entre as imagens das mulheres e as imagens de Deus em textos de Provérbios,

estarei desvelando aspectos importantes do imaginário simbólico do período persa e

possibilitando uma visão mais ampla da religião, em Judá, naquela época.

Conclusão

Ao iniciar este capítulo, retomei o objeto, a opção metodológica e a perspectiva da

minha pesquisa, ainda que de forma resumida. Em seguida, recolhi diferentes opiniões

sobre o símbolo da sabedoria mulher no livro dos Provérbios e em outros textos bíblicos,

citando autores e autoras. Para alguns, este símbolo inspira-se em Maat, Deusa egípcia da

justiça, da verdade e do amor. Para outros, o símbolo da sabedoria mulher lembra Aserá,

uma Deusa que chegou a ser cultuada em Israel como parceira de Javé. Há autores que

interpretam a sabedoria mulher como uma hipóstase, uma terminologia teológica que

significa pessoa, concluindo que ela é o plano mestre que Deus idealizara ao criar o mundo;

a força divina e criativa que origina e continua a permear o cosmos. Outros autores rejeitam

a idéia de hipóstase e interpretam o símbolo da sabedoria mulher como personificação, isto

é, como simples figura literária, embora reconhecendo sua contínua capacidade de atração.

A sabedoria mulher é vista também como símbolos da definição dos limites dentro dos

quais os homens têm que fazer suas escolhas. Esta definição está diretamente relacionada

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ao texto de Pr 9, onde ela é apresentada como uma antítese da mulher insensata.

Finalmente, o símbolo da sabedoria mulher é compreendid o como uma expressão do

fortalecimento da casa, da família e da mulher, no período pós-exílico. A elaboração deste

símbolo foi mediatizada pela linguagem das Deusas que provém de antigas tradições e

práticas religiosas, em Israel. Porém, os editores de Provérbios confrontaram estes poemas,

que apresentam o símbolo da sabedoria mulher, com a situação histórica e religiosa de Judá

e realizaram um cuidadoso trabalho literário que possibilitou sua aceitação e manteve

escondida a identidade deste símbolo.

O debate entre diferentes autores evidenciou que a fonte principal da sabedoria

bíblica é a casa ou o clã. Ela nasce da luta diária pela vida, da observação e reflexão sobre

os acontecimentos, apresentando uma visão unificada do mundo, sem fazer distinção entre

sagrado e profano. No processo de desenvolvimento da sabedoria de Israel, esta foi sendo

enriquecida através do diálogo com outros povos. As diásporas, o comércio e os

casamentos possibilitaram este intercâmbio. Com a monarquia, organiza-se a sabedoria da

corte que, além de oferecer assessoria aos reis, compilou muitos materiais que provinham

da vida das famílias e comunidades. Ao mesmo tempo, busca elaborar conhecimentos

importantes para a formação dos jovens e a organização política e social do povo bíb lico.

Este processo continua depois do exílio, através das escolas de sábios.

É importante ressaltar, aqui, o aspecto de interculturalidade da Bíblia, que se

evidencia através dessa leitura comparativa dos estudos sobre as fontes da sabedoria

bíblica, da qual é uma especial testemunha. A rica e variada tradição sapiencial foi sendo

tecida pelas experiências vividas e transmitidas na casa, nas comunidades, na corte e nas

escolas de sábios. Um processo longo, que gerou uma variedade de materiais e possibilitou

a criação de novos símbolos. É, desta maneira, que no final do período persa surge o

atraente símbolo da sabedoria mulher.

Quanto à época da elaboração das seções de Pr 1-9 e 31 e da edição do livro, o

debate entre autores e autoras apresentou um grande consenso. De um modo geral, há

consenso sobre o final do império persa como a época mais provável para a elaboração da

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primeira (Pr 1-9) e da última (Pr 31) seções do livro. Os argumentos para esta datação são

de cunho literário e histórico social. Um argumento literário está relacionado ao livro de

Ben Sira (190 a.C.). Este autor devia ter em mãos o livro dos Provérbios, pois a ele se

referiu (Eclo 47,17) e também procurou corrigir aspectos que este livro apresentava sobre a

sabedoria mulher (Eclo 24). Portanto, no início do século 2 a.C., o livro dos Provérbios já

deveria ter uma difusão suficiente para poder causar esta reação de Ben Sira. Um

argumento histórico social para a datação da primeira e última seções do livro e sua edição

no final do período persa, relaciona-se à sua situação de enfraquecimento, ocasionada pelas

prolongadas guerras contra os gregos e as sublevações de algumas satrapias. Este

enfraquecimento do império, somado às divisões internas em Judá, possibilitaram uma

nova forma de organização social, onde a mulher passa a ter um papel mais relevante.

Desde a queda da monarquia e a destruição do templo (587 a.C.), houve uma grande

mudança nos padrões sociais e sistemas de fé, em Judá. A casa passa a ser o verdadeiro

espaço de organização e decisão sobre os caminhos para o futuro do povo. Neste espaço, as

mulheres passam a exercer um papel muito importante na re-organização da vida e do

tecido social. Uma cultura subterrânea de mulheres, associada a alguns círculos de profetas

anônimos, passa a produzir materiais inéditos, entre eles, os belos poemas da sabedoria

mulher.

Uma referência constante ao livro dos Provérbios e às diferentes seções que o

compõem, levou-me a fazer uma resumida apresentação deste. No próprio texto de

Provérbios, encontra-se repetida a referência de Salomão como seu autor. No entanto, a

diversidade de procedência e de estilos dos materiais colecionados em Provérbios,

demonstra que houve uma variedade de autores e uma ampla cronologia na elaboração

desta obra. O livro está formado por oito seções provenientes de diferentes lugares e

épocas. Inclui materiais egípcios129 e árabes130, além de símbolos cananitas. Estes materiais

foram organizados de maneira diferente pelo texto massorético e pela Septuaginta,

deixando uma pergunta sobre qual teria sido a forma original da sua organização. O longo

129 Como as “máximas de Amenemope”. 130 As citações de Agur (Pr 30,1) e Lemuel (Pr 31,1) podem indicar esta relação com a cultura árabe, embora estes nomes não se refiram a personagens reais. Há uma dificuldade de compreensão desses nomes na história de interpretação do livro dos Provérbios, sobretudo nas traduções para a Septuaginta e a Vulgata. Veja Bíblia de Jerusalém, p.1160-1163.

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processo de elaboração do livro dos Provérbios demonstra o esforço e a persistência

daqueles que compilaram este material rico e diversificado.

É, justamente, esta diversidade e riqueza de materiais que exige um cuidadoso

trabalho interpretativo. As suspeitas e questões formuladas, sobretudo pelas intérpretes

feministas, abrem perspectivas interessantes para minha pesquisa. Elas indicam que, para

realizar uma séria investigação sobre o símbolo da sabedoria mulher em Provérbios, é

necessário perguntar sobre a associação desse símbolo com a mulher da vida real e observar

qual a visão de mulher que este símbolo está representando. Supõe, ainda, uma indagação

sobre o que este símbolo da sabedoria mulher significava para as pessoas, em Israel. Por

que um símbolo tão semelhante às Deusas obteve aceitação na sua época? Estas perguntas

apontam para o significado de mulher, em Judá, durante o período persa e também sobre a

memória histórica das mulheres que o símbolo da sabedoria mulher evoca.

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Capítulo 2

A sabedoria mulher em Provérbios 1; 8 e 9

Neste capítulo, pretendo investigar sobre o símbolo da sabedoria mulher em

Provérbios 1; 8 e 9 para confrontá- la com a mulher sábia, forte e decidida de Pr 31, em meu

capítulo 3. Estas duas figuras, a dos cap.1; 8; 9 e do cap.31, estão relacionadas, formando

uma inclusão ou moldura para todas as outras seções do livro dos Provérbios.

Para entender melhor os textos citados e encontrar o rosto da sabedoria mulher,

seguirei os passos da exegese. Iniciarei com a tradução do texto massorético (TM) da Biblia

Hebraica Stuttgartensia. Para aproximar-me literariamente do texto, buscarei entender seu

tecido, através de uma análise do seu campo semântico. Este exercício me permitirá

encontrar as delimitações, divisões e a coesão interna dos textos. Deixando-me guiar

também pela emoção e atenção diante da beleza da poesia e das metáforas, analisarei os

gêneros literários de Provérbios 1,20-23; 8 e 9. Tendo presentes os referenciais teóricos de

gênero e de metodologias exegéticas, buscarei desvelar o contexto social e religioso destes

textos.

Na conclusão, buscarei desenhar mais claramente a figura da sabedoria mulher a

partir do sentido novo que surgir da atividade exegética em cada um dos textos analisados.

Além disso, retomarei a análise do contexto histórico, social e religioso de Pr 1-9 para

descobrir a função social e religiosa do símbolo da sabedoria mulher, pois este é um dos

objetivos deste capítulo.

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2.1 – Um estudo de Provérbios 1,20-23

Em Provérbios 1,20-23, encontramos a primeira ocorrência da hokmah como

sabedoria mulher, em Provérbios 1-9. Este primeiro poema tem paralelos relevantes com a

linguagem e a temática dos caps.8 e 9, onde a sabedoria é apresentada como uma figura

feminina que clama nas ruas e lugares públicos, chamando os que necessitam de instrução.

Para investigar sobre o sentido desta figura, no item 2.1.1, farei a tradução de Pr 1,20-23 a

partir do texto massorético. No item 2.1.2, farei a delimitação e divisão do texto e, no item

2.1.3, buscarei encontrar os gêneros literários que foram utilizados na sua elaboração. Estes

passos me possibilitarão obter uma visão mais aproximada da sabedoria mulher apresentada

nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9. Iniciarei com uma exegese do primeiro poema (Pr 1,20-

23).

2.1.1 – Tradução e comentário

20 A sabedoria131 clama 132 na rua, nas praças levanta a voz,

21 em cima133 do barulho134 grita.

À entrada (das) portas, na cidade, anuncia 135:

22 Até quando, ingênuos136, amareis a ingenuidade

131O termo que traduzi no singular “sabedoria” está no plural tAmk.x'. hokmot. No entanto, os verbos que se relacionam com ela estão no singular. Provavelmente, este é um plural de majestade (conferir Paul Jüon, Grammaire de L’Hébreu Biblique, Roma: Pontifício Instituto Bíblico (edição corrigida), 1965, p.88 e 212. hokmot é considerado um plural abstrato de hokmah por M. Sæbø, hk m, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, Madri: Ediciones Cristiandad, vol. 1, 1978, col.776-789. “Este é um plural abstrato e encontra-se também em Pr 1,20; 9,1; 24,7”, confiram em Emil Kautzsch, Gesenius’ Hebrew Gramar, Oxford: Claredon Press, 1910, p.398, nota 2. 132 O verbo hN'roT' taronah está no qal imperfeito, feminino: “ela grita de alegria”. Observo que este verbo hN'ri rinah, neste tempo e modo hN'roT' taronah, encontra -se também em Pr 8,3. 133 A mesma expressão varoB. bero’x encontra-se em Pr 8,2. Aqui, a frase poderia ficar assim: “no ponto de partida (das ruas) barulhentas ela grita”. 134 Este termo tAYmih homiot, nesta forma, aparece somente aqui. 135 Literalmente: “seus dizeres, diz” rmeaot h''yr,m'a; ’mareha t’omer.

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e os zombadores se deleitarão na zombaria,

eles e os néscios odiarão o conhecimento?

23 Voltai-vos à minha instrução;

eis que derramarei sobre vós meu espírito 137

e vos darei a conhecer minhas palavras.138

2.1.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna

Os v.20-23 formam a parte principal do primeiro poema da sabedoria mulher, no

livro dos Provérbios. Esta figura fascinante é apresentada com o termo hokmot, analisado

acima, como plural de majestade, ou plural abstrato.139 Ela é a personagem principal do

poema e se apresenta em lugares públicos muito movimentados para ensinar os caminhos 136 A raiz ytiP, pety aparece duas vezes no v.22. As duas vezes como nome: “ingênuos” e “ingenuidade”.

Traduzi ~yIt'P. petayim por “ingênuos”, embora Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino , São Paulo:

Paulus, p.1414, tenha traduzido por “inexperientes” e João Ferreira de Almeida tenha traduzido ~yIt'P. petayim como “estúpidos” (veja Bíblia Sagrada, versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 3ª impressão, 1991, p.546). Segundo M. Sæbø, há uma

discussão sobre a raiz hebraica ytp pth. Questiona-se se ela deve ser relacionada ao termo aramaico pty, que tem o sentido de “ser amplo”. Caso as duas raízes sejam aceitas, temos que considerar o pth hifil “alargar”, em Gn 9,27. Há, neste texto hebraico, um jogo com as palavras yapet Jafé e yapet “que se dilate”. Este jogo de palavras mostra que pode haver um sentido mais amplo para os destinatários das palavras da sabedoria, já que o substantivo pety é comum em Provérbios e refere-se a pessoa jovem, inexperiente, precipitada, que se deixa influenciar com facilidade, mas, também se aplica a quem necessita aprender e está em condições de fazê -lo. Segundo M. Sæbø, “entre os conceitos sapienciais para ‘néscio’, no AT, este é o mais suave”. Confira M. Sæbø, pth , Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol.2, col.625-627. 137 A expressão “derramarei para vós meu espírito” yxiWr ~k,l' H['yBia ’abi‘ah kalem ruhi encontra-se em textos proféticos, como Is 59,21; Ez 36,27; 37,14; 39,29 entre outros, e especialmente em Jl 3,1-2, onde a mesma expressão está repetida 2 vezes. Chama a atenção que o sujeito deste verbo seja a sabedoria mulher. Ela promete “derramar seu espírito” a quem acolher sua instrução. 138 Segundo G. Gerleman, o substativo rb;D' dabar tem um significado mais amplo que o verbo, pois este designa não somente a “palavra”, isto é, o conceito lingüístico portador de um significado, mas também o seu conteúdo. Veja G. Gerleman, em dabar, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por

Ernst Jenni e Claus Westerma nnn, vol.1, p.614-627. Luis Alonso Schökel indica que rb;D' dabar significa primeiro “palavra” (o ato de falar e o seu conteúdo), passando depois a significar também a ação e o modo de realizá -la. Confira Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Schökel, São Paulo: Paulus, 2ª edição, 1997, p.147-149. Chama a minha atenção que a sabedoria seja sujeito desta promessa de dar a conhecer suas palavras. Embora clame pelas ruas como profeta, ela é radicalmente diferente, pois os profetas dão a conhecer a palavra de Javé (Is 20,2; Jr 2,1.4; Ez 3,16; 7,1 e muitos outros textos), enquanto a sabedoria dá a conhecer sua própria palavra. 139 Veja acima nota nº130 sobre hokmot como plural majestático.

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que levam à vida. Sua voz se faz ouvir em meio dos “barulhos” tAYmiho homiot140 do

burburinho da cidade.

Estes versos fazem parte do discurso da sabedoria mulher, caracterizado pelo seu

vocabulário sapiencial e tom ou estilo profético. 141 O campo semântico está formado por

termos como: “sabedoria” hokmah, “conhecimento” da‘at e “repreensão” tokahat, que se

encontram em oposição a “ingênuos” peta’yim, “zombadores” e “néscios” kesilim, termos

próprios da literatura sapiencial. Ao mesmo tempo, o estilo profético da sabedoria mulher

leva-a a usar uma terminologia que demonstra sua autoridade, como a expressão: “até

quando?” (v.22), para questionar “ingênuos” ~yIat'P. peta’yim , “zombadores” ~yciªle

lezim e “néscios” ~yliªysik. kesilim e conduzi- los ao caminho da vida.

Portanto, uma das faces da sabedoria mulher já transparece no estilo profético deste

poema (1,20-33). Ela resgata a tradição israelita de mulheres profetisas, como Hulda, que

certamente tinha muita autoridade, pois foi consultada pelos oficiais do rei Josias quanto à

autenticidade das palavras do livro da lei, encontrado na reforma do templo de Jerusalém

(2Rs 22). Contudo, Judith E. Mckinlay considera que definir a sabedoria mulher como

profetisa pode restringi- la e confiná- la indevidamente, pois sua exortação é tipicamente

sapiencial142 e Phyllis Trible chama a atenção para a cuidadosa elaboração deste discurso,

com seu jogo de palavras e sua estrutura quiástica. 143

A impressão inicial que temos ao entrar em contacto com este texto é a de que Pr

1,20-33 formaria uma unidade, pois faz parte de um mesmo discurso. No entanto, uma

análise mais detalhada do texto, mostra que há uma distinção entre Pr 1,20-23 e os versos

que seguem (v.24-31). Enquanto nos v.20-23 os verbos estão no imperfeito e se oferece a

possibilidade de conversão a quem acolhe a exortação da sabedoria mulher, nos v.24-31 os

140 Este termo, cuja raiz é hmh hmh , possui uma forma rara neste verso, talvez única no Primeiro Testamento. 141 Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, p.164. 142 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.68-69. 143 Phyllis Trible, “Wisdom Builds a poem – A Architecture of Proverbs 1, 20-23”, em Journal of Biblical Literature, Cambridge: Journal of Biblical Literature, vol. 94, nº4, dezembro de 1975, p.51.

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verbos estão no perfeito, denunciando uma culpa que exige castigo, sem nenhuma

possibilidade de apelação. Já o v.32 retoma as palavras chaves dos v.22-23 e faz o

oferecimento de uma vida tranqüila e sem nenhum temor a quem seguir os conselhos da

sabedoria. Segundo opinião de Roland Murphy144, os v.20-23 e 32-33 formam uma

moldura para os v.24-31. Se acolhermos esta sugestão, podemos encontrar a seguinte

estrutura:

v.20-23 – Exortação da sabedoria mulher aos ingênuos, zombadores e insensatos

v.24-31 – Acusação contra os que recusaram o seu ensinamento

v.32-33 – Exortação aos ingênuos e insensatos, com promessa de vida tranqüila

Com traços que recordam as mulheres profetisas do Primeiro Testamento, a

sabedoria mulher apresenta-se aqui com autoridade divina, falando em presença de todos e

prometendo derramar seu espírito (v.23), dar segurança e paz interior a quem aceitar seus

ensinamentos (v.32). Parece que os redatores finais deste texto se chocaram com a força

desta figura da sabedoria mulher e a colocaram dentro de um encaixe javístico, formado por

uma expressão muito comum na literatura sapiencial e profética: “porque odiaram o

conhecimento e não escolheram o temor de Javé” (v.29). Esta mesma expressão encontra-se

no final do título geral da obra (1,7) e aparece repetida em 9,10, como um fechamento da

unidade.145 Com este encaixe, temos uma nova estrutura para nosso texto, limitando-o

dentro dos conceitos javísticos:

v.7 – A importância do temor de Javé

v.8-19 – Ensinamentos dos pais

v.20-28 – Poema da sabedoria mulher

v.29 – A importância do temor de Javé

Desta maneira, a figura da sabedoria mulher encontra-se encaixada dentro da

teologia javística de fidelidade à aliança. Um tema importante para a tradição

144 “Wisdom’s Song – Proverbs 1,20-33”, em The Catholic Biblical Quarterly, Washington: The Catholic Biblical Quarterly, vol. 48, 1986, p.456-460, (Monograph Series). 145 Voltarei a este final da 1ª seção do livro dos Provérbios, quando analisar o cap. 9.

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deuteronomista (Dt 6,2-5;10,12-15) e que se encontra também na literatura sapiencial (Jó

28,28; Sl 111,10). Este talvez seja um exemplo do limitado contexto da redação tardia.

2.1.3 – Gêneros literários

A poesia de Pr 1,20-33 é formada especialmente por comparações e repetições. É

próprio da poesia hebraica aproximar frases ou pensamentos, estabelecendo uma tensão

entre os dois pólos, a fim de gerar um novo sentido. Nos v.20-21, encontramos quatro

frases completas e repetidas que caracterizam a figura que está sendo apresentada pela

primeira vez aos leitores e às leitoras:

A sabedoria clama na rua,

nas praças levanta a voz,

em cima do barulho grita.

à entrada (das) portas, na cidade, anuncia. (1,20-21)

Entre estas quatro frases não há antítese. A tensão se dá pelo acúmulo de ve rbos que

indicam a ação de comunicar com força uma mensagem: a sabedoria mulher “clama”,

“levanta a voz”, “grita”, “anuncia”. Há, também, um acúmulo de lugares, para indicar que

ela se comunica com autoridade em lugares públicos e movimentados.

Para transmitir a descoberta que fez sobre a força e o poder da mulher sábia, o autor

usou não somente a linguagem poética, mas buscou o recurso da metáfora ou do símbolo da

sabedoria mulher como uma ótica. A metáfora é como um convite ao leitor ou à leitora para

olhar a partir de um determinado ponto de vista e ver o que o autor descobriu. Reunindo

aspectos da vida concreta das mulheres e de símbolos do imaginário religioso do povo de

Israel, criou-se a instigante metáfora da sabedoria mulher. Segundo Marc Girard, “na

metáfora, um ou alguns aspectos fundamentam um nexo parcial entre duas realidades”146.

A linguagem simbólica é apropriada para transmitir mensagem religiosa.

146 Marc Girard, Os símbolos na Bíblia, São Paulo: Paulus, 1997, p.51.

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Segundo Michel Meslin, o universo simbólico pode ser compreendido em dois

níveis distintos: um primeiro nível seria o das “imagens fundamentais, nível mais profundo

e menos elaborado do que a linguagem falada ou escrita, e que poderíamos chamar o nível

dos símbolos figurativos e cósmicos”. Um segundo nível seria o “dos símbolos que se

ligam estreitamente a um contexto cultural e religioso em particular”147. São estas

estruturas simbólicas que oferecem as imagens que permitem a descrição da experiência

religiosa e sua interpretação, seja pela pessoa que a viveu ou pela comunidade que recebe a

comunicação.

Na estrutura poética de Pr 1,20-33, emergem certos hábitos retóricos da literatura

sapiencial. O dinamismo antagônico das comparações permite acolher as grandes

manifestações psico-sociais da imaginação simbólica e sua variação no tempo. O

desenvolvimento das artes, a evolução das religiões, dos sistemas de conhecimentos e dos

valores manifestam-se e sucedem-se de maneira integrada no curso da evolução das

civilizações humanas.148 Em nosso caso, podemos perceber a evolução desta metáfora da

sabedoria mulher. Ela parte das experiências cotidianas das mulheres e das famílias, na sua

busca de encontrar caminhos de superação para os problemas da vida. Recolhe tradições

antigas sobre mulheres profetisas e sobre cultos das casas, produzindo uma linguagem que

possibilita o diálogo com as diferenças, no contexto diferenciado e crítico do pós-exílio.149

No v.22, encontramos o mesmo acúmulo de sentido para indicar os interlocutores da

sabedoria mulher:

Até quando, ingênuos, amareis a ingenuidade

e os zombadores se deleitarão na zombaria,

eles e os néscios odiarão o conhecimento? (1,22)

147 Michel Meslin, A experiência humana do divino – Fundamentos de uma antropologia religiosa , Petrópolis: Vozes, 1992, p.169. 148 Gilber Durand, La imaginación simbólica, Buenos Aires: Amorrortu, 1971, p.97. 149 No item seguinte, desenvolverei um estudo sobre este contexto.

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Termos muito comuns na literatura sapiencial estão repetidos aqui, como nomes:

“ingênuos”/“ingenuidade”, “zombadores”/“zombaria” e “néscios” estão em oposição a

“conhecimento”, formando uma pergunta retórica.

No v.23, encontramos uma exortação em forma condicional. Se os destinatários

aceitarem a admoestação da sabedoria mulher e mudarem de rumo, receberão os dons

oferecidos por ela: seu espírito e o conhecimento de suas palavras.

Voltai-vos à minha instrução;

eis que derramarei sobre vós meu espírito

e vos darei a conhecer minhas palavras. (1,23)

É interessante perceber aqui o termo “voltai-vos” WbWvT' taxubu. É um

imperativo, indicando uma ordem para mudar de direção ou de visão, de ótica. Voltar-se a

quem lhes transmite a mensagem, isto é, à figura que está sendo apresentada neste texto: a

sabedoria mulher. Este é o convite fundamental. Se os interlocutores da sabedoria o

aceitarem, obterão as promessas.

Resumindo, através da poesia, com suas repetições e comparações, o autor consegue

criar um sentido novo para o termo sabedoria. Este novo sentido inspira-se tanto na vida

concreta das mulheres de Judá, como no imaginário religioso do povo de Israel. O símbolo

da sabedoria mulher nasce desta junção entre realidade e experiências religiosas antigas,

mantidas na memória do povo. Através da repetição, a poesia permite ainda que descobrir

que os interlocutores da mulher sabedoria são os ingênuos e zombadores. Estes são

convidados ao encontro com ela para adquir sabedoria.

2.1.4 – Uma visão da sabedoria mulher

Em Provérbios 1,20-23, a sabedoria mulher é introduzida através de um plural de

majestade que desperta a atenção dos leitores e gera uma pergunta sobre sua identidade. Ela

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coloca-se no meio do barulho, em lugares públicos muito movimentados, para ensinar os

caminhos que conduzem à vida. Ela clama na rua, levanta a voz nas praças, anuncia em

meio ao burburinho da cidade. Articulado em primeira pessoa, seu discurso apresenta um

vocabulário comumente usado na literatura sapiencial, porém o estilo do seu discurso e os

lugares onde ela o proclama lembram os profetas e as profetisas de Israel. Seus

interlocutores são especialmente os ingênuos, os zombadores e os néscios. Mas, se ela fala

publicamente, sua palavra é dirigida a todas as pessoas que acolherem sua instrução. Esta é,

portanto, uma mensagem aberta.

Um aspecto importante desta primeira apresentação da sabedoria mulher no livro

dos Provérbios é a autoridade com que ela questiona seus ouvintes. Ela pergunta,

diretamente: “até quando, ingênuos, amareis a ingenuidade e os zombadores se deleitarão

na zombaria?” (v.22). Propõe aos seus ouvintes que se convertam e se voltem para ela:

“voltai-vos à minha instrução; eis que derramarei sobre vós meu espírito e vos darei a

conhecer minhas palavras” (v.23). Portanto, uma das faces da sabedoria mulher neste texto

tem os traços característicos de profetisa, pois os quatro verbos usados para apresentá-la

estão relacionados à atividade profética: “clama” na rua, “levanta a voz” nas praças, “grita”

no meio do barulho e “anuncia” nas portas da cidade (v.20-21). Ao apresentá- la com traços

de profetisa, Provérbios 1,20-23 faz memória das mulheres profetisas do Primeiro

Testamento, como Hulda, por exemplo. Judith McKinlay observa que Hulda era

obviamente uma mulher de autoridade, uma vez que os oficiais do rei foram consultá-la

sobre um assunto importante. Mas, “tudo o que ficou gravado dela é um discurso profético

em 2Rs 22”150. Podemos pensar, ainda, em uma profetisa mais recente, como Noadias, que

se opunha ao projeto de reconstrução de Neemias (Ne 6,14). Então, partindo da história

bem concreta de mulheres profetisas, elabora-se uma metáfora com um significado mais

amplo e complexo.

Para descobrir este novo significado, temos que perguntar-nos se profetas derramam

seu próprio espírito ou se é Javé quem tem o espírito para derramá- lo sobre quem escolhe e

envia? Outra maneira de formular esta pergunta é: se a sabedoria promete derramar seu

150 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.68.

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espírito, não estará, aqui, representando o próprio Javé? Em Is 32,15 há uma expectativa de

que seja derramado “o espírito que vem do alto”. Esta é uma expectativa confirmada pela

profecia de Joel (3,1-5). É o espírito de Javé que encheu Otoniel de força para libertar seu

povo (Jz 3,10). Consciente de que possui o espírito de Javé, Isaías assume a missão de

anunciar a boa nova aos pobres (Is 61,1-2). Portanto, o texto de Pr 1,20-23 apresenta

aspectos importantes para a identificação desta figura da sabedoria mulher. Ela é profetisa

ou fala publicamente como profetisa, questionando e indicando os caminhos que conduzem

à vida. Ao mesmo tempo, sabedoria mulher representa o próprio Javé, pois tem o espírito e

promete derramá-lo a quem se voltar a ela e escutar sua instrução. Ela promete, ainda,

“comunicar sua palavra” (v.23c) a quem se voltar à sua instrução (v.23a).

Portanto, as promessas da sabedoria mulher a colocam em dois postos ou lugares

diferentes: (1) como profetisa, caminhando em meio ao povo e anuncia ndo um

conhecimento importante para bem viver. (2) como Deus, derramando seu espírito e

comunicando sua palavra criadora. Ao mesmo tempo, estes dois traços do rosto da

sabedoria mulher em Pr 1,20-23 estão enraizados na vida concreta e bem humana das

mulheres de Israel, pois todo símbolo nasce de realidades ou experiências bem humanas,

para depois adquirir sentidos mais amplos e transcendentes.

Embora encaixada dentro da teologia javista de fidelidade à aliança com Javé, a

sabedoria mulher tem uma grande força simbólica de atração e busca de conhecimento. No

cap.8 do livro dos Provérbios este símbolo é retomado com uma enorme riqueza de

comparações e importantes repetições, que ajudam a contemplar os múltiplos traços do seu

rosto.

2.2 – Um estudo de Provérbios 8

Seguirei os mesmos passos exegéticos realizados para analisar Pr 1,20-23. No item

2.2.1 farei a tradução do texto massorético, ressaltando alguns problemas encontrados e as

opções feitas. Em 2.2.2, buscarei apresentar uma delimitação de Pr 8 e em 2.2.3, a sua

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estrutura. Em 2.2.4, examinarei os termos que formam o campo semântico do nosso texto e

em 2.2.5 identificarei os gêneros literários usados na sua composição. No item 2.2.6,

retomarei os traços principais que desenham o rosto da sabedoria mulher em Pr 8.

2.2.1 – Tradução e comentário

1 Não chama151 a sabedoria

e o entendimento dá sua voz?

2 na cabeça das alturas,

junto ao caminho,

na casa das sendas152 se coloca

3 em direção ao batente153 das portas,

em direção à boca da cidade, ela grita154

4 A vós, homens, grito

e minha voz para filhos de Adão 155.

151 O verbo arq qr’ no qal imperfeito, foi traduzido como “clama”, por João Ferreira de Almeida, tendo também os significados de “chamar”, “convocar”, “berrar”, “proclamar”, etc. Como a frase inicia um convite, prefiro traduzir por “chamar”, porque este verbo já denota um desejo de relação. Os outros sentidos

expressam a ação de comunicar algo, porém de forma impessoal. A raíz arq é muito importante. Ela inicia toda a perícope que estou analisando, fazendo irromper com força o movimento da sabedoria em direção aos seres humanos. 152 Esta palavra tem a ver com o campo semântico desta perícope, aparecendo duas vezes no v. 20. Aqui, no

v.2, a palavra “sendas” vem relacionada à casa: “casa das sendas” tAbytin. tyBe bet netibot no estado construto, indicando que as duas palavras são inseparáveis. A Sabedoria se coloca na “casa das sendas”. É a partir daí que ela se dirige aos seus interlocutores. Voltarei sobre este tema ao trabalhar o campo semântico do

texto. Outro termo que significa “sendas” é xr;ao ’orah, que está no v.20 e tem o sentido de “sendas”, “caminho”, “vereda”. Segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, São Leopoldo/ Petrópolis: Sinodal e Vozes, 1998, p.18, inclusive pode designar “menstruação” e também pode ser usada para indicar o comportamento das mulheres ou sua maneira de ser. 153 Mantenho o sentido literal da expressão: “em direção à mão das portas” ~yrI['v.-dy:l. le-yad xe‘arim. Este termo pode representar o batente ou marco das portas das casas, mas pode também indicar a porta da cidade, lugar onde se reúnem os anciãos: as autoridades que têm poder de julgar. Na exegese, pretendo relacionar este termo com outros, dentro desta mesma perícope, para encontrar os seus destinatários. 154 A forma verbal hN"roT' taronah está no qal imperfeito, feminino: “ela grita de alegria” . Aparece aqui um sentimento ou ambiente de alegria muito importante para a apresentação deste símbolo. 155 Embora em alguns vocativos o texto determine com muita clareza quais são os interlocutores da sabedoria mulher, aqui se ampliam os destinatários da sua fala, mostrando que ela se dirige à humanidade: “e minha voz

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5 Entendei, ignorantes156, sagacidade.

e estúpidos157, entendei de coração.

6 Escutai, porque coisas importantes158 falarei

e abertura de meus lábios (mostra) retidão.

7 Porque uma verdade rugirá meu paladar

e abominação nos meus lábios é injustiça159.

8 Na justiça todos os dizeres da minha boca

nada neles torcido ou pervertido.

9 Todos eles justos 160 para quem entende

e acertados para quem encontrou conhecimento.

10 Recebei minha correção161 e não o dinheiro

e conhecimento mais que ouro162 escolhido.

para filhos de Adão” ~d'a' yneB.-la, yliªAqw> veqoli ’el-bene ’adam um termo que tem um sentido mais genérico. 156 ~yIat'p. peta’yim é um substantivo, plural, masculino, que indica jovem, ingênuo, inexperiente. O verbo

que corresponde à raiz htp pth pode indicar tanto “deixar-se seduzir”, no nifal, como “enganar”, “seduzir”, no particípio. Dentro do campo semântico da perícope, este substantivo não deveria ser traduzido por “ingênuos”, aqueles que se deixam seduzir ou enganar, pois daria a impressão de que os interlocutores da sabedoria seriam apenas jovens inexperientes. Como a sabedoria mulher dirige-se a todas as pessoas, prefiro traduzir por “ ignorantes”, ampliando o seu público. 157 Derivada de lsk ksl esta é uma palavra muito comum na literatura sapiencial e pode conter um matiz ético, segundo o Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Schökel, p.322. 158 A palavra dygin' nagid tem o sentido de “chefe”, “líder”, “soberando”, “funcionário graduado”, “chefe de família”, pessoa investida de autoridade civil, militar ou religiosa. A forma como aparece neste texto, enlaçada com o yKi ki lhe dá um novo sentido. Por isso, a Bíblia de Jerusalém traduziu ~ydiygin.-yKi k i-negidim por “coisas importantes” e a Bíblia Sagrada , versão revisada de João Ferreira de Almeida, por “coisas excelentes”.

158 [v;r, rexa‘ pode ser traduzida por “maldade”, “injustiça”, “iniqüidade” e parece indicar o antônimo de justiça. A versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida traduz por “impiedade” e a Bíblia de Jerusalém traduz a frase inteira por: “e meus lábios aborrecem o mal”. Mas o v.8 completa o sentido do v 7, pois apresenta uma defesa da sabedoria mulher: dizer que há abominação em seus lábios é uma injustiça, porque “na justiça todos os dizeres da minha boca, nada neles torcido ou pervertido” (v. 8). 160 Traduzi a palavra ~yxikon. nekohim por “justos”, embora a Bíblia de Jerusalém a tenha traduzido por “leais”, e João Ferreira de Almeida e Reina y Valera a tenham traduzido por “retas”. 161 A palavra “correção” rs'Wm musar aparece na primeira parte do capítulo 8 (v.10) e também no final

(v.33), precedida pelo verbo escutar, no imperativo: rs'Wm W[m.vi xime‘u musar, o que demonstra que existe uma relação entre a primeira e a última parte deste capítulo. Na primeira parte (8,10), a palavra

“correção” aparece precedida de um imperativo e sufixada: yris'Wm musari, para mostrar que a sabedoria mulher está oferecendo com autoridade sua correção. Ela diz: “recebei minha correção, porque ela vale mais que o dinheiro e os corais”. Na segunda parte (8,33), afirma que é “feliz quem escuta a correção”.

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11 Porque boa a Sabedoria163, mais que os corais

e todas as coisas desejáveis não se comparam com ela.

12 Eu, a Sabedoria, moro com a sagacidade164

e conhecimento encontrei na reflexão.

13 O temor de Javé (faz) detestar o mal, a soberba e a arrogância.

Caminho mal e boca de perversidades, eu detesto 165.

14 Eu possuo o conselho e o bom senso.

Eu sou a inteligência e meu é o poder.

15 Por mim reinam os rei

e os governantes decretam justiça166.

16 Por mim os príncipes governam

e os nobres todos que julgam167 (com) justiça.

162 A expressão “mais que o ouro” #Wrx'me maharuz que aparece no v.10, está repetida duas vezes no

v.19, com um sentido enfático: “mais que o ouro e mais que o ouro puro” zP'miW #Wrx'm. maharuz

umipaz. Além disso, nos dois versos ela vem seguida do verbo rhb bhr, no nifal rx'b.ni nibehar, que significa “escolhido”. Desta maneira, a frase do v.10b “o conhecimento vale mais do que o ouro puro e escolhido” possui um sentido enfático muito forte. Esta expressão fecha a perícope que acabo de traduzir e a enlaça com a que vem a seguir. Percebo que aqui se encontra uma quebra do texto. Voltarei sobre este aspecto

na delimitação. Outra ligação aparece na última expressão do v.11: “não se comparam com ela” Hb'-Wwv.yI aoloooooo l’o yixvu-bah . Essa expressão termina com o sufixo pronominal “ela”, que gera um ambiente propício para a auto revelação da sabedoria, cuja perícope será iniciada no v. seguinte. 163 Esta perícope tem uma estrutura concêntrica, formada pela repetição de hm'k.x' hokmah no v. 1 e no v.11. 164 O Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer traduz hm'r>[' ‘armah no qal imperfeito, como

“astúcia”, “cautela”, “sagacidade”, p.188. No v.5 já traduzi hm'r>[' ‘armah como “sagacidade”, por entender que esta qualidade tem o sentido de “ser desperta e atenta, com uma percepção rápida do ambiente

ao redor” , embora João Ferreira de Almeida tenha traduzido hm'r>[' ‘armah como “prudência”. Prefiro o sentido de “sagacidade”, tanto em 8,5, como em 8,12. 165 O termo anf sn’ aparece duas vezes neste verso. Na primeira vez como infinitivo absoluto tanOf. seno’t

“O temor de Javé (faz) detestar o mal” e na segunda vez com sufixo da 1ª pessoa ytianEf' xane’ti, mostrando a postura ética da sabedoria. Preferi traduzir por “detestar” em vez de “odiar” , por entender que o verbo “detestar” expressa também uma ação e não somente um sentimento. 166 “Justiça” qd,c, zedek é uma característica da sabedoria. O sentido de justiça aparece em Pr 8,8.

9.15.16.20, através de duas expressões que se correspondem: xr;aoo ’orah e tAbytin. netibot mostrando a estrutura poética do texto. 167 A expressão “todos que julgam justiça” qd,c, yjep.vo-lK' kol-xopte zedeq está entrelaçada. As três palavras são inseparáveis e fazem a diferença entre os governantes. Não são todos os príncipes e nobres que estão ligados à sabedoria, mas somente aqueles que julgam com justiça. O termo “todos” lK' kol inclui na

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17 Eu amo 168 aos que me amam

e madrugando por mim, me encontrarão169.

18 Comigo riqueza e glória,

riqueza durável e justiça.

19 Bom é meu fruto, mais que o ouro, do que o ouro puro170

e meu lucro vale mais que a prata escolhida.

20 Na senda da justiça171 eu ando,

através das sendas do direito.

21 Para fazer que tenham partilha172 os que me amam

e encher os seus tesouros.

22 Javé me criou173 no princípio do seu caminho,

desde antes de suas obras.

23 Desde a eternidade fui estabelecida174, relação com a Sabedoria todas as pessoas que governam, com a condição de que o façam baseados na justiça e no direito. 168 Segundo o Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Sökel, p.30, a palavra bh'ae ’hab está relacionada ao campo sexual ou conjugal. Tomando este termo em um sentido relacional mais amplo, a frase:

“eu amo aos que me amam” bh'ae h'yb,h]ao ynIa] ’ani ’ohabeha ’ehab está afirmando que a pessoa que se sente atraída pela sabedoria, que se enamora dela, é correspondida em seu amor. 169 Esta afirmação: “e madrugando por mim me encontrarão” possui uma relação antitética com a frase de Pr 1,28 “vão me procurar e não me encontrarão” Ynin.aUc'm.yi alow. ynin.rux;v;y. yexaharuneni velo’ yimeza’uneni. Esta antítese mostra o processo de acohida e inclusão no relacionamento com a sabedoria. 170 A comparação entre os ensinamentos da sabedoria e o “ouro” aparece duas vezes, uma aqui, no v.19, e a outra no v.10. 171 O v.20 é iniciado com o sintagma: “na senda de justiça” hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah-zedaqah e

concluído com outro semelhante: “sendas de direito” jP'v.mi tAbytin. netibot mixpat. É interessante observar a repetição da palavra sendas, embora escrita com formas diferentes. As duas carregadas de sentido figurado xr;ao ’orah, que tem o sentido de “sendas”, “caminho”, “vereda”, tamb ém pode ser usada para

indicar o comportamento das mulheres ou sua maneira de ser e tAbytin. netibot que tem o sentido de “procedimento”, “conduta”, sobretudo nos textos sapienciais. Relacionando com o v.2, onde a sabedoria se

coloca na casa das sendas hb'C;ni tAbytin> tyBe bet netibot nizabah, encontramos um aspecto significativo do campo semântico do texto, que indica qual é a identidade da sabedoria mulher, relacionando justiça, comportamento ético e casa. 172 O sintagma lyxin>h;l. le-hanehil, cuja raiz é lxn nhl, tem o sentido de “propriedade”, “posse”, “quinhão”, “partilha”, segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.154. Como o verbo

lyxin>h;l. le-hanehil está no hifil e vem precedido do -l lê-, “para fazer que tenham partilha” é uma tradução literal e ao mesmo tempo conseqüente com o resto do texto. 173 O sentido do verbo hnq qnh tem sido muito discutido pelos estudiosos. Ele aparece 66 vezes na Bíblia Hebraica e somente em 6 vezes traz o sentido de ato criativo. Esta me parece ser uma delas. Justificarei esta escolha na exegese.

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desde o princípio, desde as origens da terra.

24 Quando não havia abismos, fui gerada 175,

quando não havia os mananciais abundantes de água 176.

25 Antes que as montanhas fossem assentadas,

antes das colinas, fui gerada.

26 Ainda não havia feito a terra e as ervas,

nem o princípio do pó do mundo 177.

27 Quando estabeleceu os céus, lá eu estava,

quando traçou um círculo sobre a face do abismo178.

28 Quando firmou os céus em cima,

quando se tornaram fortes as fontes do abismo.

29 Quando punha ao mar suas normas,

para que as águas não ultrapassassem sua boca,

quando marcou os fundamentos da terra,

30 e era a seu lado179 artífice180

e era suas delícias dia a dia.

Dançava em sua presença todo o tempo,

31 dançava 181 no vazio da terra

174 O verbo yTik.S;n I nisaketi está no nifal, com sufixo de 1ª pessoa. Sua raiz é $sn, cujo significado tem a ver com o culto e pode ter o sentido de “fazer uma libação sagrada”. Uma tradução possível seria: “desde o princípio fui cultuada”. 175 A expressão “fui gerada” yTil.l'Ax holalti aparece repetida nos vezes, nos v.24 e 25. Esta repetição pode ser, apenas, um recurso poético. 176 O termo yDeB;k.nI nikbare é corrigido por alguns autores por nbky ykbn. 177 Mantenho a tradução literal de lbeTe tArp.[' ‘aperot tebel como “pó do mundo”, embora a Bíblia de Jerusalém tenha traduzido por “primeiros elementos do mundo”. A versão revisada de João Ferreira de Almeida é mais literal e traz: “nem o princípio do pó do mundo”. Esta opção tem a ver com a linguagem poética e a cosmovisão do texto. 178 Outra expressão da cosmovisão da época é “círculo sobre a face do abismo” ~Aht. ynEP.-l[; gWx hug ‘al-pene tehom. Busco traduzir estas formas literárias como aparecem no original hebraico para oferecer uma visão aproximada da cosmovisão judaica da época e, também, da beleza desta poesia. 179 A expressão “ao seu lado”, ou “ao lado dele” Alc.a, ’ezlo, indica aqui uma posição de igualdade e parceria que se encontra também no livro da Sabedoria (Sb 9,4). A Bíblia de Jerusalém traduz esta expressão como “estava junto com ele” e a versão revisada da Almeida, a Bíblia Pastoral e a Reina & Valera traduzem como “estava com ele”. 180 O termo !Ama' ’amon tem o sentido “artesão”, “artista”, “artífice” e isto dá à sabedoria um status de parceira de Javé na criação. Por isso, alguns autores corrigem o texto por ’amun, que significa “favorito”, “predileto”. Entrarei nesta questão na exegese do texto.

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e me deliciava com a humanidade182.

32 E agora 183, filhos, escutai-me,

pois são felizes os que guardam meus caminhos.

33 Escutai a correção e tornai-vos sábios

e não a esqueçam.

34 Feliz a pessoa que me escuta, velando à minha porta todo dia,

aguardando no portal da minha entrada,

35 pois quem me encontra, encontra a vida

e obtém o favor de Javé.

36 Mas quem peca contra mim faz mal a si mesmo.

Os que me odeiam amam a morte.

2.2.2 – Delimitação e divisão do texto, buscando encontrar a coesão interna

O cap.8 do livro dos Provérbios possui uma coesão interna formada pela metáfora

da sabedoria mulher que se auto-revela, chamando para um encontro com ela e oferecendo

seus ensinamentos e dons. Há uma evolução desta figura, chegando a ser apresentada como

imagem de Deus nos v.30-31. A estrutura deste capítulo é formada por quatro unidades ao

mesmo tempo distintas e entrelaçadas:

1ª unidade: convite e exortação da sabedoria (v.1-11)

2ª unidade: a sabedoria se revela e mostra os seus dons (v.12-21)

3ª unidade: a sabedoria é parceira de Deus na criação (v.22-31)

4ª unidade: exortação da sabedoria e convite à decisão (v.32-36)

181 A repetição de tq,x,f;m. mesaheqet no início do verso seguinte parece querer enlaçar as últimas frases. Ao mesmo tempo mantém o ambiente de alegria e gozo que perpassa o texto. Voltarei a este aspecto na delimitação do texto e na pesquisa sobre seu campo semântico. 182 Literalmente o texto traz “filhos de Adão”. Entendo esta expressão no sentido genérico e a traduzo aqui como “humanidade”. Embora no v.4 eu tenha deixado este termo no seu sentido literal “filhos de Adão”, sempre o estou interpretando como humanidade, no sentido da universalidade cósmica e humana que o texto apresenta. 183 Há uma quebra muito clara no texto. Mudam a linguagem e o tom poético do discurso para uma chamada exortativa. Mas vou traduzir até o final, depois delimitarei o texto e me deterei nas partes mais importantes para fazer a exegese.

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1ª unidade: convite e exortação da sabedoria (v.1-11)

A primeira unidade tem uma estrutura concêntrica, formada pela repetição de

hm'k.x' hokmah no v.1 e no v.11. A repetição da palavra justiça qd,eece zedek, nos v.8 e

9, faz o enlace da primeira unidade (v.1-11) com a segunda (v.12-21), pois a palavra justiça

está repetida nos v.15, 16 e 20 da segunda unidade. Outro enlace entre a primeira e a

segunda unidades encontramos no termo “veredas” tAbytin. netibot que está no v.2 (na

casa das veredas coloca-se a sabedoria) e se enlaça com a expressão “na senda de justiça”

hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah zedakah que inicia o v.20, fechando-o com outra expressão

semelhante: “veredas de direito” jP'v.mi tAbytin. netibot mixpat.

casa das sendas (v.2)

sendas de justiça (v.20a)

sendas de direito (v.20b)

Estas expressões, carregadas de sentido simbólico, tanto social como religioso,

formam um elo, entre a primeira e a segunda unidade, ao mesmo tempo em que tecem o

campo semântico de todo o capítulo 8. É interessante ainda observar a repetição de termos

que têm o sentido de “sendas” ou “veredas”:

a) xr;ao ’orah tem o sentido de “vereda”, “caminho” ou “senda”, também pode ser

usada para indicar o comportamento das mulheres ou sua maneira de ser.184

b) tAbytin> netibot tem o sentido de “caminho, “vereda”, “senda”185, e também de

“procedimento” ou “conduta”, sobretudo nos textos sapienciais.186

184 Confira Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.18. 185 Confira Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.163.

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Relacionando o v.2, onde a sabedoria se coloca na “casa das veredas” hb'C'nI

tAbytin> tyBe bet netibot nizabah com o v.20a “na vereda de justiça ando” $Leh;a]

hq'd'c.-r;aoB. be’orah-zedaqah ’ahalek e com o v.20b: “no meio da vereda da justiça”

jP'v.mi tAbytin> %AtB. be-tok netibot mixpat, encontramos um aspecto

significativo do campo semântico do texto, que apresenta a religião da Sabedoria,

relacionando-a com a justiça, aspecto importante no comportamento ético da casa. Também

pode indicar o comportamento das mulheres, suas relações de cumplicidade que fazem

parte de uma cultura subterrânea, vivida nas contradições, encontros e confrontos do dia-a-

dia.

2ª unidade: a sabedoria se revela e mostra os seus dons (v.12-21)

A segunda unidade, ao mesmo tempo em que está enlaçada com a primeira, tem sua

estrutura própria definida e iniciada com o pronome pessoal ynIa] ’ani que a caracteriza,

pois este poema é todo elaborado em primeira pessoa. Podemos dividir estes dez versos em

duas estrofes de cinco versos cada uma: os v.12-16 exaltam os dons da sabedoria: “temor

de Javé”, “conselho”, “bom senso”, “poder”, “justiça”187, ao mesmo tempo em que a

apresenta condenando o “orgulho, a arrogância e as perversidades”. Os v.17-21 insistem na

relação pessoal com a sabedoria e mostram as conseqüências desta relação em riquezas e

glórias. A teologia subjacente a estes versos está muito próxima à teologia da retribuição,

bastante desenvolvida por Eclesiástico 4,11-19.

3ª unidade: a sabedoria é parceira de Deus na criação (v.22 -31)

186 Confira Dicionário bíblico hebraico-português de Luis Alonso Sökel, p.456. 187 Estes dons lembram o poema messiânico de Is 11.

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A terceira unidade é formada por um poema cósmico em que a hokmah se apresenta

ao lado de Javé, na obra artesã da criação (v.22-31). Esta unidade pode ser dividida em

duas estrofes iguais. A primeira estrofe é formada pelos v.22-26 e se caracteriza pela

repetição da expressão “desde”, formado pela preposição inicial -m m-, repetida 8 vezes,

com algumas variações entre os v.22-26. É interessante observar que esta expressão

“desde” introduz a criação de elementos da natureza, como: “terra”, “abismos”,

“mananciais de água”, “montanhas” e “colinas” voltando ao elemento “terra”, no v.26. Esta

repetição forma uma estrutura circular nesta sub-unidade (v.22-26). A preposição “quando”

-b b- introduz a segunda estrofe (v.27-31), com a criação do “céu e do círculo sobre a face

do abismo” (v.27), “as nuvens em cima e as fontes do abismo” (v.28) o “mar e os

fundamentos da terra” (v.29). A repetição de “abismo” no final do v.29 forma um paralelo e

mantém o ritmo da poesia, fechando novamente a estrofe com a palavra “terra”, e

introduzindo a frase principal de todo o capítulo: “e era junto dele artífice” (v.30). O verso

seguinte (v.31) é uma continuidade da frase iniciada no v.30 wyn"p'l. tq,x,f;m.

mesaheqet le-panan “dançava diante dele” (v.30) e “dançava no universo” lbeteB.

tq,x,f;m. mesaheqet be-tebel (v.31). A forma verbal tq,x,,f;m. mesaheqet pode ser

também traduzida por “alegrava”, e sua repetição mostra o ambiente de intensa e

integradora alegria com que é concluída a apresentação do trabalho artesanal da criação. A

forma como se encerra o terceiro poema é coerente com o campo semântico desta unidade,

pois a execução de uma obra artística gera profunda alegria, por mais simples que esta seja.

E aqui não se trata de uma obra qualquer, pois a obra criadora da hokmah artesã (v.30) é o

“universo” lbete tebel (v.31). A opção que fizemos ao traduzir mesaheqet por dançava

parece ser ainda mais coerente com todo o campo semântico do texto. Ao mesmo tempo em

que a expressão “dançava” mostra o ambiente de alegria gerado pela ação criadora e

artística da sabedoria, deixa ver também um ambiente litúrgico, de gozo e de prazer, onde o

corpo está totalmente integrado. Aqui, o texto é quase um ícone.

4ª unidade: exortação da sabedoria e convite à decisão (32-36)

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Esta unidade inicia-se com o termo hT'[;w. ve-‘atah “e agora”. Depois de tudo o

que já foi apresentado, o texto pede uma definição. Talvez nem fizesse falta. Ouvintes e

leitores já estão seduzidos pela sabedoria e querem escutá-la. Mas nosso texto retoma o tom

exortativo da primeira unidade, iniciando uma instrução com o termo “e agora”, com a

finalidade de motivar seus ouvintes a escutar a sabedoria. Nos v.32-34 encontramos uma

dupla promessa da felicidade: “feliz quem escuta o chamado da sabedoria e feliz quem

guarda o seu caminho”. Este fecho é, então, uma volta ao começo e mostra a coerência do

texto. Motivando seus ouvintes com estas bem-aventuranças, o texto os desafia a fazer uma

escolha entre a vida e a morte: quem encontra a sabedoria, encontra a vida e quem a odeia

ama a morte (v.35-36). Desta maneira o capítulo 8 se fecha, formando uma inclusão,

elaborada a partir do gênero literário instrução.

2.2.3 – Estrutura de Provérbios 8,1 -36

Uma das maneiras de apropriar-nos de um texto é perceber a forma como foi tecido,

isto é, como foram organizados os diferentes conteúdos que o compõem. Neste item, busco

apresentar minha própria visão da estrutura de Provérbios 8, apresentando também a visão

que um conhecido estudioso tem da organização deste texto.

A – convite e exortação da sabedoria (v.1-11)

1 – a sabedoria é apresentada como uma profetisa, que grita em lugares públicos (v.1-3).

2 – em primeira pessoa ela mostra a importância e o valor dos seus ensinamentos (v.4-11).

B – a sabedoria se revela e mostra os seus dons (v.12-21)

1 – exaltação dos dons da sabedoria (dons messiânicos confira Is 11) (v.12-16).

2 – mostra as conseqüências da relação pessoal com a sabedoria (v.17-21).

B’ – a sabedoria é parceira de Deus na criação (v.22-31).

1 – a sabedoria existe desde antes da criação (v.22-25).

2 – a sabedoria é artífice da criação, junto de Javé (v.26-31).

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A’ – exortação da sabedoria e convite à decisão (v.32-26)

1 – promete felicidade para quem a escuta (v.32-34).

2 – desafia a escolher entre vida e morte (v.35-36).

Encontro uma estrutura concêntrica na elaboração de Pr 8,1-36, formada pelo

gênero da instrução com suas motivações e exortações. Este gênero aparece no início (8,1-

11) e no final do cap.8 (v.32-36), formando a inclusão para os dois poemas revelatórios da

sabedoria (v.12-21 e v.22-31). Estes dois poemas, ao mesmo tempo em que recolhem a

tradição sapiencial de Israel, apresentam também a nova situação em que se encontram as

famílias de Judá, no final do império persa, e as circunstâncias que lhes permitem expressar

com mais liberdade suas experiências relig iosas ligadas à vida da casa e da comunidade.

Em seguida, quero demonstrar que há outras possibilidades de fazer uma divisão

literária do cap.8 de Provérbios. Entre estas possibilidades, escolho o trabalho realizado por

Roland Murphy. 188 A estrutura literária de Pr 8, por ele apresentada, é a seguinte:

I – Introdução para o discurso público da sabedoria (v.1-3)

A - Pergunta, chamando a atenção de todos para o discurso da sabedoria (v.1)

B - Descrição dos lugares públicos que ela ocupa (v.2-3)

II – O discurso da sabedoria (v.4-36)

A - Convite para escutar (v.4-5)

B - Razões para escutar, apresentando uma descrição dos muitos motivos

que a sabedoria tem para recomendar-se (v.6-31)

1. A retidão e o valor dos seus ensinamentos (v.6-11) 2. Suas qualidades (v.12-16) 3. Suas relações com seus seguidores (v.17-21) 4. Sua origem eterna junto de Deus (v.22-31)

C - Conclusão 1. Repetição do convite (v.32-33)

2. Promessa de vida, ameaça de morte (v.34-36). 188 Roland E. Murphy, The Forms of the Old Testament Literature – Wisdom literature: Job, Proverbs, Ruth, Canticles, Esther, Rolf Knierim e Gene M. Tucher (editores), Michigan: William B. Eerdmans, 1981, p.62.

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Para Roland Murphy, Pr 8 tem duas partes, uma formada pela apresentação da

sabedoria (v.1-3) e a outra pelos seus discursos (v.4-36). Esse autor não vê uma estrutura

concêntrica nesta perícope.189 No entanto, prefiro a primeira estrutura, apresentada em

forma concêntrica, pois a última instrução não faria falta ao texto. Já está bem remarcada a

importância e o valor da sabedoria. As motivações iniciais já seriam suficientes para que

leitores e ouvintes a buscassem, não fosse a necessidade de criar uma inclusão para o

conteúdo principal de Pr 8, que é a apresentação da sabedoria, com todos os seus dons

importantes para a vida de seus seguidores e suas seguidoras, assim como sua presença

junto de Javé, desde antes da criação do universo. Repete-se, então, uma instrução no final

do capítulo, criando uma inclusão que aponta para os dois poemas, nos quais a sabedoria se

revela.

2.2.4 – O campo semântico

O campo semântico de Pr 8 é formado, antes de tudo, pelas palavras próprias do

gênero sapiencial: “sabedoria” hm'k.x' hokmah está repetida 3 vezes como nome

(v.1.11.12) e uma vez como verbo, no imperativo: “sede sábios” (v.33); “entendimento”

hn'ybi binah, que aparece 5 vezes (no v.1, no v.5 encontramos este verbo 2 vezes no

imperativo, no v.9 e no v.14); “conhecimento” t[;D' da‘at aparece 3 vezes (v.9.10.12).

Estas palavras aparecem na primeira, segunda e quarta unidades, deixando a terceira

entrelaçada pelo ritmo métrico do poema e totalmente distinta em relação ao campo

semântico. A terceira unidade (v.22-31) é como a pedra preciosa desta jóia que é o cap.8 do

livro dos Provérbios.

Uma palavra que aparece também muito repetida é “justiça” qd,c, zedek,

marcando com clareza o campo semântico da primeira e da segunda unidades

(v.8.15.16.18.20). No v.20, aparece ainda outra palavra do mesmo sentido, que é “direito”

189 Veja Roland E. Murphy, The Forms of the Old Testament Literature , p.62 e seguintes.

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jP'v.mi mixpat. A palavra “justiça” qd,c, zedek está ainda relacionada com “caminho”

%r,D; darek “veredas” tAbytin. netibot e “senda” xr;a, ’erah, ligando o v.2, onde a

sabedoria se coloca na “casa das sendas” hb'C'nI tAbytin> tyBe bet netibot nizabah,

com o v.20a “na senda de justiça ando” $Leh;a] hq'd'c.-xr;aoB. be-’orah zedaqah

’ahalek e com o v. 20b “no meio da senda do direito” @p'v.mi tAbytin> %AtB. be’tok netibot mixpat. Nesta repetição, encontramos um aspecto significativo do campo

semântico do texto, que apresenta a identidade da sabedoria e as características da sua

religião, que tem como conseqüência a prática da justiça, postura ética principal na

organização da vida da casa (clã) e da comunidade.

A raíz “escutar” [m;v' xama‘, que também faz parte do campo semântico do

gênero sapiencial, aparece repetido 4 vezes, ligando a primeira unidade (v.6) com a última

(v.32-36), sempre no imperativo: “escutem” W[m.v. xeme‘u.

A expressão “mais que o ouro”, que aparece no v.10, está repetida duas vezes no v.

19, com um sentido enfático: “mais que o ouro e mais que o ouro puro” zP'miW

#Wrx'm. me-haruz umipaz. Além disso, nestes dois versos, ela vem seguida do verbo

“escolher” rx;B' bahar no nifal particípio, escolhido”. A frase: “mais que o ouro e mais

que o ouro puro, escolhido” tem um significado acumulativo para indicar o imenso valor da

sabedoria. Esta expressão fecha a sub-unidade formada pelos v.1-11 e a enlaça com a que

vem a seguir (v.12-21).

Outra ligação entre as duas unidades literárias aparece na última expressão do v.11:

“não se comparam com ela” Hb'-Wwv.yI aloo lo’ yixvu-bah. A expressão, terminada

com sufixo pronominal feminino de 3ª pessoas (v.11), cria o ambiente para a auto-

revelação da sabedoria, como se apontasse para ela, que se auto-apresenta nesta segunda

unidade (v.12-21).

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Na terceira unidade (v.22-31), há uma quebra total do campo semântico. Nenhum

dos termos próprios da literatura sapiencial aparece neste poema, o que mostra sua

originalidade. No entanto, o ritmo de todo o capítulo é mantido através da estrutura poética,

pois os versos continuam agrupados em duas estrofes e cada verso é formado com duas

frases. O verbo ynIn"q' qanani que traduzi como “criou-me” introduz o tema da criação,

que percorre toda a unidade (v.22-31).190 Este verbo tem a ver com o campo semântico do

texto. Cria-se nos v.22-31 um espaço e um tempo cósmicos, caracterizados pela preposição

inicial -m m- repetida com algumas variações entre os v.22 e 24: wyl'['p.mi mi-pe‘alav

“desde antes de suas obras”, za'me me-’az “desde então”; ~l'A[me me-‘olam “desde a

eternidade”; varome me-ro’x “desde o princípio” ~mid>Q;me me-qadmim “desde as

origens”. Esta representação poética, repetida como se fosse um refrão, cria um tempo

anterior à própria criação, para indicar que a sabedoria é pré-existente.

A forma que expressa o tempo primordial muda no v.25, passando a ser indicada

por -B be- antes de verbos no infinitivo: Anykih]B; ba-hakino “quando estabeleceu os

céus”. Com esta forma, é introduzida a ação criadora do universo.

Os verbos “criou-me” ynIn"q' qanani (v.22), “fui estabelecida” yTik.S;nI

nisakti (v.23) e “fui gerada” ytl.l'Ax holalti (v.24 e 25) estão relacionados, de certa

maneira, aos verbos que indicam a ação artesanal criadora do universo. A semântica e a

forma se unem para elaborar a poética: “antes que as montanhas fossem assentadas”

W[B'j.h' ~yrIh' ~r,j,B. be-terem harim hatba‘u (v.25), “quando traçou um círculo

sobre a face do abismo” ~Aht. ynEP.-l[; gWx AqWxB. be-huqo hug ‘al-pene

tehom (v.27), “quando firmou as nuvens de cima e se fizeram as fontes do abismo”

~AhT. tAny[i z[]B; l[;M'mi ~yqix'v. AcM.a;B. be-’amzo xehaqim mi-ma‘al

190 O verbo qnh lembra Eva que, após o nascimento de Caim, diz cheia de alegria: “criei um homem (com a ajuda de) Javé” (Gn 4,1). Em Gn 4,1, o verbo qaniti está em primeira pessoa, mas quem é o sujeito da oração é Javé. Aqui, em Pr 8,22 novamente é Javé quem realiza a ação de criar, tornando a sabedoria co-criadora com ele.

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ba’az ‘iynot tehom (v.28), “quando pôs ao mar sua norma” AQxu ~Y"l; AmWfB.

be-sumo layam huqo e “quando marcou os fundamentos da terra” #r,a' ydes.Am

AqWxB. be-huqo mosde ’arez (v.29). Todos estes verbos indicam um trabalho criativo e

artesanal realizado por Javé e a hokmah. É interessante observar que Javé só aparece uma

vez em todo o cap.8 de Provérbios (v.22).

Em quase todos os verbos desta subunidade (v.24-29), encontramos este -b be-

inicial. Vem repetido 9 vezes nos v.24.25.27, criando um ritmo intenso de expectativa que

desemboca na expressão conclusiva: “e era junto dele artífice” !Ama' Alc.a,

hy<h.a,w" va’eheyeh ’ezlo ’amon (v.30). Toda a construção deste poema está

direcionada para este verso em que a sabedoria se apresenta como artífice do universo ao

lado de Javé. Este é o ponto alto não só deste capítulo, mas de toda a primeira seção do

livro dos Provérbios (1-9).

Os v.30-31 apresentam termos e repetições importantes, que merecem uma atenção

especial. O verbo “ser”, “acontecer”, hyh hyh ocorre duas vezes no v.30, na forma

hy<h.a,w. ve-’eheyeh.191 Este verbo foi traduzido por “e era”, para dar mais sentido à

frase: “e era junto dele artífice”. No entanto, dentro do campo semântico, quero ressaltar o

sentido de “acontecimento” que este verbo carrega. Há um dinamismo criativo, alegre e

prazeroso formado pelo conjunto das palavras dos v.30-31. A hokmah é o sujeito desta ação

dinâmica, realizada “junto dele”, isto é, junto de Javé. Sua ação de artífice !Ama'’amon

está claramente definida. Segundo Hans Wildderger, o termo !Ama' ’amon significa

“artista” e encontra-se em Ct 7,2; Jr 46,25 e Pr 8,30; !Ama' ’amon não tem nada a ver

com a raiz ’mn, como se pensava anteriormente e, seguramente, se remonta, através do

acádico ummanu, ao sumérico, que carrega o sentido de “artesão”, “artífice”. Hans

Wildderger, insiste em que o sentido de ’amon não é “criança mimada ou preferida”, mas 191 Está na 1ª pessoa, singular, imperfeito, segundo o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, p.4, esta expressão tem a ver com a autodesignação de Deus (conferir Êx 3,14).

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“artista”192.

O termo “delícias” ~y[ivu[]v, xe‘axu‘im também está repetido duas vezes. Uma

no v.30, como nome plural, e outra no 31, como verbo no piel particípio absoluto,

feminino, singular. Este termo, que traduzi por “delícias” (v.30), e “me deliciava” (v.31),

pode ser entendido como “prazer”, “delícia”, “deleite”, “encanto”193. Um prazer que

provém da ação criativa realizada em relação, pois está entrelaçado com a expressão: “junto

dele” Alc.a,, ’ezelo tem seu paralelo em outra expressão com sentido semelhante: “diante

dele” wyn"p'l. le-panav. O entrelaçamento destes termos e sua repetição comunicam a

prazerosa relação entre a hokmah e Javé e dela com a humanidade: “era delícias dia -a-dia”

(v.30) e “me deliciava (com) filhos de Adão” (v.31).

Outro termo repetido nos v.30 e 31 é a palavra tq,x,f;m. mesaheqet. Sua raíz

xmf smh ou qxc zhq é a mesma de “riso”, “risada”. Expressa a alegria vivenciada nas

festas profanas e também nas festas religiosas. Alegria se manifesta em saltos de gozo (Jr

50,11), em “dança”, música e gritos de júbilo (1Sm 18,6; 2Sm 6,12.14; 1Rs 1,40.45; Ne

12,27).194 tq,x,f;m. mesaheqet está no piel particípio, feminino, singular, expressando a

intensidade do verbo. Sua raíz é qxc zhq, uma forma alternativa de xmf smh que no qal

tem o sentido de “rir”, “alegrar-se”, “rejubilar-se”. Em Pr 31,25, a mulher forte “ri do

futuro” qx:f,Tiw: vatisehaq, dando a entender que, por ser competente, ela pode viver

sem preocupação. O hifil de qxc expressa “caçoar”. Em 2Cr 30,10, os israelitas do norte

receberam um convite de Ezequias para participar da páscoa de Jerusalém e “riam” ou

“caçoavam” ~yqiyhif.m: masehiqim dos seus mensageiros. Já o piel avança na direção

de conceitos mais positivos. Em Gn 26,8, Isaque foi visto “divertindo-se” qxec;m.

192 Confira H. Wildderger, em ’amn , Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, p.276-319. 193 Conferir Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, p.259. 194 Confiram E. Ruprecht, em smh, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 2, p.1041-1049.

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mesaheq com sua mulher, Rebeca.195 A Bíblia sagrada de João Ferreira de Almeida e a

Bíblia de Jerusalém traduzem este termo por “acariciava”, enquanto a Tradução Ecumência

da Bíblia traz o termo “divertia-se”. Em Pr 8,30 e 31, este termo tq,x,f;m. mesaheqet

aparece duas vezes, porém ele não se encontra em outra parte do Antigo Testamento, nesta

forma verbal. Somente aqui, e repetido duas vezes (Pr 8,30-31).196

Ao traduzir tq,x,f;m. mesaheqet por “dançava”, procurei ser fiel tanto à raíz do

verbo,197 como ao seu tronco (piel particípio). A expressão “dançava no universo” fecha

esta subunidade, em sintonia com a semântica das palavras anteriores: junto de Javé, a

hokmah realiza com arte a obra da criação, ao mesmo tempo em que causa prazer na sua

relação com Javé, ela encontra prazer na sua relação com a humanidade e dança de alegria

diante de Javé e do universo.

O cap.8 se fecha (v.32-36) com palavras próprias do gênero sapiencial, tal como foi

iniciado: “escutai” W[m.vi xime‘u, “caminho” %r,D, derek, correção” rs'Wm musar,

“sede sábios” Wmk'x] hakamu (v.32-36). Estes termos já estavam presentes na primeira

unidade (v.4-11). No entanto, o final deste capítulo apresenta não somente esta

continuidade em relação ao seu início, mas traz uma novidade: a palavra yrev.a; ’axere

“feliz ou abençoado”. Este termo aparece duas vezes nesta última parte (v.32 e v.34). Este

morfema, repetido desta maneira, poderia ser uma indicação da memória da Deusa Aserá

no poema. Mas John Day é contrário a esta opinião, afirmando que “esta palavra é muito

freqüente no livro dos Provérbios e relacionada com a literatura sapiencial (conferir Pr

8,32.34; 14,21; 16,20; 20,7; 28,14; 29,18; Sl 127,5; 127,1)”198.

195 Veja J. Barton Payne, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, R. Laird Harris, Gleason L., Archer Jr., Bruce K. Waltke, São Paulo: Vida No va, 1998, p.1280-1281, verbete 1905. 196 Pesquisa feita no programa Bible Works 5 – The primier biblical exegesis and reserch program, distribuído por Hermeneutika, Computer Bible Research Sofware, serie BWW40-00024228. 197 Ludwig Koehler e Walter Baumgartner, The hebrew and aramaic lexicon of the Old Testament, tradução de M. E. J. Richardson, Leiden: Brill, 1996, vol.1, p.1315-1316. 198 John Day, “Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte , p.186.

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Judith Hadley, depois de uma exaustiva investigação sobre o uso da palavra ’axerah

na Bíblia Hebraica e de confrontar o resultado da sua pesquisa literária com as descobertas

arqueológicas de Khirbet el-Qon e Kuntillet ‘Agrud, afirma: “pode ser que o culto a Aserá

tenha sido uma parte legítima do culto a Javé”199.

Portanto, mesmo que o sentido da palavra yrev.a; ’axere nos v.32 e 34 seja “feliz”

ou “abençoado”, isto não impede que a memória da Deusa esteja presente neste morfema,

como um símbolo que ecoa na vida das mulheres, nas casas. Esta palavra aparece também

em Pr 3,13: “feliz o homem que encontrou a sabedoria” e, especialmente, em 3,18: a

sabedoria “é uma árvore de vida para os que a acolhem, e felizes são os que a retêm”.

Assim sendo, o campo semântico de Pr 8 ao mesmo tempo que é tecido com a

repetição de termos próprios da literatura sapiencial, traz uma grande novidade, um tempo

primordial simbólico formado de formas adverbiais usadas junto a verbos relacionados à

ação de criar, tecendo desta maneira um tempo e um espaço próprios para a auto-revelação

da hokmah como parceira de Javé na criação do universo. O campo semântico de Pr 8 nos

mostra ainda aspectos importantes da religião da hokmah, com a repetição das palavras

“justiça” e “direito”.

2.2.5 – Gêneros literários

Quanto aos gêneros literários, em Pr 8,1-36 encontramos uma apresentação (8,1-3),

duas instruções (v.4-11 e 32-36) e dois poemas (v.12-21 e 22-31). Na apresentação (v.1-3),

encontramos um convite, feito em terceira pessoa, mostrando a sabedoria que começa

chamando (v.1) e termina gritando (v.3). A primeira instrução está nos v.4-11, onde a

sabedoria se dirige aos seus ouvintes mostrando a importância de seus ensinamentos. Nessa

199 Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’ – Archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der Israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte, p.240. Ver também Judith Hadley, “From Goddess to literary construct – The transformation of asherah into hokmah”, em Reading the Bible – Approaches, methods and strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.393-396.

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instrução, encontram-se alguns mexalim, como os v.5,10 e 11, que estão repetidos dentro da

mesma seção (conferir 8,5 e 6,32; 8,10 e 2,4; 3,14; 8,19; 8,11 e 3,15) e em outros escritos

sapienciais (Pr 16,16; Jó 28,15-19).

Uma das características da poesia hebraica é a antítese. Nesta primeira unidade, ela

aparece elaborada em forma de quiasmo (v.7-8):200

A – meu paladar proncunciará a verdade B – abominação em meus lábios é maldade B’ – não há neles nada pervertido A’ – na justiça todos os dizeres da minha boca

A conclusão desta instrução está no v.11, caracterizada por uma frase iniciada por

yKi ki “eis que a sabedoria é melhor que os corais e todas as coisas desejáveis não se

comparam com ela”.

O primeiro poema revelatório (v.12-21) é marcado por antítese, repetições,

paralelismos e comparações que revelam o rosto da sabedoria e os bens que ela oferece. As

palavras são próprias do vocabulário sapiencial, mas estão relacionadas através da poesia,

com um ritmo que gera um sentido novo, criando um espaço invisível entre as frases e

linhas.201 O sentido novo criado neste poema (v.12-21) é o espaço de atuação da sabedoria,

combinando palavras do vocabulário sapiencial com verbos:

Eu, a sabedoria, moro com a sagacidade

e conhecimento encontrei na reflexão (v.12).

A repetição do mesmo verbo, com tempos diferentes, cria também um sentido novo

que revela a identidade da sabedoria, deixando no ar uma pergunta sobre a relação amorosa

e gratuita que ela oferece:

Eu amo aos que me amam

200 Embora o quiasmo seja uma forma literária e sua análise deva constar no item da estrutura, a antítese pertence ao gênero literário, sendo uma das características da poes ia hebraica. Por isso, a menciono neste exemplo. 201 Sabedoria e poesia do povo de Deus, CRB, p.66 (Tua Palavra é Vida, 4).

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e madrugando por mim, me encontrarão (v.17).

No segundo poema revelatório (v.22-31) cria-se um tempo anterior ao tempo

histórico e até mesmo ao momento da criação, além de um espaço cósmico formado pelos

advérbios “antes”, “desde” e “quando”, repetidos no início de cada frase. O tempo anterior

à criação, o “momento” da criação artesanal e o espaço cósmico são criados em um ritmo

envolvente, através de algumas repetições de advérbios e de elementos da natureza, como

“terra” (v.23.29), “abismo” (v.24.27.28), “mananciais de água e fontes do abismo”

(v.24.28). Esta repetição é um recurso poético importante na poesia hebraica. Tem a função

de criar um espaço e um tempo primordiais próprios para a apresentação da sabedoria

criadora do universo, ao lado de Javé. Ao concluir sua apresentação, o poeta usa outra

expressão poética para mostrar a sabedoria mulher “dançando no universo, sua terra” e

encontrando suas delícias no relacionamento com os “seres da terra”, “os filhos de homem”

~d'a' yneB. bene ’adam (v.31).

A poesia dos v.30-31 é construída através do paralelismo. “O paralelismo é muito

mais do que só uma forma literária. Ele revela algo da mentalidade do povo hebreu. Revela

um estilo contemplativo que não segue a nossa lógica.”202

E era a seu lado artífice

e era suas delícias dia a dia.

Dançava em sua presença todo o tempo,

dançava no vazio da terra

e me deliciava com a humanidade (v.30-31).

Entre estas palavras repetidas e aproximadas com cuidado e arte, encontra-se um

sentido escondido. No texto não aparecem os nomes de Javé e da hokmah. No entanto, o

texto apresenta uma visão da espiritualidade das famílias judaítas, no pós-exílio. Uma

espiritualidade marcada pela experiência do prazer, da integração com a natureza, das

202 Sabedoria e poesia do povo de Deus, Publicações CRB, p.68.

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relações interpessoais que se expressam nas casas, das liturgias domésticas. Porque dançar

diante de Javé é liturgia. A espiritualidade que transparece neste texto (v.30-31), não tem

uma visão solitária da divindade. Javé, que está subtendido no texto, tem a hokmah ao seu

lado, em prazerosa e criativa relação, enchendo de alegria o universo.

O cap.8 fecha-se com outra instrução (v.32-36), que retoma o gênero exortativo dos

v.4-11, iniciando com uma conjunção que tem o valor de conseqüência: “portanto, filhos,

escutai-me!” Esta exortação final também faz parte do gênero poesia, formada pelo

paralelismo das duas bem-aventuranças:

felizes os que guardam meus caminhos (v.32b)

feliz a pessoa que me escuta (v.34a)

Um outro aspecto da poesia hebraica que aparece nesta última instrução é a antítese,

fechando o capítulo com um convite para escolher entre vida e morte. Quem escolhe a

sabedoria encontra a vida e quem a rejeita está no caminho da morte:

Pois quem me encontra, encontra a vida e obtém o favor de Javé.

Mas, quem peca contra mim faz mal a si mesmo.

Os que me odeiam amam a morte (v.35-36).

Conclusão: a semântica e os gêneros literários de Pr 8 realçam a surpreendente imagem da

sabedoria como artista do universo. Nosso texto é formado por expressões adverbiais e

palavras escolhidas, usadas com arte para alcançar seu objetivo. As palavras e a forma se

unem para formar um desenho especial e único, dando visibilidade à sabedoria mulher que

se apresenta publicamente, oferece os seus dons e se revela como companheira de Javé e

artífice da criação.

2.2.6 – Uma visão da sabedoria mulher

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Inicialmente, a sabedoria mulher é apresentada em Pr 8 como profetisa que grita

com alegria, força e autoridade em lugares públicos, chamando todas as pessoas para que

venham a seu encontro (v.1-3). A abrangência dos destinatários principais da sabedoria

mulher fica determinada pela expressão “filhos de Adão”, que é genérica e inclusiva (v.4).

Somente em um segundo momento ela se dirige aos ingênuos e insensatos (v.5).

Nos v.1-3 a sabedoria mulher é apresentada em terceira pessoa, pelo autor do texto.

A partir do v.4, ela se auto-revela, oferecendo seus ensinamentos e mostrando, através de

comparações, o valor imenso dos seus dons. Seus ensinamentos valem mais do que o ouro

puro, do que pérolas e jóias (v.10-11 e 19). Embora consciente de seu valor, ela está

totalmente aberta aos que a amam, sem colocar nenhuma outra condição para ser

encontrada, a não ser o desejo e a busca.

Um traço muito importante para se obter uma visão da sabedoria mulher em

Provérbios 8 é sua relação com a justiça. Ela caminha pelas “sendas da justiça” (v.20a) e

pelas “veredas do direito” (v.20b). Mas, a justiça e o direito não representam apenas uma

postura ética pessoal da sabedoria mulher. Ela dita “sentenças justas” (v.8) e leva os

governantes a serem justos e a exigir a justiça (v.15-16). Sua definição ética é muito clara e

não pode suportar “lábios mentirosos” (v.8). A Septuaginta entendeu este aspecto e

acrescentou, a partir do seu contexto, que a sabedoria mulher não aceita a “fraude”203. Estas

expressões que mostram a sabedoria mulher ligada à prática da justiça e do direito têm uma

relação muito forte com a religião de Israel. Elas refletem uma questão social subjacente ao

texto e, ao mesmo tempo, apresentam um aspecto ético característico da experiência

religiosa que gerou o povo bíblico. Por isso, é importante ressaltar estes aspectos, antes de

mostrar outro lado do rosto da sabedoria mulher.

No poema dos v.22-31, a figura da sabedoria mulher vai crescendo até tomar

aspectos de Deusa. Inicialmente ela é apresentada como criada por Javé (v.22). Mas,

imediatamente sua figura evolui, pois o texto a apresenta como pré-existente a toda a

criação (v.23-29). Aquela que inicialmente foi apresentada como profetisa em lugares

203 Confira v.8 e 13 da Septuaginta.

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públicos e muito movimentados, gritando junto às portas da cidade, toma a palavra e se

auto-apresenta como possuidora de dons muito importantes para a esperança messiânica,

dentro da situação concreta do pós-exílio.

Logo, há um salto, uma mudança total de ambiente. Cria-se um espaço e um tempo

próprios, onde a Sabedoria se revela como artífice junto de Javé na obra da criação (8,22-

31). Introduzido pelo verbo qnh, todo este poema (v.22-31) celebra a força criadora de vida.

Desde o primeiro verso, já estamos no âmbito mitológico da criação, carregado de emoção

pela sua beleza e força. Em um ritmo sereno e harmonioso, o poema nos conduz através da

terra e dos abismos, até os mananciais de água (v.24). Eleva -nos pelas montanhas e colinas

até os céus, para contemplar do firmamento a abóbada que se traçava sobre a face do

abismo (v.27). Toma-nos pela mão e nos leva às origens do universo para mostrar ali a

presença da sabedoria mulher, junto com Javé, como a grande artista, ’amon “artífice” do

cosmos (v.30-31).204

Há, ainda, traços muito importantes do rosto da sabedoria mulher em Provérbios 8

que merecem ser ressaltados. Ela proclama bem aventurados os que guardam seus

caminhos (v.32) e todos aqueles que a escutam, velando à sua porta todos os dias (v.34).

São bem aventurados e felizes porque, buscando-a haverão de encontrá-la e, encontrando-a,

terão encontrado o dom maior, a vida (v.35). Esta conclusão enfatiza o aspecto divino da

sabedoria mulher, pois quem pode oferecer a vida, senão Deus?

2.3 – Um estudo de Provérbios 9

O cap.9 de Provérbios fecha a primeira seção do livro (1-9), apresentando uma

simbologia bastante complexa. Para analisar este texto, realizarei os mesmos passos

exegéticos das unidades literárias anteriores. No item 2.3.1 farei a tradução do texto

hebraico. Em seguida, no item 2.3.2, farei uma comparação com a versão dos LXX, com o

204 É com este sentido que mantive o sentido literal do hebraico e da Septuaginta: “Javé me criou no princípio do seu caminho”, por entender que o verbo criar faz parte do campo semântico desta perícope, onde se apresenta o universo sendo criado como um trabalho artesão, trabalho criativo e artístico, realizado pela hokmah junto de Javé (v.30), ponto alto não somente deste capítulo, mas de toda a unidade (Pr 1 -9).

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objetivo de perceber como a comunidade judaica de Alexandria interpretou este texto, no

contexto egípcio do século 3 a.C. No item 2.3.3, buscarei encontrar a delimitação e a

divisão estrutural do texto. O seu gênero literário será observado no item 2.3.4 e no item

2.3.5 recolherei os aspectos que possibilitam perceber a visão da sabedoria mulher

apresentada neste texto.

2.3.1 – Tradução e crítica textual

1 A sabedoria205 construiu sua casa206,

lavrou sete207 colunas

2 abateu208 seus animais,

misturou seu vinho, também pôs sua mesa.

3 Enviou suas criadas, clama209 em cima das alturas da cidade210

205 O termo que traduzi no singular “sabedoria” está no plural tAmk.x' hokmot. Na primeira seção de Provérbios (1-9), este plural de majestade encontra-se apenas duas vezes (Pr 1,20; 9,1), enquanto o termo hokmah aparece 16 vezes. “Este é um plural de majestade”, conferir Paul Jüon, Grammaire de L’Hébreu Biblique, p.88 e § 136. hokmot também é considerado um plural abstrato de hokmah por M. Sæbø, em hk m, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, col.776-789. “Este é um plural de excelência e majestade”, confira em Emil Kautzsch, Gesenius’ Hebrew Gramar, p.398, nota 2. 206 A expres são Ht'ybe betah “casa dela” faz a ligação do capítulo 9 com o capítulo 31 de Provérbios, onde betah aparece uma vez no v.15 e duas vezes no v.21. É interessante observar que esta é uma expressão rara no Antigo Testamento, onde a expressão mais usada é “casa do pai”. 207 O número sete h['b.vi xib‘ah demonstra que há um sentido simbólico nesta expressão, que caracteriza o tipo de casa construída pela sabedoria. A Bíblia de Jerusalém indica dois sentidos para esta expressão: 1. é uma “característica de uma casa rica”; 2. é “símbolo da perfeição”. Veja nota da p.1129. 208 A palavra “matar” ou “abater”, em hebraico x'b.j' tabha, está diretamente relacionada à preparação de

um banquete ou uma comida. A expressão Hx'b.ji Hx'b.j' tabhah tibhah significa “abateu seus animais”,

sem deixar claro se esta matança seria para um ritual. O verbo Hx'b.j tabhah aparece também em Jr 12,3. O

verbo usado para o abate de animais para oferecer sacrifício é xkz zkh.Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.254; veja também o Dicionário hebraico-português & aramaico-português, de Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann, Rudi Zimmer, p.81, que traz o sentido de “carne” (de gado abatido). 209 Não está claro se é a sabedoria que clama ou se são as suas criadas. O verbo está no qal, imperfeito, feminino, singular. No entanto, “criadas” h'yt,ro[]n; na‘aroteha está no plural. 210 Esta expressão “sobre as alturas” yPeg';-l[; ‘al-gape só aparece neste texto. Nota-se uma ênfase na frase hebraica para que a mensagem seja proclamada nas alturas. Literalmente, a frase seria assim: “clama

sobre em cima de alturas de cidade”. Esta ênfase expressa-se também pelo termo tr,q' qaret , que significa “alturas que dominam a cidade”. Um termo que se repete nesta unid ade literária (8,3; 9,3.14). Fora desta

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4 quem (é) ingênuo volte-se211 para aqui, diz ao sem coração212

5 vinde213, para que comam do meu pão e bebam do vinho que misturei.

6 Abandonai (os) ingênuos e vivereis214

e andai pelo caminho da inteligência.

7 (Quem) corrige 215 o zombador216 atrai insultos 217

e quem repreende 218 o malvado219 (recebe) sua mácula.

8 Não repreendas o zombador para que não te odeie.

Repreende ao sábio e te amará.

unidade, encontra -se apenas em Pr 11,11 e Jó 29,7. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.594. 211 O verbo rsy ysr é bastante comum. A raiz ysr aparece 93 vezes no texto massorético, sendo 42 vezes em forma verbal. O sentido mais comum deste verbo é “corrigir” ou “castigar”. Na seção de Pr 1-9, a forma mais comum é musar nome que significa “correção ou castigo” e que aparece 13 vezes nesta coleção. Confira pesquisa de M. Sæbø, em ysr, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, col.1016-1021. 212 No v.3, o convite era aberto, pois foi proclamado a partir dos lugares altos da cidade com a finalidade de que chegasse a todas as pessoas. No v.4, chama a atenção este convite especial aos ingênuos e carentes de coração, isto é, de entendimento e sentido para viver. Procurarei me deter neste aspecto no desenvolvimento da exegese. 213 Este é o primeiro de três imperativos que aparecem nesta frase: “vinde” Wkl leku, “para que comam”

[Wmx]l; lahamu‘ “e bebam” Wtv.W u-xtu. Esta forma literária parece indicar que há uma urgência na comunicação do convite. 214 Em primeiro lugar, o convite é para a vida, pois esta é uma conseqüência da participação neste banquete

oferecido pela sabedoria mulher: “e vivereis” Wyx.wi vi-heu. Há, ainda, outro imperativo que pede

mudança: “abandonai” Wbz.[i‘izebu os simples e “andai pelo caminho do entendimento”, ou “pelo caminho interior”. Confira Judith McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.46. 215 Nos 6 versos que seguem, há uma aparente quebra no texto. O enlace destes mexalim com o resto do capítulo 9 encontra-se nos termos usados, ou melhor, no seu campo semântico. O primeiro termo deste bloco é rsy ysr que já encontramos e comentamos no v.4, um termo muito comum no vocabulário sapiencial. 216 A raiz lyƒ tem o significado de “tagarela”, “arrogante”, “insolente”, “escarnecedor”. Confira Dicionário hebraico-português & aramaico-português, de Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir

Raymann, Rudi Zimmer, p.112. Para Luis Alonso Schökel, #yl lyz como particípio substantivado tem o significado de “intérprete” (Gn 42,23); ou “embaixa dor” (2 Cr 32,31) e também de “advogado” ou “mediador” (Jó 33,23). Parece ser um termo intencionalmente ambíguo. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.344. 217 A expressão !Alq' Al lo qalon significa: “atrair insultos”. Este é um verbo complicado, que pode ser modificado pelo sujeito, pelos seus complementos, regime e modalidade. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.347. 218 Este é o hifil de xky ikh, um verbo difícil de definir em seu conteúdo semântico. No hifil, tem o significado de uma ação verbal encaminhada ao convencimento da outra parte, dentro de um debate. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.276. 219 O termo [v'är' raxa‘ significa “malvado”, “perverso”, “depravado”, “imoral”, “desonesto”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p. 634

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9 Dá ao sábio e será mais sábio

Dá a conhecer ao justo e aumentará seu discernimento.220

10 (O) começo221 (da) sabedoria (é o) temor de Javé

e o conhecimento do santo é inteligência.

11 Eis que por mim se multiplicarão teus dias

e acrescentarão a ti anos de vida.222

12 Se és sábio, és sábio para ti,

e se zombas, tu somente (serás) prejudicado.223

13 Mulher insensata,224 agitada,225 ingênua226

220 O termo xq;l, leqah significa “doutrina”, “ensinamento”. Este termo aparece em Pr 4,2, tendo Javé como sujeito. Nestes mexalim o sujeito está indefinido. Pode ser um sábio, o pai, a mãe ou alguém que se sinta responsável de passar um conhecimento que leve à vida. 221 Embora esta frase tenha seu paralelo em Pr 1,7, nota-se uma diferença na sua forma e no seu conteúdo. Em Pr 1,7 o termo usado para indicar a importância do temor de Javé e sua relação com a sabedoria tyvare rexit que tem o sentido de “primeiro”, “primário”, “o melhor”, “princípio”. Em Pr 9,10 o termo usado é tL;xiT. tehilat com o sentido de “começo”, “início” como em Os 1,2 : “começo das palavras” e em Rt 1,22: “começo da colheita de cevada”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português , p.601 e

700. Parece que a frase em Pr 9,10 está se referindo ao caminho que leva à “sabedoria” hm'k.x' hokmah e

ao “conhecimento” hn'yBi binah, sendo o temor de Javé o começo deste caminho, enquanto que em 1,7 há um sentido de valorização: o temor de Javé é o mais importante para quem quiser obter sabedoria e conhecimento. 222 Esta frase tem um paralelo em Pr 3,2 onde se encontra a promessa de prolongamento da vida, com a diferença de que além de aumentar os dias de vida, em 3,2 quem guardar os mandamentos e conselhos dos pais recebe, também, a promessa da paz. Mas, qual é o sujeito da frase em Pr 9,11? Quem se oculta e se revela através da expressão “eis que por mim se prolongarão seus dias”? Dentro do campo semântico do poema, parece ser a sabedoria. Mas, aqui, no cap. 9, não se trata de um poema revelatório em 1ª pessoa, como em Pr 8, mas em 3ª pessoa. Será um mestre da sabedoria que está prometendo vida longa a quem lhe der ouvidos? De todos modos, por trás do poema encontram-se aspectos da teologia da retribuição. 223 O verbo aF'ti tisa’ que traduzi como “serás prejudicado” vem da raíz afn ns’ e tem o significado de “carregar”, “levar”, “transportar”, “levantar”. Uma tradução mais literal da frase seria: “se és arrogante, somente tu o levarás”. Aqui aparece o contrário da retribuição ou uma afirmação desta? Fecha-se aqui, o

grupo de mexalim, repetindo duas vezes o termo T'm.k;x' hakameta “tornar-se sábio” e voltando ao termo

#le lez, da raiz #yl lyz, com o significado de “arrogante”, “insolente”, “escarnecedor”. A proposta da sabedoria mulher é que seus ouvintes deixem de ser arrogantes e se tornem sábios. 224 Esta palavra deriva de lysiK. kesil, que tem o sentido de “néscio”, “idiota”, “ignorante”. Sua distribuição na Bíblia Hebraica é significativa, aparecendo 70 vezes, sendo que 49 delas se encontram no livro dos Provérbios. Mas, na seção de Pr 1-9 este termo só aparece 4 vezes e a sua forma feminina, usada juntamente com a palavra mulher aparece apenas aqui, em todo o texto massorético. Confira M. Sæbø, em kesil, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, col.1144-1147. 225 O termo hY'miho homiyah só aparece aqui (Pr 9,13) e em Pr 7,11, onde se afirma que “ela é agitada e rebelde”. O significado desta nova metáfora não se esgota na comparação entre a mulher insensata e a mulher estranha ou estrangeira de Pr 7. Voltarei a este tema no capítulo 4 desta tese.

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e não conhece nada

14 e senta-se à porta de sua casa,

num assento em lugares altos227 da cidade,

15 para chamar aos que passam de caminho,

aos que vão retos em suas sendas228.

16 Quem (é) ingênuo, entre aqui,

e ao sem coração lhe diz229:

17 águas roubadas230 são doces

e pão escondido231 é saboroso.

18 Porém, não sabe que sombras (estão) ali,

nas profundezas do xeol (estão) seus convidados.232

2.3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna

226 O termo tWYt;P. petaut , no feminino, só aparece aqui. No masculino, porém, faz parte do vocabulário sapiencial. No cap. 9 de Pr, este termo aparece nos v.4 e 16 como um antônimo de prudência, cautela e sagacidade, qualidades muito imp ortantes para o sábio. 227 O termo “em lugares altos” ymerom. merome aparece somente em Pr 9,3.14. 228 Aqui a comparação mostra exatamente o oposto. Enquanto a sabedoria mulher convida os “ingênuos” e “sem coração” (v.4), isto é, àqueles que não conhecem o caminho da vida, a mulher insensatez chama a quem “anda por caminhos retos” (v.15). 229 Esta frase está literalmente repetida no v.4, apresentando um contraste com a sabedoria mulher. Analisarei esta comparação no trabalho exegético. 230 Embora o termo ~yIm; mayim apareça 254 vezes na Bíblia Hebraica , a expressão “água roubada” ~ybiîWnG>-~yIm; mayim-genubim aparece unicamente aqui, em todo o texto massorético. Confira Bible Works version 5.0, distributed by Hermeneutika http://www.bibliworkes.com. 231 Alguns qualificativos ao pão podem ser encontrados na Bíblia Hebraica. No livro dos Provérbios,

encontramos “pão de engano” ~ybi(z"K. ~x,l, lehem kezabim (23,3); “pão de ociosidade” tWlc.[; ~x,l, lehem ‘azlut (31,27); “minha porção de pão” yQixu ~x,l, lehem huqi (30,8) e este qualificativo de

“pão às escondidas” ~yrit's. ~x,l, lehem setarim (9,17) de nosso texto. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.342. 232 O final do cap. 9 e da primeira seção do livro dos Provérbios é sombrio. Ao afirmar que os convidados da mulher insensata estão nas profundezas do xeol, o texto faz uma ligação clara entre ela e a morte. Este é o triste fim de quem aceita seu convite. Mas, ao mesmo tempo, o texto resgata a imagem da sabedoria mulher, pois “quem a encontra, encontra a vida” (8,35a).

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O capítulo 9 de Provérbios é formado por três subunidades literárias bem

delimitadas. Cada uma possui 6 versos e a primeira subunidade (1-6) está em

correspondência direta com a terceira (13-18). Para mostrar esta correspondência, analisarei

primeiramente as duas subunidades que se correspondem, para, em seguida, buscar a

relação da segunda (7-12) com as demais e descobrir a coesão interna do texto.

Pr 9,1-6

Este poema está delimitado pela figura da sabedoria mulher, introduzida pelo termo

hokmot,233 cujo plural majestático cria um ambiente especial para sua intensa atividade. No

v.6, a expressão “e andai pelo caminho do entendimento” hn'yBi %r,d,B. Wrv.aiw. ve-’xeru derek binah fecha esta subunidade. No interior do poema, a importante e dinâmica

ação da hokmot é apresentada através de 7 verbos no feminino singular:

“edificou” ht'n.B' bantah sua casa

“lavrou” hb'c.x' hazbah suas sete colunas

“matou” hx'b.j' tabhah seus animais

“misturou” hk's.m' maskah seu vinho

“pôs” hk'r>[' ‘arkah sua mesa

“enviou” hx'l.v' xalhah suas criadas

“clama” ar'q.ti tiqra’ nas alturas da cidade

Alguns aspectos chamam a atenção nesta subunidade: o primeiro é que os

substantivos correspondentes à ação da sabedoria têm todos o possessivo em feminino,

menos na última frase, pois nos encontramos diante de um complemento adverbial de lugar

e não de algo que se possa possuir. Também não está claro se o verbo “clama” se refere à

233 Como vimos em 1,20, hokmot é um plural majestático, já que os verbos estão todos no feminino singular. As versões Septuaginta, Vulgata e Peshita também entenderam hokmot como singular. Veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic Proverbs? Concerning the Hellenistic Colouring of LXX Proverbs, p.249.

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sabedoria ou às suas criadas. Como o verbo “clama” ar'_q.ti tiqra’, está no qal,

imperfeito, feminino, singular, entendo que este verbo se refe re a uma ação da sabedoria,

do contrário, estaria no plural ou no imperativo.

A presença do número sete, tão significativo na linguagem simbólica do povo judeu,

deve acrescentar algum significado a este texto. A sabedoria constrói sua casa com sete

colunas ou pilares. Sete verbos seguidos descrevem a sua ação. Este recurso parece chamar

a atenção para a completude ou perfeição da atividade realizada pela sabedoria mulher. Há

uma ênfase em toda a preparação que ela realiza (v.1-2) antes de chamar os convidados

para o banquete (v.3). Importante, também, é observar quem são os seus convidados (v.4).

Tanta preparação poderia levar à suposição de que seriam nobres e governantes. Mas o

convite é para “ingênuos” ytip, peti e “sem coração” ble-rs;x; hasar-leb.234 Aliás, o

convite é aberto, anunciado nos lugares públicos (v.3). Realmente, há algo de inusitado

neste convite.

Há, ainda, uma relação entre a preparação do banquete e o culto. Judith E. Mckinlay

observa que “o abate do gado no v.2 pode muito bem trazer isto em mente”. Mas, ela

mesma descarta esta possibilidade, lembrando que o verbo hx'b.j' tabhah não tem este

significado: “Contudo, ‘o abate’ nem em sua forma verbal, nem mesmo com a associação

de nomes, implica necessariamente o contexto do culto.”235 A associação deste verbo com o

culto aparece mais claramente no texto grego. A comparação com a Septuaginta levou-nos

a perceber que o verbo usado para traduzir hx'b.j' é sfa,zw, uma palavra que no livro

dos Provérbios aparece somente esta vez. No entanto, ela é usada muitas vezes no livro do

Levítico, no contexto do sacrifício de animais.236 Neste caso, a versão dos LXX entendeu

que havia em Pr 9,2 um transfundo cultual no banquete da sabedoria mulher, embora esta

alusão não seja clara no texto massorético.

234 Este termo que pode ser entendido como “carentes de entendimento ou conhecimento” ou “sem sentido” para viver. 235 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.123. 236 O verbo sfa,zw é usado, inclusive, no contexto de sacrifício de crianças (Ez 16,21; 23,39). Esta é uma questão bastante discutida entre os estudiosos. Veja Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic Proverbs?, p.250s.

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Três imperativos mostram a importância e a urgência de atender a este convite feito

pela sabedoria mulher:

“vinde” Wkl. leku

“para que comam do meu pão” ymix;l;b. Wmx;l. le-hamu be-lahami

“e bebam do vinho que misturei” yTik.s'm' !yiy;B. WtvIW vu-xetu be-yayin

masaketi

O convite tão bem preparado e urgentemente comunicado supõe a mudança de vida

de quem o aceita: “abandonai (os) ingênuos e vivereis”. A promessa de vida aparece aqui

como a oferta maior, como o objeto de todo o trabalho da sabedoria. É a existência 237 que

ela oferece a quem participar do seu banquete. Mas, afinal de contas, a sabedoria está

oferecendo vida? Ela é capaz de dar vida? Surge aqui uma forte indicação de que esta

figura ou metáfora tem muito a ver com o Deus de Israel, ao mesmo tempo em que faz

memória das Deusas que eram cultuadas no Antigo Israel para a obtenção da fertilidade da

terra, para a garantia da vida. A frase final: “e andai pelo caminho que leva ao

entendimento” hn'yBi %r,d,B. Wrv.aiw.i ve-’ixeru be-derek binah não somente

fecha este poema, mas pode indicar que a própria sabedoria é “o conteúdo deste dom” 238.

Resta-nos, agora, propor uma estrutura para esta primeira subunidade, antes de

passar a examinar a terceira, como anunciamos no início.

v.1-3 – Apresentação da sabedoria mulher e de sua atividade

v.4 – Primeiro convite da sabedoria mulher: para que a escutem

v.5 – Segundo convite: para comer e beber

v.6 – Seguir o caminho da sabedoria é condição para viver

237 O verbo hyx tem o sentido de ser, existir, acontecer, estar. 238 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.48.

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Pr 9,13-18

Nos v.13-18, encontramos uma imitação do poema inicial. Não é exatamente uma

réplica, porque além das semelhanças, há também várias diferenças. Mas, a imitação é

claramente intencional. Quem se apresenta neste poema é a mulher insensata.239 Outro

adjetivo para identificá-la é “agitada e rebelde” hY'miho homiyah um termo que só

aparece aqui, em Pr 9,13 e em 7,11, onde se refere à mulher estranha ou estrangeira. O

texto faz questão, ainda, de afirmar que ela é “ingênua e não sabe nada”. O v.14 a apresenta

sentada nas alturas da cidade, em um ponto bastante estratégico para chamar os que passam

no caminho. Seu público é o mesmo da sabedoria mulher. Não está claro se o autor quer

fazer um contraste com a figura apresentada em 9,1-6, para colocá-la em evidência ou se

quer ridicularizá-la. É necessário fazer um exame das semelhanças e diferenças entre as

duas para chegar a alguma conclusão.

Sabedoria Mulher Mulher insensata Ela é ativa e eficiente na construção e administração de sua casa. Sete verbos seguidos mostram sua competente atuação (v.1-3)

Ela é insensata e não entende nada. Está sentada à porta de sua casa, sem realizar coisa alguma (v.13-14)

Envia suas criadas aos pontos estratégicos da cidade para convidar a quem está necessitado de sabedoria.

Fica à espera de quem passa pelo caminho para fazer-lhes seu convite. Seus convidados não são aqueles que necessitam de aprender a viver, mas os que andam por caminhos retos (v.15)

Prepara um banquete com carne e vinho (v.2) e, depois, convida para comer pão e beber vinho que ela mesma preparou (v.5)

Convida para beber água roubada e comer pão escondido (v.17)

Como conseqüência da aceitação do seu

A aceitação do seu convite tem como

239 Literalmente, “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut . A forma feminina de lysiK. kesil unida à palavra mulher aparece somente neste texto, embora o masculino seja muito comum nos textos sapienciais.

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convite, as pessoas superam a carência de discernimento e encontram a vida (v.6)

conseqüência a morte (v.18)

Embora este quadro tenha mostrado algumas diferenças e também semelhanças

construídas literariamente entre a sabedoria mulher e a mulher insensata, não é possível

ainda chegar a uma conclusão sobre a intencionalidade do editor (ou editores) de Pr 9, ao

apresentar esta comparação entre as duas figuras. Se olharmos para o interior da seção 1-9,

vamos encontrar alguns paralelos entre a “mulher estranha” hr'z' hv'ai ’ixah zarah (2,16) e

a “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut (9,13). As duas conduzem à

morte (2,18; 5,5; 7,27; 9,18). Estes paralelos levaram vários autores, entre eles Luís Alonso

Schökel e José Vilchez Líndez a encontrar no convite da mulher insensata para beber água

roubada e comer pão escondido (9,17) uma sedução sexual. “Ela é a mulher alheia, a

rameira que perverte com sua sedução.”240 Segundo Judith E. Mckinlay, as conotações

sexuais são evidentes neste texto, porém é possível encontrar nele a sugestão de Deusas

estrangeiras ligadas ao poder de destruir, como Ixtar e a assíria babilônica Kilili, cuja

destruição é atestada na mitologia.241 Sem descartar a possibilidade de que a mulher

insensata esteja ligada à mulher estranha ou estrangeira,242 ou à mulher alheia, gostaria de

apontar, também, para uma proposta de relações sociais escondida na simbologia do texto.

No interior da primeira seção de Provérbios (1-9), encontramos uma séria crítica à

mulher estranha ou estrangeira como sedutora e capaz de levar à morte. Há, também, uma

crítica, ainda que velada, à relação dos homens com as mulheres. Recomenda-se aos

homens que não se deixem seduzir pela mulher casada (2,16-19; 5,2-23; 6,24-27; 7). Por

que haveria necessidade de tanta recomendação? O que estaria acontecendo na vida real das

famílias, nas relações entre homem e mulher, para que tão insistente ensinamento se fizesse

necessário?243

240 Luis Alonso Shökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.246. 241 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57. 242 No capítulo 4 deste estudo, farei uma investigação mais detalhada da relação entre estas figuras. 243 Farei uma investigação sobre estas relações no capítulo 4 desta tese.

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A intenção claramente pedagógica destes textos leva -me a perguntar se não haveria

também uma crítica à falta de partilha concreta de pão, em uma época de tirania e de fome.

O convite da mulher insensata para “comer pão escondido” e “beber água roubada” sempre

foi interpretado como um sentido simbólico de um convite para relações ilícitas dentro da

cultura da época, talvez pela ligação direta com os textos citados acima. Partindo, também,

da vida concreta do povo de Judá, pode estar presente neste convite uma crítica àqueles e

àquelas que comiam e bebiam ocultamente, para não ter que partilhar.

Mas, é necessário voltar ao texto e ver mais de perto a estrutura de Pr 9,13-18:

v.13-14 – Apresentação da mulher insensata e do lugar que ocupa

v.16 – O convite da mulher insensata para que a escutem244

v.17 – Um convite sedutor e intrigante

v.18 – A conseqüência da aceitação do seu convite é a morte.

Pr 9,7-12

Os versos v.7-12 estão no centro do capítulo 9. São exatamente 6 versos soltos, que

podem ter sido colocados ali para preparar a inserção da figura contrastante da mulher

insensata, que aparece nos v.13-18. Poderíamos presumir que se trata dos destinatários de

ambos os convites. Porém, o termo “zombador” #le lez, cuja raiz é #yl lyz, não apareceu

no primeiro poema (1-6) e nem vai aparecer no segundo (13-18). Este personagem aparece

somente nesta parte central. O termo está repetido 2 vezes nos v.7a e 8a, fazendo uma

moldura para a figura do “malvado” ou “ímpio” [v'r' raxa‘, no v.7b.

corrige o zombador (v.7a)

repreende o malvado (v.7b)

não repreendas o zombador (v.8a)

244 Exatamente igual ao da sabedoria mulher no v.4

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A forma elaborada destes 2 versos dá a entender que não há possibilidade de

mudança para o arrogante. Corrigi- lo ou repreendê-lo seria um trabalho inútil. Mas,

também, não vale a pena admoestar o “malvado” [v'r' raxa‘. Este termo que possui muitos

sinônimos e antônimos em toda a Bíblia Hebraica, pelo seu significado genérico. Na

primeira seção do livro dos Provérbios aparece 9 vezes. Portanto, não é uma novidade que

apareça aqui com esta perspectiva de que não vale a pena repreendê- lo. Este termo faz

oposição ao “sábio” ~k'x' hakam a palavra mais repetida nesta subunidade. Ela aparece 5

vezes em Pr 9,7-12 (1 vez no v.8; 2 vezes no v.9, 2 vezes no v.12).

No v.8 há uma clara antítese entre zombador e sábio. No v.9, o sábio é comparado

ao justo. Portanto, aqui sabedoria se liga à justiça, como em Pr 8. O v.10 traz um aspecto

importante da teologia de provérbios: “o principal da sabedoria é o temor de Javé”. Este é

um refrão que aparece em 1,7. 29. O v.11 parece estar completamente solto, nesta perícope,

e ligado à primeira unidade pela promessa de vida que apresenta (confira v.6), e para

completar os 6 versos que formam a estrutura de cada subunidade.245 O verso 12 fecha esta

subunidade com uma comparação entre sábio e zombador e, ao mesmo tempo, faz a

delimitação do poema intermédio de 9,7-12. Ele fecha esta subunidade com a frase: “se

zombas, tu somente serás prejudicado” (v.12b). Com a expressão “e se zombas” T'cl;w>

ve-lazeta (cuja raiz é #yl), volta-se ao começo, pois o v.7 foi introduzido com o termo

“zombador” #le,, da mesma raiz.

Desta maneira, a estrutura literária de Pr 9,1-18, embora um pouco forçada, ficaria

assim:

v.1-6 – Apresentação da sabedoria mulher, que oferece gratuitamente a vida

v.7-12 – Antíteses entre zombador/malvado e sábio/justo

v.13-18 – Apresentação da mulher insensata, cujo convite leva à morte

245 Uma das ligações internas do capítulo 9 de Provérbios é feita pela estrutura de cada subunidade, formada de 6 versos cada uma.

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De maneira geral, a estrutura da subunidade central é bastante complicada. Nota-se

que alguns elementos foram adicionados de maneira forçada para manter o ritmo de 6

versos em cada subunidade do cap. 9 de Provérbios. Enquanto o v.11 está solto, em relação

ao campo semântico deste poema, o v.12 usa uma linguagem direta, na 2ª pessoa do

singular, quebrando a unidade literária de ensinamentos abertos, feitos através de mexalim

próprios do gênero literário do livro.

A apresentação da sabedoria mulher na primeira parte do texto (Pr 1-6) chama a

atenção por sua beleza e pela riqueza de sentidos que evoca. Ela age com autonomia ao

construir sua casa e preparar seu banquete. A sabedoria mulher tem poder para oferecer a

vida a quem acolhe suas palavras, abre-se ao seu convite e participa do seu banquete.

Mas, a força desta imagem parece ter sido controlada pelos versos que formam a

segunda parte do capítulo (7-12), sobretudo pelo v.10, que a coloca dentro do encaixe

javista do “temor de Javé”. Esta subunidade é bastante forçada e parece ligar-se ao corpo do

texto através da estrutura dos 6 versos, já que o poema do capítulo 9 tem 18 versos,

distribuídos em 3 estrofes, de seis versos cada uma. Outra ligação de 7-12 com o resto do

capítulo encontra-se nas antíteses entre sábio/justo e zombador/malvado.

Na terceira parte do capítulo 9, (v.13-18), encontra-se uma oposição à figura da

sabedoria mulher, através da mulher insensata que também se encontra em um lugar alto,

onde está sentada na porta de sua casa. Ela faz um convite e oferece comida aos que passam

no caminho. Há claramente a intenção de construir um paralelismo, inclusive há uma

repetição literal dos destinatários de ambos os convites: “os ingênuos venham para cá,

quero falar aos sem juízo” (v.4 e v.16). Mas, enquanto os convidados da sabedoria mulher

recebem a vida como recompensa da sua aceitação (v.6), os convidados da mulher

insensata são levados ingenuamente ao encontro da morte (v.18).

2.3.3 – Gêneros literários

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No capítulo 9 de Provérbios, encontramos um poema com três estrofes de seis

versos cada uma. No exercício de análise deste texto, ficou muito evidente o esforço dos

editores para elaborar estas estrofes com o mesmo número de versos, para que houvesse a

percepção clara de uma correspondência entre elas, sobretudo entre a primeira (v.1-6) e a

terceira (v.13-18). Mas, uma cuidadosa comparação não se limita à forma do poema. Outro

recurso utilizado são as comparações entre a primeira e a terceira estrofes e a função desta

forma literária.

A sabedoria mulher e a mulher insensata falam a partir da casa:

v.1 - a sabedoria construiu sua casa

v.14a – a mulher insensata senta-se à porta de sua casa

As duas figuras femininas ocupam os lugares altos da cidade:

v.3 – clama nos pontos que dominam a cidade

v.14b – em um assento que domina a cidade

Os destinatários dos convites de ambas são os ingênuos e carentes de entendimento:

v.4 – “os ingênuos venham para cá, quero falar aos sem coração”

v.16 – “os ingênuos venham para cá, quero falar aos sem coração”

Também podemos encontrar paralelismos ou comparações, como o da comida e da

bebida, embora com algumas diferenças entre a primeira e a terceira estrofe. No v.2, a

sabedoria mulher prepara um banquete com carne e vinho, mas no v.5 ela convida para

“comer pão” e “beber vinho”. No entanto, a mulher insensata convida para beber “água

roubada” e comer “pão escondido” (v.17). Estas diferenças ajudam a perceber que a

construção desta comparação é forçada e leva-me a perguntar se a estrofe inicial (v.1-6)

não seria mais antiga, exigindo um esforço na elaboração de elos que ligassem a segunda

figura com a primeira. Mas, qual seria a intenção dos editores deste texto ao fazer uma

comparação entre a sabedoria mulher e a mulher insensata?

Há outra comparação que pode ajudar-nos a perceber a intencionalidade deste texto:

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a sabedoria mulher oferece vida (v.6)

a mulher de insensatez conduz à morte (v.18)

Esta comparação antitética ajuda a perceber a intencionalidade do texto e leva seus

destinatários a avaliar e a discernir as conseqüências da aceitação de cada convite. Quem

vai ao encontro da mulher sabedoria e a acolhe, participando de seu banquete, terá a vida.

Quem deixa o caminho reto e aceita o convite da mulher de insensatez, caminhará para a

morte. Esta comparação ajuda-nos também a perceber uma das intenções do editor (ou

editores) é oferecer um ensinamento que leva à vida. Mas percebe-se que este ensinamento

está carregado de visões preconceituosas sobre a mulher. Portanto, faz-se necessário

continuar a investigação sobre cada uma dessas figuras.

2.3.4 – Uma visão mais clara da sabedoria mulher

A sabedoria mulher é apresentada em Pr 9,1-6 com traços de uma mulher

competente, que constrói sua casa e prepara com perfeição um banquete. O plural

majestático hokmot a introduz com força e beleza. Sua ação é apresentada de forma

dinâmica, através de sete verbos. A sabedoria toma iniciativas e trabalha para que seus

hóspedes sejam bem recebidos e não lhes falte nada. É curioso observar que o alimento

preparado não é pão, como aparece no v.5, mas carne em abundância. Seus convidados são

pessoas simples e carentes e, neste aspecto, há algo de inusitado em seu convite. Parece

extraordinário observar a sabedoria mulher tomando tempo para preparar cuidadosamente

um banquete que se destina aos simples e carentes. Vemos, então, que este texto tem duas

dimensões: ele parte da vida real de uma mulher competente, talvez semelhante àquela de

Provérbios 31,31, cuja “obras são louvadas nas portas da cidade”, e ao mesmo tempo, está

apresentando uma proposta de novas relações sociais.

Os três imperativos usados para fazer o convite ajudam a perceber o sentido

simbólico do texto: “venham”, “comam” e “bebam”! Está claro que o convite é para vir em

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direção a ela, à sabedoria mulher; para comer do seu pão e beber do vinho que ela preparou.

Mas, tem um dom muito maior escondido por trás destes imperativos para vir, comer e

beber. O convite tão bem preparado e urgentemente comunicado supõe a mudança de vida

de quem o aceita: “abandonai (os) ingênuos e vivereis”. A promessa de vida aparece aqui

como a oferta principal, como o objeto de todo o trabalho da sabedoria. O dom maior é a

vida que ela oferece a quem participar do seu banquete. No entanto, este poder de dar vida

é um atributo da divindade. Se Pr 9,1-6 apresenta a sabedoria mulher com este poder de dar

vida é porque está usando este símbolo para falar de Javé. Ao mesmo tempo, a linguagem

do símbolo está enraizada na memória das Deusas que foram cultuadas no Antigo Israel

como doadoras da vida. Mas, não é somente a vida que a sabedoria mulher oferece. A frase

final desta perícope: “andai pelo caminho que leva ao entendimento” (v.6) indica que a

própria sabedoria é um dom, que está sendo oferecido gratuitamente a quem aceitar seu

convite.246

Há, ainda, uma outra mulher neste capítulo. É a mulher insensata de 13-18. Quem

representa esta mulher? Ela é a mulher alheia, autônoma, prostituta, estrangeira? Há muitas

referências ambíguas à mulher dentro da seção de Provérbios 1-9 (2,16-19; 5,2-23; 6,7-27;

7). No entanto, o termo “mulher insensata” tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut aparece

somente em 9,13, mas as referências a esta mulher dentro da unidade (9,13-18) a ligam com

outras mulheres suspeitas dentro da unidade literária formada pelos capítulos 1-9. Farei

uma investigação sobre estes rostos contrastantes da mulher suspeita, no capítulo 4 desta

tese. Neste item, quero assinalar, apenas, o contraste que Pr 9,13-18 apresenta e verificar se

o rosto da mulher sabedoria é modificado pela sua comparação com a mulher insensata.

Segundo Judith Mckinlay, o contraste entre sabedoria e insensatez “é o contraste entre

ordem e desordem” e o emprego consciente do código de gênero deve levar a uma revisão

do processo de leitura, para ouvir o eco distante de uma Deusa poderosa como Aserá, com

poder de oferecer tanto a vida como a morte sem a mediação de qualquer autoridade. 247

246 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.56 247 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.74

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2.4 – O contexto de Provérbios 1,20-23; 8 e 9

Situar Provérbios 1-9 no final da época persa parece ser uma opção bastante lógica,

como foi argumentado no primeiro capítulo desta tese. Para compreender melhor o

contexto desse período, retomo uma citação de Antonius H. J. Gunneweg. Segundo esse

autor, na época persa “não existia um judaísmo como grandeza uniforme, assim como

tampouco existiu um Israel uniforme em tempos anteriores”248. Parece que a situação de

enfraquecimento do império persa, ocasionado pelas prolongadas guerras contra egípcios e

gregos, assim como as diferentes tendências internas ao judaísmo, criaram um espaço que

permitiu uma revisão do discurso sobre Deus, presente na imagem da sabedoria mulher,

sobretudo no poema de 8,22-31.

Neste contexto, podemos identificar a casa ou o clã como a fonte principal da

sabedoria, que surge da experiência, iluminada pela tradição religiosa e a reflexão. Não há

dúvida de que o intercâmbio com outros povos, através das diásporas, do comércio e dos

casamentos foi enriquecendo a sabedoria de Israel, que na sua evolução histórica

desenvolveu dois tipos de sabedoria: a sabedoria popular que vinha do chão da vida das

famílias, a partir da observação e da luta pela sobrevivê ncia; e a sabedoria da corte, durante

a monarquia, que teve sua continuidade nas escolas dos sábios, no pós-exílio. Estes

buscavam um sentido para o desastre que representou o exílio da Babilônia para a vida e a

teologia de Israel. Ao mesmo tempo, as escolas de sábios buscavam elaborar um

conhecimento que pudesse dar assessoria e legitimidade aos governantes. Tanto a sabedoria

da casa, como a palaciana, ou oficial, sempre foram influenciadas pela sabedoria dos povos

vizinhos.

248 Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel – Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até nossos dias, São Paulo: Loyola, 2005, p.241.

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99

A ausência de um governo que centralizasse a economia, a política e a religião

possibilitou um maior espaço na organização e administração da casa, espaço onde as

mulheres tinham liderança e autoridade. É esta liderança que aparece refletida nos símbolos

da mulher sábia (Pr 31) e da sabedoria mulher (Pr 1; 8 e 9) que se esclarecem e se iluminam

mutuamente. Por trás dos símbolos está a vida concreta de mulheres profetisas, sábias,

administradoras de suas casas. Também há, segundo Judith E. McKinlay, um substrato de

memória da Deusa Aserá.249 É no ambiente da casa, onde com sabedoria se enfrentam as

situações cotidianas ou inesperadas que ameaçam a vida, que se redefine a realidade e os

conceitos religiosos. Na casa se realizam ritos que garantem a colheita, a saúde, a vida. É

neste contexto que foi surgindo a figura da sabedoria mulher, carregada de história e

apontando para um horizonte novo.

É dentro desta perspectiva que situamos a redação de Pr 1-9 nas últimas décadas do

período persa, no contexto das grandes vitórias alcançadas pelo império grego no Oriente e

pela decadência do império persa. Talvez tenha existido nessa época um período de maior

liberdade, quando a Judéia chegou a ser um estado teocrático, com moeda própria.250

Parto da convicção de que um texto bíblico brota da vida, descrevendo uma

realidade e apontando caminhos de superação. É o que indica Silvia Schroer quando afirma

que “para fazer uma exegese feminista é necessário que nos perguntemos sobre a história

das mulheres judias, como se situavam naquele momento, o que estavam exigindo e quais

as suas buscas concretas de libertação”251. Esta é minha postura ao buscar identificar a

trama religiosa e social que se revela e se oculta por trás do texto de Pr 1-9. Concentro a

atenção na vida das mulheres do período pós-exílico, sobretudo nas relações de poder

subjacentes ao texto e projetadas nas relações com a divindade.

249 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.39. 250 Encontraram-se dracmas com a inscrição YHD, por volta de 350 a.C. Conferir Bíblia de Jerusalém, p.2338. 251 Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, p.543.

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Pr 1-9 nasce como uma reação frente ao centralismo e às exclusões.252 É

interessante observar que em Pr 1-9 não há qualquer alusão à circuncisão, ao sábado, ao

templo e ao sacerdócio. É uma reflexão que nasce da vida, buscando caminhos de

superação. Diante de problemas concretos da vida das famílias, no pós-exílio, a reflexão foi

crescendo. Uma tradição carregada de mito e de história foi iluminando o processo, até

desembocarem na composição dos poemas que hoje fazem parte da moldura do livro dos

Provérbios (1-9 e 31,1-31). Esta reflexão está relacionada ao processo histórico vivenciado

pelas mulheres de Judá, desde a revisão teológica feita durante o exílio da Babilônia; o

projeto centralizador do grupo de sacerdotes zadoquitas em torno ao templo de Jerusalém;

os esforços de reconstrução de Neemias (443) e Esdras (398), com suas exigências de

pureza ritual em relação ao corpo da mulher visto como impuro e às tentativas de exclusão

da mulher estrangeira, culpabilizada pela situação de empobrecimento e desorientação do

povo no pós-exílio.

Se, por um lado, Esdras culpabiliza as mulheres estrangeiras da extrema situação de

pobreza na qual se encontra o povo no pós-exílio, insistindo também na realização de um

culto estritamente monoteísta, por outro lado, há uma reação que se expressa em uma

riqueza de vivências e símbolos, criando no pós-exílio um espaço subterrâneo para a

formação de reflexões que partem da vida e das experiências das mulheres no cotidiano das

suas lutas e de suas expressões religiosas. “O mundo das mulheres, depois do exílio,

mostra-se de forma extraordinária no livro de Rute e até certo ponto também em Ester”253.

Alguns aspectos desta nova mentalidade expressam-se também no livro de Jonas, que

apresenta uma imagem de Deus muito bem humorado e aberto aos povos estrangeiros.254 O

livro do Cântico dos Cânticos, com sua visão deslumbrante e integradora dos corpos e do

amor e a novela do livro de Jó, com seus questionamentos sobre teologia da retribuição,

também fazem parte deste movimento contestatório, frente à tendência de fechamento da

elite sacerdotal que estava no poder, durante o período persa.

252 Muitos outros textos foram escritos nesta época para expressar uma reação a posturas e políticas excludentes. Cito Rute, Jonas, Cântico dos Cânticos e Jó, entre outros. 253 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen,p.27. 254 Para entender melhor esta perspectiva, leia Nelson Kilpp, Jonas.

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Recentemente, Fokkelien van Dijk-Hemmes indicou que o livro de Rute pode ter se

originado em uma cultura de mulheres, justificando que “esta hipótese de uma cultura de

mulheres tem sido proposta por antropólogos, sociólogos e historiadores da sociedade, a

fim de estabelecer um elo entre as experiências culturais primárias como expressas por

mulheres”255. Baseando-se em Showalter, Fokkelien estabelece alguns critérios para

reconhecer a voz feminina que fala em determinados textos,256 chamando a atenção para a

substituição do termo “casa do pai” por “casa da mãe” como uma indicação de que o texto,

no caso Ct 3,4; 8,2, provém de uma “cultura de mulheres”. É significativo encontrar esta

expressão “casa da mãe” em Pr 31,21 que pode indicar um substrato da cultura de mulheres

na moldura colocada pelo editor às coleções que fo rmam o livro dos Provérbios. Segundo

Fokkelien van Dijk-Hemmes uma cultura de mulheres significa uma “cultura feminina

subterrânea, na qual as mulheres ‘redefinem’ a realidade baseadas em suas próprias

perspectivas”257. Uma realidade que transparece em Pr 31,10-31 e que recebe o seguinte

comentário de Elisabeth Schüssler Fiorenza: “ainda que o louvor da perfeita “dona” de casa

se faça a partir de um ponto de vista masculino, se evidenciam sua iniciativa econômica e

sua perspicácia para os negócios”258.

Citando Campbell, Fokkelien lembra, também, que uma tradição de sábias mulheres

contadoras de histórias foi se formando a partir da participação de sua audiência

predominantemente feminina e ativamente engajada.259 Se isto é assim, podemos afirmar

que a metáfora da sabedoria mulher surge como expressão de uma nova visão da mulher e

do homem em suas relações diárias, em sua visão do trabalho e como expressão da sua

experiência religiosa. A uma antiga visão da mulher dominada pelo marido (Gn 3,16b) é

superada, porque a situação sócio-econômica e religiosa possibilitou que as mulheres do

interior de Judá desenvolvessem sua perpicácia para os negócios e tomassem as iniciativas

255 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, Rute a partir de uma leitura de gênero, Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2002, p.180. Neste texto a autora comenta entre parêntesis que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é predominante o androcentrismo de teorias e estruturas de interpretação. 256 Para um maior conhecimento destes critérios leia Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, p.181-183. 257 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: P roduto de uma cultura de mulheres?”, p.183. 258 Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los orígenes del cristianismo , Bilbao: Desclée de Brouwe, 1989, p.150. 259 Confira Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute: Produto de uma cultura de mulheres?”, p.185.

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necessárias para levar a bom termo a realização das atividades necessárias para garantir a

vida da casa. Esta nova visão das mulheres tem suas raízes em uma tradição de mulheres

sábias e contadoras de história e de mães que orientam seus filhos para a vida. Embora

nova, esta visão é fiel às tradições do povo israelita, com sua experiência libertadora de

Deus e sua religião baseada na justiça e no direito. Ao mesmo tempo, esta nova visão traz

um eco do antigo culto às Deusas e, no capítulo 8, faz reminiscências de Javé com sua

consorte.260

Esta nova visão das mulheres confronta-se com a contradição do sistema patriarcal

no dia-a-dia de suas lutas e de suas buscas. É muito difícil conviver com uma realidade

marcada pela dominação, quando se tem os olhos e a mente despertos e críticos em relação

a esta realidade. Uma amostra da insatisfação das mulheres, neste sentido, aparece no livro

dos Provérbios, onde há um ditado muito repetido: “melhor é morar numa região deserta do

que com uma mulher queixosa e iracunda” (Pr 21,19; 21,13; 19,13; 25,24). De que se

queixaria a mulher? Uma queixa pode conter algo da reivindicação e luta das mulheres e

supõe uma consciência do próprio valor e dignidade. Segundo a cultura da época,

transmitida pelo sistema familiar e sustentado pelo sistema religioso, a mulher era obrigada

a se submeter às ordens do pai, do marido, ou de um filho mais velho, quando ela mesma

tinha consciência de sua capacidade de pensar e de agir. Este fato, certamente, deveria

produzir muita raiva e tristeza.

Desta maneira, uma cultura de mulheres, vivenciada e tecida a partir da casa, através

da qual elas e eles redefinem sua realidade, enfrenta-se com o sistema social e religioso da

época, nas pequenas situações do seu cotidiano. No livro de Rute, encontramos uma

novidade em relação aos papéis que ela e Noemi exercem e aqueles que fazem parte dos

padrões vigentes na sociedade patriarcal em que vivem. Apesar de representar Deus, o

go’el ou libertador do povo, “Booz não lidera nada, não impõe nada, não tem proposta nem

260 Judith Hadley ao fazer um estudo sobre as reminiscências do culto a Aserá no antigo Israel, afirma: “Pode ser que o culto a Asherah tenha sido uma parte legítima do culto a Yahweh”. Veja Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’: archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, p.240.

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projeto. Ele apenas executa as sugestões das duas viúvas (3,11)”261. Aparece aqui,

claramente, uma grande mudança nas relações de poder.

Esta cultura de mulheres ao mesmo tempo em que representa uma reação à

expropriação de seus bens (Lv 12,8; 15,29-30) e ao fato de serem culpabilizadas pelas

desgraças e misérias do povo no pós-exílio (Esd 10,44; Ne 10,31; 13,26), manifesta

também o crescimento e a descoberta que surge da partilha e reflexão das mulheres. Mostra

ainda que a “cultura de mulheres” não foi um círculo restrito a um grupo de vizinhas, mas

um movimento que contou com o apoio de se us companheiros e amigos, de filhos, genros e

irmãos. Somente uma grande solidariedade no sentir e no pensar poderia gerar uma visão

tão bonita e esperançosa.

Mas, no contexto de Pr 1-9, não se encontra somente um movimento cultural

subterrâneo que discute e elabora uma sabedoria que nasce da vida das mulheres e da casa.

Há uma participação muito concreta das mulheres do pós-exílio na luta pela reconstrução

da cidade e no empenho pela realização da justiça. Sylvia Schroer ressalta o fato de haver

“mulheres que após o retorno do exílio tiveram uma participação importante na

reconstrução de casas e cidades. Em Ne 3,12 é mencionado expressamente que as filhas de

Selum estavam participando da construção do muro em Jerusalém. Conforme Ne 5,1-5

foram mulheres do povo pobre que se empenharam na manutenção da posse da casa e

protestaram contra a escravidão dos seus filhos e filhas por causa de dívidas e se sentiram

responsáveis, tanto quanto seus maridos”262. Esta atuação decidida das mulheres nos remete

ao capítulo 31 dos Provérbios, onde se encontra o louvor da mulher israelita forte e valente

que dirige sua casa (Pr 31,15. 21. 27). Fazer aqui esta relação é muito importante, pois um

mesmo contexto está por trás de Pr 1-9 e 31. Um contexto que gera uma experiência nova e

que se expressa através de poemas muito elaborados.

No começo do século 2 a.C., um grupo conservador faz uma revisão dos poemas

sobre a sabedoria mulher de Pr 1, 8 e 9. Esta revisão se manifesta no livro de Ben Sira,

261 Carlos Mesters, Como ler o livro de Rute – Pão, família terra, São Paulo: Paulus, 1991, p.39. 262 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, em Der eine Gott und die Göttin – Gottesvorstellungen des biblischen Israel im Horizont Feministischer Theologie, p.158.

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revelando uma grande discriminação da mulher (Eclo 42,9-11; 22,3), que é considerada

perigosa e culpada de todos os males que sobrevinham ao povo, inclusive a morte (Eclo

42,13-14; 25,13; 25,24). Ben Sira busca corrigir não somente a visão da mulher, mas

também a revelação da sabedoria como artífice do universo ao lado de Javé (Pr 8,30-31),

como parceira em total e cósmica harmonia, apresentando-a como uma hipóstase, uma

personificação da torah. Para Ben Sira, a sabedoria é um atributo de Javé (Eclo 24). No

entanto, a cultura de mulheres resiste e surge, com força, no último livro da Bíblia, através

do mesmo símbolo da sabedoria mulher, que partilha com Deus o seu trono (Sb 9,4).

Portanto, nas suas lidas e relações diárias, lugar principal da origem sabedoria, a

mulher israelita encontra espaço para expressar suas “experiências culturais primárias” e

participar da elaboração de um caminho que leva à vida, oferecendo elementos para a

elaboração de uma revisão do discurso sobre Deus, uma nova visão do trabalho e um

relacionamento integrador e prazeroso com o universo. Supõe-se que os poemas de Pr 1,20-

23; 8 e 9 não sejam uma obra exclusivamente das mulheres, mas o grupo que os elaborou

conta com a participação de mulheres “sábias” e representantes da cultura das mulheres,

que ajudam a abrir novos horizontes para o futuro a partir da experiência de enfrentamento

com as contradições de sua época.

Conclusão

Apresentarei, agora, os resultados do estudo realizado no cap. 2. Ao iniciá-lo,

perguntava-me se o símbolo da sabedoria mulher seria um reflexo da mulher israelita

contemporânea ao texto ou se apresentaria, sobretudo, um discurso sobre Deus. Se este

símbolo veiculava um discurso teológico em linguagem feminina, por que razão foi aceito

nos círculos sampienciais de sua época? Ou seja, que situações concretas permitiram a

elaboração deste símbolo e sua aceitação? Para responder a estas perguntas, necessitaria

fazer uma exegese de cada um dos poemas para verificar os múltiplos sentidos do símbolo

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da sabedoria mulher e também fazer uma investigação sobre o contexto sócio-econômico,

político, religioso e cultural em que foi elaborado. Suspeitava que este símbolo estivesse

ligado à religião da casa, com seus ritos familiares relacionados à semeadura e à colheita;

aos nescimentos, casamentos e funerais, enfim, à própria sobrevivência das famílias e às

questões mais importantes do seu cotidiano.

O caminho percorrido me permite, agora, formular certas afirmações sobre os

diferentes sentidos do símbolo da sabedoria mulher em cada um dos poemas estudados. Em

Pr 1,20-23, ela aparece como profetisa, dirigindo-se com autoridade aos seus interlocutores.

Em meio ao burburinho da cidade, interpela e questiona os ingênuos, zombadores e

insensatos, exortando-os a voltar-se para ela e a escutarem suas palavras.

Ao apresentá- la como profetisa, o texto de Pr 1,20-23 faz memória de mulheres

profetisas do Primeiro Testamento, como Miriam (Ex 15,20-21), Débora (Jz 4-5), Hulda (2

Rs 22), Noadias (Ne 6,14). Partindo da memória de mulheres profetisas, sábias e fortes,

elabora-se a metáfora da sabedoria mulher, com um significado mais complexo e mais

amplo. A própria metáfora impede que vejamos apenas os traços de profetisa, sábia ou

guerreira no rosto da sabedoria mulher, pois, ela promete “derramar seu espírito” a quem se

converterem à sua exortação (1,23). Aos que se voltarem para ela e a escutarem, ela

promete “vida tranqüila e segura, sem temer nenhum mal” (1,33). Se ela tem o espírito e

pode derramá-lo aos seus ouvintes; se ela pode indicar os caminhos da vida e até mesmo

oferecê- la aos seus seguidores, então ela também representa Deus, neste texto.

Em Pr 8,1-3, o aspecto da profecia é também acentuado, pois a sabedoria mulher é

apresentada em lugares públicos com força e autoridade, chamando as pessoas para que

venham ao seu encontro. Em seguida, ela faz sua auto-apresentação e mostra a importância

dos seus dons, que valem mais que ouro, pérolas e jóias (v.11.19). Sua postura está

relacionada ao comportamento ético da casa. Pois a sabedoria mulher anda pelos caminhos

da justiça (v.20) e promove o direito (v.15-16). Além de expressar uma opção clara pela

justiça e pelo direito, os v.4-21 do cap. 8 expressam de um sonho de paz, usando termos da

esperança messiânica de Is 11,1-9.

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No poema de Pr 8,22-31, a figura da sabedoria mulher vai crescendo até alcançar

aspectos de uma Deusa. Ela se revela como pré-existente a toda a criação (v.23.24.25.27).

Sua auto-revelação chega ao ponto máximo nos v.30-31, quando se apresenta como artífice

e parceira de Deus, na artística obra criadora do universo. Nos versos finais deste poema, a

sabedoria mulher proclama bem aventurados àqueles que guardam os seus caminhos (v.32)

e a procuram cada dia, velando à sua porta (v.34), pois quem a procura a encontra e,

encontrando-a, recebe a vida (v.35). Nesta conclusão do poema, está claramente expresso

que a sabedoria é dadora de vida e que há uma oposição entre ela e a morte. Podemos

afirmar, então, que a sabedoria mulher representa o próprio Javé, que derrama seu espírito

sobre todas as pessoas, como em Jl 3,1-5, e é criador do universo e fonte de vida para todos.

Em Pr 9,1-6, a sabedoria mulher é apresentada como hokmot , um plural de

majestade que também foi usado em nosso primeiro texto (Pr 1,20). Mas, os traços do seu

rosto mostram, em primeiro lugar, uma mulher competente que constrói sua casa e prepara

com perfeição um banquete, para que seus convidados se sintam bem. Não é apenas o

número sete, repetido no texto ao referir-se às características da casa que construiu (9,1) e

sutilmente mencionado nos sete verbos que descrevem sua ação e revelam sua grandeza. Há

algo de inusitado em toda a sua intencionalidade. Ela prepara com todo o cuidado um

banquete e envia solenes convites para simples e carentes. Os seus convidados especiais

são aqueles que não têm conhecimento (petayim) e, também, aqueles que estão sem um

sentido para a vida (hasar leb). Isto é realmente algo de inusitado, de inédito! Neste inédito,

que nasce de uma postura ética da mulher israelita no seu dia-a-dia, transparece um

discurso sobre Deus. Pois o poema do cap. 9 de Provérbios continua mostrando outros

traços do rosto da sabedoria mulher. Os três imperativos usados por ela ao dirigir-se aos

destinatários do seu convite ajudam a perceber o sentido simbólico do texto: “venham!”,

“comam!” e “bebam!” (v.5). O poema deixa bem claro que o convite da sabedoria mulher

é, em primeiro lugar, para que venham em direção a ela. Além disso, a participação em sua

comida, tão bem preparada, supõe uma conversão, ou mudança de vida. Ela diz: “deixai a

ingenuidade e vivereis” (v.6). Ela promete vida a quem se voltar para ela e seguir o seu

caminho. Mas, exigir conversão e oferecer vida é função de Deus. Então, um traço do rosto

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da sabedoria mulher é o da divindade. No entanto, os dois traços estão bem harmonizados

no rosto da sabedoria mulher: o da mulher competente que constrói e administra sua casa e

o de Deus, o mesmo Deus de Israel. Eles se completam e se iluminam mutuamente.

O estudo realizado permitiu também obter uma compreensão mais clara do contexto

que possibilitou a elaboração e a aceitação deste símbolo. A partir do confronto com

diferentes autores e autoras, situamos este texto no final da época persa.263 Desde o

cativeiro da Babilônia, com a destruição do templo de Jerusalém e a ausência de um

governo que centralizasse a organização do povo, a casa passa a ser o local principal de

culto e de organização para a defesa da vida. Esta nova função da casa acontece tanto entre

as famílias exiladas como entre aquelas que permaneceram em Judá. Ora, neste espaço da

casa, as mulheres tinham grande liderança e autoridade.

Durante o período persa, o poder centralizador foi diminuindo. O império foi se

enfraquecendo pelas prolongadas guerras contra os egípcios e os gregos. As diferentes

tendências internas ao judaísmo e o fracasso dos primeiros projetos de reconstrução

impossibilitavam que a dominação sacerdotal zadoquita chegasse até o interior de Judá e

até o interior da casa, neste momento. Cria-se um espaço que possibilita a revisão do

discurso sobre Deus, a partir dos desafios e provocações que a vida e as relações colocam.

Este contexto permitiu o resgate da memória histórica do povo bíblico, das mulheres que

contribuíram para a construção de sua história e dos antigos cultos da casa, sobretudo do

culto às Deusas.

A imposição persa de que os tributos deveriam ser pagos em moedas leva as

mulheres a trabalhar ainda intensamente e a entrar no comércio (Pr 31,10-31). Na casa do

século 4 a.C. a mulher exerce também uma função também administradora e financeira que

lhe dá autonomia. Portanto, por trás do símbolo da sabedoria mulher está um retrato da

mulher da vida real que administra com sabedoria, força e competência a sua casa. Estão,

ainda, outros retratos de mulheres profetisas e sábias que marcaram profundamente a

história do povo bíblico.

263 Veja uma discussão sobre a época destes textos no item 1.3, no primeiro capítulo desta tese.

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Para dar maior visibilidade a esta figura da mulher que administra sua casa com

sabedoria e competência, e poder confrontá- la com o símbolo da sabedoria mulher, no

próximo capítulo farei um estudo sobre Pr 31,1-31.

Capítulo 3

A mulher sábia e forte de Provérbios 31

Neste capítulo, farei uma análise do capítulo 31 do livro dos Provérbios com a

possibilidade de que todo o capítulo forme uma unidade literária tecida pela figura da

mulher sábia. No item 3.1, farei a tradução e a crítica textual de todo o capítulo. No item

3.2, apresentarei a delimitação do texto, buscando encontrar sua coesão interna e passarei a

analisar separadamente cada subunidade. Desta maneira, no item 3.3, investigarei sobre o

gênero literário, tendo em vista a delimitação feita no item anterior. No item 3.4, buscarei

encontrar aspectos que indiquem o contexto de Pr 31: a época, a situação histórica, o

ambiente onde o texto foi gerado e suas raízes no chão da história do povo bíblico. No item

3.5, apresentarei os conteúdos de todo o texto, concluindo com um resumo do caminho

percorrido.

Algumas perguntas conduzem minha pesquisa. O primeiro poema (31,1-9) registra

ensinamentos e correções feitas ao rei Lemuel por sua mãe. O texto chama a atenção para

algo pouco comum na literatura bíblica, onde são registrados, quase exclusivamente,

discursos masculinos. Qual a realidade que a apresentação do ensinamento da mulher sábia

em Pr 31,1-9 desvela?

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O segundo poema (31,10-31) registra elogios à “mulher de luta”264 ’exet hayil, em

uma forma muito elaborada. Este belo poema é uma estratégia para construir um padrão

idealizado de mulher ou carrega a memória de histórias reais que narram a atuação de

mulheres competentes na administração econômica e nas relações em suas casas? Na

família estendida, em especial na casa do período pós-exílico, estariam sendo recolhidas

antigas tradições religiosas com a finalidade de iluminar a difícil situação em que viviam?

As antigas tradições, ligadas aos desafios da situação das famílias no pós-exílio, estariam

possibilitando novas visões da mulher, de Deus, do mundo, da vida?

3.1 – Tradução e crítica textual

1. Palavras de Lemuel265, rei de Massa, 266

que lhe ensinou267 sua mãe:

2. Como268, meu filho269, e como, filho do meu ventre,

264 Literalmente lyIx;-tv,ae ’exet hayil significa “mulher de luta”, mas algumas vezes usarei a expressão “mulher de força” ou “mulher forte” para indicar esta personagem. 265 Em Pr 31,1 do texto massorético encotramos a frase “palavras de Lamuel, rei de Massa, que lhe ensinou

sua mãe” AMai WTr;S.yI-rv,a] af'm; %lem, laeWml. yreb.DI dibre lemu‘el melek ma sa ’axer-yisratu ’imo . No entanto, os versos seguintes (v.2-9) trazem o discurso da mãe de Lemuel. Teria este cabeçalho do texto a função de tornar aceitável o ensinamento de uma mulher, dando-lhe oficialidade? 266 O nome af'm; masa tanto pode significar “oráculo”, “pronunciamento”, “peso” ou “sentença pesada”, como um nome próprio masculino (conferir Gn 25,14), ou um lugar que guarda a memória da tentação no deserto (Ex 17,7; Dt 6,16; 9,22; 33,8 e Sl 95,8). A Bíblia de Jerusalém entende Massa como nome de uma tribo ismaelita do norte da Arábia (Gn 25,14). Veja Bíblia de Jerusalém, nota z, p.1163. Minha opinião é que

o sentido da palavra af'm; masa, que aparece 27 vezes na Bíblia Hebraica, deve ser entendida de acordo com o seu contexto literário. Em Pr 31,1 ela tem o sentido de lugar e identifica uma tradição árabe que registra a memória da sabedoria da mulher. 267 O verbo “corrigir” rsy ysr e o substantivo musar “correção ou castigo” aparecem repetidos várias vezes na seção 1-9 de Provérbios. Ao traduzir este verbo por “ensinou” entendo a proximidade das duas ações: corrigir e ensinar. Este verbo pode conter um significado de castigo corporal, sobretudo quando está no piel: Pr 19,18; 29,17. Encontramos “correção” musar junto com “vara” xebet, em Pr 13,24; 22,15; 23,13. Porém, o substantivo musar é usado mais freqüentemente no sentido de “correção” pela palavra. A LXX traduziu o verbo “corrigiu” WTr;S.yI yisratu como evpai,deusen, um verbo que traz o sentido de “educar”, “corrigir”. Confira pesquisa de M. Sæbø, ysr, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, col.1016-1021. Esta forma, em estado construído, aparece somente em Pr 31,1.

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e como, filho de meus votos?

3. Não dês a tua força270 às mulheres

e teus caminhos ao que corrompe 271reis.

4. Não (é) para os reis, Lemuel, beber vinho não (é) para os reis,

nem para os governantes o desejo 272 de bebida,

5. Porque bebendo se esquecem do decretado 273

e torcem o julgamento de todos os filhos de aflição274

6. Dá bebida forte ao moribundo275

e vinho aos amargados.

7. Que beba e se esqueça de sua pobreza

e não se lembre mais de sua aflição.

8. Abre tua boca pelos mudos,

na causa de todos os filhos de abandono 276.

268A partícula interrogativa ou exclamativa hm' mah, que traduzi por “como?”, pode significar, também, “o que?”, “qual?”, “quanto?”. Ao optar por “como?”, entendo que a pergunta da mãe questiona um comportamento, um modo de ser do seu filho, que ela não entende ou não aceita. 269 A palavra “filho”, na forma aramaica rB; bar, aparece repetida três vezes neste verso. 270 Esta palavra lyix; hayil pode ser entendida como “poder”, “riqueza”, “força”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português , p.217 e Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português & aramaico-português, p.67. 271 O termo tAxm. mehot, cuja raiz é hxm mhh, é um particípio no feminino e pode ser lido como “apagada”, “cancelada”, “lavada”, “riscada” (confira Jz 21,17). O sentido figurado deste termo e sua complementação, !ykil'm. melakin levaram-me a fazer esta leitura: “ao que se corrompe”. 272 É duvidoso o sentido deste termo wae ’en, que traduzi por “desejo”. Poderia ser uma negação? Não

encontro outro sentido senão desejo, lendo wae ’en como forma resumida do infinitivo #pxe hepez. 273 A raíz qqx hqq aparece aqui como um particípio pual que, nesta forma, ocorre apenas nesta passagem da Bíblia Hebraica. No hebraico, este verbo é usado no sentido de “inscrever”, “governar”, “decretar”. Por isso, foi traduzido como “decretado”. 274 A expressão que traduzi como “todos os filhos da aflição” yni[o-ynEB.-lK' kol bene ‘oni tanto pode significar uma atitude como uma situação. Veja Luis Alo nso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.508. Neste caso, indica a situação de desamparo, marginalização e injustiça, indicada pelo conjunto dos elementos que formam a frase. 275 O termo dbeAa ’obed vem de bAa ’ob, que significa “fantasma”, “es pírito”, “espectro”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português , p.32 e Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português & aramaico-português , p.5. A Bíblia de Jerusalém traduz este termo como “moribundo” (veja p. 1163) e a versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.570, traduz a frase como: “dai bebida forte ao que está para perecer”. 276 O termo @Alx] halop é um infinitivo ou nome verbal que qualifica filhos. Entendi @Alx yneB.-lK' kol bene halop como “todos os filhos do abandono”. Não é difícil intuir a situação social expressa através deste termo. São pessoas sem estabilidade econômica e sem assistência social. Este termo completa a

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9. Abre tua boca, julga (com) justiça,

e julga o pobre e necessitado 277.

10. Mulher de força 278, quem encontrará?

Pois seu valor (é) muito maior que pérolas.

11. Confia nela (o) coração279 de seu marido

e não lhe faltam lucros 280.

12. Ela lhe proporciona281 bem e não ma,l

todos os dias de sua vida

13. Busca 282 lã e linho283 e suas mãos284

descrição iniciada no verso an terior: “abre tua boca pelos mudos”. São todos aqueles que não são escutados e cujas reivindicações não são atendidas e cujos direitos não são respeitados. 277 O termo !Ay*b.a, ebion , que também aparece em Pr 31,20, tem o sentido específico de “pobre”, “sem dinheiro ou recursos” e o sentido genérico de “desvalido”, “desamparado”, “indigente”, “falto”, “necessitado”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico -português, p.22. O verso final desta instrução da mãe que recomenda ao seu filho rei a prática da justiça, lembra o discurso da sabedoria mulher em 8,15-16 e 20. 278 O termo lyIx;-tv,eae ’exet hayil pode ser traduzido por “mulher de força” ou “mulher de guerra”. Tanto a Septuaginta como a Vulgata o traduziram como “mulher forte”. Algumas versões da Bíblia, em português, trazem o termo “mulher talentosa” (Bíblia de Jerusalém, p.1163), “mulher virtuosa” (versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.570). Embora não esteja longe da raiz original, pois etimologicamente a palavra virtude provém de virtus e tem a ver com força e vigor. No entanto, nas interpretações e nos discursos sobre este tema a conotação moral é mais sublinhada. 279 No hebraico, o termo leb tem muitos significados. Um deles é designar toda a região cardíaca (2Sm 18,4; Sl 17,15) e a força vital (Gn 18,5; Jz 19,5.8; Sl 104,15). Outro é representar a potência e o desejo sexual (Os

4,11; Jó 31,9; Pr 6,25). Veja mais dados sobre ble leb na pesquisa realizada por F. Stolz, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol.1, p.1176-1185. 280 O termo ll'v' xalal tem o significado de “botim”, “presa”, “despojo”. Em sentido figurado significa “prosperidade”, “negócio rentável”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.675. 281 A raiz lmg gml está documentada com segurança somente em acádico, hebraico e árabe, porém o seu significado apresenta grandes diferenças, nestas línguas. No AT, gml aparece 60 vezes, sendo que 15 vezes nos Salmos, 12 vezes em Isaías, 6 vezes em 1Samuel e 5 vezes em Provérbios. O substantivo gemul é também usado para descrever ações benéficas de Deus com a humanidade (Is 63,7; Sl 13,6; 103,10; 116,17, 142,8). Confira G. Saber, gml , Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento , editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol.1, p.606-609. 282 A forma verbal hv'r>D' darxah está no qal, perfeito, feminino, singular. Sua raiz é vrD drx, um verbo próprio do semítico ocidental e que está documentado em ugarítico, aramaico, etíope e árabe, além do hebraico, com o significado de “procurar”, “examinar”, “pesquisar”, “indagar”, “exigir”. Sua raiz coincide com um verbo que significa “caminhar” drk , em hebraico e aramaico. Tem um campo semântico profano bastante reduzido, embora esteja abundantemente documentado no hebraico, aparecendo no AT cerca de 155 vezes no qal e 9 vezes no nifal. Veja os diferentes significados de drx em pesquisa feita por G. Gerleman e E. Ruprecht, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westermann, vol.1, p.650-659.

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trabalham com alegria285.

14. É como as naves mercantes286

de longe traz seu pão.

15. E se levanta quando ainda é noite

e dá alimento à sua casa287 e porção para suas criadas 288.

16. Examina289 um terreno e o compra.

Do fruto de suas mãos planta uma vinha.

17. Cinge a cintura com decisão

e fortalece290 seus braços291.

18. Percebe292 que seus negócios vão bem

283 Segundo Os 2,7.11, era o homem que devia prover a mulher de lã e linho. Neste poema, a mulher de luta tem autonomia para conseguir a matéria prima necessária para fazer seu trabalho e para comercializá -lo. É esta autonomia que lhe garante o prazer de trabalhar. 284 A palavra mão dy' yad aparece no v.19, no v.20 e no v.31. Aqui, no v.13, a palavra é “palmas”

h'yP,K; kapeha , um termo também repetido nos v.16.19 e 20. 285 O termo #p,xe hepez tem o significado de “agrado”, “gosto”, “interesse”, “vontade”. Veja mais informações em Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português , p.238. 286 Nesta comparação da mulher forte e sábia com uma nave mercante há algo de inédito dentro do contexto do poema, pois apresenta a mulher com uma aureola de majestade e de abundância. A lamentação sobre Tiro que se encontra em Ezequiel 27 é um exemplo do uso do navio mercante como símbolo de poder e majestade. Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.529. 287 Em hebraico e nas línguas vizinhas, o significado de “casa” bayit se estendeu a tudo o que há na casa. Veja o estudo apresentado por E. Jenni, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Er nst Jenni e Claus Westermann, vol. 1, p.449-457. É interessante observar a repetição neste poema do termo com

possessivo em feminino: “sua casa” Ht'yBe betah. Este nome em feminino aparece no v.15, no v.21, e duas vezes e no v.27. 288 Este verso quebra o ritmo da poesia. Luis Alonso Schökel afirma que se uma das frases for suprimida, o sentido do verso não fica mutilado. Este autor sugere a seguinte tradução: “Reparte rações e tarefas a criados e criadas”. Veja Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.530. 289 O verbo “examinar” hm'm.z' zamemah está no qal, perfeito, feminino e expressa uma ação intelectual. A mulher de Pr 31,10-31 não trabalha apenas com habilidosas mãos e com tino administrativo. Ela pensa, estuda, examina, já que zmm indica atividade intelectual. Como verbo, ~mz zmm , ocorre somente duas vezes em Provérbios. Uma vez com o sentido mais comum de tramar (30,32) e uma única vez como realização de uma atividade intelectual de investigar sobre um assunto, antes de tomar uma decisão (31,16). Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.194. 290 A palavra z[o ‘oz o, cuja raíz é zw[, significa “vigor”, “força”, “poder”, “firmeza”. Confira Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebráico-português & aramaico-português, p.176. 291 O verso 17 mostra um aspecto inverso ao 16, pois o gesto de cingir a cintura com decisão e fortalecer os braços faz parte do ritual de preparação para o trabalho manual. No Sl 65,7 Deus se cinge de poder para criar o mundo.

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e sua lâmpada não se apaga de noite.

19. Abre suas mãos 293 ao fuso

e suas palmas sustentam a roca.

20. Estende sua mão ao pobre

e ajuda o necessitado294.

21. Não teme pela sua casa (quando) neva,

pois toda sua casa está vestida duplamente 295.

22. Faz colchas para si

e sua roupa é de linho e púrpura296.

23. Seu marido é conhecido297,

quando se senta nas portas com anciãos da terra 298.

24. Faz roupa de linho e vende

e provê de cinturões ao comerciante299.

292 O verbo hm'[]j' ta‘amah está no qal, feminino e indica em primeiro lugar saborear algo, como em Jó 12,11; 34,3. Saborear tem algo a ver com sentir prazer e, ao mesmo tempo, com uma fina percepção de diferentes sabores. Confira Ralph H. Alexander, em R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K. Waltke, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento , p.575-576, verbete 815. 293 O termo “mãos dela” h'yd,y" yadeha está repetida 5 vezes neste poema (31,10-31), nos v.13.16.19.20. 31 e tem a ver com o seu campo semântico e sua estrutura. 294 O autor (ou autores) deste poema uniu os v. 19 e 20 através de palavras semlhantes: iadeh xilehah kapeha / kapah yadeja xilehah, para expressar que o trabalho da mulher sábia e forte está direcionado à solidariedade para com os pobres. Não é um trabalho voltado para a acumulação, mas para a solidariedade e a partilha. Este texto lembra Dt 15, que manda abrir a mão ao necessitado. 295 O termo ~yniv' xanim significa “vestido duplo ou forrado”. Veja mais detalhes em Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.532. Segundo Dicionário hebraico-português & aramaico-português, elaborado por Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, p.257, o nome xanim está no plural, e significa “roupa escarlate”. Poderiam ser fios de lã tingidos com “ovos de uma espécie de cochinilha”. 296 A expressão !m'g'r.a;w. vve xex ve-’argaman, que traduzi como “linho e púrpura”, deve ser

entendida especialmente no sentido de cor. Quando vv xex se opõe ae !m'g'r>a;w> ve-’argaman o sentido muda, pois uma cor se opõe à outra. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.75. Podemos, então, entender que aqui se trata do tecido e da qualidade da vestimenta e não somente da cor. 297 A raiz [dy yd‘ aparece 35 vezes no livro dos Provérbios e faz parte do campo semântico da sabedoria.

Mas, no cap. 31, aparece somente esta vez e como nifal particípio [d'Ano noda‘. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português , p.268. 298 Somente, agora, aparece o marido. Sua boa reputação na porta da cidade, lugar onde se realizam os julgamentos, parece que se deve à sua esposa. 299 O poeta retorna à sua descrição da competência da mulher forte e sábia, repetindo palavras dos versos

anteriores, como “preço” e “valor” hr'k.mi mikrah do v.10; “faz” ht'f.[' ‘astah dos v.13 e 22; “cinturões” e “cingir-se” hr'g.x' hagrah do v.17. Além disso, a menção de ynI)[]n:K.l; lakena‘ani literalmente

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25. Está vestida de força e dignidade300

e sorri para o futuro.

26. Abre sua boca com sabedoria

e ensina com bondade301.

27. Vigia a caminhada302 de sua casa303

e não come pão de ociosidade.

28. Seus filhos se levantam e a felicitam,

seu marido a louva, dizendo:

29. muitas filhas agiram valiosamente,

mas tu superas a todas elas.

30. A mentira da graça (é) o vazio da beleza.

A mulher do temor de Javé,

ela é louvada.304

31. Dai-lhe do fruto de suas mãos

e louvem-na suas obras nas portas.305

3.2 – Delimitação e divisão, buscando encontrar a coesão interna

Neste item, buscarei encontrar os termos que delimitam Pr 31 e também

aqueles que enlaçam as subunidades do texto, formando o seu tecido semântico. Analisarei

“para canaane”, parece indicar a antiguidade do tema, embora sua composição seja recente. Veja André Barucq, Le Livre des Proverbs, Paris: Lecoffre, 1964, p.18. 300 Esta é a terceira vez que se menciona vestido, neste poema. Encontramos uma frase semelhante no Sl 104,1, onde “Javé está vestido de esplendor e majestade”. 301 Este verso lembra Pr 1,8; 6,20 e 31,1 que reiteram a função da mãe como sábia educadora de seus filhos.

Chama a atenção a sua forma de ensinar: “e torah de bondade en sua língua” hn'Avl.-l[; ds,x,©÷-tr;Atw. vetorat- hesed al lexonah . 302 O termo que traduzi por “caminhada” é tAk'ylih] halicaot está no plural. Segundo Luis Alonso Schökel, este termo pode ser traduzido por “andanças”. Confira Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-portugués, p.176. 303 A expressão “casa dela” Ht'yBE betah aparece pela quarta vez neste poema e delimita esta subunidade. No v.15, ela “dá alimento à sua casa” e no v. 27, ela “vigia a caminhada de sua casa”. 304 Muda-se, de repente, o conteúdo e quebra-se o ritmo da poesia. Buscarei entender este 305 Há, aqui, um convite para um louvor público, na porta da cidade, no espaço comumente reservado aos homens. Este aspecto será retomado no estudo do conteúdo deste capítulo.

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separadamente a estrutura literária de cada subunidade que forma o capítulo 31: v.1-9 e

v.10-31, observando suas particularidades e, também, os enlaces semânticos e temáticos

entre os dois poemas que o compõem.

A delimitação de cada poema é feita por uma introdução: O v.1 introduz o discurso

da sábia mãe do rei Lemuel, com a estranha afirmação de que são palavras do rei. O v.10

introduz o poema da mulher forte e sábia, com uma interrogação sobre a possibilidade de

encontrá-la. Desta maneira, o cap.31 é tecido com a temática da mulher que ensina

sabiamente e daquela que trabalha com autonomia e competência, formando uma unidade

literária a partir do tema da mulher. Outro sinal da delimitação do texto é indicado pela

pausa @ colocada depois do ponto final ̀ do v.9, separando desta maneira as duas

subunidades do cap.31 de Provérbios.

Antes de analisar os temas que enlaçam os dois poemas, criando coesão dentro do

capítulo, é necessário verificar a estrutura de cada unidade literária.

1º poema: Pr 31,1-9

v.1 – Introdução ao texto, mostrando sua procedência

v.2-3 – Questionamentos da mãe sobre a maneira como seu filho se expõe

v.4-7 – Instruções da mãe sobre o uso da bebida

v.8-9 – Conselhos da mãe sobre a forma de realizar a justiça

2º poema: Pr 31,10-31

A forma acróstica com que se elaborou este poema é bastante conhecida, na Bíblia.

O acróstico se usa para ajudar a memorizar. Portanto, é um recurso mnemotécnico306

306 Veja Sl 9-10; 25; 34; 37; 111; 112; 119; 145; Lm 1-4; Na 1,2-8.

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Tomando a primeira letra de cada verso307, forma-se o alfabeto hebraico. Ao fazer uma

opção pela forma acróstica, o poeta demonstra seu objetivo didático. Percebe-se o seu

esforço para controlar a seqüência do tema e ao mesmo tempo manter a ordem alfabética, o

que demonstra a forma altamente elaborada desta subunidade. Há um crescendo no

desenvolvimento de todo o poema, levando-o a culminar com um louvor geral a ’exet hayil.

v.10 – Pergunta retórica sobre a mulher, salientando sua importância

v.11-12 – Ela é motivo de felicidade para seu marido

v.13-20 – Competente nos negócios, ela se cinge de força e autonomia

v.21-27 – Vestida de beleza e dignidade, ela ensina com sabedoria

v.28-29 – Louvação da mulher pelos filhos e pelo marido

v.30 – Considerações dos sábios sobre a mulher

v.31 – Louvação da mulher nas portas da cidade.

Enlaces entre o primeiro (31,1-9) e o segundo(31,10-31) poemas

O substantivo lyIx; hayil é um dos enlaces entre o primeiro poema (v.1-9) e o

segundo (v.10-31). Encontra-se no v.3, no contexto do questionamento que a mãe do rei

Lemuel lhe faz: “não dês às mulheres tua força!”. O termo hayil encontra-se, também, no

v.10, iniciando o segundo poema do cap.31 de Provérbios. No v.10, hayil está no estado

contruído, mostrando uma qualidade da mulher.

Ao enlaçar os dois poemas, o termo lyIx; hayil transforma a visão sobre a mulher.

Ela não é somente aquela que espera poder, força, proteção do homem, como transparece

na recomendação que a mãe faz ao seu filho rei: “não dês às mulheres tua força” (v.3). A

mulher também possui hayil. Ela é “mulher de força”. Ela também tem poder. Esta nova

visão, introduzida pelo estado construído: lyIx;-tv,ae ’exet hayil, crescerá, através da

307 O acróstico pode ser formado com a primeira letra de cada estrofe, como no Sl 9-10, 37 e 119.

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forma poética usada para fazer a apresentação desta mulher. No final da apresentação

(v.29), aparece novamente a palavra hayil, agora nos lábios do marido que a louva.

Outra ligação entre os dois poemas se dá através dos termos “oprimido” e “pobre”

!Ayb.a,w> yni[' ‘ani ve’ebeon. Estas palavras fecham o primeiro poema: “abre tua

boca, julga com justiça o oprimido e o pobre” (v.9). Estes termos “oprimido” !Ayb.a>

’ebion e “pobre” yni[' ‘ani encontram-se literalmente repetidos no v.20: “estende sua mão

ao oprimido e ao pobre”. Além disso, muitas outras palavras que fazem parte deste campo

semântico, como “pobreza”, “aflição”, “abandono” estão repetidas nos v.7-9 e 20-21,

enlaçando os dois poemas.

3.3 – Estilo e gêneros literários

Meu objetivo, neste item, é analisar as diferentes formas da poética hebraica

usadas para articular a linguagem deste texto. Buscarei estar atenta para perceber a relação

entre os recursos literários utilizados e o conteúdo que esta cuidadosa escolha comunica.

Segundo Norman K. Gottwald, “os cânticos hebraicos são compostos de frases ou linhas

que se dividem em dois (às vezes três) membros ou cláusulas”308.

O poema de Pr 31,10-31 tem uma estrutura muito regular, com versos de duas

partes. Somente o v.15 quebra esta cadência. Talvez seja uma glosa, acrescentada com a

finalidade de criar um enlace com Pr 30,8, onde se encontra a expressão “minha porção de

pão” yQixU ~x,l, lehem huqi. Em 31,15, o termo qxe heq também está relacionado

308 Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.484.

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com “alimento” ou “sustento” @r,j, terep. No entanto, não é possível fazer neste item

uma análise sobre ligação entre o capítulo 30 e o 31.

Olhando o cap.31 de Provérbios como um todo, vemos que ele é formado por dois

poemas sapienciais com função didática, que possuem uma seqüência temática. Embora

unidos pelo enfoque temático da mulher sábia e forte, os dois poemas têm estilos diferentes,

pois o segundo foi elaborado como um acróstico. Este é um aspecto que demonstra a

variedade e a riqueza da poesia hebraica. A esse respeito, Josef Schreiner faz o seguinte

comentário: “se a sabedoria é o esforço e a arte de configurar a vida de maneira acertada e

feliz, as formas de locução sapiencial pertencem àquelas maneiras de falar e àquelas

afirmações formais que pretendem alcançar este fim”309.

O v.1 é uma introdução ou cabeçalho, com a função de apresentar o discurso de

uma mulher sábia. No v.2, encontramos repetida três vezes a expressão “como, meu filho?”

yrIBe-hm; mah-beri, formada por uma partícula exclamativa e a palavra filho, em

aramaico. Esta repetição é um recurso retórico que chama a atenção para a personagem

principal deste poema (31,1-9), a sábia mãe do rei Lemuel. Há um paralelismo sintético no

v.3, formado pela dupla admoestação da mãe:

Não dês às mulheres tua força, nem teus caminhos ao que corrompe reis (v.3).

Nos v.4-7, encontram-se nove frases que formam uma estrofe seqüencial sobre o

uso da bebida. Há repetições de frases inteiras, nesta estrofe. Aliás, esta é uma característica

da poesia hebraica. No v.4, a frase “não é próprio do rei beber vinho” está repetida

literalmente e uma terceira frase é formada como um adendo ou soma do mesmo conteúdo:

“nem dos governantes gostar de licor”. Com estas três frases se acumulou um significado

de negação ao uso do vinho. No v.5, duas frases explicam a razão desta abstinência:

“porque ao beber se esquecem das leis e não atendem ao direito dos pobres”. Aqui também

forma-se um verso em duas partes, através da repetição do sentido. Os v.6-7 apresentam

309 Joséf Schreiner, “Formas y géneros literarios en el Antiguo Testamento”, em Introducción a los Métodos de la Exégesis Bíblica, Josef Schreiner (organizador), Barcelona: Herder, 1974, p.285.

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uma fina ironia, através de 4 frases seguidas, indicando que a bebida deve ser dada aos que

sofrem, para que se esqueçam de suas penas. As frases que formam esta estrofe já se

encontravam, certamente, em uma tradição oral ou escrita, pois fazer recomendações sobre

o uso da bebida, parece ter sido uma atividade muito comum (Pr 4,17; 20,1; 23,29-35).

Observo que esta estrofe de 31,4-7 possui um estilo bastante elaborado, em relação às

outras citações do livro dos Provérbios sobre este tema da orientação sobre a bebida.

Nos v.8-9 encontra-se repetida duas vezes a expressão “abre tua boca”, iniciando

frases que se complementam:

Abre tua boca pelos mudos,

na causa de todos os filhos de abandono.

Abre tua boca, julga com justiça ao pobre e ao necessitado.

Aqui, estamos diante de um paralelismo trinário. A forma mais simples e elementar

da poesia hebraica é a repetição, formando às vezes paralelismos. Mas, não é uma forma

rígida. O paralelismo se enquadra não somente no panorama histórico de onde nasce o

texto, nem somente no panorama literário, mas, sobretudo na ação mesma da linguagem,

como observa Luis Alonso Schökel.310 Por ser muito usado na poética hebraica, supõe-se

que o paralelismo tenha sido muito comum no ato da linguagem, sobretudo quando se

deseja comunicar algo que merece ser memorizado.

O segundo poema (v.10-31) está elaborado em forma de acróstico, já que cada

palavra que inicia um verso traz uma letra do alfabeto hebraico em ordem crescente.

O v.10 torna-se chamativo porque usa dois recursos literários, fazendo uma

pergunta retórica e uma comparação:

Quem encontrará a mulher de força? Pois seu valor é maior do que pérolas.

310 Luis Alonso Schökel, Manual de poética hebrea , p.72.

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Conjugando pergunta e comparação o poeta alcança seu objetivo, que é a

apresentação de uma nova personagem, de algum modo ligada à primeira, porque é mulher

sábia (v.26) e mãe (v.29). Porém é outra, já que está sendo apresentada como esposa amada

(v.11-12.23), mais valiosa que pérolas (v.10).

Os v.11-31 estão organizados em forma de repetições binárias, com exceção do

v.15, que rompe esta seqüência introduzindo uma terna. Ao buscar uma classificação destas

repetições, encontramos que o estilo mais comum neste poema é o sinonímico, que mantém

o mesmo tema com diferentes palavras. O poeta usa verbos e adjetivos semelhantes, com a

finalidade de mostrar as qualidades desta mulher que está apresentando. Por exemplo, há

repetição sinonímica nos v.11-12, articulados em três frases com a finalidade de mostrar a

importância que tem esta mulher para seu marido.

Confia nela o coração de seu marido

e não lhe faltam lucros.

Ela lhe proporciona bem e não mal todos os dias de sua vida.

Termos como “confiança” e “coração” desvelam algo da subjetividade do poeta,

mostrando que esta mulher é altamente significativa para ele. Há também termos que

descrevem os ganhos materiais (lucros) que ela lhe proporciona. Também poderíamos

classificar esta comparação como sintética, já que todos os termos são usados para indicar o

bem estar contínuo que a relação com esta mulher traz ao seu marido.

Um outro bloco de comparações sinonímicas está formado pelos v.13-20. São nove

versos articulados pelo tema da competência desta mulher no trabalho e nos negócios. Os

dois últimos versos deste bloco foram elaborados em forma de quiasmo, mostrando que os

dois são inseparáveis. Embora o quiasmo pertença mais à estrutura que ao gênero, trago

aqui este exemplo, pois ele tem grande importância dentro do poema. Apesar de formar um

bloco temático com os v.13-20, o poeta dá autonomia a cada verso, criando dentro dele um

sentido próprio, a partir de comparação sinonímica e sintética. Mas, ao fechar o bloco, o

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poeta enlaça dois versos, formando um quiasmo que impede a separação dos dois últimos

versos, ao mesmo tempo em que gera um novo significado. Este é o caso dos v.19 e 20:

Abre suas mãos ao fuso

e suas palmas sustentam a roca.

Sua palma estende ao pobre

e abre sua mão ao necessitado.

O quiasmo é formado pela repetição de mãos e palmas, no v.19 e palma e mão no

v.20, formando o desenho AB B’A’. Há, também, um enlace formado pelos verbos: “abre”

hx'L.vi xilhah, “sustentam” Wkm.T' tamku, “estende” hv'r>P' parxah, “abre”

hx'L.vI xilhah que mostram o movimento das mãos. No v.19, as mãos se movimentam

para o trabalho e no v.20 elas se movimentam para a partilha. Desta maneira, o recurso

literário usado pelo poeta trouxe um novo significado a todos os outros versos desta estrofe

(v.13-20), que descreve de maneira extremamente bela o trabalho desta mulher. Ela não é

somente uma trabalhadora competente (v.13 e 15) e grande administradora (v.14), capaz de

examinar com cuidado o terreno que deseja comprar para plantar uma vinha (v.16).

Decidida, ela assume conscientemente o seu trabalho (v.17-18), não apenas para garantir o

bem estar de sua família, mas para fazer-se solidária com os pobres e necessitados (v.19-

20).

Com o movimento das mãos, o poeta indica que esta mulher se abre a uma realidade

desafiadora, onde a justiça e o direito estão ausentes. Ela não está fechada à sua grande

casa; seu espaço de atuação não se circunscreve ao ambiente privado de sua família e

amigos. Mas, está atenta à problemática situação social do seu entorno e se faz solidária

com esta situação.

Todos os versos de 21 a 29 seguem formatação, iniciados com uma consoante do

alfabeto hebraico e formando comparações sinonímicas ou sintéticas, que tecem o perfil da

mulher de luta. Alguns versos chamam a atenção pela novidade que expressam. É o caso

dos v.25 e 26, por exemplo. O v.25 usa uma metáfora:

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Está vestida de força e dignidade

e sorri para o futuro.

Com este recurso da metáfora, construída a partir do verbo “vestir”311, o poeta

acrescenta qualidades à mulher, deixando que seus leitores ou leitoras descubram o que isto

significa. O efeito do uso desta metáfora nos ouvintes pode ser a lembrança deste verso em

outro lugar (Sl 104,1), onde se diz que “Javé está vestido de força e dignidade”, o que

poderia sugerir uma proximidade desta mulher com Javé.

O v.26 faz um paralelo entre “sabedoria” hm'k.x' hokmah e “bondade” ds,x, hesed. Este paralelo nos leva a perceber que além de ser sábia e de agir com bom senso,

esta mulher de Pr 31,10-31 tem, também, a função de ensinar e está muito próxima da

sabedoria mulher de Pr 1-9.

Os v.28 e 29 trazem o louvor dos filhos e do marido, seguindo o mesmo estilo de

comparação binária e sinonímica.

No v.30, encontra-se uma comparação antitética, iniciada por uma frase de

conteúdo negativo e complementada por duas frases de conteúdo positivo. Mas, o que

chama a atenção, não é somente a mudança de estilo literário, pois isto é muito comum na

poesia hebraica. O que surpreende é, sobretudo, a mudança do conteúdo.

A mentira da graça (é) o vazio da beleza.

A mulher do temor de Javé,

ela é louvada.

311 O verbo “vestir” vb;l' labax está no qal perfeito com sufixo feminino: “está vestida” Hv'Wbl. lebuxah. No cap.31, este verbo aparece nos v.22 e 25 com a mesma forma e pessoa. .

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Ao introduzir a tema da caducidade da beleza e da importância do temor de Javé,

através desta comparação antitética, a seqüência do poema foi quebrada. Havia uma certa

progressão nos temas, que era observada pelo poeta, apesar do esforço para manter a forma

acróstica. Nos v.10-27, foram apresentadas as diferentes qualidades da mulher forte e sábia.

Nos v.28-29, o poeta começa a apresentar os louvores que lhe dão seus filhos e seu marido.

Um louvor que continua no v.31, ao convidar a assembléia para louvá- la nas portas da

cidade, por tudo o que ela é e realiza. Este louvor foi interrompido pelo v.30, dando a

impressão de que não fazia parte originalmente do poema.312

Concluindo, podemos dizer que o poeta utilizou recursos literários muito simples

para elaborar cuidadosamente este poema, com a finalidade de mostrar um retrato da

mulher da vida real. Podemos presumir que esta mulher poderia estar ligada à vida do

poeta, já que por trás da beleza deste poema pode ser encontrada a grata experiência de um

homem, cuja existência foi definitivamente marcada pela relação com uma mulher que lhe

tocou profundamente o coração (v.11).

3.4 – O contexto

Ao analisar o contexto do cap.31, quero ressaltar que as duas personagens principais

atuam em dois espaços diferentes. Uma é a mãe de um rei, que tem a função de mãe e

conselheira, e atua em um palácio. A outra mulher é uma esposa e mãe, que atua a partir da

casa. Estes dois contextos estão por trás de Pr 31. Mas, será que a sábia atuação destas

mulheres se limita ao espaço interno de palácio e casa? A que ambiente de vida estes

poemas da mulher sábia (31,1-9) e sobre a mulher de luta (31,10-31) estavam ligados? É

possível situar estes textos dentro da história do povo bíblico?

312 No item anterior, sobre a estrutura de Pr 31, nos referimos à possibilidade de que o v.30 seja um adendo posterior ao ato poético, introduzido no texto pelos editores do livro dos Provérbios.

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Estas perguntas orientam minha pesquisa. No item 3.4.1, buscarei encontrar a época

de Pr 1-9 e 31, com a possibilidade de que estas duas seções formem uma moldura

conclusiva para todo o livro dos Provérbios. No item 3.4.2, situarei estes textos na história,

buscando descobrir a conjuntura internacional e nacional que estão por trás desta

elaboração poética. No item 3.4.3, investigarei sobre a ocasião e o ambiente de onde

surgiram estes textos e buscarei descobrir a sua intencionalidade no item 3.4.4. Finalmente,

tratarei de identificar o chão e as raízes do texto no item 3.4.5, porque o que

verdadeiramente me interessa nesta pesquisa é dar voz a estes textos, colocando-os no chão

da vida, para que possamos entrar em diálogo com eles.

3.4.1 – A época

A busca de ir do texto aos seus contextos exige que escutemos as diferentes vozes e

as diferentes reações a mudanças culturais, políticas, sociais e religiosas que ocorreram em

uma determinada época. Mas, qual teria sido a época de Pr 31,1-31? Com a ajuda de alguns

autores e autoras313, situamos a primeira seção do livro dos Provérbios (1-9) no final da

época persa. Quanto ao cap.31 de Provérbios, consideramo-lo como uma moldura para todo

livro, ligada diretamente com a primeira seção de Provérbios (1-9) e situado na mesma

época: o final do império persa.314 Há muitos argumentos para esta ligação entre a primeira

e a última seção do livro dos Provérbios. No cap.4 desta pesquisa, buscarei fundamentar

com mais detalhes esta ligação.

Para esta finalidade de buscar o contexto social de Pr 31, assinalo a relação entre a

sabedoria mulher apresentada nos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9 com a mulher sábia e forte

de Pr 31,1-31. O vínculo entre as duas forma um inclusio para todo o livro dos Provérbios,

propondo uma nova ótica para sua leitura, sobretudo para uma visão da mulher.

313 Entre estes autores e autoras, cito Teodorico Ballarini, Introdução à Bíblia – Os livros poéticos, p.30: Claudia V. Camp, Wisdom and femine in the book of Proverbs, p.234; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial , p.21: Luis Alonso Schökel, Sapienciales I Provérbios, p.105. 314 Conferir Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.164.

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3.4.2 – Situando na história

Um dado da história antiga pode ajudar-nos a perceber a conjuntura internacional

que influenciou a vida de Judá no pós-exílio, de modo especial no período persa. Rudi

Tünermann afirma que, “com a queda do reino da Lídia (547 a.C.), estabeleceu-se um

relacionamento direto entre persas e gregos que não mais iria ser interrompido até o final

do império persa em 333 a.C.”315. Certamente, o relacionamento entre persas e gregos não

se limitava ao nível do comércio e das guerras, mas possibilitava novos debates filosóficos

que exigiam uma nova ordem social. “Muito cedo, os judeus tiveram contato com as

posturas filosófico- intelectuais diametralmente opostas dos gregos e persas, e eles

precisaram confrontar-se com ambas”, comenta Antonius H. J. Gunneweg. 316 A influência

egípcia também exigiu discernimento e reflexão. Não resta dúvida de que há influência

egípcia no livro dos Provérbios além daquelas que constam da terceira seção do livro,

intitulada coleção dos sábios (22,17-24,22) e que possui uma grande semelhança com as

“máximas de Amenemope”, escritas no Egito entre os séculos 12 e 13 a.C.317. Marcelo

Ghelman observa que “as escavações de Elefantina demonstraram que os colonos judaicos

do sul do Egito liam os ‘Provérbios de Ajiqar’, procedentes sem dúvida de um ambiente

cultural não judaico”318. As descobertas arqueológicas de Khirbet el-Qon e Kuntillet

‘Agrud,319 ao sul de Judá, demonstram a ligação de judaítas da Samaria com o Egito. O tell

citado nesta pesquisa arqueológica aponta para a possibilidade de que houvesse neste

local, 320 por volta do século 7 a.C., uma estalagem no caminho entre os dois países.

Desde a época do exílio, o povo judaíta toma consciência de que, apesar de todos os

desastres e desafios da complicada conjuntura histórica, social, religiosa e política em que 315 Rudi Tünermann, As reformas de Neemias, São Leopoldo/São Paulo: Sinodal e Paulus, 2001, p.13. 316 Antonius H. J. Gunneweg, História de Israel – Dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até nossos dias, p.227. 317 Veja Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.50s. 318 Marcelo Ghelman, Literatura de sabedoria e outras formas literárias, em http://www.tryte.com.br/judaismo/colecao/br/livro7/17cap2-7.htm, em 14.05.06 às 8:16h. 319 Judith Hadley, “Yahweh and ‘his Asherah’ – Archaeological and textual evidence for the cult of the Goddess”, p.240. Ver também Judith Hadley, “From Goddes to literary construct – The transformation to asherah into hokmah”, em Reading the Bible – Aproches, methods and strategies, editado por Athalya Brenner e Carole Fontaine, Sheffield: Sheffield Academic Press, 1977, p.393-396. 320 Khirbet el-Qon e Kuntillet ‘Agrud se localiza ao sudeste de Judá.

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vivem, eles estão totalmente vinculados ao seu passado e reagem a estas situações novas de

acordo com suas tendências, porém sempre a partir de sua tradição histórica. Carlos

Mesters apresenta quatro pontos que caracterizam esta nova consciência: 1. consciência de

continuidade histórica; 2. relativização do passado em função do valor absoluto possuído

no presente; 3. preocupação de mostrar modelos de ação que provoquem a caminhada do

povo para o futuro; 4. desejo de ser fiel, apesar de todas as resistências e dificuldades

encontradas no caminho. 321

3.4.3 – Uma definição do ambiente

Dando continuidade ao esforço de contextualização, podemos afirmar que Pr 1-9 e

31 foram elaborados no final da época persa, tendo como ambiente principal a casa, ou

mais claramente, a família estendida. Silvia Schroer afirma que “a queda da monarquia e a

destruição do templo de Jerusalém sacudiram maciçamente a ordem patriarcal estabelecida

e, neste sentido, as mulheres tiveram novas chances, porque os padrões tradicionais de

funções sociais e os sistemas da fé já não tiveram autoridade automática. De repente, a

religiosidade de Israel estava ligada fortemente à família e ao clã, como na época pré-

estatal.”322

Portanto, identificamos a casa ou o clã como a fonte principal destes poemas que

formam a moldura do livro dos Provérbios. Há vozes diferentes sobre este tema, que já

foram registradas no 1º capítulo desta tese. Neste item, menciono apenas alguns autores,

com a finalidade de chegar a uma conclusão sobre o contexto destes poemas que estou

analisando. Norman K. Gottwald apresenta um gráfico para demonstrar os ambientes onde

surge a sabedoria bíblica. Mostra que a sabedoria é gerada em três ambientes sócio -

históricos: 1. há uma “sabedoria de clãs” que percorre toda a história de Israel, desde a

época pré-monárquica até o exílio e a restauração; 2. a sabedoria real começa com a

monarquia unida e continua no pós-exílio com os escribas do governo colonial judaítico; 3.

321 Carlos Mesters, Por trás das palavras, Petrópolis: Vozes, 7ª edição, 1993, p.104. 322 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministissche Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.

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os escribas deuteronômicos começam com a monarquia davídica e continuam depois do

exílio como escribas da torah.323 Embora reconheça que há sérios obstáculos para seguir o

rumo que a sabedoria tomou no período pós-exílico, Norman Gottwald deixa clara esta

possibilidade de que a casa, ou seja, a família estendida seja o ambiente principal da

elaboração destes poemas.

Leo Perdue enfatiza o ambiente das escolas de sábios como o contexto da

elaboração de Pr 31, com a finalidade de oferecer um material para que seus discípulos

pudessem escolher a mulher ideal. 324 Admito que um sábio tenha escrito este poema, como

afirmam Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez. 325 Porém, não com a finalidade de

ensinar ou de passar adiante um ideal de mulher, mas para expressar sua própria

experiência de vida, marcada pela relação com uma mulher que ama e admira e da qual

recebeu até mesmo a honra e o reconhecimento dos anciãos na porta da cidade. Talvez este

poema tenha sido utilizado nas escolas de sábios, sendo depois incluído no livro dos

Provérbios, com a adição do v.30. Mas, ao descrever poeticamente esta mulher do presente,

o poeta tem em mente as mulheres sábias e fortes que contribuíram para a construção da

história do seu povo, partindo de sua própria experiência e observação.

3.4.4 – A intenção

Há uma observação interessante de Silvia Schroer sobre a intencionalidade deste

poema, em que cita Pnina Navé Levinson para afirmar que não corresponde à intenção do

poema fazer um elogio do ideal contemporâneo cristão e burguês do casamento e um elogio

da dona de casa cheia de virtudes, empenhada, co-responsável, que dia e noite está aí, para

servir à sua família. Segundo Silvia Schroer, a ’exet hayil, da qual se fala em Pr 31,10-31, é

uma mulher rica que administra toda a sua casa na maior liberdade econômica e financeira.

Quatro vezes se destaca que a casa é sua (v.15.21.27),326 mas a atuação desta mulher não

323 Veja Norman K. Gottwald, Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, gráfico 10, p.527. 324 Confira Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and History in Proverbs 1-9”, p.89. 325 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales y Proverbios, p.520. 326 No v.21, a expressão “casa dela” Ht'yBe betah aparece repetida duas vezes.

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termina na porta de sua casa. Ela se solidariza com os oprimidos e os pobres (Pr 31,20) e

promove a fama do seu marido (31,23). Sua competente e ampla atuação chega a alcançar o

espaço público, nas portas da cidade.327 Portanto, a intencionalidade do texto é mostrar algo

que o sistema social, cultural e religioso busca manter na invisibilidade: a importância da

mulher sábia e forte na realidade cotidiana e na construção da história do povo bíblico.

3.4.5 – O chão e as raízes

Esta visão da mulher tem suas raízes nas mulheres valentes do pós-exílio que

colaboram na reconstrução de Israel, investindo para isto sua vida e sua sabedoria. São

mulheres que contribuíram na reconstrução dos muros da cidade de Jerusalém, como as

filhas de Selum, mencionadas em Ne 3,12.328 Há histórias de mulheres fortes que

descortinam uma conjuntura em que são possibilitadas relações novas entre países

inimigos,329 como a história de Rute, que também é elogiada com a expressão “mulher de

força” ’exet hayil (Rt 3,11). Há mulheres pobres que participaram ativamente na exigência

da justiça e protestaram contra a escravidão de seus filhos e de suas filhas por causa de

dívidas (Ne 5,1-5).

Partindo da vida real de mulheres fortes e sábias que contribuem para a reconstrução

da história de Israel e, talvez, de uma experiênc ia pessoal de alguém que dá um testemunho

sobre uma mulher que marcou sua vida, o poema de Pr 31,10-31 expressa o poder feminino

na vida da casa, cujas “implicações transcendiam as configurações familiares imediatas de

espaço e parentesco”330.

327 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.159. 328 Embora a Bíblia de Jerusalém traga a expressão “filhos”, em nota de pé de página informa que no hebraico trata-se de filhas. Veja Bíblia de Jerusalém, p.703, nota z. Confira este texto (Ne 3,12) na Biblia Hebraica Stuttigartensia, p.1433, onde se encontra “filhas”, no feminino. 329 O livro de Rute mostra que depois do exílio da Babilônia houve um período em que as relações entre Moab e Judá foram possíveis. Talvez tenha sido uma estratégia de sobrevivência de pequenos estados, para poderem sobreviver diante do império. 330 Carol Meyers, “De volta para casa – Rute 1,8 e a definição de gênero”, em Rute a partir de uma leitura de gênero , Athalya Brenner (organizadora), São Paulo: Paulinas, 2002, p.148.

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No período pós-exílico há uma grande transformação na vida e posição das

mulheres que se reflete lingüisticamente nos textos bíblicos, onde aparecem mais formas

femininas de substantivos e verbos, afirma Silvia Schroer.331 A mesma autora observa que

no período pós-exílio remoto “a casa assume funções de templo e de realeza. Isso tinha

conseqüências radicais, porque durante todo o período da monarquia o culto era

centralizado no palácio e no templo do Deus nacional, Javé”332.

Concluindo, podemos situar Pr 1-9 e 31 no final do período persa, em meio aos

múltiplos contatos culturais e desafios econômicos vivenciados pelo povo de Judá. Neste

contexto, a família estendida passa a ser um referencial básico para a vivência da religião e

da ética, já que com a queda da monarquia e a destruição do templo, o sistema social e

religioso não tinha uma autoridade automática sobre a vida cotidiana. A memória dos

eventos fundantes de Israel e das mulheres valentes que contribuíam para a reconstrução da

vida e da história do povo estão por trás de Pr 31, enquanto a memória de Deusas do antigo

Israel encontra-se presente na primeira seção de Provérbios, sobretudo na imagem da

sabedoria mulher hokmah de Pr 8,22-31.

3.5 – Conteúdo

Depois de analisar Pr 31,1-31 com as ferramentas da exegese formal, buscarei

destacar o conteúdo, interpretando-o a partir das minhas experiências como mulher, sem

perder de vista o contexto das Escrituras. Tomarei cada um dos poemas separadamente,

levando em conta o caminho percorrido até este momento. Concentrarei minha atenção nos

aspectos que desvelam a vida real de mulheres e homens, as suas relações, seus valores e as

condições sociais em que vivem. Relacionarei este texto com outros textos canônicos,

quando perceber a necessidade de iluminar e ampliar o seu sentido.

331 Veja os vários exemplos da importância da mulher nas coisas religiosas apresentados por Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.159s. 332 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.

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1º poema: 31,1-9

v. 1 - Introdução ao texto, mostrando sua procedência

1. Palavras de Lemuel, rei de Massa, que lhe ensinou sua mãe

Este cabeçalho ou título do primeiro poema de Pr 31 apresenta a memória de

correções feitas ao rei Lemuel por sua mãe. As mães dos reis tinham papel muito

importante em Judá. A elas cabia uma função na corte, no poder do Estado.333 Embora haja

uma discussão sobre o sentido do termo aF'm; masa, que poderia significa tanto “peso”,

“carga”, “oráculo”, “pronunciamento”, minha opinião é que o sentido da palavra aF'm

masa tem o sentido de lugar e identifica uma tradição árabe que registra a memória da

sabedoria da mulher, da mãe de um rei. Esta tradição foi acolhida em Judá por sua

identificação histórica com a função e o poder que tinha a mãe do rei na comunidade

judaíta. No v.31,1, a mãe de Lemuel tem a função de “instruir” o rei: “lhe intruiu sua mãe”

AMai WTr;S.yI yisratu ’imo. A versão grega entendeu que estas palavras procedem

de Deus: “minhas palavras foram dit as por Deus” oi` evmoi. lo,goi ei;rhntai

u`po. qeou/.334 Mas, não deixa de mencionar que as palavras procedentes de Deus

foram transmitidas por uma mulher, a mãe do rei: “cuja mãe o instruiu” o]n

evpai,deusen h` mh,thr auvtou. A instrução da mãe, valorizada neste texto, faz

eco às palavras de Pr 3,1: “meu filho, minha torah não esqueças e minha mizvah guarda no

teu coração”. A Bíblia de Jerusalém traduz torah por “instrução” e mizvah por

“preceitos”335. É interessante encontrar estas palavras tão importantes para a formação do

judaísmo, no pós-exílio, relacionadas aos ensinamentos da mãe e do pai (Pr 1,8; 6,20).

Outro aspecto importante, é que em Provérbios a torah (lei) e a mizvah (tradição) não estão

relacionadas ao templo, do qual não se fala em todo o livro, mas à casa. São as tradições da 333 A história de Atalia (841-835 a.C.) deixa transparecer este poder (2Rs 11,1). 334 Biblia Septuaginta id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, editada por Alfred Ralhlfs, New York: American Biblical Society, vol.2, 1950, p.227. 335 Veja Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 2000, p.1120.

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casa que devem ser guardadas no coração. Estas tradições estão carregadas de uma

sabedoria prática e profundamente ética, como transparece nas palavras da mãe de Lemuel

(31,1-9).

v.2-3 – Questionamentos da mãe sobre a maneira como seu filho se expõe

2. Como, meu filho, e como, filho do meu ventre, e como, filho de meus votos? 3. Não dês a tua força às mulheres nem teus caminhos ao que corrompe reis

No v.2, ao traduzir a partícula interrogativa ou exclamativa hm; mah por “como?”,

entendo que a pergunta da mãe está questionando um comportamento, uma atitude que não

deveria ser assumida por um rei. Neste verso, repete-se três vezes a palavra “filho”, na

forma aramaica rB; bar, acrescentando aspectos que não deixam dúvida de que esta fala é

de uma mulher, como “filho de meu ventre” ynij.Bi-rB; bar-biteni.

É curioso observar o mal estar que o registro desta instrução da mãe provoca em

leitores atuais. John N. Oswalt, em seu comentário sobre rB bar, acrescenta que “a

instrução é dirigida por parte de um pai para seu filho (confira Pr 1,8; 2,1, etc.)”336. No dia-

a-dia da casa, certamente a instrução para a vida é feita tanto pelo pai, como pela mãe. Mas,

ao escrever ou ler um texto, o olhar viciado pelo androcentrismo enxerga somente a

instrução masculina. Mesmo quando um texto esclarece qual é a personagem que está

realizando a ação de instruir ou ensinar, como é o caso da mãe do rei em Pr 31,1-2, o

estudioso sente-se impelido a corrigir o texto e afirmar que esta instrução era feita pelo pai.

No v.3, encontra-se a expressão “não dês às mulheres tua força”. O termo ^l,^yxe heyileka, que também poderia ser entendido como “tua força” ou “teu poder” está repetido

no v.10 deste capítulo, justamente para expressar uma qualidade da mulher da vida real, a

336 Veja John N. Oswalt, bar, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, editado por R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K. Waltke, p.211-212, verbete 277.

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“mulher de luta” lyIx;-tv,ae ’exet hayile. O primeiro poema recomenda ao homem que

não dê sua força às mulheres e o segundo aponta para a importância de encontrar a mulher

de força, mulher de poder, mulher valente que luta pela sua autonomia econômica e que

está vestida de dignidade e de força. E o v.3 conclui com outra recomendação relacionada

ao poder: “nem teus caminhos ao que corrompe reis” (v.3b). Entendo que esta

recomendação da mãe está relacionada com a postura ética que deve ser mantida pelo filho

rei. Este é o sentido que encontro na palavra “caminhos”: conduta de vida, comportamento,

postura. O que corrompe os reis e destrói seu nome é a aceitação posturas contrárias aos

princípios que conduzem à vida de todos.

v.4-7 – Instruções sobre o uso da bebida

4. Não (é) para os reis, Lemuel, beber vinho não (é) para os reis, nem para os governantes o desejo de bebida,

5. Porque bebendo se esquecem do decretado e torcem o julgamento de todos os filhos de aflição

6. Dá bebida forte ao moribundo e vinho aos amargados.

7. Que beba e se esqueça de sua pobreza e não se lembre mais de sua aflição. Beber vinho não é para os reis, Lemuel.

Os v.4-7 recolhem a instrução da sábia mãe de Lemuel sobre o uso da bebida,

mostrando que não é suficiente ter equilíbrio ao beber. A sábia mãe do rei supera uma

postura moralizante, voltada para a preocupação com a própria imagem diante dos outros.

Além de preocupar-se com a justiça, há na instrução da mãe uma preocupação com o

sofrimento alheio. Partindo de suas experiências, ela recomenda que se ofereça bebida forte

aos “moribundos”, “amargados”, “pobres” e “aflitos”, pois a bebida alegra aos que sofrem e

os ajuda a esquecer dos seus sofrimentos.

Fazer recomendações sobre o uso da bebida, é próprio das instruções dos sábios. Em

Pr 20,1, há uma advertência para quem se excede na bebida: tomem cuidado, pois

“zombador é o vinho e agitador o licor forte” (Pr 20,1). Este aviso é, também, um estímulo

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para que o jovem não se exceda na bebida e possa “chegar a ser sábio” (Pr 20,1b). Este

sentido foi captado pelo tradutor da Septuaginta, que entendeu o v.5 como: “temendo que

eles bebam vinho e esqueçam a sabedoria, não sendo capazes de julgar com retidão o fraco”

i[na mh. pio,ntej evpila,qwntai th/j sofi,aj kai. ovrqa.

kri/nai ouv mh. du,nwntai tou.j avsqenei/j. Este é o sentido mais

provável do ensinamento da mãe do rei Lemuel. Para ela, o motivo da abstenção é a prática

da justiça. Não é um apelo moralizante, este da mãe do rei Lemuel. É uma preocupação

com a capacidade do rei de julgar lucidamente e com total liberdade, defendendo o direito

dos fracos.

v.8-9 – Conselhos sobre a forma de realizar a justiça

8. Abre tua boca pelos mudos, na causa de todos os filhos de abandono

9. Abre tua boca, julga com justiça, e defende o pobre e necessitado

Esta instrução da mãe, que recomenda ao seu filho rei a prática da justiça, lembra o

discurso da sabedoria mulher em 8,15-16 e 20, onde afirma que através dela os governantes

“decretam a justiça” e os magistrados “dão sentenças justas”. Segundo Silvia Schroer, “o

tema central da sabedoria dos Provérbios, de muitos Salmos e do livro de Jó é a conduta de

vida dos justos, em oposição à dos pecadores e estultos. Todos estes escritos não se cansam

de interrogar-se sobre a ligação entre o agir das pessoas e o que lhes ocorre, por

conseguinte, sobre as bases do seu comportamento ético”337. A preocupação com a justiça e

o direito dos pobres é a postura ética principal na organização da vida na casa (clã) e na

comunidade.

Não é difícil descobrir a situação social expressa através dos termos “mudos”

~Leai ’ilem, “todos os filhos de abandono” @Alx] yneB.-lK' kol-bene halop,

“oprimido” yni[' ‘ani e “pobre” !Ayb.a, ’ebion. Os “mudos” ~Leai ’ilem são todos 337 Silvia Schroer, “A justiça da sophia – Tradições sapienciais bíblicas e discursos feministas”, p.73 [701].

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aqueles e aquelas que não são escutados e cuja palavra ou reivindicação é desprezada. A

expressão “todos os filhos de abandono” deixa entrever uma situação muito ampliada de

marginalidade social, que inclui também “oprimidos” e “pobres”. Isto é, todas as pessoas

cujos direitos não são respeitados e cujas necessidades básicas não são atendidas. São estes

os “filhos de aflição” (v.5), cuja angústia diante de situações ameaçadoras é sentida pela

mulher sábia. Na antiguidade, cuidar dos pobres era uma função do rei. Mas, segundo este

ensinamento da mãe, eles costumavam beber e esquecer-se do direito dos pobres ou torcer

este direito.

Desta maneira, a instrução da mãe do rei Lemuel fica reconhecida não somente

como um texto paralelo aos oráculos proféticos,338 mas também como um registro do

discurso da mulher sábia e do contexto social de sua época.

2º poema: 31,10-31

Os traços do rosto de uma mulher da vida real estão por trás do texto, apontando

para algumas ligações da mulher aqui apresentada com outros textos bíblicos. Mas, não são

traços de uma mulher jovem, mas experiente. As qualidades da mulher da mulher de força,

louvada em Pr 31, são desenvolvidas a partir de sua experiência na administração de sua

casa, no cuidado pela vida de sua família e das pessoas que a cercam. A autonomia

financeira e a capacidade administrativa desta mulher supõem uma longa aprendizagem,

através das diferenciadas relações cotidianas, muitas vezes marcadas por conflitos que

exigem discernimento. Estas qualidades não são naturais, são desenvolvidas pessoalmente

na prática exigida pelas diferentes situações da vida. Embora Luis Alonso Schökel e José

Vílchez Líndez, afirmem que este poema foi elaborado pelos mestres da sabedoria com a

338 Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.522.

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finalidade de orientar os jovens na busca da “mulher desejada e conve niente”339. Esta

afirmação me parece pouco provável, pois não é comum encontrar as qualidades da

“mulher de força” em mulheres muito jovens, como as que eram prometidas em casamento,

naquela época. Vejamos o texto mais de perto para verificar esta afirmação:

v.10 – Pergunta retórica sobre a mulher, salientando sua importância

10. Mulher de força, quem encontrará? seu valor (é) muito maior do que pérolas.

Tanto a Septuaginta como a Vulgata entenderam lyIx;-tv,eaee ’exet hayil como

“mulher forte”. Algumas versões da Bíblia, em português, trazem o termo “mulher

talentosa”340 ou “mulher virtuosa”341. Embora não esteja longe da raiz original, pois

etimologicamente a palavra virtude provém de virtus e tem a ver com força e vigor, esta

não é uma boa tradução, já que em nossa cultura a palavra virtude tem uma conotação

moral que não aparece no texto. O adjetivo hayil tem o sentido de “guerreiro”, “valente”,

“herói”, ou “homem de guerra”, “homem de valor” em Gn 47,6; Ex 18,21.25; Dt 3,18; Jz

3,29; 11,1; 18,2; 20,44.46; 1Sm 9,1, entre outros textos. O termo lyIx; hayil encontra-se,

também, no cântico de Ana, para proclamar que “os enfraquecidos se cingem de força”

lyix' Wrz.a' ~liv'k.nIw> ve-nikexalim ’azeru hayil (1Sm 2,4b). É usado por Booz

para fazer um elogio à Rute: “tu és mulher de força” (Rt 3,11). No mesmo v.10b de Pr 31,

há uma repetição do termo lyIx; hayil, usado no sentido de “valor”: “seu valor (é) muito

maior do que pérolas”. O termo lyIx; hayil aparece também no v.29, no contexto do

elogio que o marido da mulher forte lhe faz. Portanto, este poema possui uma indicação

muito clara de que a descrição desta mulher tem a ver com a coragem e a valentia com que

ela enfrenta seu dia-a-dia na casa, na construção da história de sua família e de seu povo.

339 Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.524. 340 Bíblia de Jerusalém, p.1163. 341 Confira em Bíblia Sagrada , versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.570.

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Mas, a mulher forte é introduzida neste poema através de uma pergunta e não de

uma afirmação. A pergunta é retórica e quer insinuar como é raro encontrá- la. Pode ser que

esta pergunta seja reveladora de uma visão sobre a mulher, presente no contexto cultural

deste texto. Sinto que é necessário estar atenta, para não cair em armadilhas e submeter-me

à ideologia subjacente ao discurso. Para mim, a pergunta retórica: “quem a encontrará?”

tem como finalidade salientar o valor da mulher forte, enfatizado na segunda parte do v.1,

através da comparação: ela vale “mais que pérolas”. Esta mesma expressão foi usada em Pr

3,15 e 8,11 para enfatizar o valor da sabedoria. Além de chamar a atenção para a mulher

que será apresentada nos versos seguintes, através desta comparação, o poeta realiza um

enlace entre a figura da sabedoria mulher (Pr 1; 8 e 9) e a mulher da vida real, cantada em

Pr 31,1-31.

v.11-12 – Ela é motivo de felicidade para seu marido

11. Confia nela (o) coração de seu marido e não lhe faltam lucros

12. Proporciona-lhe bem e não mal todos os dias de sua vida.

O uso da palavra “coração” ble leb traz alguns matizes que ajudam a entender a

relação desta mulher com seu marido. Em Pr 2,10; 14,33; 16,23 o leb é o órgão da

sabedoria hokmah. No hebraico, é com o coração que se conhece (Jó 17,4; Pr 2,2), e se

julga criticamente (Jz 5,15s; Ecl 2,1.3.15). Desta maneira, a relação da mulher da vida real

com seu marido fica ampliada pelo uso da palavra “coração”. Se o poeta assegurasse,

apenas, que seu marido confia nela, poderíamos interpretar que a razão de sua confiança

estivesse relacionada à sua capacidade para administrar a casa e os negócios com total

competência. Mas, o uso de leb amplia o motivo da confiança de seu marido, deixando

perceber algo sobre as relações ent re os dois. O v.12 segue na mesma intencionalidade de

ampliar o bem estar que a ’exet hayil lhe proporciona. Com o uso do termo “bom” bAj

tob, o poeta amplia o sentido dos bens que a mulher de luta proporciona ao seu marido. Há

muitas passagens na Bíblia Hebraica que apresentam bAj tob com o sentido de benefício

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prático ou econômico (Gn 2,9; 41,5.36; 50,20). Também é empregado no sentido de fama e

reputação (Is 56,5; Jo 34,4). Com freqüência, “bom” significa “feliz” “agradável”, “alegre”

(1Sm 25,8).342 A frase: “proporciona-lhe bem e não mal todos os dias de sua vida” está

indicando que, como esposa, a mulher de força não traz felicidade ao seu marido somente

em alguns momentos do seu dia, mas todos os dias de sua vida.343

v.13-20 – Competente nos negócios, ela se cinge de força e autonomia

O v.13 é iniciado pelo verbo “buscar”. É interessante observar que este verbo no

feminino, aparece somente aqui com este sentido de buscar para si suprimento do material

necessário para o próprio trabalho.

13. Busca lã e linho e suas mãos trabalham com alegria.

Segundo Os 2,7.11, era o homem que deveria prover a mulher de lã e linho para

suprir suas necessidades. Mas, em Pr 31,13 é a mulher quem busca o suprimento de que

necessita. Ela tem autonomia para conseguir a matér ia prima necessária para fazer seu

trabalho (v.13) e tem liberdade para comercializá- lo (v.24). É esta autonomia que lhe

garante o prazer de trabalhar, como indica a segunda parte do v.13. Se suas mãos trabalham

com alegria é porque esta mulher tem motivações próprias para trabalhar. Além disso, ela

não está confinada ao espaço da casa, continuamente fiando, tecendo e costurando

(v.13.19.22 e 24), mas está ligada ao mundo comercial, através da busca do material

necessário para seu trabalho e de alimentos para sua casa (v.14). Ela mesma realiza os

contatos necessários para a comercialização dos seus produtos (v.16.24). Talvez este texto

esteja mostrando uma evolução cultural quanto à autonomia econômica da mulher e suas

funções na casa.

342 Confira Andrew Bowling, em em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento , editado por R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr., e Bruce K. Waltke, p.564-566, verbete 793a. 343 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.123.

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No v.14, temos uma comparação inédita dentro deste poema. A mulher forte e sábia

é comparada a uma nave mercante.

14. É como as naves mercantes de longe traz seu pão.

Esta comparação com as “naves mercantes” dá continuidade ao tema da autonomia

econômica da mulher e, ao mesmo tempo, lhe proporciona uma auréola de majestade e de

abundância.344 Em Is 60,9, encontramos uma alusão aos navios de Társis, trazendo de longe

os filhos de Jerusalém carregados de prata e ouro. Também se menciona os navios de Társis

formando caravanas ao serviço do comércio de Jerusalém, em Ez 27,25. Ainda que estes

textos sobre navios mercantes estejam no contexto de denúncia profética contra Jerusalém,

a imagem da nave mercante ficou na memória do povo como símbolo de riqueza e

abundância. Um significado que vem das tradições sobre os tempos de Salomão (1Rs

10,22). No entanto, parece que os tempos da abundância passaram. Estamos em outro

contexto. Se observamos que no v.14 as “naves mercantes” estão relacionadas com o pão,

podemos intuir que a produção dos grãos na terra de Judá já não é suficiente que todas as

famílias tenham seu pão. Será que a cevada e o trigo estão sendo importados?

O v.15 continua apresentando a grande competência desta mulher na administração

de sua casa:

15. E se levanta quando ainda é noite e dá alimento à sua casa e porção para suas criadas.

A primeira parte do v.15 apresenta a mulher forte levantando-se muito cedo para dar

“sustento à sua casa”. Já que o termo casa, no hebraico, tem um sentido amplo, que inclui

os bens e todas as pessoas que nela residem, não seria necessário acrescentar “e porção às

suas criadas”. No alimento dado pela mulher “à sua casa” já estaria incluída a porção que

deveria ser dada às suas criadas. A última parte deste verso não seria necessária. Entendo

que a última parte do v.15 poderia ser um acréscimo posterior, com a intenção de ligar Pr

344 Conferir Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.529.

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31,15 com Pr 30,8 através da palavra “porção” relacionada a alimento: “pão de minha

porção” yQixu ~x,l, lehem huqi (Pr 30,8). Mas, não é meu objetivo desenvolver este

tema da ligação ou enlace entre os últimos capítulos do livro de Provérbios, no texto

massorético. O que me interessa neste texto é a apresentação da mulher da vida real. Uma

característica desta mulher é sua prontidão para levantar-se de madrugada e repartir o

alimento necessário a todas as pessoas da casa. Portanto, esta alusão especial às criadas

pode ter aqui o sentido de dar-lhes visibilidade no texto e também de apreentar com

detalhes a capacidade e também a prontidão no atendimento das necessid ades dos seus

criados e criadas.

No v.16, encontramos mais um traço do rosto da ’exet hayil de Pr 31,10-31. Ela não

é somente uma boa “dona de casa” que provê as necessidades de seu marido, filhos e

criados, buscando trazer de longe aquilo de que necessitam. É também uma boa

administradora que busca desenvolver os bens que conquistou com seu trabalho.

16. Examina um terreno e o compra. Do fruto de suas mãos planta uma vinha.

Este verso mostra, também, que esta mulher tem uma capacidade intelectual, pois o

verbo ~mz zmm, que introduz o v.16, tem o sentido “pensar”, “refletir”, “ponderar”,

“examinar”. Com o uso deste verbo, o texto está indicando claramente que ela tem

capacidade para pensar e autonomia para tomar decisões. A mulher de Pr 31,10-31 não

trabalha apenas com habilidosas mãos e com tino administrativo. Ela pensa, estuda,

examina um terreno, antes de comprá- lo. Sabe fazer bons investimentos com o fruto do seu

trabalho. A frase “do fruto de suas mãos planta uma vinha” (v.16b) pode ter aqui dois

significados. Primeiro, relacionado ao sentido empreendedor desta mulher. Segundo,

mostrando mais uma vez sua proximidade com Javé. É interessante observar que a mulher

de luta planta uma vinha com o fruto de suas mãos. Esta afirmação pode ter um sentido

metafórico, pois Javé é o plantador da vinha que é Israel (Jr 11,17; Ex 15,17; Sl 80,9-10.16;

Is 60,3.21). A visão de Javé como plantador de jardins, de vinhas e de árvores é muito

conhecida entre o povo bíblico. A segunda narrativa da criação apresenta Deus plantando

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um jardim no Éden (Gn 2,8). O Salmo 104,16 afirma que Javé plantou os cedros do Líbano.

Os profetas usam continuamente a imagem de Israel como uma vinha plantada por Javé

(Am 9,15; Is 5,7; 60,21; Jr 2,21; 5,10; 6,9; 8,13; 31,28; 32,41). Porta nto, encontro no v.16

uma identificação entre a ’exet hayil e Javé, que continuará nos versos seguintes.

O v.17 mostra outro aspecto da força e autonomia desta mulher, pois o gesto de

“cingir a cintura com decisão e de fortalecer os braços” faz parte do ritual de preparação

para o trabalho manual e para as longas caminhadas, em uma época em que se usavam

roupas compridas.

17. Cinge a cintura com disposição e fortalece seus braços.

O verbo cingir hr'g.x' hagerah fazia parte da cultura da casa. A raiz do verbo

“cingir” rAgx hagor é a mesma de “cinturões”. Era uma ação muito comum colocar-se

um cinturão para sustentar a túnica, o que leva a pensar na demanda de cinturões, já que

esta devia ser uma peça muito usada. Em 31,24, a mulher fabrica “cinturões” para vender.

Mas, não apenas para o trabalho usavam-se cinturões. Edwin Yamauchi ressalta que as

mulheres usavam cintos ornamentados semelhantes ao obi dos japoneses (Is 3,24; Pr

31,24), e os homens usavam cintos de onde pendiam as espadas (1Sm 18,4).345

Mas, o interesse do poeta recai sobre o verbo “cingir” hr"g>x" hagerah. A

mulher de força “cinge a cintura com disposição e fortalece seus braços”. Encontra-se nesta

afirmação um eco do Sl 65,7, onde se apresenta Javé cingido de poder para sustentar as

montanhas da terra. A metáfora aponta para a obra da criação. Certamente, no caso da

mulher, uma permanente criação e re-criação no dia-a-dia da vida, na casa. Aqui,

novamente, o poeta chama a atenção para a força e o poder da mulher no cuidado pela vida

de todas as pessoas da família estendida e na atenção à realidade que a envolve.

345 Edwin Yamauchi, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento , editado por R. Laird Harris, Gleason L. Archer Jr. e Bruce K. Waltke, p.426 -427, verbete 604.

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No verso 18, encontramos mais uma referência ao gosto que sente esta mulher na

realização do seu trabalho.

18. Percebe que seus negócios vão bem e sua lâmpada não se apaga de noite.

Este verso é iniciado pelo verbo “perceber” hm'[]j' ta‘amah que, no hebraico, tem

também o sentido de saborear. Isto é, tem algo a ver com sentir prazer ao obter a percepção

de diferentes sabores. Mas, o desenvolvimento do sentido deste verbo levou ao seu uso para

dar uma idéia de avaliação e decisão, ou seja, de percepção da realidade.346 O uso do verbo

ta‘amah pelo poeta acrescenta algo sobre o prazer que esta mulher sente ao ver o sucesso

dos seus negócios. Talvez se encontre, aqui, uma indicação de uma paixão criativa que leva

esta mulher a passar noites acordada. Não seria somente a motivação pelo resultado

econômico que a faria trabalhar tão intensamente, mas a alegria de realizar um trabalho que

alcança bom resultado, que tem sucesso. Ela percebe, sente, saboreia o gosto de realizar

este trabalho, como se estivesse construindo a si mesma.

Os versos 19 e 20 estão ligados entre si pela repetição das mesmas palavras. Assim

enlaçados, estes dois versos apontam para um novo sentido do trabalho da ’exet hayil.

19. Abre suas mãos ao fuso e suas palmas sustentam a roca,

20. Sua palma estende ao pobre e abre suas mãos ao necessitado

Ao concluir esta subunidade enlaçando os dois últimos versos através de um

quiasmo, o poeta deixa clara a postura da mulher e da sua casa. A solidariedade faz parte da

organização da sua vida e expressa ao mesmo tempo sua religião, a sua compreensão do

sentido da vida, a finalidade do seu trabalho. Este verso mostra que a vida na casa desta

mulher é organizada dentro dos preceitos da torah. Em Dt 15,11 encontra-se o mandamento

de “abrir a mão” pth yad ao pobre. Em Is 58,1-12 a partilha do pão, a luta pela justiça e a

346 Ralph H. Alexander, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, R. Laird Harris, Gleason L., Archer Jr., Bruce K. Waltke, p.576, verbetes 815 a e 815b.

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postura ética em relação aos direitos dos trabalhadores representam aquilo que agrada a

Deus, muito mais do que jejuns e ritos vazios.

A detalhada descrição do intenso trabalho da ’exet hayil está direcionada para esta

conclusão, onde aparece a solidariedade e a partilha com pobres e necessitados,

inseparavelmente ligadas ao trabalho. Podemos então concluir que tanto afã de trabalhar

não tem a finalidade de acumular bens, mas de responder às necessidades próprias e do seu

contexto, exercendo a solidariedade com os pobres e necessitados.

v.21-27 – Vestida de beleza e dignidade, ela ensina com sabedoria

Os v.21-27 apresentam outro bloco de conteúdos a respeito da mulher de força,

acrescentando aspectos mais abstratos como beleza, dignidade, sabedoria.

21. Não teme pela sua casa (quando) neva, pois toda a sua casa está vestida duplamente

O verso 21 repete duas vezes o termo “sua casa” ou “casa dela” Ht'yBe betah.

Este termo bayt, com sufixo feminino que indica posse, ocorre seis vezes na primeira

unidade do livro dos Provérbios (2,18; 5,8; 7,8.27; 9,1.14)). Em 31,21, bayt está indicando

a relação de posse e de responsabilidade que esta mulher tem com seus familiares e criados.

Ela não teme pela neve, porque teceu roupas forradas para toda a sua casa, já que o termo

~yniv' xanim significa “vestido duplo ou forrado”347.

Encontra-se na atitude desta mulher uma postura ética de responsabilidade e terna

compaixão pelo pessoal da sua casa. Dentro do sentido de casa no povo bíblico, este verso

indica que não somente ela, seus filhos e marido estão abrigados contra o frio. “Toda a sua

casa” está vestida com roupas próprias para o inverno. No v.15 a distribuição igualitária do

pão expressa, também, o cuidado da ’exet hayil com a vida de todas as pessoas. Sim, a casa 347 Veja mais detalhes em Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.532.

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é dela. Mas, a sua atitude diante da casa não é tanto a de quem tem uma “posse”, mas de

quem tem cuidado responsável.

O v.22 mostra que, apesar de seus trabalhos e responsabilidades, a mulher sábia e

forte não se descuida de si mesma.

22. Faz colchas para si e sua roupa é de linho e púrpura

A mulher sábia e forte não se descuida. Ela se sente bem em seu quarto. Prepara

colchas para sua cama. Também se apresenta bem, vestindo-se com gosto, já que o detalhe

sobre sua roupa de linho e púrpura pode estar se referindo às cores branca e vermelha. Um

detalhe que indica o bom gosto e a elegância com que se veste esta mulher.

Há vozes que insistem na ausência da beleza como qualidade da mulher de força.348

Aliás, a beleza é desprezada no v.30 deste poema. Mas, quando olhamos para os detalhes

apresentados neste verso e no verso anterior (v.21), encontramos uma mulher sorridente,

cheia de força e dignidade, vestida com bom gosto. Há um destaque nestes versos para a

aparência da mulher e para aspectos da sua subjetividade.

No v. 23 aparece novamente a referência ao marido.

23. Seu marido é conhecido, quando se senta nas portas com anciãos da terra

Nos v.11 e 12, o poeta já havia mencionado o marido, ressaltando a confiança e o

bem estar que a mulher lhe proporcionava. Agora, no v.23, ele é apresentado na porta da

cidade, onde é respeitado pelos anciãos. Sua boa reputação pública parece que se deve à sua

esposa. Ele recebe dela a segurança, o bem-estar e o nome, ou a honra. Segundo Judith E.

McKinlay, este verso pode estar sugerindo que o respeito público ao marido, na cidade,

348 Veja, por exemplo, Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.525-530.

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deve-se mais à sua mulher, embora ela mesma observe “que isto está mais subtendido do

que declarado.349

O v.24 insiste no valor e na dignidade da ’exet hayil

24. Faz roupa de linho e vende e provê de cinturões ao comerciante

O verbo “fazer” hf'[' ‘asah encontra-se nos v.13.22.24 e 29 deste poema. O nome

“mãos” aparece seis vezes, sendo uma vez nos v.13.16.19, duas vezes no v.20, e uma vez

no v.31. A repetição de “fazer” e “mãos” deixa bem claro o enfoque do trabalho. No

entanto, este não é o único enfoque deste poema. No v.24, são repetidas outras palavras,

como “valor”, “vestir-se” e “cingir-se”, deixando claro o valor e a dignidade da mulher aqui

apresentada. Ela “faz” ou realiza muitas coisas. Ela está constantemente trabalhando. Nos

v.13.19.22 e 24 ela fia, tece e costura. No v.15, ela supervisiona a distribuição de alimento

a todas as pessoas da sua casa. Poderíamos ficar com a idéia de que ela realiza as tarefas

típicas de uma mulher dentro de sua cultura. Mas, além destas tarefas, ela traz de longe o

seu sustento (v.14) e investe o fruto de seu trabalho na compra de um bom terreno para

plantar um lucrativo vinhedo (v.16), preocupando-se, ainda, em especular os lucros do

comércio (v.18). Ela se solidariza com oprimidos e pobres (v.20). Por esta incansável obra

ela será louvada nas portas da cidade (v.31).

No v.25, encontramos uma apresentação do corpo desta mulher. Podemos vê-la com

a cabeça erguida e um sorriso nos lábios.

25. Está vestida de força e dignidade e sorri para o futuro

Ao usar mais uma vez a palavra “vestido”, 350 o poeta acrescenta um sentido

simbólico ao termo, indicando a proximidade desta mulher com Javé. Como já foi

comentado anteriormente, a expressão “de força e majestade está vestida” é paralela a uma 349 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124. 350 A palavra “vestido”, em hebraico vbl lbx, aparece nos v.22 e 25.

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referência a Javé, feita pelo compositor do Sl 104,1: “de esplendor e majestade estás

vestido”. Esta linguagem metafórica construída com a raiz de vestir lbx, não é o único eco

do Sl 104 neste poema. No v.24, encontramos ainda a expressão: “quão numerosas são as

tuas obras, Javé, e todas fizeste com sabedor ia!” Parece que o compositor deste poema de

Pr 31,10-31 tinha em mente o capítulo 8 de Provérbios, onde se encontra a bela descrição

da sabedoria artífice do universo. Por trás do poema da hokmah em 8,22-31, podemos

encontrar as obras bem concretas da ’exet hayil no esforço de oferecer o bem estar para

todo o pessoal da sua casa. Mas, o significado destes verbos vai além da aclamação das

obras desta mulher. O poeta quer ressaltar também sua beleza e majestade, com uma

expressão semelhante àquela que o poeta usou para louvar a Javé no Sl 96,6: “esplendor e

majestade estão diante dele; poder e formosura em seu santuário”. Estas expressões

poéticas têm a função de exaltar a figura das mulheres da vida real, mostrando sua

proximidade com Javé.

O verso 26 enlaça, mais uma vez, o poema da mulher da vida real (Pr 31,10-31)

com a sabedoria mulher de Pr 1-9.

26. Abre sua boca com sabedoria e ensina com bondade

Em 8,22-31 este tema está claramente apresentado, já que a sabedoria pré-existente

está ao lado de Javé , realizando a obra da criação. E em 8,14 a sabedoria mulher proclama

em primeira pessoa, que possui os dons do conselho e bom senso, inteligência e poder. Esta

elaboração poética de 31,26 visa destacar qualidades abstratas da ’exet hayil e está

relacionada à sua sabedoria. Destaca os dons destinados à realização da função de ensinar

que ela exerce com bondade e não com dureza.

Uma ligação entre a primeira e a última seções do livro dos Provérbios se dá,

também, pelos versos 1,8; 6,20 e 31,1, que reiteram a função da mãe como sábia educadora

de seus filhos. Em 31,26, chama a atenção a sua forma de ensinar, que facilita a relação e

gera aprendizagem, pois deixou de lado a dureza e aspereza de quem impõe experiências

próprias e domina as consciências.

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Portanto, esta mulher da vida real está muito próxima da sabedoria mulher da seção

de Pr 1-9.

No v. 27, encontra-se uma referência ao processo que realizam todas as pessoas que

fazem parte da “casa dela”, incluindo sua conduta e seu trabalho.

27. Vigia a caminhada de sua casa e não come pão de ociosidade.

A afirmação de que a mulher forte e sábia vigia a caminhada de sua casa e não come

pão de ociosidade, quase não fazia falta neste poema. A capacidade de trabalho desta

mulher está muito enfatizada em todo o texto. Esta afirmação está colocada aqui como uma

conclusão da poética descrição da mulher forte, de tudo o que ela realiza e de seus dons

pessoais.

v.28-29 – Louvação da mulher pelos filhos e pelo marido

28. Seus filhos se levantam e a felicitam, seu marido a louva, dizendo:

29. muitas filhas agiram valiosamente, mas tu superas a todas elas.

Depois de ser apresentada com inúmeros e detalhados elogios, a mulher forte

começa a ser aplaudida. Primeiramente recebe os aplausos dos filhos (v.28a) e depois do

marido (v.28b-29). É curioso o modo como o marido se dirige a ela: “muitas filhas agiram

valiosamente, você superou a todas”. Certamente, pelo tom do poema, espera-se que o

marido diga: “muitas mulheres”, em vez de “muitas filhas”. Judith McKinlay considera que

este termo faz parte do estatuto dos filhos e cita C. H. Toy para indicar que esta expressão

para as mulheres aparece somente aqui e em Ct 2,2 e 6,2. Segundo estes autores, o uso do

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147

termo “filhas” é uma continuação do tempo em que as mulheres, mesmo depois do

casamento, permaneciam ligadas à casa do pai. 351 Luis Alonso Schökel e José Vilchez

Lindez sugerem uma inclusão, formada pelos v.11 e 29.352 Judith McKinlay também vê

uma inclusão neste poema. Ela observa que o “valor” da mulher nos v.10 e 29 pode ser

uma forma literária de inclusio 353. Segundo esta autora, o poema de 31,10-19 estaria

organizado a partir do termo hayil e tudo o que segue poderia ser um adendo. Se esta é a

forma de organizar literariamente o poema, os termos que formam a inclusão estão

relacionados ao valor da ’exet hayil que no v.10 “vale mais que pérolas” e no v.29 “supera

valiosamente a todas as filhas”, segundo Judith McKinlay. 354

Chama a atenção o contraste entre a força, o poder e a autonomia desta mulher

apresentada com diferentes elogios, dentro do poema e a expressão “filhas”, usada pelo

marido no v.29. Pode ser que o poeta tenha usado deliberadamente o termo “filhas” para

expressar uma ambigüidade presente na vida cotidiana das mulheres. Embora valiosas e

competentes em seus trabalhos e na orientação sábia dos filhos, elas vivem na condição de

“filhas”, isto é, subordinadas à “casa do pai”. Se os autores que apontam para uma inclusão

estão corretos, realmente, a contradição é grande, pois no interior do texto encontra-se

repetido o termo “casa dela” (v.15 e 27) e em todo o corpo do texto não se encontra

nenhuma vez a expressão “casa do pai”. Então, o termo filhas, realmente destoa do resto do

poema.

v.30 – Considerações dos sábios sobre a mulher

30. A mentira da graça (é) o vazio da beleza. A mulher do temor de Javé, ela é louvada.

351 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124 e C. H. Toy, A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Proverbs, Edinburg: T. & T. Clark, 1989, p.548. 352 Confira Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, com a colaboração de A. Pinto, Sapienciales y Proverbios, p.535. 353 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.125. 354 Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.125.

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148

O v.30 parece ser uma adição posterior, com uma antítese introduzida por um

comentário de que “enganosa é a graça e vã é a beleza”, semelhante a Ben Sira 25,21: “Não

te apaixones pela beleza de uma mulher”355. A segunda parte do verso, que forma a

antítese, mostra que a mulher que merece louvor é aquela que teme a Javé. Há falta de

continuidade do v.30 com os temas anteriores do capítulo 31, levando-nos a pensar que este

verso seja realmente um adendo.

Quanto ao tema do temor de Javé, ele se encontra muito repetido na primeira seção

do livro dos Provérbios (1-9). Em Pr 1,7 encontramos a afirmação de que “o temor de Javé

é o princípio do conhecimento”. Em Pr 1,29, a frase “porque odiaram o conhecimento e não

escolheram o temor de Javé”, faz uma inclusão para o primeiro poema da sabedoria mulher

(Pr 1,20-23s). Em Pr 9,10, aparece a mesma frase, fechando os dois poemas da sabedoria

mulher (8 e 9). Segundo Luis Alonso Schökel, a afirmação de que “o temor de Javé é o

princípio do conhecimento” é, ao mesmo tempo, o princípio teologal do livro e a meta a ser

alcançada. Segundo o autor citado, este é um resumo do programa e das principais formas

literárias empregadas no livro. 356

Mas, podemos também compreender esta afirmação como um acréscimo feito pelos

editores do livro dos Provérbios. A falta de nexo do v.30 com o resto do poema (31,10-31)

aponta para esta possibilidade. Alguns dos poemas sobre a sabedoria mulher poderiam já

estar compostos antes da elaboração da moldura para todo o livro dos Provérbios (1-9 e 31).

Eles nasceram no ambiente da casa e da comunidade, nas suas reuniões e celebrações. Os

poemas que trazem a memória da sábia mãe do rei Lemuel e da ’exet hayil já estariam

também compostos e até mesmo seriam utilizados nas escolas de sábios, que surgiram “no

início da primeira metade do período persa”357. Os editores finais do livro dos Provérbios

recolheram e organizaram este material no final da época persa, colocando-o dentro do

enfoque do temor de Javé.

355 Bíblia de Jerusalém, p.1282. 356 Luis Alonso Schökel, Proverbios y Eclesiástico – Los libros sagrados, p.25. 357 Leo G. Perdue, “Wisdom Theology and Social History in Proverbs 1-9”, p.89.

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v.31 – Louvação da mulher nas portas da cidade.

31. Dai-lhe do fruto de suas mãos e louvem-na suas obras nas portas.

O poema é encerrado com o convite para um louvor público à mulher, na porta da

cidade, no espaço comumente reservado aos homens. Neste espaço, uma voz que anima a

assembléia, usando um imperativo piel da raíz “dar” !tn ntn. E o que a assembléia do povo

deve dar à mulher deste poema? Deve dar- lhe louvor pelas obras que realiza.

Este louvor público na porta da cidade lembra o canto de Débora, em Jz 5,11-13,

onde se narra a descida do povo de Javé das montanhas para as portas da cidade, depois da

vitória contra seus dominadores. É nas portas que as tribos das montanhas se juntam para

celebrar o triunfo de Javé. Todos pedem à Débora que entoe o cântico da vitória que ela

ajudou a conquistar com sua valentia. Pr 31,31 lembra, ainda o final do livro de Rute (Rt

4,11), quando o povo e os anciãos responderam: “Nós somos testemunhas! Que Javé torne

essa mulher que entra em sua casa como Raquel e Lia, que formaram a casa de Israel”.

Assim, mais uma vez assinala -se que este poema recolhe a imagem da mulher valente, que

no pós-exílio colaboram na reconstrução de Israel, investindo para isto sua vida e sua

sabedoria. 358

Mas, a ’exet hayil de Pr 31,10-31 representa não somente as heróicas mulheres da

história bíblica. Segundo Silvia Schroer, “o texto hebraico deixa transparecer, sem dúvida

alguma, que a mulher valente representa a hokmah e como representante dela merece

atributos que, fora disso, são privilégios de Javé”359. É evidente que a hokmah

personificada, em Pr 1-9, e a mulher valente, em Pr 31, são parentes uma da outra, no

sentido de que uma é a sabedoria mulher e a outra, a mulher sábia. Ambas têm funções que

constroem e ma ntêm a casa e, ambas, à sua maneira, influenciam no espaço público.

358 Veja meu comentário sobre este tema no estudo sobre o contexto de Pr 31, item 3.4.5, “O chão e as raízes do texto”. 359 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.156.

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Conclusão

O capítulo 31 de Provérbios é formado por dois poemas unidos pelo mesmo tema: a

mulher sábia e forte e sua importância na vida do povo. O primeiro poema apresenta o

discurso da mãe do rei Lemuel (31,1-9), cujo ensinamento teve, certamente, enorme

importância para o exercício de sua função, já que o registraram e o fizeram circular (31,2-

9). O segundo poema (31,10-31) apresenta o valor e a importância da ’exet hayil, capaz de

administrar com muita competência sua casa e, ao mesmo tempo, ensinar com sabedoria e

bondade (31,26).

No entanto, há uma grande diferença na forma de organizar os dois poemas, pois o

segundo foi elaborado de forma acróstica. Pelo visto, esta clara diferença entre a forma da

primeira e da segunda parte do cap.31 de Provérbios teve influência no tradutor da versão

dos LXX. Por isso, os dois poemas não estão no mesmo lugar, na Septuaginta e no TM.360

Esta observação mostra que a coesão interna do cap.31 não se dá pela sua forma, e sim pelo

seu conteúdo. Isto é, o que dá coesão ao texto é a apresentação dos ensinamentos, postura

ética e trabalhos da mulher sábia e forte.

Estas duas personagens se iluminam mutuamente: a sábia mãe de Lemuel (31,1-9) e

a “mulher de força” (31,10-31). A ligação entre estas subunidades literárias se dá, em

primeiro lugar, pelo fato de apresentarem mulheres com função de ensinar. Em Pr 31,1-9 a

mãe de Lemuel tem a função de ensinar e corrigir seu filho, rei de Massa. Segundo Gerhard

von Rad, “aconselhar ao rei com palavras adequadas era uma função cheia de

responsabilidade, que exigia capacitação adquirida graças a uma longa educação”361.

Porém, o livro dos Provérbios apresenta uma sabedoria nascida a partir da observação e da

reflexão dos fatos da vida. As palavras que a mãe do rei Lemuel lhe dirige foram

aprendidas através de gerações de mulheres que cultivaram a sabedoria da vida e a

360 Johann Cook, The Septuagint of Proverbs – Jewish and/or Hellenistic proverbs? p.297. 361 Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial , p.32.

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transmitiram aos seus filhos, no âmbito familiar. Mas, em Pr 31,1-9, estas “palavras”

entram para a o ficialidade. Passam a fazer parte da tradição dos reis de Massa.

Na segunda subunidade (Pr 31,10-31), entre as diferentes funções da “mulher de

força”, há uma que chama a atenção pelos detalhes que mostram ao mesmo tempo sua

função de ensinar e a maneira como a realiza: “ela abre a boca com sabedoria e sua língua

ensina com bondade” (31,26). Em meio a muitas outras funções realizadas pela competente

Administradora de sua casa, esta afirmação sobre o ensinamento da mulher sábia soa como

uma palavra rara, que não pode ser totalmente emudecida. Ela é um dos enlaces principais

dos dois poemas do capítulo 31 de Provérbios.

Portanto, há elementos que fazem o enlace entre os dois poemas de Pr 31: a figura

da mulher sábia e forte, como acabamos de indicar; a preocupação com “oprimido”,

“pobre” (v.5.9.20), “amargado”, “aflito” (v.7), “mudo” (v.8) e “oprimido” e “pobre” (v.20),

tanto no discurso da mãe do rei Lemuel como no discurso sobre a mulher forte e sábia.

Através destes termos, os dois poemas deixam transparecer uma preocupação com os

marginalizados, uma postura ética voltada para as pessoas empobrecidas. A alusão a

sofredores, oprimidos e pobres desvela aspectos importantes do contexto sócio-econômico

do texto. Subjacente ao cap.31 de Provérbios, no TM, existe uma casa real (31,1-9) e uma

casa abastada (31,10-31) e, ao mesmo tempo, oprimidos e pobres que são o objeto da

preocupação da mãe do rei Lemuel e da ’exet hayil. Então, podemos afirmar que uma das

características da sabedoria de mulher é a compaixão e a solidariedade com pessoas

injustiçadas e marginalizadas da sociedade do seu tempo.

Há, ainda, termos que estão presentes nos dois poemas e que são importantes no

tecido do texto, como o termo hayil, que aparece na instrução da sábia mãe do rei Lemuel

(v.3), na introdução ao segundo poema (v.10) e no louvor que o marido da mulher forte e

sábia lhe faz (v.29), tornando-se uma palavra chave para entender o texto. O termo hayil

tem vários sentidos, como “capacidade”, “força”, “posse”, “propriedade”. 362 No v.3, o uso

desse termo desvela uma visão da mulher como interesseira. Já nos v.10 e 29, o uso do 362 Veja Nelson Kirst, Nelson Kilpp, Milton Schwantes, Acir Raymann e Rudi Zimmer, Dicionário hebraico-português & aramaico-português, p.67.

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termo hayil revela uma qualidade da mulher, apresentando-a como forte e valente, capaz de

administrar sua casa com muita competência e de proporcionar bem estar a todas as pessoas

que fazem parte do seu contexto familiar (v.12.14.15). Além de trabalhar com as mãos, ela

tem grande capacidade para administrar sua casa e tem autonomia suficiente para buscar os

suprimentos de que necessita para seu trabalho (v.14). A ’exet hayil não fica limitada ao

espaço privado de sua casa, mas realiza contatos necessários para a comercialização de seus

produtos (v.16.24).

Não é somente a autonomia da ’exet hayil que chama a atenção neste texto, mas um

grande número de comparações e expressões que não deixam nenhuma dúvida de que esta

mulher está colocada em proximidade com Deus e com a sabedoria. 363 Uma dessas

expressões encontra-se no v.17, onde o poeta usa uma frase do Sl 65,7 para louvá- la por sua

capacidade de criadora: “cinge a cintura com disposição e fortalece seus braços”, fazendo

eco ao louvor de Javé pela criação. Outra expressão que mostra a proximidade da ’exet

hayil com Deus encontra-se no v.25, onde ela está “vestida de dignidade e sorrindo para o

futuro”. Esta expressão encontra-se literalmente no Sl 104,1, referindo-se a Javé e traz o

eco do Sl 96,6. Ao usar estas expressões e comparações, o poeta exalta a figura desta

mulher e a coloca em proximidade com Javé e com a sabedoria cósmica, criadora do

universo (Pr 8,22-31).

Os v.13-20 descrevem com muitos detalhes a intensa atividade da mulher como

administradora de sua casa, apresentando-a continuamente ocupada em fiar, tecer, costurar,

distribuir alimentos (v.13.16.19) e, também, de refletir, ponderar e fazer bons investimentos

econômicos com o fruto do seu trabalho (v.16). Nos v.19 e 20, encontramos uma indicação

de que a mulher forte e sábia organiza a partilha solidária da sua casa com os pobres e os

necessitados, como uma demonstração de sua fidelidade a torah.

Mas, apesar de tantos trabalhos, a mulher sábia e forte não se descuida. Sua roupa é

de linho e púrpura e “está vestida de força e dignidade” (v.22). Esta linguagem simbólica

indica, novamente, a proximidade desta mulher com Javé, mas o símbolo se apóia na vida e

363 Veja mais em Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.

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deixa ver a mulher da vida real que inspira o poeta. Sua postura chama a atenção. Em meio

às contradições da sua época, ela se apresenta sorridente, confiante em relação ao futuro

(v.25b), revestida de poder e de dignidade. Mas, este porte altaneiro não a coloca em uma

relação de superioridade, nem de prepotência. No v.26, encontramos a descrição de sua

bondade ao ensinar e no v.20 a sua solidariedade concreta com os pobres.

Depois de enfatizar a capacidade de trabalho e as qualidades abstratas desta mulher,

como sabedoria, discernimento, dignidade e bondade, o poeta apresenta a louvação dos

seus filhos e do seu marido (v.28.29). Nada mais justo! Hoje, também, as mães são muito

louvadas! No meio da louvação, transparece a ambigüidade presente na realidade. A mulher

adulta, esposa e mãe competente é chamada de “filha” (v.29). Uma palavra que, dentro da

louvação, soa como uma sirene e desperta para uma realidade cultural que exige a

submissão da mulher ao pai, ao marido, aos homens da casa. Esta alusão ao termo “filhas”

revela que, mesmo depois do casamento, as mulheres permaneciam ligadas à casa do pai.364

E a contradição continua a transparecer no v.30, quando o desprezo pela beleza interrompe

o louvor: “enganosa é a graça e vã é a beleza!” Uma frase que se assemelha ao contexto

literário de Ben Sira (25,21) e que coloca como valor fundamental o temor de Javé (v.30b).

Mas, o louvor da mulher continua nas portas da cidade. A louvação que começou na

casa se estende ao espaço público. Também a ação desta mulher percorreu o mesmo

caminho: começou na casa e se estendeu até o espaço público, através do reconhecimento

que seu marido recebe, quando se senta com os anciãos da terra (v.23) e através do louvor

que ela mesma recebe na porta da cidade, pelas suas grandiosas obras (v.31). Também a

ação da mãe do rei Lemuel faz este movimento do espaço privado para o público. Ela

instrui e prepara seu filho para exercer sua função, dando-lhe recomendações sobre a

postura ética adequada a um governante (v.3). Sua grande sensibilidade diante da situação

os oprimidos leva-a a aconselhar o filho a abrir a boca em favor dos “mudos” e

“abandonados”, colocando-se em defesa do direito dos pobres (v.8-9).

364 Veja Judith McKinlay, Gendering Wisdom t he Host – Biblical invitations to eat and drink , p.124.

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154

Capítulo 4

O símbolo da sabedoria mulher e sua ligação com a realidade

Neste capítulo, investigarei sobre a relação entre o símbolo da sabedoria mulher de

Pr 1,20-23; 8 e 9 e a mulher da vida real, delineada no capítulo 31 de Provérbios como

sábia (v.1-9) e forte (v.10-31). Ao iniciar este capítulo, quero explicitar o que entendo por

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símbolo e a perspectiva que tenho ao fazer esta investigação. O termo símbolo tem sua

origem no grego su,mbolon e designa um elemento representativo da vida real que

passou a ser usado com outro significado, criando novas possibilidades para a linguagem.

Segundo Mircea Eliade, “a rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos

símbolos que prolongam uma hierofania ou que constituem eles próprios uma “revelação”

inexprimível de outra forma mágico-religiosa. No entanto, em sentido amplo tudo pode ser

um símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo”365.

A importância do símbolo está na sua capacidade de realizar uma passagem do

cotidiano para a língua tornando-se, desta maneira, uma das grandes conquistas da

existência humana. A metáfora366 e o símbolo fluem necessariamente da vida humana, tanto

na linguagem escrita, como nas comunicações orais cotidianas. Compreendo que símbolos

e metáforas estão carregados de sentido e de energia, possuindo uma força capaz de

transmitir mensagens e de criar relações. Para Mircea Eliade, uma das características do

símbolo é a simultaneidade dos sentidos que revela. Essa simultaneidade verifica-se

igualmente à margem da vida religiosa propriamente dita.367 O símbolo possui uma função

unificadora de grande importância, não somente na experiência religiosa do ser humano,

mas também para a sua experiência humana como um todo. Um símbolo revela sempre,

qualquer que seja o seu contexto, a unidade fundamental de várias zonas do real368. Mircea

Eliade afirma que “o símbolo identifica, assimila, unifica planos heterogêneos e realidades

aparentemente irredutíveis. Mais ainda: a experiência mágico-religiosa permite a

transformação do próprio ser humano em símbolo”369

Esta abordagem das características e funções de um símbolo possibilita uma

compreensão mais pertinente dos poemas que estamos analisando. Os textos de Provérbios

1-9 e 31 estão duplamente carregados de sentido simbólico, primeiro, por ser linguagem,

365 Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.365. 366 Metáfora é “o tropo pelo qual se dá a uma pessoa ou coisa uma qualificação que ela não tem e que só por analogia se pode admitir; é também o emprego de uma palavra em um sentido diferente do próprio, por sua semelhança”. Confira em Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo de língua portuguesa , atualizada por Hamilcar de Garcia, Rio de Janeiro: Delta, Vol.3, 1958, p.3240. 367 Confira em Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.367. 368 Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.368. 369 Mircea Eliade, Tratado de história das religiões, p.372.

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que em si mesma já é simbólica e que somente pode ser compreendida dentro de processos

vitais e fenômenos culturais. Segundo, porque pertencem ao gênero poesia, que é tecida

através de recursos literários, símbolos e imagens capazes de gerar um sentido novo.

Segundo Paul Ricoeur, “de uma parte, a poesia, em si mesma e por si mesma, dá a pensar o

esboço de uma concepção ‘tensional’ de verdade, recapitula todas as formas de ‘tensão’

trazidas à luz pela semântica: tensão entre sujeito e predicado, entre identidade e diferença;

depois as reúne na teoria da referência duplicada e, enfim, as faz culminar no paradoxo da

cópula, segundo o qual o ser-como significa ser e não ser. Por esse círculo da enunciação, a

poesia articula e preserva a experiência de ‘pertencimento’ que inclui o ser humano no

discurso e o discurso no ser”370.

Minha hipótese é que os poemas de Pr 1-9 e 31 deixam transparecer uma grande

mudança cultural, social e religiosa em relação à mulher, no pós-exílio. A partir da casa

interiorana de Judá, a mulher estaria resgatando a solidariedade tribal e transmitindo

ensinamentos importantes para a identidade do povo. Embora o poema de Pr 31,10-31

tenha causado certo mal estar em leitoras conscientes da exploração e opressão da mulher,

parece-me que o texto é transparente quanto à autonomia com que a “mulher de força”

’exet hayil administra sua casa, expandindo sua atuação até o espaço público. Estaria esta

mudança expressando que na época do pós-exílio surgiu uma nova visão da mulher a partir

da sua nova atuação na sociedade do seu tempo? Esta nova visão gerou relações novas

entre as pessoas e com a divindade? Teria esta nova visão provocado uma ruptura no

sistema simbólico de Israel possibilitado a representação de Deus através do símbolo da

sabedoria mulher? Este símbolo teria se originado somente da nova atuação da mulher e da

nova visão que esta passou a ter na sociedade do seu tempo ou teria ainda outras raízes na

história do povo bíblico?

Na mesma seção de Provérbios onde se encontra o símbolo da sabedoria mulher (Pr

1-9), encontra-se também uma censura contra a mulher “estranha” ou “estrangeira”

hY")rIk.n" nokriyar (Pr 2,16-19; 5,2-23; 6,24-7,27). Esta censura seria uma reação dos

370 Paul Ricoeur, A metáfora viva, São Paulo: Loyola, 2000, p.481.

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157

editores de Provérbios contra a autonomia das mulheres, que transparece tanto em Pr 1-9

como em Pr 31?

Com a finalidade de buscar respostas a estas questões, verificar a pertinência da

minha hipótese e buscar os múltiplos sentidos do símbolo da sabedoria mulher, em todos os

itens deste quarto capítulo buscarei detectar elementos que fazem a ligação entre Pr 1-9 e

31. Venho indicando, nos capítulos anteriores, que as ligações existentes entre estas duas

seções mostram que elas foram elaboradas em conjunto,371 em uma época recente do pós-

exílio, e colocadas pelos editores no começo e no final do livro dos Provérbios. Para

justificar esta afirmação e buscar novos sentidos que possam surgir das ligações

transversais entre os textos, me deterei sobre símbolos e termos que fazem esta ligação

entre a primeira e a última seção do livro dos Provérbios.

No item 4.1, apresentarei um estudo sobre a realidade subjacente ao símbolo da

sabedoria mulher. No item 4.2, investigarei sobre a situação histórica e social e as

possibilidades de participação das mulheres na sociedade do pós-exílio. No item 4.3,

buscarei dados que me permitam obter uma visão sobre a religião da casa nesse período. No

item 4.4, apresentarei uma síntese do debate sobre a relação entre a sabedoria mulher e a

Deusa. No item 4.5, farei uma abordagem da antítese entre a sabedoria mulher (9,1-6) e a

mulher insensata (Pr 9,13-18). No item 4.6, apresentarei a função social dos textos sobre a

sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e a mulher sábia e forte (Pr 31), na sociedade e na

religião do seu tempo.

4.1 – Ligações transversais entre Provérbios 1-9 e 31

No título desta tese, encontra-se a afirmação de que a sabedoria mulher de Pr 1-9 e a

mulher sábia de Pr 31 se iluminam mutuamente, tornando-se motivos de co- inspiração. 371 Esta elaboração supõe a existência de materiais anteriores a esta data, seja em forma de hinos para rituais da casa ou em forma de provérbios.

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Para que os sentidos destes textos sejam liberados e se possa perceber a mútua inspiração

que suscitam, é necessário que se observe as relações literárias entre os dois. A atividade

exegética realizada nos dois capítulos anteriores permite-me, agora, adentrar-me mais a este

exercício para tornar mais evidente esta relação entre o símbolo da sabedoria mulher e a

mulher da vida real. Esta atividade permitirá também que a realidade que subjace aos

referidos textos torne -se mais transparente.

Inicialmente, quero relacionar estas duas figuras de mulheres através de

comparações que indicam sua importância e também sua relação com a realidade. Em Pr

8,10, a sabedoria mulher afirma que o conhecimento oferecido por ela vale é valioso: “e

conhecimento mais que o ouro puro” rx'b.nI #Wrx'me t[;d;w. ve-da‘at meharoz

nibehar. Melhor e mais valioso que o ouro puro é também o seu fruto, isto é, aquilo que ela

realiza (8,19). Esta repetição de frases que mostram o valor da sabedoria mulher através de

comparações com ouro e pedras preciosas aparece também em Pr 3,15 e 8,11, onde a

sabedoria hokmah vale “mais que pérolas” ou “mais que pedras preciosas” ~yniynIP.mi mipeninim. Uma comparação idêntica encontra-se em Pr 31,10b, indicando o valor da

mulher da vida real, a mulher forte (31,10a) e sábia (31,26).

Um termo instigante é o plural majestático hokmot, que aparece duas vezes na

primeira seção do livro (1,20 e 9,1). Usado com verbos e complementos em feminino

singular, este termo em plural refere-se à sabedoria mulher e indica sua importância,

colocando ao mesmo tempo uma pergunta sobre sua identidade. Para descobri- la, temos

que observar as relações entre a hokmah/hokmot e a mulher da vida real de Pr 31. Algumas

comparações utilizadas na descrição da mulher forte e sábia de Pr 31,10-31 buscam mostrar

a sua importância e comunicar aspectos significativos sobre sua identidade: em 31,14, a

’exet hayil é comparada a uma “nave mercante”. Desde os tempos de Salomão, a nave

mercante tornou-se um símbolo de majestade e de abundância no imaginário simbólico de

Israel (1Rs 9,26-28; 10,22). Mas, o poeta ultrapassa a simbologia que aponta para riqueza e

poder. Em 31,25, esta mulher da vida real é descrita com uma expressão poética usada

também para falar de Javé: “ela está vestida de força e dignidade” (Pr 31,25). A mesma

expressão é usada pelo salmista ao referir-se a Javé, no Sl 104,1b: “meu Deus, te mostraste

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grande, de poder e dignidade estás vestido”. Observa-se que, através dos termos e

comparações citadas, transparece uma grande valorização da mulher e também se comunica

uma visão da sua proximidade com Deus, nas duas seções de Provérbios (8,10.11.19 e

31,10.25.26). Mas, qual seria o motivo desta valorização?

Em Pr 8,35, encontramos a afirmação de que a sabedoria mulher é capaz de dar vida

a quem a busca e a encontra. Ela mesma afirma: “quem me encontra, encontra a vida”.

Vida é, também, o presente que ela oferece a quem aceitar o convite para seu banquete,

deixando a ingenuidade e seguindo o caminho do conhecimento que conduz à sabedoria

(9,4-6). Esta capacidade ou poder de dar vida e de ensinar o caminho da vida é atribuição

da divindade (Gn 2,7; Dt 6,24b; 30,20; Esd 9,8; Sl 16,11). Mas, não haverá também na

mulher da vida real uma participação neste poder? A ’exet hayil de Pr 31 promove a vida e

o bem estar de todas as pessoas de sua casa (31,11-12.15.21). Na descrição desta mulher

também transparece um poder que se manifesta na sua capacidade de organizar a economia

(31,13.14.16) e a administração (31,21.24) da sua casa, sem descuidar da solidariedade para

com as pessoas pobres e necessitadas (31,20).

Mas, a valorização da mulher pela sua capacidade de dar vida é um aspecto

ambivalente do texto. Por um lado, a função de dar vida está encaixada na visão que o

patriarcado tem sobre a mulher, muito ligada ao seu papel de mãe e esposa. Por outro, a

coloca em uma situação de empoderame nto e de proximidade com Deus. É na sua ligação

direta com a vida cotidiana, no cuidado para curá- la e reconstruí- la que está o seu poder.

Ela é tão preciosa como a própria vida. Desta ligação diária da mulher com as situações

vitais mais delicadas e, ao mesmo tempo fundamentais para a existência humana, extrai-se

as comparações e os símbolos que permitem falar sobre a sabedoria mulher e sua

proximidade com Deus.

Um outro aspecto que demonstra a importância da mulher em Pr 31 é sua função de

instruir e de preparar para a vida. Esse papel de ensinar realiza mais um enlace entre os

capítulos 1-9 e 31 de Provérbios. Na primeira e na última seções de Provérbios, encontra-se

a mulher com a função de “instruir”. Segundo Alviero Nicacci, o gênero literário

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dominante no livro dos Provérbios é a instrução, que se compõe de uma exortação ou

admoestação. Para este autor, o sujeito da instrução era o mestre da sabedoria.372 Em Pr 1,8

encontramos a menção da mãe como aquela que instrui o seu filho: “não rejeites a instrução

de tua mãe”. Uma frase literalmente repetida em Pr 6,20. Nestas duas citações, a função de

instruir se realiza também na casa e não somente na escola de sábios. Os sábios tomam

como base para seus ensinamentos a instrução feita na casa, recomendando aos jovens que

acolham os ensinamentos recebidos do pai e da mãe. É interessante encontrar nestes textos

a afirmação de que a mãe compartilha com o pai a função de ensinar e de instruir. Isto pode

ser evidente na vida real, mas raramente é expresso em textos bíblicos. Porém, nos dois

textos citados (Pr 1,8 e 6,20), nomeia-se o pai e a mãe como sujeitos da ação de ensinar,

acrescentando que seu preceito e sua instrução devem ser guardados.

Na última seção (Pr 31), encontra-se a memória de uma correção que a mãe do rei

Lemuel lhe fez, apresentando também o conteúdo desta correção (31,2-9). Chama a atenção

que tal correção não seja moralizante, mesmo quando trata o tema da bebida. Seu enfoque é

que cabe ao rei defender o direito dos fracos e realizar a justiça com pobres e necessitados.

Em 31,26, há uma reiteração de que a mulher forte realiza a função de instruir e o faz com

bondade. No entanto, não especifica os destinatários de sua instrução. Pode ser que, além

dos filhos, os criados estejam também incluídos como receptores dos ensinamentos desta

mulher. Desta forma, fica patente que o tema da instrução feita por mulheres é transversal

aos dois poemas, entrelaçando-os através da visibilização da mãe como sábia formadora

dos filhos (1,8; 6,20), do símbolo da sabedoria mulher que convida a todas as pessoas para

que escutem seus ensinamentos (1,20-23; 8 e 9), da mulher sábia que instrui seu filho rei na

prática da justiça (31,1-9) e da mulher forte, que além de administrar com muita

competência sua casa (31,10-31), está capacitada para transmitir a torah (31,26).

Uma observação sobre os termos hebraicos utilizados para indicar a sabedoria da

mulher pode ajudar-nos a ler estes textos com mais clareza e a perceber melhor a ligação

entre Pr 1-9 e 31. Em 1,8; 6,20 e 31,26, encontramos o nome hr''AT torah que faz parte

de uma série de conceitos empregados em relação à “sabedoria” em Provérbios, como:

372 Alviero Niccacci, A casa da sabedoria , p.40.

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mizvah em 3,1; 4,4; 6,20; 7,2, hokmah em 4,11; 31,26, musar em 1,8; 4,1; 6,23, binah em

4,1, dabar em 4,4, etc.373 A grande novidade não é somente a relação entre estes termos que

formam um dos aspectos mais importantes do campo semântico de Pr 1-9 e 31, mas o que

realmente chama a atenção é o uso de torah como atividade da mulher, tanto na primeira

seção do livro dos Provérbios (1,8; 6,20), como na última (31,26). Além disso, o registro da

“correção” feita pela mãe do rei Lemuel (31,1-9) é inédito. O verbo que indica a sua ação é

“corrigir” rsy ysr e o substantivo correspondente a este verbo é “correção” musar.374 Nos

textos bíblicos, os sujeitos desta ação de corrigir são os pais, os mestres da sabedoria e

também Deus (Dt 8,15), mas nosso texto torna visível uma realidade que normalmente uma

cultura androcêntrica mantém oculta: a importante função da mãe na instrução e formação

dos seus filhos, na transmissão das tradições religiosas e culturais e dos valores éticos

fundamentais para a vida e as relações.

Por trás da apresentação da mulher sábia em Pr 1-9 e 31, encontra-se uma tradição

de mulheres sábias que tiveram uma importante participação na história de Israel. Faz-se o

resgate da memória de Abigail, que vai decididamente ao encontro de Davi, entrando em

diálogo com ele e impedindo o massacre de sua casa (1Sm 25,23-31). Recorda-se a mulher

habilidosa e sábia de Técua, que se apresenta diante de Davi para interceder pela vida de

Absalão (2Sm 14,16-22). Lembra, também, a mulher anônima, cheia de coragem e

sabedoria, que confronta o general Joab e impede o massacre da cidade de Abel-Bet-Maaca

(2Sm 20,16-22). Mesmo sem mencionar seus nomes, o símbolo da sabedoria mulher

resgata a memória histórica dessas e de outras mulheres, cuja sabedoria foi colocada a

serviço da vida do povo. É esta participação bem concreta das mulheres na histórica do

povo que leva o símbolo da sabedoria mulher a encontrar aceitação e poder realizar sua

função no período pós-exílio.

Vale a pena ressaltar que estes registros da historiografia bíblica são como a ponta

de um iceberg que indica uma realidade muito mais ampla e profunda, escondida dentro do

373 Veja mais dados sobre este tema em G. Liedke e C. Petersen, em torah, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.1292 -1306. 374 Veja M. Sæbø, em ysr, Diccionario teológico Manual del Antiguo Testamento , editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.1, col.1016-1021.

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mundo familiar e comunitário. Uma realidade escondida não somente pelos textos, mas

pelos preconceitos que nos levam a ler e interpretar um texto sem buscar relacioná- lo com a

situação que o gerou, ou dando por supostas outras interpretações já consagradas, sem

questioná- las. É por esta razão que buscamos desvelar a situação da vida cotidiana que está

por trás do símbolo da sabedoria mulher. Uma possibilidade de aproximação desta

realidade se oferece no confronto do símbolo da sabedoria mulher com a mulher sábia e

forte de Pr 31. Através deste confronto e de estudos sobre a época do texto, pode ser

desvelada uma situação das famílias no período pós-exílico, quando a casa teve que se

organizar para sustentar e defender a vida, tanto na área econômica e social, como na área

religiosa.375

Outro elo de ligação entre a primeira e a última seções de Provérbios é formado pelo

tema da justiça 376 e da solidariedade. Em Pr 8,8, a sabedoria mulher afirma, em primeira

pessoa, que todas as suas sentenças são justas. Em 8,15-16, ela assegura que através dela

“os reis e governantes ditarão sentenças justas”. Em 8,20, a sabedoria mulher repete que

“caminha pelas sendas da justiça e pelos caminhos do direito”. Esta repetição pode ter sido

usada como recurso poético para indicar a definida postura ética da sabedoria mulher,

pautada pela justiça.

Em continuidade com o tema da justiça, está o da solidariedade. Neste sentido,

aparece claramente a predileção da sabedoria mulher pelos mais desprezados da sociedade

(Pr 9,4). Os convidados para o seu banquete são os néscios e os carentes. Esta opção é

inédita, pois o néscio kesìl é convidado para o banquete da sabedoria com a finalidade de

que aprenda o caminho da vida (8,4; 9,6). Ora, no interior do livro dos Provérbios

encontram-se várias afirmações sobre a inutilidade de ensinar ao néscio, pois a sua

obtusidade é permanente (Pr 14,24b; 17,10-16; 23,9; 26,11). Mas, a tradição que está por

trás de Pr 1-9 apresenta uma perspectiva de inclusão de pessoas consideradas ignorantes ou

375 Farei uma análise mais detalhada sobre esta questão nos itens seguintes, sobretudo, em 4.4. 376 O verbo qdc zrq, que no qal tem o sentido de “ser honrado/justo/inocente”, etc., no hifil tem o sentido de “fazer justiça”, “proteger” e “defender”. Veja Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico-português, p.555-556.

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indolentes.377 Ao convidar especialmente estas pessoas para seu banquete, preparado com

tanto cuidado, a sabedoria mulher está fazendo uma proposta não somente de inclusão

social, mas também de uma relação nova com os marginalizados da época. Suponho que

esta tenha sido uma função da mulher da vida real que, no espaço da casa, buscava incluir

pessoas marginalizadas pela sociedade da sua época, dando-lhes oportunidade de aprender

algo que lhes servisse para a vida.

Esta mesma sensibilidade em relação às pessoas marginalizadas, sobretudo aos

pobres e aos sofredores, aparece na instrução da sábia mãe do rei Lemuel (31,5-7), que

exorta o filho rei sobre a abstenção da bebida alcoólica para que não faça como aqueles que

“bebendo torcem o julgamento dos sofredores” (31,5). Segundo ela, a bebida deve ser dada

aos sofredores, para diminuir seu sofrimento (31,6-7), uma afirmação que pode conter uma

ironia ou carregar a memória de um costume cultural em relação aos moribundos e

condenados à morte. Mas, a sábia mãe do rei Lemuel vai além dos costumes e também dos

preconceitos. Ela propõe que o filho se comprometa na luta pelos direitos dos pobres,

fazendo-lhes justiça: “abre tua boca em favor do mudo, em defesa dos abandonados; abre

tua boca e julga com justiça, defende o pobre e o indigente” (31,8-9). Esta postura sensível

e solidária com os mais carentes encontra-se também na mulher sábia, competente e forte,

que comparte com os pobres e necessitados o fruto do seu trabalho: “ela abre a mão ao

pobre e ajuda o indigente” (31,20).

Deste modo, as ligações principais entre Pr 1-9 e 31 são feitas pelo símbolo da

sabedoria mulher (1,20-23; 8 e 9), que têm suas raízes na sabedoria da mulher da vida real

(31,1-9.26). Sua capacidade para transmitir a torah, sua postura ética fundada na justiça e

sua capacidade de cuidar da vida e de gerar solidariedade fazem a ligação entre as duas

seções de Provérbios: a primeira (1-9) e a última (31).

377 Nestes textos, o significado de “néscios” ~yliysik. kesilim e de “simplórios” ~yIat'P.. peta’im é pejorativo, indicando que aquelas pessoas são desprezadas pela sociedade por não terem nenhuma capacidade de pensar ou de aprender.

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Estas não são as únicas ligações entre as duas seções, mas elas evidenciam a

continuidade entre Pr 1-9 e 31, e mostram que o símbolo da sabedoria mulher está

enraizado na vida cotidiana das mulheres sábias que preparam seus filhos para a vida,

transmitindo- lhes tradições culturais carregadas de valores éticos. Um ensinamento que não

se restringe à vida familiar, mas desperta para questões sociais e gera solidariedade. Ao

mesmo tempo em que estas ligações mostram a relação entre o símbolo da sabedoria

mulher e a mulher da vida real, elas provêm justificativas para a afirmação de que a

primeira seção do livro dos Provérbios (1-9) está diretamente ligada com a última (31),

formando uma moldura para todo o livro e contribuindo para a criação de um sentido novo

sobre a questão das mulheres.

4.2 – A atuação das mulheres nos espaços privados e públicos

O espaço é outro aspecto que liga as duas figuras: a sabedoria mulher e a mulher da

vida real, ao mesmo tempo em que relaciona símbolo e realidade. Em Pr 1-9, encontramos

a sabedoria mulher ocupando os espaços das ruas, praças, encruzilhadas e portas da cidade

(Pr 1,20-21; 8,1-3), onde anuncia em alta voz e com total liberdade sua mensagem. Ela

convida os ingênuos e carentes de discernimento para que venham ao seu encontro. Este

convite que é feito nos pontos altos da cidade (9,3-6), sem nenhuma interdição. Nestes

espaços, ela anuncia sua palavra com dignidade e autoridade divina, já que promete

derramar seu espírito (1,23), uma expressão que aparece somente neste verso, em todo o

livro dos Provérbios e que, na profecia, é referente a Javé. Só Javé tem o espírito para dá-lo

ao profeta ou a todo o povo (Is 30,1; 38,16; 42,1; 44,3; 59,21; Ez 36,27; 37,14; 39,29; Jl

3,1-2).

Do espaço público a sabedoria mulher se lança ao espaço cósmico e se auto-revela

como pré-existente à criação (Pr 8,22-31), através de uma representação poética

extremamente bela e ousada, já que há um estilo de auto-revelação da divindade em seu

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discurso. Em uma época de caos total, quando a profecia apresenta o tema de uma nova

criação (Is 51,6; 44,24; 65,17; 66,22), esta auto-revelação da sabedoria mulher como

artífice do universo, realizando de maneira alegre, relacional e harmoniosa a criação do

universo (Pr 8,30-31), tem uma função de inspirar esperança e confiança em seus ouvintes.

Ao mesmo tempo, desvela uma realidade que está acontecendo: a participação da mulher na

reconstrução de Judá a partir das relações cotidianas, na casa. Isso é o que indica o poeta ao

terminar a primeira seção do livro dos Provérbios (9,1-6), quando apresenta a sabedoria

mulher na casa, realizando tarefas próprias de mulher, de dona de casa.

Talvez seja exatamente este movimento da hokmah na primeira seção do livro dos

Provérbios, indo do espaço público para a casa, que tenha recebido a crítica de Judith

McKinlay. Segundo esta autora, a sabedoria mulher foi enquadrada na casa, já que o

movimento que ela faz vai do espaço público em direção à confinação no lar, dentro do

contexto do livro como um todo. Além disso, ela se pergunta se as mulheres da vida real

tinham esta liberdade da hokmah para transitar livremente pelo espaço público das ruas,

praças, encruzilhadas e portas da cidade. 378

Sem pretender esvaziar a questão levantada por Judith McKinlay, buscarei

apresentar aspectos que podem ajudar a esclarecer este tema do uso do espaço público pela

mulher em Provérbios 1-9 e 31. Primeiro, vejo no movimento da mulher sábia do cap.31

uma direção exatamente inversa daquela que foi assinalada pela autora. O primeiro espaço

ocupado pela mulher da vida real em Pr 31 é o da casa, tanto no poema da sábia mãe do rei

Lemuel (31,1-9), como no poema da ’exet hayil (31,10-31). Mas, embora tenha sido

iniciada na casa, a atuação de ambas se estende para além deste espaço, chegando a deixar

registrado o sábio discurso da mulher sábia nas memórias palacianas (31,1-9) e a provocar

uma louvação pública da mulher forte por suas obras, nas portas da cidade (31,31). Se na

primeira seção do livro (Pr 1,20-23; 8 e 9) a mulher vai do espaço público para o privado da

casa, na última seção ela vai da casa para o espaço público. Ao ser louvada na porta da

cidade, a ’exet hayil dirige a atenção do leitor ou leitora para a sabedoria mulher, que na

porta da cidade iniciou sua apresentação e transmitiu seus ensinamentos (Pr 1,20-23; 8,1-3).

378 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host – Biblical invitations to eat and drink , p.131.

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Desta maneira, o livro não se encerra com a mulher confinada na casa, mas louvada

e reconhecida publicamente nas portas da cidade (31,31). Esta observação sobre os espaços

ocupados pela mulher nas duas seções de Provérbios (1-9 e 31) confirma, mais uma vez, a

ligação entre a primeira e a última seção de Provérbios e a tese de que formam uma

moldura para todo o livro. Podemos encontrar nesta moldura a formação de um quiasmo

que coloca todo o livro dos Provérbios dentro de um inclusio formado pela mulher que se

movimenta do espaço público para a casa (1-9) e da casa para o espaço público (31).

Quanto à pergunta se as mulheres da vida real tinham liberdade para transitar

livremente pelo espaço público, no pós-exílio, ou se ficavam confinadas ao espaço privado

da casa, recolho um estudo de Silvia Schroer379 que observa uma grande mudança no

mundo das mulheres, com a destruição do sistema simbólico de Israel, no pós-exílio. Esta

autora faz um comentário sobre as múltiplas e variadas reações teológicas ao choque do

exílio. Segundo Silvia Schroer, neste contexto, mudou o mundo das mulheres e a imagem

da mulher.380 Essa mudança se evidencia, por exemplo, na participação ativa das mulheres

na reconstrução da muralha da cidade de Jerusalém (Ne 3,12). Esta presença das mulheres

no trabalho comunitário para a reconstrução das muralhas ficou escondida durante muito

tempo pela tradução conjetural381 do texto, que traduziu para o masculino uma expressão

feminina. Ao registrar a lista das famílias que participaram voluntariamente na reconstrução

das muralhas de Jerusalém, o texto massorético refere-se a Selum, filho de Aloés,

afirmando que “ele e suas filhas” wyt'Anb.W aWh hu’ ubenotav participaram desses

trabalhos. Mas, grande parte das traduções ao português trazem “filhos”, em vez de

filhas.382 Os tradutores não podem suportar a mudança de visão sobre as mulheres que o

texto apresenta. Em vez de assumi- la, preferem corrigir o texto.

379 Confira Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170-176. 380 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.170. 381 A expressão “conjetural” está colocada no pé de página da Bíblia de Jerusalém, p.703. Este tipo de conjectura manifesta uma postura misógina dos tradutores. 382 Conferir Bíblia de Jerusalém, p.703; Bíblia Sagrada - Edição Pastoral, São Paulo: Paulus, 18ª impressão, 1996, p.513. Também a tradução ao espanhol La Biblia, Madri: Ediciones Paulinas/Verbo Divino, 75ª edição,

1988, p.392, traduziu wyt'Anb.W aWh hu’ubenotav como “filhos”. No entanto, a Bíblia Sagrada , versão revisada da tradução de João Ferreira de Almeida, p.422, traz a tradução literal “ele e suas filhas”.

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Outra grande mudança relacionada à visão da mulher e à sua participação na história

do povo de Israel no período pós-exílico, encontra-se no livro de Rute. Esta bonita narração

está relacionada ao processo histórico vivenciado pelas mulheres de Judá. Sua participação

efetiva no resgate de leis que defendem o direito dos pobres e suas denúncias às leis que

excluem e enfraquecem o povo se evidenciam na história de Rute e Noemi. Estas mulheres

se unem e lutam para conseguir aquilo que necessitam, isto é, casa, terra, como meio de

sobrevivência e descendência que garanta seu futuro e o do seu povo.

Em Ne 6,14, encontramos a profetisa Noadias intrometendo-se com coragem e

decisão nos assuntos político-religiosos de Judá. Também o livro de Jó apresenta uma nova

visão das mulheres quando narra a ação que Javé realiza em seu favor, no final do livro.

Embora houvesse em Israel o costume de que somente os filhos recebessem a herança e que

as mulheres só a receberiam no caso de não haver filhos homens (Nm 27,1-11), as filhas de

Jó recebem herança como os seus irmãos (Jó 42,23-25). Este pode ser um exemplo de

cidadania alcançada pelas mulheres no contexto do pós-exílio.

Nesta época, há também um esforço lingüístico para tornar visíveis as mulheres,

pois, aparecem nos textos bíblicos deste período mais formas femininas de substantivos e

de verbos. Por exemplo, nos cap.2 e 3 do livro de Rute há uma alteração constante de

gênero, em Is 43,6 e Ne 8,3 repete-se “homens e mulheres”, “filhos e filhas”, sendo estes

apenas alguns exemplos entre outros textos da época. Silvia Schroer comenta que esta

preocupação de nomear ações de homens e mulheres “lembra os esforços contemporâneos

por uma linguagem inclusiva”383.

Mas, a novidade em relação à participação das mulheres na sociedade judaíta não se

limita ao âmbito social. Elas assumiram uma participação muito mais efetiva, também no

campo religioso. Segundo Silvia Schroer, “não se pode ignorar que as mulheres assumem

importância nas coisas religiosas e que aparecem como sujeitos religiosos não somente no

espaço privado das casas, mas também no espaço público e no nível da religião

383 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.171.

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nacional”384. Esta realidade transparece nos textos citados acima (Pr 1,8 e 6,20), onde o

ensinamento do pai e a instrução da mãe são nomeados conjuntamente. Textos que

desvelam a atuação das mulheres como transmissoras da tradição religiosa e da torah.

Desta maneira, a atuação da mulher nos espaços públicos e privados, participando

não somente do resgate da história e das leis que defendem o direito dos pobres (Rute), mas

também da reconstrução das muralhas da cidade (Ne 3,12) e na transmissão da torah (1,8;

6,20; 31,26) inspira o escritor dos poemas sobre a sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9. A

partir deste enfoque, faz-se necessário percorrer com atenção os poemas de Pr 1-9, para

observar melhor os movimentos e ações da sabedoria mulher e suas conseqüências. No

primeiro poema (1,20-23), a sabedoria mulher tem características de profetisa que anuncia

sua mensagem nos espaços públicos e movimentados dos caminhos, encruzilhadas, praças,

mercados e porta da cidade. Mas, sua descrição supera a memória histórica das mulheres

profetisas e até mesmo das grandes tradições proféticas. Em Pr 1,23 a sabedoria mulher tem

autoridade divina, já que promete derramar seu espírito sobre quem se voltar para ela e

escutar seus ensinamentos. Este aspecto liga a sabedoria mulher diretamente com Javé, que

tem o espírito e promete derramá-lo sobre o profeta (confira Is 30,1; 38,16) e sobre todo o

povo (Jl 3,1-5).

Depois de ocupar o espaço público, a sabedoria mulher ocupa também o espaço

cósmico, onde sua identidade divina fica ainda mais evidente (Pr 8,22-31). No poema de Pr

8, ela se auto-revela como pré-existente a toda criação, quando exerce a função de artífice

do universo ao lado de Javé (8,30-31). Ocupando o espaço cósmico, ela inspira alegria e

confiança em seus ouvintes, comunicando uma visão bem humorada e esperançosa da

criação e da dinâmica da história, das relações com a Divindade e da participação da

mulher na vida do povo bíblico. Esta visão contribui para o resgate da auto-estima de um

povo dominado e empobrecido, gerando uma consciência nova e apontando uma saída no

futuro, ainda que pequena e limitada ao âmbito das relações.

384Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.171.

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O último poema da primeira seção apresenta a sabedoria mulher na casa,

construindo-a, preparando um banquete e congregando convidados (Pr 9,1-6). É neste

espaço da casa que a sabedoria mulher se encontra, quando a primeira seção do livro dos

Provérbios se encerra. Mas, quando ligamos Pr 1-9 com Pr 31, vemos que a ocupação dos

espaços pela mulher sábia (31,1-9) e forte (31,10-31) tem uma dinâmica exatamente inversa

à dos cap.1-9. No cap.31 as duas personagens femininas iniciam a sua atuação na casa, mas

suas obras chegam a influenciar o espaço público, provocando o louvor da mulher forte nas

portas da cidade (31,31). No espaço público mais importante, onde se realiza a justiça e são

tomadas as decisões relevantes para a vida da comunidade, a mulher é aclamada pelo seu

valor. Não um valor moral, nem um reconhecimento público por suas virtudes, mas uma

aclamação pelas obras que realiza.

No cap.1 do livro dos Provérbios (v.20-23) a sabedoria mulher foi apresentada

publicamente, pela primeira vez. Nos capítulos seguintes ela percorreu o espaço cósmico,

criando o universo e animando a esperança (8,22-31). Sua atuação, na primeira seção de

Provérbios, termina na construção da sua casa, onde prepara um banquete e o oferece aos

seus surpreendentes convidados (9,1-6). Já a mulher sábia inicia sua atuação na casa,

ensinando e administrando, mas sua apresentação é concluída nas portas da cidade, onde é

reconhecida e louvada por todo o povo (Pr 31,31). O movimento que a sabedoria realiza é

uma continuação do movimento da mulher sábia. Elas se inspiram e co- inspiram,

mostrando a grande mudança cultural e religiosa que aconteceu no período pós-exílico.

4.3 – A religião da casa no pós-exílio

A raiz desta mudança cultural e religiosa encontra-se no pós-exílio remoto, quando

a casa - a família estendida - torna-se não somente uma unidade social fundamental que

assegura a sobrevivência, mas transforma-se, também, em espaço cultual. O culto que, no

tempo da monarquia, estava centralizado no palácio e no templo do Deus nacional foi

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170

transferido, nesta época, para a esfera caseira. A discussão do profeta Jeremias com as

mulheres e os homens no exílio do Egito (Jr 44) mostra uma resistência ao fato de Javé ter

ocupado o espaço da religião da casa. Na discussão com Jeremias, as mulheres tomam a

palavra para dizer que o culto à Rainha do Céu não é clandestino e sim assumido por toda a

família, inclusive por seus maridos (Jr 44,19).385 Este texto torna visível uma prática que

não era somente realizada entre os exilados do Egito. Na reação da assembléia à palavra de

Jeremias em nome de Javé, homens e mulheres afirmam que continuarão a oferecer incenso

à Rainha do Céu e a fazer- lhe libações como o faziam seus antepassados nas cidades de

Judá e nas ruas de Jerusalém (Jr 44,17). Isto indica que durante a monarquia este culto à

Rainha do Céu foi praticado em Jerusalém. A motivação para esta prática encontra-se no

final do texto citado: “tínhamos, então, fartura de pão, éramos felizes e não víamos a

desgraça” (Jr 44,17c).

Mas, no contexto de Pr 1-9, cerca de 250 anos depois, não se encontra somente um

movimento que re-elabora símbolos religiosos a partir da casa, com a mesma motivação de

obter a força necessária para garantir a vida. Há uma participação muito concreta das

mulheres na luta pela vida, no final do período persa. Elas se inspiram na memória das

mulheres que contribuíram para a reconstrução da cidade e se empenharam pela realização

da justiça, como aquelas mulheres que em Ne 5,1-5 lutaram pela manutenção da posse da

terra e protestaram contra a escravidão dos seus filhos e filhas por causa de dívidas. Elas se

sentiram responsáveis, tanto quanto seus maridos, pela integridade e dignidade de suas

filhas e filhos. Outro motivo de inspiração para estas mulheres era a memória daquela que

após o retorno do exílio tiveram uma participação importante na reconstrução de casas e

cidades, como já foi mencionado anteriormente (Ne 3,12). Como assinalamos no item

anterior, esse texto menciona claramente que as filhas de Selum estavam participando da

construção do muro em Jerusalém. Mas, os motivos de inspiração para a luta das mulheres,

no pós-exílio tardio, não se encontrava apenas na memória mais recente de mulheres que

enfrentaram o exílio e a etapa de reconstrução da cidade e da muralha de Jerusalém. Elas se

inspiravam ainda na memória de mulheres fortes que construíram a história do povo

385 Sabemos que houve várias comunidades judaítas no Egito. Uma das mais conhecidas era a comunidade de Elefantina, uma das ilhas do rio Nilo, em frente de Assuã. Esta comunidade remonta-se ao começo do século 6 a.C. Nela foi construído um templo semelhante ao de Jerusalém, no século 2 a.C. (1Mc 10,20).

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bíblico, como Lia e Raquel (Gn 35,23-26; Rt 4,11), Miriam (Nm 26,59; Ex 15,20-21),

Tamar (Gn 38), Débora (Jz 4-5) e tantas outras mulheres cujas histórias eram contadas com

emoção nos momentos em que elas se reuniam para descansar e inspirar-se mutuamente.

Essa atuação decidida das mulheres está por trás do capítulo 31 dos Provérbios,

onde se encontra o louvor da mulher israelita forte e valente que dirige sua casa (Pr

31,15.21.27). É muito importante perceber esta relação, pois um mesmo contexto está por

trás de Pr 1-9 e 31. Um desafiador contexto que gera uma experiência nova de Deus e da

vida. Esta experiência nova se expressa através de uma linguagem simbólica muito

elaborada, de maneira especial nos poemas sobre a sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9).

Considero importante ressaltar mais uma vez que este símbolo nasce da vida concreta e da

luta das mulheres sábias e valentes do pós-exílio. Tanto daquelas que se levantaram para

exigir o reconhecimento dos seus direitos e da dignidade de seus filhos e filhas (Ne 5,1-5),

como das que conquistaram respeito e autonomia pela sua competência na administração da

sua casa e dos seus negócios. Assim, mulheres da vida real transparecem nos dois poemas

do cap.31 de Provérbios e inspiram a elaboração simbólica e teológica dos poemas da

sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9.

Para obter uma visão mais aproximada da mulher da vida real no período pós-

exílico, interessa-me ampliar a relação intertextual para alcançar uma compreensão maior

sobre a religião da casa, ou sobre as novas experiências religiosas expressas em textos do

pós-exílio. Neste contexto de caos, gerado pelas contínuas guerras, dominação estrangeira e

divisões internas, as imagens de Deus apresentadas em Is 40-66 estão relacionadas a uma

nova criação (Is 42,5-9) e um novo êxodo (Is 43,16-21; 46,3-4; 63,9), ainda mais

surpreendente que o primeiro. Essas comunidades proféticas demonstram uma experiência

de Deus a partir das vivências cotidianas na casa, de onde retiram as metáforas para seus

discursos teológicos. Assim, em Is 49,15, Deus é como a mãe que não se esquece nunca do

fruto do seu ventre. A imagem da mãe para falar sobre Deus no contexto do pós-exílio é

carregada de ternura em Is 66,12b. Além dos sentimentos de ternura que comunica, esse

texto apresenta aspectos de costumes cotidianos da mulher em sua relação com a criança,

apresentando o Deus de Israel como “a mãe que amamenta o filho, carrega-o sobre suas

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ancas e o acaricia em seu colo”. Esta imagem de Deus como mãe desvela tanto uma relação

pessoal mais próxima e cotidiana com a divindade, como uma relação nova entre as pessoas

da comunidade. Parece que as experiências pessoais de sofrimento e abandono tornam as

pessoas mais sensíveis e humanas. Estou consciente de que essa observação pode conter

uma ambigüidade, já que valorizaria o sofrimento. Mas, sem generalizar a descoberta de

que há situações em que a sabedoria nasce da dor, suponho que as situações refletidas pela

comunidade de discípulos e discípulas de Isaías proporcionam- lhes um grande

amadurecimento que se expressa na simplicidade e profundidade da sua linguagem

simbólica. O processo de aprofundamento que realizam leva -os a experimentar Deus muito

perto, consolando carinhosamente seu povo (Is 40,1-2). A experiência cresce, aprofunda-se

a partir da observação das relações que sustentam a vida na casa. No final do livro, a

comunidade assegura que o Deus de Israel é como mãe que consola o povo no seu

sofrimento (Is 66,13).386

Essas não são as únicas imagens femininas de Deus na Bíblia. Mas, elas chamam a

atenção para experiências cotidianas, vivenciadas nas relações significativas que acontecem

na família. Também chama a atenção o uso destas imagens femininas para falar de Javé em

um discurso profético que exclui a existência de outros Deuses (Is 41, 24.29; 43,11-13;

44,6-20; 57,3-9). Parece contraditório! Silvia Schroer comenta que “o monoteísmo destes

movimentos é patriarcal, mas não no sentido de fazer confronto contra as mulheres ou

contra as imagens femininas de Deus”387.

Mas, os discípulos e discípulas de Isaías vão muito além de usar metáforas da

mulher para falar sobre Deus. Essa comunidade profética elabora uma teologia que nada

tem a ver com o templo e o culto sacerdotal a ele ligado. O lugar teológico mais importante

para esta comunidade é junto aos abatidos e humildes, para animá-los e reconfortá- los (Is

57,15). Isso significa que a comunidade geradora deste texto aprofundou a visão de um

386 Para um aprofundamento sobre o contexto sócio-econômico da comunidade dos discípulos de Isaías, leia Sandro Gallazzi, A teocracia sadocita – Sua história e ideologia, Macapá: S. Gallazzi, 2002, p.34-36. Para avaliar a contribuição do Dêutero-Isaías na formação de uma nova espiritualidade inclusiva e aberta, leia Carlos Mesters, A missão do povo que sofre – Os cânticos de servo de Deus no livro de Isaías, Petrópolis/Angra dos Reis: Vozes/CEBI, 1981, 194p. 387 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.172.

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Deus próximo dos pobres e compreende que seu culto consiste, sobretudo, na prática da

justiça (Is 58). Se houver necessidade de sacerdotes, os humilhados e sofridos é que “serão

chamados sacerdotes de Javé” (Is 61,6-7).

Certamente, esta não foi exatamente a comunidade que gerou Pr 1-9 e 31. Mas,

como já mencionamos no capítulo 2 desta tese, há uma proximidade teológica entre a

profecia e a sabedoria destes textos. Sobretudo na linguagem profética de Pr 1,20-23 e na

insistência destes textos quanto à prática da justiça (Pr 8,15-16.20; 31,5-9.20). Além disso,

a descrição feita pela comunidade de discípulos de Isaías sobre a situação da sua época tem

uma linguagem bastante similar à da sabedoria de Provérbios (Is 57; Pr 1,10-19): “reinam a

injustiça e a exploração; um tira do outro a existência; na mesma família existem ricos e

pobres”. Observo, ainda, que Pr 1,16 repete literalmente uma frase que se encontra em Is

59,7: “os seus pés correm para o mal; eles se apressam a derramar sangue inocente”388.

Portanto, embora os textos de Is 40-66 sejam de uma época anterior à de Pr 1-9 e

31, eles descrevem aspectos teológicos e contextuais que mostram para nós algumas

características da religião da casa, no pós-exílio. A visão que estes textos nos transmitem

sobre Deus e sobre as relações na casa indicam que esta não era uma religião opressora,

usada para manter o controle e para dar sustentação aos interesses de um grupo da elite.

Além disso, o poema de Pr 8,22-31 deixa entrever uma religião lúdica e alegre que

cultuava a hokmah artista do universo. No entanto, nos textos de Pr 1-9 não transparece

nenhuma dificuldade em relação ao culto da hokmah e nem apresenta uma rivalidade entre

este culto e o de Javé. Isto indica que a religião da casa era fiel às tradições sobre as

experiências de Deus que congregaram o povo bíblico, criando coesão entre diferentes

grupos de oprimidos. Além de manter-se fiel às tradições de Israel, a religião da casa tinha

uma visão bem humorada da divindade, experimentando-a muito próxima, pois afirma que

“ela se deliciava na sua relação com a humanidade” (Pr 8,31).

Assim, com os pés firmes no chão da vida diária, a casa e as comunidades de Judá

mantinham a consciência serena frente à legislação monárquica (Deuteronômio e 388 Cito este verso, embora não se encontre nos melhores manuscritos gregos e geralmente seja considerado uma glosa tirada de Is 59,7. Veja Bíblia de Jerusalém, p.1118, nota b.

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Crônicas) e sacerdotal (Levítico). Segundo Elisabeth Schüssler Fiorenza, “os cânones

formais da lei patriarcal codificada são, geralmente, mais restritivos que a interação e a

relação real das mulheres e dos homens com a realidade social, regulada por estes

cânones. Ainda que no judaísmo rabínico as mulheres tenham sido associadas com as

crianças e os escravos nas questões religiosas e legais, os relatos bíblicos que fazem

referência às mulheres, mostram que na vida cotidiana elas não eram consideradas como

de menoridade ou como escravas.”389 Pelo contrário, elas conquistam espaços de

participação a partir da casa, onde se reelaboram símbolos religiosos que congregam e

inspiram o povo de Judá no período pós-exílico. Além disso, a atuação das mulheres

supera os limites da casa, interferindo com decisão no âmbito social (Ne 5,1-5), político

(Ne 6,14) e religioso (Pr 8,30-31).

Os textos de Is 40-66 e de Pr 1-9 e 31 demonstram que a religião da casa estava

fundada nas tradições antigas de Israel, pois insistia na prática da justiça (Pr 8,20) e na

defesa do direito dos pobres (31,7-9). Diante de uma situação de depressão, caos e miséria,

ela apresentava uma visão bem humorada e relacional da divindade ao realizar a obra da

criação (8,30-31). Desta maneira, a religião da casa inspirava confiança em relação ao

futuro, resgatando aspectos importantes da história de Israel, sobretudo a memória da

participação corajosa e criativa das mulheres, estabelecendo, no presente, relações novas

entre as pessoas e com a divindade.

4.4 – A sabedoria mulher e a Deusa

Depois de analisar o tema da religião da casa, não poderia deixar de fazer uma

referência à Deusa, já que a proximidade entre a sabedoria mulher e a Deusa em Pr 1-9 tem

sido muito discutida entre estudiosos e estudiosas.390 Neste item, pretendo apresentar

389 Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los orígenes del cristianismo , p.150. 390 Veja Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9 – Eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter Einbeziehung ägyptischen Vergleichs-materials, p.94 -95; Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica, p.253 -254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, p.200, entre outros.

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somente uma síntese do debate sobre alguns aspectos mencionados nos textos de

Provérbios 1-9 e 31. Mantenho a perspectiva da elaboração simbólica e buscarei sempre

relacionar o símbolo com a realidade em que este foi gerado ou comunicado. Inicio este

estudo com o capítulo 3 de Provérbios, onde a sabedoria mulher é comparada a uma árvore:

“Ela é uma árvore da vida para os que a colhem e felizes são os que a retêm!” (3,18). Esta

comparação não somente lembra Aserá, uma Deusa cananéia que tinha a árvore como seu

símbolo principal, mas resgata duas tradições paralelas: a da árvore da vida e a da árvore do

conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2,9 e 3,22). No texto de Pr 3,18, as duas tradições

aparecem juntas, relacionando a hokmah com um símbolo importante do imaginário

religioso do povo da Bíblia, presente tanto no Gênesis (2,9; 3,22), como no Apocalipse

(2,7; 22,14).391

Segundo Monika Ottermann, a Deusa Árvore foi uma das representações da

divindade em Canaã, em toda a Idade do Bronze, ou seja, ao longo do segundo milênio a.C.

O vínculo entre o corpo da Deusa e uma árvore é evidente em objetos cúlticos simples de

uso cotidiano e doméstico e em objetos preciosos e raros. Nestes objetos, o símbolo da

Deusa é representado como uma tamareira, onde palmas estilizadas aparecem com sete

braços, um central e três de cada lado.392 Depois de fazer uma pesquisa arqueológica sobre

diferentes representações da Deusa Árvore em Canaã, Monika Ottermann conclui que a

“identificação ou sobreposição de imagens deixa claro que a árvore estilizada representa

aquele poder de bênção da terra fértil que gera a vida e a alimenta”393.

Para entender a busca desta bênção, é necessário retomar a difícil situação de

dependência política e econômica, vivenciada pela colônia de Judá durante a dominação do

império persa. Uma situação crítica de empobrecimento, agudizada pelos problemas locais

referentes à posse da terra e à escassez das chuvas. Nesse contexto, é bem possível que se

mantivessem ritos familiares para pedir o fortalecimento da vida e que estes ritos

390 Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im Buch der Weisheit”, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religiongeschichte, p.173. 391 Mercedes Lopes, “A hokmah bem humorada”, em Mandrágora – O imaginário feminino da divindade, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, vol.11, 2005, p.72. 392 Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, em Mandrágora – O imaginário feminino da divindade, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, vol.11, 2005, p.47. 393 Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, p.48.

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estivessem ligados à Deusa. Mas, há dados que mostram a aceitação deste símbolo da

Deusa também no templo de Jerusalém. Neste sentido, retomo uma observação de Monika

Ottermann que me parece muito interessante. Segundo esta autora, houve um processo de

substituição do corpo da Deusa por seus atributos, especialmente o da árvore. Esse processo

chega ao seu extremo no desenvolvimento do menorah, o candelabro de sete braços que era

um dos objetos centrais do segundo templo.394

Então, podemos supor que a proibição de Dt 16,21: “não plantarás nenhuma árvore

como Aserá ao lado do altar” tenha um significado muito mais amplo e real do que aquele

que aparece na historiografia bíblica. Desde os tempos do rei Asa (911-870 a.C.), que

retirou de sua mãe o título de grande dama porque ela havia feito um mipleset para Aserá

(1Rs 15,13), até a época de Josias (640-600 a.C.), Aserá foi cultuada em Jerusalém. Sobre

este culto, encontramos referências nos livros dos Reis e na Obra do Cronista (1Rs 15,13;

2Cr 15,16; 1Rs 18,19b; 2Rs 21,7; 23,4.7). Os textos citados demonstram que o culto a

Aserá foi praticado durante a monarquia, por cerca de 300 anos. Segundo José Severino

Croatto, Aserá teve “implicações na religião de Israel como uma Deusa especialmente

associada ao culto a Javé”395.

Exemplos do culto de Aserá sendo realizado no templo de Jerusalém podem ser

encontrados no tempo de Manassés (687-642 a.C.), segundo 2Rs 21,7. Também no tempo

de Josias, que durante a realização da sua reforma religiosa, erradicou do santuário de Javé

os objetos de culto a outros Deuses, inclusive a Aserá, e os queimou fora da cidade (2Rs

23,4-14). Estes dados da historiografia bíblica manifestam, por um lado, um esforço

contínuo e até uma ação violenta das autoridades para impedir que em Israel fossem

realizados cultos a outros deuses que não fossem Javé. A vida na casa expressa a

persistência de cultos que poderiam trazer para a família e a comunidade uma bênção de

vida com abundância de pão e uma proteção divina para não ver a desgraça da guerra (Jr

44,17). Tanto o culto à Aserá como à Rainha do Céu aparecem muito ligados a expectativas

de proteção e de abundância de vida.

394 Conferir Monika Ottermann, “Vida e prazer em abundância – A Deusa Árvore”, p.48. 395 José Severino Croatto, “A Deusa Aserá no antigo Israel – A contribuição epigráfica da arqueologia”, p.43.

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Depois do exílio, as visões de Zc 1-6 apresentam um projeto de centralização do

culto no templo de Jerusalém e a expulsão do culto à Deusa para a Babilônia. Esta era uma

condição para que o projeto da golah pudesse ser realizado. Norman K. Gottwald situa a

primeira parte do livro de Zacarias (1-8) logo depois da reconstrução do templo de

Jerusalém, na segunda metade do século 5º a.C.396 Embora o texto apresente muitos

problemas de corrupção textual e de interpolações397, as visões apresentadas trazem os

passos de um projeto de reconstrução e, inclusive, a sua correção, quando a recuperação da

monarquia tornou-se inviável. Na primeira visão apresentada nesse livro (Zc 1,7-17), Javé

promete voltar para Jerusalém se o templo for reconstruído. Esta temática é desenvolvida

na segunda visão (2,1-4) e também na terceira (2,5-9). Na quarta visão, aparece claramente

a proposta de que o governo de Jerusalém deve ser realizado pelo sistema do templo,

liderado pelo sumo-sacerdote (3,1-3.4a.4c.4b.6.9a). Na quinta visão (4,1-10), encontra-se o

projeto de reconstrução da monarquia; e na sexta visão (5,1-4), instala-se o direito

sacerdotal e se fundem o templo e a lei.398 Na sétima visão (5,5-11), a Deusa é expulsa

dentro de um alqueire para a terra de Sanaar, onde lhe será construído um templo e um

pedestal. Junto com ela vão as suas adoradoras ou sacerdotisas.399 Na oitava visão (6,1-15),

corrige-se a proposta de reconstrução da dinastia real. A coroa é colocada na cabeça do

sacerdote Josué. Ele portará as insígnias reais e governará o povo a partir do templo.

Ao ler o texto de Zc 5,5-11, poderíamos supor que a religião da Deusa tenha sido

totalmente eliminada em Judá, no período persa, e que as mulheres foram totalmente

silenciadas. Essa suposição teria como base uma visão de Judá que não corresponde aos

relatos bíblicos. Não existe uma Judá monolítica, que cedeu totalmente ao governo

sacerdotal do segundo templo, mesmo que esta tendência tenha sido a mais forte e a que

prevaleceu sobre as demais, especialmente em Jerusalém. São muitas as tendências

396 Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica, p.470. 397 Veja Norman K. Gottwald, Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica , p.469. 398 As dimensões do rolo da lei são as mesmas do átrio em frente do templo de Jerusalém, construído por Salomão (1Rs 6,3). 399 As adoradoras ou sacerdotizas da Deusa estão aqui simbolizadas pelas mulheres aladas. Há uma grande discussão sobre o sentido destas imagens, mas não é meu objetivo entrar neste debate aqui, já que o objeto da minha pesquisa é outro. Quero, apenas, visualizar um aspecto do contexto religioso oficial em Jerusalém, durante o período persa. Para um aprofundamento sobre este tema, veja Joyce G. Baldwin, Ageu, Zacarias e Malaquias – Introdução e comentário , tradução de Hans Udo Fuchs, São Paulo: Vida Nova, 1991. p.104 e Erich Zenger, Introdução ao Antigo Testamento , tradução de Werner Fuchs, São Paulo: Loyola, 2003. p.534.

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religiosas e políticas dentro de Judá. Uma dessas tendências transparece na moldura

colocada na edição do livro dos Provérbios (1-9 e 31).

Portanto, voltamos nossa atenção para estes textos (1-9 e 31), para continuar a busca

de outras ligações entre a sabedoria mulher e a Deusa. Em Pr 8,22-31, cria-se um tempo

primordial para a apresentação da sabedoria mulher como pré-existente a toda a criação.

Em seguida, narra-se a criação do mundo e mostra-se a sabedoria mulher junto com Javé,

como artífice da criação do universo (v.30-31). O imenso prazer de criar transparece em

todo o texto e se expressa, de maneira especial, na dança da sabedoria mulher ao terminar a

artística obra da criação do mundo (Pr 8,30-31). Vários autores encontram no símbolo da

sabedoria mulher, apresentado neste texto, algumas reminiscências de Maat, a Deusa

Egípcia da verdade e do amor. 400

Para uma melhor interpretação de Pr 8,22-31, Silvia Schroer sugere que se faça um

estudo sobre o sistema simbólico do pós-exílio, que está por trás deste símbolo da sabedor ia

mulher. Segundo essa autora, “esta forma de falar sobre Deus dificilmente se deixa

enquadrar nos conceitos patriarcais da religião monoteísta, embora no contexto da história

das religiões muitas vezes se fale da influência do Egito e de Deusas helenistas sobre a

sophia, mesmo que nessas pesquisas não se dê muita atenção ao aspecto da

feminilidade”401. Neste sentido, retomo uma citação de Silvia Schroer, que apresentei no

primeiro capítulo. Ela aponta para a possibilidade de que imagens de Deusas do Antigo

Oriente se unam a outras imagens de Deusas e de mulheres que participaram ativamente na

construção da história de Israel para formar o símbolo da hokmah de Pr 8,22-31. Mas,

insiste em que “a hokmah é o Deus de Israel na imagem da mulher e na fala das Deusas. O

autor destes textos (Pr 1-9) renuncia totalmente às imagens de efeitos desastrosos. O que foi

400 Entre autores e autoras que vêem a figura de Maat por trás do símbolo da hokmah, encontram-se Christa Kayatz, Studien zu Proverbien 1-9 - Eine form-und motivgeschichtliche Untersuchung unter Einbeziehung ägyptischen Vergleichsmaterials, p.94-95; Alviero Nicacci, A casa da sabedoria – Vozes e rostos da sabedoria bíblica , p.253-254; Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel – Los sapienciales, lo sapiencial, entre outros. 401 Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, em Ein Gott allein? – Jhwh Verehrung und Biblischer Monotheismus im Kontext der israelischen und altorientalischen Religionsgeschichte, p.173.

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179

ao longo de muitos séculos pensado de maneira problemática, aqui, pela primeira vez é

experienciado e pensado de maneira integradora.”402

Martin A. Klopfenstein afirma que no símbolo da sabedoria mulher concentram-se,

de forma mais inconsciente do que conscientemente representações de Deusas cuja

influência é difícil de reconhecer individualmente. 403 Porém, encontram-se, também,

expressões que resgatam a memória das mais diversas situações das mulheres na história de

Israel. O que possibilitou a elaboração do símbolo da sabedoria mulher e a sua aceitação

pela comunidade é a sua ligação com a vida, com a nova visão que surgia em Judá a partir

de uma participação efetiva das mulheres na reconstrução da história do povo. Esta é a

realidade que o símbolo da sabedoria mulher manifesta. Mas, o símbolo não tem apenas a

função de representar. Ele também promove o fortalecimento da posição social e religiosa

da casa, da família e da mulher, no início do pós-exílio.

Concluindo, podemos afirmar que este símbolo da sabedoria mulher tem sua raiz na

vida e organização da casa, em Judá, com seus costumes religiosos e rituais que buscavam

garantir a sobrevivência familiar. Estes ritos eram comuns, sobretudo no campo, onde havia

momentos de celebração para pedir a chuva e a fertilidade dos campos e rebanhos. Através

dos rituais, ainda que inconscientemente, as famílias de Judá mantinham viva a memória

dos antigos cultos às Deusas.

4.5 – A sabedoria mulher e a mulher insensata

A visão integradora do símbolo da sabedoria mulher, apresentada nos poemas

analisados, não é suficiente para compreender a realidade que se oculta e se revela através

desses textos (Pr 1-9 e 31). Há, ainda, um outro aspecto desta mesma realidade que

expressa a contradição e a exclusão, em vez da integração. O poema da mulher insensata de 402 Silvia Schroer, “Die personifizierte Sophia im buch der Weisheit, em Ein Gott allein? p.166. 403 Veja Martin A. Klopfenstein, “Auferstehung der Göttin in der spätisraelitischen Weisheit von Proverbien 1-9?”, em Ein Gott allein?, p.541.

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Pr 9,13-18 chama a atenção para aspectos opostos àqueles que transparecem no símbolo da

sabedoria mulher, apresentando uma realidade muito mais complexa. Toda realidade é

formada por aspectos que unem, congregam, geram solidariedade e por elementos que

excluem, expressando medo, intolerância, divergências e até mesmo a destruição e a morte.

Esta contradição transparece no cap.9 de Provérbios. Se o símbolo da “sabedoria mulher”

(9,1-6) tem a função de incluir e de integrar, carregando uma memória histórica que

contribui para a formação da identidade do povo de Judá, a figura da “mulher insensata”

(9,13-18) está colocada no texto como sua antítese. Portanto, faz-se necessário abordar essa

figura para não ficar com uma visão muito idealizada da situação que gerou Pr 1-9 e 31.

Este é o meu objetivo ao realizar um estudo sobre este tema.

Em Pr 9,13-18, encontramos uma apresentação da “mulher de insensatez”

tWlysiK. tv,ae ’exet kesilut, fazendo um paralelo com a “sabedoria mulher” de 9,1-6.

Percebe-se que há uma intencionalidade neste texto, mas ao fazer a exegese de Pr 9,13-18,

no capítulo 2 desta tese, apenas explicitei uma pergunta sobre a intenção do autor ou editor,

ao elaborar este paralelo. Naquela etapa da investigação, apresentei um quadro comparativo

para visualizar as semelhanças e as diferenças entre as duas personagens: a sabedoria

mulher (9,1-6) e a mulher de insensatez (9,13-18).404 Esse quadro comparativo tornou

evidente que a construção literária do cap.9 de Provérbios tem uma intenção pedagógica.

Segundo Luís Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, a intenção do texto é preparar os

jovens para fazerem escolhas acertadas na vida. Esses autores encontram no convite da

mulher insensata para “beber água roubada” e “comer pão escondido” (9,17) uma sedução

sexual. Para esses autores, a mulher insensata representa ou é parente da mulher alheia e da

prostituta, que perverte o jovem inexperiente com sua sedução. A advertência presente no

texto visa impedir que o jovem inexperiente ceda à sua atração.405 Também Judith E.

McKinlay observa que as conotações sexuais estão evidentes neste texto.406 Além disso,

essa autora considera que é possível encontrar em Pr 9,13-18 a sugestão de Deusas

estrangeiras ligadas ao poder de destruir, como Ixtar e a assíria babilônica Kilili, cuja

404 Veja o referido quadro no capítulo 2 desta tese, item 2.3.2, análise de Pr 9,13-18. 405 Luis Alonso Schökel e José Vílchez Líndez, Sapienciales I – Proverbios, p.246. 406 Veja Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57.

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destruição é atestada na mitologia, 407 uma afirmação que Luis Alonso Schökel considera

infundada. 408

Este é apenas um exemplo da divergência de opiniões sobre a figura da mulher de

insensatez. Já que a linguagem simbólica somente pode ser compreendida quando

relacionada aos processos vitais e aos fenômenos culturais que possibilitaram sua criação,

farei, neste item, uma aproximação entre o texto de Pr 9,13-18 e seu contexto literário e

sócio-econômico, cultural e religioso. Este foi o procedimento que adotei ao buscar uma

compreensão do símbolo da sabedoria mulher, nos itens anteriores deste capítulo.

Antes de fazer esta aproximação, olhemos o texto mais de perto para ver como se

apresenta a “mulher insensata”409 neste poema. No mesmo verso em que ela é mostrada

pela primeira vez (Pr 9,13), encontramos três termos utilizados pelo autor com a intenção

de identificá- la. O primeiro é “insensata” ou “néscia” tWlysiK. kesilut. O segundo é

hY"miho homiyah, um verbo que se encontra no particípio qal, feminino, singular e que

significa “agitada” ou “barulhenta”410. É interessante observar que em toda a Bíblia

Hebraica, este verbo, nesta forma, só aparece aqui e em Pr 7,11. 411 Junto a esse termo, em

Pr 9,13, aparece, ainda, uma terceira palavra para caracterizar a mulher de insensatez:

afirma-se que ela é “ingênua” ou “simplória” tWYt;P. petaut412. Este verbo, no

feminino, só aparece neste verso, em toda a Bíblia Hebraica. Concluindo, em apenas um

verso (9,13), o texto nos informa que esta mulher é insensata, agitada e simplória.

No verso seguinte (9,14), a mulher insensata é apresentada nas alturas da cidade, em

um ponto bastante estratégico. O curioso é que ela aparece sentada, uma postura que indica

autoridade: “e senta-se à porta de sua casa” Ht'yBe xt;p,l. hb'v.y'w. ve-yaxbah le- 407 Confira Judith E. McKinlay, Gendering Wisdom the Host, p.57. 408 Veja Luis Alonso Schökel, Bíblia do peregrino, p.1433. 409 Literalmente, “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,a ’exet kesilut. Esta forma feminina unida à palavra mulher aparece somente neste texto, embora o masculino seja muito comum nos escritos sapienciais. 410 Veja Carl Philip Weber, em Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p.361, verbetes 505a e 505b ; Veja também Luis Alonso Schökel, Dicionário bíblico hebraico -português, p.181. 411 Mais adiante farei a relação entre os dois versos (9,13 e 7,11). 412 O termo tWYt;P. petaut vem da raiz htp pth, que significa “ser simples”, “ser ingênuo”.

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petah betah. Então, a mulher insensata, agitada e simplória tem sua casa, tem autoridade, e

coloca-se em um lugar estratégico. Mas, por que, com que objetivo, ela se coloca neste

ponto estratégico da cidade? Os versos 9,15-16 indicam que é para “chamar os que passam

pelo caminho, os que seguem retos em suas sendas”. Então, seu público não é o mesmo da

sabedoria mulher, que convida especialmente os néscios e os carentes de entendimento

(9,4). A mulher insensata chama os justos, isto é, “aqueles que seguem por caminhos retos”

(9,15b). E o que ela oferece aos que aceitam seu convite? Oferece “água roubada” e “pão

para ser comido às ocultas” (9,17).

Voltando ao começo, vamos aprofundar os textos citados. A expressão “agitada”

hY"miho homiyah ligou a mulher insensata de Pr 9,13 com a mulher de Pr 7,11, de

quem se afirmou a mesma coisa. Ora, no verso imediatamente anterior, 7,10, o autor havia

informado que esta mulher está vestida de hn"Az zonah, um termo que significa

“prostituta”413 e que aparece em Pr 6,26. Mas, o que liga a mulher insensata com a

prostituta? No interior da seção 1-9 de Provérbios, encontram-se afirmações que ligam a

“prostituta” hn"Az zonah, com a “mulher de insensatez” tWlysiK. tv,ae ’exet

kesilut, a “mulher estranha” hr"z" hv"ai ’ixah zarah e “estrangeira hY"rik.n" nokriyah414. Um elemento comum entre estas mulheres é que todas elas conduzem à morte.

413 Originariamente, hn"Az zonah (znh) designa simplesmente todo tipo de relação sexual irregular e ilegal entre homem e mulher. A linguagem teológica emprega znh em sentido metafórico, referindo-se ao ato de separar-se de Javé para buscar outros Deuses. Veja J. Kühlewein, em znh, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol. 1, p.725-726. A palavra hn"Az zonah

aparece somente duas vezes em Pr 1-9 (6,26; 7,10). É importante lembrar que hn"Az carrega, também, o sentido de “mulher autônoma”, aquela que se vira por sua própria conta. Segundo Mercedes de Budallés Diez, “a mulher zonah era uma mulher livre, economicamente autônoma e, por isso, independente”, Raab – Mulher da vida – Uma proposta de leitura feminista da mulher zo nah no Antigo Testamento a partir da história de Raab (Josué 2) , São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2002, (Dissertação de mestrado), p.129. 414 Segundo R. Martin-Achard, nokri adquiriu importância depois do exílio, quando Israel colocou de maneira especial o problema de suas relações com os países estrangeiros. O termo nokri significa, também, aquilo que pertence a outro (Pr 5,10; 20,16). A nokriah de Pr 2,26; 5,20; 6,24; 7,5; 23,27; 27,13 não significa uma estrangeira pagã, mas a mulher de outro israelita, ou a mulher estranha à vida do clã. Uma visão panorâmica sobre o uso de nekar/nokri no AT está marcada por uma atitude que vai da reserva até à rejeição. Isto se expressa nas passagens de orientação deuteronômica que destacam a função corruptora dos deuses estrangeiros. Veja R. Martin-Achard, nekar, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.2, p.97-100.

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Recomenda-se insistentemente aos homens que não se deixem seduzir por estas mulheres,

“porque sua casa se inclina para a morte” (2,18), “os seus pés levam para a morte” (5,5),

“suas escadas levam para os átrios da morte” (7,27b), “em sua casa estão as sombras da

morte” (9,18a).

Por que haveria tanta necessidade de recomendar aos homens que não se deixassem

seduzir pela mulher estrangeira ou estranha que enleia com suas palavras (2,16-19)? Por

que é necessário avisar-lhes que a estrangeira, cujos lábios destilam mel, é mais amarga do

que o absinto (5,2-23)? O texto insiste em que é necessário ter cuidado com a mulher

estranha, pois tem a língua suave, porém ela é má (6,24-27) e deixa claro que ela é a mulher

casada, isto é, “mulher de um homem” vyai tv,ae ’exet ’ixix (6,26). Usando a metáfora

do fogo, que não se pode carregar sem se queimar e das brasas, sobre as quais não se pode

caminhar sem ter como conseqüência os pés queimados, nosso texto continua suas

recomendações para que os homens não se envolvam com a mulher casada (6,27-35). Os

avisos e admoestações continuam no cap.7 de Provérbios, para que o jovem se guarde da

mulher estrangeira, da estranha, cuja palavra é sedutora (7,5). Todo o cap.7 insiste nestas

recomendações, detalhando-as, repetindo-as. O que estaria acontecendo na vida real das

famílias, nas relações entre homem e mulher, para que tão insistente ensinamento se fizesse

necessário?

Ao observar que os termos mais repetidos para identificar a mulher perigosa são

“estranha” hr"z' zarah e “estrangeira” hY"rIk.n" nokriyah, suponho que este medo da

mulher pode estar ligado à questão da identidade cultural de Israel que, naquele tempo, era

apenas um pequeno grupo tentando se reorganizar, dentro de um imenso império. As

repetidas recomendações sobre a necessidade de tomar distância das mulheres estrangeiras

levam a supor que as relações com elas representavam um perigo para a identidade do povo

de Israel. Esta preocupação transparece, especialmente, nos textos de Esdras e Neemias.

Para eles, a relação marido/mulher era muito próxima e representava o perigo de cair na

“impureza” dos povos das terras (Esd 9,11), tanto através dos costumes da vida diária,

como através do culto (Ne 13,23-27). No entanto, há uma grande diferença entre as

proibições de casamento com mulheres estrangeiras em Esdras 9-10 e Neemias 13 e as

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advertências de Pr 2,16s; 5,2-20; 6,24s; 7,5-27. Os textos de Provérbios não se referem ao

casamento, mas às relações extraconjugais. Também não se referem ao perigo da impureza,

mas ao risco de perder a vida.

Mas, qual seria a situação existencial que originou esta insistência para não cair nas

ciladas e seduções das mulheres estrangeiras? Podemos pensar que esta insistente instrução

sobre o perigo da relação sexual com mulheres estrangeiras indica que havia uma prática

comum deste tipo de relacionamento, naquela época. Mais explicitamente, qual seria o

problema que esta relação significava? Para Tâmara C. Eskenazi, detrás da polêmica contra

as mulheres estrangeiras encontra-se uma preocupação fundada mais em interesses sociais e

econômicos do que em preocupações étnicas ou religiosas. Segundo esta autora, na

ausência da monarquia, a organização familiar volta a adquirir importância econômica na

sociedade, o que representa um aumento do poder das mulheres, incluindo a possibilidade

de herdarem propriedades familiares e de participarem de transações econômicas.415 Para

esta autora, o relacionamento com outras mulheres, fossem elas judias ou estrangeiras,

colocava em risco o patrimônio familiar.

Em minha opinião, além dos aspectos econômicos e de poder, estas insistentes

recomendações estavam relacionadas às questões culturais e religiosas importantes para a

reorganização do judaísmo pós-exílico. Neste sentido, Elisabeth M. Cook Steike comenta

que, desde 1Rs 11,1-13, as mulheres estrangeiras deixam de ser sujeitos, assumindo

funções especificamente teológicas. Elas são identificadas diretamente com a adoração a

outros deuses. Mas, no livro dos Provérbios, a mulher já não aparece mais como uma figura

passiva. A mulher estrangeira é ativa; é a maldade e a sedução que saem em busca do

homem para fazê- lo cair em suas redes. Ela começa a ser identificada com o mal (Pr 5; 7;

9,13-18).416 Uma visão que será radicalizada por Ben Sirá ao identificar a mulher com a

origem do pecado e da morte (Eclo 25,24). Esta visão sobre a mulher encontra-se também

no texto de 4Q 184,8, onde se afirma que a mulher é o começo de todos os caminhos de

415 Tâmara C. Eskenazi, “Out from the Shadows: Biblical Women in the Postexilic Era”, em Journal for the Study of the Old Testament 54 , 1992, p.32. 416 Veja Elisabeth M. Cook Steike, La mujer como extranjera en Israel – Estudio exegético de Esdras 9 y 10, San José/Costa Rica: Universidad Bíblica Latino Americana, 2004, (Tesis de maestría en Ciencias Bíblicas), p.25-26.

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impiedade, representando não somente um perigo de desvio sexual, mas também a heresia.

Na figura da mulher estrangeira se estabelece o limite entre o “próprio” e o do “outro”, ou

“estranho”. Podemos concluir, então, que o medo da mulher estranha ou estrangeira é um

reflexo da comunidade que está por trás do texto: de seus temores do diferente, do outro, de

tudo o que lhe é desconhecido, da angústia frente às guerras e da insegurança em relação ao

futuro; com o medo dos grupos da elite de perder privilégios.

Estes textos refletem uma preocupação com o fortalecimento dos espaços de

influência da mulher na sociedade, durante o período pós-exílico. Portanto, não é possível

desligar estes textos das lutas das mulheres e da sua importante participação na sociedade

do seu tempo. O contexto do pós-exílio pode ter proporcionado este crescimento devido às

diferentes tendências que encontramos na literatura desta época. Como já foi mencionado,

Fokkelien van Dijk-Hemmes indicou que o livro de Rute pode ter se originado em uma

cultura de mulheres, justificando que “esta hipótese de uma cultura de mulheres tem sido

proposta por antropólogos, sociólogos e historiadores da sociedade, a fim de estabelecer um

elo entre as experiências culturais primárias expressas por mulheres”417. Esta é uma

realidade que transparece em Pr 31,10-31 e que recebe o seguinte comentário de Elisabeth

Schüssler Fiorenza: “ainda que o louvor da perfeita ‘dona’ de casa se faça a partir de um

ponto de vista masculino, se evidenciam sua iniciativa econômica e sua perspicácia para os

negócios”418.

Na tentativa de fechar este tema, quero lembrar Clifford Geertz, em uma de suas

definições provocadoras. Para esse autor, “a religião é um sistema de símbolos que atua

para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações... vestindo

estas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem

singularmente realistas”419. A religião é uma das estruturas que permite encontrar coerência

nesta disposição, extremamente discriminadora, de colocar as mulheres, sobretudo as

417 Fokkelien van Dijk-Hemmes, “Rute – Produto de uma cultura de mulheres?”, em Rute a partir de uma leitura de gênero , p.180. Neste texto a autora comenta que esta voz não é muito ouvida, pois ainda é predominante o androcentrismo de teorias e estruturas de interpretação. 418 Elisabeth Schüssler Fiorenza, En memoria de ella – Una reconstrucción teológico-feminista de los orígenes del cristianismo , p.150. 419 Clifford Geertz, A interpretação das culturas, Rio de Janeiro: LTC, 1989, p.67.

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estrangeiras, como aquelas que seduzem os homens e os conduzem à morte. O discurso

religioso tem o poder de criar justificativas aceitáveis para situações inaceitáveis. Por trás

de um discurso religioso, como este que estamos analisando, esconde-se o medo daqueles

que o elaboram. Portanto, entendo que esta insistente censura das mulheres estranhas ou

estrangeiras representa uma reação dos editores de Provérbios contra a nova mentalidade

que se expressa nos poemas da sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e em livros como

Jonas, Rute e Cântico dos Cânticos.420 Um dos aspectos desta nova mentalidade é a

presença do erótico, do lúdico, da beleza dos corpos e de muitos símbolos da cultura dos

povos vizinhos, em textos desta época. Meu parecer é que os belos poemas sobre a

sabedoria mulher (Pr 1,20-23; 8 e 9) e a bem elaborada descrição das qualidades da mulher

da vida real (Pr 31,1-31) já existiam, antes da edição do livro. Também já estava presente,

na realidade do pós-exílio, o medo em relação à nova mentalidade que surgia a partir da

casa, onde a mulher participava sem restrições, na dinâmica da vida. Estas situações

antagônicas aparecem claramente na primeira seção do livro dos Provérbios, através da

antítese entre a sabedoria mulher e a mulher insensata.

4.6 – Funções sociais e religiosas

Neste item, buscarei visualizar, com maior clareza, algo que já está emergindo nesta

pesquisa, desde o capítulo 2: a função social de Pr 1-9 e 31. Se estes textos brotam das

experiências cotidianas das famílias de Judá, no pós-exílio, reagindo às situações e

expressando suas vivências cotidianas e suas crenças religiosas, certamente teria uma

função nesta sociedade. Já foi explicitado que estes poemas reagem a situações

desafiadoras para as famílias de Judá. Hans G. Kippenberg busca encontrar os motivos

econômicos que geram a crise descrita em Ne 5, levantando hipóteses sobre questões

relacionadas à posse e à capacidade produtiva da terra. Segundo esse autor, outro motivo de

420 Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exgese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.27.

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empobrecimento e endividamento das famílias de Judá está relacionado às exigências

estatais para o pagamento dos impostos sobre o terreno. A situação torna-se mais grave

porque esses impostos tinham que ser pagos em moedas. E se uma família camponesa já

havia hipotecado sua propriedade, para fazer este pagamento, não lhe restava outra opção

que vender filhos e filhas como escravos.421

Além disso, segundo a descrição de Ne 5, havia o interesse dos nobres e

governantes de levar seus conterrâneos ao endividamento. Esta foi uma das causas da

extrema pobreza que levou “os homens do povo e suas mulheres a levantar uma grande

queixa contra seus irmãos, os judeus” (Ne 5,1). Estas eram algumas das contradições

causadas pela exploração e as injustiças sociais dentro do povo judaíta, na época da

reconstrução das muralhas. Já que a descrição da realidade feita em Ne 5 parece ser

posterior à reconstrução mencionada, ela se torna muito importante para ajudar a

compreender o contexto que levou Is 58,6.7.12 a proclamar em nome de Deus a

necessidade de realizar a justiça social.

Como já foi mencionado, os textos de Pr 1-9 e 31 foram elaborados no final do

período persa. A missão de Neemias situa-se por volta do ano 445 a.C. Portanto, podemos

inferir que houve cerca de 100 anos de espaço temporal entre os dois livros. Mas, a

problemática que levou os homens do povo e suas mulheres a protestar contra a fome (Ne

5,1-2), as dívidas e hipotecas adquiridas para enfrentar a dolorosa situação (Ne 5,3-4), a

escravidão e violações das suas filhas e dos seus filhos (Ne 5,5) parece ter continuado,

embora com outras nuances. Esta dolorosa situação de pobreza transparece também no

livro de Rute: falta de pão (Rt 1,1), de terra (Rt 2,7a) e de filho que possa dar continuidade

à família e garantir o futuro do povo (Rt 4,17). Assim como Rute, Pr 1-9 e 31 busca

encontrar saídas para a complicada situação das famílias e o faz insistindo no tema da

justiça. Um dos objetivos principais dos ensinamentos do livro dos Provérbios é sensibilizar

para a prática da “justiça”, do “direito” e da “retidão” (Pr 1,3). Os ensinamentos do pai e da

mãe visam preparar os filhos para “entender os caminhos da justiça e do direito” (Pr 1,8;

2,8-9; 6,20; 8,20; 31,8-9).

421 Veja Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, p.56.

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Na sua auto-revelação, a sabedoria mulher sublinha uma característica básica da sua

identidade: ela caminha pelas “sendas da justiça e do direito” (Pr 8,20) e somente através

dela os governantes podem ditar sentenças justas (Pr 8,15.16). A mãe do rei Lemuel instrui

seu filho para que “abra a boca com justiça e defenda o oprimido e o pobre ” (Pr 31,9). A

partilha solidária com os pobres é a saída encontrada pela mulher forte e sábia de Pr 31,10-

31. Ao “abrir a mão aos oprimidos e pobres”, esta mulher indica que no cotidiano da vida

da casa a prática da justiça é a realização do que Deus quer (Dt 10,12-22; 15,11). Guardar o

ensinamento de Javé é realizar a justiça e o direito (Dt 18,19). Mas, o texto de Pr 31,20 não

está somente indicando que o mandamento de “abrir a mão ao pobre” (Dt 15,11) é

fielmente praticado na casa. Este texto resgata a memória da torah, através da prática de

uma mulher, fazendo uma proposta de solidariedade como saída concreta para a situação do

povo naquele complicado contexto do final do império persa.

Na recomendação que a mãe de Lemuel faz ao seu filho rei, para que “abra sua boca

em favor do mudo, em defesa dos abandonados, julgando com justiça e defendendo o pobre

e o indigente” (31,7-8), encontra-se um eco do discurso da sabedoria mulher de 8,15-16.20.

Este tema é um dos elos que ligam a primeira e a última seções do livro dos Provérbios, ao

mesmo tempo em que realiza a função de mostrar uma saída para a difícil situação social

que se revela através de termos como “mudos” ~Leaii ’ilem, “todos os filhos de

abandono” @Alx] yneB.-lK' kol bene halop, “oprimido” yni[' ‘ani e “pobre”

!AyIb.a, ’ebion.

Entendo que o poema de Pr 31,1-9 foi escrito em uma época anterior ao final do

império persa. Ele já era conhecido quando se realizou a edição do livro, tendo sido

inserido na coletânea de Provérbios como uma conclusão para a obra, junto com Pr 31,10-

31. Pelos termos utilizados no poema de Pr 31,1-9 e pela temática que esse poema

desenvolve, podemos inferir que no contexto que gerou o texto havia uma terrível situação

de marginalidade social e de carência. Uma situação que se encontrava tanto na época da

sua elaboração, quanto na época em que o texto foi editado. Estes conflitos sociais

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deveriam ser enfrentados pelos governantes, responsáveis diretos pelo bem estar do povo.

Mas, os governantes tinham outros interesses. Estavam preocupados em manter seus

privilégios e em realizar a reorganização religiosa do povo de Judá, criando coesão interna

através da insistência no monoteísmo e a partir de normas que estabelecem traços de

identidade.

Por tudo isso, a questão social teve que ser enfrentada pela casa, que busca

pequenas saídas para os problemas da marginalização, fome, insegurança e angústia. Na

vida da casa, a busca de uma saída para a difícil situação é concretizada tanto através dos

ensinamentos teóricos sobre a importância da justiça e do direito, como na prática da

solidariedade. Justamente quando os governantes colocam a lei (Ne 8; Esd 7,26; 10,3), o

templo (Ne 10,33.39-40; Esd 6,3s) e a raça (Ne 9,2; Esd 9,1-2; 10,11) como bases

principais para a reorganização do povo, as famílias de Judá reagem, buscando aquilo que

realmente importa: as relações de justiça e de solidariedade que sustentam a vida nas

pequenas e desafiadoras situações do dia-a-dia das famílias e comunidades.

Uma outra função importante que transparece em Pr 1-9 e 31 é a busca da inclusão.

No templo e na vida diária, as leis da pureza ritual excluíam pessoas do acesso a Deus (Lv

11-16). Sobretudo, as leis sobre parto, menstruação, hemorragias (Lv 12,1-8; 15,19-30) e

lepra (13-14), que tornavam as pessoas contaminadoras de impureza. Estas leis acrescentam

ainda mais dor ao sofrimento. Em vez de apontar saídas para as situações difíceis da vida,

sobrecarregam as situações dolorosas com a exclusão e a solidão, que geram também

sentimentos de inferioridade. Ferida pela dor da exclusão, a comunidade busca a inclusão.

Em Pr 1-9 e 31, encontramos uma proposta clara de participação de todas as

pessoas. Mais que isso, todos são convidadas a participar (Pr 9,4-5), sem nenhuma

condição de rito purificatório, mas somente lhes é pedido que deixem a ingenuidade (Pr

9,6) e que escutem (8,32). Estas são condições necessárias para adquirir sabedoria.

Portanto, os sábios não serão mais uma elite privilegiada, mas o povo dos pobres que está

sendo convidado a entrar no caminho da sabedoria. Esta proposta de inclusão aparece

claramente na abrangência dos destinatários dos poemas revelatórios da sabedoria mulher.

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Ela se dirige “aos filhos de Adão” ~d"a' yneB.-la, ’el-bene ’adam (Pr 8,4): uma

expressão genérica e inclusiva. Outra proposta de inclusão aparece na transmissão do

convite da sabedoria mulher para o seu banquete. Ela envia suas criadas para anunciar nos

pontos altos da cidade (Pr 9,4). Ainda que esta expressão (pontos altos) possa sugerir ritos

religiosos cananeus, a prática de transmitir mensagens em lugares elevados é conhecida em

Israel (Is 13,12; 40,20). Esta prática tem a finalidade de fazer com que a mensagem que

está sendo transmitida seja recebida por todas as pessoas. Portanto, o convite que faz a

sabedoria não é seletivo, mas aberto e inclusivo.

Depois de dirigir-se a todas as pessoas, ela menciona especialmente os “simples”

~yIåat'p. peta‘yim e os “néscios” ~yliysik. kesilim (Pr 8,5). Ao convidar o néscio para

que seja sábio, a sabedoria mulher introduz uma proposta de relação nova com estas

pessoas, geralmente desprezadas e excluídas por causa de seu comportamento. No interior

do livro dos Provérbios, encontramos a afirmação de que é inútil ensinar alguma coisa ao

néscio, pois este é incapaz de aprender e mudar (14,24; 17,10.16; 23,9; 26,11).422 Há,

claramente, um preconceito em relação a estas pessoas. Inclusive, recomenda-se não falar

com elas (23,9), usando comparações muito repugnantes (26,11). Certamente, os néscios e

insensatos eram excluídos dos círculos sapienciais, já que estes termos se opõem aos sábios

e prudentes. Mas, no banquete da sabedoria mulher, eles são os principais convidados.

Segundo Hans G. Kippenberg, “se um grupo de parentesco se encontra em transição

para sociedade hierárquica, então haverá na aristocracia inclinação a excluir e no povo

pobre a de incluir”423. Se isto é comprovado, podemos situar o grupo que elaborou estes

poemas entre os pobres de Judá, já que fica muito patente a sua postura inclusiva. Desta

maneira, a religião da casa apropria-se de um símbolo religioso que motiva para uma

função social importante no contexto de empobrecimento e endividamento das famílias de

Judá.

422 Confira M. Sæbø, kesil, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento , editado por Ernst Jenni e Claus Westerman, vol.1, col.1144-1147. 423 Hans G. Kippenberg, Religião e formação de classes na antiga Judéia, p.63.

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Se, nesta época, a casa e a família são o referencial básico de reflexão e de ação, fica

ainda mais clara a participação da mulher nestes textos. Uma participação que tem suas

raízes na vida diária. Não é um padrão, um ideal de mulher que se propõe no poema de Pr

31,10-31. É uma realidade que se descreve, sendo aqui apresentada como um horizonte que

se abre, uma pequena saída para situações desafiadoras, aparentemente sem saídas. Como

já foi mencionado, houve participação concreta de mulheres na reconstrução dos muros da

cidade de Jerusalém (Ne 3,12) e na história do povo (Rute). Tanto em Pr 9,1-6, como em Pr

31,10-31 a mulher sábia constrói sua casa, organizando-a de maneira inclusiva e solidária.

Nestes textos, a atuação das mulheres não se limita ao espaço das relações familiares e aos

trabalhos próprios de uma dona de casa. Sua atuação se estende ao espaço público,

chegando a ser reconhecida e louvada na porta da cidade.

Como já foi mencionado, esta posição inédita das mulheres no período pós-exílico

reflete-se na elaboração dos textos da época, através do esforço para incluir homens e

mulheres, filhos e filhas, etc. A repetição de termos, como “casa dela”, “casa da mãe” e o

uso de verbos e seus complementos em feminino (Rute, Pr 1-9 e 31; Cântico dos Cânticos),

além das belíssimas imagens femininas usadas por Is 40-66 para falar sobre o Deus de

Israel desvelam uma realidade nova. E uma característica principal desta novidade é o

reconhecimento e a visibilização da efetiva participação das mulheres na defesa da vida do

povo e na reconstrução das relações feridas. Algo que, certamente, esteve sempre presente

na história do povo de Israel, mas que a maioria dos textos oficiais deixam na

invisibilidade.

Depois da destruição de Jerusalém, em 587 a.C., a casa passou a assumir as funções

de monarquia e de templo. Segundo Silvia Schroer, “isto teve conseqüências radicais”424 na

mudança da visão que o povo tinha de Deus. Se o esforço da reforma deuteronomista foi

centralizar o culto de Javé no templo de Jerusalém, a não existência do templo esvaziou de

certa forma o seu discurso. Tanto para os remanescentes de Judá, como para alguns grupos

que se uniram a estes remanescentes, sobretudo no campo, a relação com Deus passa a ser

muito mais próxima. Esta relação nova transparece nas imagens femininas que são

424 Silvia Schroer, “Die göttliche Weisheit und der nachexilische Monotheismus”, p.160.

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utilizadas para falar sobre Deus neste período.425 Elas indicam que houve uma aproximação

muito grande nas relações das pessoas com seu Deus, já que estas imagens apresentam

traços de ternura, carinho e prazerosa convivência (Pr 8,30-31). São imagens tão simples e

próximas que surpreendem.

É neste contexto que os poemas de Pr 1-9 e 31 contêm uma proposta de organização

social, através da partilha. Essa proposta transparece tanto no convite da sabedoria mulher

para a participação gratuita em seu banquete (Pr 9,1-6) como na partilha da ’exet hayil com

pobres e necessitados (Pr 31,20). Outra evidência desta proposta encontra-se na antítese

entre a sabedoria mulher (9,1-6) e a mulher insensata (9,13-18). Enquanto a sabedoria

mulher convida a todos para que venham participar gratuitamente do alimento que preparou

(9,5), a mulher insensata convida para “beber água roubada e comer pão escondido” (Pr

9,17-18). Embora o sentido deste convite tenha seu aspecto moral, a imagem utilizada

chama a atenção para a realidade social. Mesmo que o convite contenha um lembrete sobre

o perigo de relações sexuais clandestinas com a mulher alheia, pois estas fatalmente

conduzem à morte, a metáfora utilizada para representar o convite é tirada da vida,

desvelando uma situação social bastante conhecida de roubo e de não partilha.

Desta maneira, os poemas de Pr 1,20-23; 8; 9 e 31 desvelam a liderança e

autoridade das mulheres, numa época em que o governo sacerdotal não conseguiu

centralizar a organização do povo, sobretudo no interior de Judá. A ausência da liderança

estatal possibilitou um crescimento da organização da casa, onde naturalmente as mulheres

tinham um papel muito importante. E não somente mostram que há uma liderança que se

move, que conquista espaços, que transmite ensinamentos importantes para a vida. Estes

textos propõem, a partir da casa, a superação de posturas disc riminadoras e propõem a

inclusão e a solidariedade que fortalece o povo, recriando as relações básicas para a

construção da comunidade. Relações novas, baseadas no respeito às diferenças e na luta

pela justiça.

425 Veja Is 46,3; 49,15-16; 66,12-13; Pr 8,30-31 entre outros textos.

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Conclusão

Comunicar algo através de um símbolo é como abrir uma janela e convidar outras

pessoas para que venham contemplar a paisagem através deste novo ângulo. O símbolo da

sabedoria mulher é, antes de tudo, um convite para descobrir a nova visão da vida, de Deus,

da mulher e da história que se desvela em um momento tão conturbado da história de Israel.

É a partir das experiências da casa, e especialmente da mulher, que este instigante símbolo

é elaborado, no período do pós-exílio. A aproximação entre o símbolo da sabedoria mulher

de Pr 1,20-23; 8 e 9 e a mulher da vida real de Pr 31 mostrou as raízes de onde brotou este

símbolo e evidenciou a ligação entre os dois textos (Pr 1-9 e 31). A pesquisa feita me

permite afirmar que a primeira e a última seções de Provérbios formam uma moldura,

possib ilitando ao leitor e à leitora obter uma nova visão sobre a mulher em todo o livro.

Os estudos apresentados nesse capítulo mostram, ainda, que há em Pr 1-9 e 31 um

duplo movimento entre símbolo e realidade, que se inspiram mutuamente e conspiram para

uma transformação religiosa e social, no âmbito da casa interiorana de Judá, no período

persa. Por um lado, a mulher sábia e competente da vida real inspira o poeta e leva-o a

formular de maneira totalmente nova seu discurso sobre Deus, a criação, a mulher. Por

outro lado, este novo discurso, esta visão nova, tem poder para inspirar e transformar as

relações excludentes que existem na realidade, abrindo novas possibilidades de intercâmbio

entre as pessoas nas relações cotidianas da casa. Se o símbolo se inspira na luta e no

trabalho competente das mulheres no pós-exílio, ele também dirige o olhar de quem o

apreende para a nova visão que está sendo apresentada através dele.

As ligações textuais entre a primeira e a última seções do livro dos Provérbios

desvelam uma grande valorização da mulher e sua proximidade com Deus, ao apresentá-la

com o poder de oferecer a vida (8,35; 9,6a) e de cuidá- la (31). Um poder próprio da

divindade. Além de oferecer vida, a mulher tem a função de transmitir os valores éticos

fundamentais para as relações cotidianas (1,8; 6,20; 31,2-9.26). Este aspecto transparece, de

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modo especial, na apresentação da sabedoria mulher como promotora da justiça (8, 8.15-

16.20) e na visão da mulher sensível ao sofrimento dos outros (31,6) e solidária com as

pessoas carentes (31,7-9.20). Esta postura da mulher “que abre sua mão ao pobre e ajuda o

indigente” (Pr 31,20; Dt 15,11) revela sua fidelidade a torah e atesta sua capacidade para

transmiti-la (1,8; 6,20; 31,26).

Os poemas sobre a sabedoria mulher (1,20-23; 8 e 9) surpreendem porque

apresentam algo de inédito na literatura bíblica. Esta inédita apresentação da mulher que

tem suas raízes tanto na mulher do presente, que participa corajosamente na reconstrução

da vida e das relações da comunidade, no conturbado período persa, quanto na memória

histórica das mulheres sábias (1Sm 25,23-31; 2Sm 14,16-22; 2Sm 20,16-22) e profetisas

(Ne 6,14) que enfrentaram com decisão e coragem situações difíceis da vida do povo

bíblico e que participaram ativamente na reconstrução das muralhas da cidade de Jerusalém

(Ne 3,12). A origem desta inédita visão também pode ser procurada na época do cativeiro,

quando grande parte do povo de Jerusalém foi levada para a Babilônia. Em terra

estrangeira, tomaram consciência de que tinham perdido tudo, sobrando-lhes apenas como

único espaço autônomo as relações familiares de mãe, pai, irmão e irmã. Embora este fosse

um pequenino espaço, os discípulos e discípulas de Isaías descobriram que a partir daí

poderiam reconstruir a vida e a história do povo (Is 40-66). Mais tarde, na época da

dominação do templo, da raça e da observância da lei imposta pela liderança sacerdotal e

pelos doutores, o movimento da sabedoria mulher vai situar-se nesse pequeno espaço. Não

é um espaço oficial, nem é um espaço reconhecido, mas tem uma influência direta nas

relações imediatas familiares e clânicas.

A função dinâmica da linguagem simbólica, que coloca em movimento a

imaginação, permite-nos acompanhar o movimento das mulheres nos espaços privados e

públicos de sua época. Assim como a sabedoria mulher anuncia sua mensagem nas ruas,

praças, mercados e porta da cidade (Pr 1,20-22; 8,1-3), as mulheres da vida real

influenciam nestes espaços diretamente, através de suas ações e, indiretamente, através dos

seus ensinamentos e das suas obras (31,2-9.20). É por suas ações que a “mulher de força”

recebe o reconhecimento dos seus filhos e seu marido (31,28-29) e a louvação do povo nas

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portas da cidade (31,31). Esta é uma forma de ocupação dos espaços públicos e privados.

Ela é uma demonstração da grande mudança cultural e religiosa que aconteceu em Judá, no

período pós-exílico. Um exemplo concreto desta mudança é a participação das mulheres na

reconstrução das muralhas de Jerusalém (Ne 3,12). Outro exemplo importante, encontra-se

no livro de Rute, que narra a participação efetiva de mulheres (Rute e Noemi) na defesa dos

direitos dos pobres. Mulheres que se unem para lutar pelo seu próprio futuro, da sua família

e do seu povo. A postura corajosa de Noadias (Ne 6,14), que se opõe ao projeto de

excludente de reconstrução realizado por Neemias, é outro exemplo da ocupação de

espaços públicos pelas mulheres de Judá, na época persa. Estes são apenas alguns dos

exemplos que o texto registra. Eles nos permitem vislumbrar a mudança cultural e religiosa

que está acontecendo em Judá, nesta época. Mudança cultural que transparece também na

preocupação de dar visibilidade às mulheres nos relatos do pós-exílio (Rt 2 e 3; Is 43,6; Ne

5,1-2; 8,3). Uma mudança que se inicia quando a casa começa a exercer as funções que

eram próprias do palácio e do templo, na época da monarquia. Com a destruição do estado,

a organização da vida e da religião passa a ser função principal da casa, em Judá. É na casa

que se realizam os ritos mais importantes que mantêm a memória histórica e a identidade

do povo judaíta; é na casa que se re-elaboram os símbolos e os discursos religiosos com a

finalidade de obter a inspiração e a força necessárias para garantir o futuro do povo.

Uma das características mais importantes da religião da casa é a sua visão de Deus.

Através de imagens tiradas da vida real, sobretudo, da imagem da mãe cheia de ternura (Is

49,15; 66,12b-13), a religião da casa elabora um novo discurso sobre Deus, apresentando-o

próximo, presente nas relações cotidianas e, ao mesmo tempo, princípio de vida e criador

do universo, como transparece em Pr 8,22-31. O símbolo da sabedoria mulher que é usado

para formular este novo discurso teológico carrega a memória de Deusas cultuadas em ritos

familiares de Judá e, até mesmo, no templo de Jerusalém. No entanto, é uma visão de Deus

apresentada de forma harmoniosa e integradora, mostrando o Deus de Israel na imagem da

sabedoria mulher, apresentada com autoridade divina, já que promete derramar seu espírito

a quem para ela se voltar (Pr 1,23) e de dar a vida a quem a busca (Pr 8,34-35). O prazer de

viver e de conviver transparece no símbolo da sabedoria mulher (a hokmah criadora), em

sua prazerosa relação com a humanidade (Pr 8,30-31). Este é um aspecto importante da

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religião da casa: uma religião lúdica e alegre que em seus ritos familiares cultuava a

hokmah criadora do universo. A visão de Deus que a religião da casa nos transmite

demonstra que ela não foi utilizada para manter o controle ou dar sustentação a um grupo

de elite. Mas sua função principal é a inclusão e a integração das pessoas, na casa: mulheres

e homens, néscios e sábios.

No contexto desafiador do pós-exílio, a religião da casa re-elabora antigos símbolos

religiosos para obter proteção divina e obter força na luta pela vida. Inspira-se também nas

antigas narrações sobre as mulheres fortes que ajudaram a construir a história do seu povo,

como Lia e Raquel (Gn 35,23-26; Rt 4,11), Miriam (Nm 26,59; Ex 15,20-21), Tamar (Gn

38), Débora (Jz 4-5) e tantas outras mulheres que, no contexto atual, buscavam re-inventar

a vida cada dia, conquistando respeito e autonomia. Esta é a experiência que está por trás

do cap.31 de Provérbios. Desta experiência da mulher da vida real, nasce a inspiração para

elaborar os poemas sobre a sabedoria mulher (Pr 1-9), especialmente para o discurso

teológico de Pr 8,22-31.

Um discurso elaborado dentro de um contexto de dependência econômica e de

escassês de alimentos, vivenciado pela colônia de Judá, durante a dominação persa. Neste

contexto, os rituais da casa buscam obter bênçaos de vida e abundância para a família e a

comunidade, através do culto à Deusa (Jr 44,17). O texto de Zacarias 5,5-11 indica que o

culto à Deusa foi totalmente erradicado de Judá. Mas, a pesquisa realizada mostra que havia

muitas tendências político-religiosas em Judá. Uma dessas tendências transparece em Pr 1-

9 e 31, onde se encontra um discurso sobre o Deus de Israel na imagem da mulher e na

linguagem das Deusas, embora não se possa dizer que esta influência tenha sido consciente.

O inédito neste discurso teológico, sobretudo em Pr 8,22-31, é que a hokmah criadora é

experienciada e comunicada de forma integradora com a história e a religião do povo de

Judá.

No entanto, a ambigüidade não está ausente da religião da casa. Nem poderia ser

assim, já que a contradição faz parte da realidade. Ao lado do simbólico que tem a função

de unir, congregar, integrar, incluir está o diabólico que desagrega, fragmenta, divide,

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exclui. Este é o sentido de dia-bállein que, literalmente, significa “lançar para fora”,

representando desta maneira o oposto de simbólico. Segundo Leonardo Boff, “diabólico e

simbólico são princípios estruturadores da natureza e do cosmos, dos comportamentos

sociais e da própria natureza humana”426.

Em Pr 9,13-18, encontramos a figura da “mulher de insensatez”, formando uma

antítese com o símbolo da sabedoria mulher de Pr 9,1-6. Os estudos sobre o sentido e a

função dessa antítese apresentam muitas divergências, como foi assinalado no estudo sobre

este tema. 427 Alguns termos ligam a personagem principal da antítese da sabedoria mulher

com a mulher estrangeira ou estranha, considerada no texto como aquela que conduz à

morte (Pr 2,18; 5,5; 7,27; 9,18). Por um lado, esta antítese formada pela figura da “mulher

de insensatez” e as referências transversais que a ligam com a prostituta e, especialmente,

com a mulher estrangeira desvelam uma situação de preconceito e medo em relação a

algumas mulheres da comunidade. Por outro lado, mostram que havia uma reação daqueles

que detinham o poder, na época, contra a autonomia e o poder das mulheres. Uma

autonomia que se expressa muito claramente na descrição da mulher forte, a ’exet hayil de

Pr 31,10-31. Justamente quando a organização familiar adquire importância econômica, na

ausência da monarquia, e se constitui em um espaço importante de exercício do poder da

mulher, crescem as suspeitas contra as mulheres autônomas ou estrangeiras.

Desta maneira, na religião da casa encontra-se a força simbólica que congrega,

gerando possibilidades de inclusão, partilha solidária, abertura ao diferente, alegria de

conviver e novas imagens de Deus, a partir dessas experiências. Encontra-se, também, a

força diabólica que lança para fora, que exclui, que discrimina, gerando medo e provocando

suspeita e desagregação. A linguagem poética dos textos analisados permite reunir

diferentes tendências e tensões existentes na situação do povo judaíta, durante o período

persa. Este é um aspecto importante da pesquisa, porque contribui para uma aproximação

das diferentes experiências vivenciadas pelo povo bíblico, nesta etapa da sua história.

426 Leonardo Boff, O despertar da águia – O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade, Petrópolis: Vozes, 8ª edição, 1998, p.13. 427 Veja as diferentes opiniões sobre este tema no item 4.3 “A sabedoria mulher e a mulher insensata”.

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A realidade subjacente ao texto de Pr 1-9 e 31 não é apresentada somente nesse

texto que forma uma moldura para o livro dos Provérbios. Ela se expressa, também, em

livros como Jonas, Rute, Cântico dos Cânticos e Jó 28. Estes textos bíblicos apresentam

uma visão favorável dos povos vizinhos e incluem aspectos importantes de suas culturas.

Entendemos que as relações com outras culturas, através de casamentos, de comércio e de

viagens possibilitaram esta visão mais ampla da vida, das pessoas, de Deus e das diferentes

culturas.

Um dos objetivos principais de Pr 1-9 e 31 é a sensibilizar a população de Judá para

a prática da “justiça”, do “direito” e da “retidão” (Pr 1,3). Uma sensibilização que se realiza

através dos ensinamentos do pai e da mãe (Pr 1,8; 2,8-9; 6,20; 8,20; 31,8-9). Pr 1-9 e 31

mostra ainda que a partilha solidária com os pobres é uma saída concreta encontrada pela

casa, naquele contexto crescente de marginalidade social e de carência. A solidariedade

realiza-se através da partilha econômica e também nas relações abertas e inclusivas, que

permitem a participação efetiva de todas as pessoas na vida da casa e na comunidade.

Esta visão aberta e inclusiva, que transpõe os limites da religião e da casa, tem suas

bases na tradição de Israel (confira Ex 10,18-19) e promove relações de justiça e de

solidariedade com a finalidade de sustentar a vida dos pobres. Uma demonstração de

abertura e de inclusão social transparece nos destinatários do convite para o banquete

oferecido pela sabedoria mulher (Pr 9,1-6). Ela envia suas criadas para anunciar os convites

em pontos elevados da cidade a fim de que sua mensagem possa ser recebida por todas as

pessoas (Pr 9,4).428 Portanto, o convite que faz a sabedoria não é seletivo, mas aberto e

inclusivo. Outra característica desta nova postura é o reconhecimento e a visibilização da

efetiva participação das mulheres na defesa da vida do povo, na transmissão da torah e na

reconstrução das relações feridas.

Mas, a grande novidade está no discurso teológico, nos símbolos escolhidos para

falar de Deus. Estes símbolos indicam que houve uma aproximação muito grande nas

relações da casa do interior de Judá com seu Deus, já que a linguagem simbólica utilizada 428 Em Israel, havia este costume de anunciar sobre as montanhas as mensagens que deveriam chegar a todas as pessoas (conferir Is 13,2; 40,9).

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para falar sobre a divindade apresenta-a com traços de ternura, carinho e de prazerosa

convivência (Pr 8,30-31). São comparações tão simples e próximas que até surpreendem.

Elas desvelam uma saída encontrada para superar a dolorosa situação social em que viviam

as famílias de Judá, na época do pós-exílio. É uma saída pequenina, que não chega a

transformar toda a realidade, mas humaniza as relações diárias e promove a partilha que

concretiza os laços de irmandade. Por tudo isso, estou convencida de que as ligações entre

Pr 1-9 e 31 desvelam a mulher da vida real no período pós-exílico com poder e força de

vida, capaz de garantir o resgate da solidariedade tribal e de realizar a inclusão de

diferentes, como uma saída para a difícil situação do seu povo.

Conclusão

Investigar sobre o símbolo da sabedoria mulher em Pr 1-9, buscando sua relação

com a mulher israelita contemporânea destes textos, foi o objeto principal da minha

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pesquisa. Suspeitava que o símbolo da sabedoria mulher dos poemas de Pr 1,20-23; 8 e 9

estaria de tal maneira relacionado à mulher da vida cotidiana, apresentada nos poemas de Pr

31, que a recuperação das ligações transversais entre estes textos deixaria transparecer

aspectos impor tantes sobre a situação da mulher em Judá, durante o período persa.

A decisão de investigar sobre os sentidos e as funções deste símbolo foi motivado

por minha longa convivência com mulheres pobres de diferentes países da América Latina,

de modo especial com as mulheres indígenas da Bolívia. Surpreende-me a força, a coragem

e a sabedoria dessas mulheres. Em meio a uma situação aparentemente sem saída, elas

mantêm a alegria de viver e a esperança no futuro. Não se deixando dominar interiormente,

elas continuam transmitindo os valores éticos, o idioma, os costumes culturais e religiosos

de seu povo, ao mesmo tempo em que se abrem a novas experiências e a uma convivência

prazerosa com suas comunidades. É impressionante vê - las acolher com alegria e confiança

mulheres de outras culturas e contemplar a relação de reciprocidade e cuidado que mantêm

com a natureza. Em um contexto secular de dominação e de marginalização, estas mulheres

são capazes de abrir novos caminhos, criando organizações que fazem avançar seu processo

de emancipação.429

Ao mesmo tempo, nas minhas leituras e estudos bíblicos, os poemas sobre a

sabedoria mulher em Provérbios me atraíam de maneira especial. Tinha a impressão de que

estes poemas continham um discurso sobre Deus, o mesmo Deus de Israel, porém

mediatizado pela linguagem simbólica de Deusas e inspirado na importante atuação da

mulher na história do povo de Israel. Perguntava-me: se isto é verdade, quais teriam sido os

motivos que levaram os sábios da época a compor estes poemas sobre a sabedoria mulher e

a integrá-los no seu discurso?

Estas e outras perguntas levaram-me a iniciar esta pesquisa. Suspeitava que por trás

deste tesouro da tradição judaica haveria um discurso sobre Deus/Deusa inspirado na força

429 Ao chegar na Bolívia, em 1983, entrei em contato direto com mulheres indígenas e causou-me um enorme impacto a observação da sua força e da sua grande sabedoria para superar as situações difíceis do seu cotidiano. Um exemplo das organizações de mulheres da Bolívia é a Confederação das mulheres campesinas cujo significativo nome é “Las hijas de Bartolina Sisa”, que foi uma grande líder nas guerras da independência.

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de vida que se manifesta nas lutas e na grande sabedoria das mulheres de Israel. Queria

descobrir as ligações entre as diferentes visões de mulher que aparecem nos textos de Pr 1-

9 e 31, que formam a primeira e a última seções do livro dos Provérbios. Existiriam

ligações tranversais entre estas seções? Que aspectos sobre a vida das mulheres israelitas,

contemporâneas aos textos mencionados, estas ligações visibilizariam? Estas e outras

perguntas levaram-me a iniciar também uma investigação sobre a época e as situações

concretas que permitiram a expressão deste símbolo da sabedoria mulher e quais teriam

sido as suas funções sociais e religiosas.

Minha intenção, ao iniciar esta pesquisa, era oferecer não somente um paradigma

bíblico democrático e inclusivo para falar sobre Deus, mas também apresentar uma imagem

da divindade com a qual as mulheres cristãs de nossa época pudessem se identificar. Para

isso, utilizei as ferramentas oferecidas pelas metodologias exegéticas, buscando superar a

tensão entre a hermenêutica da suspeita e a hermenêutica do “crédito”. 430 Ao analisar os

textos, realizei os passos da exegese, a partir de uma perspectiva feminista, democrática e

inclusiva.431 Também busquei, através do método histórico crítico, situar o texto em uma

determinada época, para obter dados que me permitissem uma aproximação da vida

concreta das mulheres, através de uma análise da situação sócio-econômica, cultural e

religiosa da casa, neste período.

No primeiro capítulo desta tese, confrontei minhas pesquisas com a opinião de

vários autores e autoras sobre os significados do símbolo da sabedoria mulher, em

Provérbios. As múltiplas e diferentes visões que encontrei sobre este símbolo ajudaram-me

a definir a direção da minha pesquisa. Em seguida, ampliei o debate entre estudiosos,

buscado obter mais informações sobre as fontes e tendências da sabedoria bíblica. Esta

atividade proporcionou-me uma visão geral do processo de desenvolvimento da sabedoria

em Israel e me permitiu investigar sobre a época do texto, chegando à conclusão de que a

seção de Pr 1-9 foi elaborada no final do período persa. Nesta etapa da investigação, não 430 Este termo “hermenêutica do crédito” encontra-se em Silvia Schroer, “A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel”, em Feministische Exegese – Forschungserträge zur Bibel aus der Perspektive von Frauen, p.5. 431 Elisabeth Schüssler Fiorenza, Los caminos de la sabiduría , p.121.

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202

encontrei, entre os autores e autoras, uma informação sobre a época do capítulo 31 de

Provérbios. Investigação que realizei posteriormente, no decorrer da pesquisa, e que teve

como fonte principal o próprio texto bíblico e suas ligações transversais com Pr 1-9,

podendo afirmar que a primeira e a última seções do livro dos Provérbios foram elaboradas

no final do período persa.

No capítulo 1, apresentei, ainda, uma visão geral do livro dos Provérbios, mostrando

sua diversidade de conteúdos e o longo processo de sua formação. Para situar este processo

e as diferentes visões sobre este livro, apresentei também a forma como a Septuaginta

organizou as coleções de Provérbios. Ao dar atenção às diferentes vozes que comentaram

sobre o livro dos Provérbios, encontrei também alguns problemas relacionados a posturas

preconceituosas de estudiosos e estudiosas. Observei que estas posturas comprometeram

suas pesquisas, impedindo- lhes de obter uma visão mais próxima do texto. Como resultado

desta observação, anotei estes problemas como um alerta para meu trabalho, pois tal

postura poderia impedir-me de chegar a uma investigação mais aprofundada.

No capítulo 2, detive-me especialmente nos poemas que apresentam o símbolo da

sabedoria mulher, podendo afirmar que este é polissêmico e possui vários aspectos

surpreendentes, que deixam transparecer uma nova visão da mulher neste período. Em Pr

1,20-23, a sabedoria mulher é apresentada como profetisa. Este traço do rosto da sabedoria

mulher reflete a memória das mulheres profetisas, sábias e fortes que ajudaram a construir a

história do povo bíblico. Mas, o texto não permite que vejamos apenas os traços de

profetisa no rosto da sabedoria mulher, pois ela promete derramar seu espírito aos que

acolherem suas palavras e seguirem suas instruções (v.23). Ora, se ela tem o espírito para

derramá-lo sobre todas as pessoas, como em Joel 3,1-5, é porque, aqui, ela representa Javé.

O aspecto da profecia é novamente acentuado em Pr 8,1-3, onde a sabedoria mulher é

apresentada em lugares públicos muito movimentados, comunicando sua mensagem com

força e autoridade.

Nos versos seguintes (8,11-21), a sabedoria mulher mostra a importância dos seus

dons, mais preciosos que o ouro puro e as jóias (v.11.19). Ela afirma, de maneira

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reiterativa, sua postura ética em favor da justiça e do direito. Ao expressar os seus dons, a

sabedoria mulher usa uma linguagem muito próxima à esperança messiânica contida no

texto de Is 11,1-9.432 É importante assinalar aqui este messianismo feminino de Pr 8,11-21.

Já no poema de Pr 8,22-31, a sabedoria mulher é apresentada inicialmente como

pré-existente à criação toda para, em seguida, ser colocada ao lado de Javé, como artesã do

universo. Este é um poema impressionate, onde vemos a sabedoria mulher ir crescendo até

alcançar aspectos de Deusa. Nos versos finais de Pr 8, a sabedoria mulher proclama bem

aventurados aqueles que a escutam, velando à porta de sua casa (v.34), pois “quem a

encontra, encontra a vida” (v.35). Nesta conclusão, está claramente expressa a sua face

divina, já que está sendo apresentada como doadora de vida, ou como princípio de vida. É

interessante observar que em Pr 8,22-31 a sabedoria mulher não está representando Javé,

como em Pr 1,20-23 mas, tendo sido colocada ao lado de Javé no v.30, ela aparece aqui

com uma identidade própria. Posso, então, afirmar que, nos poemas de Pr 1,20-23 e 8,1-31,

a sabedoria mulher tem aspectos de profetisa (1,20-22; 8,1-3), é apresentada como uma

imagem feminina de Javé (1,23; 8,34-35) e tem os traços próprios de uma Deusa (8,30-31).

Em Pr 9,1-6, a sabedoria mulher é totalmente autônoma. Não se encontra uma

divindade masculina ao seu lado. Apenas outras mulheres, as criadas que ela envia como

mensageiras sobre os montes da cidade. Ao iniciar o poema (9,1), ela é chamada de

hokmot, um plural de majestade que foi usado em nosso primeiro texto (1,20). Os traços do

seu rosto mostram uma mulher competente, que constrói sua casa e prepara com atenção

um banquete, enviando suas criadas para fazer convites a todas as pessoas, a partir dos

pontos altos da cidade. Chama a atenção o fato do número sete aparecer repetido neste

pequeno texto, dando- lhe um sentido de plenitude. A casa que a sabedoria mulher constrói

tem sete colunas e sete são os verbos que descrevem sua ação. Tanto o plural majestático

hokmot como o número sete são recursos utilizados pelo poeta para demonstrar sua

grandeza, que está relacionada à sua postura ética. Uma postura que transparece na escolha

de seus principais convidados: os “ingênuos” e aqueles que estão sem sentido para viver,

“sem coração” (v.4-5). Esta opção demonstra que a sabedoria mulher tem, neste poema, 432 Esta ligação clara com a esperança messiânica da comunidade de Isaías foi uma das indicações que me ajudou a situar a tendência política e religiosa que elaborou o texto.

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uma postura inclusiva, escolhendo gente sem conhecimento (petayim) e sem um sentido

para a vida (hasar leb) como seus convidados especiais. Demonstra também que, neste

poema (9,1-6), a sabedoria mulher está muito mais próxima da mulher da vida real.

Ao fazer seu convite, a sabedoria mulher usa os imperativos “venham!”, “comam!”

e “bebam!” (v.5). Expressa claramente que a participação em sua comida, gratuitamente

oferecida, exige uma conversão: “deixai a ingenuidade e vivereis!” (v.6). A sabedoria é

oferecida a todos que aceitarem seu convite para partilhar de seu banquete, contanto que

deixem a ingenuidade e busquem o caminho da vida. Aqui, é interessante observar que o

caminho da vida leva a ela mesma, pois isto está claramente expresso, através do convite

imperativo: “venham!” Desta maneira, posso afirmar que há um traço de divindade no rosto

da sabedoria mulher de 9,1-6, e que este foi inspirado pelas ações da mulher da vida real,

cheia de força e dignidade. Estas características da mulher da vida real transparecem no

texto de Pr 9,1-6 e estão maravilhosamente descritas no capítulo 31 de Provérbios.

No cap.3, me detive sobre as duas personagens femininas que se encontram em Pr

31: a sábia mãe do rei Lemuel (31,1-9) e a mulher forte, a ’exet hayil (31,10-31). Uma

ligação entre as duas se dá através da função de ensinar. A sábia mãe do rei Lemuel lhe

transmite ensinamentos importantes para a realização de seu governo (v.2-9); esta é

também uma das funções da ’exet hayil: ela “abre a boca com sabedoria e ensina com

bondade” (v.26). Desta maneira, a função de ensinar realiza um dos enlaces principais entre

os dois poemas que formam o capítulo 31, mostrando que há algo de inusitado

acontecendo, pois aconselhar os reis e ensinar os jovens era uma função dos sábios. Como a

mulher passa a ocupar novos papéis na sociedade israelita, depois do exílio da Babilônia,

esta sua nova posição lhe dá uma visibilidade maior. Na realidade, a mulher sempre formou

seus filhos e filhas, preparando-os para a vida. O livro dos Provérbios mostra esta realidade,

apresentando os ensinamentos da mãe junto com os ensinamentos do pai e insiste na

importância de ambos (1,8;6,20), registrando as palavras da sábia mãe do rei Lemuel, o

conteúdo dos seus ensinamentos em Pr 31,1-9.

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Mas, há outros traços que ligam estas duas personagens. Um deles é a preocupação

com os pobres (v.5.9.20), cuja situação é explicitada através de adjetivos como

“amargado”, “aflito” (v.7), “mudo” (v.8) e “oprimido” (v.20). Nos dois poemas, estes

termos desvelam aspectos da situação social do seu tempo e demonstram que uma das

carácterísticas da mulher sábia da vida real é a compaixão e a solidariedade com as pessoas

marginalizadas da sociedade. Pr 31,10-31 mostra também outras qualidades da mulher,

descrevendo-a como forte e valente, capaz de administrar sua casa com muita competência

e proporcionar o bem estar das pessoas que com ela convivem (v.12.14.15). Apresenta-a

como uma mulher que trabalha com as mãos (v.19) e que usa de inteligência para fazer

bons investimentos (v.16). É surpreendente a autonomia desta mulher, pois ela mesma

busca a matéria prima necessária para realizar seu trabalho (v.13) e o alimento para sua

casa (v.14), fazendo os contatos necessários para a comercialização dos seus produtos

(v.16.24). O poeta enfatiza, ainda, a proximidade desta mulher com Deus, usando frases

que são dirigidas a Javé como elogio ou louvação nos Salmos (Sl 65,7; 104,1). No final do

poema, os filhos e o marido desta mulher a louvam. Mas, no meio da bonita e justa

louvação mostra-se a ambigüidade presente no contexto cultural: a mulher forte e valente é

chamada por seu marido de “filha”, desvelando um aspecto da realidade cultural da sua

época. Esta mesma abigüidade está presente no v.30, onde transparece um desprezo pela

graça e a beleza. Mas, esta interrupção é superada e o louvor da mulher vai terminar nas

portas da cidade (v.31). Também a ação da mulher forte percorre o mesmo caminho:

começa na casa e alcança o espaço público, através do reconhecimento que seu marido

recebe entre as autoridades da época (v.23) e através do louvor que ela mesma recebe na

porta da cidade, pelas obras que realiza (v.31).

No cap.4, apresentei as ligações e a co- inspiração entre a mulher sábia e a sabedoria

mulher. Esta mulher sábia e forte, descrita no capítulo 31 de Provérbios, é a fonte principal

de inspiração para a elaboração dos poemas sobre a sabedoria mulher em Pr 1,20-23; 8 e 9.

Afirmo, portanto, que o símbolo da sabedoria mulher é um reflexo da mulher da vida real,

no período pós-exílico. A linguagem usada para sua elaboração provém do imaginário

religioso da casa, que mantinha a memória das Deusas. 433 Dentro da cultura patriarcal, estes

433 Ainda que não possa afirmar exatamente qual a Deusa que estaria por trás dos poemas de Pr 1-9.

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textos somente foram possíveis devido a uma nova situação das mulheres, depois da

destruição da cidade de Jerusalém e do templo. Com a ausência do templo e de um governo

que centralizasse a organização do povo, a casa passou a ser ao mesmo tempo um espaço

de culto e de organização para a defesa da vida. Esta nova função da casa acontece tanto

entre os que foram exilados, como entre os remanescentes de Judá (Jr 44,17-19). Desta

maneira, a nova situação criada possibilita uma grande mudança no cotidiano da casa, onde

a mulher tinha grande liderança e autoridade, apesar de todos os preconceitos de uma

sociedade patriarcal. Esta liderança cresce na medida em que o poder do império vai se

enfraquecendo, no final do período persa. Além do fracasso dos primeiros projetos de

reconstrução, as diferentes tendências internas do judaísmo impossibilitavam que a

dominação dos sacerdotes zadoquitas penetrasse até o interior de Judá e pudesse controlar a

vida da casa. Além disso, as exigências tributárias do império persa levaram a mulher a

trabalhar ainda mais intensamente e a entrar no comércio, exercendo funções de

administração, compra e venda (Pr 31,10-31). A participação efetiva das mulheres na

reconstrução das muralhas de Jerusalém (Ne 3,12), nas lutas pela justiça (Ne 5,1-5) e na

denúncia de projetos centralizadores para a reconstrução da história do povo (Ne 6,14) gera

uma nova visão sobre as mulheres e lhes dá maior autonomia. Este é o contexto que

possibilitou a elaboração e a aceitação do símbolo da sabedoria mulher.

Mas, esta nova visão das mulheres confronta-se com a contradição do sistema

patriarcal, no dia-a-dia da vida das mulheres. É muito difícil conviver com uma realidade

marcada pela dominação, quando se tem a mente desperta e uma consciência crítica em

relação a esta realidade. Uma amostra da insatisfação das mulheres, neste sentido, aparece

no interior do livro dos Provérbios, onde há um ditado muito repetido: “melhor é morar

numa região deserta do que com uma mulher queixosa e iracunda” (Pr 21,19; 21,13; 19,13;

25,24). A visão bonita de mulher que se encontra na moldura do livro dos Provérbios (1-9

e 31) leva-nos a perguntar: de que se queixaria essa mulher? Uma queixa pode conter algo

da reivindicação e luta das mulheres e supõe uma consciência do próprio valor e dignidade.

Podemos concluir que esta ira das mulheres tenha sido uma reação delas à dominação,

levando-as não somente a se indignar, mas a lutar para conquistar novos espaços de atuação

e de reconhecimento. Por isso, considero que os textos de Provérbios que apresentam a

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mulher como “insensata” (9,13-18), “estranha” ou ”estrangeira” (2,16; 5,2-23; 6,24-7,27);

mulher sedutora e perigosa, que conduz para a morte (Pr 5,5; 7,27; 9,18), significa uma

reação dos sábios contra esta conquista de novos espaços de atuação das mulheres.

Outro aspecto que evidenciei foi a íntima relação entre sabedoria e justiça, na

tradição sapiencial de Israel e, especificamente, nos textos de Provérbios analisados nesta

tese. Na introdução do livro dos Provérbios (1,2-3), afirma-se que a sabedoria é

imprescindível para o conhecimento da justiça e do direito. A sabedoria mulher afirma, em

seu discurso, que tem os mesmos dons do messias esperado e que sua missão é promover a

justiça. Já foi indicado que em Pr 8,11-21 há uma referência a Is 11,1-9, onde se apresenta

o messias vindouro cheio do espírito profético para estabelecer a justiça e restabelecer a

harmonia do universo. Este compromisso religioso de estabelecer e praticar a justiça é um

dos aspectos mais importantes da identidade do povo bíblico. Ele mantém viva a memória

da libertação do Egito e da dependência tributária aos reis cananeus. O compromisso

histórico/religioso de estabelecer a justiça e de cuidar da harmonia do universo possibilitou

a aceitação do símbolo da sabedoria mulher com suas múltiplas faces, que retratam a

mulher da vida real, as Deusas cuidadoras da vida e o próprio Javé. Foi o tema da justiça

que possibilitou a formulação de um messianismo feminino em Pr 8,11-21.

Concluindo, posso afirmar que os poemas de Pr 1-9 e 31 transparentam uma grande

mudança cultural, social e religiosa em relação à mulher, no pós-exílio. A partir da casa

interiorana de Judá, a mulher resgata a solidariedade tribal, transmite ensinamentos

importantes para a identidade do povo, administra sua própria casa com autonomia e

competência, expandindo sua atuação ao espaço público. Esta mudança possibilitou uma

nova visão da mulher e estabeleceu relações novas entre as pessoas e com a divindade. A

nova visão provoca uma grande mudança no sistema simbólico de Israel, possibilitando a

representação de seu Deus através do símbolo da sabedoria mulher. Este símbolo origina-se

não somente da nova visão da mulher, mas da memória de antigas Deusas e de mulheres

corajosas e sábias que ajudaram na construção da história do povo bíblico.

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Parece-me importante insistir também que há nos poemas da sabedoria mulher, em

Provérbios, uma indicação da dependência mútua entre os sistemas sociais e os sistemas

cósmicos (Pr 8). Esta relação torna -se visível e até mesmo paupável em nossos dias, com o

crescente empobrecimento dos povos e o esgotamento das forças vitais do planeta terra. Por

isso, como afirma Leonardo Boff, “mais do que nunca, precisamos ter sabedoria. Sabedoria

para captar as transformações imprescindíveis. Sabedoria para definir a direção certa.

Sabedoria para projetar o sonho que nos guiará. Sabedoria, enfim, para priorizar as ações

concertadas que vão traduzir este sonho em realidade”434.

Estou convencida de que estes belos poemas sobre a sabedoria mulher, em

Provérbios, lidos a partir da vida concreta das mulheres do seu tempo e das mulheres de

hoje, com suas lutas e suas conquistas, oferecem contribuições importantes para uma

espiritualidade cristã mais integrada e mais transformadora. O símbolo da sabedoria mulher

oferece elementos para articular uma linguagem sobre Deus mais próxima da vida humana,

fazendo uma ligação entre a transcendência e o feminino e propondo relações novas entre

todas as pessoas.

Transliteração utilizada

a ’ b b

434 Leonardo Boff, O despertar da águia, p.26.

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209

g g d d h h w v z z x h j t y y k k l l m m n n s s [ ‘ p p c z q q r r v x f s t t

Nota: Fiz opção por estes sinais para transliterar o hebraico porque poderão ser reconhecidos por leitores e leitoras do Brasil, meus principais interlocutores.

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