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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO DANIEL ALVES DOS SANTOS O PERDÃO: A ABORDAGEM DE GIRARD E OS BENEFÍCIOS EXISTENCIAIS DE UMA NOVA VISÃO DE PERDOAR SÃO BERNARDO DO CAMPO 2012

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    DANIEL ALVES DOS SANTOS

    O PERDÃO: A ABORDAGEM DE GIRARD E OS BENEFÍCIOS

    EXISTENCIAIS DE UMA NOVA VISÃO DE PERDOAR

    SÃO BERNARDO DO CAMPO

    2012

  • DANIEL ALVES DOS SANTOS

    O PERDÃO: A ABORDAGEM DE GIRARD E OS BENEFÍCIOS

    EXISTENCIAIS DE UMA NOVA VISÃO DE PERDOAR

    Dissertação apresentada em cumprimento

    parcial às exigências do Programa de Pós-

    Graduação em Ciências da Religião, para

    obtenção do grau de Mestre.

    Orientação: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

    SÃO BERNARDO DO CAMPO

    2012

  • FICHA CATALOGRÁFICA

    Daniel Alves dos Santos

    L Alves do Santos, Daniel

    O perdão: a abordagem de René Girard e os benefícios existenciais de

    uma nova visão de perdoar/ Daniel Alves dos Santos. São Bernardo do

    Campo, 2012.

    12333333333fl.

    Bibliografia

    Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo,

    Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação

    em Ciências da Religião.

    Orientação de Rui de Souza Josgrilberg

  • DANIEL ALVES DOS SANTOS

    O PERDÃO: A ABORDAGEM DE GIRARD E OS BENEFÍCIOS

    EXISTENCIAIS DE UMA NOVA VISÃO DE PERDOAR

    Dissertação apresentada em cumprimento

    parcial às exigências do Programa de Pós-

    Graduação em Ciências da Religião, para

    obtenção do grau de Mestre.

    Orientação: Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg

    Data de defesa: 09 de Abril de 2012.

    Resultado:_____________________

    BANCA EXAMINADORA:

    Rui de Souza Josgrilberg Prof. Dr. _______________________

    Universidade Metodista de São Paulo

    Jung Mo Sung Prof. Dr. _______________________

    Universidade Metodista de São Paulo

    James Nicholas Francis Alison Dr. __________________________

    Fellow, Imitatio

  • aos que se deixaram quebrantar pela

    Paixão, não retribuíram com a vingança,

    mesmo que na soma, tenham uma

    sensação de perda

  • AGRADECIMENTOS

    A Jesus Cristo,

    que por sua misericórdia e graça deu-me condições de vencer as

    dificuldades sempre com alegria e disposição.

    Aos meus filhos,

    Lilian, Vivian, Lucas e Jhônatas que são parte da minha felicidade.

    A Carmen,

    minha esposa, pelo amor que nos une a mais de 20 anos.

    Ao Professor James Reaves Ferris por me ensinar a ser mais

    humano.

    Ao Professor Jung Mo Sung

    por ter me apresentado René Girard e a sua teoria mimética.

    Ao meu orientador Professor Rui de Souza Josgrilberg pela sua

    visão abrangente e a coragem de aceitar e me apoiar nesse desafio.

    Aos meus amigos e amigas da Universidade Metodista, casa

    gostosa de morar, onde eu e minhas possibilidades intelectuais se

    encontraram.

  • “Ouviste o que foi dito...Eu porém vos digo...”

    Jesus

  • ALVES DOS SANTOS, Daniel. O perdão: a abordagem de René Girard e os

    benefícios existenciais de uma nova visão de perdoar, 2012. Orientador: Rui de

    Souza Josgrilberg.

    RESUMO

    Em sua teoria mimética do desejo, René Girard apresenta Cristo como modelo

    ideal a ser seguido, uma vez que Jesus demonstrou como é possível resolver

    conflitos sem associá-los à vingança ou à violência. Através de sua vitimização na

    Cruz, Jesus revela toda a verdade de quem somos e quem Deus é, ao manifestar

    sua inocência, Ele reverte para si a acusação daqueles que se mantêm no círculo

    da auto justificação por transferência da culpa. Assim, o Cristo decide, por sua livre

    vontade, perdoar. Isto é, uma nova forma de perdão, que denominamos novum.

    Fundamentado no amor, ele vem de fora e fura o círculo da violência. O novum

    revela uma nova maneira de se relacionar com as pessoas que nos prejudicaram,

    de tentar compreender quem somos através do Outro. Essa nova mimesis valoriza

    a vida, a liberdade, o cuidado com o próximo, a reconciliação mais do que ofertas e

    sacrifícios. Trata-se de uma superação dialética, pois, apesar de nesse processo a

    decisão de perdoar estar de posse do sujeito sendo esta uma “via de mão única”, a

    decisão de reconciliação depende também do ofendido/ofensor, esta outra, “via de

    mão dupla”. Através do novum é possível mudar o sentido do passado, destruir a

    fatalidade e não ter necessidade de continuar como refém da culpa. Esta atitude

    possibilita o sujeito olhar o futuro com esperança. Ao focar a Paixão e a

    Ressurreição, o sujeito descobre quem ele realmente é e poderá decidir seguir o

    modelo Cristocêntrico. Essa decisão leva-o a sair da mimesis violenta e passar a

    elaborar a vontade, para então decidir perdoar àquele que o ofendeu. O sujeito, por

    fim, reconhece o perdão novum como modelo que ao ser imitado e doado é capaz

    de refazer a pessoa de seu doador, bem como àquele que é perdoado.

    Palavras-chave: Girard, perdão, desejo mimético, Cruz, novum.

  • ALVES DOS SANTOS, Daniel. Le pardon: l’abordage de René Girard et les

    avantages existentielles d’une nouvelle vision du pardonner, 2012. Conseiller: Rui

    de Souza Josgrilberg.

    RÉSUMÉ

    Dans sa théorie mimétique du désir, René Girard présente Jésus-Christ comme le

    modèle idéel pour être suit, une fois que Jésus a démontré être possible résoudre

    des conflits sans les associer à la vengeance ou à la violence. Grâce à leur

    victimisation sur la Croix, Jésus révèle toute la vérité à propos de qui nous sommes

    et par rapport à qui est Dieu. En exprimant son innocence, Il revient à lui-même la

    charge de ceux qui se maintiennent dans le cercle de l’autojustification, pour le

    transfert de la culpabilité. Ainsi, le Christ décide, à sa seule discrétion, de

    pardonner. C’est une nouvelle forme de pardon, que nos appelons novum.

    Enraciné dans l’amour, il vient de l’extérieur et perfore le cercle de la violence. Le

    novum révèle une nouvelle manière d’établir une relation avec les personnes qui

    nous ont lésés, en essayant de se comprendre à travers l’autrui. Cette nouvelle

    mimesis donne valeur à la vie, à la liberté, au prendre soin du prochain, à la

    réconciliation plus qu’aux offrandes et aux sacrifices. S’agit d’un dépassement

    dialectique, car tandis que dans ce cas la décision de pardonner est au sujet, et

    dépend de lui-même, la décision de réconciliation dépend aussi de

    l’offensé/offenseur, celle-ci, au contraire de l’antérieure, c’est « deux rue à sens

    unique ».Grâce au novum c’est possible changer le sens du passé, détruire la

    fatalité et ne plus avoir besoin de poursuivre comme otage à la culpabilité. Cette

    attitude-ci donne au sujet la possibilité de regarder l’avenir avec espoir. En mettant

    l’accent sur la Passion et la Résurrection, le sujet découvre qui il est réellement, et

    peut ainsi choisir suivre le modèle Christocentrique. Cette décision lui emmène à

    sortir de la mimesis violente et passer à élaborer la volonté, pour donc décider de

    pardonner ce qui lui a offensé. Le sujet reconnait, enfin, le pardon novum en tant

    que paradigme que, quand il est imité et donné, c’est capable de refaire la

    personne qui lui délivre et aussi celui qui est pardonné.

    Mots-Clés: Girard, pardon, désir mimétique, Croix, novum.

  • ALVES DOS SANTOS, Daniel. The forgiveness: René Girard's approach and

    existential benefits of a new way to forgive, 2012. Adviser: Rui de Souza

    Josgrilberg.

    ABSTRACT

    In his theory of mimetic desire, René Girard presents Christ as an ideal to be

    followed since Jesus has demonstrated how is it possible to solve conflicts without

    associating it to vengeance of violence. Through his victimization on the Cross,

    Jesus reveals the truth about whom we are and who the Lord is. By demonstrating

    his innocence, He reverts to himself the accusation of those keeping themselves on

    the circle of self-justification by transfer of guilt. Thereby, the Christ decides to

    forgive by his own will. This is a new form of forgiveness that is called Novum.The

    Novum reveals a new way to bond with people who have wronged us and to try to

    understand ourselves through the other. This new mimesis values life, freedom,

    and care for the neighbor, the reconciliation more than gifts and sacrifices. This is

    dialectical overcoming because in this process the decision of forgiving belongs to

    the subject and the decision of reconciliation also depends on the one that was

    offended.Through the novum it is possible to change the direction of the past,

    destroy fatality and not to continue being a hostage of guilt. This attitude allows the

    subject to look to the future with hope. Focusing on the Passion and the

    Resurrection the subject finds who he really is and will be able to decide to pursue

    the Christ centric model. This decision takes him off the violent mimesis to start to

    elaborate the will to decide to forgive the one that has offended him. Finally, the

    subject recognizes the novum forgiveness as a model that when is imitated and

    donated is capable of remaking the one forgiving as well as the one that is forgiven.

    Key Words: Girard, forgiveness, mimetic desire, Cross, novum.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ____________________________________________________ 12

    1 EM TORNO DE RENÉ GIRARD. POR QUÊ O PERDÃO? ______________ 18

    1.2 Imitação, Desejo e Rivalidade 21

    1.3 Deus versus Satanás: Arquimodelos 26

    1.4 Os Evangelhos e as Vítimas 32

    1.5 Perdão Novum na Paixão 35

    1.6 Dissipando as Trevas 43

    1.7 Livres de Escândalos 49

    2 INTERPRETAÇÃO GIRARDIANA DA CRUZ ________________________ 56

    2.1 Jesus, o Perdão de Deus 59

    2.2 A Vitória do Amor 62

    2.3 A Paciência da Vítima 64

    2.3.1 Perdão Para Todos 64

    2.3.2 A Nova Estrutura do Perdão 67

    2.3.3 O Amor Cuidador 70

    2.3.4 O Amor na sua Fonte: a Raiz do Perdão 74

    2.3.5 A Maldade Estrutural se Revela diante da Inocência da Vítima 77

    2.3.6 A Consumação e o Novo Gênesis 78

    2.3.7 De volta a Deus: a Integridade do Amor Restabelecida 82

    2.3.8 O Milagre da Ressurreição: a Vida diante do Novum 87

    2.3.9 O Novum não faz Acepção de Pessoas 90

    3 OS BENEFÍCIOS EXISTENCIAIS DO PERDÃO NOVUM ______________ 94

    3.1 Mimesis velha e Mimesis nova: Superação Dialética 94

    3.2 O Novum na Valorização da Vida 98

    3.3 Perdoados para Perdoar 102

    3.4 Culpa e Responsabilidade Pessoal 106

    3.5 Culpa e Perdão 109

    3.6 Lembrança, Novum e Esperança 112

    3.7 A Procura de Paz 116

    3.7.1 Perdão e Reconciliação 119

    3.8 O Novum e a Esperança 122

    3.9 O Novum como Produção Salugênica 127

    3.9.1 O Espírito Santo, o Novum e a Oração 130

    4 CONCLUSÃO ___________________________________________________ 134

    REFERÊNCIAS ___________________________________________________ 139

  • 12

    INTRODUÇÃO

    Nesta pesquisa temos como objetivo entender quais as contribuições da

    antropologia de René Girard para os benefícios existenciais de uma nova forma de

    perdoar. Esta, uma possibilidade inaugurada pela vítima, Jesus, que mesmo sendo

    a própria encarnação de Deus e de sua palavra, ao invés de requerer vingança

    pelos atos maldosos de suas criaturas, incluindo sua morte, disponibiliza na

    Paixão, um perdão novum, capaz de recriar uma nova maneira de lidar com as

    ofensas recebidas.

    O presente trabalho se limita à temática ao perdão novum como um método

    de ler Girard em uma visão específica, mas que também traz consigo uma visão

    teológica geral. Apesar de a categoria do Novum não ser especificamente

    girardiana, ela descreve bem os conceitos da obra deste autor. Como ponto de

    partida, tomamos a teoria do desejo mimético na qual René Girard propõe uma

    leitura antropológica da Bíblia como paradigma de superação do desejo social que

    mata.

    O modelo girardiano apresenta Cristo, sua maneira de agir e pensar como a

    imagem do Deus invisível. É esta apresentação possibilita o ser humano, fadado a

    imitar o modelo que instiga violência, escolher, quer pela revelação da fé ou da

    ciência, imitar ao Cristo; que demonstrou como é possível imitar a Deus. Não

    obstante a violência ainda permanecer visivelmente na sociedade com seus bodes

    expiatórios, na Paixão, Jesus deixa cair toda condenação sobre si criando uma

    nova forma de pensar a vítima. Esta que era culpada das intempéries, das pestes e

    de todo o tipo de males que solapava a comunidade e, por isso, deveria ser morta

    para que a paz retornasse - é revelada na Paixão, não como culpada, mas -

    inocente. Enquanto outras vítimas não tinham nenhuma capacidade de reação,

    Cristo1, sendo a própria encarnação de Deus, se entregou como cordeiro que é

    1 No Getsêmane, quando os soldados do templo chegaram para prender Jesus, Pedro, feriu a

    espada o servo do sumo sacerdote. Mateus registra no capítulo 26.52,53: “Então Jesus disse-lhe: Mete no seu lugar a sua espada; porque todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão.Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?”

  • 13

    levado ao matadouro2 sem nada reclamar a seu favor; e, Deus que poderia intervir

    para vingá-lo, não o faz. Em outras palavras: Deus não cobra dívidas, não

    concorda com o sistema do bode expiatório e, em sua essência, é amor.

    Há muitos estudos que tratam do problema da imitação (mimesis) ao longo

    da história do ocidente. Esta idéia prossegue até o Romantismo apenas sofrendo

    algumas variações nos sistemas filosóficos. Antes do advento da modernidade

    nenhum filósofo pensaria em um sujeito que pudesse ser radicalmente autônomo,

    que pudesse se desenvolver a partir de sua própria individualidade com idéias e

    desejos únicos. É Descartes quem propõe um sujeito capaz de pensar por si só e

    tomar suas próprias decisões sem a interferência do outro. A novidade em René

    Girard está na sua percepção da existência de uma espécie de imitação social,

    desconsiderada pela teoria platônica que conseguiu sobreviver mesmo após as

    idéias de Descartes.

    Para Girard, poetas e romancistas chegaram a essa mesma possibilidade em

    suas obras, porém sua reivindicação de superação antropológica está no campo

    científico. Para ele o ser humano não imita apenas comportamentos e noções das

    pessoas em sua volta, mas também imita os desejos de seus modelos3, que vão

    além de suas necessidades básicas.

    Uma vez que suas necessidades primordiais tenham sido satisfeitas, o homem deseja intensamente, mas não sabe exatamente o quê, pois é o ser que ele deseja, um ser de que se sente privado e que todos os outros parecem possuir.4

    Preenchida suas necessidades biológicas, surge nele uma falta de ser

    ontológica deficiente de um objeto específico, isto é, o desejo. Esse objeto não é

    2 Isaias que profetizou aproximadamente setecentos antes do nascimento de Jesus, diz no

    capítulo 53.7 – “Ele foi ferido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca. 3 GIRARD, René. Mentira romântica e verdade romanesca. São Paulo: éRealizações, 2009. Trata-

    se de uma análise das obras de Cervantes, Stendhal, Dostoiévski e Proust mostrando que a história do romance ocidental é também a história do desvelamento do desejo mimético. 4 GIRARD, René. A violência e o sagrado, p.179.

  • 14

    premeditado no indivíduo por não ter sua origem na individualidade, o que o separa

    do instinto. Para Girard:

    O sujeito espera que este outro diga-lhe o que é necessário desejar para adquirir este ser. Se o modelo, aparentemente já dotado de um ser superior, deseja algo, só pode tratar de um objeto capaz de conferir uma plenitude de ser ainda mais total. Não é através das palavras, mas de seu próprio desejo que o modelo designa ao sujeito o objeto sumamente desejável. Retornamos uma idéia antiga, cujas implicações, no entanto, talvez sejam mal conhecidas: o desejo é essencialmente mimético, ele imita exatamente um desejo modelo; ele elege o mesmo objeto que este modelo.5

    Por esse caminho, Girard relê a formação da cultura e como o ser humano

    conseguiu desenvolver um método para mitigar a violência, possibilitando que o

    todos-contra-todos, que poderia dizimar toda a comunidade, fosse substituído pelo

    todos-contra-um capaz de trazer a paz. Prosseguindo, Girard se depara com a

    singularidade da Bíblia e dos Evangelhos que apresentam uma visão diferente não

    só desta maneira obscura de alcançar a paz, mas uma elucidação de todos os

    mitos.

    O mito e a história bíblica opõem-se na questão decisiva colocada pela violência coletiva, a do seu fundamento, da sua legitimidade. No mito, as expulsões do herói são sempre justificadas. No relato bíblico, isso nunca acontece. A violência coletiva é injustificável. No mito a vítima está sempre errada e seus perseguidores têm sempre razão. Na Bíblia dá-se o caso inverso.6

    É na demonstração do arquimodelo Deus e a real oportunidade de poder

    imitá-lo que Jesus, se doa para ser vitimado. Por conseguinte, demonstra o engano

    de todos os mitos e também dos desejos humanos contaminados pela violência

    mimética. Além da Paixão de Cristo desocultar as forças espirituais que

    obscureciam o desejo humano, crava na própria Cruz toda condenação que caia

    sobre a humanidade por obter a paz pela morte de vítimas inocentes; além de

    fundamentar uma nova forma de perdoar. Esses benefícios possibilitam o

    5 Ibid., p.180.

    6 GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 141.

  • 15

    psiquismo superar a injustiça sofrida e eleva o sujeito a um viver mais saudável,

    não sendo necessário recorrer à vingança.

    Seguindo os pensamentos acima expostos, dividimos nossa pesquisa em

    três capítulos. No primeiro capítulo apresentaremos a teoria mimética de René

    Girard, tendo como foco sua antropologia. Revendo seus escritos e buscando

    neles os argumentos que dialogam com a Paixão de Cristo e a “mimesis nova” a

    qual não exige vingança. Propomos definir o novum da Paixão e a sua força de

    destruir a dívida, marcando a evolução que o Antigo Testamento passa a ter nos

    Evangelhos, indo além do mecanismo vitimário. Demonstraremos que Jesus não

    vive a Cruz no círculo mimético da violência, muito pelo contrário, ele rompe o

    círculo estabelecendo uma nova mimese que exige, para absorvê-la, estar livre

    do skândalon7. Para compreender o funcionamento dessa nova estrutura,

    pensamos o novum recorrendo aos Evangelhos e comparando-o com os mitos,

    por exemplo, o de Édipo. Sobre essa primeira parte, importa também,

    entendermos o Evangelho na etimologia da palavra, a saber: notícia alvissareira,

    boas novas para todos os homens em todos os lugares, independentemente de

    suas religiões.

    No segundo capítulo o desafio será discorrermos sobre a interpretação

    girardiana da Cruz, partindo da definição desta como meio ideal que possibilitou

    uma dessacralização dos sacrifícios. Nela, Jesus é a síntese do perdão de Deus

    porque absorve a violência como produto da cultura. Isto porque ele se

    apresenta como Deus sem qualquer necessidade de intermediários sacrificiais.

    Essa homogeneidade demonstra a capacidade amorosa do Pai pelo filho e

    também por toda a humanidade. A vitória da Cruz é a vitória do amor! Isto pode

    ser percebido no que foi feito por Jesus ao resumir todos os mandamentos em

    apenas dois, que ao serem cumpridos, cumpre-se também a Lei e os profetas.

    7 Para o Pe. Fernando Bastos de Ávila em sua Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo, p. 233.

    O skândalon tem o significado de tropeço ou pedra que se tropeça. É um ato externo que é ou aparece como mal, capaz de exercer uma influência moralmente prejudicial sobre o comportamento alheio. Sua medida de gravidade está na força indutora e não na gravidade da falta cometida. Por isso gravidade do escândalo é relativa à situação atual do imitante, às circunstâncias de tempo e de lugar. Muitos atos que em um determinado tempo e lugar podem induzir ao mal, em outros circunstâncias não têm a mesma força indutora. Coisas que não escandalizam a adultos, podem constituir uma violência moral à menores. A violência da inocência é, evidentemente, a forma mais brutal e repugnante do escândalo.

  • 16

    Em ambos os mandamentos o amor está presente, o que nos permite dizer que

    o amor a Deus deve ser demonstrado pelo amor ao próximo.

    A paciência vivenciada e transmitida por Cristo em suas palavras enquanto

    crucificado demonstram amor, cuidado, esperança para todos. Na cruz, Cristo

    cria o “fundamento de um perdão novum” dando-lhe sustentação pela sua

    ressurreição. O que era sustentado pela vingança é agora fundamentado no

    amor, na gratuidade, na reconciliação. A graça da Cruz é absorvida

    possibilitando um aprendizado capaz de modificar totalmente o desejo. Orgulho

    e avidez dão lugar à outra face; àquela da não violência, capaz de devolver ao

    próximo o que deseja para si, sem tirar o foco da Cruz.

    No terceiro e último capítulo procuraremos identificar quais os benefícios

    existenciais do perdão novum comparando a (1) mimesis velha e a (2) “nova

    mimesis”. Enquanto a primeira é estruturada no humano onde tudo se esgota e

    possui validade, a outra, em sua essência, é divina. No novum se prioriza a vida

    e a liberdade. Tem como práxis a misericórdia, produzindo um perdão em

    profundidade de coração o qual se une com o desejo divino. Para usufruir da

    eficácia do novum é necessário seguir o modelo Cristocêntrico como Modus

    vivendi.

    Abordaremos o ganho psíquico quando decidimos perdoar. Quando esta

    decisão é tomada seguindo a “nova mimesis”, o passado “sofre” uma mudança

    de sentido projetando o sujeito para um viver mais saudável, refazendo-o como

    pessoa. Veremos a relação que existe entre o perdão, as fraquezas humanas e

    a tentativa de sermos perfeitos. E, ainda, o perdão, o Espírito Santo e a abertura

    para uma vida com esperança.

    Considerando que a violência tem tomado rumos que parecem difíceis de

    controlar e que a justiça pouco pode fazer quanto à restituição da “dignidade” da

    vítima, é preciso buscar outras fontes de conhecimento, nas quais os seres

    humanos possam encontrar alívio para sua dor e ter esperança de um futuro

    menos doentio. A vítima está presente em todas as sociedades, uma vítima que

    não consegue rever plenamente os seus direitos, principalmente quando esses

    se referem à perda irreparável, como a morte de um parente que foi vítima da

    violência. Neste caso, mesmo que a “justiça” seja alcançada, pouco se pode

  • 17

    fazer pelo desejo de vingança que aflora naquele que perdeu um membro de

    sua família.

    É importante ressaltar que a teoria mimética de René Girard tem sido

    retomada como estudo no Brasil. Com intuito de divulgá-la, a editora

    éRealizações patrocinou em Setembro de 2011, o Congresso Internacional

    René Girard. Esse evento foi realizado para comemorar os 50 anos do

    lançamento de “Mentira romântica e verdade romanesca”. Depois de passar

    pelos Estados Unidos e Europa, o Congresso chegou ao Brasil trazendo consigo

    os principais autores8 com produções sobre o pensamento girardiano. Na

    ocasião foi possível constatarmos a influência da teoria mimética em vários

    campos, como por exemplo, na teoria quântica, na fenomenologia, nos governos

    (as armas atômicas como garantidoras da paz), nas ciências sociais e nas

    ciências humanas. Foi nesse evento que João Cezar de Castro Rocha em

    convênio com a éRealizações apresentou o Projeto da Biblioteca de René

    Girard, o qual visa promover, divulgar a obra e contribuir com a leitura do autor

    francês na América Latina. O projeto está editando 60 livros, englobando as

    obras de René Girard e a dos principais estudiosos de sua teoria mimética.

    Por fim, este trabalho pretende contribuir no campo das Ciências da

    Religião, bem como na Psicologia na medida em que visa estudar a relação

    entre o desejo mimético, a violência fundadora e os benefícios existenciais do

    perdão. Traz para a reflexão como o ser humano é sujeito desejante e necessita

    de modelos para fundamentar o seu desejo numa triangulação que perpassa o

    pensamento linear reinante.

    8 Entre os expositores da teoria mimética, estiveram presentes no Congresso Internacional René

    Girard no Brasil: James Alison, Jean-Pierre Dupuy, Benoît Chantrer, Daniel Lance, Cesáreo Bandera, Pablo Bandera, Carlos Mendoza-Álvarez, Michael Kirwan, Stéphane Vinolo, Robert Hamerton-Kelly, Mario Roberto Solarte.

  • 18

    1 EM TORNO DE RENÉ GIRARD. POR QUÊ O PERDÃO?

    “Se uma pessoa não tem uma religião verdadeira terá uma religião mais terrível...”9

    Nosso objetivo neste capítulo é analisarmos as bases antropológicas da

    teoria mimética de René Girard a qual engloba uma releitura da Bíblia,

    principalmente dos Evangelhos. O intuito é entendermos que através da Paixão

    de Cristo o que sustentava o sistema violento, aparentemente necessário para

    se manter a paz, mostra a sua real finalidade. A Cruz dissipa as trevas, revela o

    que estava oculto por trás desse sistema sangrento e devolve ao ser humano a

    capacidade de imitar o Cristo. Cristo se move não pela vingança, mas pela

    misericórdia, onde o amor e o perdão são as bases dessa nova maneira de se

    resolver conflitos.

    1.1 A Violência Apaziguadora

    O todos-contra-um mimético ou mecanismo vitimário tem,

    portanto, a espantosa, a espetacular, mas logicamente explicável

    propriedade de restituir a calma ao seio da comunidade, de tal

    modo perturbada um instante antes que nada parecia capaz de

    apaziguar.10

    9 GIRARD, René. Anorexia e desejo mimético, p. 67.

    10 René Girard é antropólogo, pensador e crítico literário francês, nasceu em Avignon, no dia 25 de

    dezembro de 1923. Seu pai trabalhava como curador do Museu da Cidade e do famoso “Castelo dos Papas”. Girard estudou no Liceu local e recebeu seu baccalauréat em 1940. De 1943 a 1947 estudou na École des Chartes, em Paris, especializando-se em História Medieval e Paleografia. A experiência da França ocupada foi muito importante para sua posterior visão do mundo. Em 1947 deixou a França, começando um doutorado em História na Universidade de Indiana, Bloomington. Durante o curso, ensinou Literatura Francesa na mesma universidade. Concluiu o doutorado em 1950 com a tese American Opinion on France, 1940-1943. Girard fixou residência nos Estados Unidos, tornando-se professor nas mais importantes universidades norte-americanas: Indiana; Johns Hopkins; Universidade do Estado de Nova York, em Buffalo; e Stanford.

  • 19

    A comunidade com o objetivo de preservar-se inventou um método que

    pudesse substituir o todos-contra-todos pelo todos-contra-um, possibilitando o

    aparecimento do que Girard chama de vítima expiatória ou bode expiatório.

    É sem dúvida por esta razão que qualquer existência social seria impossível onde não houvesse vítima expiatória, e se, para além de um certo paroxismo, a violência não se resolvesse em ordem cultural. O círculo vicioso da violência recíproca, totalmente destrutiva, é então substituído pelo círculo vicioso da violência ritual, criativa e protetora.11

    É justamente ao descobrir e aplicar o método da vítima expiatória que

    nasce a cultura. A cultura se estabelece em métodos de diferenciação. É a

    diferenciação que racionaliza a sociedade. Pela diferenciação é possível chegar

    aos responsáveis pelos atos e puní-los. Na indiferenciação ocorre o contrário, os

    responsáveis não são identificados correndo o risco de haver violência

    generalizada e a autodestruição da sociedade. Desse modo surge o “bode

    expiatório” como solução pacificadora para as crises. O bode expiatório não vem

    para acabar com a estrutura do desejo mimético12 porque esse desejo é

    universal e imutável. O bode expiatório surge para regulamentar, para

    racionalizar a violência. A violência coletiva é canalizada para uma vítima. “O

    círculo vicioso da violência recíproca, totalmente destrutiva, é então substituído

    pelo círculo vicioso da violência ritual, criativa e protetora”13. Do ameaçador “um-

    contra-o-outro” ou todos-contra-todos” passa ao pacificador “todos-contra-um”.

    11

    GIRARD, René. A violência e o sagrado, p.179. 12

    Na mimesis podem ser percebidos três rumos ou leis: 1) Podem ser lógicas ou alógicas. São lógicas quando o imitante copia conscientemente o modelo (p. exemplo, o esforço para aprender o que pode enriquecer a personalidade pela incorporação de valores); são alógicas, quando o imitante não se apercebe de que está copiando atos e atitudes de outras pessoas, perdendo assim as características de sua própria personalidade, por exemplo, assumir características da voz de outrem (cantores), sem explorar sua própria voz; 2) A mimesis se processa de dentro para fora. Primeiro as idéias são aceitas, depois as atitudes e comportamentos correspondentes as mesmas, por exemplo, as idéias de um movimento religioso primeiro as crenças, depois os ritos; muitas vezes as crenças se perdem e continuam a praticar os ritos; 3) A mimesis é inspirada de cima para baixo, isto é, as classes economicamente mais fortes são imitadas pelas classes mais modestas. Saber imitar e imitar para melhorar é, sem dúvida, forma inteligente de realização da própria personalidade, com repercussão de alto valor na vida comunitária, escreve o Frei Fernando Bastos de Ávila, Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo, p. 231. 13

    Ibid., p. 179.

  • 20

    Para Girard essa estrutura está presente em todos os mitos e relatos

    literários: Édipo, Caim, a Paixão. Os mitos manifestam as mesmas estruturas:

    crise mimética, homicídio fundador, (re)constituição dos sistemas de

    diferenciação. Eles narram à história do ponto de vista dos perseguidores e não

    das vítimas. Todos esses escritos, mitos e relatos históricos mostram o ponto

    culminante da crise mimética dentro da comunidade onde a solução encontrada

    foi o linchamento coletivo ou o bode expiatório. Dessa forma, passa-se da

    indiferenciação para diferenciação, racionalizando a violência para que ela não

    se generalizasse. Assim a violência sacrificial e os mitos que a relatam não são

    violência em si, mas estão sempre orientados para a paz. O sacrifício tem a

    função apaziguadora. Para ser bem sucedido, o sacrifício precisa de uma vítima

    que não possa reagir, deve ser incapaz de requerer vingança, por isso, os

    sacrificados são animais, crianças, escravos, enfim, pessoas à margem da

    sociedade. Girard diz que:

    Convém perguntar se o sacrifício ritual não se baseia em uma substituição do mesmo tipo, embora em sentido inverso. Podemos pensar, por exemplo, que a imolação de vítimas animais desvia a violência de certos seres que se tenta proteger, canalizando-as para outros, cuja morte pouco ou nada importa.14

    Assim a violência acumulada na sociedade é transferida para o ódio

    homicida contra a vítima. Os agressores identificam na vítima a real causadora

    do mal que sobreveio à comunidade. Por causa da vítima sacrificada, a

    comunidade usufrui da paz proporcionando a sobrevivência da vítima na mente

    dos seus vitimadores. Por causa dessa paz advinda pelo sacrifício, a sociedade

    transfere para a vítima sacrificada, um aspecto de transcendência.

    O sacrifício tem aqui uma função real, e o problema da substituição coloca-se no nível de toda comunidade. A vítima não substitui tal e qual indivíduo particularmente ameaçado e não é oferecida a tal e tal indivíduo sanguinário. Ela simultaneamente substitui e é oferecida a todos os membros da comunidade, por todos os membros da comunidade. É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a comunidade inteira que se encontra assim

    14

    Ibid., p.13.

  • 21

    direcionada para vítimas exteriores. O sacrifício polariza sobre as vítimas os germes de desavença espalhados por toda a parte, dissipando-os ao propor-lhes uma saciação parcial.15

    A violência sacrificial foi à solução encontrada pela comunidade para trazer

    a paz de volta ou não deixá-la se esvair por completo. Pelo rito o homem

    descobriu uma forma de incluir toda a comunidade nos benefícios do sacrifício

    possibilitando uma reconciliação paradoxal possível. Se por um lado os homens

    que desejam a mesma coisa nunca se entendem, por outro lado, os que odeiam

    em conjunto o mesmo adversário, se entendem muito bem. Assim, na

    participação de todos na canalização do ódio para uma única vítima, acontece

    como que uma catarse proporcionando paz para todos. Dessa forma, “A

    violência unificadora não é somente a origem do religioso, é a origem da própria

    humanidade”16.

    1.2 Imitação17, Desejo e Rivalidade

    René Girard (1999) formula um sistema antropológico para explicar a

    origem da cultura e a estrutura da violência nas sociedades. Para ele os

    fenômenos sociais estão entrelaçados com o sagrado e este com a violência.

    Diante da possibilidade de violência generalizada, a comunidade lança mão do

    15

    Ibid., p. 19. 16

    GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo, p.121. 17

    A idéia de mimesis em Girard aparece como mimesis de repetição, mas na literatura é possível encontrar vários tipos de imitação, por exemplo, na arte, na música, no teatro, na pintura. Citamos aqui três textos onde é trabalhado a mimese na arte. O primeiro: PLATÃO. Imitação, cópia e simulacro. In: LICHTENSTEIN, Jaqueline. A pintura. Textos essências, v.5. Da imitação a expressão. São Paulo: Editora 34, 2008, p.17-22. A autora comenta que na República, Platão (428-348 a. C.) ataca violentamente a pintura, como também o poeta dramático. Para ele a pintura está afastada em três graus, uma vez que o pintor imita um objeto que já é por sua vez uma imitação, uma imagem uma idéia. Cita o célebre exemplo das três camas. A Idéia da cama, a cama fabricada pelo artesão que contempla a idéia, e a cama do pintor que imita o artesão. Acrescenta ainda a mimese pictórica que não é uma cópia fiel, mas um simulacro enganador onde o pintor é forçado a se afastar das proporções reais para produzir uma imagem que pareça verdadeira, isto é, que dê ao espectador a ilusão de ver a própria coisa. Outro texto: ARISTÓTELES. Poética. Edição do texto grego in: Aristote Poétique. Paris: Belles Lettres, 8. Ed., 1979. Nesse texto, Aristóteles (384-322 a.C.), não obstante suspender a condenação platônica da pintura não renúncia as exigências da Idéia, do saber e da verdade. Na Poética, capítulo IV, Aristóteles define imitação como uma tendência natural, como um instrumento de conhecimento e meio de prazer. Assim, salva a mimese artística de todas as acusações que Platão havia feito contra ela. O imitar é congênito do homem e os homens se comprazem no imitado. Uma terceira fonte são as notas e os comentários que acompanham a nova tradução da Poética, de Aristóteles, por R. Dupont-Roc e J. Lallot, nas edições Seuil, Paris, 1980. Por último citamos Quatremère de Quincy. De l’imitation, Bruxelas, Archives d’Architecture Moderne, 1980, I, II, e XIV.

  • 22

    sagrado como ferramenta reguladora. Nesse processo, Girard identifica a

    fundação da cultura onde a violência é parte fundamental do sagrado e esta

    violência é sempre sacralizada. A primeira solução diante da crise é o sacrifício

    vitimizador. Esse canaliza para uma única vítima o ódio de todos. Assim, vítima

    fundadora ou bode expiatório separa a comunidade: de um lado a comunidade,

    do outro lado, a vítima.

    Após descobrir e praticar esse mecanismo como apaziguador de crises, a

    sociedade desenvolveu meios para ritualizar com freqüência os sacrifícios,

    dando à vítima, que trouxe à paz, um caráter transcendental, possibilitando

    assim, o início do sagrado. Isso funcionou e ainda funciona devido o ser humano

    ser um animal mimético. Após ter suas necessidades biológicas satisfeitas,

    surge nele uma falta de ser, que não pode ser preenchida por um objeto

    específico, nem pode ser predeterminado pelo sujeito. Então, para suprimir essa

    falta de ser, o sujeito passa a desejar o que o outro deseja.

    Uma vez que suas necessidades primordiais tenham sido satisfeitas, e às vezes mesmo antes disso, o homem deseja intensamente, mas não sabe exatamente o que, pois é o ser que ele deseja um ser de que se sente privado e que todos os outros parecem possuir.18

    Esse desejo não tem origem na individualidade. É essencialmente volúvel e

    seus objetos decorrem da imitação. O sujeito espera que o outro lhe diga o que

    deve ser desejado a fim de adquirir esse ser que lhe falta. Para Girard, “O

    desejo é essencialmente mimético, ele se calca sobre um desejo modelo; ele

    elege o mesmo objeto que esse modelo”19. Assim como um brinquedo que está

    num canto desprezado se torna desejável por uma criança quando outra o usa

    para brincar.

    O desejo adulto não difere de nada dele, salvo que o adulto, em particular em nosso contexto cultural, normalmente tem vergonha de se modelar sobre o outro; ele tem medo de revelar sua falta de ser. Declara-se altamente satisfeito consigo mesmo;

    18

    GIRARD, René. A violência e o sagrado, pp. 204-5. 19

    Ibid., p. 205.

  • 23

    apresenta-se como modelo para os outros; cada um vai repetindo: “Imitai-me”, a fim de dissimular sua própria imitação20.

    Sendo o desejo mimético, o sujeito deseja o ser de outro sujeito e não o

    objeto em si. Sujeito A deseja objeto X porque sujeito B deseja objeto X. Esta

    dinâmica Girard denomina como mimesis de apropriação, ou seja, o desejo de

    se apropriar do objeto do modelo. O desejo mimético, na maioria das vezes é

    inconsciente, mas não se pode confundir com o desejo da psicanálise, pois se

    trata de algo real, de objeto concreto que gera crise quando sujeito e modelo se

    aproximam.

    Em decorrência da proximidade física entre sujeito e modelo, a mediação interna tende a tornar-se mais simétrica; pois, à proporção que o imitador deseja o mesmo objeto desejado pelo seu modelo, este tende a imitá-lo, a tomá-lo como modelo. Assim, o imitador torna-se, ao mesmo tempo, modelo de seu modelo; imitador de seu imitador.21

    Esta relação de proximidade entre os sujeitos estabelece a rivalidade

    mimética que é a imitação do desejo do outro. “Não é através de palavras, mas

    de seu próprio desejo que o modelo deseja ao sujeito o objeto sumamente

    desejável”22. A partir de então instala-se a crise mimética devido a confusão de

    papéis e não existindo mais objeto a rivalidade não terminará. Objeto, desejo e

    sujeito tornam-se um único elemento. Essa indiferenciação é a gênese da

    violência: a estrutura do desejo é a estrutura da violência.

    Mas há de se perguntar: donde vem esta estrutura da violência? Sabemos

    por Girard que ela é a formadora e mantenedora das sociedades.

    A primeira cultura humana vê suas raízes num primeiro assassinato coletivo, análogo à crucificação. (...) o que se produz desde a fundação do mundo, quer dizer desde a fundação violenta da primeira cultura humana, são assassínios sempre análogos à crucificação, fundados no mimetismo, assassínios fundadores por conseqüência, por causa do equívoco a respeito

    20

    GIRARD, René. Loc. cit. 21

    GIRARD, René. Um longo argumento do princípio ao fim, p.87. 22

    GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 180.

  • 24

    da vítima, causado pelo mimetismo. Mateus e Lucas sugerem que o assassino tem um caráter fundador, que o primeiro assassínio e fundação da primeira cultura são a mesma coisa.23

    Mas o que isso tem a ver conosco? O texto no Evangelho de João capítulo

    8, versículo 44 esclarece: “Vós tende por pai o diabo, quereis satisfazer os

    desejos de vosso pai: ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na

    verdade, porque não há verdade nele; quando ele profere mentira, fala do que

    lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira”. Para Jesus, existe uma

    ligação de todo o ser humano com a violência. No mesmo capítulo, versículo 33

    lê-se: “Responderam-lhe: somos descendência de Abraão, e nunca servimos a

    ninguém; como dizes tu: Sereis livres?”. Não obstante se declararem como

    livres, as suas obras não condiziam com as suas palavras. Analisando esta

    passagem bíblica, o girardiano James Alison (2010), escreve: “a palavra

    descendentes – literalmente “semente” – vem da palavra grega esperma”24. Isto

    está correto em relação a sua genealogia.

    Até agora eles estão colocando algo que ninguém poderia colocar em dúvida, que são todos descendentes de Abraão, que partiu em suas andanças principalmente para ir além da ordem cosmológica e se livrar dos ídolos. Ele foi, de fato, o iniciador do programa anti-idolatria que está sendo discutido.25

    O que está em destaque é a liberdade e não existe liberdade quando

    estamos vinculados a algum tipo de idolatria. Os interlocutores de Jesus

    “alegaram que, pela graça de serem da semente de Abraão, estavam livres da

    idolatria e, portanto, livres”26. Mas Jesus mostra a diferença; “que ser um

    descendente de Abraão não é o mesmo que ser um filho do Deus de Abraão. A

    diferença se torna evidente pelo fato de eles estarem preparados para matar

    23

    GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p.113. 23

    GIRARD, René. Loc. cit. 24

    ALISON, James. Fé além do ressentimento, p. 103. 25

    ALISON, James. Loc. cit. 26

    Ibid., p. 104.

  • 25

    Jesus”27. Ao ser chamado para fora de sua pátria e de sua descendência28,

    Abrão, que vai passar a ser chamado de Abraão, reponde por uma fraternidade

    aberta que “está livre da idolatria do “olho por olho”, e só ela pode tornar visível

    a subversão, desde do interior, dissolvendo a idolatria do “olho por olho”29. E o

    que se entende por idolatria? “Por idolatria entende-se um pertencimento que

    exige sacrifícios”30. Jesus mostra para os religiosos que o Deus de Abraão é um

    Deus contrário a violência e que a vingança/morte não faz parte de seu Ser.

    Para se dizer filho de Abraão é necessário não ser idólatra, procedendo assim

    se faz filho de Deus e essa possibilidade fica clara quando qualquer ser

    humano, em qualquer nação, imita o Cristo.

    Um exemplo que mostra que os filhos de Abraão imitam as obras de

    Abraão pode ser visto no encontro de Jacó e Esaú. Jacó, depois de vinte anos

    longe de sua casa paterna de onde saiu fugido e jurado de morte pelo seu irmão

    Esaú, resolveu voltar. Sabendo que seu irmão vinha ao seu encontro com

    grande número de homens31, dividiu sua família em três grupos com a intenção

    de salvar pelo menos um. Porém, antes desse possível desastroso encontro

    familiar, Jacó teve um encontro, face a face, com o Deus de Abrãao.

    Jacó se vê lutando com Deus, Misteriosamente, Deus se manifesta em forma claramente humana, no mesmo nível (Gn 32. 22-30), de Jacó. É nessa luta que Jacó “prevalece diante de Deus”, percebendo que viu Deus face a face. Depois da misteriosa luta, ele foi capaz de reconhecer seus malfeitos32 e pôde olhar o seu irmão Esaú de frente – face a face. Portanto,

    27

    Ibid., p. 105. 28

    BÍBLIA SAGRADA. Genesis capítulo 12, versículo 1, 2 e 3 diz: “Ora, o Senhor disse a Abrão: Saí-te da tua terra, e da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome e tu serás uma benção. E abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra”. 29

    ALISON, James. Op. cit., p. 119. 30

    Ibid., p. 122. 31

    Para se entender todo o contexto faz-se necessário ler toda a história que circula esse episódio no livro do Genesis capítulo 25 até o capítulo 33. 32

    Outro relato fundamental para entendermos a luta de Jacó com Deus e que fica claro o seu arrependimento está no livro de Oséias capítulo 12, versículo 1 ao 5, mas o versículo 4 é fundamental pois diz que ele “chorou e lhe suplicou”.

  • 26

    ele foi capaz de viver em paz com o seu irmão – transformando-se em Israel, uma comunidade de irmãos.33

    Ver Deus face a face nada mais é que ver Cristo face a face, é conhecê-lo.

    Esse conhecimento nos mostra que pelo aprendizado da fraternidade podemos

    resolver os conflitos em nosso tempo presente. A presença de Cristo é,

    indubitavelmente, a presença de Deus e isso é fato quando Deus fala de seu

    filho, concorda Alison (2010), “Os únicos pontos, nos Evangelhos, em que a voz

    paternal de Deus aparece de forma independente da de Jesus são precisamente

    aqueles em que ela nos indica que é a Jesus que devemos ouvir e que nele

    Deus é glorificado”34.

    Logo, para Girard, é impossível sairmos da mimesis da violência se não

    passarmos pela Cruz. Ou reconhecemos a nossa índole violenta e idólatra que é

    levada a requerer sacrifícios e assim, de forma religiosa ou não, seguimos o

    modelo apresentado por Cristo ou continuaremos envolvidos na mimesis

    violenta reforçada pelo capitalismo que intensifica os meios para se levar

    vantagem em tudo.

    1.3 Deus versus Satanás: Arquimodelos

    Girard entende que a melhor maneira de prevenir o ser humano da

    violência contra seu próximo não esta na proibição dos objetos e nem mesmo

    em fornecer aos homens regras que os proíbam de desejar35, mas fornecer um

    modelo que possibilite que os homens se protejam das rivalidades miméticas. É

    para esses seres, envolvidos em um universo dominado pelo mimetismo, o qual

    33

    ALISON, James. Fé além do ressentimento, p. 124. 34

    Ibid., p.130. 35

    GIRARD se refere ao décimo mandamento registrado no livro de Êxodo 20.17: “Não cobiçarás a casa de seu próximo, não cobiçarás a mulher de teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma de seu próximo”. Há outra referência aos Dez Mandamentos no livro de Deuteronômio capítulo 5. Enquanto em Êxodo o texto se refere a não cobiçarás, em Deuteronômio aplica-se o verbo “cobiçar” a mulher do próximo e as demais coisas como: a casa, o campo, o servo, a serva, o boi, o jumento ou outra coisa usa-se o verbo “desejar”.

  • 27

    se funda no egoísmo, no orgulho e está vinculado a existência humana que

    Jesus apresenta um modelo a ser imitado, capaz de libertá-los.

    Sem desejo mimético não haveria liberdade nem humanidade. O desejo mimético é intrinsecamente bom. (...). O próprio do desejo é não ser próprio. Para desejarmos verdadeiramente, temos de recorrer aos homens que estão a nossa volta, temos que lhes imitar os desejos.36

    Para exemplificar o mimetismo do desejo, René Girard busca na própria

    sociedade uma explicação.

    Se o desejo não fosse mimético, as crianças não escolheriam forçosamente, para modelos os seres humanos que as rodeiam, a humanidade não teria linguagem, nem cultura. Se o desejo não fosse mimético, não seríamos abertos nem ao humano nem ao divino. É necessariamente, deste último domínio que a nossa incerteza é maior e a nossa necessidade de modelo mais intensa. O desejo mimético faz nos escapar à animalidade. É, em nós, responsável pelo melhor e pelo pior. Pelo o que nos faz descer abaixo do animal, assim como o pelo que nos eleva acima dele. As nossas intermináveis discórdias são a contrapartida de nossa liberdade.37

    Assim como a criança que aprende com o exemplo, o adulto deve levantar

    barreira para não ser tragado pelo mimetismo destruidor. Esse mimetismo

    possui um “imã gravitacional” que Jesus nomeia como escândalo. Jesus toma

    como exemplo um menino38 para explicar aos seus discípulos a diferença entre

    o maior e menor no reino de Deus e a necessidade de humildade para se fazer

    parte dele. A criança é um modelo de inocência e confiança, nela, assim como

    em Jesus, as pessoas poderão ser levadas a se escandalizar. “Quanto mais

    inocente e confiante é a imitação, mas facilmente se escandaliza, mas se é

    36

    GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p. 32. 37

    Ibid., p. 33. 38

    GIRARD se refere a passagem do Evangelho de Mateus capítulo 18. Neste relato os discípulos querem saber quem é o maior no reino dos céus. Jesus, ao tomar como exemplo um menino, explica-lhes que para entrar no reino dos céus é preciso conversão e humildade. Jesus fala-lhes do escândalo e o valor do reino dos céus afirmando que a entrada no reino é tão prioritária que se um dos membros do corpo os escandaliza e eles desejam entrar no reino dos céus é preciso, ter coragem, arrancá-lo e atirá-lo para longe de si. Para Jesus é melhor entrar no reino dos céus faltando um membro do que ir para o inferno em perfeito estado físico.

  • 28

    culpado de se abusar dela. Quando mais o escândalo nos causa repulsa, mais

    nos atrai39”. Os seres humanos individualmente não são condenados a uma

    rivalidade mimética, mas vivemos em sociedade e essa sociedade é composta

    por milhões de pessoas, logo “a partir do momento em que acontece o primeiro

    escândalo, esse concebe outros e o resultado é crise mimética40 que não para

    de se alastrar e se agravar”41. Para Girard, “qualquer mimesis relacionada ao

    desejo conduz necessariamente ao conflito”42.

    Segundo esse autor, por trás de toda imitação está presente dois

    modelos. “Tal como Jesus, Satanás procura fazer-se imitar, mas não da mesma

    forma, não pelas mesmas razões”43. Nisto, ele Satanás procura ser como Deus,

    apresentando-se como modelo a ser imitado, porém não exigindo nenhum

    requisito que possa limitar a violência.

    Se escutarmos este mui amável e muito moderno professor, sentimo-nos primeiro libertos, mas esta impressão não dura, pois, se escutarmos Satanás, ficamos privados de tudo que protege do mimetismo conflitual. Em vez de nos advertir contra as armadilhas que nos esperam, Satanás faz-nos cair nelas; aplaude a idéia de que as proibições “para nada servem” e que a sua transgressão não comporta qualquer perigo.44

    Sendo o semeador de contendas, Satanás propõe a desordem através

    daqueles que o imitam e depois, sem perder a sua condição de modelo,

    apresenta a solução para o conflito que aqueles que o imitaram conseguiram

    promover.

    A fim de impedir a destruição de seu reino, Satanás faz da sua própria desordem, no seu paroxismo, um meio de se expulsar a

    39

    GIRARD, René. Op. cit., p. 34. 40

    Em GIRARD, desejo, objeto e violência se confundem. O núcleo do desejo não é mais o objeto, mas a violência contra o outro. 41

    GIRARD, René. Loc. cit. 42

    GIRARD, René. A violência e o sagrado, p. 180. 43

    GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p.53. 44

    GIRARD, René. Loc. cit.

  • 29

    si mesmo45. Assim Satanás pode sempre voltar a por ordem suficiente no mundo, de forma a prevenir a destruição total de seu bem sem se privar durante muito tempo de seu passa tempo favorito, que é o de semear a desordem, a violência e a infelicidade entre os homens.46

    Logo se percebe que o ciclo mimético começa com Satanás e termina em

    Satanás. Satanás como modelo opõe-se ao nosso desejo. Nesse sentido, ao

    pensar que tem controle sobre si e tudo que faz é decidido pela autêntica

    liberdade o ser humano, não passa de marionete controlado pelo seu

    arquimodelo.

    O ciclo mimético começa com o desejo e com as rivalidades, desenvolve-se pela multiplicação dos escândalos e pela crise mimética e resulta, finalmente, num mecanismo vitimário que é a resposta à questão colocada por Jesus47: “Como é que Satanás expulsa Satanás”.48

    No Evangelho de João49, Jesus identifica aqueles que diziam ser filhos de

    Abraão, porém queriam matá-lo; ao invés de amá-lo o odiava porque ele lhes

    dizia uma verdade duríssima de ser suportada e que não podia e nem pode ser

    entendida até mesmo por aqueles que professam uma religião mas estão presos

    ao mimetismo da violência. Para Girard:

    Estas pessoas têm por Pai o Diabo porque são os desejos do Diabo que querem realizar e não os desejos de Deus. Toma o

    45

    Ibid, p. 56. 46

    Ibid, p. 58. 47

    BÍBLIA SAGRADA. Mateus capítulo 12 versículo 26: “E, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá pois o seu reino?”. 48

    GIRARD, René. Op. cit., p.59. 49

    BIBLIA SAGRADA. Evangelho de João capítulo 8, versículos 40- 44. “Mas agora procurais matar-me, a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isso. Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe pois: Nós não somos nascidos de prostituição; temos um Pai, que é Deus. Disse-lhes Jesus: Se Deus fosse o vosso Pai, certamente me amaríeis, pois que eu saí, e vim de Deus; não vim de mim mesmo, mas ele me enviou. Porque não entendeis a minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra. Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira”.

  • 30

    Diabo como modelo de seus desejos. Trata-se aqui exatamente do desejo mimético, na mais pura acepção da expressão. Mais uma vez, as noções de Pai e modelo. Ao qual o desejo humano, por falta de um objeto que lhe é próprio, não consegue renunciar, são uma só.50

    Jesus como palavra de Deus, como Deus encarnado nos “convida a imitar

    o seu próprio desejo, é o impulso que o guia Jesus, em direção ao objetivo51 que

    fixou para si: parecer-se quanto possível com o Pai”52. Jesus tem um propósito.

    “O seu propósito é tornar-se a imagem perfeita de Deus53. Assim consagra todas

    as suas forças à imitação do Pai. Ao convidar-nos para imitá-lo convida-nos para

    imitarmos a sua própria imitação”54.

    Deus assim como Jesus não faz acepção de pessoas55 por isso são

    modelos ideais a ser imitados, “porque nem o Pai nem o Filho desejam de uma

    forma ávida, egoísta. Deus “ilumina quer maus quer os bons”. Dá aos homens

    sem contar, sem marcar entre eles a mínima diferença56. Por isso pode-se

    pensar em um Cristo que se identifica perfeitamente com a vítima. Jesus quer

    iluminar os homens para que eles reflitam e saiam da escuridão, da dúvida, da

    cegueira alimentada pelo arquimodelo do mal. Girard diz que “quando não se vê

    a escolha entre os dois arquimodelos, Deus e o Diabo, é inevitável, já se

    escolheu o Diabo, o mimetismo conflitual57. Nesse caso, é na dúvida que o

    Diabo mantém sua camuflagem.

    No seu ministério terreno, Jesus se propõe com todas as suas forças a

    ensinar, por palavras e por obras, um grupo de pessoas como é imitar a Deus.

    50

    GIRARD, René. Op. cit., p. 61. 51

    BÍBLIA SAGRADA. João capítulo 5, versículo 30: “Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma: como ouço, assim julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco aminha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou”. 52

    GIRARD, René. Op. cit., p.30. 53

    BÍBLIA SAGRADA. João capítulo 6, versículo 38: “Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. 54

    GIRARD, René. Loc. cit. 55

    BÍBLIA SAGRADA. Deuteronômio capítulo 10, versículo 17: “Pois o Senhor vosso Deus é o Deus dos deuses, e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita recompensas”. Este texto se repete em várias partes das Escrituras, entre elas podemos citar Atos capítulo 10, versículo 34: “E, abrindo Pedro a boca, disse: Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas”. 56

    GIRARD, René. Loc. cit. 57

    Ibid, p. 64.

  • 31

    Quando ensinava seus discípulos para que evitassem de se escandalizar por sua causa, ele não estava apenas lhes ensinando algo a respeito dele, mas algo a respeito deles, ou seja, o que é viver num mundo que skandala. Isso quer dizer não estava apenas preparando um grupo particular de pessoas, em circunstâncias particulares, para que evitassem se escandalizar por causa de um evento em particular; mas ele fazia isso como parte de um ensinamento geral que compreendia a condição humana, algo que envolveria um certo tipo de imitação chamado de discipulado, uma espécie de imitação que compreende a mudança de um ser, até então preso em forma de desejo que levam à vitimação, dirigindo-se para uma forma a qual, tendo-se em vista a estrutura desse mundo, levará o discípulo a correr sério risco de sofrer vitimação.58

    A vida exemplar de Jesus e sua demonstração de como deveriam imitar o

    Pai foi absorvida de tal maneira pelos apóstolos que todos eles, menos o

    apóstolo João59 que morreu por morte natural, foram vitimados. Logo se percebe

    um antagonismo entre carne60 e Espírito61. “O skádalon define o antigo desejo

    (em João, a carne), ao passo que o Espírito define o último”62. Toda essa vida

    exemplar demonstrada por Jesus teria sido esquecida se ele não tivesse

    ressuscitado63. A ressurreição é a garantia que a morte não é um obstáculo que

    não podia ser transposto.

    Somente com a ressurreição, no momento que é removida a pedra do túmulo de Jesus, remover-se-á o obstáculo final. O obstáculo que será removido é aquele que impedia a humanidade de seguir e imitar um outro homem, numa senda de

    58

    ALISON, James. O pecado original à luz da ressurreição, p.233. 59

    DOUGLAS, J. D. (Org). O novo dicionário da bíblia, pp. 832-834. 60

    BÍBLIA SAGRADA. Gálatas capítulo 5, versículos 19 ao 21 traz uma relação de práticas baseadas no egoísmo e mimesis violenta. No versículo 21 lê-se: “Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a cerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus”. 61

    Ibid., capítulo 5, versículos 22 e 23, Paulo escreve: “Mas o fruto do Espírito é: caridade, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança. Contra estas coisas não há lei”. 62

    ALISON, James. O pecado original à luz da ressurreição, p.233. 63

    BÍBLIA SAGRADA. Paulo escreve na carta de 1 Coríntios capítulo 15, versículo 14: “E, se Cristo não ressuscitou logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”.

  • 32

    autodoação que considera a morte como destituída de substância.64

    De posse da certeza da ressurreição de Jesus65, cônscios da sua morte

    como vítima inocente, os discípulos entenderam que a morte não poderia ser um

    obstáculo para eles seguissem a Cristo e sim, que como Cristo, eles viveriam

    como modelos a serem imitados e por isso poderiam ser vitimados.

    Dessa forma, os discípulos puderam pelo menos ser uma testemunha, e depois de sua morte eles foram capazes de reproduzir a imitação de sua autodoação a caminho da execução, dando testemunho ao Pai, sem medo da morte.66

    Pensando assim, a vida de Cristo e de seus discípulos tem sido

    inspiração para muitos. Nesse caminho aberto por Jesus, segue não somente os

    discípulos, mas todos aqueles que vivenciam a abrangência da sua graça por

    experimentarem: (1) a clareza de quem Jesus é; (2) o poder revelador da

    Paixão; (3) saber a real intenção do arquimodelo Satanás; e, (4) poder tomar

    posse de sua liberdade desvinculada de qualquer forma de idolatria.

    1.4 Os Evangelhos e as Vítimas

    Para Girard o cristianismo, baseado no Evangelho, tem uma chave que

    possibilita ler a mitologia. Sobre isso escreve:

    O Evangelho se torna, portanto, a chave hermenêutica que possibilita reler tanto a mitologia quanto as antigas escrituras como progressiva tomada de consciência histórica da matriz

    64

    ALISON, James. Op. cit., p. 232. 65

    BÍBLIA SAGRADA. Lucas falando de Jesus para seu amigo Teófilo em Atos capítulo, 1 versículo 3 escreve: “Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas, sendo visto por eles por espaço de quarenta dias, e falando do que respeita ao reino de Deus”. 66

    ALISON, James. O pecado original à luz da ressurreição, p.232.

  • 33

    violenta da ordem cultural, e o sacrifício de Cristo como o momento de ruptura do equilíbrio que mantinha estável, recorrente, mítico, o mecanismo simbólico-religioso sobre o qual estavam fundamentadas as sociedades arcaicas.67

    Girard defende que o cristianismo é revelador porque através dele o

    homem livrou-se da recorrência a bodes expiatórios e imolações para resolver

    as crises que atingiam as comunidades. Também pelo cristianismo a

    comunidade se conscientizou de que as vítimas sobre as quais recaia a culpa,

    dos males inexplicáveis, eram inocentes.

    Girard culpa a antropologia pela maldade atual. Segundo ele, a

    “antropologia faliu porque não conseguiu explicar as diversas culturas humanas

    como um fenômeno unitário”68 e isso permitiu que a maldade permanecesse até

    hoje. Para Girard a verdade é que possibilita a libertação do mecanismo

    vitimário, “seja ela revelada ou descoberta pela ciência”69; em ambos os casos

    torna-se necessário ter fé proporcional e individual naquilo que se pretende crer.

    Assim, essa revelação, feita através da Paixão, desoculta aquilo que fazia da

    violência um meio eficaz para se obter a paz.

    No caso dos mitos, o princípio divino é na realidade a violência que traz a paz através dos mistérios do sacrifício expiatório e ritual, a boa violência que expulsa a má. Nos Evangelhos essa violência é definida não como divina, mas como satânica: é o poder de “expulsar Satanás” dado temporariamente ao próprio Satanás e agora reivindicado por Cristo.70

    Se procurarmos um antagonismo entre cristianismo e mitologia não é

    possível ver o quanto eles se parecem. Para Girard “as semelhanças entre

    cristianismo e os mitos são demasiado perfeitas para não levantar a suspeita de

    67

    GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo, p.8. 68

    Ibid., p. 51. 69

    Ibid., p. 64. 70

    Ibid., pp. 117,118.

  • 34

    uma recaída no mítico”71. Por isso Jesus é contundente em toda a sua postura

    para romper com essa potente imitação.

    Se a transferência que demoniza a vítima for muito forte, a reconciliação é tão súbita e perfeita que parece milagrosa e suscita uma segunda transferência que se propõe à primeira, a transferência de divinização mitológica.72

    Nessas divinizações míticas há um fortalecimento da comunidade e se

    acaso houver alguma discordância sobre essas divinizações, elas serão

    vencidas pela aceitação da maioria, isso é diferente no cristianismo. “Em torno

    das divinizações míticas, nunca se vê a comunidade fracionar-se em dois grupos

    desiguais no qual apenas o menor proclamaria a divindade do deus. A estrutura

    da revelação cristã é única”73.

    Os Evangelhos, ao contarem a vida e obra de Jesus “revelam tudo que os

    homens têm necessidade para compreenderem as suas responsabilidades em

    todas as violências da história humana e em todas as falsas religiões”74. Isso

    aparece em várias ações de Jesus, sobretudo ao proclamar o perdão durante a

    sua crucificação: “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”. Esse

    perdão:

    Fala da incapacidade dos mobilizados para distinguirem os impulsos miméticos que os mobiliza. Os perseguidores “acreditam que estão a agir corretamente”, julgam atuar em nome da justiça e da verdade, pensam que estão a salvar a comunidade.75

    A consciência cauterizada pelo próprio senso de verdade e de justiça que

    pairava sobre a defesa da Lei, joga luz sobre a mentira reinante revelando “a

    auto-ilusão dos violentos, o Novo Testamento dissipa a mentira de sua violência;

    enumera tudo aquilo de que precisamos para rejeitar a visão mítica de nós

    71

    GIRARD, René. Eu via Satanás cair do céu como um raio, p.155. 72

    Ibid., p. 157. 73

    Ibid., p. 158. 74

    Ibid., p.160. 75

    Ibid,. p. 160.

  • 35

    próprios, a crença na nossa própria inocência”76. Os participantes do culto que

    liam e cantavam os escritos antigos, diariamente, nas casas e no templo “não

    compreendiam que o narrador do salmo77 e Jesus são, de fato, vítima do mesmo

    tipo de injustiça”78.

    Ao estudarmos o profetismo no Antigo Testamento é possível perceber

    que muitos dos profetas79 pagaram um alto preço por se manterem fiéis no que

    defendiam como verdade. “É aqui que está à essência do profetismo

    especialmente judaico-cristão. É a comparação com a Paixão de todas as

    perseguições coletivas, seja qual for a data na história humana,

    independentemente das pertenças étnicas, religiosas ou culturais das vítimas”80.

    As interpretações miméticas de René Girard possibilitam uma compreensão do

    sentido positivo dos escritos proféticos, independente da época em que foram

    escritos, os quais tem como base fundamental o amor de “Deus que, mais uma

    vez, se torna vítima que é mais do que um Deus mítico, é o Deus único e

    infinitamente bom do Antigo Testamento”81. Em Jesus, essa bondade é

    plenamente revelada por sua pessoa e por aqueles que procuram imitá-lo.

    1.5 Perdão Novum na Paixão

    A libertação da criação das garras da ordem vitimária é o resultado final de todo um processo de descoberta, apresentado pelo Novo Testamento.82

    76

    Ibid., p. 161. 77

    BÍBLIA SAGRADA. Dois bons exemplos são os Salmos 22 e 69. Ambos refletem o sofrimento de Davi prefigurando o sofrimento do Messias. 78

    GIRARD, René. Op. cit., p.163. 79

    BÍBLIA SAGRADA. Falando sobre a resistência dos chamados heróis da fé, entre eles os profetas, o autor aos Hebreus escreve no capítulo 11, versículo 36 e 37: “E outros experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões. Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos ao fio da espada; andaram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados”. 80

    GIRARD, René. Loc. cit. 81

    Ibid., p. 164. 82

    ALISON, James. Fé além do ressentimento, p. 227.

  • 36

    Dentro dos fatos que fazem parte da Paixão, Girard foca, de maneira

    espetacular, o perdão dado por Jesus a todos os seus algozes. Esse perdão

    abarca toda a humanidade em todos os tempos. Jesus revela algo imprevisível e

    único, o amor de Deus que triunfa e deve triunfar sobre qualquer forma de

    violência.

    A razão pela qual Jesus é considerado divino é na verdade única. O amor transcende a violência do sagrado e deve penetrar, em fim, no obscuro reino do homem; ele deve triunfar sobre todos os obstáculos que nós pomos no caminho da nossa própria salvação.83

    Enquanto no Antigo Testamento o perdão estava vinculado a sacrifícios

    expiatórios84 que apenas cobria a ofensa e assim, cada novo pecado exigia

    novo sacrifício, na pessoa de Jesus, pela sua morte inocente, não como um

    representante, mas como a encarnação do próprio Deus que ao sofrer a Paixão

    e nela perdoar seus algozes, estabeleceu um “perdão novum”, extinguindo a

    necessidade de qualquer tipo de sacrifício. Ao sabermos de sua morte como

    vítima inocente e o perdão novum doado, entendemos que “o conteúdo do

    pecado original é somente conhecido mediante o processo de seu perdão”85.

    No perdão “velho” não havia um modelo humano para lhe representar, visto

    que todos estavam contaminados pela mimesis da violência. Ao apresentar seu

    Pai como modelo e mostrar como ele, Jesus, o imitou, abriu a possibilidade para

    que todo ser humano seja capaz de fazer o mesmo. Jesus criara as diretrizes

    corretas para que não sejamos enganados pelo o arquimodelo Satanás que

    deseja ser imitado.

    Fica claro, a partir do ensinamento de Jesus, que ele percebe os humanos aprisionados em um tipo de reciprocidade violenta

    83

    GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo, p.118. 84

    BÍBLIA SAGRADA. Levítico capítulo 17, versículo 11: “Porque a vida e a carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que fará expiação pela alma”. 85

    ALISON, James. O pecado original à luz da ressurreição, p. 228.

  • 37

    identificada ao skándalon, e que ele ensina como sair desse tipo de reciprocidade em direção a uma espécie de reciprocidade nova. Essa nova espécie de reciprocidade é concretizada no perdão e em outros atos que não se deixa prender pelo skándalon e, dessa forma, tornamo-nos capazes de começar a imitar a perfeita gratuidade do Pai celestial, no qual não existe skándalon.86

    O novum que propomos é justamente uma forma de diferenciar do modelo

    de perdão que já existe, devido não estar fundamentado na troca, na

    compensação. Mesmo perdoando a sociedade permanece contaminada pela

    mimesis da violência. No novum, ao liberar o perdão, a pessoa, mesmo que

    desconheça o cristianismo, é coberta por esta mimesis nova, desfrutando da

    graça dada por Cristo e retirando-se da mimesis da violência, porque perdoa

    sem esperar nada em troca. Nos Evangelhos, “o perdão por meio ou através de

    Jesus Cristo significa um perdão que se origina em tudo quanto Ele é e em tudo

    quanto Ele fez87. Trata-se de um ato da graça completa que pode ser

    experimentado tanto pela fé como pelo conhecimento científico. Não há, além do

    perdão novum outro meio capaz de tirar o ser humano da mimesis violenta.

    Logo, “há, neste mundo, apenas uma maneira de não cair prisioneiro de

    escândalos, e essa maneira é o aprendizado do perdão, o que significa não

    permitir definir-se pelo mau que lhe foi feito”88.

    Como seres humanos vivendo em sociedade e totalmente dependentes,

    nela nos relacionamos constantemente como pessoas, o perdão novum traz

    consigo a única possibilidade de continuarmos vivendo sem buscarmos na

    violência a solução para nossos conflitos. Tornamo-nos capazes de vencer este

    enraizamento do desejo violento, que faz parte da natureza humana, o qual nos

    arrasta para destruição não só a dos que vitimamos, mas também a nossa.

    O não perdão nos faz travar em uma ou mais áreas de nossa existência.

    Não percebemos “que nossa vida é um projeto em ação, um projeto que se vai

    realizando pouco a pouco e durante o qual surgem perguntas como esta: Que

    86

    Ibid., p. 234. 87

    DOUGLAS, J. D. (Org). O novo dicionário da Bíblia, p.1267. 88

    ALISON, James. Loc. cit.

  • 38

    elementos, que dados ou que fatores comandam, dirigem a minha vida?”89.

    Todos nós temos sonhos, projetos de vida e esses só poderão acontecer porque

    fazemos parte de um contexto de relações, logo, “a culpa só se forma

    naturalmente dentro de um vínculo afetivo”90.

    Quando falamos em conscientização da culpa ou revelação de nossa

    natureza violenta, o pensamento do psiquiatra suíço Paul Tournier91 coaduna

    com a teoria do desejo mimético de Girard. Para Tournier, “A culpa está ligada

    ao temor de ser indigno da estima e do desejo do outro e, ao mesmo tempo, ao

    sofrimento de perder a estima e o amor que cada um de nós dedica a si

    mesmo”92. Percebe-se que a culpa está ligada ao medo ou a baixa auto-estima.

    Quando a pessoa sente-se culpada, é praxe na religião cristã, dar como remédio

    o pedir perdão, mas é preciso entender que:

    O senso do pecado distingue-se do sentimento de culpa, porque ele pertence à ordem do consciente, e não do inconsciente. Somente as culpas conscientes, em que a liberdade do sujeito pôde entrar em jogo, constitui matéria específica da confissão”.93

    Para Girard esse senso de pecado pode ser interpretado como a

    revelação trazida pela Paixão, quando a vítima inocente faz-nos perceber que

    todos os seres humanos estão mimeticamente entrelaçados em uma psicologia

    interindividual que tem como alvo à morte. Esta conscientização é trazida a tona

    pela fé ou pela revelação da ciência, não de uma ciência laboratorial que

    necessita de provas concretas, mas de uma ciência baseada na ética.

    89

    TOURNIER, Paul. Culpa, neurose e pecado, p.14. 90

    Ibid., p. 28. 91

    Paul Tournier nasceu em Genebra, Suíça, em 12 de maio de 1898. Graduou-se em 1923 pela Escola de Medicina da Universidade de Genebra, fazendo da profissão o campo do seu ministério. Ele exerceu a clínica com tal maestria que todos admitem chamá-lo de psicoterapeuta. Seu primeiro livro, publicado em 1940 e intitulado Medicina da pessoa, já introduzia uma nova visão da prática profissional.Tornou-se conhecido mundialmente pelas conferências e livros que viu publicados em várias línguas. Foi convidado pelo CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos) a vir ao Brasil, mas logo enfermou-se falecendo em abril de 1987. 92

    TOURNIER, Paul. Loc. cit. 93

    Ibid., p. 38.

  • 39

    O perdão novum é mais do que palavra, ele é atitude, modo de proceder,

    mudança na maneira de desejar. Está ligado ao âmago do ser que os

    Evangelhos chamam de “coração”. Por isso se trata da pura liberdade do sujeito

    que sabe não estar dominado pela cegueira violenta, mas é guiado pela luz da

    gratuidade. Visto que vamos trabalhar esse modelo de perdão no segundo

    capítulo, vamos aqui colocar apenas um exemplo. No Evangelho de Mateus94

    Jesus infere que um relacionamento pacífico vale mais do que os sacrifícios.

    Nesta passagem o ofertante não tem nada contra a pessoa é a pessoa que tem

    contra ele. Surge então uma pergunta: quem deve começar o processo de

    reconciliação, o ofendido ou o ofensor? Resposta: qualquer um dos dois, mas

    nesse caso que estamos abordando é o ofendido, devido ele ter tomado

    consciência do acontecido. “Aqui está mais do que um preceito moral; trata-se

    de uma declaração que cancela o culto sacrificial litúrgico, pois mostra que

    nenhum sacrifício pode substituir a reconciliação”95. Esta reconciliação se baseia

    na liberdade de poder decidir pelo que é bom.

    Essa liberdade tem vínculo estreito com a esperança e, assim como o

    arrependimento ou contrição, não se volta para o passado e sim aponta para o

    futuro. Estando ligada à atividade consciente e à racionalidade “o senso do

    pecado aproxima-se da consciência moral da culpa. No entanto, não se

    confunde com ela”96. Assim o que para uma pessoa que está sob a mimesis

    violenta um ato pode ser encarado com um erro, para o que está sob a mimesis

    da Paixão pode ser entendido como pecado. “A razão reside no fato de que o

    crente não existe sozinho, diante de si mesmo, ele existe com e para Deus. Não

    há pecado, no sentido forte do termo, se não em referência a Deus e aquilo que

    Ele nos convida a viver”97. Então aqui temos um problema com o cristianismo.

    Podemos perguntar: o cristianismo é uma religião que promove ou cria mais

    culpa em seus seguidores do que outras religiões? Sim e não. Para aqueles que

    94

    BÍBLIA SAGRADA. Mateus capítulo 5, versículos 23 e 24, lê-se: Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem e apresenta a tua oferta. 95

    BARBÉ, Domingos. Uma teologia do conflito, p. 45. 96

    Ibid., 39. 97

    BARBÉ, Domingos. Loc. cit.

  • 40

    não se escandalizam com a morte vicária de Cristo e toma-o como modelo,

    usufrui do perdão novum e isso é libertador. Ao contrário, ao saber de tudo que

    aconteceu na Paixão e se escandalizar, a culpa além de se revelada, é

    aumentada.

    Mas qual a base do cristianismo? Em que ele está estruturado? “[...] o

    cristianismo propõe aos seus adeptos, como mandamento central, o amor ao

    próximo. Ora, trata-se exatamente do tipo de exigência sem limites, indefinida,

    diante da qual a pessoa está sempre em débito”98. Por isso quando os

    Evangelhos falam sobre sacrifício é para apontar a sua rejeição. Ao invés de

    sacrifício é necessário misericórdia.

    Dessa forma, o perdão novum não coloca como regra recorrer ao seu

    inconsciente para se libertar da culpa nem uma busca de perfeição e sim de um

    olhar de esperança para o futuro, o que difere muito do sintoma obsessivo.

    O obsessivo não aceita deixar de atingir, com um só passo e imediatamente, a pureza desejada. O bloqueio que o recalque que os desejos inconscientes provoca – e do ódio correlato – acarreta a recusa de reconhecer a existência nele (obsessivo) de um eu “intencional” e de um eu “passional”. [...] ele fica por demais absorvido em lamentar uma pureza que se situa atrás dele e, com isto, não consegue manter-se disponível para procurar a pureza que se acha diante dele.99

    O perdão novum não quer negar o passado, mas aceitá-lo. O passado ao

    ser aceito e confrontado pode ser redimensionado. “O que do passado pode

    então ser mudado é a carga moral, o seu peso de dívida, o qual pesa ao mesmo

    tempo sobre o projeto e sobre o presente”100. É nisso que se deve acreditar.

    Agindo assim pode-se livrar da cilada do perfeccionismo que quer corresponder

    ao desejo do outro como também quer resguardar-se de qualquer falha.

    98

    Ibid., p. 40. 99

    Ibid., p. 48. 100

    RICOEUR, Paul. O perdão pode curar?, p. 5.

  • 41

    No perfeccionista, o desejo do domínio pleno e total, da vitória sobre todas as inquietações, da invulnerabilidade, em relação aos desgastes afetivos constitui, no fundo, o desejo de uma plenitude em que a pessoa se sentiria inteiramente de posse de si mesma, sem distância interna.101

    Mas isso não acontece quando se tem a revelação do perdão novum

    obtido na Paixão. Nas palavras de Jacques Derrida, recuperadas por Perrone-

    Moisés (2010), “o poder de perdoar é sempre divino na sua essência, ainda que

    exercido pelo homem”102. Ao se reconhecer que fez parte da rivalidade mimética

    e do círculo da violência e agora sendo “iluminado” procurando ter o Cristo como

    modelo, pode-se perceber que pecado e perdão são inseparáveis. Nessa

    perspectiva pode-se vislumbrar: “a) A imagem de Deus implícita no processo; b)

    A palavra que conduz a tomada de consciência; c) O nível em que se situa o

    retorno e a mudança e, d) O tipo de projeto que daí resulta”103. Assim o sujeito,

    vê-se sobre o olhar do amor que perdoa, descobrindo simultaneamente que está

    salvo do seu pecado e pode conceder perdão.

    Pelo processo de aceitação do passado, se reconhece não só o mal que

    foi feito, mas “também o fato de que somos amados por Deus e capaz de amá-

    lo. A confissão vem dissipar de certo modo a representação indecisa de uma

    onipotência divina que privaria o homem do direito de errar”104. Pelo perdão

    novum pode-se crer no amor e na presença do amor divino, reconhecendo-se

    pecador possibilitando um movimento que traz esperança. “É desse modo que o

    trabalho de lembrança nos impele para a via do perdão, na medida em que este

    abre a perspectiva de uma libertação da dívida, por conversão do próprio

    sentido do passado”105.

    Perdoar não é esquecer. “Não se pode perdoar o que foi esquecido; o que

    deve ser destruído é a dívida e não a lembrança”106. O perdão novum pode ser

    entendido como um soltar-se. É como um trabalho de luto, “é neste sentido que

    101

    TOURNIER, Paul. Op. cit., p. 49. 102

    PERRONE-MOISÉS, Cláudia. A justiça e o perdão em Jacques Derrida, p. 2. 103

    TOURNIER, Paul. Culpa, neurose e pecado, p. 61. 104

    Ibid., p. 76. 105

    RICOEUR, Paulo.O perdão pode curar?, p. 5. 106

    TOURNIER, Paul. Loc. cit.

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    ele cura. Porque o perdão dirige-se não aos acontecimentos cujas marcas

    devem ser protegidas, mas à dívida cuja carga paralisa a memória e, por

    extensão, a capacidade de se projetar de forma criadora no porvir”107. Não se

    pretende amenizar e dizer que perdoar é fácil, de maneira nenhuma, porque:

    O perdão é mais do que trabalho, é acima de tudo porque a primeira relação que com ele temos consiste não em exercê-lo, ou dá-lo, como se diz, mas pedi-lo. O perdão é primeiro o que se pede a outrem, e antes de mais à vítima. 108

    O novum atua como novo fermento, para a fermentação do novo perdão:

    desatar o mecanismo do passado enquanto mecanismo de morte/violência, e

    assumir uma nova estrutura de vida. Ele não é seqüência do antigo, como

    explica Moltmann (1971): “A categoria novum sempre foi confundida com a

    renovação. Esta fusão tem lugar na profecia enquanto que o novum atrai para si

    a categoria re para desvirtuar sua eficácia”109.

    Por isso, é necessário ir além do mecanismo do bode expiatório onde a

    violência e a vingança é um modelo desenvolvido pelos humanos para apaziguar

    os humanos. O novum é uma outra possibilidade que vem de fora do mecanismo

    violento. O ser humano, mimetizado pela violência, não poderia desenvolver algo

    que fosse benéfico para todos sem estar amparado pela reparação, pela tro