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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Thiago Rafael Englert Kelm
PAUL TILLICH E O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO-
CRÍTICO
São Bernardo do Campo
2017
Thiago Rafael Englert Kelm
PAUL TILLICH E O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO-
CRÍTICO
Dissertação apresentada em cumprimento parcial às
exigências do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, para obtenção do grau de
Mestre. Orientador: Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro.
São Bernardo do Campo
2017
A dissertação de mestrado sob o título “Paul Tillich e o pensamento fenomenológico-crítico”,
elaborada por Thiago Rafael Englert Kelm, foi apresentada e aprovada com louvor em 15 de
agosto de 2017, perante banca examinadora composta pelos professores Doutores Cláudio de
Oliveira Ribeiro (Presidente/UMESP), Etienne Alfred Higuet (Titular/UEPA) e Rui de
Souza Josgrilberg (Titular/UMESP).
__________________________________________
Prof. Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura
AGRADECIMENTOS
Usar palavras é limitar a imensa gratidão que tenho a cada pessoa que caminhou comigo
na construção deste trabalho. A estas pessoas quero escrever meus mais sinceros e profundos
agradecimentos. Agradeço...
À minha esposa Diani Lange, pela compreensão, apoio e por se tornar desde o início
desta pesquisa meu incentivo constante. Obrigado pelas palavras, olhares e sorrisos que me
deram forças em momentos de desânimo.
Aos meus pais Noeli Kelm e Mario Osmar Englert e ao meu irmão Carlos Daniel Englert
Kelm, pela demonstração de amor e carinho e pelo voto de confiança em minhas andanças
acadêmicas.
Ao Gilmar Romualdo Somacal por apoiar a iniciativa do mestrado e contribuir para sua
realização.
Ao Prof. Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro, pela paciência exemplar, e ajudas decisivas
que criaram condições de enriquecimentos da pesquisa. Dele nunca faltou constante apoio, e
bom ânimo em caminhar comigo o percurso deste trabalho, e a amizade que foi além da relação
orientador-orientando.
Ao Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet, pela inspiração na pesquisa e ajuda com as obras
de Tillich, especialmente pelas discussões e ideias no grupo de pesquisa Paul Tillich que foram
fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa.
Aos professores Dr. Helmut Renders e Dr. Rui de Souza Josgrilberg pelos comentários
enriquecedores e desafiadores na ocasião da qualificação.
Ao Roberto Carlos Porto pelas leituras da pesquisa, sugestões e pela ajuda com as
traduções e revisões dos textos em alemão.
Ao Fábio Henrique de Abreu, Giovanni Catenaci e Vitor Chaves de Souza pelas
conversas, provocações e questionamentos que contribuíram sobremaneira para o
desenvolvimento e fundamentação deste trabalho.
À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa
integral de mestrado e financiamento de todo o projeto.
“La filosofía es una reacción al misterio de la realidad, concretamente al de la vida humana
y su destino”
(Miguel de Unamuno)
“E é só você que tem a cura para o meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo
que eu ainda não vi”
(Renato Russo)
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo analisar de que maneira o teólogo e filósofo Paul Tillich
(1986-1965) aplicou a fenomenologia na elaboração de sua própria teologia e quais as
implicações disso para o método teológico. Em sua Teologia Sistemática, Tillich desenvolve o
método chamado de fenomenologia crítica e afirma ser este o mais adequado para a análise dos
conceitos teológicos. Entretanto, a presença da fenomenologia no pensamento tillichiano é
anterior à sua TS. Durante o período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os últimos
anos de 1920, Tillich assume uma postura revisionista em relação ao seu período inicial e
estabelece importantes diálogos com a escola fenomenológica, principalmente a de Edmund
Husserl. Esses diálogos se tornam evidentes na apropriação que o teólogo faz da teoria da
intencionalidade da consciência e da intuição das essências. Entretanto, Tillich se apropria da
fenomenologia husserliana de maneira crítica e rejeita, como o próprio teólogo afirma, o
realismo a-histórico adotado por Husserl. Para Tillich, forma e substância são indissociáveis e
nesse sentido torna-se necessário um método que valorize ambos os polos. É neste contexto que
o teólogo propõe a união de um elemento crítico à fenomenologia pura, e mais tarde em sua
TS, a ideia de uma fenomenologia crítica. A união entre os elementos crítico e intuitivo no
pensamento de Tillich se constitui como o fundamento e também o aspecto inovador de sua
fenomenologia. Compreender esta apropriação que o teólogo faz da fenomenologia é
fundamental para um entendimento rigoroso da totalidade de seu trabalho assim como para
apreender as possibilidades de aplicação que seu método fenomenológico possui para a
atualidade.
Palavras-chave: Paul Tillich. Fenomenologia. Intencionalidade. Crítico. Intuitivo.
ABSTRACT
This research aims to analyze the way that the theologian and philosopher Paul Tillich (1986-
1965) applied the phenomenology in the elaboration of his own theology and which are the
implications of this for the theological method. In his Systematic Theology, Tillich developed
the method called critical phenomenology and stated this is the most appropriate method for
the analysis of the theological concepts. However, the presence of phenomenology in the
tillichian thoughts is previous of his ST. During the period since the ending of the First World
War until the last years of the 1920, Tillich took over a revisionist stance in relation to his
previous period and established important dialogs with the phenomenological school, mainly
the school of Edmund Husserl. These dialogs became evident in the appropriation of the
intentionality of conscious and the intuition of essences did by the theologian. Nevertheless,
Tillich appropriated of the husserlian phenomenology in the critical way and he rejected, as the
theologian has claimed, the ahistorical realism adopted by Edmund Husserl. For Tillich, the
form and substance aren’t dissociable and therefore becomes necessary a method which values
both poles. In this context, the theologian proposed the union of a critical element to the pure
phenomenology, and later, in his ST, the idea of a critical phenomenology. The union of the
critical and intuitive elements in the Tillich thought constitutes as the basis and the innovator
aspect of his phenomenology. Comprehend this appropriation of the phenomenology by the
theologian is fundamental for a rigorous understanding about the totality of his work as well as
the possibilities to application of his phenomenological method for the current days.
Key-words: Paul Tillich. Phenomenology. Intentionality. Critical. Intuitive.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11
CAPÍTULO 1 – A RECEPÇÃO DA FENOMENOLOGIA NO PENSAMENTO
TEOLÓGICO DE PAUL TILLICH ............................................................................ 17
1.1. Época de guerras: o período revisionista de Paul Tillich ................................... 18
1.2. A teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl ..................... 24
1.3. Contatos com a escola fenomenológica e a apropriação da noção de intencionalidade
da consciência .......................................................................................................... 30
1.3.1. Carta a Richard Wegener e os primeiros contatos com a escola fenomenológica
...................................................................................................................... 30
1.3.2. Carta a Emanuel Hirsch e os contornos gerais de uma teoria do sentido absoluto
(Urständliche) em diálogo com a fenomenologia ........................................ 31
1.3.3. O curso sobre filosofia da religião de 1920 e a apropriação do termo visar (Meinen)
como ato intencional da consciência ............................................................ 35
1.4. Aplicações da intencionalidade da consciência na fundamentação do conceito de
religião ...................................................................................................................... 37
1.4.1. A teoria do sentido em Tillich como pano de fundo de sua recepção da
fenomenologia .............................................................................................. 37
1.4.2. O sentido incondicional como experiência religiosa imediata ..................... 40
1.4.3. O conceito de religião como direcionamento intencional da consciência .... 46
1.4.4. Apontamentos sobre a noção de religião como preocupação última nos escritos
posteriores ao período revisionista de Paul Tillich....................................... 51
CAPÍTULO 2 – OS ELEMENTOS INTUITIVO E CRÍTICO COMO EPICENTRO DA
FENOMENOLOGIA CRÍTICA .................................................................................. 56
2.1. Críticas de Tillich ao método fenomenológico e a proposta de união entre os elementos
intuitivo e crítico ...................................................................................................... 56
2.1.1. O contexto da crítica: uma análise sobre os métodos da filosofia da religião56
2.1.2. Crítica ao método fenomenológico .............................................................. 61
2.1.3. A proposta de união entre os elementos intuitivo e crítico .......................... 68
2.2. O método crítico-intuitivo ...................................................................................... 71
2.3. O método metalógico .............................................................................................. 79
2.4. O método fenomenológico-crítico ......................................................................... 88
2.5. O caso especial do curso do verão de 1962 ........................................................... 98
2.6. A abordagem ontológica no contexto da fenomenologia crítica ....................... 103
CAPÍTULO 3 – IMPLICAÇÕES E APLICABILIDADE DA FENOMENOLOGIA DE
TILLICH ...................................................................................................................... 108
3.1. Implicações da fenomenologia na elaboração de uma Teologia da Cultura ... 110
3.1.1. Relação entre Religião e Cultura ................................................................ 110
3.1.2. Relação entre forma e substância ............................................................... 113
3.1.3. Dois estados da intencionalidade da consciência e a distinção entre a potência
religiosa e o ato religioso ............................................................................ 116
3.2. A relação entre forma e substância e os elementos intuitivo-descritivo e existencial-
crítico ...................................................................................................................... 123
3.3. A aplicabilidade da fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso126
3.4. A atitude fenomenológica no reconhecimento da religião como modos simbólicos de
representação e o valor existencial do símbolo religioso .................................... 143
3.5. A fenomenologia crítica como abordagem compreensiva do fenômeno religioso147
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 155
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 163
11
INTRODUÇÃO
O teólogo e filósofo Paul Tillich (1886-1965) é um pensador de fronteiras. Esta é uma
característica que marca não apenas sua trajetória de vida como também todo seu percurso
acadêmico. O autor comenta em sua autobiografia intitulada “Na fronteira: um esboço
autobiográfico” (On the boundary: an autobiographical sketch) que o conceito de fronteira se
constitui como um símbolo adequado para toda sua evolução pessoal e intelectual. Nesse
sentido, entender o pensamento desse autor não é uma tarefa fácil, já que se trata de um
pensamento original, sofisticado e marcado pela interlocução com diversas áreas do
conhecimento. Mesmo como teólogo cristão, sua teologia é caracterizada por uma postura
menos unívoca do cristianismo e que vai numa direção horizontal da religião, abrindo um leque
de possibilidades de diálogo com outras formas de pensamento, entre elas, a fenomenologia.
Tillich dialogou com a fenomenologia filosófica e também foi influenciado por ela. O
contato dele com esta escola, em especial a de Edmund Husserl, aconteceu durante a Primeira
Guerra Mundial, um momento histórico que deixou marcas profundas em sua vida e
pensamento. A experiência de guerra revelou um abismo na existência humana que não podia
ser ignorado, e sob este impacto, a filosofia romântica do século XIX e o idealismo teológico
que marcaram a primeira fase do pensamento do teólogo foram profundamente abaladas. Nessa
época, o autor assume uma postura revisionista em relação ao seu período inicial, e como ele
mesmo relata, este processo aconteceu em um diálogo crítico com o neokantismo, a filosofia
do valor e a fenomenologia. A presença da fenomenologia no pensamento de Tillich após este
período foi intensa.
O teólogo não apenas fez uso de alguns postulados da escola fenomenológica, como
também desenvolveu uma versão própria do método. A aproximação de Tillich com a
fenomenologia de Husserl se deu de maneira crítica, e nesse sentido, o mais importante em
Husserl para Tillich foi a teoria da intencionalidade da consciência e a intuição das essências.
É em torno destes dois elementos que os primeiros contatos do autor com a fenomenologia
aconteceram.
12
A noção de intencionalidade do ato da consciência se torna um elemento importante
para entender o pensamento de Tillich, principalmente em seu período revisionista1. Essa teoria
será aplicada pelo teólogo na fundamentação de seu conceito de religião, que passa a ser
descrito a partir de então como intencionalidade dirigida ao sentido incondicionado. Da mesma
forma, para dar conta dessa experiência intencional da consciência, o teólogo emprega um
segundo elemento oriundo da fenomenologia de Husserl, a saber, o elemento intuitivo, que,
para o autor, possibilita intuir a essência e as qualidades da religião em qualquer manifestação
religiosa. Tillich valoriza, portanto, o caráter rigoroso e radical da intuição das essências na
exigência do esclarecimento de sentidos e percebe, a partir disto, as possibilidades dessa
contribuição na esfera das análises do fenômeno religioso.
Entretanto, a pesquisa que ora se apresenta procurará mostrar que na visão de Tillich
falta à fenomenologia pura de Husserl um elemento crítico, que permita também a valorização
dos aspectos concretos e existenciais da experiência religiosa. Dessa forma, o teólogo soma ao
elemento intuitivo-descritivo um elemento existencial-crítico e desenvolve a partir daí uma
fenomenologia crítica. A união destes elementos constitui os fundamentos e também o aspecto
inovador da fenomenologia tillichiana. Com este método, torna-se possível, segundo o autor, e,
como também será apresentado, abordar o fenômeno religioso tanto em seus aspectos essenciais
quanto em seus aspectos concretos e existenciais. Estes dois elementos estão correlacionados e
estabelecidos numa tensão.
Tendo isso em conta, é possível perceber que a fenomenologia no pensamento de Tillich
não se limita a sua fenomenologia crítica, e tampouco aparece apenas como método em
teologia. A presença da fenomenologia pode ser percebida no pensamento do autor desde seu
período revisionista, quando ele fala em intencionalidade da consciência em direção ao sentido
incondicional e na necessidade de um método intuitivo para dar conta dessa experiência
intencional. É com base nestas formulações iniciais que Tillich vai falar mais tarde em sua
Teologia Sistemática (TS) de uma fenomenologia crítica. No entanto, até mesmo essa
fenomenologia crítica desenvolvida em 1951 se apresenta como o resultado de um método que
1O percurso acadêmico de Tillich pode ser dividido de várias formas. A pesquisa adotou as análises que o dividem
em três momentos. A recepção entusiástica do idealismo de Fichte e Schelling que marca profundamente seu
período de formação e se estende até o final da Primeira Guerra Mundial. Um segundo momento que vai deste
acontecimento até os últimos anos da década de vinte em que o autor assume uma postura revisionista em relação
ao seu período anterior e passa a reformula-lo na forma de uma nova teoria do sentido, e posteriormente um período
marcado por questões ontológicas, mas que conserva a teoria do sentido, que vai dos anos vinte até a Teologia
Sistemática nos anos de 1950 e 60 (DANZ, 2009, p. 173).
13
já vinha sendo desenvolvido muito antes por ele em termos de método crítico-intuitivo (1920)
e metalógico (1923), e posterior à fenomenologia crítica, em termos de método intuitivo-crítico
(1962)
No entanto, entre as pesquisas que envolvem o pensamento de Paul Tillich,
principalmente em solo brasileiro, são poucas aquelas que discutem sobre o assunto ou que
fazem um uso instrumental de seu método, tal como acontece com outros temas do teólogo
como o Reino de Deus, Kairos, Princípio protestante, Correlação, etc. Existe, portanto, uma
escassez de discussões sobre o lugar da fenomenologia no pensamento de Tillich e a maneira
como o teólogo aplicou, seja explicita ou implicitamente, a fenomenologia na elaboração de
sua própria teologia. O mesmo se dá com as possibilidades de aplicação de seu método
fenomenológico para a análise do fenômeno religioso na atualidade.
Diante disso, esta pesquisa se propõe a abordar o tema a partir de três hipóteses: A
primeira delas é que a fenomenologia em Tillich aparece de duas formas. Primeiro na
apropriação que o autor faz da teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl
para fundamentar seu conceito de religião, e segundo, na apropriação do elemento intuitivo-
descritivo para fundamentar seu próprio método fenomenológico-crítico. A segunda hipótese
desta pesquisa é que o método fenomenológico-crítico, trabalhado pelo teólogo na primeira
parte de sua TS pode ser compreendido como correlato aos métodos crítico-intuitivo e
metalógico, desenvolvido pelo autor em seu período revisionista. A terceira e última hipótese
desta pesquisa é que a fenomenologia crítica, tal como aplicada pelo autor na elaboração de sua
TS e no contexto de sua filosofia da religião, pode ser usada de maneira instrumental para a
análise de fenômenos religiosos na atualidade, assim como, pode ser também situada no
contexto de uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso.
Com isto, esta pesquisa pretende trazer para a discussão uma delimitação conceitual e
metodológica pouco discutida e valorizada por comentadores de Tillich no contexto brasileiro.
A apropriação de elementos da escola fenomenológica marca uma etapa decisiva e de intensa
produção acadêmica do teólogo e que na atualidade podem se abrir para novas perspectivas
analíticas e interpretativas sobre este autor e sobre a questão da fenomenologia como método
de pesquisa.
O método fenomenológico-crítico dele se apresenta como fundamental para um novo
processo de análise que, como será visto, vem ganhando força na atualidade. Esta proposta de
análise voltada para um olhar mais compreensivo do fenômeno religioso e com interesse em
14
questões mais subjetivas da vida tem sido fortemente acolhido no âmbito acadêmico. Tillich
pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que valorize o
caráter irredutível do sagrado e a dimensão subjetiva da experiência religiosa. O fenômeno
religioso na perspectiva do autor é composto por uma dimensão empírica ao passo que está
fundamentado em algo que transcende a situação temporal. A tensão entre estes dois polos deve
ser mantida e evidenciada, este é o caminho sugerido pela fenomenologia crítica. Com isso,
pretende-se mostrar que a fenomenologia crítica também aponta para a importância de uma
abordagem que leve em consideração o valor da experiência do sujeito com o sagrado bem
como o contexto histórico e cultural de onde os universos simbólicos são formados.
Esta pesquisa se justifica também por colocar a fenomenologia crítica de Tillich como
correlata aos métodos crítico-intuitivo e metalógico, elaborados por ele nas primeiras décadas
do século XX. O esforço será mostrar que existem pesquisas importantes que demonstram como
o método crítico-intuitivo e metalógico constituem-se essencialmente como um único método
no pensamento do autor. Entretanto, não se encontrou nenhum trabalho que incluísse o método
fenomenológico-crítico nessa mesma categoria. É possível que esta relação ainda não tenha
sido realizada pelo fato de que enquanto os método crítico-intuitivo e metalógico encontram-se
em escritos sobre filosofia da religião de Tillich, o método fenomenológico-crítico está situado
no contexto de sua Teologia Sistemática. Entretanto, isto não anula as possibilidades de tal
relação, ao contrário, apenas demonstra a importância que este método possui para o
pensamento do autor. Se a fenomenologia crítica for considerada como correlata aos métodos
anteriores desenvolvidos pelo autor, então pode-se dizer também que esta proposta
metodológica não se limita ao contexto teológico, mas pode ser usada também para abordar a
questão da religião em perspectiva filosófica.
Dessa forma, o objetivo central desta pesquisa é analisar de que maneira Tillich aplicou
a fenomenologia, em especial a noção de intencionalidade da consciência e o elemento
intuitivo-descritivo, na elaboração de sua teologia, e quais as implicações disso para o método
e saber teológico. Este questionamento inicial se desdobra, por sua vez, em três objetivos
específicos, que estruturam a pesquisa. São eles: (1) Apresentar o contexto do período
revisionista do autor a partir de uma análise de seus textos autobiográficos e analisar a recepção
da fenomenologia, especialmente a de Husserl, com o foco na teoria da intencionalidade da
consciência como elemento estruturante na reformulação de sua teologia. (2) Analisar os
desdobramentos do contato de Tillich com o método fenomenológico presente na crítica do
teólogo à escola fenomenológica e na posterior elaboração de uma proposta metodológica
15
construída sobre uma base crítica e intuitiva, bem como analisar em que medida os métodos
crítico-intuitivo e metalógico podem ser compreendidos como correlatos ao método
fenomenológico-crítico. (3) Analisar o conteúdo fenomenológico e suas implicações no
pensamento teológico do autor expressos nos modos em que religião e cultura se relacionam, e
identificar de que maneira a co-dependência entre religião e cultura na dinâmica da experiência
religiosa aponta para as possibilidades de aplicar a fenomenologia crítica para a análise do
fenômeno religioso na atualidade.
Para alcançar os objetivos propostos, a pesquisa seguirá metodologicamente três passos:
Primeiro, analisar os contatos iniciais do autor com a escola fenomenológica, seu
posicionamento crítico e os elementos teóricos que foram apropriados e aplicados na elaboração
de seu pensamento, tendo como fonte de pesquisa o material teórico da época como cartas,
livros e cursos ministrados. Segundo, refletir a fenomenologia crítica do autor a partir de suas
considerações ao método fenomenológico e daqueles métodos que a precederam, como o
crítico-intuitivo e o metalógico. Terceiro, identificar as implicações da fenomenologia no saber
teológico do autor, como na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, bem
como as possibilidades de aplicação de seu método fenomenológico para análise do fenômeno
religioso na atualidade.
Para tanto, a pesquisa será dividida em três capítulos: No primeiro, A recepção da
fenomenologia no pensamento teológico de Paul Tillich, o objetivo será analisar como se deu
a recepção da fenomenologia no pensamento do autor. De acordo com ele, os anos de guerra
deixaram marcas profundas em sua vida e pensamento. É neste contexto que Tillich assume
uma postura revisionista em relação ao seu período anterior e estabelece importantes diálogos
com a escola fenomenológica. As primeiras expressões desse diálogo podem ser observadas em
cartas que o teólogo escreve durante os anos de 1917-1918 em que comenta sobre seu crescente
interesse pela fenomenologia.
O segundo capítulo, Os elementos intuitivo e crítico como epicentro da fenomenologia
crítica, apresenta-se em que consiste a fenomenologia crítica do autor partindo de uma análise
dos elementos basilares que constituem o método, a saber: os elementos intuitivo e crítico. O
teólogo se apropria do método fenomenológico, mas afirma que falta a este método um
elemento crítico, que valorize os aspectos concretos e existenciais da experiência religiosa.
Dessa forma Tillich propõe unir o elemento intuitivo da escola fenomenológica com um
elemento crítico oriundo do pensamento kantiano.
16
O terceiro capítulo, Implicações e aplicabilidade da fenomenologia de Paul Tillich,
analisa quais foram as implicações da fenomenologia para o pensamento do autor e de que
maneira a fenomenologia crítica deste teólogo pode ser aplicada para análise do fenômeno
religioso na atualidade. A maneira em que Tillich aplica a noção de intencionalidade da
consciência na fundamentação de seu conceito de religião repercutiu em sua formulação dos
modos como religião e cultura se relacionam. Nesse sentido, quando a consciência se dirige
para a substância da forma, encontra-se o conceito de religião e quando a consciência se dirige
para as formas concretas de sentido encontra-se o conceito de cultura. Entretanto, forma e
substância não podem ser separadas, não faz sentido por uma sem a outra. A dinâmica interna
dos sentidos para o autor se dá necessariamente nessa relação.
Entende-se, portanto, que a possibilidade de aplicar a fenomenologia de Tillich de forma
prática passa necessariamente pela consideração da forma e substância. Dessa maneira, o
capítulo conclui apresentando as contribuições e possibilidade de aplicação do método
tillichiano para além de sua TS.
17
CAPÍTULO 1
A RECEPÇÃO DA FENOMENOLOGIA NO PENSAMENTO TEOLÓGICO DE
PAUL TILLICH
O objetivo deste primeiro capítulo, como referido inicialmente, é analisar como se deu
a recepção da fenomenologia no pensamento de Tillich. De acordo com ele, os anos de guerra
deixaram marcas profundas em sua vida e pensamento. É neste contexto que o autor assume
uma postura revisionista em relação ao seu período anterior e estabelece importantes diálogos
com a escola fenomenológica. As primeiras expressões desse diálogo podem ser observadas em
cartas que o teólogo escreve durante os anos de 1917 e 1918 em que comenta sobre seu
crescente interesse pela fenomenologia. Neste contexto, ele se apropria da noção de
intencionalidade da consciência de Edmund Husserl, e aplica este conceito na fundamentação
de seu conceito de religião. Dessa forma, os primeiros contatos de Tillich com a escola
fenomenológica acontecem principalmente através da teoria da intencionalidade e são
fundamentais para uma compreensão rigorosa do desenvolvido do seu próprio método
fenomenológico.
Para alcançar o objetivo proposto, o seguinte capítulo será construído em quatro passos.
O primeiro consiste em analisar os aspectos biográficos do período revisionista de Tillich, que
vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os últimos anos da década de 1920. Este passo
ajudará compreender os motivos que levaram o teólogo a assumir uma postura revisionista em
relação ao seu período inicial, e em torno de quais pressupostos teóricos essa revisão acontece.
O segundo passo estará voltado para a própria teoria da intencionalidade da consciência
de Edmund Husserl. Considerando que é em torno da teoria da intencionalidade da consciência
que os primeiros contatos de Tillich com a fenomenologia acontecem, compreender em que
consiste essa proposta teórica facilitará o entendimento de como o teólogo se aproximou dela.
O terceiro passo da pesquisa será analisar os contatos de Tillich com a fenomenologia,
e a apropriação que o teólogo faz da teoria da intencionalidade da consciência. Este item ajudará
entender como a fenomenologia foi recebida pelo autor e em que medida a teoria da
intencionalidade da consciência foi apropriada pelo teólogo na revisão de seu pensamento.
O quarto e último passo do capítulo visará entender a aplicação que Tillich faz da teoria
da intencionalidade da consciência na fundamentação de seu conceito de religião. Com este
passo será possível observar qual o papel que a teoria da intencionalidade da consciência
18
desempenha no pensamento do autor e quais foram as implicações de sua utilização para outros
aspectos do pensamento dele, como a formulação dos modos em que religião e cultura se
relacionam e a posterior elaboração de um método fenomenológico.
1.1 Época de guerras: o período revisionista de Paul Tillich
Conhecer a biografia e o percurso acadêmico de Paul Tillich, embora já bem
apresentadas em outras pesquisas2, é um passo importante para entender de forma mais rigorosa
as inquietações e pressupostos que fundamentam seu pensamento teológico e filosófico. Nesse
sentido, para cumprir com os objetivos propostos nesta primeira parte da pesquisa torna-se
necessário compreender alguns aspectos biográficos do período revisionista de Tillich e que
será também o contexto de seu encontro com a escola fenomenológica.3
Tillich (1886-1965) foi um pensador de fronteiras, com grande habilidade para lidar
com áreas diferentes do conhecimento sempre de maneira séria e profunda. Ele entendia que
para cumprir com as exigências de receptividade que o pensamento pressupõe diante das
possibilidades que se abrem na vida, estar na fronteira é o melhor dos lugares para adquirir
conhecimento, tanto que segundo ele, a fronteira poderia constituir um símbolo adequado para
toda a sua evolução pessoal e intelectual (TILLICH, 1967 [1936], p. 13).
2TILLICH, Paul. On the Boundary: an autobiographical sketch [1936]. London: Collins, 1967; TILLICH, Paul.
What Am I? in My search for Absolutes. New York: Simon and Shuster, 1967; TILLICH, Paul. My Travel Diary:
1936. Between two worlds. [1936]. New York: Harper & Row, 1970. PAUCK, Wilhelm; PAUCK, Marion. Paul
Tillich: His Life and Thought, vol. I, Life, New York: Harper and Row, 1976; - MUELLER, Ênio. Paul Tillich:
vida e obra, in MUELLER, Ênio R; BEIMS, Robert W. (org.). Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul
Tillich em perspective interdisciplinar. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005. CALVANI, Carlos E. B. Paul Tillich:
aspectos biográficos, referenciais teóricos e desafios teológicos, in MARASCHIN, Jaci (ed.). Paul Tillich: Trinta
anos depois. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 1995. RIBEIRO, Cláudio de
Oliveira. Teologia no plural: fragmentos biográficos de Paul Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, São Paulo,
v. 2, n. 3, p. 03-26, abr. 2003. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-
metodista/index.php/COR/article/view/1798/1783 > ; PARELLA, Frederik. Vida e espiritualidade no pensamento
de Paul Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 48-70, nov. 2004. Disponível em:
<https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/COR/article/view/1764/1750>.
3Christian Danz (DANZ, 2009, p. 173-188) propõe uma periodização do percurso acadêmico de Tillich em três
momentos. A recepção entusiástica do idealismo de Fichte e Schelling que marca profundamente seu período de
formação e se estende até o final da Primeira Guerra Mundial. Um segundo momento que começa no fim da
Primeira Guerra Mundial e vai até os últimos anos da década de vinte em que Tillich assume uma postura
revisionista em relação ao seu período anterior e passa a reformulá-lo na forma de uma nova teoria do sentido, e
posteriormente um período marcado por questões ontológicas, mas que conserva a teoria do sentido, que vai dos
anos vinte até a Teologia Sistemática.
19
Em sua autobiografia o autor menciona doze fronteiras e destaca uma em particular que
considera mais significativa, a saber, a fronteira entre teologia e filosofia. De acordo com ele,
é nesta fronteira onde se percebe com maior nitidez a situação fronteiriça a partir da qual ele
tenta explicar sua vida e pensamento (TILLICH, 1967 [1936], p. 46). Quando assumiu a cátedra
de Teologia Filosófica no Union Theological Seminary, nos Estados Unidos, o teólogo declarou
numa conferência que nenhum outro nome se aplicaria tão bem a ele quanto o de teologia
filosófica, e prosseguiu dizendo que a linha fronteiriça entre filosofia e teologia era o centro de
todo seu trabalho e de seu pensamento. Tillich diz que “como teólogo procurei continuar sendo
filósofo e como filósofo teólogo. Seria mais fácil abandonar a fronteira e escolher uma ou outra.
Mas interiormente este caminho foi impossível. Felizmente, as oportunidades exteriores
coincidiram com minhas inclinações internas”4 (TILLICH, 1967 [1936], p. 58, tradução
nossa)5.
Em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, passa a integrar o exército alemão
na condição de capelão, cargo que exercerá até o fim da guerra. Quando a guerra foi anunciada,
muitos jovens alemães movidos pelo fervor nacionalista se prontificaram para lutar, “Quando
os soldados alemães entraram na Primeira Guerra Mundial, a maioria deles compartilhavam a
crença popular em um Deus bom que faria tudo funcionar para o melhor”6 (TILLICH, 2005b
[1955], p. 52). Semelhantemente, o jovem teólogo aceitou o cargo de capelão com entusiasmo,
e assumiu o compromisso de lutar ao lado de outros soldados alemães. Entretanto, o autor
afirma que “Não tinham se passado nem as primeiras semanas para que meu entusiasmo inicial
desaparecesse. Depois de alguns meses, eu estava convencido de que a guerra seria por tempo
indefinido e arruinaria toda a Europa”7 (TILLICH, 1956 [1952], p. 12).
Durante a guerra, Tillich conduziu diversos momentos cúlticos sob as árvores, ou em
cavernas e em trincheiras, e cultivou boas amizades entre os soldados e oficiais alemães. O
período inicial da guerra foi marcado por uma atmosfera mais tensa, de espera e tédio, mas em
outubro de 1915 os exércitos alemães atacaram nas proximidades de Tahure, muitos oficiais e
4As a theologian I have tried to remain a philosopher, and vice versa. It would have been easier to abandon the
boundary and to choose one or the other. Inwardly this course was impossible for me. Fortunately, outward
opportunities matched my inward inclinations.
5Todas as traduções de textos em língua estrangeira para o português, salvo quando houver menção do contrário,
são nossas.
6When the German soldiers went into the First World War most of them shared the popular belief in a nice God
who would make everything work out for the best
7 The first weeks had not passed before one’s original enthusiasm disappeared; after a few months I became
convinced that the war would last indefinitely and ruin all Europe.
20
inúmeros homens foram mortos e Tillich fazia o acompanhamento pastoral. Considerando esse
contexto, no final de novembro de 1916, o teólogo escreve uma carta para Maria Klein. O casal
Pauck, na obra Paul Tillich: His Life & Thought. Vol1: Life (1976, p. 51) a reproduz:
Tenho constantemente o sentimento mais imediato e muito forte de que não
estou mais vivo. Portanto, não levo a vida a sério. Encontrar alguém, tornar-
se alegre, reconhecer Deus, todas essas coisas são coisas da vida. Mas a
própria vida não é um chão confiável. [...] Prego quase exclusivamente "o
fim".... De vez em quando, supero todo o sofrimento, colando imagens em
livros e trabalhando cientificamente em um sistema de ciências8.
Durante a guerra, o teólogo conta que encontrou no mundo das artes um alívio para
aquele momento conturbado. A descoberta da pintura representou para ele uma experiência
crucial, mesmo as pobres reproduções que se podia encontrar nas livrarias militares,
possibilitaram um deleite que se tornou mais tarde num estudo sistemático da história da arte.
“Fruto deste estudo foi a experiência artística; lembro nitidamente meu primeiro encontro –
quase uma revelação – com um quadro de Botticelli, que teve lugar em Berlim durante minha
última licença”9 (TILLICH, 1967 [1936], p. 28). A partir de algumas reflexões de caráter
filosófico e teológico que seguiram estas experiências, o autor desenvolveu algumas categorias
fundamentais da filosofia da religião e da cultura, a saber: forma e substância.
O interesse de Tillich pela arte o aproximou bastante com a Igreja Católica Romana. De
acordo com o teólogo, o profundo impacto que a arte do cristianismo primitivo da Itália exerceu
sobre ele resultou numa crescente preferência pela antiga Igreja e as soluções que ela oferecia
aos problemas teológicos tais como Deus e o mundo, a Igreja e o Estado, e afirma também que,
o estudo da história eclesiástica, por intenso que tenha sido, jamais teria conseguido o que
conseguiram os mosaicos das antigas basílicas romanas (TILLICH, 1967 [1936], p. 29).
No início da guerra, Tillich era um jovem tímido, verdadeiramente um “inocente
sonhador”. Era um patriota alemão, orgulhoso e ansioso por lutar pelo seu país como muitos
jovens da época, mas “Quando retornou a Berlim quatro anos mais tarde, ele estava
completamente transformado. O monarquista tradicional torna-se um socialista religioso, o
8 I have constantly the most immediate and very strong feeling that I am no longer alive. Therefore I don’t take
life seriously. To find someone, to become joyful, to recognize God, all these things are things of life. But life
itself is not dependable ground [...] I preach almost exclusively “the end”… Now and then I overcome all the
suffering by pasting pictures into books and working scientifically on a system of the sciences.
9 And out of this study came the experience of art; I recall most vividly my first encounter – almost a revelation –
with a Botticelly painting in Berlin during my last furlough of the war.
21
crente cristão um pessimista cultural, e o menino puritano reprimido um ‘homem selvagem”10
(PAUCK. M e PAUCK. W, 1976, p. 41).
Os anos de guerra representam um momento de transformação na vida e pensamento do
autor, e, como descreveu o próprio teólogo, a Primeira Guerra Mundial foi o fim do seu período
de preparação (TILLICH, 1956 [1952], p. 12)11. A trágica experiência de guerra causou fortes
impactos em Tillich e foi decisiva para o rumo que sua carreira acadêmica iria tomar. Anos
mais tarde numa entrevista à revista Time, Tillich faz uma afirmação que se tornou célebre:
A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve
um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa a não ser caminhar
entre os feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos.
Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que
morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica rui em
pedaços. A convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência
do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência. [...] Lembro-
me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou
Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em
contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da
heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche,
‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo
morto12 (TILLICH, 1959, p. 47).
10 When he returned to Berlin four years later he was utterly transformed. The traditional monarchist had become
a religious socialist, the Christian believer a cultural pessimist, and the repressed puritanical boy a “wild man”
11 O período de preparação refere-se sobre tudo à formação do teólogo. Tillich ingressa à universidade em 1904.
Durantes os anos de formação, Tillich estudou teologia e filosofia em Berlim, Tübingen e Halle. Na universidade
de Halle Tillich teve contato com Martin Kahler e Fritz Medicus. O contato de Tillich com estes dois pensadores
será decisivo nas inclinações acadêmicas que seu pensamento terá neste período. Kahler era um professor de
teologia bastante popular na época e por quem Tillich entusiasmou-se fortemente, principalmente por suas
discussões sobre a ideia bíblico-luterana de justificação. Na filosofia, Tillich recebeu orientação do professor e
amigo Fritz Medicus (1876 – 1956) e por influência deste, dá início a intensos estudos sobre a filosofia de Fichte,
e em agosto de 1910, Tillich profere uma palestra inaugural na Universidade de Breslau intitulada “A Liberdade
como Princípio Filosófico em Fichte” (Die Freiheit als philosophisches Prinzip bei Fichte). Neste mesmo ano,
Tillich conclui seu doutorado em filosofia na Universidade de Breslau, defendendo a tese sobre “A construção da
história da religião na filosofia positiva de Schelling, seus pressupostos e princípios” (Die Religionsgeschichtliche
Konstruktion in Schellings Positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien). Em 1912 licenciou-se
em Teologia na Universidade de Halle sob a tese “Mística e consciência de culpa no desenvolvimento filosófico
de Schelling” (Mystik und Schuldbewusstsein in Schellings Philosophischer Entwicklung) e em 1915, nessa mesma
universidade, Tillich apresenta seu trabalho de livre-docência sobre “O conceito de sobrenatural, seu caráter
dialético e o princípio de identidade na teologia Sobrenaturalista antes de Schleiermacher” (Der Begriff des
Übernatürlichen, sein dialektischer Charakter und das Prinzip der Identität, dargestellt an der
supranaturalistischen Theologie vor Schleiermacher).
12But he real transformation happened at the Battle of Champagne in 1915. A night attack came, and all night long
I moved among the wounded and dying as they were brought in – many of them my close friends. All that horrible,
long night I walked along the rows of dying men, and much of my German classical philosophy broke down that
night – the belief that man could master cognitively the essence of his being, the belief in the identity of essence
and existence [...] I well remember sitting in the woods in France reading Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra, as
many other German soldiers did, in a continuous state of exaltation. This was the final liberation from heteronomy.
European nihilism carried Nietzsche’s prophetic word that ‘God is dead.’ Well, the traditional concept of God was
dead.
22
Diante da guerra, grande parte do otimismo presente na cultura europeia entrou em
colapso, juntamente com o tradicional conceito de Deus. Tillich havia encontrado a libertação
final deste conceito no dito profético de Nietzsche: não havia mais lugar para tal conceito diante
daquela realidade. De acordo com o teólogo “A consequência mais importante do símbolo da
morte de Deus é a queda do sistema de valores éticos em que se baseava a sociedade. [...] A
ideia quer dizer que morreu na consciência do homem a ideia tradicional do absoluto ou
supremo” (TILLICH, 2010, p. 209). O autor (1967 [1936], p. 56) comenta que ficou
entusiasmado com a filosofia da vida de Nietzsche, pois sua afirmação extática da existência o
atraiu novamente à paixão pela vida. A ideia do Deus que faria tudo dar certo perdeu seu poder
e precisa ser substituída. Pauck e Pauck (1976, p. 54) relatam outra carta de Tillich, para Maria
Klein, de dezembro de 1917, onde ele escreve: “Há muito tempo que venho ao paradoxo da fé
sem Deus, ao levar a ideia de justificação pela fé à sua conclusão lógica13”.
Os quatro anos de guerra, relata o teólogo, “revelaram, como aconteceu com toda minha
geração, um abismo na existência humana que não podia ser ignorado”14 (TILLICH, 1967
[1936], p. 52). O autor afirma que “A Primeira Guerra Mundial teve consequências desastrosas
para o pensamento idealista em geral. Também a filosofia de Schelling resultou afetada pela
catástrofe”15 (TILLICH, 1967 [1936], p. 52). Em meio a este caos, o teólogo assume uma
postura revisionista em relação a seu período de preparação e dá início a um novo momento em
seu percurso acadêmico.
Tillich assume uma postura de revisão dos fundamentos de sua teologia e filosofia e
como o próprio teólogo afirma, este processo aconteceu “[...] em um diálogo crítico com o
neokantismo, a filosofia do valor e a fenomenologia”16 (TILLICH, 1967 [1936], p. 53). A
presença da fenomenologia no pensamento do autor após este período se torna evidente. Tillich
comenta numa carta para Emanuel Hirsch em 1917 que estava lidando “energicamente com a
filosofia moderna”17 (TILLICH, 1983 [1917], 98-99), e afirma que “De forma mais energética
possível me dediquei à lógica, a Husserl, Lotze, Sigwart, Windelband e Lask. Como nova
13I have long since come to the paradox of faith without God, by thinking through the idea of justification by faith
to its logical conclusion.
14revealed to me and to my entire generation an abyss in human existence that could not be ignored.
15 World War I was disastrous for idealistic thought in general. Schelling’s philosophy was also affected by this
catastrophe.
16[...] in critical dialogue with neo-Kantianism, the philosophy of value, and phenomenology.
17 habe die moderne Philosophie energisch in Angriff genommen.
23
ciência eu conheci a estética nas obras volumosas de Hartmann, Lipps, etc”18 (TILLICH, 1983
[1917], p. 99).
De acordo com Danz (2009, p. 177), Tillich encontra-se, neste período, dialogando com
os principais representantes do debate contemporâneo sobre as teorias do sentido, e de maneira
especial com o neokantismo e a fenomenologia. É nesta atmosfera que a reformulação de seu
pensamento se constrói. Para Danz, esta fase demarca o momento em que Tillich começa a
desenvolver sua teoria idealista neokantiana do sentido, que irá constituir a estrutura conceitual
fundante não apenas de seu período intermediário como também de suas produções posteriores.
A categoria de sentido torna-se, portanto, um elemento característico deste período, e “A
influência da fenomenologia de Husserl no desenvolvimento da filosofia de consciência e
sentido de Tillich é, portanto, bastante notável”19 (ABREU, 2017, p. 10).
Para Tillich (1962 [1956], p. 74) “A fenomenologia veio a ser de importância decisiva
para a filosofia do século XX. Ela surgiu, como já indicamos anteriormente, dos Estudos
Lógicos de Husserl que apareceram na virada do século e que representaram uma verdadeira
mudança no movimento filosófico”20. Abreu afirma que na medida em que Tillich se apropria
das principais características da fenomenologia husserliana fica evidente que a filosofia de
Tillich “deve ser interpretada como uma construção sistemática entre a tradição idealista
neokantiana e a escola fenomenológica-psicológica de Husserl”21 (ABREU, 2017, p. 11).
O contato do teólogo com a fenomenologia de Husserl, durante os anos de guerra, se
tornou, portanto, um fator estruturante no processo de reformulação de seu pensamento. De
acordo com Thomas (2000), Husserl foi um dos filósofos que mais impressionou Tillich neste
momento de reformulação de seu pensamento. Da mesma forma, Thomas relata que no verão
antes da morte de Tillich, numa conversa que teve com o teólogo durante um ciclo de palestras
ministradas no Union Theological Seminary, Tillich “aplaudiu meu plano de começar com a
18 Am energischsten habe ich mich auf die Logik geworfen, Husserl, Lotze, Sigwart, Windelband, Lask. Als neue
Wissenschaft habe ich die Ästhetik kennen gelernt in dicken Banden von Hartmann, Lipps etc.
19 The influence of Husserl’s phenomenology in the development of Tillich’s philosophy of consciousness and
meaning is, thus, quite remarkable
20 Phenomenology came to be of decisive importance for the philosophy of the twentieth century. It arose, as we
have previously indicated, out of Husserl’s Logical Studies which appeared at the turn of the century and which
represented a real turn in the philosophical movement.
21 is to be interpreted as a systematic building standing between the idealist-neo-Kantian tradition and the
Husserlian phenomenological-psychological school
24
fenomenologia de Husserl, descrevendo-se como parte de uma geração de pensadores salvas
por Husserl do naturalismo”22 (THOMAS, 2000, p. 51).
Ao retornar da guerra, o teólogo se depara com um contexto que ele mesmo descreve
como um “caos criativo”. Nos anos que se seguiram, Tillich se torna Privatdozent na
Universidade de Berlim (1919 a 1924) e lecionou sobre assuntos que incluíram a relação da
religião com a política, arte, filosofia, psicologia e sociologia. Além dos grandes avanços
teóricos, uma vasta quantidade de material acadêmico é produzido neste momento, de acordo
com Tillich (1956 [1952], p. 13) “A situação durante esses anos em Berlim foi muito favorável
para tal empreendimento”23. Os anos de 1919 a 1933 foram os anos em que o autor produziu
praticamente todos os seus textos do período alemão. Muitos deles como “Ideias para uma
teologia da cultura” (1919), “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”
(1922), “Filosofia da Religião” (1925) entre outros, trazem menções explícitas à escola
fenomenológica e foram descritos por Tillich como “passos decisivos na minha estrada
cognitiva”24 (TILLICH, 1956 [1952], p. 15).
Esse período de reformulação marca, portanto, uma nova fase no pensamento teológico-
filosófico de Tillich, de modo que levá-lo em consideração é fundamental para uma
compreensão rigorosa de sua produção intelectual posterior. Embora este período como um
todo mereça ser cuidadosamente analisado, o importante para os objetivos desta pesquisa é o
contato de Tillich com as ideias de Husserl e a escola fenomenológica, mas sem com isso
obliterar o escopo maior de seu período revisionista.
1.2. A teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl
Para Husserl (2006, p. 189) a intencionalidade é um tema fenomenológico capital, pois
“Ela é uma peculiaridade da essência da esfera dos vividos em geral, visto que de alguma
maneira todos os vividos participam da intencionalidade”. Husserl (2006, p. 190) afirma
também que “a intencionalidade é aquilo que caracteriza a consciência em sentido forte, e que
22 He applauded my plan of beginning with Husserl’s phenomenology, describing himself as one of a generation
of thinkers saved by Husserl from naturalism.
23 The situation during these years in Berlin was very favorable for such an enterprise.
24 These were decisive steps on my cognitive road.
25
justifica ao mesmo tempo designar todo o fluxo de vivido como fluxo de consciência e como
unidade de uma única consciência”. Para Husserl, toda consciência é consciência de alguma
coisa, e por conta disso, a consciência é necessariamente intencional, ou seja, o ser humano
sempre tem consciência de alguma coisa do mundo que se apresenta a sua consciência
fenomenicamente.
Dessa forma, todo estado de consciência em geral é, em si mesmo, consciência
de alguma coisa, qualquer que seja a existência real desse objeto e seja qual
for a abstenção que eu faça, na atitude transcendental que é minha, da posição
dessa existência e de todos os atos da atitude natural. Em consequência, será
necessário ampliar o conteúdo do ego cogito transcendental, acrescentar-lhe
um novo elemento e dizer que todo cogito, ou ainda todo estado de
consciência, “assume” algo, e que ele carrega em si mesmo como “assumido”
(como objeto de uma intenção) seu cogitatum respectivo. Cada cogito, de
resto, o faz à sua maneira (HUSSERL, 2001, p. 50-51).
A fenomenologia se volta para a intencionalidade da consciência como uma “visada”
de sentido. O vivido, como esta consciência dotada de sentido, de acordo com o filósofo, pode
ser tanto o percebido, sentido como recordado, pois a intencionalidade da consciência é uma
“propriedade dos vividos de ‘ser consciência de algo’” (HUSSERL, 2006, p. 190). Este “algo”
ou alguma “coisa” de que se possa estar consciente, de acordo com Fink pode ser “qualquer
coisa que possa ser trazido à vista, seja algo real, um ideal, um horizonte, um sentido, uma
referência-de-sentido, o nada, etc.”25 (FINK, 1933, p. 330).
A intencionalidade da consciência, portanto não diz respeito somente aquilo que é
objetivamente encontrável no espaço objetivo, “[...] a consciência é o horizonte intranscendível
(sic) que transcende e contêm todas as partes, todas as subdivisões e todas as relações entre as
coisas...” (SEVERINO, 1987, p. 207). Para Husserl (2001, p. 60) a vida é um cogito universal,
que abrange sinteticamente todos os estados da consciência que possam surgir dessa vida, e que
possui o seu cogitatum universal, que por sua vez se encontram fundados de maneiras diferentes
em múltiplos cogitata particulares. A intencionalidade da consciência, como este “estar
direcionado para”, se refere, portanto, a esta ligação que o ser humano tem com o mundo, com
a vida, ligação esta que é inalienável, porque o ser humano sempre está voltado para algo,
direcionado para o mundo numa relação que é infatigavelmente posta.
O mundo nesse sentido funciona sempre como um solo, como uma presença inalienável.
O contato com o mundo coloca o ser humano diante de muitas experiências fenomênicas, ou
25alles und jedes, was an ihm selbst zu Gesicht gebracht wird, sei es ein Reales, ein Ideales, ein Horizont, ein Sinn,
eine Sinnesverweisung, das Nichts usw.
26
seja, a consciência é presenteada com aparições das mais diversas ordens, que se constituem
como fenômeno exatamente porque aparecem à consciência numa relação intencional.
Entretanto, “Deve-se observar que não se está falando aqui de uma referência entre um evento
psicológico qualquer – chamado vivido – e uma outra existencial real – chamada objeto, ou de
um vínculo psicológico entre um e outro que se daria na efetividade objetiva” (HUSSERL,
2006, p. 89, grifo do autor).
Para a fenomenologia husserliana, não é possível a existência de um pensamento que
não esteja relacionado com o objeto do qual se pensa. É neste relacionar-se dos objetos com as
pessoas que se torna possível a constituição do “eu”. É nessa relação com o mundo que se
constitui um jeito de viver ou um modo de habitar, pois tudo que existe está nessa relação
consciência-objeto. Este mundo se constitui, no solo das possibilidades das percepções
humanas e de construção de sentido de mundo, este é, portanto, o mundo da vida26, um mundo
que é construção da experiência humana e que só às pessoas faz sentido.
Este mundo é, portanto, a fonte de consciência que é uma consciência voltada,
decorrente, que está necessariamente ligada ao mundo. Nesse sentido, o ser e o mundo não são
coisas que se podem separar, pois tudo que existe se dá nessa relação, nessa unidade entre o ser
e o fenômeno. O fenômeno só se constitui propriamente fenômeno diante do ser humano, é a
partir dessa relação que o ser humano estabelece com o mundo é que se pode falar em
fenômeno. Existe, portanto, um solo do mundo vivido e só há sentido em falar de fenômeno
diante da consciência27.
26 O conceito de mundo da vida (Lebenswelt) aparece na última fase do pensamento de Husserl, depois de 1930.
Uma das principais expressões dessa fase são os escritos da crise em que o conceito de mundo da vida é posto em
oposição ao mundo das ciências. De acordo com Husserl (2012) a ciência objetivista incorreu no erro de tomar o
“mundo objetivo” como sendo o universo de todo o existente, desconsiderando com isso, que a subjetividade
criadora da ciência não pode ter seu lugar legítimo em ciência objetiva alguma. “Mas o investigador da natureza
não se dá conta de que o fundamento permanece de seu trabalho mental, subjetivo, e o mundo circundante
(Lebensumwelt) vital, que constantemente é pressuposto como base, como o terreno da atividade, sobre o qual suas
perguntas e seus métodos de pensar adquirem um sentido” (HUSSERL, 2012, p. 86). Comentando sobre esta fase
Josgrilberg afirma que a Krisis é uma obra que se propõe a desdobrar a questão da historicidade transcendental do
sentido e sua permanência na história como tradição e linguagem. Esta fase apresenta uma nova forma de fazer
fenomenologia que retoma as outras fases em um novo contexto, o arsenal da fenomenologia é transferido em
bloco para o centro do mundo vivido. “O próprio mundo vivido carrega com ele a transcendentalidade constitutiva
em forma de expressividade linguística, historicidade, corporeidade, alteridade, intersubjetividade, etc. como
estrutura desse mundo. O que mudou foi a abordagem transcendental que sofre uma “encarnação” com a terra, a
sociedade, a história, a linguagem. [...] A vida histórica pode ser entendida (sem querer limitar a história a esse
aspecto) como história de formação do sentido; ou seja, como uma forma de encarnação linguística do significado
sem perder por isso sua dimensão transcendental e universal em relação ao Lebenswelt, que é o que garante para
Husserl a possibilidade de ciência” (JOSGRILBERG, 2002, p. 262).
27Vale lembrar que não se pode entender que a fenomenologia anunciada assim por Husserl, possa ser
compreendida como um fenomenismo, significando isso, aquela ideia de que só existe o que aparece a consciência,
27
Não há, portanto, consciência separada de mundo no sentido que lhe foi dado
especificamente em Descartes. Para o filósofo, “Infelizmente, é o que acontece com Descartes,
um resultado de uma confusão, que parece pouco importante, mas acaba sendo muito funesta,
e faz do ego como uma substantia cogitans separada, uma mens sive animus humano, ponto de
partida de raciocínios de causalidades” (HUSSERL, 2001, p. 42). A consciência nestas
circunstâncias fica numa posição radicalmente distinta em relação aos objetos, sendo ela
também, apenas uma “coisa que pensa”. Husserl nesse sentido vai além da dicotomia moderna
entre sujeito e objeto. Essa vinculação necessária entre sujeito e objeto permite compreender
que a consciência e aquilo que aparece à consciência estão estritamente inter-relacionadas por
meio da vivência.
No vivido a consciência sempre se volta ao seu objeto intencionalmente e a essência
deste vivido não se encontra nem no objeto nem na consciência, mas neste “entre” vivencial.
Dessa forma, para Husserl, o vivido intencional não acontece senão nessa relação sujeito-
objeto, transcendente-transcendental. O conhecimento, tal como concebido em grande parte
pela filosofia, perde seu caráter dualista no sentido de que a consciência que conhece e o objeto
conhecido são duas coisas que podem se dar de maneira separada. Husserl por outro lado, ainda
que entenda que um não pode ser tomado sem o outro, afirma que esta polarização apresenta
uma distinção fundamental para a intencionalidade, “qual seja, a distinção entre componentes
próprios dos vividos intencionais e seus correlatos intencionais, ou os componentes destes”
(HUSSERL, 2006, p. 203, grifo do autor). Toda vivência intencional, portanto, está constituída
por dois polos correlacionados que podem ser distinguidos entre noese e noema.
Para o filósofo, a noese, constitui o específico do nous (sentido), “que nos remete,
segundo todas as suas formas atuais de vida, a cogitationes e a vividos intencionais em geral
[...] que é pressuposição eidética da ideia de forma” (HUSSERL, 2006, p. 195, grifo do autor).
De acordo com o autor, todo o vivido intencional é vivido noético, e é de sua essência guardar
em si mesmo algo como um “sentido”, e, por vezes, um sentido múltiplo. “São exemplos de
tais momentos noéticos: os direcionamentos do olhar do eu puro para o objeto ‘visado’ por ele
em virtude da doação de sentido, para aquele objeto que ‘não lhe sai do sentido’ (HUSSERL,
pois essa é uma radicalidade que talvez se aproximaria ao cartesianismo quando defende a ideia de que a rigor só
existe o que é pensado. Para Husserl, a fenomenologia como estudo destes fenômenos que se apresentam a
consciência tem por finalidade estudar, compreender, o que ele chama de vivências da consciência, ou os sentidos
das vivências da consciência
28
2006, p. 203). A noese dessa forma se caracteriza pelo ato intencional de “visar” e fazer com
que a coisa “visada” cobre sentido, ou seja, trata-se do dar sentido a uma vivência.
Entretanto, toda vivência intencional por sua vez possui um sentido objetivo, isto é, um
componente real e intencional do vivido. A este polo o autor denominou noema, “[...] o campo
fundamental da fenomenologia” (HUSSERL, 2006, p. 118, grifo do autor). O noema é aquilo
que na coisa é “visado”, isto é, aquilo que na coisa se é consciente “exatamente assim como ele
está contido de maneira ‘imanente” no vivido de percepção, de julgamento, de prazer etc., isto
é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogamos puramente esse vivido mesmo (HUSSERL,
2006, p. 204). O noema, portanto é o objeto intencional, àquilo que é objetivado nos atos da
consciência e que aparece efetivamente e exatamente na maneira de se dar pela qual se tem
consciência dele na percepção. “Aos múltiplos dados do conteúdo real, noético, corresponde
uma multiplicidade de dados, mostráveis em intuição pura efetiva, num ‘conteúdo noemático’
correlativo ou, resumidamente, no ‘noema’” (HUSSERL, 2006, p. 203, grifo do autor).
Noese e noema estão correlacionados e compõem uma vivência, “Pois não há momento
noético algum sem um momento noemático que pertença especificamente, é o que reza a lei
eidética que pode ser comprovada onde quer que seja”. (HUSSERL, 2006, p. 214, grifo do
autor). O componente real do ato e seu correlato estão necessariamente relacionados entre si
pelo fato de que a vivência como tal pode sempre guardar um sentido. Noese e noema
constituem uma estrutura paralela correlacionada que permite conhecer tanto o objeto real como
o correlato de sentido, dessa forma, a partir da correlação destes polos é possível descrever as
sínteses de toda consciência, ou seja, afirmar a unidade entre cogitatio e cogitatum é afirmar a
constituição de uma unidade doadora de sentido instituída em toda intencionalidade.
A intencionalidade ao colocar o ser humano nessa vinculação permanente com o mundo
o coloca necessariamente neste movimento de noese e noema. O ser humano sempre está diante
de objetos que se apresentam a ele como desafios, como estímulos à suas experiências de
construir conhecimento, construção essa que dá aos objetos a condição de novos sentidos.
Quando se fala em mundo ou “mundo da vida”, usando uma terminologia husserliana, deve-se
entender por isso não o mundo da natureza, mas este mundo que é produto dessa experiência
intencional, ou seja, um mundo que decorre de um sentido que se dá a própria experiência de
viver no mundo. O mundo é, portanto, esta experiência de viver e que permite transformar-se
pelas pessoas.
29
A intencionalidade se fundamenta, portanto, na consciência que percebe alguma coisa e
o dota de sentido. “Tão-somente noutras palavras: ter sentido ou ‘estar com o sentido voltado
para’ algo é o caráter fundamental de toda consciência, que, por isso não é apenas vivido, mas
também vivido que tem sentido, vivido ‘noético’” (HUSSERL, 2006 p. 206-207). Toda
consciência intencional é, portanto, um “visar” algo, um orientar-se até a coisa.
De modo que quando se fala em intencionalidade, se fala de uma maneira, de uma
experiência de como os corpos sentem o mundo, de como as pessoas sentem o mundo. A
intencionalidade é dessa forma uma experiência de sentir o mundo. Posteriormente destaca-se
a direção, a intencionalidade enquanto possibilidade de dar sentido a própria presença no
mundo, isto é, de existir numa certa direção. A consciência enquanto aquilo que atribui sentido
às coisas aponta para o fato de que perceber o objeto, é percebê-lo dentro de uma experiência
que tem valor existencial. Portanto é a percepção das coisas da natureza, dos próprios objetos
criados pelos seres humanos com alguma finalidade, é a percepção dessas coisas dentro de uma
experiência de viver. E por fim, a cogitação, a interpretação é sempre intencional, está sempre
ligada ao mundo e decorre sempre de uma maneira de como se vê o mundo e o modo de como
isso orienta o rumo que se dá ao existir.
A intencionalidade é, portanto, essa ligação que faz que o mundo seja muito mais que
um lugar geográfico, ou pura e simplesmente “coisas da natureza”. Ele é uma organização de
um sentido intuído, construído, nesta relação dos corpos entre as pessoas, e este sentido não é
um falseamento ou distanciamento do mundo. Antes, este sentido é a própria realidade, um jeito
de ser que se apresenta como possível, até que novos sentidos sejam desenhados. Em outras
palavras, há uma consciência que se constitui como consciência porque está voltada ao mundo,
e o objeto é objeto porque é percebido como tal pela consciência. Dessa forma, a consciência
que é “sempre consciência de algo”, é também um testemunho da intencionalidade, e por
consequência, dessa inevitável ligação que se tem com o mundo.
Este é o mundo da vida, mundo que decorre das vivências intencionais, solo de intuição
da essência que permite dizer novas coisas sobre o mundo e de construir novos conhecimentos
sobre a realidade. Retornar as coisas mesmas é a condição permanente de se lembrar dessa
vinculação, entre esse trabalho que a consciência faz de elaborar significativamente,
existencialmente a aparição do mundo a ela, trata-se de uma tentativa de se colocar nessa trama,
sem pressupostos, de modo que se possa olhar a realidade como solo de possibilidade de novas
intuições.
30
1.3. Contatos com a escola fenomenológica e a apropriação da noção de
intencionalidade da consciência
1.3.1. Carta a Richard Wegener e os primeiros contatos com a escola
fenomenológica
Durante a época de guerra Tillich enfrentou sérios problemas de saúde de modo que em
agosto de 1917 outro capelão foi enviado para auxiliá-lo. O teólogo relata que desde então
dispôs de mais tempo para o trabalho científico e pode dedicar-se mais à revisão de seu próprio
pensamento. Em agosto de 1917, ele escreve uma carta para seu amigo Richard Wegener. No
início da carta, referindo-se a Husserl, Tillich diz:
Nessas três semanas eu o tive [trabalho científico] e aproveitei de manhã cedo
até tarde, de modo que já ontem eu consegui terminar o Husserl inteiro! Eu
aprendi muitas coisas através disso; primeiramente e antes de tudo a
profundidade total do meu não-saber (Nicht-Wissens) em relação aos
problemas e métodos e também os méritos verdadeiros da nossa filosofia28
(TILLICH, 1983 [1917], p. 90).
Na sequência, o autor afirma que essa postura de diálogo diante do pensamento atual
deve-se se esperar de todo teólogo e filósofo científico, e acrescenta ainda que “Uma coisa é o
conhecer, outra coisa é ser-dependente; e esta dependência, que se chama ‘estar no tempo’
certamente tem que ser exigida, já para que, com isto, torna-se entendido”29 (TILLICH, 1983
[1917], p. 90). De acordo com Neugebauer (2011, p. 39), Tillich se torna consciente, durante
os anos de guerra, das limitações e insuficiências de sua teoria para lidar com os discursos
científicos, culturais e espirituais de seu tempo, e nesse contexto, a fenomenologia de Husserl
foi por ele recebida de forma especial.
Ainda na carta, o teólogo destaca o fato de ter começado a aprender a entender o conceito
de filosofia científica, “É verdadeiramente ciência acadêmica e, até mesmo, no melhor sentido,
escolástica, a saber, esclarecimento de conceitos. Especialmente, isto se aplica aos
28In diesen drei Wochen habe ich sie gehabt und von früh bis spät ausgenutzt, so daß ich gestern schon mit dem
ganzen Husserl fertig wurde! Ich habe mancherlei dadurch gelernt; zuerst und vor allem die ganze Tiefe meines
Nicht-Wissens in Bezug auf die Probleme und Methoden und auch wirklichen Leistungen unserer Philosophie.
29Etwas anderes ist, es Kennen, etwas anderes, Abhängig-Sein; und diejenige Abhängigkeit, die man „Stehen in
der Zeit" nennt, ist doch wohl zu verlangen, schon damit man verstanden wird.
31
fenomenólogos, cujo trabalho inteiro se volta para o significado dos conceitos atuais”30
(TILLICH, 1983 [1917], p. 90). Na continuação da carta o teólogo comenta que a ciência muitas
vezes tende a se concentrar numa determinada área e com um método específico, e que mesmo
preservando certa criatividade, há sempre um recorte do mundo, “são pesquisas, assim, são
apenas teorias aplicadas; elas não contêm criação, mas meramente axiomas criados tornados
normativos de funções técnicas e espirituais31”32 (TILLICH, 1983 [1917], p. 90). Para o autor,
este olhar voltado apenas para um aspecto da realidade é possível, mas não precisa ser
necessariamente assim, diante disso o autor pergunta se a ciência “tem o direito de tratá-la de
forma diferente do que objetivantes, do que conjunto de fatos?”33 (TILLICH, 1983 [1917], p.
91).
Na parte final da carta Tillich faz algumas considerações sobre a teologia católica e a
dialética do protestantismo, demonstrado certo entusiasmo com ambos, e finaliza com um
pedido de alguns livros, entre eles, o livro de Husserl, embora este último Tillich diz que já
havia pedido o “terceiro volume de Husserl bem como sua fenomenologia diretamente para
Niemann”34 (TILLICH, 1983 [1917], p. 92). Isto permite deduzir que a fenomenologia de
Emund Husserl ainda estava no foco de suas pesquisas.
1.3.2. Carta a Emanuel Hirsch e os contornos gerais de uma teoria do sentido
absoluto (Urständliche) em diálogo com a fenomenologia
Alguns meses depois, em dezembro deste mesmo ano, o teólogo escreve outra carta para
seu amigo Emanuel Hirsch contando que havia voltado a trabalhar em agosto daquele ano e que
dispunha agora de um ambiente mais favorável para isto. Na carta, Tillich diz, em relação ao
seu pensamento, que nesta atmosfera “eu me tornei erudito novamente e me fechei
30Das ist wirklich Schulwissenschaft und sogar in bestem Sinne Scholastik, nämlich Begriffsklärung. Besonders
gilt das für die Phänomenologen, die ihre ganze Arbeit den „Bedeutungen" der aktuellen Begriffe zuwenden.
31Sempre que aparecer a palavra “espírito” (Geist) ou “espiritual” (geistig), provavelmente, refere-se a capacidade
intelectual do ser humano. “Geist” pode ser a “consciência pensante do ser humano” (denken des Bewusstsein des
Menschen), “espírito” ou “mentalidade”.
32Sind sie Forschung, so sind sie nur angewandte Theorie; sie enthalten keine neuen Schöpfungen, sondern
lediglich normativ gewendete Wesenssätze der technischen und geistigen Funktionen.
33Aber hat sie ein Recht dazu, sie anders als objektivierend, als Tatbestand, zu behandeln?
34Den dritten Band von Husserl sowie seine Phänomenologie habe ich bei Niemann direkt bestellt.
32
consideravelmente contra a guerra”35 (TILLICH, 1983 [1917], p. 99) de modo que foi possível
começar a partir de então a “preencher as grandes lacunas”36 (TILLICH, 1983 [1917], p. 98).
O autor faz referência ao seu “Sistema das Ciências” e afirma ter dado um início decisivo, a
literatura parecia agora mais clara, os caminhos mais nítidos e os principais problemas
compreensíveis. E na sequência ele afirma, “A coisa que o mais vividamente me interessa, é a
escola fenomenológica fundada por Husserl que encontrou em Scheler37 um partidário católico
e escolastizante. Temos todos os motivos para tê-la [a escola fenomenológica] em mira”38
(TILLICH, 1983 [1917], p. 99, grifo nosso).
Na mesma carta a Hirsch, Tillich falou de uma revisão na fundamentação de sua teologia
e filosofia da religião e da necessidade de ter que resolver um “problema central” em seu
pensamento: “Como aquela certeza, que constitui a essência da fé, é compatível com a dúvida
teórica? Ou: como podem ser superados os obstáculos de (para?) a função religiosa os quais
procedem da reflexão (do pensamento)?”39 (TILLICH, 1983 [1917], p. 99). O teólogo dedica
praticamente todo o restante da carta para discutir esta questão descrevendo elementos
argumentativos tanto de sua perspectiva quanto a de Emanuel Hirsch. Para o autor, a função
religiosa envolve um âmbito subjetivo e “Descrever este momento absoluto (urständliche)40
subjetivo da religião é, então, a tarefa mais importante da ciência da religião e da teologia”41
(TILLICH, 1983 [1917], p. 102). Na sequência ele afirma:
35Ich bin also seit August wieder „gelehrter“ geworden und habe mich innerlich weitgehend gegen den Krieg
abgeschlossen.
36meine größte Lücke auszufüllen.
37 Esta menção a Scheler chama atenção, pois posteriormente Tillich irá criticar a fenomenologia, entre outras
coisas, por possuir “tendências católicas conservadoras”. Tillich afirma: “Por sua vez, a fenomenologia carece do
elemento dinâmico e possui tendências de índole católico-conservadora, como se pode observar nas biografias de
alguns de seus adeptos” (TILLICH, 1967 [1936], p. 53). Embora fosse necessária uma pesquisa mais apurada
sobre o assunto, a impressão que se tem é que a crítica inclui também o filósofo Max Scheler.
38Am lebhaftesten interessiert mich die von Husserl begründete phänomenologische Schule, die in Scheler einen
katholischen und scholastisierenden Anhänger gefunden hat. Wir haben allen Anlaß, unser Augenmerk auf sie zu
richten.
39Wie ist mit dem theoretischen Zweifel diejenige Gewißheit vereinbar, die das Wesen des Glaubens ausmacht?
Oder: Wie können die aus dem Denken erwachsenden Hemmnisse der religiösen Funktion überwunden werden?
40O termo traduzido aqui como “absoluto” que aparece na carta como “urständliche”. A palavra se consagrou com
Schelling. Ständlich é “contínuo”, “permanente”. “Ur”, quando juntado a uma palavra, tem o sentido de algo
recente do passado. Por exemplo: “Christentum” significa “cristianismo”; “Urchristentum” significa “cristianismo
primitivo”. A impressão que se tem é que Schelling quer expressar um sentido de algo absoluto que é universal,
desde os povos mais antigos até hoje.
41Dieses subjektive urständliche Moment der Religion zu beschreiben, ist nun die wichtigste Aufgabe der
Religionswissenschaft und Theologie.
33
Isto contém, certamente, vários elementos, cada um podendo ser qualificado
de “absoluto”, como: consciência de infinidade, consciência de valor próprio,
consciência de uma ordem de mundo, consciência de dependência e liberdade,
consciência de totalidade, etc., cada um podendo ser qualificado de
“absoluto”. [...] Assim, a religião livre de ceticismo é pura competência que
dá à experiência geral uma coloração; mas não é uma vivência. Isto (que a
religião sem ceticismo seria uma vivência/experiência concreta) seria uma
contradição com o caráter de absoluto, mas [a religião sem ceticismo] é uma
coloração, um som, uma direção, uma forma, uma expressão, uma alma de
toda experiência (segundo a ideia). Com isto é dada, simultaneamente, sua
universalidade; isto, evidentemente não é verificável se cada indivíduo da
espécie humana (determinada esta última em termos das ciências naturais)
participe de dita determinação das suas vivências, se bem que apenas em grau
mínimo. Mas pode-se, sem hesitar, definir o ser humano, compreendido este
último como ser (dotado) de espírito, por meio desta determinação [se trata da
determinação da consciência do absoluto que se dá como uma coloração, um
som, etc. em todas as vivências]: a qualidade de ser um ser humano se inicia
com esta forma de vivência!42 (TILLICH, 1983 [1917], p. 102).
De acordo com o autor, é neste fundamento universal interior e exterior que surge então
a religião objetiva. O teólogo explica que nem todas as experiências contêm, de fato, a certeza
religiosa e que toda experiência especial impele à interpretação. Esta interpretação é por sua
vez a objetivação, ou seja, “E a experiência nunca se apresenta, supostamente, sem essa
interpretação ou objetivação. A objetivação tem diferentes níveis: mito, dogma, filosofia, auto-
observação [Selbstbetrachtung]43”44 (TILLICH, 1983 [1917], p. 102). Para Tillich (1983
[1917]) o primeiro nível é o mais profundo e em geral “insuprimível”45, e ligado a este, embora
separável, está o último. É a vida com uma determinação interior, o entendimento-de-si-mesmo
em relação a si, ao mundo e à eternidade. No segundo se baseia a igreja e no terceiro a igreja
chega ao acordo com a consciência teorética.
42Es enthält sicher mehrere Elemente, alle unter dem Exponenten „absolut", also etwa: Unendlichkeitsbewußtsein,
Eigenwertbewußtsein, Bewußtsein einer Wertordnung, Abhängigkeits- und Freiheitsbewußtsein,
Totalitätsbewußtsein etc., alles unter dem Exponenten „absolut". [...] So ist die skepsisfreie Religion eine reine
Zuständlichkeit, die dem gesamten Erleben eine Färbung gibt; sie ist also kein Erlebnis. Dies widerspräche der
Absolutheit, sondern eine Färbung, ein Klang, eine Richtung, eine Form, ein Ausdruck, eine Seele jedes
Erlebnisses (der Idee nach). Damit ist zugleich ihre Universalität gegeben; es ist natürlich nicht feststellbar, ob
jedes Individuum der naturwissenschaftlichen Species Mensch an dieser Bestimmtheit seiner Erlebnisse teilnimmt,
wenn auch nur im geringsten Grade. Aber man kann unbedenklich die Menschen als Geistwesen mit dieser
Bestimmtheit definieren: das Menschsein fängt mit dieser Erlebnisform an!
43 “Selbstbetrachtung” é emprestado da metodologia das ciências naturais, onde se observa o objeto a partir de
testes controlados.
44Und das Erlebnis tritt vermutlich nie ohne diese Deutung oder Objektivierung auf. Die Objektivierung hat
verschiedene Stufen: Mythos, Dogma, Philosophie, Selbstbetrachtung.
45Tillich usa o termo unaufhebbare, um termo hegeliano. Hegel usa o verbo aufheben no sentido de superar na
medida em que mantém algo anterior, sem descarta-lo, mas aprimorando-o.
34
Tillich termina a carta defendendo, “um verdadeiro universalismo do humano em
relação ao que diz respeito aos valores, um universalismo do espiritual em relação ao
ajustamento aos valores e um particularismo da personalidade perfeita”46 (TILLICH, 1983
[1917], p. 104). Para o teólogo, nestes três níveis a religião é em sentido absoluto (urständliche)
e de algum modo uma forma de objetivação. “Mas com estes três níveis os níveis de objetivação
não têm mesmo nada para fazer. Estes se direcionam, simplesmente, para a formação da
consciência cultural de círculos singulares ou maiores”47 (TILLICH, 1983 [1917], p. 104).
Neugebauer comenta que o problema de Tillich, portanto, está no fato de que as objetivações
religiosas que emergem sob a condicionalidade categorial da reflexão proporcionam o solo da
dúvida. Isso impossibilita responder a questão da certeza que constitui a essência da fé. Neste
ponto Tillich levanta a questão sobre como os objetos da consciência religiosa devem ser
fornecidos (NEUGEBAUER, 2011, p. 53). Com isso o teólogo encerra a carta pedindo ainda a
Emanuel Hirsch que faça críticas a opinião central na esperança de que não haja grandes
contradições entre sua opinião e a dele.
Em outra carta escrita em maio de 1918 a Emanuel Hirsch, Tillich afirma que “a vida
espiritual é a vida no sentido ou na incessante doação criativa de sentido”48 (TILLICH, 1983
[1918], p. 125). Esta sentença tillichiana apresenta as demarcações da teoria do sentido
desenvolvido durante seu período revisionista e de acordo com Neugebauer, ela sugere também
uma tentativa de solução do problema da objetivação a partir do conceito de sentido. Da mesma
forma, “A frase citada por último dificilmente permite compreender outra coisa a não ser o pano
de fundo da fenomenologia de Edmund Husserl, que até mesmo na dicção se aproxima”49
(NEUGEBAUER, 2011, p. 54).
De acordo com Neugebauer (2011, p. 49), na fenomenologia de Husserl, a referência da
consciência com um objeto é construída por meio do sentido. Husserl trabalha essa questão em
Ideen I, e especifica essa dinâmica em termos de Noese e Noema. Como afirma Husserl “Todo
noema tem um conteúdo, isto é, seu ‘sentido’, e se refere, por meio dele, a ‘seu’ objeto”
(HUSSERL, 2006, p. 287). Sendo assim, a consciência é dirigida por meio da intenção do
46Einen Universalismus des Menschlichen bezüglich der Wertbezogenheit überhaupt, einen Universalismus des
Geistigen bezüglich des Gerichtetseins auf die Werte, und einen Partikularismus des vollkommen Persönlichen.
47Mit diesen Stufen haben aber die Objektivationsstufen gar nichts zu tun. Diese richten sich lediglich nach der
Gestaltung des Kulturbewußtseins einzelner und größerer Kreise.
48Geistiges Leben ist Leben im Sinn oder unablässige schöpferische Sinngebung
49Der zuletzt zitierte Satz lässt sich kaum anders als vor dem Hintergrund der Phänomenologie Edmund Husserl
begreifbar machen, was bereits die Diktion nahe legt.
35
sentido a um objeto. O correlato da intencionalidade, isto é, o “de que” o ato tem consciência,
não é um objeto, mas sentido. A dimensão do sentido, por tanto, expressa o caráter básico de
toda consciência, como afirma o autor:
Tal como a percepção, todo vivido intencional possui – é justamente isto que
constitui o ponto fundamental da intencionalidade – seu ‘objeto intencional’,
isto é, seu sentido objetivo. Tão-somente noutras palavras: ter sentido ou ‘estar
com o sentido voltado para’ algo é o caráter fundamental de toda consciência,
que, por isso, não é apenas vivido, mas também vivido que tem sentido, vivido
‘noético’ (HUSSERL, 2006, p. 206-207, grifo do autor).
De acordo com Neugebauer (2011, p. 48), estes elementos ocupam um lugar de
centralidade na teoria da intencionalidade da consciência de Husserl. É, portanto, a partir desse
pano de fundo que se torna possível entender a assimilação do conceito de intencionalidade da
consciência no contexto da teoria do ato religioso em Tillich e em sua posterior formulação dos
modos como religião e cultura se relacionam.
1.3.3. O curso sobre filosofia da religião de 1920 e a apropriação do termo visar
(Meinen) como ato intencional da consciência
Em 1920 num curso sobre filosofia da religião ministrado em Berlim, Tillich fala dos
métodos utilizados para a determinação do conceito de religião. A sétima aula é dedicada para
falar do método fenomenológico e do método crítico, com uma crítica do último. Nesta aula o
teólogo faz referência explícita a escola fenomenológica, especialmente a Edmund Husserl, e
destaca o verbo Meinen, um termo que passa a ocupar um lugar importante em suas produções
acadêmicas.
Mas agora o que é para encontrar imediatamente na mente é o visar (das
Meinen), o ser direcionado a um sentido, a uma cor, a um sentimento, a um
objeto, a um conceito, a uma ideia. Pode-se, com isso, fazer-se ainda uma
diferenciação, [estar] atento ao próprio visar e ao que é visado. Husserl o
diferencia como noesis e noema, isto é: o ato mental e o objeto ao qual ele se
direciona. Há diferentes tipos de noeses, positivos, negativos, questionadores,
duvidosos e assim por diante e, ao mesmo tempo, diversos tipos de noemata,
que devem ser agrupados e representados, por exemplo: religião, moral
36
(Sittlichkeit),50 biologia, mecânica e assim por diante51 (TILLICH, 2001
[1920], p. 379).
De acordo com Heineman (2009, p. 33) o conceito “Meinen” 52 serviu como um termo
técnico para Tillich durante todo os anos 20. E é com base nestes elementos oriundos da escola
fenomenológica que o teólogo vai moldando sua teoria da consciência intencional ou noética
em relação à religião na vida humana, e como bem observou Neugebauer, nesta assimilação
“Tillich avista uma possibilidade de reagir ao problema de objetivação e, com isto, tomar conta
do ‘problema central’ de sua reflexão”53 (NEUGEBAUER, 2011, p. 55).
Embora a referência seja bastante rápida, com o objetivo específico de esclarecer um
conceito no contexto de uma aula, pode-se dizer que há uma indicação importante sobre o uso
que o autor começa a fazer de elementos da escola fenomenológica. Neugebauer afirma que a
menção explícita que Tillich faz da escola fenomenológica como a fonte de onde ele retira o
conceito de intencionalidade “indica inconfundivelmente que Tillich liga o conceito de fé ou o
conceito de consciência religiosa com a teoria da consciência intencional redigida por
50Sittlichkeit: o alemão tem a palavra Moral, moralische; contudo, Sitte significa hábito, costume, por isto
Sittlichkeit como “moral”.
51Was nun aber in der Seele unmittelbar zu finden ist, das ist das Meinen, das Gerichtetsein auf einen Sinn, auf
eine Farbe, ein Gefühl, einen Gegenstand, einen Begriff, eine Idee. Man kann dabei noch eine Unterscheidung
machen, man [wird] aufmerksam auf das Meinen selbst und auf das, was gemeint ist. Husserl unterscheidet es als
noesis und noema, das heißt: den geistigen Akt und den Gegenstand, auf den er sich richtet. Es gibt verschiedene
Arten der Noesen, positive, negative, fragende, zweifelnde und so weiter und zugleich 'viele Arten von Noemata,
die aber doch zu gruppieren und darzustellen sind, zum Beispiel Religion, Sittlichkeit, Biologie, Mechanik und so
weiter.
52 O verbo “Visar” (Meinen) presente nesta citação merece destaque por dois motivos: primeiro porque se trata de
um verbo de fundamental importância para a compreensão da fenomenologia em Husserl, tal como os termos
“sentido” e “significação”. De acordo com Husserl “Acabamos de dizer ‘visado’. Essa palavra se impõe aqui em
geral, assim como as palavras ‘sentido’ e ‘significação’. Ao visar ou intencionar corresponde então o visado, ao
significar, o significado” (HUSSERL, 2006, p. 219). Nesse sentido, a intencionalidade da consciência se dá através
de um visar, isto é, a consciência é intencional justamente por sempre visar, tender, para alguma coisa. De acordo
com Husserl “Em consequência, será necessário ampliar o conteúdo do ego cogito transcendental. Acrescentar-
lhe um novo elemento e dizer que todo cogito, ou ainda todo estado de consciência, ‘assume’ algo, e que ele
carrega em si mesmo, como ‘assumido’ (como objeto de uma intenção) seu cogitatum respectivo (HUSSERL,
2001, p. 50-51). Segundo porque o próprio Tillich em 1919 se utiliza desse mesmo termo (Meinen) para construir
sua definição de fé, mencionando de maneira explícita que o termo foi extraído da fenomenologia de Husserl.
Entretanto, não existe unanimidade sobre qual a melhor tradução para o termo, embora nesta citação a tradução
para meint seja “assume”, e gemeinten “assumido” (tradução de Frank de Oliveira) o presente trabalho julga ser
mais apropriada a tradução do verbo por “visar” e “visado”, tal como aparece em algumas traduções como as de
Diogo Ferrer (HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas: Primeiro Volume – Prolegómenos à Lógica Pura.
Trad. Diogo F. Ferrer. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014) e Márcio Suzuki (HUSSERL, Edmund. Ideias para
uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura.
Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006.)
53In dieser Verbindung erblickt Tillich eine Möglichkeit, auf das Objektivationsproblem zu reagieren und damit
dem „Zentralproblem“ seines Denkens Herr zu werden.
37
Husserl”54 (NEUGEBAUER, 2011, p. 54-55). Nesse contexto, o teólogo vê uma oportunidade
para responder aos problemas centrais de seu pensamento em relação à função religiosa assim
como consegue os elementos necessários para preencher suas “grandes lacunas” que se abriram
durante os anos de guerra. Dessa forma, “Durante a primeira Guerra Mundial, a mudança de
sentido teorético do conceito de mente torna-se dificilmente compreensível se não levar em
conta o conceito de consciência intencional de Husserl”55 (NEUGEBAUER, 2011, p. 39).
Tillich não apenas fez uso de alguns postulados da fenomenologia de Husserl, como
também desenvolveu uma versão própria do método. Embora a fenomenologia que esteja
presente em Tillich não seja a fenomenologia pura de Husserl, o teólogo se apropria da
fenomenologia husserliana de maneira crítica, e nesse sentido, o mais importante em Husserl
para Tillich é a teoria da intencionalidade e a intuição das essências.
Estes dois elementos tornam-se fundamentais no pensamento de Tillich e encontram-se
interligados, pois na medida em que Tillich se a apropriou da teoria da intencionalidade da
consciência para fundamentar seu conceito de religião, o teólogo também percebeu a
necessidade do método intuitivo-descritivo. Entretanto, a pesquisa irá se deter neste momento
somente à teoria da intencionalidade da consciência.
1.4. Aplicações da intencionalidade da consciência na fundamentação do
conceito de religião
1.4.1. A teoria do sentido em Tillich como pano de fundo de sua recepção da
fenomenologia
A recepção da fenomenologia, especialmente a de Edmund Husserl no pensamento de
Tillich pode ser percebida na medida em que o teólogo se apropria da noção de intencionalidade
da consciência para fundamentar seu próprio conceito de religião. A religião passa a ser descrita
neste momento como um direcionamento intencional da consciência subjetiva ao sentido
54Dieser Satz zeigt unverkennbar an, dass Tillich den Glaubensbegriff bzw. den Begriff des religiösen
Bewusstseins mit der Theorie des intentional verfassten Bewusstseins Husserls verknüpft.
55Die während des Ersten Weltkriegs vorgenommene sinntheoretische Wendung des Geistbegriffs lässt sich kaum
unter Absehung von Husserl Theorie des intentionalen Bewusstseins begreiflich machen.
38
incondicional da realidade, isto é, um “direcionamento intencional ao Incondicional”56
(TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor). Esta experiência adquire o caráter de ser uma
experiência fundamental, anterior a todo conceito, símbolo ou palavras, e é sobre esta base que
o autor fundamenta seu conceito de religião. Dessa forma, para uma compreensão e valorização
da fenomenologia em Tillich e de como ela aparece em seus escritos, a teoria da
intencionalidade da consciência torna-se um aspecto elementar a ser considerado para uma
compreensão rigorosa da fenomenologia em seu pensamento.
A teoria da intencionalidade do ato da consciência será aplicada por Tillich num
primeiro momento para fundamentar seu próprio conceito de religião, entendido desde então,
não como uma esfera entre outra, mas como um sentido incondicional57. A teoria da
intencionalidade da consciência não é única ferramenta tomada por ele na fundamentação do
conceito de religião. Ela desempenha um papel importante, mas encontra-se entrelaçada com
outros pressupostos teóricos assimilados pelo teólogo nesse período, como é caso da teoria
neokantiana do sentido. De acordo com Neugebauer, “a compreensão de Tillich da consciência
religiosa intencional se liga com o conceito de funções da mente, que ele já usa antes da
Primeira Guerra Mundial e que não foi recebido de Schelling”58 (NEUGEBAUER, 2011, p. 62)
mas da escola kantiana. Sendo assim, embora o foco esteja na teoria da intencionalidade, outros
aspectos relacionados a ela também devem ser considerados. Danz (2009, p. 179) comenta que
a ideia de religião como sentido incondicional é fundamental no pensamento de Tillich por ter
sido desenvolvida como uma solução para o problema contemporâneo sobre a relação entre
religião e cultura. A partir dessa perspectiva, Tillich faz uma crítica as concepções
56 “Religion is directedness toward the Unconditional” no original em alemão é “Religion ist Richtung auf das
Unbedingte” (TILLICH, 1987b [1925], p. 134). O termo Richtung é traduzido aqui como direcionamento ou
direção, mas como Tillich provavelmente está usando o termo no mesmo sentido que Husserl, a ideia então é de
“direcionamento intencional”. Nesse caso, o direcionamento ao incondicional é, sobre tudo, um direcionamento
intencional ao incondicional.
57 De acordo com Tillich “O termo ‘incondicionado’, ou a substantivação ‘o incondicional’, [...] Não se trata de
um ser, mas de uma qualidade. Caracteriza nossa preocupação suprema e, consequentemente, incondicional, não
importando se a chamarmos de ‘Deus’, de ‘ser’, do ‘bem’, da ‘verdade’, ou de qualquer outro nome. Incorreríamos
em crasso erro se entendêssemos o incondicional como um ser cuja existência pudesse ser discutida. Só falará a
respeito da ‘existência do incondicional’ quem não entender o sentido do termo. Trata-se da qualidade
experimentada no encontro com a realidade, por exemplo, no caráter incondicional da voz da consciência, tanto
lógica quanto moral” (TILLICH, 1992a, p. 63). Torna-se importante destacar ainda a afirmação de Tillich de que
o incondicional não é um ser, ou um objeto no sentido do mundo real do objeto, mas um sentido incondicional
percebido pela consciência em seu encontro com a realidade. Como afirma Tillich “que, absolutamente, o
incondicional não é um objeto, mas um sentido” (daß das Unbedingte überhaupt kein Gegenstand ist, sondern ein
Sinn) (TILLICH, 2001 [1920], p. 312, grifo do autor).
58Wie wir gesehen haben, knüpft Tillichs Verständnis der intentional religiösen Bewusstseinsakte an den Begriff
der Geistfunktionen an, den er schon vor dem Ersten Weltkrieg verwendet und nicht von Schelling übernommen
hat.
39
transcendentais da religião, afirmando que o lugar da religião não deve ser procurado ao lado
de outras funções como a lógica, ética, estética, mas como algo presente em todos estes
domínios.
Ao tratar sobre a essência da religião, o teólogo começa sua reflexão fundamentando-
a sobre a base de uma teoria do sentido. De acordo com Tillich todo ato espiritual é um ato de
sentido e o espírito por sua vez “[...] é sempre o meio para a atualização do sentido (Sinnvolzug)
e aquilo que o espírito pretende é sempre uma conexão sistemática de sentido. O sentido é a
característica comum e a unidade última da esfera teórica e prática do espírito”59 (TILLICH,
1973 [1925], p. 56-57).
A partir deste horizonte, Tillich afirma que em toda consciência de sentido existem três
elementos. Primeiro, existe uma consciência da interconexão do sentido, em que cada sentido
subsiste e sem a qual não haveria sentido algum. Segundo, a consciência de um sentido
incondicional que está presente em cada sentido particular. Terceiro, a exigência sob a qual
subsiste cada sentido particular de “realizar o sentido incondicional”. O sentido incondicional,
dessa forma, perpassa todo o sentido particular presente nas expressões do espírito assim como
também é o fundamento para todo sentido particular. De acordo com o autor (1973 [1925], p.
57-58)
Mesmo a totalidade do sentido não é necessariamente plena de sentido, já que
poderia desaparecer, como qualquer sentido particular, no Abismo (Abgrund)
da falta de sentido, se a pressuposição de uma plenitude de sentido
incondicionada não estiver viva em cada ato de sentido. Esta
incondicionalidade de sentido é ela mesma, contudo, não um sentido, mas
melhor dizendo, o fundamento do sentido.60
O sentido incondicional está implícito à toda atividade da consciência, e dessa forma,
ele atua não apenas como o fundamento, mas também como o abismo61 de cada sentido
59[...] is always (the medium for) the actualization of meaning (Sinnvollzug), and the thing intended by the spirit is
a systematic interconnection of meaning. Meaning is the common characteristic and the ultimate unity of the
theoretical and the practical sphere of spirit, of scientific and aesthetic, of legal and social structures.
60 Even the totality of meaning need not be meaningful, but rather could disappear, like every particular meaning,
in the abyss (Abgrund) of meaninglessness, if the presupposition of an unconditioned meaningfulness were not
alive in every act of meaning. This unconditionality of meaning is itself, however, not a meaning, but rather is the
ground of meaning.
61 O caráter abismal da experiência religiosa é o que torna a revelação misteriosa, trata-se daquilo que não pode
ser esgotado por nenhuma criação nem pela totalidade delas e que representa, portanto, a dissolução de todo
sentido. Na infinita possibilidade de ser e de sentido cada forma particular de sentido está sob o “Não” do sentido
incondicionado, isto é, seu abismo, e somente por meio deste “Não” pode-se receber, ao mesmo tempo, o “Sim”
da significabilidade. Este elemento abismal, “[...] está sempre potencialmente presente, e podemos detectá-lo nas
experiências tanto cognitivas quanto comunitárias. É um elemento necessário da revelação. Sem ele, o mistério
não seria mistério. Sem o ‘eu estou perdido’ de Isaías em sua visão vocacional, não pode haver experiência de
40
particular, pois somente aquilo que é o abismo do sentido pode ser, ao mesmo tempo, seu
fundamento (TILLICH, 1973 [1925], p. 61). De acordo com Abreu, a noção de incondicional
traz para si o status de ser simultaneamente o fundamento e abismo de toda experiência de
sentido, a dimensão de profundidade e o objetivo da intencionalidade da consciência, e por
conta disso devem ser interpretadas estritamente dentro dos limites da auto-relação do espírito
em sua auto-certeza e reflexibilidade interior (ABREU, 2017, p. 23).
Dessa forma, o sentido incondicional é aquilo que dá sustentação a cada ato particular
do espírito humano, e nessa condição, ele atua na interconexão universal do sentido e pode ser
entendido também como a “substância de sentido”. Para o autor, a substância de sentido tem
em relação à forma de sentido o caráter de fundamento da totalidade de sentido, assim como
funciona em oposição em relação a forma, isto é, como exigência de uma realização
incondicional do sentido, uma exigência que só pode ser satisfeita pela inter-relação completa
ou perfeita de todos os sentidos, a forma incondicional. Sendo assim, esta substância é “[...] a
significância que que outorga a cada sentido particular sua realidade, significância e
essencialidade”62 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44). A plenitude do sentido só é possível,
portanto, por meio da completa ou perfeita conexão de todo sentido e nunca em um dos
elementos apenas.
1.4.2. O sentido incondicional como experiência religiosa imediata
Tendo isso em conta, Tillich descreve a experiência do incondicionado num primeiro
momento como sendo uma experiência básica sem conteúdo objetivo, isto é, “Os seres humanos
são imediatamente conscientes de algo incondicional que é o prius da separação e interação
entre sujeito e objeto, tanto teórica como praticamente” (TILLICH, 2009, p. 60, grifo do autor).
De acordo com o autor:
[...] qualquer conhecimento simbólico pressupõe alguma base de
conhecimento não-simbólico [...] O elemento não simbólico em todo
Deus (Is. 6.5). Sem a ‘noite escura da alma’, o místico não pode experienciar o mistério do fundamento”
(TILLICH, 2011, p. 123). Como fundamento, o mistério “manifesta-se na revelação efetiva. [...] Aparece como
poder de ser, vencendo o não-ser. Aparece como nossa preocupação última e se expressa em símbolos e mitos que
apontam para a profundidade da razão e seu mistério” (TILLICH, 2011, p. 123).
62[...] the meaningfulness that gives to every particular meaning its reality, significance, and essentiality.
41
conhecimento religioso é a experiência do incondicionado como limite,
fundamento e abismo de todo condicionado. Essa experiência é experiência-
limite da razão humana e, portanto, expressível em termos racionais-
negativos63 (TILLICH, 1987 [1940/1941], p. 273).
A experiência do incondicionado, por ser anterior a toda forma muito embora só possa
ser expresso por meio de formas, caracteriza-se então por ser uma experiência não simbólica e
imediata, ou seja, na experiência imediata do incondicional o ser humano “não possui trabalho
cognitivo algum, nenhum conteúdo do pensamento para ostentar”64 (TILLICH, 1992b [1924],
p. 90). Para o autor, o sentido incondicional percebido nesta experiência é apreendido por meio
do “eu”. “O eu é o meio da apreensão incondicional da realidade, e como meio participa da
certeza daquilo que medeia. Mas participa só enquanto meio, não é aquilo que suporta, mas sim
o que é suportado”65 (TILLICH, 1973 [1922] p. 138).
O “eu” de Tillich é descrito neste momento como possuindo uma dimensão reflexiva,
isto é, a consciência de si mesmo é um dado básico (o que é diferente de Heidegger, por
exemplo, em que a consciência é vazia e se preenche a partir de seu encontro com o mundo). O
teólogo entende que há uma consciência consistente, uma autoconsciência que não depende
realmente do mundo para se configurar, para se constituir, não se trata, portanto, de pura saída
de si mesmo ou de pura existência, há uma essência que continua prioritária em relação a
existência. Esta essência é, portanto, a essência do si mesmo, do self, do ego, do eu centrado.
Essa insistência no ego centrado, que se percebe em Tillich, é uma herança que o teólogo traz
do idealismo e que está presente também em Husserl, ou seja, a herança de um ego
transcendental, algo que não está presente na filosofia existencial.
O sentido do incondicional, portanto, participa da consciência como um elemento
constitutivo de todo sentido particular. Embora o próprio Tillich utilize a expressão
“experiência do incondicional”, não existe tal experiência estritamente falando como algo que
suceda de forma isolada. O incondicionado não é algo que existe fora do sujeito e que, portanto,
possa ser isoladamente buscado. O incondicional é antes um elemento constitutivo da
63 [...] any symbolic knowledge presupposes some basis of non-symbolic knowledge. [...] The non-symbolic
element in all religious knowledge is the experience of the Unconditioned as the boundary, ground, and abyss of
everything conditioned. This experience is the boundary-experience of human reason and therefore expressible in
negative-rational terms.
64Der Moment des Durchbruchs ist in Bezug auf Inhalte völlige indifferent. Der Mensch hat kein Werk des
Erkennens, keinen Gedankeninhalt vorzuweisen
65 The self is the medium of the unconditional apprehension of reality, and as medium it participates in the certainty
of that which it mediates. Still, it participates only as a medium; it is not that which upholds, but rather that which
is upheld.
42
experiência, a sua forma necessária, ou seja, o incondicionado está presente na experiência
espiritual do ser humano como uma demanda, como um elemento que a constitui.
Abreu (2017, p. 23) comenta que o incondicional deve ser entendido aqui como um
fundamento primordial constitutivo para auto-relação do espírito em sua relação com sigo
mesmo. Nesse sentido, o incondicional não existe como alguma coisa fora da autoconsciência,
pois trata-se de uma descrição da autoconsciência como tal. Tillich estaria formulando neste
momento uma nova descrição da autoconsciência em que seu status transcendental não pode
implicar em algo que se encontre fora do espírito humano. Dessa forma, o status transcendental
do incondicional como sentido da consciência intencional, bem como sua descrição como
fundamento e abismo de todo sentido, devem ser interpretados estritamente dentro dos limites
da auto-relação do espírito em sua auto-certeza e reflexibilidade interior.
Na auto-certeza do eu existem dois fatores: “A incondicionalidade de uma apreensão da
realidade que está além do sujeito e objeto, e a participação do eu subjetivo nesta realidade
incondicional em que repousa”66 (TILLICH, 1973 [1922], p. 138). Nesse sentido, o
incondicional estaria, portanto, nos fundamentos da relação circular do eu consigo mesmo e
representa, como afirma Abreu (2017, p. 25), a auto-certeza espiritual e a auto-relação
implicada nela. A realidade incondicional é dessa forma o meio para o “eu” experimentar sua
própria auto-certeza sendo, portanto inconcebível alguma auto-certeza além do fundamento
incondicional da realidade, como afirma o autor, “não existe consciência não religiosa em
substância, embora possa sim existir na intenção. Todo ato de auto-apreensão possui como
fundamento na realidade a relação com o Incondicional”67 (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).
Para o autor, o incondicional é dessa forma o fundamento sobre o qual se apoia todo
juízo teórico e a pressuposição de toda antítese possível do sujeito a objeto. Sendo assim, ele
expressa em forma paradoxal:
A certeza de Deus é a certeza do Incondicional que está contida e fundamenta
a auto-certeza do eu. A certeza com respeito a Deus é deste modo totalmente
independente de toda outra certeza presuposicional. Tanto o eu como sua
66The unconditionality of an apprehension of reality that lies beyond subject and object, and the participation of
the subjective self in this unconditional reality which supports it.
67 There is no consciousness unreligious in substance, though it can certainly be son in intention. Every act of self-
apprehension contains, as its foundation within reality, the relation to the Unconditional
43
religião se subordinam ao Incondicional; eles se tornam possíveis graças ao
Incondicional68 (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).
Ainda de forma paradoxal pode-se dizer que Deus é revelado ao ser humano antes
mesmo de qualquer conhecimento sobre Deus. A consciência imediata do incondicional tem o
caráter de ser desta forma um elemento constitutivo na formação da autoconsciência. Em seu
texto “Justificação e Dúvida” (Rechtfertigung und Zweifel) de 1924 o teólogo chama esta
experiência de revelação fundamental (Grundoffenbarung)69, e afirma que nela “O divino é o
fundamento e o abismo do sentido, o princípio e o fim de todo o conteúdo possível”70
(TILLICH, 1992b [1924], p. 92). Na revelação fundamental, o incondicional não possui nome
ou forma, é anterior a toda mediação simbólica, e configura-se como “[...] o momento do
nascimento da religião em cada homem”71 (TILLICH, 1992b [1924], p. 92).
Para Tillich, a consciência imediata do incondicional descrita como irrupção da
revelação fundamental funda a base da religião no ser humano. Por ser caracteristicamente não-
simbólica, a revelação fundamental é também “a base para cada irrupção em direção a uma
objetividade, em direção a um nome e uma forma”72 (TILLICH, 1992b [1924], p. 92). Toda
expressão simbólica da experiência religiosa encontra-se dessa forma fundamentada na
revelação fundamental e imediata do incondicionado. Schüßler comenta que esta forma
imediata de apreensão do incondicional descrita por Tillich como revelação fundamental
apresenta a base de toda possibilidade de apreensão simbólica do divino, isto é, “a apreensão
simbólica do divino está fundamentada num agarrar imediato do divino que recebemos dentro
da revelação fundamental”73 (SCHÜßLER, 1987, p. 161).
Entretanto, Schüßler (1987, p. 162) chama atenção para o fato de que esta revelação
fundamental num sentido mais amplo, não pode ser confundida com aquilo que Tillich chama
68 God-certainty is the certainty of the Unconditional contained in and grounding the self-certainty of the ego.
Certainty of God is in this way utterly independent of any other presuppositional certainty. Both the self and its
religion are subordinated to the Unconditional; they first become possible through the Unconditional.
69Schüßler comenta que quando se trata de Paul Tillich não se pode fazer a distinção entre teólogo ou filósofo, “O
que Tillich diz como teólogo, ele também pode dizer como filósofo e vice-versa, embora os termos especiais
estejam mudando [...]. Em um contexto filosófico, não encontramos o termo Grundoffenbarung. Este é um termo
religioso ou teológico especial. Mas nos escritos filosóficos de Tillich, encontramos a apreensão imediata do
incondicional que é dada pela Grundoffenbarung. (SCHÜßLER, 1987, p. 163).
70Das Göttliche ist der Sinnabgrund und-grund, das Ende und der Anfang jedes möglichen Inhaltes.
71[...] es ist die Geburtsstunde der Religion in jedem Menschen,
72die die Basis für jeden Durchbruch zur Objektivität, zu Name und Form sein muß.
73Symbolical apprehension of the divine is based on an immediate grasping of the divine which we receive within
the Grundoffenbarung.
44
de revelação (Offenbarung)74 num sentido mais estrito, pois enquanto a primeira diz respeito
ao início da revelação que se dá de maneira imediata e não simbólica, a segunda diz respeito a
uma experiência que acontece através das formas concretas posta pelo espirito humano, e
portanto, mediada simbolicamente. Enquanto a revelação fundamental encontra-se na formação
da autoconsciência, a revelação pressupõe tal estrutura reflexiva da consciência para dirigir-se
em direção ao sentido incondicionado. Sem esta distinção, Tillich não poderia comparar a
revelação fundamental ao “princípio da identidade” (Das Prinzip der Identität)75 como faz,
muito embora tal distinção só pode ser feita abstratamente, já que tanto a revelação fundamental
como a revelação encontram-se interligadas. Ou seja, a revelação fundamental é um elemento
constitutivo da revelação, sem a qual não haveria revelação, mas que se manifesta plenamente
na estrutura reflexiva do ato da consciência.
É possível perceber, portanto, como afirma Abreu (2017, p. 25-26), que o incondicional
é entendido como uma nova descrição da autoconsciência, como determinação do fundamento
do espírito e, portanto, como o meio de toda auto-certeza e conhecimento. O condicionado é o
meio no qual e através do qual o incondicional poder ser captado, a este meio como bem
descreveu Tillich (1973 [1922], p. 138) pertence o sujeito que o percebe como o lugar onde o
incondicional se manifesta dentro do condicionado.
É nesse sentido que o teólogo afirma também que o incondicional pode ser um
pressuposto absoluto, mas nunca um objeto de uma teoria. Embora o sentido incondicional não
seja um objeto, mas o pressuposto de todo juízo teórico, a necessidade de referir-se a ele faz
com que surja um paradoxo necessário, ou seja, “Este ponto é aquele onde o incondicional se
transforma em objeto”76 (TILLICH, 1973 [1922], p. 122). O fato de que se transforme em objeto
é por si mesmo o paradoxo primordial pois não é possível falar do incondicional sem ao menos
torna-lo um objeto (TILLICH, 1973 [1922], p. 141).
Toda afirmação a respeito do incondicional tem por tanto, necessariamente a forma de
um paradoxo. A consciência imediata do sentido incondicional é dessa forma uma experiência
74 De acordo com Tillich, “A revelação (Offenbarung) é a irrupção do Incondicional (Durchbruch des
Unbedingten) no condicional. Não é nem a realização nem a destruição das formas condicionadas, mas sua
comoção e inversão” (2005a [1925/1927], p. 19).
75 “O princípio da identidade é legalmente lógico (logisch gesetzliche) e, nisto, formulação não credível do
paradoxo que está presente na compreensão credível da revelação básica (Grundoffenbarung vorliegt)” (TILLICH,
1992b [1924], p. 93).
76the point at which the Unconditional becomes an Object.
45
básica sem conteúdo objetivo, mas que mesmo sendo anterior a todo conceito, coloca-se
também como descrição da religião, muito embora como afirma o autor “A religião sabe que
não é possível dar vida ao Incondicional na consciência apontando-o de maneira teórica. Porque
a teoria transforma o Incondicional em objeto, ou seja, precisamente naquilo que não é”77
(TILLICH, 1973 [1922], p. 140). Entretanto, é preciso reconhecer que toda atualidade existe
nas formas da objetividade, mas que dentro de toda atualidade existe algo incondicionalmente
real que pode ser percebido. Este incondicionalmente real não está definido pelas formas e não
possui existência, de modo que “Quando o espírito ele mesmo se dirige ao mundo de tal maneira
que traz à consciência o impulso de incondicionalidade que está implícito em todas as coisas,
está direcionado a Deus”78 (TILLICH, 1973 [1922], p. 140). Este poder do incondicional
presente em todo o condicional, de acordo com o teólogo, “[...] é aquilo que constitui o
fundamento sobre o qual se apoiam todas as coisas (Ding), a verdadeira raiz do seu ser, sua
absoluta seriedade, sua profundidade impenetrável e sua santidade”79 (TILLICH, 1973 [1922],
p. 140).
A apreensão imediata do incondicional dado na revelação fundamental como dito
anteriormente, é tanto a base e o início da religião como também o começo da própria linguagem
simbólica da religião que se constitui a partir da realidade condicional e existente. Para o autor,
tanto o eu como sua religião se subordinam ao incondicional (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).
Nesse sentido, o incondicional é tanto o fundamento da autoconsciência e de todo sentido
particular como também o “noema” ou “objeto” para o qual a consciência se volta em sua
intencionalidade por meio das formas condicionadas em busca de unidade.
Este ato de dirigir-se ao sentido incondicional caracteriza a experiência religiosa, nela o
ser humano visa o incondicional pela intencionalidade do ato da consciência. De acordo com
Tillich (1973 [1922], p. 142) a função da incondicionalidade está presente no espírito humano,
embora apenas paradoxalmente ela pode ser chamada assim. Nesta função o espírito irrompe
através de todas as formas e chega ao seu fundamento, isto é:
Fenomenologicamente falando, existe um tipo de ações que se origina a partir
de uma profundidade na qual se transcende o contraste entre uma ação e outra.
77Religion is aware that no theoretical pointing to the ground of all theory can make the Unconditional alive within
consciousness. For theory makes the Unconditional into an object, i.e., precisely what it is not.
78 Where the spirit directs itself upon the world and its contents in such a way that it brings to awareness the
impulse of unconditionality implicit in all things, there it is directed toward God.
79[...] is that which is the supporting ground in everything (Ding), its very root of being, its absolute seriousness,
its unfathomable depth, and its holiness.
46
Em consequência, as ações desta categoria só podem assumir um caráter
específico irrompendo na consciência. Entretanto, essencialmente não se trata
de outra coisa a não ser da relação com o Incondicional que é inerente a cada
ação80 (TILLICH, 1973 [1922], p. 142-143).
O sentido incondicional não é algo que pode ser localizado, portanto, como uma das
funções do espírito, mas como aquele sentido inerente a cada função particular e que se constitui
como o fundamento último e mais importante de todo sentido. Este sentido, portanto, encontra-
se pressuposto em cada experiência religiosa, ou seja, a consciência do incondicionado é
apresentada por Tillich como o elemento necessário e em virtude do qual a experiência pode
ser caracteriza como religiosa, de acordo com o teólogo, o incondicional “refere-se ao elemento
presente em qualquer experiência religiosa responsável pelo caráter religioso dessa
experiência” (TILLICH, 1992a, p. 63).
1.4.3. O conceito de religião como direcionamento intencional da consciência
A religião, como afirma o autor, é dessa forma, “intencionalidade dirigida ao sentido
incondicionado”81 (TILLICH, 1973 [1925], p. 78). Trata-se, portanto, de um direcionamento
da intencionalidade do ato da consciência em direção ao sentido incondicionado presente em
qualquer encontro com a realidade, seja num contexto estético, cognitivo, social, político, ou
inclusive religioso. Trata-se de uma experiência básica ou essencial em que o ser humano se
torna imediatamente consciente do incondicional. A religião é, portanto, a dimensão da
profundidade em todas as outras dimensões, ela se volta para os elementos supremos, infinitos
e incondicionados, é a preocupação suprema. Esta atitude encontra-se sempre fundamentada
numa orientação do espírito em direção ao sentido incondicional (TILLICH, 1973 [1925], p.
78).
Esta orientação do espírito em direção ao sentido incondicional, que caracteriza a
experiência religiosa, acontece como afirma o próprio Tillich, quando a consciência se dirige
intencionalmente em direção ao sentido incondicional. Dessa forma, nas palavras do autor, “Ele
80Phenomenologically expressed, there is a class of acts which originates out of a depth in which the contrast
between one act and another is transcended. Consequently, the acts of this category can only take on a specific
character by breaking into the medium of consciousness. Essentially, however, this is nothing other than the
relation to the Unconditional inherent in every act.
81directedness toward the unconditioned meaning-import.
47
[o sentido incondicional] não pode ser objetivado em algo, não pode ser dito, só pode ser visado
(gemeint). Quando se o disser, se terá que usar símbolos”82 (TILLICH, 1999a [1923], p. 337).
De acordo com o teólogo:
A atitude da fé religiosa pode ser esclarecida pelo conceito Meinen (visar) que
é utilizada pela escola fenomenológica. Cada conceito visa algo, tende para
algo, e esse (objeto) visado é algo totalmente diferente da representação83
através da qual ele é visado. Assim, o incondicionado é visado por meio de
representações condicionadas84 (TILLICH, 1999a [1924], p. 225).
De acordo com Neugebauer (2011, p. 56), Tillich coloca paralelamente o ato da fé e seu
conteúdo a outros atos da consciência, isto é, com a diferenciação entre Noese e Noema. O visar
(das Meinen) ou o apontar para aproveitam o caráter intencional da consciência. Este “algo”
visado (Gemeinte) coloca-se para a substância intencional do ato da consciência, que assim
como propõe Husserl, sempre se coloca como teor de substância de sentido correlativo à
consciência. Dessa forma, “A consciência religiosa e o Incondicional comportam-se entre si
como Noese e Noema”85 (NEUGEBAUER, 2011, p. 56). Ou seja, o incondicionado recebe o
status de Noema “[...] o campo fundamental da fenomenologia” (HUSSERL, 2006, p. 118, grifo
do autor). Na sequência, Neugebauer afirma que “Diante deste pano de fundo, o conceito de
incondicional não deve ser compreendido diferentemente do que sentido incondicional, e o
82Er kann nicht vergegenständlicht, nicht gesagt werden; er kann nur gemeint sein. Sagt man ihn, so muß man
Symbole verwenden.
83 O termo “representação” usado neste contexto não quer dizer que o incondicional está no símbolo ou que o
incondicional se identifica com o símbolo. O termo “Vorstellung“ traduzido aqui como representação vem do
verbo vorstellen que significa apresentar, representar, adivinhar. Nesse sentido vorstellen é uma representação e
não uma identificação. Na teologia da cultura o teólogo comenta que a função representativa é a primeira função
do símbolo, para o autor “O símbolo representa algo além dele, com o qual se relacionam e em cujo poder e sentido
participa” (2009, p. 100), por semelhança o teólogo também afirma que “Assim, podemos dizer que os símbolos
religiosos são símbolos sagrado. Participam na santidade do sagrado, segundo nossa definição básica. Participação,
no entanto, não é identificação: eles não são o sagrado. O transcendente absoluto está além de todos os símbolos
que o representam. Tais símbolos são tomados de diversos materiais dados pela experiência” (2009, p. 103). Este
esclarecimento torna-se importante pois no decorrer deste trabalho os fenômenos religiosos serão descritos como
modos simbólicos de representação. Dessa forma, é importante distinguir entre a forma de expressão do
incondicional que atua como meio através do qual o incondicional é representado e o próprio incondicional que
está além de qualquer possível representação objetiva. Um exemplo disso é símbolo de Deus, de acordo com o
teólogo, “Na palavra ‘Deus’ está contido, ao mesmo tempo, aquilo que de fato funciona como representação e
também a ideia de que é apenas uma representação. Tem a peculiaridade de transcender seu próprio conteúdo
conceitual [...] Deus como um objeto é uma representação da realidade, em última instância, referida no ato
religioso, mas na palavra ‘Deus’ essa objetividade é negada e, ao mesmo tempo, seu caráter representativo é
afirmado” (TILLICH, 1987 [1940/1941], p. 264).
84Klärend für dieses Verhalten des Glaubens ist der von der phänomenologischen Schule gebrauchte Begriff des
Meinens. Jeder Begriff meint etwas, zielt auf etwas hin, und dieses Gemeinte ist etwas ganz anderes als die
Vorstellung, durch die hindurch gemeint wird. So wird das Unbedingte gemeint durch bedingte Vorstellungen
hindurch.
85Das religiöse Bewusstsein und das Unbedingte verhalten sich zueinander wie Noesis und Noema.
48
sentido incondicional forma, para ele, um correlato intencional da consciência religiosa”86
(NEUGEBAUER, 2011, p. 56).
Nessa dinâmica, o direcionamento noético é universal, mas este universal somente se
concretiza no particular, no individual. A consciência intencional se volta para o sentido
incondicionado – que não possui nenhuma realidade objetiva – enquanto um noema jamais
alcançado, muito embora necessário para a busca contínua pela unidade da consciência, pois
como declara o teólogo, “[...] as funções significativas chegam a sua realização no sentido
somente ao manter a relação que lhes corresponde com o sentido incondicionado e que, por
tanto, a intenção religiosa é o pressuposto de uma satisfatória realização de sentido em todas as
funções”87 (TILLICH, 1973 [1925], p. 73). Nesse sentido, ele também afirma que o núcleo da
história é o desenvolvimento da consciência orientada em direção ao incondicional, é a história
da religião. Apenas na relação com o incondicional se experimenta e se forma o sentido
incondicionado da vida e do espírito (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 279). Dessa forma, o
teólogo atribui ao sentido incondicionado o caráter de ser intrínseco à vida consciente, e,
portanto, presente em todo o mundo da vida como um noema visado pela consciência.
O ato de visar o sentido religioso é empregado pelo autor de forma enérgica para
descrever com rigor a “essência do visar religioso”88 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 122,
grifo do autor) e torna-se um conceito fundamental na descrição da função religiosa. Dessa
forma, o autor afirma que “Ao demonstrar que a função religiosa é a função fundamentadora
do sentido, se dá, de maneira imediata uma prova da natureza e a verdade da religião e uma
indicação com respeito a ação religiosa e seu objeto”89 (TILLICH, 1973 [1925], p. 70). A
questão da verdade da religião para o autor “[...] é respondida por meio da apreensão metalógica
da natureza da religião como orientação em direção ao sentido incondicional”90 (TILLICH,
1973 [1925], p. 70-71).
86Der Begriff des Unbedingten ist vor diesem Hintergrund nicht anders zu begreifen als unbedingter Sinn, und der
unbedingte Sinn bildet für ihn ein intentionales Korrelat des religiösen Bewusstseins.
87[...] the meaning-functions come to the unconditioned meaning, and that therefore the religious intention is the
presupposition for successful meaning-fulfillment in all functions.
88Wesen des religiösen Meinens.
89 In the proof that the religious function is the grounding function of meaning, a proof of the nature and truth of
religion and an indication of the act and the object of the act are immediately given.
90 [...] is answered by the metalogical apprehension of the nature of religion as directedness toward the
unconditioned meaning.
49
Para o teólogo, não faz sentido perguntar para além disso, se o incondicional existe e se
a ação religiosa se dirige para algo real, pois a pergunta sobre o incondicional já pressupõe o
sentido incondicionado que é inerente a todo ato de conhecer. A “transcendência grita mais alto
do que o próprio ser e do que o próprio sentido, isto é, o incondicional. Pois não há nada mais
‘elevado’ além do ser e do sentido, mas apenas o que dá ao ser e ao sentido”91 (TILLICH, 1999b
[1927/1928], p. 125). O sentido leva o ser a sua realização espiritual, algo que se percebe no
fato de que toda ação está relacionada com o sentido incondicional que atua como abismo do
sentido. Para o autor, “Esta é a relação que está encerrada92 no ato religioso; esta é a essência
da transcendência incondicional – não deve ser um passo no vazio, mas no incondicional pleno.
Mas é o que visa (Meint) o ato religioso”93 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 125). A função
religiosa como sentido incondicional é, portanto, o fundamento de todo sentido e também o
alvo para onde a consciência se dirige em busca de sua unidade. Este é o objeto (paradoxalmente
falando) do visar religioso.
O incondicional está presente na experiência humana como uma demanda, isto é,
“Nenhuma forma pode ser compreendida sem a direção imediata ao Incondicional”94
(TILLICH, 1999a [1923], p. 342). A religião, portanto “[...] não é uma esfera de sentido ao lado
de outras, mas uma atitude em todas as esferas: a direção imediata ao Incondicional”95
(TILLICH, 1989 [1923], p. 209)96 e nesse sentido a experiência religiosa não é algo que possa
ser propositalmente experimentado. Quando a experiência do incondicionado é “buscada”, o
elemento religioso é colocado como uma função em conjunto com outras funções do espírito e
dessa forma a religião torna-se uma criação cultural ao lado de outras criações.
91Die Transzendenz überschreitet vielmehr das Sein selbst und den Sinn selbst, d.h. aber sie ist unbedingt. Denn
jenseits des Seins und des Sinnes gibt es nichts „Höheres“ mehr, sondern nur das, was dem Sein das Sein und dem
Sinn den Sinn gibt.
92 Tillich usa o verbo einschliessen [particípio eingeschlossen]. A ideia é de trancar uma porta à chave, mas também
tem o sentido de cercar e incluir. Parece que Tillich quer expressar que, assim como a chave na fechadura tranca
a porta, tal se dá no ato religioso: inclui e encerra [o ser ao ser, o sentido ao sentido].
93Dieses ist die Beziehung, die im religiösen Akt eingeschlossen ist; dieses ist das Wesen der unbedingten
Transzendenz — sofern sie nicht der Schritt ins Leere, sondern in das unbedingt Erfüllte sein soll. Das aber meint
der religiöse Akt.
94Keine Gestalt kann verstanden werden ohne die unmittelbare Richtung auf das Unbedingte.
95Keine Sinn-sphäre neben den anderen ist, sondern eine Haltung in allen Sphären: Die unmittelbare Richtung auf
das Unbedingte.
96Ver também: “Direção imediata a Deus (unmittelbare Richtung auf Gott)” (TILLICH, 2005a [1925/1927], p.
197); “Relação imediata do espírito ao que é incondicional (unmittelbare Beziehung des Geistes auf das
Unbedingt-Seiende)” (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 279)”.
50
Para Tillich (1999b [1927/1928], p. 125) o ato religioso não está ao lado ou acima de
outros atos espirituais, mas está presente em cada ato irrompendo e afirmando sua
condicionalidade. O incondicional é o objeto do ato religioso como ser-transcendência e
sentido–transcendência, assim, o próprio ato religioso não pode ter o caráter de um ato especial,
portanto, a religião não pode ser confundida nesse sentido como uma função entre outras, mas
como uma atitude presente em todas as funções. Não se trata apenas de uma função da vida, de
modo que não pode ficar restrita a ética, nem a função cognitiva, nem a estética, nem ao
sentimento, embora a religião esteja presente em todas estas dimensões.
Não há nenhum ato especial de incondicionalidade; mas cada ato do espírito
pode assumir a qualidade de se tornar um ato de incondicionalidade, isto é,
que tal ato, em que as características e especialidades do ato são,
simultaneamente, estabelecidas e transcendidas. Esta possibilidade é o que
torna o espírito espírito e que torna o ser humano ser humano,
simultaneamente, eleva o espírito sobre o espírito e o ser humano sobre o ser
humano. Este é o ponto em que a dignidade e indignidade do ser humano estão
em um. Não se pode falar a não ser de sua possibilidade. Falar sobre a sua
realidade significaria classificá-lo no contexto do espírito, na essência do ser
humano, e com isto [significaria] suspendê-lo. Talvez esta compreensão seja
a mais importante de toda a filosofia da religião97 (TILLICH, 1999b
[1927/1928], p. 125-126).
Entretanto, o autor discute o “problema da objetivação religiosa” e afirma que a
religião em seu sentido mais estreito, isto é, como uma criação cultural ao lados de outras não
é algo que deva ser descartada pois o “objeto visado (gemeinte) de cada ato religioso é o
Incondicional”98 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 129), o incondicional permanece como o
fundamento e abismo de sentido, como o “último visado (Letzt-Gemeinte)”, sempre
indiretamente por meios do conteúdo através do qual a experiência com o incondicional foi
possível. Este conteúdo adquire o status de símbolo religioso com o qual o ato religioso está
sempre relacionado. Como afirma o teólogo “Contanto que um ato religioso se direciona para
97Es gibt keinen besonderen Akt der Unbedingtheit; aber jeder Geistesakt kann die Qualität annehmen, ein „Akt
der Unbedingtheit" zu werden, d.h. ein solcher Akt, in dem die Eigentlichkeit, die Besonderung des Aktes zugleich
gesetzt und transcendiert wird. Diese Möglichkeit ist das, was den Geist zum Geist und den Menschen zum
Menschen macht und was zugleich den Geist über den Geist und den Menschen über den Menschen erhebt. Es ist
der Punkt, an dem Würde und Unwürdigkeit des Menschen in einem sind. Es ist nie mehr erlaubt, als von seiner
Möglichkeit zu sprechen. Von seiner Wirklichkeit zu reden, hieße ihn einzuordnen in den Zusammenhang des
Geistes, in das Wesen des Menschen, eben damit aber ihn aufheben. Diese Einsicht ist vielleicht die wichtigste der
ganzen Religionsphilosophie.
98Der gemeinte Gegenstand jedes religiösen Aktes ist das Unbedingte.
51
um conteúdo substituinte e através dele, para o último visado, é o conhecimento religioso”99
(TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 136).
Abreu comenta que com a fórmula “direcionamento intencional ao incondicional”, a
religião não pode ser compreendida como uma esfera entre outras, mas como um evento que
ocorre no espírito e nas funções de sentido do espírito. Este incondicional para o qual a
consciência se dirige pode ser percebido no universo cultural e natural de modo que as próprias
funções culturais se tornam o meio para tal experiência. “Nesse sentido, é mais do que evidente
que a determinação de Tillich do conceito de religião, fundamentada como está em sua filosofia
do espírito caracterizada por uma teoria do sentido, também é fenomenologicamente
inspirada”100 (ABREU, 2017, p. 18). A presença da teoria da intencionalidade da consciência
na formulação do conceito de religião tem dessa forma implicações diretas na posterior
formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, assim como, é somente a partir
desta dinâmica entre religião e cultura ou forma e substância que se torna possível entender em
que medida o método fenomenológico de Tillich pode ser aplicado. Entretanto, as implicações
da teoria da intencionalidade da consciência na formulação dos modos como religião e cultura
se relacionam não podem mais ser seguidas nesse capítulo e por conta disso serão retomadas
no terceiro capítulo desta pesquisa juntamente com a análise sobre as possibilidades de
aplicações do método fenomenológico-crítico desenvolvido pelo autor.
1.4.4. Apontamentos sobre a noção de religião como preocupação última nos
escritos posteriores ao período revisionista de Paul Tillich
Tillich em sua produção teórica posterior ao período revisionista, passa a descrever a
religião com uma formulação diferente daquela analisada até aqui, isto é, religião como
direcionamento ao sentido incondicional. Por conta disso, vale destacar que no fim dos anos de
1920 a descrição de religião como aquilo que preocupa o ser humano de forma última começa
a ganhar mais ênfase nos escritos do autor. Esta formulação pode ser vista em alguns textos
99Sofern ein religiöser Akt sich auf einen vertretenden Inhalt und durch ihn hindurch auf das Letzt-Gemeinte
richtet, ist er religiöse Erkenntnis.
100 In this sense, it is more than evident that Tillich’s determination of the concept of religion, grounded as it is on
his philosophy of spirit characterized by a theory of meaning, is also phenomenologically inspired
52
como a Teologia Sistemática (1951-1963) Religião Bíblica e a busca pela realidade última
(1955), Dinâmica da Fé (1957) entre outras dessa época. Aqui a religião é descrita como “[...]
estado de se encontrar apoderado por uma preocupação última, uma preocupação que qualifica
todas as outras preocupações como preliminares, e que possui, ela mesma, a resposta para a
questão do sentido de nossas vidas”101 (TILLICH, 1988 [1963], p. 293). Chama atenção o fato
de que tal descrição da religião não rompe com os fundamentos de seu período intermediário e
encontra-se dessa forma fundamentada sobre a experiência religiosa do direcionamento
intencional da consciência ao sentido incondicional. De acordo com Tillich: “[...] podemos e
devemos entender que o termo preocupação final, como a frase alemã de que é uma tradução102,
é intencionalmente ambígua. Indica, por um lado, nossa preocupação última - o lado subjetivo
- e, por outro lado, o objeto de nossa preocupação última”103 (TILLICH, 1965, p. 11).
O teólogo comenta que o objeto da preocupação última não pode ser outra coisa a não
ser o sentido incondicional. Para Tillich, nem tudo que ocupa o lugar de preocupação última é
verdadeiramente preocupação última, de modo que torna-se necessário considerar o princípio
crítico presente no ser humano, que procura distinguir aquilo que de fato é realmente
incondicional daquilo que reivindica para si esse caráter, pois na “Na fé verdadeira a
preocupação incondicional é o estar tomado pelo que é verdadeiramente incondicional; a fé
idólatra, com contraste, eleva coisas passageiras e finitas à categoria de incondicionais”
(TILLICH, 1985, p. 12).
Em sua TS, o teólogo comenta que na preocupação última o ser humano deve estar
“incondicionalmente preocupado por aquilo que condiciona seu ser para além de todos os
101[...] state of being grasped by an ultimate concern, a concern which qualifies all other concerns as preliminary
and which itself contains the answer to the question of the meaning of our life.
102A fórmula traduzida em português como preocupação última corresponde ao que Tillich descreveu em 1925-
1927 em alemão como was uns, unbedingt angeht. Dogmatik handelt von dem, was uns unbedingt angeht“ (A
dogmática trata daquilo que nos preocupa incondicionalmente) (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 2); „Insofern er
uns unbedingt angeht, ist es der Weg des Offenbarungsdurchbruchs“ [...] (Na medida em que nos preocupa
incondicionalmente, o mito é o caminho da irrupção da revelação) (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 91) ou ainda
“Das Gleiche kann auch so ausgedrückt werden: Das uns unbedingt Angehende ist das uns unbedingt Verborgene.
(Pode-se expressar o mesmo da seguinte maneira: o que nos preocupa incondicionalmente é o que se nos esconde
incondicionalmente)“ (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 15). De acordo com Danz esta fórmula permanece no
período posterior ao período revisionista em termos de preocupação última (ultimate concern), “‘religião é o que
nos preocupa incondicionalmente’ [Religion ist das, was uns unbedingt angeht] (also prevalent in his later period
– ‘religion is that which concerns us unconditionally’ [Religion ist das, was uns unbedingt angeht]) (DANZ, 2099,
p. 179).
103we can and must understand that the term ultimate concern, like the German phrase of which it is a translation,
is intentionally ambiguous. It indicates, on the one hand, our being ultimately concerned — the subjective side—
and on the other hand, the object of our ultimate concern.
53
condicionamentos que existem nele e ao redor dele” (TILLICH, 2011, p. 32), isto é, a
preocupação incondicional do ser humano fundamenta-se naquele sentido que está para além
de qualquer objetificação, nesse sentido, aquilo que preocupa o ser humano de forma última
deve ser nada menos do que o incondicional, que tal como dito anteriormente, não é um ser ou
um objeto, mas um sentido.
Seria necessário ainda um mapeamento para identificar quando a fórmula “preocupação
última” começa a ser utiliza pelo autor. Esta pesquisa infere que nos escritos de Dresden (1925-
1927) a fórmula já estava presente e começa a ser enfatizada. Tendo isso em conta, pode-se
dizer que as primeiras formulações da “preocupação última” encontram-se no final do período
revisionista do autor, marcado pela filosofia do espírito e do sentido, e está em conformidade
com a noção de intencionalidade da consciência ao sentido incondicional. A preocupação
última está ligada ao sentido incondicional e se apresenta como uma versão abreviada desta,
isso aponta para uma continuidade no desenvolvimento intelectual de Tillich onde a noção de
intencionalidade da consciência permanece como fundamento também de seus escritos
posteriores. Entretanto, uma análise mais detalhada sobre a definição tillichiana de religião
como preocupação última e sua relação com a definição de seu período intermediário se torna
inviável de ser feita de forma mais exaustiva nesta pesquisa e segue apenas como provocação
para pesquisas posteriores.
Considerações finais
Tillich fundamenta, no contexto de seu período revisionista que vai do fim da Primeira
Guerra Mundial até os últimos anos da década de 1920, a noção de religião como uma atitude
intencional da consciência em direção ao sentido incondicional presente nas formas postas pelo
espírito humano. Isso significa que a noção de religião descrita pelo autor neste período opera
na dimensão da vida consciente e encontra seus fundamentos na teoria do sentido em diálogo
com a fenomenologia de Husserl, mais especificamente sua teoria da intencionalidade da
consciência.
Como dito anteriormente, o objetivo deste primeiro capítulo foi apresentar a recepção
da fenomenologia no pensamento teológico de Tillich. Para isso, foram dados quatro passos
importantes: primeiro, uma revisão sobre os aspectos biográficos do período revisionista de
54
Tillich onde foi possível observar as motivações que levaram o teólogo a assumir essa postura,
como o abalo da filosofia romântica e do idealismo que marcara a sua primeira fase, e também
os interlocutores com os quais Tillich dialogou para revisar seu pensamento, especialmente o
neokantismo e a fenomenologia de Husserl. Num segundo passo a discussão girou em torno da
teoria da intencionalidade da consciência de Husserl, onde foi possível compreender que para
este pensador a intencionalidade da consciência diz respeito a uma ligação que o ser humano
tem com o mundo da vida, ligação esta que é infatigavelmente posta, no sentido de que toda
consciência é consciência de algo. A intencionalidade se fundamenta, portanto, na consciência
que visa algo e o dota de sentido.
Num terceiro passo foram analisados os contatos do teólogo com a fenomenologia de
Husserl, expressa primeiramente em cartas escritas pelo teólogo durante seu período
revisionista, e o entusiasmo com o qual ele dialoga com a escola fenomenológica. Aqui o foco
esteve na maneira em que a fenomenologia é recebida por Tillich na esteira de sua teoria do
sentido, bem como a ênfase que o autor dá ao verbo “Visar”, através do qual o teólogo vai
moldando sua teoria da consciência intencional ou noética em relação à religião na vida
humana. O último passo do capítulo foi analisar as aplicações que Tillich faz da teoria da
intencionalidade da consciência na fundamentação de seu conceito de religião. Com essa
aplicação o teólogo descreve a religião como um direcionamento intencional da consciência ao
sentido incondicional através das formas postas pelo espírito humano em sua incessante
criatividade no mundo da vida.
A presença das categorias fenomenológicas “direcionamento” e “visar” ajuda a delinear
os contornos da aplicação que Tillich faz da teoria da intencionalidade do ato da consciência de
Edmund Husserl para fundamentar seu próprio conceito de religião. Assim, a noção de religião
em Tillich encontra-se fundamentada numa consciência imediata e não simbólica do sentido
incondicional que funda a autoconsciência, e numa realidade concreta e finita por meio da qual
a consciência se dirige em direção ao sentido incondicional. Embora estes dois elementos
possam ser separados didaticamente para fins de análise, tal como feito nesta pesquisa, eles são
inseparáveis na experiência real e permanecem essencialmente unidos.
A experiência religiosa se caracteriza exatamente pelo ato intencional de “visar” o
sentido incondicional e fazer com que a coisa “visada” cobre sentido no mundo da vida através
do ato reflexivo da consciência. Ou seja, assim como toda consciência é consciência de algo
para Husserl, em Tillich o sentido incondicional também é algo do que se possa estar
55
consciente. Em Tillich, portanto, a consciência é constituída por um visar original ou “ato puro
de direção a (reinem Akt der Richtung auf)” (TILLICH, 1989 [1923], p. 123), cujo correlato
noemático intencional é o sentido incondicional.
A religião torna-se então o pressuposto de uma satisfatória realização do sentido em
todas as funções. Em outras palavras, a religião como sentido incondicional pode ser percebido
pela intencionalidade da consciência em toda forma cultural, e nesse sentido, as formas culturais
podem servir como símbolos que apontam para esse sentido incondicional. A cultura, portanto,
atua como meio através do qual a religião torna-se possível. Ambas estão unidades em todo
sentido particular.
Diante disso, o teólogo afirma que em toda experiência religiosa é preciso distinguir
dois pontos: “(1) o ‘ponto’ da consciência imediata do incondicional que é vazio, mas
incondicionalmente certo; e (2) a ‘amplitude” de uma preocupação concreta repleta de conteúdo
[...] A teologia lida com o segundo elemento, pressupondo o primeiro”104 (TILLICH, 1987b
[1947], p. 308). O que está vazio é sem conteúdo e não-simbólico mas é a base da religião, o
que tem conteúdo é simbólico e extraído das formas culturais posto pelo espírito humano.
Ambos os elementos precisam ser considerados em toda análise da religião e para tanto a
proposta de Tillich consiste em formular um método que une um elemento crítico com um
elemento intuitivo.
É para dar conta de ambos os polos dessa relação que se torna possível perceber a
importância da fenomenologia crítica de Tillich, denominado num primeiro momento de
método crítico-intuitivo e depois de metalógico. No método tillichiano, o elemento intuitivo-
descritivo está para a consciência intencional assim como o elemento existencial-crítico está
para a forma de sentido, isto é, o elemento concreto através do qual o incondicional é percebido.
Na sequência, a presente pesquisa se concentrará em torno deste método tillichiano
desenvolvido desde os anos 1920 e que receberá em 1951 o nome de fenomenologia crítica.
104 (1) the 'point' of immediate awareness of the unconditional which is empty but unconditionally certain; and (2)
the 'breadth' of a concrete concern which is full of content [...]. Theology deals with the second element, while
presupposing the first and measuring every theological statement by the standard of the ultimacy of the ultimate
concern.
56
CAPÍTULO 2
OS ELEMENTOS INTUITIVO E CRÍTICO COMO EPICENTRO DA
FENOMENOLOGIA CRÍTICA
O objetivo deste capítulo é apresentar em que consiste a fenomenologia crítica de Tillich
partindo de uma análise dos elementos basilares que constituem o método, a saber: os elementos
intuitivo e crítico.
Tillich no contexto de seu período revisionista, entre o fim da Primeira Guerra Mundial
e os últimos anos de 1920, discute o lugar da fenomenologia no âmbito das análises do
fenômeno religioso e reconhece seu caráter radical bem como sua importância para chegar a
essência da religião. Entretanto, o teólogo se apropria da fenomenologia de maneira crítica e
afirma que falta ao método fenomenológico um elemento crítico, que valorize os aspectos
concretos e existenciais da experiência religiosa. Dessa forma o autor propõe unir o elemento
intuitivo da escola fenomenológica com um elemento crítico oriundo do pensamento kantiano.
A união destes elementos constitui os fundamentos e também o aspecto inovador da
fenomenologia tillichiana. Entretanto, embora Tillich tenha fundamentado sua fenomenologia
crítica a partir da união de ambos os elementos, esta união aparece também como fundamento
de outros métodos do autor denominados num primeiro momento de crítico-intuitivo (1920) e
posteriormente de metalógico (1923).
Da mesma forma, posterior a fenomenologia crítica, o autor apresenta um quarto método
denominado intuitivo-crítico (1962). Diferente dos dois primeiros, os dois últimos acrescentam
a abordagem ontológica existencial como uma abordagem necessária ao lado da intuição e da
crítica. Tanto a fenomenologia crítica (1951) como a intuição-crítica (1962) representam, dessa
forma, as formulações finais do método. Sendo assim, para uma compreensão rigorosa da
fenomenologia crítica de Tillich torna-se necessário uma análise dos métodos anteriores e
posteriores à fenomenologia crítica e que estão fundamentados sobre uma base em comum.
2.1. Críticas de Tillich ao método fenomenológico e a proposta de união entre
os elementos intuitivo e crítico
2.1.1. O contexto da crítica: uma análise sobre os métodos da filosofia da religião
57
O pressuposto de Tillich é compreender a religião como uma função necessária na
constituição da consciência humana, tal como discutido no capítulo anterior, e não apenas como
uma entre outras funções da consciência. Nesse sentido, ele começa sua discussão metodológica
afirmando que o objeto da filosofia da religião é a religião. Para o autor, esta definição de caráter
elementar apresenta um problema, trata-se em termos gerais, do problema fundamental da
filosofia da religião. “Na religião a filosofia encontra um objeto que resiste a ser tornado objeto
da filosofia. Quanto mais forte, pura e originária seja uma religião, mais ela reclamará ser
abstraída ao universo dos conceitos generalizantes”105 (TILLICH, 1973 [1925], p. 27).
De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 27-28) ideias como revelação ou salvação são
opostas ao conceito de religião, pois expressam ações que acontecem apenas uma vez, sua
origem é transcendente e seus efeitos transformam a realidade, religião tem a ver com a cultura;
‘revelação’ com aquilo que está além da cultura. Por esta razão a religião se sente atacada em
sua essência mais íntima quando é chamada de religião. Por este motivo afirma o teólogo, a
religião se fecha ao enfrentar-se com a filosofia da religião e se abre à teologia na medida em
que esta se afirma como ciência da revelação. Dessa forma a filosofia da religião se vê numa
situação peculiar diante da religião. “Está obrigada a dissolver o objeto que deseja compreender,
ou a declarar-se nula e vazia. Se ela não considerar o caráter revelado da religião, seu objeto se
lhe escapa e acaba não falando de uma religião genuína. Mas se aceitar, ela se transforma em
teologia”106 (TILLICH, 1973 [1925], p. 28).
De acordo com o teólogo, ambos os caminhos devem ser evitados pela filosofia da
religião, de modo que a questão que emerge é como a filosofia da religião pode lançar luz de
forma plena sobre seu objeto, sem com isso comprometer sua consciência filosófica da verdade.
Para o pensador alemão, “Existe um ponto na doutrina da revelação e na filosofia em que os
dois são um. Encontrar este ponto, e a partir dele construir uma solução a partir da síntese, é a
tarefa decisiva da filosofia da religião”107 (TILLICH, 1973 [1925], p. 30). Diante deste
problema, Tillich propõe uma reflexão de caráter metodológico passando por aquilo que ele
105 In religion, philosophy encounters something that resists becoming an object of philosophy. The stronger, purer,
and more original the religion, the more emphatically it makes the claim to be exempt from all generalizing
conceptual structures.
106 It must either dissolve away the object it wishes to grasp or declare itself null and void. If it does not recognize
religion’s claim to revelation, then it misses its object and does not speak of genuine religion. If, on the other hand,
it acknowledges the claim to revelation, then it becomes theology.
107For there is a point in the doctrine of revelation and philosophy at which the two are one. To find this point and
from there to construct a synthetic solution is the decisive task of the philosophy of religion.
58
chama de métodos impróprios da filosofia da religião e em contrapartida o método correto.
Sendo assim, a crítica de Tillich ao método fenomenológico está inserida num contexto maior
de análises sobre os métodos em filosofia da religião, de modo que, entender este contexto de
análise é importante para uma compreensão de sua própria proposta metodológica108.
Higuet (2011, p. 30) comenta que Tillich começa por excluir três métodos oriundos da
ciência da religião, da teologia e da metafísica. Tratam-se dos métodos, empírico,
supranaturalista e especulativo. De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 38), estes métodos são
insuficientes para alcançar a essência da religião e consequentemente conduzem a resultados
negativos. O método das ciências empíricas, tais como a psicologia, sociologia ou história
buscam abstrair um conceito da essência da religião a partir de fenômenos individuais, por meio
da consideração de sua origem e formação em um objeto particular na sociedade ou na
totalidade da história. O método teológico ou supranatural é a tentativa de derivar o conceito de
religião da própria religião revelada e, portanto, tida como verdadeira, este método é empírico,
ainda quando limita seu empirismo a um lugar designado de maneira sobrenatural. O método
especulativo ou metafísico, por sua vez, se propõe determinar a essência da religião a partir do
objeto ao qual o ato religioso é dirigido. Este método supõe que o objeto religioso poderia ser
captado independentemente das ações religiosas e que o incondicional é um objeto possível de
conhecimento racional. Em relação a estes métodos, “Eles sãos impróprios porque nenhum
deles alcança satisfatoriamente a essência da religião” (HIGUET, 2011, p. 30).
Para Tillich o método filosófico deve abstrair os princípios formativos a partir da
realidade informada pelo sentido109 e deve colocar os princípios significativos em uma relação
108 As considerações metodológicas de Tillich podem ser analisadas em quatro textos de seu período alemão: “a 7,
8 e 9 aula do curso filosofia da religião ministrado em Berlim em 1920”, “A superação do conceito de religião na
filosofia da religião” (1922), “Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (1923) e a “Filosofia da Religião”
(1925). No primeiro e segundo texto Tillich fala de três métodos para a filosofia da religião, o fenomenológico ou
intuitivo, crítico e crítico-intuitivo ou paradoxal. O terceiro traz também três métodos, de acordo com Higuet
(2011, p. 27) já chegando a uma formulação mais definitiva: crítico, fenomenológico e metalógico. E o último
apresenta quatro métodos: dialético-crítico, fenomenológico, pragmático e metalógico ou crítico-intuitivo. Em
relação ao método fenomenológico, há um outro texto em que Tillich dirige-se especificamente a ele, este texto é
a primeira parte da Teologia Sistemática de 1951. Neste texto, além de direcionar sua crítica ao método
fenomenológico de Edmund Husserl, Tillich também se dirige diretamente a Max Scheler, considerado pelo
teólogo como um discípulo de Husserl. A despeito do longo período de tempo transcorrido entre o primeiro e
último texto, a pesquisa se utilizará de todos os textos simultaneamente devido ao fato de Tillich ter reproduzido
ao longo destes anos uma crítica que se manteve essencialmente a mesma.
109 “O sentido explicita-se em dois elementos ou aspectos fundamentais: a forma (Sinnform) e o conteúdo ou
substância (Sinngehalt). A forma do sentido corresponde ao pensamento, enquanto o conteúdo corresponde ao ser.
Gehalt designa um conteúdo mais profundo, mais substancial que Inhalt, que seria o conteúdo concreto e objetivo.
Gehalt significa especialmente o sentido e o valor de alguma coisa. É a substância que funda tudo, é também o
conteúdo que preenche toda forma, cuja ausência provoca o vazio do não-sentido” (HIGUET, 2011, p. 32).
59
coerente, unificada e necessária, trata-se, portanto, de uma dupla demanda que precisa ser
respondida. Tendo isso em conta, o teólogo analisa três métodos em filosofia da religião que
preparam o caminho em direção aquilo que o teólogo chamou de o método correto da filosofia
da religião (TILLICH, 1973 [1925], p. 41). Estes métodos são: o método crítico-dialético, o
fenomenológico e o pragmático. Na sequência, serão analisados primeiramente o método crítico
e pragmático, e posteriormente com um enfoque maior, o método fenomenológico.
Para o autor, na medida em que a filosofia abstrai os princípios de sentido da realidade
significativa, é crítica, e na medida em que os inter-relacionam sistematicamente, é dialética.
“Entretanto, ambos os métodos são a mesma coisa. O método crítico é sempre dialético, [...] e
o método dialético é também necessariamente crítico”110 (TILLICH, 1973 [1925], p. 41-42).
Este método pressupõe a autonomia do espiritual em relação a qualquer objeto que se dê de
maneira imediata. Os princípios de sentido aos que se submete a consciência em toda ação
espiritual, são também os princípios de sentido aos quais se submete o ser. O “método crítico-
dialético desenvolve as formas de sentido universais que são ao mesmo tempo as funções do
espírito e princípios da realidade de sentido”111 (TILLICH, 1973 [1925], p. 42).
De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 43), o método crítico, especialmente no
desenvolvimento que se deu em Kant e a escola neokantiana, volta-se, sobretudo, às condições
prévias de toda estrutura unificada na realidade de sentido. Ele se dirige à interconexão das
formas de sentido e separa a realidade de sentidos de outros conteúdos da realidade e os submete
ao princípio lógico fundamental da unidade. Com isso, o método crítico-dialético implica
somente um dos elementos inerentes a toda consciência de sentido, a saber, a forma do sentido,
deixando de lado a substância. Sendo assim, este método acaba por não dar conta da realidade
fundamental que está pressuposta em todas as formas de sentido, isto é, a substância do sentido.
De acordo com o teólogo, a substância do sentido é o fundamento da realidade sobre o
qual estão as formas de sentido, assim como é o lugar onde repousa o sentido último e a
essencialidade de cada ação de sentido. A unidade das formas, bem como as formas individuais,
ficaria completamente desprovida de conteúdo se não manterem uma relação com a substância
do sentido. O método crítico, comenta o teólogo, coloca esta substância entre parêntesis e “Pode
110 Both methods, however, are one: the critical method is always dialectical as well [...] and the dialectical method
is necessarily also critical.
111 The critical-dialectical method develops the universal forms of meaning, which are at the same time functions
of the spirit and principles of the meaning-reality.
60
traçar o esquema puramente lógico das relações dos diversos princípios e ao terminar esta
tarefa, pode encontrar-se com um sistema de formas – que, por outro lado e sem dúvidas, estará
perfeitamente vazio”112 (TILLICH, 1973 [1925], p. 43). Dessa forma, a dimensão relacionada
ao sentido e à substância não podem ser devidamente captadas através deste instrumental.
O caminho que Kant seguiu foi de uma profundidade que o leva à observação
que a dedução das categorias seja a investigação mais difícil que jamais fosse
empreendida ao propósito da filosofia. [...] Kant o nomeia mundo da
manifestação. Tudo que está aí para nós é o mundo de manifestação, o mundo
formado pelo sujeito. Mas as formas de estruturação são provadas, através
disto, como de validade geral e necessárias, pelo fato de que são necessárias
para a unidade da consciência. [...] Mas para a religião, de fato, não permanece
nenhum lugar e tem-se, agora, que procurar alguma coisa em que possa ser
pendurada. Neste ponto [da], para o filósofo do iluminismo o qual tinha posto
a religião a serviço do melhoramento moral, resulta surgindo a razão prática,
e nasce a famosa prova moral de Deus e a “religião nos limites da simples
razão”, dentro dos quais está contida a filosofia da religião de Kant a qual é
não crítica [ou acrítica] – assim devemos dizer113 (TILLICH, 2001 [1920], p.
381-382).
O autor comenta que isso vale para todas as funções teóricas e práticas, mas de maneira
fundamental para a filosofia da religião. Quando a crítica da religião é realizada seguindo essa
postura, chega a concepção da religião como uma orientação em direção a unidade das formas
de sentido, à sínteses absoluta das funções. Entretanto, a religião não aceita ser transformada
em uma síntese das funções do espírito, e expressa isso ao rejeitar a identificação entre divino
e humano, Espírito Santo e espírito natural, e de forma mais radical, entre o Sagrado e o cultural.
Conceitos como graça, revelação, e “demônia”, que irrompe através das formas, não são
capazes de serem apreendidos pelo método crítico, e de acordo com o teólogo, “um método que
não pode captar conceitos tais como ‘graça’, ‘revelação’ ou ‘demônio’, conceitos que desfazem
todas as formas, é absolutamente inadequado para a religião. Por conta disso, o elemento crítico
não deve ser o único”114 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44).
112 It can trace out the purely logical-dialectical relations of the separate principles, and it then finds itself in
possession of a system of forms – which, to be sure, are absolutely empty.
113Der Weg, den Kant ging, war von einer Tiefe, die ihn selbst zu der Bemerkung veranlaßt, daß die Deduktion
der Kategorien die schwerste Untersuchung sei, die je zum Behufe der Philosophie unternommen sei. [...] Kant
nennt sie Erscheinungswelt. Alles, was für uns da ist, ist Erscheinungswelt, Subjekt-gestaltete Welt. Die
Gestaltungsformen aber sind eben dadurch als allgemeingültig und notwendig bewiesen, daß sie zur Einheit des
Bewußtseins nötig sind. [...] Für die Religion aber bleibt überhaupt kein Platz, und es muß nun etwas gesucht
werden, an das sie angehängt werden kann. Da ergibt sich für den Philosophen der Aufklarung, der die Religion
in den Dienst der moralischen Aufbesserung gestellt haste, die praktische Vernunft, und es entsteht der berühmte
moralische Gottesbeweis und die „Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft“, in denen zusammen
Kants unkritische — so müssen wir sagen — Religionsphilosophie enthalten ist.
114 A method that cannot grasp concepts such as grace, revelation and the demonic, which break through all forms,
is absolutely inadequate for religion. The critical element, however, must not remain the only element.
61
Outro método analisado por Tillich (1973 [1925], p. 47) é o pragmático. Este método
considera que os conceitos são construções subjetivas, como as palavras ou a ficção que
adquirem sentido enquanto conservam sua vigência, mas que não possuem uma verdade
objetiva. O sentido que possibilita sua vigência consiste no fato de facilitarem o domínio que
um organismo ou espécie exerce sobre seu meio ambiente e sobre seu mundo interior. Este
método, portanto, se nega a reconhecer nas coisas nada que seja estático ou que possa se parecer
a uma essência. Considera que o conceito pode mudar em cada instante, sendo assim, um
momento transitório na dinâmica das relações de poder.
Compreender uma realidade como a religião significa demonstrar o sentido enaltecedor
de vida que a ficção religiosa possui, apontar o lugar no processo vital no qual essa ficção se
torna necessária. O método pragmático leva em consideração o caráter criativo individual da
realidade viva, e opõe-se a qualquer fixação espiritual racional ou intuitiva de essências
espirituais. Entretanto, o autor comenta que este método é tolerado apenas quando a atitude
espiritual de quem o professa consegue separar a teoria da convicção vivida, e deixa que a teoria
fique no campo teórico e, portanto, sem qualquer envolvimento com a realidade. Nesse sentido,
o método pragmático torna-se inibidor da vida, pois ao passo que destaca o caráter fomentador
da vida, ele também a destrói ao impedir a participação efetiva em tais ficções, promovendo
dessa forma uma atitude puramente teórica, ou seja, “sua capacidade de reafirmar e fortalecer
a vida se volta contra ela mesma. Por esta razão deve-se rejeitar o método pragmático na
filosofia da religião”115 (TILICH, 1973 [1925], p. 47).
2.1.2. Crítica ao método fenomenológico
As primeiras considerações críticas de Tillich ao método fenomenológico podem ser
observadas na sétima aula de um curso sobre filosofia da religião ministrado em Berlim em
1920. Aqui o teólogo inicia seu discurso apresentando a fenomenologia como uma ciência que
emergiu da psicologia e engajada numa luta violenta contra o psicologismo116. Este método,
115 Its life-strengthening power, turns against itself. For that reason the pragmatic method must be rejected for
philosophy of religion.
116Husserl assumiu uma postura de oposição em relação ao psicologismo, de acordo com o filósofo: “É em geral
conhecido que a teoria do conhecimento de Kant tem aspectos que procuram e, de fato, conseguem, elevar-se
acima deste psicologismo das faculdades anímicas como fontes de conhecimento. Basta dizer-se que ela tem
também aspectos com forte recorte psicologista, o que não exclui naturalmente a polêmica acesa contra outras
62
afirma o teólogo, conseguiu instaurar-se, sob o comando de Edmund Husserl como uma
proposta autônoma no campo da ciência do espírito. Este “É o método fenomenológico,
primeiramente apresentado nas Investigações Lógicas de Husserl, 1900, volume II [1901].
Husserl parte [do pressuposto] que a psicologia usual torna a alma objeto para depois explica-
la ao modo de um objeto, assim cientificamente natural”117 (TILLICH, 2001 [1920], p. 379) e
na sequência o teólogo comenta também que a fenomenologia enquanto proposta metodológica,
“O método não é reflexivo, mas intuitivo, e não é direcionado aos motivos os quais tem que ser
explicados, mas direcionado à própria coisa”118 (TILLICH, 2001 [1920], p. 380).
De acordo com o pensador alemão, a fenomenologia tem se colocado como uma das
mais vigorosas críticas a outros métodos de seu tempo, sobre tudo à escola kantiana. Ela parte
de “uma tentativa de construir um sistema de essências mediante a recuperação do realismo
lógico – sistema que acede à consciência através da intuição imediata das essências (intuição
eidética) (Wesensschau)”119 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44). O teólogo comenta que toda
essência é um a priori, mas que o empirismo provê apenas o material para a intuição no qual
torna-se possível perceber a essência, mas a essência em si não é empírica e por conta disso
torna-se necessário superar o caráter racional e formal do a priori crítico, algo que a
fenomenologia tem logrado fazer pelo fato de que o a priori fenomenológico é a própria
essência apreendida em toda vivência. Dessa forma, a primeira finalidade do método
fenomenológico é “descrever ‘significados’, deixando de lado, por um tempo, a questão da
realidade à qual se referem” (TILLICH, 2011, p. 119).
Consequentemente, afirma Tillich (1973 [1925], p. 45), a intuição das essências se
estende uniformemente a todos os objetos espirituais e sensoriais. Não existe desta forma uma
distinção entre o ser e o espírito, mas entre a essência e existência. A essência no contexto da
fenomenologia diz respeito a plenitude em que participam todo os existentes, seja em maior ou
formas de fundamentação psicologística do conhecimento. Aliás, não somente Lange, como também uma boa
parte dos filósofos de estilo kantiano [A: neo-kantianos] pertencem à esfera da teoria do conhecimento
psicologista, ainda que não queiram aceitar o termo. Psicologia transcendental é, exatamente, também psicologia
(HUSSERL, 2014, p. 70, nota 23)
117Es ist die phänomenologische Methode, zuerst dargestellt in Husserls Logischen Untersuchungen, 1900, Band
II [1901]. Husserl geht davon aus, daß die gewöhnliche Psychologie die Seele zum Objekt mache, um sie dann
[nach] Art eines Objektes, also naturwissenschaftlich, zu erklären.
118Die Methode ist also nicht reflektiv, sondern intuitiv, und sie ist nicht auf die zu erklärenden Ursachen, sondern
auf die Sache selbst gerichtet.
119 This is the attempt to construct a system of essences through the recovery of logical realism – a system that is
brought to consciousness by an immediate intuition of essences (Wesensschau).
63
menor grau. A intuição de uma essência por sua vez pode se dar a partir de qualquer objeto,
real ou imaginário e sua veracidade pode ser atestada quando consegue penetrar até a essência
mesma do fenômeno, ou seja, o “teste de uma descrição fenomenológica consiste em sua
capacidade de oferecer um quadro que seja convincente, de torna-lo visível a qualquer pessoa
que esteja disposta a olhar na mesma direção, de iluminar com ele outras ideias afins e de tornar
compreensível a realidade que estas ideias pretendem refletir” (TILLICH, 2011, p. 119).
Tillich valoriza, portanto, o caráter rigoroso e radical da fenomenologia na exigência do
esclarecimento de sentidos e percebe a partir disto, as possibilidades dessa contribuição na
esfera das análises do fenômeno religioso. Dessa forma, o teólogo afirma que este método “[...]
será capaz de intuir eideticamente a essência e as qualidades peculiares da religião em qualquer
manifestação religiosa. Tal intuição será independente da realidade empírica do objeto, e da
mesma forma, irá possuir um a priori de rico conteúdo, não meramente formal”120 (TILLICH,
1973 [1925], p. 45). O autor supõe que dessa forma não haveria dificuldades em reconhecer o
caráter único da religião entre as demais essências do espírito, e nesse sentido, se fosse
necessário escolher entre o método crítico e o fenomenológico, “a fenomenologia sem dúvidas,
seria preferível, pelo menos em filosofia da religião. Com ela é possível aproximar-se ao objeto
verdadeiro da investigação muito mais perto e muito mais vitalmente que a crítica ou a dialética.
Ela vive na própria coisa e não em seu aspecto racional e abstrato”121 (TILLICH, 1973 [1925],
p. 45).
O destaque que Tillich dá ao método fenomenológico concentra-se sobretudo em seu
aspecto intuitivo. Este elemento para ele é essencial e serve como um padrão para medir a crítica
kantiana. O método é descrito em 1920, como sendo um dos mais recentes métodos existentes
e como um marco no pensamento filosófico. Por ser uma ciência recém-chegada, o autor
comenta que há ainda muita coisa para se fazer, “Embora este trabalho, pensa Husserl, pode ser
prestado em breve, em que a maioria do trabalho esteja concluído”122 (TILLICH, 2001 [1920],
p. 379).
120 [...] would therefore be able to intuit the essence and the peculiar qualities of religion in any example of it. It
would be independent of the empirical and yet would have an a priori rich in content and not merely formal.
121 Phenomenology without any doubt would be preferable for philosophy of religion. It is able to approach the
real object of inquiry more closely and vitally than is possible for either criticism or dialectic. It lives in the very
thing itself, not in its rational-abstract aspect.
122 Diese Arbeit aber, meint Husserl, kann in absehbarer Zeit so geleistet werden, daß sie in gewisser Weise
abgeschlossen ist.
64
Entretanto, Tillich afirma que existem fortes objeções à fenomenologia, tanto no que se
refere ao aspecto metodológico como em relação a seus princípios. Estas objeções se baseiam
sobretudo na relação que existe entre essência e existência. Para o realismo fenomenológico,
comenta o autor, a existência se origina em uma confluência acidental de diversos atributos
essenciais em um indivíduo. Fora de sua mera existência, o indivíduo não possui nada além da
essência da qual participa. A infinitude interior e o sentido eterno do indivíduo desaparecem
completamente. Isso se deve ao fato de que “a fenomenologia não possui órgão algum que lhe
permita perceber o caráter criativo e único do evento histórico”123 (TILLICH, 1973 [1925], p.
29).
Embora Tillich destaque a importância do elemento intuitivo, o teólogo afirma que tal
intuição é independente da realidade empírica. A fenomenologia nesse sentido seria portadora
de um caráter a-histórico124 e, portanto, incapaz de fazer justiça ao problema da existência. De
acordo com o autor:
O método fenomenológico é a expressão de uma atividade que se afasta do
mundo das manifestações concretas para se concentrar na essência interior das
coisas. Esta inversão do olhar natural sobre o mundo, esta intuição interior das
essências, possui um elemento místico-ascético e expressa uma metafísica
estática e o desejo de alcançar a união com a realidade eterna mediante o ato,
um ato de conhecimento. A equiparação dos conceitos de essências e norma
supõe uma situação espiritual em que é dominante uma cosmovisão
autossuficiente fechada à crítica; por essa razão as formas espirituais dadas da
vida podem se transformar, sem mediação, em exemplos imediatos das
essências eternas. No campo da epistemologia o método fenomenológico é a
expressão autentica de tal situação espiritual. Entretanto, assim que o fatal
curso da história rompe a unidade e a certeza imediata, e assim como o
interesse em mudar as aparências troca a preocupação pelas essências eternas,
a fenomenologia perde seu sentido mais profundo. Não pode fazer justiça ao
problema da existência e somente se retém o sentido de uma protesta a viva
123 For phenomenology has no organ for apprehending the uniquely creative character of the historical event.
124 É preciso levar em consideração que a crítica de Tillich a fenomenologia de Husserl não se refere à totalidade
do pensamento de Husserl, mas apenas a um momento específico marcado sobretudo pelo idealismo das
Investigações Lógicas e das Ideias, obras com as quais Tillich trabalhou e menciona em diversos momentos no
decorrer de seus próprios escritos. A maior parte das obras de Husserl será publicada somente após sua morte em
1938 de modo que não haveria como Tillich, no contexto de seu período revisionista, ter tido uma noção da
totalidade do pensamento de Husserl. Como já referido, Husserl em sua terceira fase, após 1930, valoriza
sobremaneira a questão da história e o “mundo da vida” como lugar originário das vivências concretas. O conceito
de mundo da vida expressa bem essa reconciliação da fenomenologia com a história. No entanto, Tillich
aparentemente não teve contato com as obras do último Husserl, e se teve, não trouxe isso com muita ênfase para
os seus escritos, pois como será visto no decorrer dessa pesquisa, Tillich reproduziu em seus escritos tardios uma
crítica à fenomenologia de Husserl bastante próxima àquela feita em seu período revisionista.
65
voz contra a atitude exclusivamente crítica e formal125 (TILLICH, 1973
[1925], p. 48).
Tillich comenta que a fenomenologia tem razão naqueles casos em que a essência está
relacionada com o fenômeno tal como o triangulo matemático está relacionado com o triangulo
concreto. Nestes casos comuns ao reino da natureza, o exemplo nada mais é do que um
exemplar de uma espécie, isto é, o fenômeno não é mais do que uma ilustração concreta ou
exemplificação da essência. “Mas nisto se revela a problemática do método inteiro. O que é
exemplar? O que é um processo religioso-exemplar? O que conduz para além da
subjetividade?”126 (TILLICH, 2001 [1920], p. 381)127. Ao aplicar o método no campo do
fenômeno religioso o teólogo percebe que a fenomenologia é incapaz de responder uma questão
de caráter decisiva para sua validez, “Onde e para quem se revela uma idéia? O fenomenólogo
responde: tome como exemplo um evento revelatório típico e veja nele e através dele o sentido
universal de revelação” (TILLICH, 2011, p. 119).
Para Tillich, esta resposta demonstra a insuficiência do método na medida em que a
intuição fenomenológica se depara com exemplos diferentes e por vezes até mesmo
contraditórios de revelação no contexto histórico da experiência religiosa. Diante disso torna-
se elementar a pergunta sobre que critério deve determinar a escolha de um exemplo? Para o
teólogo, a fenomenologia não responde essa pergunta. “Isso indica que a fenomenologia,
embora seja competente no âmbito das significações lógicas, que são o objeto das pesquisas
125 The phenomenological method is the expression of an attitude that turns away from the world of appearance to
the inner essence of things. This inversion of the natural view of the world, this inner intuition of essences, contains
a mystical and ascetic element and is the expression of a static metaphysics and of the desire to achieve union with
the eternally abiding reality through an act of knowledge. The equating of the concept of essence with the concept
of norm presupposes a spiritual situation in which a self-sufficient world view shut off from criticism is dominant,
and for that reason the given spiritual forms of life can become immediate examples of eternal essences. In the
field of epistemology the phenomenological method is the authentic expression for such a spiritual situation. As
soon, however, as the unity and the immediate certainty of the traditional meaning-reality is broken by the fateful
course of history, and as soon as concern for changing appearances has replaced preoccupation with eternal
essences, then phenomenology loses its deepest meaning. It cannot do jus-tice to the problem of existence, and
retains only the significance of a standing protest against the exclusively critical and formal attitude.
126Darin aber offenbart sich die Problematik der ganzen Methode. Was ist exemplarisch? Was ist ein exemplarisch-
religiöser Vorgang? Was führt über die Subjektivität hinaus?
127 No mesmo curso de 1920 em que Tillich discute o método fenomenológico de Edmund Husserl, o teólogo
também menciona o trabalho de Max Scheler. De acordo com Tillich “Do tipo como este método trabalha pode-
se fazer uma apresentação dos escritos de Scheler [...] Se Scheler, por exemplo, quer desenvolver o conceito de
guerra (Max Scheler, Der Genius des Krieges und der Deutsche Krieg. Leipzig 1915, 2 ed., 1916, 3. Ed., 1917)
fenomenologicamente, então ele não pergunta de onde ele vem, como ele deve julgá-lo, etc., mas o que o idioma
visa (meint) com ele, ele o delimita contra os conceitos relacionados como luta, disputa ou coisa semelhante. Ele
observa o oposto, paz, e o compara com pax, que não é apenas direcionado negativamente, e assim por diante. Em
outro lugar, ele faz igualmente com o conceito amor, e poder-se-ia deduzir o mesmo com fé, santidade etc. [...] De
forma característica, o livro de Scheler foi um livro alemão do ponto de vista da guerra, então, não pode, pelo
menos, reivindicar uma validade universal (Allgemeingültigkeit) (TILLICH, 2001 [1920], p. 379-380).
66
originais de Husserl, o inventor do método fenomenológico, é só parcialmente competente no
âmbito das realidades espirituais, como a religião128” (TILLICH, 2011, p. 120). Para Tillich, a
fenomenologia perdeu muito de sua posição:
[...] em parte por exageros como na tentativa de Scheler de tornar bispos e
anjos em objetos de intuição fenomenológica necessária, em parte pela
impossibilidade de evitar decisões existenciais na escolha de exemplos da
intuição e em parte por confusões entre afirmações empíricas e
fenomenológicas [...] Desde a época de Platão e de Aristóteles, há uma falta
de acordo sobre os primeiros princípios, e o ideal de Husserl da filosofia como
ciência estrita desabou em todos os seus alunos (como o Sr. Husserl certa vez
me confessou com grande tristeza)129 (TILLICH, 1989 [1955], p. 384).
Ao lidar com a filosofia da religião, por exemplo, Tillich (1973 [1925], p. 46) comenta
que a fenomenologia chegaria à proposição de uma essência da religião que transcenda toda
religião empírica. Essa essência só poderia estar dotada das características de uma determinada
religião histórica ou então proporia a construção de uma nova religião ideal. No primeiro caso
ficaria evidente um tradicionalismo metodológico que se aproxima muito ao sobrenaturalismo,
e, no segundo caso, somente se poderia evitar o racionalismo construtivo se a proposta fosse
tratar de uma visão profética da religião e não de uma ciência metodológica como é o caso.
Dessa forma, o autor afirma: “A fenomenologia enfrenta uma alternativa: Pode interpretar a
realidade histórica individual como manifestação não significativa da essência, a fim de ser
capaz de encarar a intuição da essência em qualquer fenômeno religioso, ou pode oferecer
provas (procedimentos que não poderiam ser fenomenológicos) de porque se utiliza apenas um
fenômeno particular como material para a intuição da essência”130 (TILLICH, 1973 [1925], p.
46).
Para o autor, “com respeito à história a fenomenologia carece de validez”131 (TILLICH,
1973 [1925], p. 46). Esta objeção chama atenção para o caráter a-histórico do método, e por
128 Tillich comenta em nota de rodapé esta é “a justificação fenomenológica que Max SCHELER nos oferece de
todo o sistema católico romano em seu livro Vom Ewigen im Menschen, Leipzig: Neuer Geist, 1923. Husserl com
razão rejeitou esse empreendimento” (TILLICH, 2011, p. 120, nota 2).
129[...] partly by exaggerations as in Scheler’s attempt to make bishops and angels into objects of necessary
phenomenological intuition, partly by the impossibility of avoiding existential decisions in the choice of examples
of the intuition, and partly by confusions between empirical and phenomenological statement [...] Since the time
of Plato and Aristotle there has been lack of agreement about he first principles, and Husserl’s ideal of philosophy
as a strict science has broken down in all his pupils (as Mr. Husserl once confessed to me with great sorrow).
130 Phenomenology faces this alternative: Either it can interpret the individual historical reality as an insignificant
manifestation of essence, in order to be able to undertake the intuiting of essence in any and every religious
phenomenon; or it can offer a proof (a procedure that could not be phenomenological) as to why just one particular
phenomenon is employed as the material for the intuition of essence.
131That with respect to history phenomenology is wrong.
67
consequência sua impossibilidade de uma análise totalmente competente no âmbito dos
fenômenos religiosos pois “tão logo a intuição fenomenológica se depare com exemplos
diferentes e talvez contraditórios de revelação” (TILLICH, 2011, p. 120) o método se mostra
carente de critérios capazes de determinar a escolha de um exemplo. Nesse sentido, a crítica
tillichiana ao método fenomenológico dirige-se sobretudo ao lado unilateral e estático do
método.
Chama atenção o fato de que em todos os três textos mencionados a crítica de Tillich se
manteve essencialmente a mesma, contendo apenas algumas diferenças devido a proposta
maior do livro. Em 1920 o método é apresentado como um dos mais recentes métodos chegados
no cenário acadêmico e de fundamental importância para a crítica kantiana, a preocupação neste
momento parece girar mais em torno de uma avaliação sobre suas vantagens e desvantagens.
Em 1925 o método ganha importante espaço nas discussões sobre os métodos coerentes em
filosofia da religião, e em 1951 o método é rapidamente descrito como um prelúdio àquilo que
na sequência o teólogo chama de fenomenologia crítica. Mas em todos os três textos é possível
perceber uma postura semelhante por parte de Tillich, primeiramente há um destaque sobre a
importância do elemento intuitivo e na sequência uma crítica ao aspecto a-histórico, unilateral
e estático do método.
A semelhança das críticas à fenomenologia com o passar do tempo pode revelar algo
bastante importante, a saber: a possibilidade do teólogo não ter dado continuidade a suas leituras
sobre Husserl. Embora o contato de Tillich com a escola fenomenológica tenha sido
acompanhado de grande entusiasmo, é possível que o autor não tenha avançado para além do
primeiro Husserl, essa atitude talvez possa estar relacionada com a mudança de Tillich para os
Estados Unidos, pois como ele falou certa vez para um pesquisador de Husserl, a fenomenologia
na América é fracamente estimada132 (TILLICH, 1970 [1936], p. 107). Entretanto, os motivos
pelos quais o teólogo abandonou seus estudos sobre a fenomenologia de Husserl não podem ser
discutidos neste espaço e seguem apenas como provocações para pesquisas futuras.
Entretanto, a despeito de seus comentários bastantes críticos à fenomenologia, Tillich
não rejeita o método. O teólogo irá encontrar no pensamento fenomenológico um elemento
essencial que além de servir como um paradigma para a crítica kantiana, como o próprio teólogo
afirmou, servirá também como um aspecto fundamental para o desenvolvimento de seu próprio
132On the way back I run into Gurwitch, a student of Husserl’s, who wants to go to America. I tell him in what low
esteem phenomenology is held in America.
68
método fenomenológico. Como o autor declara no final de suas considerações sobre a
fenomenologia no curso de 1920:
Contudo, o método fenomenológico tem um duplo significado. Ele mostra,
com razão, que as coisas que se pretende explicar devem ser primeiramente
compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas de
explicação genética, dessa forma, a descrição deve preceder a explicação.
Segundo, e este é de altíssima importância, a exigência de uma intuição e um
visar interior (inneren Meinens) antes de qualquer explicação ou avaliação133
(TILLICH, 2001 [1920], p. 380).
O elemento intuitivo do método fenomenológico além de ser valorizado por Tillich será
resgatado pelo teólogo na posterior formulação de seu próprio método fenomenológico.
Entretanto, o teólogo entende que o método estará incompleto se apenas o elemento intuitivo
for considerado. Aqui, portanto é anunciada a necessidade de somar à fenomenologia pura de
Husserl um segundo elemento que tornará o método mais competente para a análise do
fenômeno religioso. O teólogo não rejeita o método, apenas indica sua insuficiência para
compreender o fenômeno da religião. Para Tillich, isso acontece por ignorar os aspectos
particulares e formais da recepção do fenômeno revelatório. É nesse sentido que o autor afirma
a necessidade de introduzir um elemento crítico na fenomenologia “pura”, pois a questão acerca
do critério que deve determinar a escolha de um “exemplo” só pode ser respondida por meio
do elemento crítico.
2.1.3. A proposta de união entre os elementos intuitivo e crítico
Tillich conclui a primeira parte de sua sétima aula, até então dedicada ao método
fenomenológico, com o início de uma crítica às limitações da crítica kantiana (já discutidas no
tópico anterior). Tais considerações sobre o esgarçamento do método crítico de Kant demonstra
o caminho que Tillich percorre em direção a formulação daquilo que viria a ser seu método
crítico-intuitivo em 1920. Então o autor conclui:
É o começo do século XX que torna notável a rejeição do método puramente
formal do neokantismo, que impele para uma compreensão de conteúdo de
uma nova forma. E não é por acaso que é a árvore genealógica de eruditos
133 Dennoch hat die phänomenologische Methode eine doppelte Bedeutung. Sie zeigt mit Recht, daß vor den
genetischen Erklärungsversuchen die zu erklärende Sache erst einmal in ihrer Eigentümlichkeit erfaßt sein muß
und daß darum die Beschreibung der Erklärung vorausgehen muß. Zweitens ist von höchster Wichtigkeit die
Forderung der Intuition, der Anschauung, des inneren Meinens vor jeder Erklärung und Bewertung.
69
católicos134 que, aqui, conduziu e impele para uma nova intuição. Mas este
caminho só é praticável na base do método crítico, não fora dele nem contra
ele135 (TILLICH, 2001 [1920], p. 380-381).
Assim como a fenomenologia carece de validez no âmbito dos fenômenos religiosos se
for tomada sem o elemento crítico, o mesmo vale para o método crítico se for tomado sem o
elemento intuitivo da fenomenologia pura. A união de ambos os elementos é um pressuposto
necessário para Tillich, algo que pode ser percebido, por exemplo, em seus comentários sobre
a abordagem de Rudolf Otto. O teólogo comenta que a compreensão de Otto a respeito do
numinoso como realidade que transpassa todas as formas objetivas expressa muito bem o
elemento intuitivo. “Para Otto a religião é esta experiência do numinoso, que tem a
particularidade de se apresentar como mysterium tremendum e fascinium. A semelhança com
os nossos conceitos é tão óbvia que dispensa maiores ênfases”136 (TILLICH, 2001 [1920], p.
438). Entretanto, na continuação o autor afirma que “falta a compreensão da relação entre forma
de pensamento e substância, porque o método crítico está ausente”137 (TILLICH, 2001 [1920],
p. 439). Em outro texto, o teólogo explica que “mesmo uma definição tão original e
extremamente significativa como a que Rudolf Otto oferece da religião sofre com essa recusa
de fazer uma delimitação sistemática da relação entre religião e cultura - isto não é acidental no
caso de Otto, mas uma consequência do caráter fenomenológico do método que adotou”138
(TILLICH, 1973 [1925], p. 61).
Para Tillich, no âmbito do fenômeno religioso, “A questão acerca do critério que deve
determinar a escolha de um exemplo só pode ser respondida se introduzirmos um elemento
crítico na fenomenologia pura” (TILLICH, 2011, p. 120). Nesse sentido, as possibilidades de
134 Em sua “Introdução à filosofia” (6 ed., Leipzig 1914) Wilhelm Wundt nomeia B. Bolzano, E. Husserl, F.
Brentano e A.v. Meinong (S. 9s), sobre a palavra-chave, de “moderna escolástica, Brentano e sua escola”. Ele até
fala de uma “árvore genealógica (Stammbaum) de estudiosos católicos” que têm mostrado o caminho para essa
nova compreensão da intuição (TILLICH, 2001 [1920], p. 380, nota 4).
135 Es ist der Beginn des 20. Jahrhunderts, der in Ablehnung der rein formalistischen neukantischen Methode sich
bemerkbar [macht], der nach neuer Gehaltserfassung drängt. Und es ist kein Zufall, daß es ein Stammbaum
katholischer Gelehrter ist, die hier geführt haben und auf eine neue Intuition hindrängen. Gangbar aber ist dieser
Weg erst auf dem Boden der kritischen Methode, nicht außer ihr oder gegen sie.
136 Für Otto ist Religion das Erlebnis des Numinösen, dessen Eigenart es ist, uns einerseits als mysterium
tremendum, andererseits als fascinosum entgegenzutreten. Die Ähnlichkeit mit unsern Begriffen liegt so auf der
Hand, daß ich darauf nicht näher einzugehen
137 Es fehlt die Einsicht in das Verhältnis von Denkform und Gehalt; denn es fehlt die kritische Methodik.
138 Even an original and extremely significant definition of the nature of religion such as that of Rudolph Otto
suffers from this refusal to make a systematic definition of the relation between religion and culture - and this
was not accidental in Otto’s case, but rather was due to the phenomenological character of the method he
adopted.
70
solução aos problemas básicos da filosofia da religião dependem da maneira em que o método
crítico pode ser colocado como resposta às exigências da fenomenologia.
Contudo, fez-se possível, nos últimos tempos e em toda parte, um impulso que
deve ir além, por um lado, da psicologia e, por outro, do formalismo kantiano.
Os representantes deste novo intuicionismo, que é marcada grosso modo pela
linha seguinte: a dedução de Kant das categorias, a auto-compreensão do Eu
de Fichte, a contemplação intelectual de Schelling, são Husserl e Bergson.
Com ambos se dá a exigência que o Eu não se relacione de forma reflexiva
com os objetos, mas se compreenda em sua atividade imediata, mas ambos em
oposição pura ao método crítico. Esta exigência da intuição não se deve
rejeitar, mas deve ser determinada exatamente e conduzida em harmonia com
a consideração crítica139 (TILLICH, 2001 [1920], p. 388).
Novamente aqui o teólogo reafirma sua posição de fronteira com a proposta de uma
tensão sempre constante entre o elemento intuitivo e o crítico. O método crítico como um
produto final não é reconhecido por Tillich como suficiente para uma análise do fenômeno
religioso, antes sua intenção é a relação entre as possibilidades de uma abordagem crítica da
religião pressupondo como base a apreensão deste fenômeno mediante a fenomenologia. Tillich
quer manter o mais próximo possível o momento intuitivo do crítico de tal modo que seja
possível evitar conduzir a religião para um reino das puras formas ou da pura essência. A tensão
entre estas duas esferas deve ser mantida. Nesse sentido, “o conceito desta função [a função
religiosa, uma vez que emerge da abordagem crítica] pode aparecer com maior
desenvolvimento na análise fenomenológica”140 (TILLICH, 2001 [1920], p. 392). É com a
intenção de evitar o afastamento entre estes dois elementos que o teólogo irá desenvolver o
método crítico-intuitivo. Neste momento, a posição de Tillich não é nem de um fenomenólogo
e nem de um racionalista, mas é fronteiriça, convencido de que a abordagem coerente do
fenômeno religioso é por si mesmo complexa e, portanto, exige um relacionamento mútuo entre
a crítica e a intuição.
O desenvolvimento dessa proposta metodológica de Tillich pode ser observado
inicialmente em quatro textos do período alemão. O curso sobre filosofia da religião ministrado
em Berlim em 1920, “A superação do conceito de religião na filosofia da religião” (1922), o
139 Dennoch hat sich in der letzten Zeit allenthalben ein Drängen bemerkbar gemacht, das einerseits über die
Psychologie, andererseits über den Kantischen Formalismus hinausführen soll. Die Wortführer in diesem neuen
Intuitionismus, der etwa durch die Linie: Kants Deduktion der Kategorien, Fichtes Selbsterfassung des Ich,
Schellings intellektuelle Anschauung bezeichnet ist, sind Husserl und Bergson. Bei beiden die Forderung, daß das
Ich sich nicht auf Gegenstände reflektierend beziehe, sondern sich in seiner Aktivität unmittelbar erfasse, beide
aber in reinem Gegensatz zu der kritischen Methode. Diese Forderung der Intuition ist nicht abzuweisen, muß aber
genau bestimmt und mit der kritischen Betrachtung in Einklang gebracht werden.
140[...] so daß der Funktionsbegriff als Fortbildung des phänomenologischen erscheinen kann.
71
“Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (1923) e na “Filosofia da Religião” (1925).
Béland (1995, p. 134) comenta que em “A superação do conceito de religião na filosofia da
religião”, e aqui pode-se incluir também o curso de 1920, a proposta do método parece ser
ainda embrionária e o teólogo trabalha apenas com o método que ele chama de “crítico-
intuitivo”. No Sistema das Ciências segundo objetos e métodos Tillich começa a desenvolver o
método metalógico e atribui a ele certa singularidade no âmbito das ciências do espírito. Já na
Filosofia da Religião Tillich vai valorizar o método metalógico em relação a outros métodos
discutidos pelo teólogo, e termina dizendo que este método é o mais adequado para a filosofia
da religião.
2.2. O método crítico-intuitivo
De acordo com o pensador alemão, o “método é a maneira sistemática de fazer algo,
especialmente de obter conhecimento. Nenhum método pode ser encontrado isolado da sua
aplicação real; considerações metodológicas são abstrações dos métodos em uso”141 (TILLICH,
1987b [1947], p. 301). Perrottet (2008, p. 223) comenta que para Tillich, o método é inerente
ao processo do pensamento e não um instrumento importado de fora, de modo que todo método
deve possuir um caráter dinâmico para evitar que se instaure um imperialismo metodológico.
Da mesma forma, o teólogo destaca a estrita relação que existe entre método e objeto,
especificamente no caso da filosofia da religião, ele afirma que de fato, pode-se dizer que o
método aqui é quase a coisa em si (TILLICH, 2001 [1920], p. 367). Entretanto, o teólogo afirma
também que embora esta relação seja de fato importante, não significa que para cada objeto
exista apenas um método. Nesse sentido:
o mesmo método quer compreender vários objetos e o mesmo objeto está
aberto a vários métodos; sim, ao observar mais de perto, a diferença entre
objeto e método fica difusa e se levanta a grande questão, até que ponto os
objetos criam os métodos e até que ponto os métodos criam os objetos142
(TILLICH, 1989 [1923], p. 117).
141 Method is the systematic way of doing something, especially of gaining knowledge. No method can be found
in separation from its actual exercise; methodological considerations are abstractions from methods actually used.
142 die gleiche Methode will mancherlei Gegenstände erfassen und der gleiche Gegenstand ist manchen Methoden
offen; ja, bei näherem Zusehen wird der Unterschied von Gegenstand und Methode flüssig und es erhebt sich das
große Problem, inwieweit die Gegenstände die Methoden und inwieweit die Methoden die Gegenstände schaffen.
72
O que se pretende destacar com isto é a proximidade que existe entre a definição de
religião elaborada por Tillich e o método proposto para abordá-la. Nesse sentido, a questão
sobre como proceder em filosofia da religião e em teologia, bem como o objeto sobre qual se
está falando, estão interligados e ocupam um espaço importante nas reflexões do teólogo. Uma
das primeiras expressões dessa preocupação pode ser encontrada no curso sobre filosofia da
religião de 1920 e no texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião” de
1922 em que o método proposto é o crítico-intuitivo. No curso sobre filosofia da religião, o
teólogo dedica a nona aula para apresentar os fundamentos de seu método crítico-intuitivo e
afirma também que através dele espera-se dar “um passo importante para a nova formação das
ciências da cultura e da filosofia da religião em especial”143 (TILLICH, 2001 [1920], p. 392).
O autor afirma que “No método crítico-intuitivo três elementos estão unidos: o crítico,
o idealista e o transcendental-psicológico. Os dois primeiros 144 estão reunidos na doação dos
nomes”145 (TILLICH, 2001 [1920], p. 391). Na sequência o teólogo comenta que o primeiro
passo será investigar o que deve ser compreendido sob o momento crítico do método, então,
até que ponto ambos os outros se unem no intuitivo, enfim, como o crítico e o intuitivo podem
formar uma unidade. Sendo assim, no início da nona aula do curso de 1920 Tillich começa com
uma declaração sobre o momento crítico de seu método, e afirma que:
Falar sobre o significado do momento crítico é, após todos os precedidos,
fácil: significa que no contexto da consciência uma função deve ser mostrada,
a qual é necessária para a constituição da consciência e, com isto, ao mundo
de manifestação e cuja característica aproxima ela da proximidade daquela
manifestação, que é sinalizada como “religião” na descrição da experiência
fenomenológica. Ela merece este nome também se bem que [ou: embora], de
fato, se desvia dos resultados da fenomenologia em algo, mas dentro das suas
funções ainda lhe está mais próxima e permite-se mostrar uma continuidade
de contexto, de modo que o conceito de função pode aparecer como
continuação [do desenvolvimento] do fenomenológico. Deve-se conduzir, em
primeira linha, a prova que fora da então conhecida e identificável função
fenomenológica existe uma [função], que é constitutiva para o mundo de
manifestação, sem a qual uma síntese da variedade na unidade da consciência
não seria possível, sem a qual teria que quebrar a unidade da realidade.
Conseguida esta prova, deve-se mostrar que esta função mantém
essencialmente isto, o que se visa com aquela manifestação que está
143 Gelingt es, eine solche Methode zu finden, so ist damit ein wichtiger Schritt zur Neugestaltung der
Kulturwissenschaften und der Religionsphilosophie im besonderen geschehen.
144 Visa-se o elemento idealista e o transcendental-psicológico.
145 In der Kritisch-intuitiven Methode sin also drei Elemente vereinigt: das kritische, das idealistische, das
transcendentalpsychologische. Die beiden zweiten werden in der Namengebung zusammengefaßt.
73
fenomenologicamente conhecida como religião. Com isto está caracterizado
o momento crítico de nosso método146 (TILLICH, 2001 [1920], p. 391-392).
Tillich (2001 [1920], p. 346) afirma que “a prova da verdade da religião está na prova
de sua necessidade em termos de consciência, que se torna válido sob a crítica”147. Nesse
sentido a religião como uma função necessária para a constituição da consciência e, portanto,
do mundo fenomenal é compreendida como portadora de um papel insubstituível no
funcionamento do pensamento, isto é, o elemento crítico possibilita apresentar uma justificação
dos processos mentais na medida em que sua validade é comprovada através de uma análise do
seu funcionamento (PERROTTET, 2008, p. 70). De acordo com Tillich (2001 [1920], p. 392),
neste caso a unidade da consciência aparecerá como uma simples função lógica, que constrói a
realidade a partir de elementos lógicos. A realidade é a rede das determinações lógicas, que
constitui a realidade, através da qual ela é aproximada, em um processo infinito ao ideal lógico,
da absoluta síntese de toda variedade.
Entretanto, a ação religiosa não é uma esfera ao lado de outras, mas uma ação que se
atualiza por meio das formas posta pelo espírito em sua incessante criatividade. Para dar conta
desse objeto, o método deve simultaneamente ser lógico, por causa das formas do pensamento,
mas também algo mais do que lógico, por conta do conteúdo das formas. O elemento crítico,
portanto, possibilitaria evidenciar a forma em que o sentido incondicional é atualizado na
estrutura do espírito, mas na medida em que o pensamento reflete sobre sua própria existência,
afirma Tillich, “conduz-se um momento irracional na consciência que não pode ser resolvido
nas determinações do pensamento, mas deve ser compreendido intuitivamente. Assim, teríamos
146Über die Bedeutung des kritischen Momentes zu reden, ist nach allem Vorangegangenen leicht: Es bedeutet
dieses, daß im Zusammenhange des Bewußtseins eine Funktion aufgewiesen werden muß, die zur Konstitution
des Bewußtseins und damit der Erscheinungswelt notwendig ist und deren Charakterisierung sie in die Nähe
derjenigen Erscheinung rückt, die in der phänomenologischen Erfahrungsbeschreibung als „Religion"
gekennzeichnet wird. Sie verdient diesen Namen auch dann, wenn sie zwar von den Resultaten der
Phänomenologie in manchem abweicht, aber innerhalb der Funktionen ihr doch am nächsten steht und sich eine
Kontinuität des Zusammenhanges aufweisen läßt, so daß der Funktionsbegriff als Fortbildung des
phänomenologischen erscheinen kann. Es ist also in erster Linie der Nachweis zu führen, daß außer der sonst
bekannten und phänomenologisch identifizierbaren Funktion eine besteht, die konstitutiv für die Erscheinungswelt
ist, ohne die eine Synthesis der Mannichfaltigkeit in der Einheit des Bewußtseins nicht möglich wäre, ohne die
also die Einheit der Wirklichkeit zerbrechen müßte. Ist dieser Nachweis gelungen, so ist zu zeigen, daß diese
Funktion das im Wesentlichen hält, was die phänomenologisch als Religion bekannte Erscheinung meint. Damit
ist das kritische Moment unserer Methode charakterisiert.
147Der Wahrheitsbeweis der Religion ist der Beweis ihrer Bewußtseinsnotwendigkeit, ihres Geltens im kritischen
Sinne.
74
alcançado o outro momento do método crítico-intuitivo, o intuitivo”148 (TILLICH, 2001 [1920],
p. 392). O elemento crítico evidencia as formas em que os sentidos são dados, mas este é
também seu limite, ou seja, não consegue ir além das formas e para tanto, torna-se necessário
um elemento intuitivo.
No elemento intuitivo, afirma Tillich (2001 [1920], p. 392-393), “encontramos um
momento especulativo e psicológico. Intuição no sentido em que aqui é visada é psicologia
especulativa. Uma psicologia é especulativa se, nos elementos da consciência que ela procura
compreender, ela compreende de forma imediata os elementos da realidade como tal”149. O
autor comenta que esta forma de pensar é própria de toda a tradição mística, e que inclusive
este método poderia receber o nome de místico caso tal palavra como designação metodológica
não fosse tão mal compreendida. “A ideia de que os elementos da realidade não são
compreendidos em qualquer lugar no mundo exterior, mas apenas ‘nas pessoas, nos corações’
é tanto a base do pensamento filosófico Hindu como da mística vitoriana e eckhartiana”150
(TILLICH, 2001 [1920], p. 393). Na sequência, ele exemplifica dizendo que “O Brahman, isto
é, o princípio do mundo, é o Atman, isto é, o Si como é experiência do próprio Si. O Si próprio
e o Si geral não são dois, mas um e o mesmo. Na compreensão do próprio Si o Si cósmico é
compreendido”151 (TILLICH, 2001 [1920], p. 393).
Perrottet (2008, p. 182) comenta que a presença da palavra psicologia não deve ser
entendido no sentido usual da psicologia, mas no sentido da psicologia transcendental e
especulativa. Trata-se da percepção imediata da realidade pela consciência, isto é, uma
percepção direta por intuição daquilo que se apresenta a consciência. Esta abordagem imediata
e intuitiva à realidade, onde o individual e o universal, onde Atman e Brahman se unem, tem
sido praticada por toda a tradição mística e é comum a uma longa linhagem de pensadores que
através do tempo, serviu para contrabalançar tendências racionalistas. Tillich não é nem um
148 Aber, so muß es sich die übrigen Geistestätigkeiten gleichstellen, damit aber ein irrationales Moment in das
Bewußtsein einführen, das nicht in Denkbestimmungen aufgelöst werden kann, sondern nur intuitiv zu erfassen
ist. Damit hätten wir dann das andere Moment der kritisch-intuitiven Methode, das intuitive, erreicht.
149 In ihm treffen sich ein spekulatives und psychologisches Moment. Intuition in dem Sinne, wie sie hier gemeint
ist, ist spekulative Psychologie. Eine Psychologie ist spekulativ, wenn sie in den Bewußtseinselementen, die sie
zu erfassen sucht, unmittelbar die Elemente der Wirklichkeit überhaupt erfaßt.
150 Der Gedanke, daß die Elemente der Wirklichkeit nicht irgendwo in der Außenwelt zu erfassen sind, sondern
allein „im Menschen im Herzen", ist ebensosehr der Grundgedanke der indischen Philosophie, wie er der
Grundgedanke der viktorinischen und Eckhartschen Mystik ist.
151 Das Brahman, das heißt das Weltprincip, ist das Atman, das heißt das Selbst, wie [es] im eigenen Selbst erfahren
wird. Das eigene und das allgemeine Selbst sind aber nicht zwei, sondern ist ein und dasselbe. In der Erfassung
des eigenen Selbst wird das kosmische Selbst erfaßt.
75
místico e nem um racionalista, embora seja um pouco dos dois, assumindo como fez em muitos
momentos, uma posição de fronteiras. “O que lhe interessa aqui é a articulação de uma
abordagem coerente que faça justiça a ambos. E não é porque ele insiste em incluir as duas
áreas, mas porque ele está convencido de que a solução está em uma compreensão correta de
seu relacionamento mútuo”152 (PERROTTET, 2008, p. 181).
Semelhantemente, Richard (2008, p. 269) comenta que o conceito de intuição foi
aprofundado e fundamentado por Tillich em termos filosóficos para que sua aproximação com
o método crítico fosse possível. “Tillich encontra tal filosofia na Logische Untersuchungen de
Edmund Husserl. Lá, ele reconhece um novo método filosófico, ou seja, o método
fenomenológico [...] Esta não é uma tarefa fácil de conseguir, já que significa um acordo entre
Kant e Husserl”153 (RICHARD, 2008, p. 269). De acordo com o teólogo, o que Husserl está
procurando é uma nova forma de apreensão do self como um sujeito e não como objeto de uma
consideração empírico-psicológica. Este é, portanto, o caminho da intuição proposto por
Husserl, mas como pode um sujeito ver a si próprio? Tem-se que mudar o olhar para dentro,
tem que compreender a si próprio em seu ato. “Assim, o método não é reflexivo, mas intuitivo,
e não é direcionado aos motivos explicativos, mas direcionado à própria coisa”154 (TILLICH,
2001 [1920], p. 379). Esta abordagem intuitiva permite dar o passo necessário para além da
psicologia empírica e do formalismo kantiano.
O método intuitivo volta-se, portanto, para o problema do irracional. Nas palavras de
Tillich (2001 [1920], p. 397) “Quanto ao problema que para ser resolvido através do método
intuitivo pode, de agora em diante, ser designado brevemente como o irracional”155. O método
crítico sozinho também pode falar sobre o irracional, mas no final ele o racionaliza. Ele o
resolve em uma determinalidade racional. Por outro lado, “O método intuitivo por si só não
pode ganhar nenhuma relação normal com o racional. Ele o usa por isso de maneira ingênua,
152 Ce qui l'intéresse avant tout ici, c'est l'articulation d'une méthode cohérente qui fasse justice aux deux. Et ce
n'est pas parce qu'il tient absolument à inclure les deux domaines, mais parce qu'il est convaincu que la solution
se trouve dans une saisie correcte de leur rapport mutuel.
153 Tillich finds such a philosophy in the Logische Untersuchungen of Edmund Husserl. There he recognizes a
new philosophical method, that is, the phenomenological method [...] This is not an easy task to achieve, since it
means an agreement between Kant and Husserl.
154Die Methode ist also nicht reflektiv, sondern intuitiv, und sie ist nicht auf die zu erklärenden Ursachen, sondern
auf die Sache selbst gerichtet.
155 Das Problem selbst aber, das durch die intuitive Methode zu lösen ist, kann nunmehr kurz bezeichnet werden
als das des Irrationalen.
76
para puxá-lo para baixo metafisicamente”156 (TILLICH, 2001 [1920], p. 397). O método crítico
é incapaz de ir além das formas, e ao considerar o problema da realidade, este método se perde
na própria realidade e, portanto, é incapaz de alcançar a essência da coisa. Por outro lado, o
método intuitivo ou fenomenológico por sua intuição imediata do que existe acaba perdendo de
vista o problema da realidade, isto é, não consegue dar conta da existência.
Enquanto Kant, afirma Tillich (2001 [1920], p. 397), tentou encontrar os princípios do
mundo na filosofia racionalista derivada das ciências naturais matemática, o místico tem
procurado tais princípios nas profundezas do sentimento criador e irracional. Um pela crítica e
outro pela intuição. Ambos os elementos precisam ser unidos, pois “enquanto o pensamento na
forma de reflexão mantém as coisas à distância, a intuição os coloca em um estado de identidade
com o sujeito que as contempla”157 (TILLICH, 2001 [1920], p. 152).
Nesse sentido, tanto no curso sobre filosofia da religião de 1920 quanto no texto “A
superação do conceito de religião na filosofia da religião” de 1922, o método crítico-intuitivo
“Procede da convicção de que nem o método crítico e nem o intuitivo, por si mesmos, são
capazes de resolver o problema central da filosofia da religião e portanto, também da filosofia
da cultura – ou seja, a pergunta sobre o sentido último da realidade de cada coisa concreta”158
(TILLICH, 1973 [1922], p. 149). Para o autor, o problema do incondicional é determinar um
ponto que transcenda a distinção entre essência e existência, e para este fim a utilização de
apenas um dos dois métodos é impossível. “O alvo metodológico será então uma ligação do
crítico com o intuitivo, do racional e do irracional”159 (TILLICH, 2001 [1920], p. 397).
O método crítico-intuitivo, comenta Tillich (1973 [1922], p. 148) parte das funções do
espírito consideradas como as formas nas quais se dão todas as coisas, ele se volta sobre si
mesmo e percebe que todas estas formas estão vazias a menos que sejam preenchidas com o
sentido de algo incondicionalmente real. “O que é ‘real’ em todas as coisas não é em si uma
realidade, nem é a totalidade, nem mesmo a infinitude do real. Mas a percepção disso já não é
156 Die intuitive Methode allein kann kein normales Verhältnis zum Rationalen gewinnen. Sie benutzt es deswegen
naiv, um es metaphysisch herabzudrücken.
157 Während das reflektierende Denken die Dinge in Distanz hält, bringt die Anschauung sie in Identität mit dem
betrachtenden subjekt.
158 It proceeds from the conviction that neither the critical nor the intuitive method alone is capable of solving the
central problem of philosophy of religion, and hence also of philosophy of culture – namely, the question
concerning the ultimate meaning and reality of every actual thing.
159 Es ist also eine Verbindung der kritischen und der intuitiven, der rationalen und der irrationalen Methode das
methodische Ziel.
77
assunto da crítica, mas da intuição”160 (TILLICH, 1973 [1922], p. 150). Ali onde a crítica
estabelece seus conceitos limites e testemunha suas próprias limitações, a intuição percebe o
incondicionalmente real que constitui a raiz da realidade e a partir do qual toda crítica vive. A
intuição possibilita com isso um contato imediato com as formas de sentido a verificação de
uma realidade de valor incondicional. De acordo com Tillich (2001 [1920], p. 579):
O método crítico-intuitivo [riscado: crítico-místico]. Seu princípio volta a
separar o criticismo kantiano de seus elementos antrópicos e psicológicos e a
compreender que as relações de validez são válidas “em si”. [...] Fazendo isto,
vai-se – além da oposição entre sujeito individual e sujeito humano – ao
objeto. O princípio de identidade no sentido da mística está alcançado. -
Assim, toda a problemática do objetivo se torna supérflua. A especulação, sob
todas as formas, é superada. [...] Este método é intuitivo como o método
fenomenológico, mas, ao mesmo tempo, é crítico; ele é crítico-racional mas,
ao mesmo tempo, psicológico-irracional. É especulativo e, ao mesmo tempo,
empírico. [...] A antítese primária entre pensamento e ser como princípio para
uma solução do problema da coisa em si. É aí que a identidade entre o mundo
e a consciência está dada161.
O teólogo apresenta um cenário paradoxal em que o racional e irracional estão unidos e
devem ser considerados. Trata-se de um paradoxo necessário, pois “toda afirmação em relação
ao Incondicional tem necessariamente a forma de um paradoxo [...] Mas o paradoxo do
Incondicional não pode ser resolvido. Ele propõe um problema que requer o exercício da
intuição (Schauen)”162 (TILLICH, 1973 [1922], p. 123). Nesse sentido, o método crítico-
intuitivo é, portanto, o método do paradoxo, da constante irrupção e anulação da forma pela
realidade que está nela, isto é, o incondicional ao mesmo tempo que afirma a forma, também a
rompe paradoxalmente.
Para o autor, na plena afirmação da forma crítica autônoma, a significação do
incondicional é de se libertar, irromper e destruir toda forma, não de maneira informal, mas
paradoxalmente. “A vida que se vive dentro dessa tensão, a mais alta de todas as tensões, é vida
160 That which is the “real” (Reale) in all things is not itself a reality, nor is it the totality or even the infinity of the
real. The perception of this, however, is no longer a matter of criticism but of intuition.
161 Die kritisch-intuitive Methode. Ihr Prinzip ist die Loslösung des kantischen Kriticismus von anthropistisch-
psychologischen Elementen und die Einsicht, daß die Geltungszusammenhänge „an sich" gültig sind. [...] Damit
wird vor den Gegensatz von individuellem und menschlichem Subjekt zum Objekt gegangen. Das Prinzip der
Identität im Sinne der Mystik ist erreicht. — Dadurch wird die ganze Problematik des Objektiven überflüssig. Die
Spekulation in jeder Form ist überwunden. — Diese Methode ist intuitiv wie die phänomenologische, aber
zugleich kritisch; sie ist kritisch-rational, aber zugleich psychologisch irrational. Sie ist spekulativ, aber zugleich
empirisch. [...] Die primäre Antithese von Denken und Sein als Lösungsprincip für das Ding-an-sich-Problem.
Eben darin die Identität von Welt und Bewußtsein gegeben
162 Every statement about the Unconditional is necessarily in the form of Paradox. [...] But the paradox of the
Unconditional is not resolvable. It poses a problem that calls for intuition (Schauen).
78
que provém de Deus. A intuição deste paradoxo infinito é pensar a respeito de Deus; e se isso
for desenvolvido metodologicamente, se transforma em filosofia da religião ou em teologia”163
(TILLICH, 1973 [1922], p. 150-151).
A reflexão sobre Deus é uma reflexão intuitiva, e como visto no capítulo anterior, uma
experiência de caráter reflexivo que ocorre na dimensão da vida consciente. O ser humano é
imediatamente consciente de algo incondicional, que ao irromper na consciência assume um
caráter específico. Trata-se da relação com o incondicional que é inerente a cada ação, pois
assim que a intencionalidade da consciência se dirige ao incondicional, há certa dualidade da
ação e objeto, mas tal como foi dito, uma ação religiosa não é uma ação especial, e só se atualiza
em outras ações do espírito. Nessa atualização,
[...] deve dar uma formação peculiar a estas outras ações de tal modo que se
faça visível sua qualidade religiosa, e esta formação é o paradoxo, ou seja, a
afirmação e negação simultânea da forma autônoma. O pensamento religioso
– e a intuição se transforma assim em uma maneira de pensar – é uma “ação
perceptiva” (Anschauen) na qual as formas autônomas do pensamento e a
intuição são ao mesmo tempo usadas e demolidas164 (TILLICH, 1973 [1922],
p. 144).
Nesse sentido como afirma Tillich, o método crítico-intuitivo volta-se para a
consciência, isto é “a direção do método crítico-intuitivo é a consciência. Nisto ele é
psicológico. Mas a consciência não [é de se compreender] como processo psicológico, mas
como princípio do mundo de manifestação. Nisto ele é especulativo”165 (TILLICH, 2001
[1920], p. 397). Quando considerados a partir dessa perspectiva torna-se possível preservar o
caráter formal e racional das formas religiosas bem como seu aspecto irracional e subjetivo,
“Portanto, na presença do Incondicional o conhecimento é inspiração, a percepção intuitiva é
um mistério, a ação é graça e a comunidade é o Reino de Deus. Todos estes conceitos são
163 Life within this highest of tensions is life from God. Intuition of this infinite paradox is thinking about God;
and if it is methodically developed, it becomes philosophy of religion or theology.
164 [...] it must give these other acts a formation in which their religious quality is visible, and that formation is
paradox, i.e., the simultaneous affirmation and negation of autonomous form. Religious thinking – and intuitive
perception is thus a mode of thinking – is a “perceiving” (Anschauen) in which the autonomous forms of thought
and intuition are simultaneously employed and shattered.
165 Die Richtung der kritisch-intuitiven Methode ist das Bewußtsein. Darin ist sie psychologisch. Aber das
Bewußtsein nicht als psychologischer Vorgang, sondern als Princip der Erscheinungswelt. Darin ist sie spekulativ.
79
paradoxais, isto é, conceitos que perdem seu sentido imediatamente quando se trata de explicá-
los objetivamente”166 (TILLICH, 1973 [1922], 144).
A religião, por outro lado, trabalha com tais conceitos e ao proceder dessa forma acaba
incorrendo em objetivações. A proposta de um método crítico-intuitivo possibilita dessa forma
uma abordagem das formas religiosas em que a constante afirmação e negação das formas são
pressupostas. Paradoxalmente o incondicional se manifesta através das formas, embora não se
limite à forma, mas a transcende infinitamente. A abordagem, portanto, se concentra no aspecto
formal e racional, mas pressupondo seu caráter irracional. O método crítico-intuitivo permite
que a tensão entre os dois polos seja sempre mantida e que a experiência não seja reduzida a
um aspecto puramente racional ou irracional.
Em seu texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, o teólogo
comenta também que sua preocupação neste momento não era resolver um problema puramente
teórico, mas indicar uma situação espiritual para qual avança inevitavelmente o curso do
desenvolvimento espiritual da cultura. Trata-se, portanto, de “preparar o caminho para uma
atitude mental na qual se tenha derrubado a auto-certeza do condicionado frente a certeza e
realidade do Incondicional”167 (TILLICH, 1973 [1922], p. 149). O autor consegue dessa forma
alcançar a meta que estava procurando, isto é, lançar as bases metodológicas para compreender
a religião como a intuição do mistério que se apresenta a consciência em sua intencionalidade
dirigida ao incondicional. De acordo com Richard, “finalmente, isto é o que Tillich pretendia
apresentar: na consciência ou espírito humano, existe uma função religiosa especial – em outras
palavras, um a priori religioso”168 (RICHARD, 2008, p. 270). A religião, com isto, fica
criticamente justificada e fundamentada (TILLICH, 2001 [1920], p. 402).
2.3. O método metalógico
166 Thus, in the presence of the Unconditional, knowing is inspiration, intuitive perception is mystery, acting is
grace, and community is the kingdom of God. These are all paradoxical concepts, i.e., concepts that immediately
lose their meaning when construed objectively.
167 It was to prepare the way for a state of mind in which the self-certainty of the conditioned was shattered before
the certainty and reality of the Unconditional.
168 Finally, this is what Tillich intended to show: in human consciousness or spirit, there is a special religious
function - in other words, a religious a priori.
80
A elaboração do método crítico-intuitivo tal como proposto por Tillich em 1920 e em
1922, ganha em 1923 no Sistema das Ciências segundo objetos e métodos e na Filosofia da
Religião de 1925 o nome de método metalógico169. Higuet (2011, p. 40) comenta que o método
crítico e o método intuitivo constituem num primeiro momento o método crítico-intuitivo ou
paradoxal que irá desembocar no método metalógico, “que é próprio da filosofia e das ciências
do espírito ou da cultura; enfim, na Filosofia da Religião de 1925, o método crítico-dialético é
ampliado a partir do pragmatismo e da fenomenologia, para constituir o método metalógico, o
mais adequado ao objeto religioso” (HIGUET, 2011, p. 40).
Em Sistema das Ciências segundo objetos e métodos (System der Wissenschaften nach
Gegenständen und Methoden) de 1923, Tillich chama atenção para as tensões existentes na vida
e suas relações. A vida neste sentido é um solo composto por esferas do tipo racional,
emocional, religioso (no sentido estrito), etc. que não podem ser fragmentadas, e que por conta
disso, se encontram em constante tensão. Dessa forma, Tillich propõe uma análise integradora
que encara cada uma das múltiplas esferas da vida a partir do próprio ato de conhecer, isto é, a
partir de seu fundamento. Nesse sentido, por detrás das diferentes esferas do conhecimento há
uma unidade que deve ser considerada. Para o autor, um verdadeiro sistema sempre manifesta
através de suas formas algo mais do que a pura forma. Em toda forma há uma substância que
caracteriza a própria força viva de um sistema, sua intuição original. Nesse sentido todo sistema
vive a partir do princípio sobre o qual foi construído
Entretanto, cada princípio último é a manifestação de uma visão da realidade
última, de uma visão de vida que coloca fundamentos. Assim, a todo instante
rompe através do Sistema Formal das Ciências um valor que é metafísico, isso
significa que ele está para além de toda forma individual e além de todas as
formas e, por isso, nunca pode ser ele mesmo uma forma ao lado de outras,
como uma espécie de falsa Metafísica. O metafísico é a força viva, o sentido
e o sangue (Blut) do Sistema. Nesse sentido – e somente neste – o Sistema
Formal das Ciências é metafísico170 (TILLICH, 1989 [1923], p. 118).
169
De acordo com Perrottet (2008, p. 214) o termo “metalógica” foi primeiramente encontrado entre os lógicos
como Frege, quando fala sobre aquilo que vai além da simples lógica e diz respeito à justificação teórica de
modelos lógicos. Nada que se aproxime muita da filosofia da religião. A maneira como Tillich usa o termo é
retomado a partir de Troeltsch, muito embora, como afirma Adams (1970, p. 148), existem diferenças entre o uso
que Troeltsch e Tillich fazem do método.
170 Jedes letzte Prinzip aber ist der Ausdruck einer letzten Wirklichkeitsschau, einer grundlegenden Lebenshaltung.
So bricht durch das Formalsystem der Wissenschaften in jedem Augenblick ein Gehalt hindurch, der metaphysisch
ist, d. h. der jenseits jeder einzelnen Form und aller Formen liegt, und darum nie nach Art einer falschen
Metaphysik selbst eine Form neben anderen sein kann. Das Metaphysische ist die lebendige Kraft, der Sinn und
das Blut des Systems. In diesem - aber nur in diesem Sinne – ist das Formalsystem der Wissenschaften
metaphysisch.
81
Para dar conta dessa empreitada o teólogo propõe o método metalógico. Para Tillich
(1989 [1923], p. 122) “O método das ciências humanas é metalógico; é lógico por conta das
formas de pensamento e metalógico por causa do conteúdo inerente ao ser. Mas ambos
constituem uma unidade”171. O teólogo afirma que o logicismo não é capaz de alcançar o
conteúdo do ser, ele priva o pensamento de sua substância e impede o acesso à natureza do
sentido. O alogismo por outro lado, abre mão do elemento racional da consciência e não alcança
a forma do pensamento. “O primeiro deve impor-se (violentar) às ciências a partir de um
esquema lógico-formal, o segundo não tem as condições de realizar uma construção sistemática
fechada e intrinsecamente necessária”172 (TILLICH, 1989 [1923], p. 122). Higuet (2011, p. 36)
comenta que através do método metalógico, o ser não será pensado somente como categoria
lógica, mas intuído como substância viva. Dessa forma, a essência do método metalógico está
em sua intuição do elemento irracional nas funções de conhecimento.
De acordo com Tillich (1989 [1923], p. 123) o método metalógico pretende abarcar os
dois elementos fundamentais do ato de conhecer e permitir a continuidade da tensão entre eles.
Em outras palavras, o método metalógico procura evidenciar a forma do ser sem anular seu
conteúdo, na medida em que também possibilita revelar o conteúdo do ser sem anular sua
forma. A justificativa para tal método é que o pensamento na sua pura auto-compreensão (o
ponto de partida) tenha se percebido diferente até do ato de conhecer, que é apenas uma
realidade espiritual ao lado de outras. Para o autor, há uma diferença fundamental entre o
pensamento como puro ato que se dirigi ao ser e o refletir como uma realização formal desse
direcionamento.
Paralelamente à reflexão, aparecem também o contemplar, o estruturar, o crer, etc. que
estão mais voltados ao elemento conteúdo. Nesse sentido, “é de natureza do método metalógico
que, através dele, o elemento irracional destas funções olhe para dentro do lógico”173
(TILLICH, 1989 [1923], p. 123). O pensamento, portanto, pode inclinar-se mais para a forma
do ser assim como para o conteúdo do ser. Desta forma, com um toque metalógico que agrega
um elemento irracional ao lógico, o ‘“pensamento’ se iguala a ‘forma em geral’ e, ‘Ser’, se
171 Die Methode der Geisteswissenschaften ist metalogisch: logisch um der Denkformen, metalogische um des
Seinsgehaltes willen. Beides aber ist eine Einheit.
172 Der erste muss alle Wissenschaften von einem formal-logischen Schema aus vergewaltigen, der zweite ist außer
Stande, einen geschlossenen, in sich notwendigen systematischen Aufbau zu leisten.
173 Es ist nun das Wesen der metalogischen Methode, daß sie das irrationale Element dieser Funktionen in das
Logische hineinschaut.
82
torna igual a ‘conteúdo em geral’. ‘Pensamento’ se torna a expressão do elemento racional
estruturador e portador da forma, ‘Ser’ se torna a expressão do elemento irracional, vivo,
infinito, da profundidade e da força criadora de todo o real”174 (TILLICH, 1989 [1923], p. 123,
grifo do autor).
Outra característica importante do método metalógico no contexto do sistema das
ciências é que ao contrário da pura lógica, que procura sempre capturar toda a realidade numa
forma racional estática, o método metalógico é dinâmico. Trata-se de um método que revela o
conteúdo através da viva mobilidade da forma, e que apesar de toda movimentação, não perde
sua unidade lógica. Todo o Sistema das Ciências foi esboçado tendo em conta esta dinâmica,
“como viva contradição e viva unidade entre pensamento e ser”175 (TILLICH, 1989 [1923], p.
123). A sistemática e o espírito devem fazer uso de ambas as formas de conhecer, da mesma
forma que o ser também não pode ser visto como uma categoria lógica, mas como conteúdo
vivo presente em toda esfera do conhecimento. “Para cada uma destas funções o ser é algo
diferente, mesmo assim, em todas elas o visado (gemeint) é o mesmo, o Incondicionalmente-
real que confere conteúdo a todas as formas”176 (TILLICH, 1989 [1923], p. 123). Em toda forma
de sentido está presente uma substância que deve ser evidenciada metalogicamente, isto é, a
dinâmica da forma e substância se apresenta como o requisito necessário na constituição da
teoria sistemática.
Com isso, o teólogo demonstra que o sentido de pensamento e ser no Sistema das
Ciências, jamais será puramente lógico, e nem mitológico, pois não se trata de categorias vazias
e nem de coisas de natureza superior, “mas sim, são os elementos de sentido da realidade,
compreendidos com a ajuda de todas as funções do espírito, descritos como conceitos
científicos”177 (TILLICH, 1989 [1923], p. 124). O método metalógico adquire no Sistema das
Ciências um caráter fundamental porque consegue, como comenta Higuet (2011, p. 37)
incorporar o “compreender” na crítica. O ato da compreensão nessa dinâmica significa
apreender os elementos do sentido e as tensões que são inerentes a forma. Trata-se, portanto,
174 „Denken“ wird gleich Form überhaupt“ und „Sein“ gleich „Gehalt überhaupt“. „Denken“ wird Ausdruck des
rationalen, gestaltenden, formtragenden Elementes, „Sein“ wird Ausdruck des irrationalen, lebendigen,
unendlichen Elementes, der Tiefe und der Schöpferkraft alles Wirklichen.
175 Als lebendiger Widerspruch und lebendige Einheit von Denken und Sein.
176 Für jede dieser Funktionen ist das Sein etwas anderes, und doch ist in allen dasselbe gemeint, das allen Formen
Gehalt gebende Unbedingt-Wirkliche.
177 Es sind keine leeren Kategorien, aber es sind erst recht keine Dinge höherer Art, sondern es sind die von allen
Geistesfunktionen her erfaßten Sinnelemente der Wirklichkeit, dargestellt im wissenschaftlichen Begriff.
83
do pensar enquanto elemento doador de sentido e do ser enquanto elemento receptor. O método
metalógico possibilita o reconhecimento da relação que existe entre as formas de sentido com
a forma incondicionada (aspecto crítico) e o sentido próprio de cada forma de sentido (aspecto
fenomenológico). No sistema das ciências, o pensamento e ser são categorias elementares do
sentido que devem ser considerados metalogicamente, assim como forma e substância, tal como
descritos por Tillich de maneira especifica em sua filosofia da religião.
No texto Filosofia da Religião, de 1925, o método metalógico será mais diretamente
aplicado à análise da religião, considerado aqui como o método mais adequado para este fim.
Novamente aqui o método metalógico é descrito como a soma dos elementos intuitivo e
dinâmico ao método crítico. De acordo com o autor, o método metalógico é:
É lógico enquanto conserva a orientação às puras formas racionais que
caracteriza o método crítico. É metalógico porque vai além do puro
formalismo, em um duplo sentido, em primeiro lugar porque procura
apreender a substância inerente às formas; em segundo lugar, enquanto
estabelece normas de maneira criativa e individual178 (TILLICH, 1973 [1925],
p. 50).
O método metalógico, assim como o método crítico-dialético, abstrai as funções e
categorias do universo do sentido e as coloca como fatores condicionantes na construção da
realidade significante, conectadas de maneira dialética entre si. Entretanto, o elemento crítico-
dialético não é o único que participa no método metalógico, junto a ele está a intuição das
essências que se volta para a dimensão substancial das funções e categorias presente na
realidade. Com isso, Tillich consegue propor um método que é “intuitivo e dinâmico ao método
crítico”. Ou seja, trata-se de uma metodologia que é ao mesmo tempo crítica, na medida em
que ela preserva seu formalismo lógico, mas é também intuitiva, a partir do momento que
apreende a substância das formas. O teólogo concede ao método crítico, a força intuitiva (ou
fenomenológica) da substância religiosa.
A intuição metalógica das essências não se dirige para as coisas particulares
ou suas qualidades; não se limita à forma individual, mas sim percebe as
tensões e as polaridades que, para ela, constituem o elemento verdadeiramente
essencial da essência. O objetivo do método metalógico é a intuição (Schau)
da dinâmica interna na estrutura da realidade de sentido179 (TILLICH, 1973
[1925], p. 51).
178 It is logical in the sense that the orientation to pure rational forms, involved in the critical method, is retained.
It is Metalogical because it goes beyond pure formalism in a double sense, on the one hand in that it apprehends
the import inhering in the forms, on the other in that it sets up norms in an individual-creative way.
179 Metalogical intuition of essences is not directed toward particular things and qualities: it does not remain
attached to the individual form, but rather it perceives the tensions and polarities that seem to it to constitute the
84
Com isso, a dinâmica entre forma e substância passa a ser percebida como um fator
elementar na filosofia da religião do autor. O direcionamento às formas de sentido, não se
limita à forma particular e individual. Existe sempre uma mediação entre a forma e a substância,
e a tensão entre estes dois elementos é o que dará sustentação ao método. Assim, o teólogo
afirma que “o método metalógico, com sua distinção entre fundamento de sentido e a unidade
de sentido, é capaz de apontar, ao mesmo tempo, para as relações positivas e negativas entre a
religião e a cultura, e com isso, trazer à luz a função religiosa em sua pureza”180 (TILLICH,
1973 [1925], p. 62). Higuet (2011, p. 35) comenta que a análise metalógica mostra que a religião
é orientação em direção ao sentido incondicional, enquanto que a cultura é orientação para as
formas condicionadas. Da mesma forma, o método mostra que ambas se encontram na
orientação para a unidade completa das formas do sentido. Esta unidade por sua vez é um
símbolo que para a religião deve ser ao mesmo tempo afirmado e negado. “Lembramos que,
para Tillich, o incondicionado não é um ser, nem a totalidade do ser, mas é uma qualidade
presente em toda experiência da realidade. Por isso, toda experiência do real apresenta uma
dimensão absoluta ou religiosa” (HIGUET, 2011, p. 35).
Dessa forma, Tillich afirma que por um lado, seu método se volta exclusivamente para
as formas de sentido, as funções e categorias mediante as quais os objetos são constituídos, e
por outro lado “deixa os objetos de sentido, as totalidades vivas (Gestalten) da natureza e
história às investigações empíricas fundamentadas na intuição categórica das essências”181
(TILLICH, 1973 [1925], p. 51). Por conta disso, como bem observou Béland (1995, p. 135), o
método de Tillich não pode ser completamente associado a outros métodos presente no
idealismo alemão como o idealismo subjetivo (Fichte), objetivo (Schelling) ou absoluto
(Hegel), pois como afirma o próprio Tillich, seu método tenta dar um passo além, porque
Ao reconhecer a tensão infinita entre forma e substância, não pode sequer
considerar a possibilidade de apreender os objetos significantes
metalogicamente à maneira da dialética hegeliana, ou do sistema da natureza
really essential element in the essence. The intuition (Schau) of the inner dynamic in the structure of the meaning-
reality is the goal of metalogic.
180 The metalogical method with its distinction between ground of meaning and unity of meaning is able to indicate
at the same time the positive and the negative relations between religion and culture, and thus to present the
religious function in its purity.
181 It leaves the objects of meaning, the living wholes (Gestalten) of nature and history, to empirical
investigations supported by the categorial intuition of essences.
85
de Schelling. A consciência da infinitude de todo o real faz que tal intenção
seja impossível182 (TILLICH, 1973 [1925], p. 51).
Por esta mesma razão Tillich vai apontar a diferença do seu método em relação a
fenomenologia. O autor afirma que a peculiaridade de seu método está no fato de que o método
metalógico não fica preso as formas particulares, mas se dirige crítica e intuitivamente por meio
delas até alcançar os princípios de sentido que estão condicionados tanto pela forma como pela
substância, e sobre os quais se fundamentam todas as intuições particulares da essência. Nessa
perspectiva, a fenomenologia por si só não seria capaz de estabelecer uma interface intuitiva
com os princípios fundamentais de sentido que são determinados pela forma e substância, ela
estaria carente de uma fundamentação crítica. O âmbito fenomenológico das essências, comenta
o teólogo, é dividido entre a dialética dinâmica dos elementos de sentido e a experiência
objetiva. Para Tillich, o método “Consegue deste modo, em primeiro lugar, uma base para a
crítica (da qual carece a fenomenologia) sem tornar-se formalista e, em segundo lugar, leva o
empirismo à altura de uma intuição viva das essências, sem ter que postular, como a
fenomenologia um segundo empirismo místico, além do empirismo objetivo”183 (TILLICH,
1973 [1925], p. 52).
Devido a este elemento intuitivo presente no método metalógico, o teólogo comenta que
seu método não está completamente distanciado do misticismo. “A concepção básica de toda
mística, que os princípios do macrocosmo estão dados no microcosmo, encontra sua expressão
ao nível epistemológico na teoria da realização do sentido do ser pelo espírito”184 (TILLICH,
1973 [1925], p. 52). Isto significa que os elementos de todo sentido, a forma e substância, são
elementos essenciais de tudo que há. Dessa forma, a meta deste simbolismo é a intuição das
formas significativas plenas de uma substância viva, e não a intuição de qualquer tipo de
essência metafísica independente. Os elementos do sentido formam um todo coerente de modo
que não se pode falar de uma substância sem forma e vice-versa. Esta antítese da forma e
substância é válida apenas para o método de intuição das essências que consegue perceber a
182 Just because it knows of the infinite tension between form and import it cannot even consider trying to
apprehend the objects of meaning metalogically in the manner of the Hegelian dialectic or of Schelling's system
of nature. The awareness of the infinity of everything real makes such an intention impossible.
183 In thus achieves on the one hand a basis for criticism (which is lacking in phenomenology) without becoming
formalistic, and on the other it raises empiricism to the height of a living intuition of essences, without thereby
having to posit, like phenomenology, a second mystical empiricism beside the objective one.
184 The basic insight of all mysticism, that the principles of the macrocosm are given in the microcosm, finds its
epistemological expression in the theory of the spirit fulfilling being through meaning.
86
vida e as relações das formas do sentido por meio da maneira em que estas dão expressão à
substância. Na prática, o teólogo afirma que:
A dinâmica interna das formas de sentido, as funções e as categorias, nos
levam mais além das considerações filosóficas à história da cultura e, depois,
ao estabelecimento das normas. A polaridade interior de todas as formas de
sentido torna possível uma compreensão construtiva da realização do sentido
na história da cultura e nos empurra a que cheguemos a conceber a
possibilidade de resolver a tensão; porém, não de maneira abstrata, mas
mediante uma solução criativa dos problemas que propõe, num primeiro
plano, o processo do espírito (Geistesprozess)185 (TILLICH, 1973 [1925], p.
53).
A metalógica, portanto, se propõe a evidenciar a tensão dinâmica e infinita entre forma
e substância presente na própria realidade histórica da criação espiritual. Com o elemento crítico
é possível perceber a unidade das formas de sentido, isto é, ele cumpre uma função racional,
mas na medida em que não é possível ir além das formas apenas com este elemento, Tillich
recorre ao elemento intuitivo para perceber nas formas sua substância, ou seja, o sentido
incondicional presente nela. O sentido incondicional, percebido pela intencionalidade do ato da
consciência é a dimensão profunda da realidade, como dito no capítulo anterior, o fundamento
e abismo de todo sentido. A abordagem metalógica tenta alcançar os elementos próprios do
sentido e encontrar neles o universal de tal modo que seja possível construir a partir daí um
sistema de princípios.
Entretanto, Tillich comenta também que uma das dificuldades que se apresenta ao
método metalógico está relacionado com a nomenclatura. Isto é, como se pode justificar a
introdução de um conceito de essência como a essência de fenômenos particulares individuais
que já possuem um nome fixo. Para a fenomenologia, a linguagem oferece uma via de acesso
à intuição das essências. Intuir a intenção que possui uma palavra é, para a fenomenologia uma
demanda básica. Pressupõe-se que o todo que cria a linguagem está numa relação intuitiva de
unidade com as essências, e que a linguagem, portanto, é uma revelação imediata das essências.
O método metalógico pode compartilhar este pressuposto, mas com algumas limitações. É
possível reconhecer a pretensão de que o espírito criativo se revela na linguagem, mas não pode
admitir que as “intenções” da linguagem revelam as essências enquanto tais. Sendo assim, ele
185 The inner dynamic of the forms of meaning, of the functions and categories, leads beyond philosophical
considerations to cultural history, and then to the establishment of norms. The inner polarity of all forms of
meaning makes possible a constructive understanding of the fulfillments of meaning realized in cultural history,
and pushes on to the idea of a resolution of tension, not in an abstract manner, but in a creative solution of the
problems brought to the fore by the spiritual process (Geistesprozess).
87
pode se ocupar da linguagem de tal maneira que não apenas compreende suas intenções, mas
que também no processo as modifica.
A metalógica está situada na corrente viva das realidades significativas, uma
corrente que também inclui as realidades santas ou religiosamente
qualificadas. A metalógica só pode desenvolver sua análise a partir da
realidade significada; mas sem se ater as criações estabelecidas desta corrente,
e muito menos à linguagem. Ao contrário, através de uma crítica produtiva da
palavra e da realidade, molda novas formas a partir da corrente das realidades
significadas186 (TILLICH, 1973 [1925], p. 54).
Sendo assim, pode-se dizer que a forma não força a substância a se enquadrar nas suas
concepções generalizadoras, e a substância deixa de resistir à forma e passa a lhe conceber
sentido de maneira intuitiva e criativa tornando possível uma diferenciação harmônica entre o
conceito de essência e o conceito de norma. Esta tensão dinâmica presente no método
metalógico é que evita a redução de toda a realidade às puras formas como o faz o criticismo
puro, e proporciona a criação de um conceito normativo concreto, sem se abster da substância
religiosa.
O método metalógico transcende o puro racionalismo por meio do aporte intuitivo e
consegue com isso destacar o elemento vivo e dinâmico nas formas de sentido. No caminho
proposto pela metalógica, tanto os aspectos racionais (crítico, formal) quanto irracionais
(intuitivo, subjetivo) são valorizados. Este tipo de análise torna-se possível porque para Tillich
em todo ato espiritual estão presentes elementos de racionalidade e irracionalidade que
subsistem numa tensão interna e infinita, o método metalógico encontra-se dessa forma
fundamentado na consciência desta tensão, trata-se de uma valorização do aspecto inesgotável
e irredutível do sentido. Para o autor “A superioridade do método metalógico é que apreende
juntamente a natureza e verdade da religião [...] A questão da verdade da religião se responde
através da apreensão metalógica da natureza da religião como orientação ao sentido
incondicional”187 (TILLICH, 1973 [1925], p. 70-71).
O sentido incondicional não é um objeto, mas uma exigência, de modo que a busca pela
verdade é nesse sentido a busca pelo incondicional que é inatingível e interminável, muito
186 Language but also alters it in the process. Metalogic stands in the living stream of meaning-realities, a stream
that also includes the holy or religiously qualified realities. Only on the basis of the meaning-reality can metalogic
accomplish its critical analysis; but it does not bind itself to fixed creations of this stream, not even to language.
Rather, through a productive criticism of word and reality, it shapes new forms out of the stream.
187 It is the superiority of the metalogical method that it apprehends the truth along with the nature of religion [...] The question concerning the truth of religion is answered by the metalogical apprehension of the nature of religion
as directedness toward the unconditioned meaning.
88
embora necessário para o método em filosofia da religião, assim como é para a unidade da
consciência. Por consequência, a abordagem metalógica encontra-se em sintonia com o
conceito de religião em Tillich e pode ser compreendido no horizonte de sua teoria de sentido
e intencionalidade. O teólogo quer manter vivo aquilo que é essencial na religião assumindo
uma atitude de ir além do formalismo lógico empírico para perceber no fenômeno a tensão
infinita e dinâmica entre forma e substância na própria construção do universo de sentido. Estar
consciente desta tensão como movimento incessante de criação que se dá na confluência de
elementos racionais e irracionais é a base para aproximar-se metalogicamente de um fenômeno.
Com isso Tillich entende que é necessário frisar que “a análise da essência do religioso, segundo
o método metalógico não requer complementação alguma de uma prova da verdade da religião;
ele contém em si mesmo a solução do ‘problema da realidade’ tanto para a esfera religiosa como
para todas as outras esferas de sentido”188 (TILLICH, 1973 [1925], p. 72).
2.4. O método fenomenológico-crítico
Entre os anos 1951 e 1963, já nos EUA, o autor escreve sua Teologia Sistemática. Na
primeira parte desta obra, o autor propõe um novo método, a saber, a fenomenologia crítica.
Diferente dos métodos analisados anteriormente, o contexto agora é teológico, o que dará novos
traços às possibilidades de aplicação do método. Na teologia de Tillich a fenomenologia é usada
como método de investigação para analisar e validar os conceitos teológicos. Sua finalidade é
descrever os sentidos, deixando de lado, temporariamente, a questão da realidade à qual se
referem. Ela “é uma forma de considerar os fenômenos tal como ‘se apresentam’, sem a
interferência de preconceitos e explicações negativas ou positivas” (TILLICH, 2011, p. 119).
Tillich num primeiro momento retoma os conceitos da fenomenologia filosófica de Husserl e
faz uma aproximação à teologia. O teólogo descreve a fenomenologia como um método
eficiente na descrição das essências e que poderia prestar grande contribuição para a teologia.
A descrição das essências é trabalhada por Husserl em Ideias, obra com a qual Tillich
teve contato e menciona em nota no início da segunda seção de seu texto Razão e Revelação
188 The analysis of the essence of the religious according to the metalogical method requires no supplementation
by a proof of the truth of religion; indeed, it contains within itself the solution of “the problem of reality” for all
the spheres of meaning.
89
(primeira parte da TS). O teólogo retoma o princípio da epoqué apresentado por Husserl,
reconhece a contribuição do método e afirma que: “A importância desta abordagem
metodológica está em sua exigência de que o sentido de uma noção seja esclarecido e
circunscrito antes que se determine sua validez, antes que se aceite ou se rechace tal noção”
(TILLICH, 2011, p. 119). Tillich valoriza o caráter rigoroso e radical da fenomenologia na
exigência do esclarecimento de sentidos e percebe as possibilidades dessa contribuição na
esfera das análises do fenômeno religioso. De acordo com Tillich (2011, p. 119)
Em muitos casos, especialmente no âmbito da religião, uma idéia foi tomada
em seu sentido não purificado, vago ou popular, e tornada vítima de uma
rejeição fácil e injusta. A teologia deve aplicar a abordagem fenomenológica
a todos os seus conceitos básicos, forçando assim seus críticos a ver sobretudo
o que significam os conceitos criticados e obrigando a si própria a fazer
descrições cuidadosas de seus conceitos e a usá-los com consistência lógica,
evitando assim o perigo de tentar preencher as lacunas lógicas com material
devocional.
Tillich começa cada uma das cinco partes de sua TS com a aplicação do método
fenomenológico, fazendo uma descrição do sentido das ideias determinantes, antes de qualquer
afirmação ou discussão de sua verdade e realidade efetiva. A aplicação do método em sua
própria produção teológica demonstrou seu interesse pela fenomenologia, principalmente pelo
postulado fenomenológico da descrição das essências. Conforme Losee “A eliminação dos
preconceitos e distorções impostas pelo sujeito é essencial para a preservação da integridade do
encontro do sujeito com seu mundo. Tillich estava de acordo com Husserl sobre este ponto”189
(LOSEE, 2015, p. 17). Dessa forma, embora o teólogo não tenha produzido muito material
especificamente sobre a questão do método, o teólogo oferece no decorrer de suas obras
inúmeros exemplos de exercícios fenomenológicos.
Após apresentar a fenomenologia husserliana e sua importância para o âmbito teológico,
o autor retoma a crítica ao método fenomenológico tal como fizera em outras discussões
metodológicas. Tillich mantém seu posicionamento de que a fenomenologia se for tomada sem
o aporte do elemento crítico é por si só insuficiente para uma análise do fenômeno religioso.
Ela se dirige para a essência a partir de um exemplar privilegiado, e faz do dado ideal um dado
normativo. Muito embora a intuição das essências seja um aspecto elementar tanto para a
filosofia da religião quanto para a Teologia Sistemática, falta à fenomenologia uma abordagem
crítica que lhe permita fazer uma distinção na apreensão dos princípios do sentido. Tillich
189 The elimination of prejudices and distortions imposed by the subject is essential to the preservation of the
integrity of the subject's encounter with its world. Tillich was in agreement with Husserl on this point.
90
reproduz em 1951 na primeira parte de sua TS a mesma crítica que realizou em outros
momentos de sua produção teórica. A fenomenologia embora importante, carece de um
elemento crítico.
O elemento crítico é importante, pois chama atenção para o aspecto formal e exemplar
em que a experiência religiosa acontece. Para Tillich, a decisão com relação ao exemplo não
pode ser deixada ao acaso. “Se o exemplo não fosse nada mais do que um exemplar de uma
espécie, como acontece no reino da natureza, não haveria problema. Mas a vida espiritual cria
mais do que exemplares; ela cria corporificações únicas de algo universal” (TILLICH, 2011, p.
120). Nesse sentido a proposta vai na direção de encontrar nos exemplos de revelação
particularidades únicas, isto é, que estão além do universal. Estas incorporações únicas só
podem ser sondadas por um elemento existencial-crítico no sentido fenomenológico, que possa
explicitar a concretude e singularidade do fenômeno. A abordagem fenomenológica é
preservada, por isso, como afirma Tillich (2011, p. 120): “Trata-se de uma ‘fenomenologia
crítica’, que une um elemento intuitivo-descritivo com um elemento existencial-crítico”. Com
isso o teólogo traz para a fenomenologia pura uma nova contribuição que permite desenvolver
elementos que não ficaram esclarecidos na fenomenologia de Husserl.
A fenomenologia tillichiana une, portanto, o elemento intuitivo-descritivo da
fenomenologia pura, que permite encarar o sentido universal da revelação, com a análise do
elemento existencial-crítico, que aponta para o caráter concreto e único daquilo que se revela.
Estes dois elementos no método tillichiano estão correlacionados e estabelecidos numa tensão.
De acordo com o autor, o elemento existencial-crítico é o critério segundo o qual se seleciona
o exemplo, e o elemento intuitivo-descritivo é a técnica por meio da qual se descreve o sentido
que é manifesto no exemplo.
Enquanto que no método crítico-intuitivo e metalógico a experiência religiosa é
encarada como o direcionamento intencional ao sentido incondicional, devido ao contexto de
caráter mais filosófico em que está inserido, a fenomenologia crítica encara a experiência
religiosa em termos de experiência revelatória, devido ao contexto teológico. Nesse sentido, o
autor comenta que, “A revelação é a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última.
O mistério revelado é nossa preocupação última, porque é o fundamento de nosso ser”
(TILLICH, 2011, p. 123). Aquilo que é dado como último na revelação, “É o correlato de uma
preocupação incondicional, mas não é uma ‘coisa superior’ chamada ‘absoluto’ ou ‘o
incondicionado’, [...] O último é o objeto de uma entrega total, exigindo também, enquanto
91
olhamos para ele, a entrega de nossa subjetividade” (TILLICH, 2011, p. 29). Trata-se, portanto,
de uma irrupção do incondicional no mundo do condicional, isto é, um sentido incondicional
que irrompe através das formas condicionadas e que é imediatamente percebido pela
consciência humana. Cabe ressaltar que quando se refere à revelação enquanto este sentido
incondicional que é percebido pela consciência humana, Tillich está lidando aqui com um
conceito de religião que opera na dimensão da vida consciente, isto é, “A religião é a orientação
intencional ao Incondicional”190 (TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor).
O que se revela, portanto, não é algo objetivado externo ao observador, mas um sentido
incondicional que se atualiza necessariamente por meio das formas condicionadas. “A
revelação é a forma em que o objeto religioso é dado teoricamente à fé religiosa” e “A fé sempre
se baseia na revelação, porque é uma apreensão do sentido incondicionado por meio das formas
condicionadas”191 (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).
Deste modo, o elemento intuitivo-descritivo permite perceber a revelação no sentido
especulativo ou categórico no momento em que a essência do fenômeno é apreendida. Este
elemento opera na dimensão da consciência, e quando usado para compreender o evento
revelatório, possibilita evidenciar a orientação intencional da consciência ao sentido
incondicional. Isso implica no fato de que o conteúdo incondicional nunca perde seu caráter
inesgotável em relação a qualquer forma condicional, esta inesgotabilidade da substância
possibilita compreender o incondicional como pressuposto de todo sentido particular. O
incondicional permanece como indefinido, inesgotável, a preocupação última manifesta na
revelação.
Neste evento revelatório é possível perceber nele e através dele o sentido universal de
revelação, e é neste momento que o segundo elemento da fenomenologia de Tillich, a saber, o
elemento existencial-crítico, aparece com toda sua força chamando atenção da fenomenologia
para a experiência concreta e situacional da revelação. A consciência por sua natureza intrínseca
se dirige ao incondicional através das formas condicionadas presente na realidade concreta e
existencial, por conta disso, a experiência religiosa deve ser entendida tanto de forma intuitiva-
descritiva como existencial-crítica.
190Religion is directedness toward the Unconditional.
191 Faith is always based on revelation, for it is an apprehension of the unconditioned import through conditioned
forms.
92
O elemento existencial-crítico diz respeito ao momento em que o universal é
manifestado de forma singular elucidando sua concretude. Neste sentido pode-se pensar a
experiência dentro da vivência do ser, momento em que a experiência assimila uma
característica existencial tornando-se algo único e final, mas conservando sua universalidade.
Tillich propõe compreender as experiências a partir da própria condição existencial do ser no
mundo.
A análise da essência do fenômeno religioso não pode se deter às categorias universais
e negligenciar a contingência dos fatos. Na revelação a coisa é “dada ‘em pessoa’ ou ‘em carne
e osso’. [...] um interior que se revela no exterior, uma significação que irrompe no mundo e aí
se põe a existir, e que só se pode compreender plenamente procurando-a em seu lugar com o
olhar” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 428). É nesse sentido que o elemento existencial-crítico
chama atenção para o caráter concreto e singular em que se dá a experiência existencial e coloca
a fenomenologia crítica de Tillich como uma contribuição importante para os estudos
fenomenológicos. Trata-se de perceber o essencial ainda quando se olha para o existencial.
O caráter concreto e único do exemplo revelatório, de acordo com Tillich (2011, p. 120)
está em constante tensão com a reivindicação universal da descrição fenomenológica de que o
sentido de tal exemplo é válido para todos os demais exemplos. O problema que o teólogo
apresenta, portanto, é como uma reivindicação religiosa particular pode ser legitimada como
possuidora de valor universal. Para Tillich, esta tensão é inevitável, e por este motivo o método
deve olhar para os dois polos desta tensão. Sua fenomenologia, como foi possível observar,
considera fundamental o aspecto particular do evento histórico, e dessa forma, o autor consegue
evitar a redução do sentido revelatório a uma generalidade vazia que não é, por exemplo, nem
judaica, nem cristã, nem profética e nem mística. Os eventos particulares de revelação, como
“(p. ex., a aceitação de Jesus como o Cristo por Pedro) é a revelação final e, em consequência,
é universalmente válida” (TILLICH, 2011, p. 120). Os eventos particulares de revelação,
portanto, agem como procedimento capaz de chegar ao sentido universal da revelação.
O exemplo de revelação, de acordo com Tillich é julgado em termos do conceito
fenomenológico de revelação que pode ser usado como critério por ser capaz de expressar a
natureza essencial de toda a revelação. A natureza essencial diz respeito aquilo que é último e
incondicional, e nesse sentido parece agir de maneira normativa para os eventos particulares
que reivindicam historicamente o caráter de revelação. Entretanto, a natureza essencial da
revelação é também constituída pelo equivalente de sua forma, de modo que a partir de um
93
processo que também é crítico, é possível selecionar o evento revelatório pertinente a partir do
qual a natureza essencial da revelação possa ser evidenciada, pois para Tillich, a decisão em
relação ao exemplo depende de uma revelação que tenha sido recebida e que seja considerada
final. Nesse sentido “O significado da revelação é derivado do exemplo ‘clássico’, mas a ideia
inferida desta maneira é válida para toda revelação, por mais imperfeito e distorcido que o
evento revelador seja efetivamente” (TILLICH, 2011, p. 121).
O evento revelatório é percebido a partir de uma ocorrência histórica particular. Nesse
sentido, o dado histórico e existencial desempenha um papel constitutivo no processo de
teorização. Tanto o aspecto universal da descrição fenomenológica quanto as formas
específicas e particulares das religiões são valorizadas, evitando aquilo que Tillich chamou de
uma rejeição fácil e injusta. Por este motivo também, o teólogo conclui que “A fenomenologia
crítica é o método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos significados
espirituais (e também Espirituais). A teologia deve usá-lo ao tratar de cada um de seus conceitos
básicos” (TILLICH, 2011, p. 121).
A transposição que Tillich faz de seu método de um contexto filosófico para um
contexto teológico chama atenção. Enquanto os métodos crítico-intuitivo e metalógico foram
discutidos e aplicados no âmbito da filosofia da religião, sobretudo para alcançar a essência da
religião, o método fenomenológico-crítico é aplicado em um contexto teológico. Da mesma
forma que em 1925 em sua Filosofia da Religião o autor descreve seu método como o mais
adequado para a filosofia da religião, novamente em 1951 Tillich o descreve como o mais
adequado para a teologia.
A presença deste método em sua TS demonstra em grande medida a importância que
este método possui para o pensamento do autor, bem como o alcance de sua aplicabilidade
teórica. Higuet (2011, p. 40) comenta que “A apreensão metalógica da essência da religião se
limita, na teologia, a uma única religião, mas não é essencialmente diferente da apreensão
filosófica. É que a filosofia e teologia compartilham uma dimensão mística na intuição do
incondicionado”. Este comentário de Higuet ajuda sobremaneira entender de que forma Tillich
consegue aplicar seu método para além dos limites da filosofia da religião. Tillich não manteve
o nome metalógico, mas se sua fenomenologia crítica for tomada como um método correlato
ao crítico-intuitivo e metalógico, como pressupõe esta pesquisa, então é possível observar como
o teólogo procedeu com o método na elaboração de sua TS.
94
Tendo isso em conta é possível constatar também que a presença deste método no
contexto de sua Teologia Sistemática demonstra em grande medida elementos de continuidade
entre o período intermediário do autor com o assim chamado terceiro período. Como bem
observou Danz (2009, p. 185) a filosofia de Tillich continua sendo ao longo de sua vida uma
filosofia do espírito, baseada na sua interpretação do espírito e sentido. Mesmo no contexto de
sua Teologia Sistemática, onde a ontologia é mais forte, a presença deste método demonstra
que para Tillich a religião enquanto direcionamento da consciência intencional ao sentido
incondicional continua vigente e precisa, portanto, ser compreendida a partir de um elemento
intuitivo-descritivo. O teólogo entende que o problema central da filosofia da religião para o
qual o método pretende dar uma resposta, a saber, “A pergunta sobre o sentido último da
realidade de cada coisa concreta”192 (TILLICH, 1973 [1922], p. 149) não é diferente na teologia,
embora no contexto teológico a apreensão deste sentido último se limita a uma religião
específica, como muito bem observou Higuet. Dessa forma, a intuição do incondicionado é uma
exigência tanto na filosofia como na teologia devido à dimensão mística que ambas
compartilham.
Na introdução de sua TS, o teólogo discute a natureza da teologia sistemática e chama
atenção para os elementos fundamentais de toda teologia. Tillich (2011, p. 26) comenta que
tanto nas abordagens teológicas empíricas e metafísicas, ou nos muitos casos em que ambas
são combinadas, é possível observar que o a priori que dirige a indução e a dedução é um tipo
de experiência mística. Para o teólogo:
Seja ele o “ser-em-si” (escolástica) ou a “substância universal” (Spinoza), seja
o “além da subjetividade e objetividade” (James) ou a “identidade de espírito
e natureza” (Schelling), seja o “universo” (Schleiermacher) ou a “totalidade
cósmica” (Hocking), seja o “processo criador de valor” (Whitehead) ou a
“integração progressiva” (Wieman), seja o “espírito absoluto” (Hegel) ou a
“pessoa cósmica” (Brightman), - cada um desses conceitos está baseado em
uma experiência imediata de um valor ou ser último, do qual podemos chegar
a ser conscientes intuitivamente (TILLICH, 2011, p. 27).
Na sequência Tillich afirma que tanto o idealismo quanto o naturalismo diferem muito
pouco em seu ponto de partida quando desenvolvem conceitos teológicos. Ambos são
dependentes de um ponto de identidade entre o sujeito que vive a experiência e o elemento de
caráter último que aparece na experiência religiosa ou na experiência do mundo como religioso.
Os conceitos teológicos de ambos “estão enraizados em um ‘a priori místico’, uma consciência
192 The question concerning the ultimate meaning and reality of every actual thing.
95
de algo que transcende a separação entre sujeito e objeto. E se, no curso de um processo
‘científico’, descobrimos tal a priori, isto só é possível porque ele já estava presente desde o
começo” (TILLICH, 2011, p. 27). Este é o círculo, comenta Tillich, do qual nenhum filósofo
religioso pode escapar, e a diferença deste para o círculo teológico, é que no círculo teológico
“Ele acrescenta ao ‘a priori místico’ o critério da mensagem cristã. Enquanto o filósofo da
religião tenta permanecer geral e abstrato em seus conceitos, como o próprio termo ‘religião’
indica, o teólogo é, consciente e intencionalmente, específico e concreto. A diferença
naturalmente não é absoluta” (TILLICH, 2011, p. 27). O conceito de religião, que no contexto
filosófico permanece neutro, é posto na TS sob o domínio do círculo teológico cristão.
A consciência imediata do incondicional é, portanto, uma experiência básica, isto é,
trata-se de uma condição sine qua non tanto para a filosofia como para a teologia193. Este
direcionamento intencional continua em sua TS um pressuposto, muito embora seja descrito de
forma concreta “como revelação do mistério que é nossa preocupação última” (TILLICH, 2011,
p. 123). A preocupação religiosa é última, afirma Tillich, “A preocupação última é
incondicional, independentemente de qualquer condição de caráter, desejo ou circunstância. A
preocupação incondicional é total: nenhuma parte de nós mesmos ou de nosso mundo está
excluída dela” (TILLICH, 2011, p. 29). Aquilo que preocupa o ser humano de forma última e
incondicional é o ser-em-si, que como dito no capítulo anterior não é um ser, mas um sentido,
o sentido incondicional. A preocupação última, assim como o sentido incondicional se refere a
algo presente em todas as funções da vida espiritual do ser humano, não há nenhuma esfera da
vida espiritual onde o sentido último não esteja presente, ele é a raiz de todas as outras funções.
Dessa forma, o método crítico-intuitivo e metalógico não são diferentes do fenomenológico-
crítico, o que mudou foi o contexto em que foram aplicados, mas isso não impede que o método
fenomenológico-crítico seja usado num contexto filosófico e o metalógico ou crítico-intuitivo
num contexto teológico.
Em termos de continuidades e descontinuidades entres os dois primeiros métodos e a
fenomenologia crítica, algumas considerações podem ser feitas. Embora o cerne do método
continue sendo a união entre o elemento intuitivo da fenomenologia pura e o elemento crítico
da escola de Kant e do neokantismo, Tillich adiciona ao elemento intuitivo o caráter de ser
193 Vale relembrar neste momento a afirmação de Tillich de que em toda experiência religiosa existem dois pontos:
“(1) o ‘ponto’ da consciência imediata do incondicional que é vazio, mas incondicionalmente certo; e (2) a
‘amplitude” de uma preocupação concreta repleta de conteúdo [...] A teologia lida com o segundo elemento,
pressupondo o primeiro” (TILLICH, 1987b [1947], p. 308).
96
descritivo e ao elemento crítico o caráter de ser existencial. O caráter descritivo da intuição das
essências é próprio da fenomenologia pura. Husserl apresenta sua fenomenologia como uma
ciência descritiva das essências194, algo que Tillich já havia percebido e destacado em outros
momentos195, mas omitido em títulos anteriores. O aspecto existencial enfatizado pelo autor
possivelmente esteja relacionado ao contexto maior de seu pensamento que se encontra neste
momento em seu terceiro período, um período caracterizado por questões ontológicas de cunho
existencialista.
De acordo com Danz (2009, p. 184-185) este momento do pensamento de Tillich
começa no final da década de 1920 e se desenvolve sobretudo em seu período americano com
forte expressão na produção dos três volumes de sua TS. A ontologia torna-se um aspecto
característico desse terceiro período. O conceito de Deus como “ser-em-si”, por exemplo, é uma
das grandes expressões dessa guinada ontológica. O contato do teólogo com o pensamento de
Heidegger196 possivelmente teve um papel importante no interesse de Tillich pela ontologia e
filosofia existencial. O autor comenta que
Quando a filosofia existencial foi introduzida na Alemanha alcancei uma nova
compreensão do vínculo entre teologia e filosofia. As conferências de
Heidegger em Marburg, a publicação de Ser e Tempo, e sua interpretação de
Kant resultaram significativas neste sentido. Tanto para os partidários quanto
para os opositores da filosofia existencial nada existe de mais importante,
depois das Investigações Lógicas de Husserl, que a obra de Heidegger197
(TILLICH, 1967 [1936], p. 56).
194 Nas palavras de Husserl “No que concerne à fenomenologia, ela quer ser uma doutrina eidética descritiva dos
vividos transcendentais puros em orientação fenomenológica, e como toda disciplina descritiva, que não opera por
substrução nem por idealização, ela tem sua legitimidade em si” (HUSSERL, 2006, p. 161).
195 Sobre a fenomenologia, Tillich comenta que “Ela mostra, com razão, que as coisas que se pretende explicar
devem ser primeiramente compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas de explicação
genética (genetischen Erklärungsversuchen), dessa forma, a descrição deve preceder a explicação”. (TILLICH,
2001 [1920], p. 380).
196 Tillich teve contato com Heidegger em 1924-1925 na Philipps-Universitat Marburg (chamada assim por ter
sido fundada por Filipe de Hesse em 1527). Tillich ocupou a prestigiada cadeira de Rudolf Otto e lecionou durante
três semestres na condição de Professor Associado. Neste período Tillich foi colega de Rudolf Bultmann e Martin
Heidegger, ambos professores dessa mesma universidade. Nessa mesma época, Heidegger escrevia sua grande
obra Ser e Tempo, que seria publicado em 1927. Tanto o contato direto com Heidegger quanto a posterior leitura
de Ser e Tempo deixaram marcas importantes em Tillich.
197 When existential philosophy was introduced into Germany, I came to a new understanding of the relationship
between theology and philosophy. Heidegger’s lectures at Marburg, the publication of his Sein und Zeit (Being
and Time), and also his interpretation of Kant were significant in this connection. Both to the followers and to the
opponents of existential philosophy, Heidegger’s work is more important than anything since Husserl’s Logische
Untersuchungen (Studies in Logic).
97
Heidegger foi discípulo de Husserl198 mas afastou-se oficialmente da fenomenologia
sistemática husserliana com a publicação de Ser e Tempo (GOTO, 2004, p. 41). Mesmo com
este distanciamento, a fenomenologia continuou presente no pensamento de Heidegger, sobre
tudo se considerar que “A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação para se
determinar o que deve constituir tema da ontologia. A ontologia só é possível como
fenomenologia” (HEIDEGGER, 1993, p. 66). Considerando que as últimas discussões de
Tillich sobre seu método tenham se desenvolvido principalmente em 1925 na Filosofia da
Religião onde o método ainda é chamado de metalógico, o contato que o teólogo teve com
Heidegger possivelmente encorajou o teólogo a renomear, anos mais tarde, seu método para
fenomenologia crítica e adicionar ao elemento crítico o aspecto existencial. Entretanto, não se
sabe ao certo qual foi o motivo que levou Tillich a mudar pela terceira vez o nome de seu
método, de modo que as razões apontadas aqui são apenas suspeitas e ficam abertas para
pesquisas futuras.
Nesse sentido, embora a fenomenologia crítica tenha adquirido um caráter existencial
em 1951, conserva como epicentro fundamental a união do elemento intuitivo da
fenomenologia de Husserl que se volta para o sentido incondicional percebido pela
intencionalidade da consciência, isto é, o aspecto essencial da religião, com o elemento crítico
das escolas kantiana e neokantiana, que se volta para o sentido concreto, ou seja, a forma por
meio do qual o sentido incondicional é percebido.
Sendo assim pode-se dizer que o método fenomenológico-crítico ocupa um lugar
fundamental na TS, sobre tudo por garantir ao contexto teológico o elemento a priori sobre o
qual encontram-se fundamentadas as formas concretas que expressam a dimensão de
ultimidade. Em postura fenomenológica-crítica pode-se dizer que a experiência religiosa é
constituída pela interação dinâmica do elemento essencial e, portanto, universal com o contexto
vivencial em que ocorre tal experiência. Tendo isso em conta, a fenomenologia crítica de Tillich
aponta para as possibilidades reais de reconhecimento da dimensão religiosa na experiência
humana bem como a diversidade de expressões possíveis. No caso da teologia, este método
possibilita uma valorização do caráter subjetivo e objetivo da experiência religiosa, focando
198
De acordo com Heidegger “quando, a partir de 1919, eu próprio, ensinando e aprendendo próximo de Husserl,
me exercitei na visão fenomenológica e, simultaneamente, pus à prova, nos Seminários, uma leitura de Aristóteles
diferente da habitual, retomei o meu interesse pelas Investigações Lógicas, muito especialmente pela sexta, da
primeira edição. A distinção, ali elaborada, entre intuição sensível e categorial, revelou-se-me, em todo o seu
alcance, como capaz de determinar «o múltiplo sentido do ente»” (HEIDEGGER, 2009, p. 8-9).
98
sobretudo em um modo simbólico específico de representação da experiência, mas pressupondo
seu caráter inesgotável e incondicional.
2.5. O caso especial do curso do verão de 1962
Num curso sobre filosofia da religião realizada em Harvard em 1962, Tillich retoma sua
discussão sobre os métodos em filosofia da religião e apresenta aquilo que novamente é descrito
como o método adequado em filosofia da religião. O método apresentado em Harvard é
denominado agora de método intuitivo-crítico199. Richard (2008, p. 270) comenta que em
Harvard, Tillich apresenta sua metodologia de forma mais simplificada em relação ao primeiro
curso realizado na Alemanha em 1920. Na quinta aula, o teólogo afirma que dentre os muitos
métodos na filosofia da religião ele vai se limitar a três fundamentais, a saber: o método
ontológico, que investiga a ontologia da finitude, o fenomenológico que descreve o fenômeno
do sagrado, e o crítico que se volta para a estrutura do espírito humano. Estes três métodos são
interdependentes, já que cada um deles deriva de um aspecto da religião, e nenhum é suficiente
por si só, de modo que “[...] se você tomar apenas um desses métodos, jamais atingirá
plenamente o fenômeno da religião”200 (TILLICH, 1962, aula 5).
Richard (2008, p. 271) comenta que a segunda parte da quinta aula e toda a sexta aula o
autor dedica para discutir o sentido verdadeiro e profundo das provas de Deus. Tillich retoma
algumas questões do primeiro volume de sua TS, e conclui dizendo que durante toda essa aula
o método discutido foi o ontológico, de acordo com o autor:
Eu discuti o método, o ontológico, com os argumentos a favor da existência
de Deus, que todos desçam para a experiência ontológica da presença do
199
O curso realizado no verão de 1962 ainda não foi publicado, o acesso ao material foi possível graças ao prof.
Dr. Jean Richard que enviou uma cópia do documento. Sobre as cópias destes documentos, Richard comenta que
“Então lembrei-me de que tínhamos nos arquivos de Quebec a transcrição das aulas sobre a filosofia da religião,
dadas por Tillich em Harvard, durante o semestre de primavera de 1962. Há cerca de vinte anos recebemos de
Renate Albrecht as fitas dessas aulas, eram cópias do material de Peter John. No entanto, de acordo com Grace
Cali, ex-secretária de Tillich em Harvard, as fitas originais foram feitas por Paul Lee, assistente de Tillich na época.
Então, nós transcrevemos as aulas das fitas, e a transcrição foi revisada por Werner Schüßler e Grace Cali. Além
disso, a Sra. Cali fez um ligeiro trabalho de edição do manuscrito, como costumava fazer com Tillich em Harvard”
(RICHARD, 2008, p. 259). Uma rápida pesquisa também mostrou que uma cópia desse material pode ser
encontrada na Andover-Harvard Theological Library. De acordo com o Site da Biblioteca, os arquivos foram
transcritos e entregues por Peter John e encontram-se juntamente com outros documentos mecanografiados sobre
Tillich.
200[...] if you stick to one of these methods, you never reach fully the phenomenon of religion
99
infinito no finito. Estes são verdadeiros na medida em que eles analisam a
finitude e descobrem o contraste do infinito e o finito dentro dela, mas eles
estão errados se fazem o salto para um ser supremo, que, sem dizer por que
justificação, que, em seguida, chamam de ‘Deus’201 (TILLICH, 1962, aula 7).
O método fenomenológico será o objeto da sétima e oitava aula. O autor começa com A
fenomenologia do espírito de Hegel e em seguida vai para a fenomenologia de Husserl que de
acordo com o teólogo, libertou as ciências do espírito – a filosofia, as artes, ética e assim por
diante – de uma completa sujeição aos métodos empíricos. Em suas Investigações Lógicas,
comenta Tillich, Husserl demonstrou que a mente deve dirigir-se primeiramente para o sentido
dos conceitos que utiliza antes de perguntar sobre como veio a existência. Este pressuposto é
fundamental para o âmbito das análises do fenômeno religioso:
Significa que se você quer saber o que é esse fato universal que chamamos de
religião no sentido empírico, como aparece, então não podemos fazê-lo de tal
maneira que começamos por tentar explicar, ou mais, tentando explicar
reduzindo-o a outras realidades sem tendo perguntado o que é realmente. E o
que realmente é [...] só pode ser entendido se olharmos para a sua natureza
essencial como a podemos descrever, como se mostra a nós, através de todos
os fatos empíricos, à nossa própria mente, em nossa própria experiência202
(TILLICH, 1962, aula 7).
É neste momento que a intuição vem para método. De acordo com o teólogo, a intuição
significa precisamente “ver a essência de uma coisa dentro da multiplicidade de fenômenos
empíricos”203 (TILLICH, 1962, aula 8). Entretanto, diferente de Husserl que entendia que no
exercício de intuir as essências era necessário colocar a existência entre colchetes, Tillich está
preocupado aqui com a relação do fenômeno religioso com as outras funções da mente humana.
Dessa forma, a nona aula será dedicada inteiramente ao método crítico de Kant. O teólogo
começa com uma exposição das três críticas de Kant sobre a determinação das estruturas da
mente que são pressupostos em cada experiência e termina com uma consideração sobre as
conquistas de Kant na ciência, ética e estética. Entretanto, Tillich diz que a mesma questão
deveria ser feita à religião, isto é, como a religião é possível?
201I discussed the one method, the ontological, with the arguments for the existence of God which all come down
to the ontological experience of the presence of the infinite in the finite, which are true insofar as they analyze
finitude and discover the contrast of the infinite and the finite within it, and are wrong if they make the jump to a
Highest Being which we then call, without saying with which justification, "God".
202It meant, if you want to know what is this universal fact which we call Religion in the empirical sense as they
appear, then we cannot do it in such a way that we first start by trying to explain it or more actually by trying to
explain it away by reducing it to other realities without having asked what it really is. And what it really is [...] It can be understood only if we look at its essential nature, as we can describe it, as it shows itself to us, through all
the empirical facts and to our own mind, in our own experience.
203seeing the essence of a thing within the manifoldness of empirical phenomena
100
Tillich conclui esta parte do curso dizendo que a partir do que foi exposto, a religião
pode ser compreendida como estando presente em todas as funções da vida espiritual do ser
humano, isto é, como o fundamento de todas as outras funções do espírito atuando como a
função do incondicional. Mas isso não quer dizer que há uma religião inata no ser humano,
“Mas isso significa que a estrutura da experiência, se analisada, mostra um ponto em que o
elemento religioso pode ser descoberto, tal como o elemento teórico, o elemento ético, o
elemento estético também pode ser descoberto”204 (TILLICH, 1962, aula 9). Há, portanto, um
ponto na totalidade da vida espiritual em que algo incondicional está presente, é assim, no
âmbito teórico como a demanda incondicional da verdade, na razão prática, como o comando
incondicional do bem, e no reino estético como a elevação do belo em si (TILLICH, 1962, aula
9).
O teólogo conclui a nona aula com a definição de religião como preocupação última e a
proposta do método “intuitivo-crítico”. De acordo com Tillich (1962, aula 9), o método
intuitivo-crítico é uma síntese metodológica das três abordagens analisadas anteriormente, a
saber, a ontológica, fenomenológica e a crítica. Por meio desse método torna-se possível:
A intuição crítica da finitude existencial do homem, que discuti na análise dos
argumentos sobre a existência de Deus; a intuição crítica dos inúmeros
fenômenos da vida religiosa, eu o discuti em conexão com o método
fenomenológico; e a intuição crítica da estrutura espiritual do homem – eu
discuti apenas em relação com Kant e seus sucessores205 (TILLICH, 1962,
aula 9).
Para o autor, a análise fenomenológica da experiência do sagrado deve ser
compreendida à luz dos outros dois elementos do método intuitivo-crítico, isto é, o elemento
ontológico e crítico. Percebe-se aqui que tal como na fenomenologia crítica, o elemento
intuitivo vem acompanhado do elemento crítico e existencial e não apenas do elemento crítico
como nos método crítico-intuitivo e metalógico.
O autor afirma que o método deve levar em consideração estas três abordagens. Dessa
forma, quando a história da religião é vista a luz da intuição-crítica, é possível descobrir que há
em todos os fenômenos chamados de “sagrado”, um elemento que aparece e reaparece, a saber:
204But it means that the structure of experience, if you analyze it, shows a point in which the religious element
can be discovered, as the theoretical element, the ethical element, the aesthetic element can be discovered.
205the critical intuition of man's existential finitude, which I've discussed in the discussion of the arguments for the
existence of God; the critical intuition of the innumerable phenomena of religious life — I discussed it in
connection with the phenomenological method; and the critical intuition of man's spiritual structure — I just
discussed it in connection with Kant and his successors
101
“o elemento de que a santidade é de importância incondicional para aqueles que a
experimentam, que se torna para eles uma questão de preocupação última”206 (TILLICH, 1962,
aula 9). Por outro lado, é possível perceber também, que essa preocupação última não é apenas
uma função especial na estrutura da mente humana, mas algo que se move em toda a vida
espiritual, ou seja, de que a religião é uma dimensão em todas as funções do espírito humano
“Esta é uma descoberta que fazemos quando olhamos com o método da intuição-crítica para
nossa mente”207 (TILLICH, 1962, aula 9). Depois de ter descoberto o fenômeno do sagrado e a
dimensão incondicional em todas as funções da mente humana, o autor afirma que é possível
reconhecer, por meio da abordagem ontológica, estas mesmas coisas na estrutura do mundo
encontrado. Trata-se do reconhecimento daquilo que está no próprio ser humano, no
reconhecimento da condição finita, limitada e contingente da realidade que impele o ser humano
à questão do incondicional.
Finalmente, Tillich afirma que quando a questão sobre o que é a religião for levantada,
pode se dizer a partir do método intuitivo-crítico que:
do ponto de vista da abordagem fenomenológica, a religião é a experiência do
sagrado [...] Do ponto de vista da abordagem crítica, é a dimensão do último
em todas as funções da vida espiritual do homem. Do ponto de vista da
abordagem ontológica, é a resposta à questão implícita na finitude humana.
Esses três elementos juntos, tentei resumir na fórmula [...] que a religião é a
experiência da preocupação última208 (TILLICH, 1962, aula 9).
Com isso, o autor irá discutir nas aulas 10, 11 e 12 o conceito de religião como
preocupação última, fazendo a distinção entre o princípio religioso e a religião histórica
concreta, bem como a relação entre o princípio religioso e funções culturais, “Aqui somos
levados de volta à palestra de 1919 Sobre a ideia de uma teologia da cultura, onde a distinção
entre o princípio religioso e a religião histórica concreta é claramente declarada, como a
distinção entre a potência religiosa e o ato religioso”209 (RICHARD, 2008, p. 276).
206the element that holiness is of unconditional significance for those who experience it, that it becomes for them
a matter of ultimate concern
207This is a discovery which we make when we look with the method of critical intuition at our mind.
208in the view of the phenomenological approach, religion is the experience of the holy, [...]; in the view of the
critical approach, it is the dimension of the ultimate in all functions of man's spiritual life; in view of the ontological
approach, it is the answer to the question implied in human finitude. And all three elements together, I tried to
sum up in the formula [...] that religion is the experience of ultimate concern.
209Here we are carried back to the 1919 lecture On the Idea of a Theology of Culture, where the distinction between
the religious principle and the concrete historical religion is clearly stated, as the distinction between the religious
potency and the religious act.
102
Para Tillich a religião se atualiza necessariamente através das formas concretas postas
pelo espírito humano em sua incessante criatividade no mundo da vida. “Isto mostra claramente
o suficiente a continuidade entre ambos os cursos sobre a filosofia da religião. O pensamento
de Tillich sobre essa questão é substancialmente o mesmo em 1920 e 1962”210 (RICHARD,
2008, p. 277). A dinâmica de relação entre forma e substância como aquilo que constitui a
experiência religiosa como tal é uma constante no pensamento do autor e aponta o caminho
através do qual seu método fenomenológico-crítico pode ser aplicado. Nesse sentido, para
compreender os alcances do método de Tillich para a atualidade e suas possibilidades de
aplicação, torna-se indispensável compreender em que consiste sua proposta de relacionamento
interdependente entre religião e cultura, e as implicações que a teoria da intencionalidade teve
sobre a formulação tillichiana dos modos como religião e cultura se relacionam.
Em relação ao curso de 1962, Perrottet (2008, p. 218) comenta que ele demonstra que a
preocupação com o método em filosofia da religião ainda estava viva. O método metalógico,
que havia substituído o crítico-intuitivo, foi também substituído pelo intuitivo-crítico, que tal
como foi possível perceber, continuava vivo e existindo ao lado do método da correlação, isto
é, o método intuitivo-crítico simplesmente não exclui o método da correlação211. Outro aspecto
que vale destacar é a posição em que os elementos são postos. Enquanto que em 1920 e 1922 o
método é chamado de crítico-intuitivo, com prioridade ao elemento crítico, em 1962 o nome é
intuitivo-crítico, com prioridade ao elemento intuitivo, o mesmo vale para o método
fenomenológico-crítico, a prioridade recai sobre o elemento intuitivo que é, como já foi dito,
um correlato de fenomenológico. Dessa forma, pode-se dizer que a versão final do método de
Tillich pressupõe num primeiro momento o elemento intuitivo-descritivo, e posteriormente um
210 This shows clearly enough the continuity between both series of lectures on the philosophy of religion. Tillich’s
thought on that matter is substantially the same in 1920 and 1962.
211 Tanto o método da correlação como a fenomenologia crítica estão presente na TS. De acordo com Tillich, o
método da correlação “explica os conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de respostas teológicas
em interdependência mútua” (TILLICH, 2011, p. 74) O termo correlação pode ser usado de três maneiras: há uma
correlação entre símbolos religiosos e aquilo que é simbolizado por eles. Há uma correlação entre conceitos que
denotam o humano e aqueles que denotam o divino. E há uma correlação entre a preocupação última e aquilo pelo
que se preocupa de forma última. Este método, portanto, “faz uma análise da situação humana a partir da qual
surgem as perguntas existenciais e demonstra que os símbolos usados na mensagem cristã são as respostas a estas
perguntas” (TILLICH, 2011, p. 76). O procedimento seguido pelo método da correlação não exclui a
fenomenologia crítica, que de acordo com o teólogo deve ser usada ao tratar de cada um dos conceitos teológicos
básicos. Os muitos dados teológicos devem ser analisados fenomenologicamente e “A fenomenologia crítica é o
método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos significados espirituais” (TILLICH, 2011, p.
121). Sendo assim, a fenomenologia crítica é empregada em sintonia com a correlação atuando de forma
entrelaçada e auxiliar no contexto da TS. Diferente é o caso no contexto da filosofia da religião em que a correlação
está ausente e o papel da fenomenologia crítica seria, portanto, fundamental. No entanto, uma análise mais
criteriosa sobre a relação entre o método da correlação e a fenomenologia crítica, e como ambos os métodos se
situam na TS, segue apenas como provocação para pesquisas futura.
103
elemento existencial-crítico, muito embora como já foi enfatizado nesta pesquisa, o método só
possui validade quando todos os elementos são devidamente considerados.
2.6. A abordagem ontológica no contexto da fenomenologia crítica
O curso sobre filosofia da religião ministrado em 1962 reforça sobremaneira a posição
anterior de que a versão final do método inclui o elemento existencial em sua abordagem, tal
como proposto pela fenomenologia crítica. Nesse sentido, o caráter ontológico e existencialista
não substitui o elemento intuitivo-descritivo ou fenomenológico. A intuição-descritiva continua
um elemento necessário para alcançar a essência do fenômeno, enquanto que o aspecto
ontológico existencial e crítico aparece como um outro momento necessário na análise.
Portanto, o caminho que a fenomenologia crítica propõe trilhar passa por três abordagens
interligadas, a abordagem intuitiva ou fenomenológica, a abordagem existencial ou ontológica
e a abordagem crítica. As abordagens intuitiva e crítica, estão presentes no método desde sua
formulação original em 1920, enquanto que a abordagem existencial ou ontológica aparece
posteriormente com a proposta da fenomenologia crítica e do método intuitivo-crítico.
É possível perceber que para o teólogo, cada abordagem desempenha um papel
específico na análise do fenômeno religioso e não deve ser tomada isoladamente. Nesse sentido,
não há substituição de um pelo outro. A ontologia embora complemente a fenomenologia, não
a substitui, pois, “A ontologia não é uma tentativa especulativa e fantástica de estabelecer um
mundo por trás do mundo; ela é uma análise daquelas estruturas do ser com as quais nos
deparamos em todo encontro com a realidade” (TILLICH, 2011, p. 37). Abreu (2015, p. 105)
comenta que a ontologia permanece dessa forma um momento necessário atuando como uma
explicação da estrutura da experiência, como afirma Tillich (2011, p. 179), “a verdade de todos
os conceitos ontológicos é seu poder de expressar aquilo que torna possível a estrutura sujeito-
objeto. Eles constituem esta estrutura; não são, pois, controlados por ela”.
A revelação embora seja um a priori vivenciado na dimensão da consciência reflexiva,
ela envolve também uma dimensão existencial. O sujeito que expressa sua experiência
revelatória encontra-se na relação si-mundo, sujeito-objeto. O caráter existencial continua
fundamental no método de Tillich. Dessa forma, a experiência religiosa como direcionamento
da consciência se envolve também com a questão de atribuir sentido à existência. A ontologia
104
relaciona-se com a experiência e se faz presente toda vez que algo é experimentado. Isso não
significa que os conceitos ontológicos sejam conhecidos antes da experiência, mas que são
produtos desta. Nesse sentido, há uma estrutura que poderá ser reconhecida dentro do processo
da experiência, e que, portanto, poderá ser compreendida ontologicamente. É a partir da
descrição do ser dado na experiência que Tillich elabora sua ontologia.
A experiência religiosa envolve o caráter finito da realidade, Tillich (1962, aula 9),
comenta que após ter analisado o fenômeno do sagrado e a dimensão do incondicional em todas
as funções da mente, deve-se reconhecer também a estrutura do mundo encontrado. “É o
reconhecimento daquilo que está em nós, na realidade encontrada, ou seja, o reconhecimento
da condição denominada de caráter finito, limitado e contingente da realidade” (TILLICH,
1962, aula 9). A percepção do sentido incondicional dentro de uma experiência de viver atribui
ao objeto mediador do incondicional um valor existencial. A experiência religiosa reúne dessa
forma, concretude, desejo, subjetividade de pessoas em sua condição de ser humano no mundo.
É nesse sentido que as formas religiosas tomadas simbolicamente estão existencialmente
envolvidas com a pessoa e se apresentam como respostas para as questões que emergem da
finitude humana. De acordo com Tillich (1962, aula 9), a realidade tem o caráter de produzir a
questão religiosa, questão que é respondida na religião, caso a realidade existencial não tivesse
o caráter de produzir a questão “então nunca poderíamos aceitar a resposta, os símbolos seriam
absurdos para nós” (TILLICH, 1962, aula 9).
Os símbolos e mitos religiosos por terem seu material retirado da realidade revelam
também elementos dessa realidade, eles podem ser expressões de um estado da existência de
uma pessoa ou de toda uma cultura, dessa forma “A essência de seu significado mitológico está
refletida em seu significado ontológico” (TILLICH, 2004, p. 32). Ou seja, a vida como
experiência do ser para o ser humano se expressa na religião através da linguagem simbólica
que carrega consigo as marcas da situação existencial de quem os reconhece como símbolos
sagrados. De acordo com o teólogo, a ontologia analisa o ser humano em interdependência com
o mundo dele. “O método ontológico como indicado aqui não argumenta sobre a existência de
um ser, sobre o qual a religião faz declarações simbólicas, mas dá uma análise do mundo
105
encontrado em relação à sua finitude e descobre através dessa análise sua qualidade auto-
transcendente”212 (TILLICH, 1987b [1961], p. 417-418).
O caráter finito e existencial da realidade faz parte da experiência religiosa e por isso
deve ser considerado em toda análise do fenômeno. Nesse sentido, como afirma o autor:
Todo método tem inconscientemente estes três elementos, se tratar
completamente da realidade. Você não pode evitar nenhum desses elementos
do método em nenhum método. [...] Assim, podemos dizer: esses três
elementos, o elemento da realidade universal e sua finitude, o elemento do
fenômeno da religião que se mostra como realidade na história e na nossa
própria vida e, em terceiro lugar, a estrutura crítica da mente humana, onde
descobrimos a dimensão da ultimidade ou da transcendência. Isto é o que é
necessário para entender a religião213 (TILLICH, 1962, aula 9).
A análise do fenômeno religioso, portanto, como propõe o método do autor reúne a
abordagem intuitiva, ontológica e crítica. Estas três estão sintetizadas, como foi possível
observar, nos dois elementos da fenomenologia crítica de Tillich, a saber, o elemento intuitivo-
descritivo e existencial-crítico. Vale lembrar que para o teólogo, o elemento intuitivo-descritivo
é um correlato da fenomenologia, de modo que independentemente se o método é apresentado
como intuitivo ou fenomenológico, a referência continua sendo a fenomenologia pura de
Husserl e a intuição-descritiva das essências. Dessa forma, o método intuitivo-crítico de 1962
não rompe com o fenomenológico-crítico de 1951, de modo que pode-se dizer que a soma dos
elementos intuitivo-descritivo com o existencial-crítico constituem a versão final do método de
Tillich.
Considerações finais
Em seu texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, de 1922, o
teólogo comenta sobre a importância da união dos elementos crítico e intuitivo na abordagem
212 The ontological method, as indicated here, does not argue for the existence of a being, about which religion
makes symbolic statements, but it gives an analysis of the encountered world with respect to its finitude and finds
through this analysis its self-transcending quality.
213Every method has unconsciously these three elements if it deals fully with reality. You cannot avoid any of
these elements of the method in any method actually [...] So we can say: these three elements, the element of the
universal reality and its finitude, the element of the phenomenon of religion which shows itself to us as a reality
in history and in our own life, and third, the critical structure of the human mind, where we discuss, where we
discover the dimension of ultimacy or of transcendence. This is what is necessary in order to understand religion.
106
metodológica, e afirma ainda que “quando tal exigência for plenamente satisfeita, surgirá
também uma denominação adequada para este método”214 (TILLICH, 1973 [1922], p. 150).
Entretanto, o autor nunca fixou um nome para seu método. Ao longo dos anos, Tillich utilizou
quatro nomes diferentes para referir-se a seu método, estes são: crítico-intuitivo (1920),
metalógico (1923) fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-crítico (1962). Em todas as
quatros formulações apresentadas por ele a estrutura central do método permaneceu a mesma:
a união de um elemento intuitivo com um elemento crítico. A fenomenologia crítica e o método
intuitivo-crítico adquiriram um caráter existencial por conta das preocupações ontológicas que
passaram a acompanhar o autor no final da década de 1920. Dessa forma, pode-se dizer que
enquanto o método crítico-intuitivo e metalógico expressam o período revisionista de Tillich,
que vai do final da Primeira Guerra Mundial até os últimos anos de 1920, o método
fenomenológico-crítico e o intuitivo-crítico expressam o terceiro período, que vai do fim dos
anos de 1920 até a Teologia Sistemática. Entretanto, isso não significa que exista um
rompimento entre os dois primeiros métodos com os dois últimos. O epicentro continua sendo
a união dos elementos intuitivo e crítico. A diferença está, no entanto, na presença do elemento
existencial nos dois últimos.
Em relação ao método intuitivo-crítico, foi possível perceber que ele embora possua um
nome diferente daquele apresentado na Teologia Sistemática, não se difere fundamentalmente
dele. Nesse sentido, a fenomenologia crítica e o método intuitivo-crítico são correlatos por
conservarem a estrutura original do método, a saber, a união dos elementos intuitivo e crítico,
e acrescentarem a estes dois o elemento existencial. Tillich quando tratou da fenomenologia
crítica o fez em sua TS e dedicou pouco espaço para tratar do método. Pode-se dizer que essa
carência de explicação foi suprida no curso sobre filosofia da religião de 1962, em Harvard.
Neste curso, o autor dedica um espaço maior para discutir seu método. Nesse sentido, pode-se
dizer que o método que começa a ser desenvolvido em 1920 sob o nome de crítico-intuitivo
terá na fenomenologia crítica ou intuição-crítica sua formulação final. Como a intuição é um
correlato da fenomenologia, e tendo em conta que Tillich não determinou um nome específico
para seu método, esta pesquisa considera que a fenomenologia crítica descreve bem a proposta
de Tillich e por conta disso utilizará a partir de agora esta nomeação para se referir a este método
tillichiano.
214 When this demand has been fully realized, an adequate name for the method will also emerge.
107
Em relação a fenomenologia de Husserl, Tillich reconheceu a importância do método
principalmente pelo seu rigor em descrever as essências e suspender os juízos em torno daquilo
que se quer analisar. Entretanto, ele não deixou de dialogar criticamente e propor a partir dessas
críticas uma nova forma de pensar a fenomenologia. É a partir desse diálogo crítico com a
fenomenologia filosófica que o teólogo desenvolve sua fenomenologia crítica.
Este método foi aplicado pelo autor tanto no contexto da filosofia da religião quanto no
contexto teológico. A questão sobre a verdade da religião na filosofia da religião é discutida
por ele por intermédio das considerações de sua essência e das formas que possibilitam a
apreensão dessa essência. Para Tillich, a caracterização intuitiva e crítica do conceito de religião
implica em perceber o incondicional como aquilo que é essencial na religião. No âmbito
teológico, embora se trate de um círculo específico, o sentido incondicional permanece como
um pressuposto, de modo que ao lidar com as formas de sentido, a abordagem precisa
considerar ambos os polos, e para isso a fenomenologia crítica é, como bem demonstrou Tillich,
um caminho adequado. O aspecto existencial é aqui de grande importância, pois as formas que
possibilitam a experiência revelatória, ou a percepção intencional do sentido incondicional,
adquirem o caráter de símbolo religioso e passam a estar existencialmente envolvidas com a
pessoa ou grupo que reconhece nesses símbolos o seu próprio poder de ser. Sendo assim, com
a abordagem fenomenológica seria possível perceber a ideia da religião como a experiência do
sagrado, com a ontologia é possível perceber a correlação entre o finito e infinito e por
intermédio da abordagem crítica é possível compreender a função religiosa como a dimensão
do último em todas as funções do espírito. Estas três abordagens não podem ser tomadas
isoladamente e por conta disso Tillich as reúne em único método.
A relação entre a experiência religiosa e as formas que possibilitam essa experiência
aponta para a formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, algo que o teólogo
trabalha mais exaustivamente em sua Teologia da Cultura. Este é um aspecto de continuidade
entre as duas fases do pensamento de Tillich e por conta disso desempenha um papel
fundamental na compreensão do seu pensamento. Entretanto, esta formulação dos modos como
religião e cultura se relacionam demonstra em grande medida o caminho pelo qual a
fenomenologia crítica pode ser aplicada para a análise das experiências religiosas. Dessa forma,
ao identificar as possibilidades de aplicação do método fenomenológico-crítico de Tillich será
possível levá-lo para além de seu pensamento, isto é, pensar nas possibilidades de um uso
instrumental de sua metodologia. Esta é, portanto, a proposta do próximo capítulo.
108
CAPÍTULO 3
IMPLICAÇÕES E APLICABILIDADE DA FENOMENOLOGIA DE TILLICH
O objetivo deste capítulo é analisar quais foram as implicações da fenomenologia para
o pensamento de Paul Tillich e de que maneira a fenomenologia crítica deste teólogo pode ser
aplicada para análise do fenômeno religioso. A máxima tillichiana “Religião é substância da
cultura e cultura é a forma da religião” é frequentemente citada para demarcar o ponto central
da teologia da cultura de Tillich. Esta frase está entre as mais conhecidas do teólogo e como
afirma Rendtorff, “trata-se de uma melodia de reconhecimento que, onde ressoa, permite-se
reconhecer inequivocamente: aqui fala Paul Tillich”215 (RENDTORFF, 1989, p. 335). De
acordo com Neugebauer, a teologia da cultura baseia-se em conceitos específicos cujos
fundamentos encontram-se em seu período inicial marcado pela filosofia de Schelling, mas que
irá consolidar-se somente durante seu período intermediário por conta de seu contato com a
fenomenologia de Husserl. É através de “[...] suas leituras de Husserl durante a Primeira Guerra
Mundial, que Tillich foi capaz de estabelecer o fundamento filosófico espiritual, no qual se
constrói seu escrito programático teológico-cultural ‘Sobre a ideia de uma teologia da cultura’
(Über die Idee einer Theologie der Kultur) (1919)216” (NEUGEBAUER, 2011, p. 38). Dessa
forma, a fenomenologia de Husserl, ou mais especificamente sua teoria da intencionalidade da
consciência, desempenha um papel importante na formulação dos modos como religião e
cultura se relacionam no pensamento de Tillich, e por consequência, em sua proposta de uma
teologia da cultura.
É neste contexto também que a fenomenologia crítica pode ser melhor compreendida.
Para o autor, a dinâmica interna dos sentidos se dá necessariamente na relação entre forma e
substância. Esta polarização deve ser mantida em toda análise do fenômeno religioso. Nesse
sentido, na medida em que o elemento intuitivo-descritivo do método se propõe a preservar o
aspecto substancial e subjetivo da experiência religiosa, o elemento existencial-crítico preserva
as formas através das quais a experiência foi possível. Com isso Tillich evita um reducionismo
metodológico de abrir mão dos aspectos profundos da experiência como também valoriza os
elementos concretos e existenciais, evitando a valorização de um polo em detrimento de outro.
215Erkennungsmelodie“ handelt, „die, wo sie ertönt, unverwechselbar zu erkennen gibt: Hier spricht Paul Tillich.
216[...] Husserllektüre während des Ersten Weltkriegs angeregt wurde, hat Tillich es vermocht, das
geistphilosophische Fundament zu legen, auf dem seine kulturtheologische Programmschrift Über die Idee einer
Theologie der Kultur (1919) aufbaut.
109
Entende-se, portanto, que a possibilidade de aplicar a fenomenologia de Tillich de forma prática
passa necessariamente pela consideração simultânea da forma e substância.
Dessa forma, para alcançar os objetivos propostos serão dados cinco passos importantes.
O primeiro será analisar as implicações da fenomenologia na formulação dos modos como
religião e cultura se relacionam. A aplicação que o autor faz da teoria da intencionalidade da
consciência na fundamentação de seu conceito de religião, tal como visto no primeiro capítulo,
irá repercutir na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam. Religião e
cultura, ou os correlatos forma e substância, estão essencialmente unidos numa relação de
interdependência, e nesse sentido a determinação do caráter religioso ou cultural de uma forma
depende do direcionamento da consciência que pode estar dirigido para à substância ou para a
forma.
No segundo passo o objetivo será analisar de que maneira a polarização forma e
substância está em sintonia com os elementos intuitivo-descritivo e existencial-crítico do
método tillichiano. Entende-se que para dar conta do caráter substancial da experiência religiosa
o autor emprega o elemento intuitivo-descritivo, e para dar conta do aspecto concreto e
existencial, o autor emprega o elemento existencial-crítico.
No terceiro passo o objetivo será analisar as possibilidades de aplicação da
fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso. Tendo em conta que toda
experiência religiosa é composta pela união de um elemento substancial e outro formal, a
análise do fenômeno religioso passa necessariamente por este caminho, e nesse sentido a
fenomenologia crítica construída a partir do elemento intuitivo-descritivo com o elemento
existencial-crítico se propõe a dar conta de ambos os polos dessa relação.
O quarto passo do capítulo pretende analisar de que maneira a teoria tillichiana do
símbolo pode ser compreendida em sintonia com sua fenomenologia crítica. Em perspectiva
fenomenológica, os fenômenos religiosos são considerados como modos simbólicos de
representação e, nesse sentido, os símbolos representam uma porta de acesso à experiência
religiosa e o principal recurso para a fenomenologia crítica desenvolver sua análise.
O quinto e último passo do capítulo se propõe a analisar em que medida a fenomenologia
crítica pode ser compreendida no horizonte de uma abordagem compreensiva da religião.
Tillich pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que
valorize tanto o caráter irredutível do sagrado como as formas concretas de sua expressão. O
110
método leva em consideração a estrutura complexa das formas simbólicas de representação e
procura descrevê-las sem esvaziá-las de seu valor profundo na experiência religiosa.
3.1. Implicações da fenomenologia na elaboração de uma Teologia da Cultura
3.1.1. Relação entre Religião e Cultura
Tillich afirma que o problema da relação entre religião e cultura sempre esteve no centro
de suas preocupações (2009, p. 33). O teólogo comenta que diante da presença do incondicional
não existe nenhuma esfera privilegiada, isto é, não existem esferas sagradas em si mesmas como
também não há esferas profanas em si mesmas. “A cultura é religiosa ali onde a existência
humana está submetida a questões últimas, deste modo, transcendida; e ali onde um sentido
incondicionado se torna visível em obras que possuem apenas um sentido condicionado em si
mesmas”217 (TILLICH, 1967 [1936], p. 68-69). Como exemplificação o autor comenta que se
uma pessoa, profundamente comovida pelos mosaicos de Ravena, os murais da cúpula da
Capela Sistina e os retratos de Rembrandt da última época, tivesse que responder se sua
experiência foi cultural ou religiosa, possivelmente veria essa questão difícil de responder.
Talvez seja correto dizer que foi cultural em sua forma e religiosa em sua substância (TILLICH,
1967 [1936], p. 68). A questão que se levanta neste momento é, como se dá essa relação na
experiência humana?
Vale lembrar que Tillich durante seu período revisionista reformula seu conceito de
religião a luz de uma teoria do sentido e nos termos de um direcionamento intencional da
consciência. Dessa forma, tal como discutido no primeiro capítulo, religião pode ser
compreendida como um direcionamento da intencionalidade do ato da consciência ao sentido
incondicional presente em qualquer encontro com a realidade, seja num contexto estético,
cognitivo, social, político, ou inclusive religioso. Não se trata, portanto, de uma esfera ao lado
de outras, mas de um sentido profundo e inesgotável presente em todas estas esferas. Nas
precisas palavras do teólogo, a religião “não é uma esfera de sentido ao lado de outras, mas uma
217 Culture is religious wherever human existence is subjected to ultimate questions and thus transcended; and
wherever unconditioned meaning becomes visible in works that have only conditioned meaning in themselves.
111
atitude em todas as esferas: a direção imediata ao Incondicional”218 (TILLICH, 1989 [1923], p.
209).
Da mesma forma, Tillich entende a cultura como o direcionamento para as formas
condicionadas e sua inter-relação do sentido. De acordo com o teólogo “Definimos a cultura
como a autocriatividade da vida sob a dimensão do espírito e a dividimos em theoria, em que
a realidade é apreendida, e práxis, em que a realidade é configurada” (TILLICH, 2011, p. 830).
Higuet (2008, p. 135) comenta que na dimensão da cultura é possível distinguir dois níveis de
sentido. Por um lado, há um nível preliminar, que se refere ao sentido direto e conscientemente
visado em que a cultura é de fato uma direção do espírito voltada para as formas condicionadas.
Nesse sentido a cultura é uma atividade simbólica do espírito humano que procura dar sentido
ao real com ajuda de formas lógicas, isto é, um esforço para dar uma forma racional a um
conteúdo determinado. Por outro lado, há um nível de sentido mais profundo, um Sentido do
Sentido, no qual se fundamenta o sentido preliminar, imanente e formal de toda cultura. “Esse
sentido último não pode ser apreendido por uma análise puramente objetiva e científica: ele só
é acessível a uma ‘percepção ou intuição imaginativa’” (HIGUET, 2008, p. 136).
Toda forma cultural, possui, portanto, uma dimensão religiosa, assim como a religião
por sua vez torna-se possível somente através destas formas. A religião se liga à cultura numa
relação de co-dependência. Para o autor, a religião possui a peculiaridade de não ser atribuível
a uma única função psíquica. Ela não se limita a alguma esfera específica, não é somente uma
função especial do espírito humano, mas ela se atualiza na diversidade das formas culturais, em
outras palavras, a religião torna-se possível somente por meio das formas posta pelo espírito
humano em sua criatividade no mundo da vida. Nesse sentido, a cultura é o meio através do
qual a religião pode ser expressa. De acordo com Tillich “A unidade da religião e da cultura
como unidade da substância de sentido incondicionada e da forma de sentido condicionada é a
relação adequada entre ambas”219 (TILLICH, 1973 [1925], p. 74).
O princípio religioso existe apenas em relação com funções culturais, de acordo com
Tillich, (1973 [1919], p. 161), a função religiosa não da forma a um princípio na vida do espírito
ao lado de outros princípios; a natureza absoluta de toda consciência religiosa desmoronaria as
218Keine Sinnsphäre neben den anderen ist, sondern eine Haltung in allen Sphären: Die unmittelbare Richtung auf
das Unbedingte.
219 The unity of religion and culture as a unity of unconditioned meaning-import and of conditioned meaning-form
is the authentic relation of the to.
112
barreiras deste tipo. Mas o princípio religioso se atualiza em todas as esferas da vida espiritual
ou cultural. Diante de toda a realidade existente se torna evidente o sentido de uma realidade
incondicional. Assim como declara Tillich:
A religião é a orientação em direção ao Incondicional. Através das realidades
existentes, através dos valores, através da vida pessoal, se torna evidente o
sentido da realidade incondicional; diante da qual cada coisa particular e a
totalidade dos particulares, todo o valor e todo sistema de valores, toda
personalidade e toda comunidade são abalados no mais profundo de seu auto-
suficiente ser e valor. Não se trata de uma nova realidade que estaria acima
das outras coisas, ou junto delas, se fosse assim, seria apenas mais alguma
coisa, ainda que de uma ordem superior, que sucumbiria ao Não absoluto do
Incondicional. Ao contrário, é precisamente através das coisas dessa realidade
que são lançadas sobre que é, ao mesmo tempo, o Sim e o Não de todas as
coisas. Não é um ser, nem a substância ou a totalidade de todos os seres; é,
para usar uma formula mística, aquilo que está acima de todo ser; é, ao mesmo
tempo, o Nada absoluto e o Algo absoluto220 (TILLICH, 1973 [1919], p. 162).
Este incondicional não diz respeito a uma realidade da existência, para Tillich (1973
[1919], p. 163), trata-se de uma realidade do sentido, e este é certamente o sentido último mais
profundo: aquela realidade que abala os fundamentos de todas as coisas, derrubando-as e torna
a construí-la novamente. Todo ato cultural “repousa” na base de sentido, isto é, “todo ato
cultural contém o sentido incondicional; ele descansa na base de sentido, na medida em que é
um ato de sentido é substancialmente religioso”221 (TILLICH, 1973 [1925], p. 59). Neugebauer
(2011, p. 59) comenta que a significatividade da cultura, fica assim, fundamentada a priori no
sentido incondicional. Tillich aceita para cada singularidade a pressuposição necessária de um
sentido incondicional de atos de sentido que se consumam em ações espirituais concretas, dessa
forma, “O conceito de Tillich de uma consciência religiosa substancial se constrói nesta
fundamentação de dependência”222 (NEUGEBAUER, 2011, p. 59). Ainda que seja possível
apontar as distinções entre religião e cultura, ambas se relacionam na co-participação na
220 Religion is directedness toward the Unconditional. Through existing realities, through values, through personal
life, the meaning of unconditional reality becomes evident; before which every particular thing and the totality of
all particulars—before which every value and the system of values—before which personality and community are
shattered in their own self-sufficient being and value. This is not a new reality, alongside or above other things:
that would only be a thing of a higher order which would again fall under the No. On the contrary, it is precisely
through things that that reality is thrust upon us which is at one and the same time the No and the Yes to every
thing. It is not a being, nor is it the substance or totality of beings; it is—to use a mystical formula—that which is
above all beings which at the same time is the absolute Nothing and the absolute Something.
221 Every cultural act contains the unconditional meaning; it is based upon the ground of meaning; insofar as it is
an act meaning it is substantially religious
222Auf diesem Begründungszusammenhang baut Tillichs Begriff eines substantiell religiösen Bewusstseins auf.
113
profundidade do espírito e este é o campo em que cultura e religião se encontram em um comum
direcionamento à unidade de sentido (TILLICH, 1973 [1925], p. 60).
Por conseguinte, segue-se que religião e cultura encontram-se em estrita relação e como
afirma o teólogo, “A religião é a orientação intencional ao Incondicional, e a cultura é a
orientação intencional às formas condicionadas e sua unidade. Estas são as definições mais
gerais e formais que se pode chegar em filosofia da religião e em filosofia da cultura”223
(TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor). Entende-se, portanto, que as formas
condicionadas que compõem a cultura estão necessariamente interligadas ao fundamento do
sentido, de modo que, mesmo sendo possível toma-los didaticamente separados, religião e
cultura são indissociáveis e permanecem essencialmente unidos.
3.1.2. Relação entre forma e substância
De acordo com Danz (2009, p. 181), Tillich assimila estes níveis de conhecimento
reflexivo, religião e cultura, nas categorias semânticas de forma e substância, que são
fundamentalmente constitutivos para sua explicação de influência neokantiana da filosofia do
espírito em 1920. A categoria de substância, portanto foi posta para representar o conhecimento
do espírito na reflexividade de sua atividade cultural, e a categoria de forma para as atividades
autônomas do espírito relacionadas ao objeto e à ação, isto é, as funções transcendentais do
espírito. Por conta dessa relação interna de forma e substância, ambas as categorias coexistem
tanto no religioso quanto no cultural. Em sua conferencia “Sobre a ideia de uma teologia da
cultura” realizada em 1919 para a Sociedade Kantiana de Berlim, Tillich chama atenção para
importância de esclarecer os conceitos de forma e substância, de acordo com o autor:
O conteúdo substancial é diferente do conteúdo objetivo. Por meio do termo
“conteúdo objetivo” entendemos algo objetivo em sua simples existência, que
através da forma será elevada até a esfera espiritual-cultural. E com “conteúdo
substancial”, devemos entender o sentido, a substancialidade espiritual, que é
a única em outorgar o sentido à forma. Podemos, portanto, dizer: A substância
223Religion is directedness toward the Unconditional, and culture is directedness toward the conditioned forms
and their unity. These are the most general and formal definitions arrived at in philosophy of religion and
philosophy of culture.
114
é apreendida por meio da forma e se expressa num objeto224 (TILLICH, 1973
[1919], p. 165, grifo do autor).
A religião como experiência do incondicionado está para a substância assim como a
cultura está para a forma. De acordo com Higuet “o Gehalt é a substância que funda tudo, e é
também o conteúdo que preenche toda forma. [...] A forma prende-se à estrutura racional da
realidade e faz com que a obra cultural seja o que é concretamente: um poema, uma pintura,
um regime político, um sistema filosófico etc.” (HIGUET, 2008, p. 137). A religião é nestes
termos o conteúdo vivo da cultura, ao passo que a cultura é o meio através do qual a religião se
expressa.
A aplicação que Tillich faz da teoria da intencionalidade da consciência na
fundamentação de seu conceito de religião sugere que a consciência ao perceber o sentido
incondicional o faz sempre através de uma forma. Isso implica no relacionamento
imprescindível entre religião e cultura ou no correlato forma e substância, pois o sentido
incondicional percebido na forma, coloca-se para esta forma como sua substância, de tal modo,
que uma não é possível sem a outra. “A relação entre o sentido e a forma deve interpretar-se
como similar a uma linha, em que um dos extremos representa a pura forma e o outro o puro
sentido. Entretanto, ao largo da linha forma e sentido estão sempre misturados, ainda que em
distintas proporções”225 (TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O sentido incondicional como
fundamento da realidade permanece nas formas de sentido como sua substância, “porque é
precisamente na substância que aparece a realidade religiosa, com seu Sim e seu Não frente a
todas as coisas”226 (TILLICH, 1973 [1919], p. 166).
Abreu comenta que esta relação permanente entre religião e cultura pode ser considerada
uma necessidade da filosofia da religião de Tillich, “Esta configuração se torna necessária em
função de seu desenvolvimento nos termos de uma teoria da consciência, ou, mais
precisamente, de uma teoria da consciência intencional ou noética” (ABREU, 2015, p. 94). De
acordo com o teólogo, “A religião é a orientação do espírito ao sentido incondicionado. A
cultura é a orientação do espírito às formas condicionadas. Ambos se encontram em sua
224Substance or import is something different from con-tent. By content we mean something objective in its simple
existence, which by form is raised up to the intellectual-cultural sphere. By substance or import, however, we
understand the meaning, the spiritual substantiality, which alone gives form its significance. We can therefore say:
Substance or import is grasped by means of a form and given expression in a content.
225 The relation of import to form must be taken as resembling a line, one pole of which represents pure form and
the other pole pure import. Along the line itself, however, the two are always in unity.
226for it is precisely in the substance that the religious reality appears with its Yes and No to all things.
115
orientação em direção a unidade completa das formas de sentido”227 (TILLICH, 1973 [1925],
p. 72). Comentando sobre o assunto, Chun afirma que “A consciência da forma, conteúdo e
substância indica uma direção dupla da consciência religiosa, aquela em direção às formas
condicionadas de sentido e sua inter-relação, e aquela em direção ao incondicional sentido da
realidade, que é a base da substância”228 (CHUN, 2008, p. 165).
Todo ato cultural, portanto, possui uma dimensão religiosa quando visto à luz de sua
substância, assim como, todo ato religioso é também cultural quando visto a partir de sua forma.
A relação entre religião e cultura é, portanto, permanente, pois na medida em que a consciência
se dirige para as formas se está diante da cultura, e na medida em que a consciência se volta
para o sentido incondicional se está diante da religião. Neugebauer (2011, p. 60) comenta que
as características da noção de experiência incondicional que Tillich elabora diante do pano de
fundo da fenomenologia aplica-se também para a noção de consciência religiosa substancial,
isto é, a consciência que se volta para a substância através de uma forma, ou a consciência que
se volta apenas para a forma, onde a substância está presente, mas não diretamente visada.
Em “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, Tillich (1973 [1922],
138) afirma que em todo encontro com a realidade, é possível que o “eu” perceba sua
autocerteza de tal maneira que a relação incondicional com a realidade passe para o primeiro
plano, este é o modo religioso a priori de auto-apreensão. Por outro lado, existe a possibilidade
de que o “eu” experimente sua autocerteza de tal modo que sua relação com seu próprio ser seja
o que ocupe o primeiro plano. Este é o modo não religioso a priori de auto-apreensão. No
primeiro caso, o modo religioso a priori, o “eu” penetra a forma de sua consciência e alcança
o fundamento da realidade sobre o qual está fundamentada. No segundo caso, o modo não
religioso a priori, este fundamento continua presente, já que sem ele não haveria autocerteza
nenhuma, mas o “eu” não chega a tocá-lo, o “eu” permanece separado, contentando-se com a
forma da consciência.
Esta segunda posição pode ser qualificada como não religiosa, mas apenas no
que se refere a sua intenção e não em relação a seus resultados. Não existe
consciência não religiosa em substância, embora sim possa existir em sua
intenção. Todo ato de auto-apreensão contém, como seu fundamento na
realidade, a relação com o Incondicional; mas esta relação não sempre se
227 Religion is directedness of the spirit toward the unconditioned meaning. Culture is directedness of the spirit
toward conditioned forms. Both, however, meet in orientation to the completed unity of the forms of meaning.
228 Awareness of form, content, and import bespeaks a double-directedness of the religious consciousness, that
toward the conditioned forms of meanings and their interrelation, and that, toward the unconditional meaning-
reality, which is the Ground of the import.
116
manifesta. É necessário, pois, diferenciar os dois estados de consciência229
(TILLICH, 1973 [1922], p. 139).
Tillich descreve dois estados da intencionalidade da consciência, uma dirigida à forma
e a outra à substância. “A mesma ideia, portanto, pode ter um sentido imediato e um sentido
simbólico, um sentido religioso e um sentido cultural; pode ser Deus e o mundo”230 (TILLICH,
1973 [1925], p. 80). O conceito de “Espírito absoluto” de Hegel por exemplo, é de maneira
imediata a síntese das formas do mundo, mas também pode ter o sentido simbólico de Deus.
Nesse sentido, os dois estados da consciência, um dirigido à substância e outro à forma,
expressa em grande medida as implicações da teoria da intencionalidade da consciência de
Husserl na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, de acordo com o
teólogo “É de decisiva importância para a filosofia da religião e para a teologia captar esta
diferença em toda sua agudez”231 (TILLICH, 1973 [1925], p. 80).
3.1.3. Dois estados da intencionalidade da consciência e a distinção entre a
potência religiosa e o ato religioso
Tendo isso em conta, Danz (2009, p. 180) comenta que para Tillich, o espírito em sua
relação paradoxal consigo mesmo é a base da religião e cultura, nesse sentido, a religião como
intuição contingente da estrutura reflexiva do espírito em sua autorrelação só pode acontecer
através das formas concretas postuladas pelo espírito. “Assim, para Tillich, religião no que diz
respeito tanto ao conhecimento e à ação, se refere a um conhecimento reflexivo do espírito em
suas atividades teóricas e práticas, com o resultado de que estas funções podem ser consideradas
culturais”232 (DANZ, 2009, p. 180-181).
229 One can properly call this second position unreligious, but only with regard to its intention and not with regard
to its outcome. There is no consciousness unreligious in substance, though it can certainly be so in intention. Every
act of self-apprehension contains, as its foundation within reality, the relation to the Unconditional, but this relation
is not in every case intended. The two states of consciousness are differentiated accordingly.
230 The same idea can therefore have an immediate and a symbolic, a religious and a cultural, significance; it can
be God and the world.
231 It is now of decisive importance for philosophy of religion and theology, to grasp this difference in all its
sharpness.
232Thus, for Tillich, religion, with respect both to knowledge and to action, relates to a reflexive knowledge of
spirit in its theoretical and practical activities, with the result that these functions can themselves be considered
culture.
117
De acordo com Neugebauer (2011, p. 60), essa descrição de Tillich especifica o caráter
da substância da consciência religiosa como a substância para a relação com o incondicional,
isto é, a intencionalidade da consciência voltada para a substância da forma é
caracteristicamente religiosa, nesse sentido, “A consciência substancialmente religiosa é
especificada aqui como classe própria de ato da consciência intencional. Com a essência desta
classe de ato é visada sua constituição substancial”233 (NEUGEBAUER, 2011, p. 60).
Logo, pode-se dizer que o caráter especifico da intencionalidade da consciência
substancial é proposto por Tillich para descrever os modos de relacionamento entre forma e
substância, como polos que mesmo sendo inseparáveis, podem adquirir configurações
diferentes na consciência. Comentando sobre o assunto Abreu (2015, p. 97) afirma que a
determinação do caráter religioso ou cultural de um determinado ato depende do
direcionamento da consciência subjetiva em sua atividade no mundo da vida. A distinção entre
ambas está relacionada à atitude de intencionalidade da consciência que embora discerníveis,
cultura e religião constituem dimensões codependentes e não podem jamais serem
compreendidas separadamente. Nesse sentido, do ponto de vista de sua intencionalidade, ou
sob o aspecto da consciência subjetiva, a cultura não é religiosa, mas quando considerada a
partir de sua dimensão de profundidade, a luz de sua substância, todo ato cultural possui um
elemento religioso, uma vez que sendo um ato de sentido particular, ele se encontra
fundamentado no sentido incondicional. Da mesma forma, todo ato religioso enquanto
atividade do espírito é uma ação cultural, ainda que do ponto de vista da intencionalidade da
consciência subjetiva ele permaneça distinto da cultura.
De acordo com Tillich, todo ato cultural contém um sentido incondicional, encontra-se
baseado no fundamento de sentido e por conta disso é substancialmente religioso. Entretanto,
mesmo sendo substancialmente religioso, a cultura não é necessariamente religiosa se
considerada a partir de sua intencionalidade que pode estar dirigida a um ato cultural. Por outro
lado, todo ato religioso só pode dirigir-se em direção ao incondicional através da unidade das
formas de sentido. Considerado a partir de sua forma, todo ato religioso é, portanto, cultural;
embora permaneça distinto por dirigir-se ao sentido incondicional. A forma ainda que participe
da unidade de sentido, não pode ser considerada por si só a totalidade de sentido, sendo assim,
Tillich afirma que:
233Das substantiell religiöse Bewusstsein wird hier als eigene Aktklasse des intentionalen Bewusstseins
spezifiziert. Mit dem Wesen dieser Aktklasse ist deren substantielle Verfasstheit gemeint
118
No ato cultural, por tanto, o religioso é substancial, no ato religioso, o cultural
é formal. Cultura é a soma total de todos os atos espirituais dirigidos à
plenitude das formas particulares de sentido e de sua unidade. Religião é a
soma total de todos os atos espirituais dirigidos à apreensão da substância de
sentido incondicionado através da realização da unidade de sentido234
(TILLICH, 1973 [1925], p. 60).
Religião e cultura estão relacionadas na dimensão de incondicionalidade do espírito.
Novamente nas palavras de Abreu:
Torna-se evidente que tanto a unidade imprescindível, quanto a distinção entre
religião e cultura, dizem respeito à atitude de intencionalidade da
consciência: a religião é o direcionamento da consciência intencional ou
noética ao sentido incondicionado – ou, para usarmos um termo correlato, à
substância do sentido (Sinngehalt) -, ao passo que a cultura é o direcionamento
noético às formas condicionadas e sua unidade (ABREU, 2015, p. 97-98).
É neste contexto que se torna possível compreender com maior clareza a máxima
tillichiana de que religião é substância da cultura e cultura é a forma da religião como bem
descreveu o autor: “A religião, considerada preocupação suprema, é a substância que dá sentido
à cultura, e a cultura, por sua vez, é a totalidade das formas que expressam as preocupações
básicas da religião. Em resumo: religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da
religião” (TILLICH, 2009, p. 83). A cultura, portanto, sempre manifesta uma dimensão
religiosa, e de acordo com o autor estas expressões são aspectos da auto-criatividade do espírito
humano.
O condicionado é o meio no qual e através do qual se capta o Incondicional.
[...] Mas posto que toda afirmação enquanto tal se expressa no modo
subjetivo-objetivo, e portanto, nas formas do condicionado, as afirmações
com respeito ao Incondicional devem evidentemente utilizar estas formas.
Mas deve fazê-lo apenas de tal maneira que se faça evidente até que ponto são
inadequadas, ou seja, devem ter a forma de um paradoxo sistemático235
(TILLICH, 1973 [1922], p. 137-138).
O diferencial cultural, em que se assenta todo conhecimento, é a fonte de onde brotam
as inúmeras formas religiosas. Estas formas configuram o conhecimento religioso em suas
várias expressões, são materiais retirados dos contextos marcados pelas circunstâncias
234 In the cultural act, therefore, the religious is substantial; in the religious act the cultural is formal. Culture is the
sum total of all spiritual acts directed toward the fulfillment of particular forms of meaning and their unity. Religion
is the sum total of all spiritual acts directed toward grasping the unconditioned import of meaning through the
fulfillment of the unity of meaning.
235The conditioned is the medium in and through which the Unconditional is apprehended. [...] But since every
statement as such is expressed in the subject-object mode, and hence in the forms of the conditioned, statements
about the Unconditional must, to be sure, utilize these forms. But this must occur in such a way that their
inadequacy becomes evident, i.e., they must bear form of systematic paradox.
119
históricas, psicológicas, culturais e outras situações que atuam como meio através do qual a
experiência religiosa adquire sua expressão concreta. Como afirma o teólogo “Contanto que
um ato religioso se direciona para um conteúdo representativo e através dele, pelo último
visado, é o conhecimento religioso”236 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 136). O incondicional
é para onde se dirige a consciência, mas o incondicional não pode ser diretamente visado, de
modo que o conteúdo substitui o incondicional, mas sem com isso ocupar o seu lugar, mas
como aquilo através do qual o incondicional pode ser visado.
A intencionalidade da religião se dirige à essência, é a fonte incondicionada e
o abismo do sentido, e as formas culturais servem como símbolos dessa
essência. A intencionalidade da cultura se dirige à forma, que representa o
sentido condicionado. A essência, que representa o sentido incondicionado,
apenas se vislumbra de maneira indireta por meio da forma autônoma
proporcionada pela cultura que atua como meio237 (TILLICH, 1967 [1936], p.
70).
Esta forma de caráter paradoxal é o símbolo religioso presente na diversidade das
expressões religiosas, nisto constitui-se o conhecimento religioso para o autor. Danz (2009, p.
181) comenta que a religião, nesse sentido, é o local onde o espírito se torna transparente em
sua atividade cultural e na concretude de suas ações. “É aqui que a teoria dos símbolos de Tillich
tem sua base. Esta teoria não está preocupada com a representação de algum tipo de ser
transcendente substancial, mas sim com o fato de que o espírito pode criar símbolos da sua
própria autotransparência em sua atividade”238 (DANZ, 2009, p. 181). De acordo com
Neugebauer “Os conteúdos que substituem o Incondicional, tomam o status de símbolo
religioso. Estes símbolos estão relacionados com o ato religioso. Seu caráter intencional,
contudo, não aparece nessa referência, mas é dirigido através do símbolo para o incondicionado
ou o último”239 (NEUGEBAUER, 2011, p. 58).
236Sofern ein religiöser Akt sich auf einen vertretenden Inhalt und durch ihn hindurch auf das Letzt-Gemeinte
richtet, ist er religiöse Erkenntnis.
237 Religion’s intentionality is toward substance, which is the unconditioned source and abyss of meaning, and
cultural forms serve as symbols of that substance. Culture’s intentionality is toward the form, representing
conditioned meaning. The substance, representing unconditioned meaning, can be glimpsed only indirectly
through the medium of the autonomous form granted by culture.
238It is here that Tillich’s theory of symbols has its basis. This theory is not concerned with the representation of
some sort of substantial transcendent being, but rather with the fact that spirit can create symbols of its own self-
transparency in its activity.
239Die Inhalte, die das Unbedingte vertreten, nehmen den Status religiöser Symbole ein. Auf diese Symbole ist der
religiöse Akt bezogen. Sein intentionaler Charakter geht jedoch nicht in dieser Bezugnahme auf, sondern richtet
sich durch die Symbole hindurch auf das Unbedingte bzw. Letztgemeinte.
120
O incondicional, portanto, não pode ser um objeto, mas pode ser intuído e significado
através do objeto simbólico. Dessa forma como afirma o teólogo, “A fé é a orientação em
direção ao incondicional através dos símbolos extraídos da ordem condicionada. Todo ato de
fé, portanto, possui um duplo significado. Se dirige de maneira imediata ao objeto sagrado. Mas
não significa, porém, este objeto, mas o Incondicional, que expressa de maneira simbólica”240
(TILLICH, 1973 [1925], p. 76-77). É na relação dinâmica entre o imediatamente existente e o
espírito que atualiza o sentido no existente, bem como a unidade perfeita entre ambos que a
configuração simbólica se torna possível. Somente em sua unidade é que se expressa de maneira
completa a relação entre o Incondicional e o condicionado. Somente assim se consegue um
autêntico simbolismo (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).
A relação entre o princípio religioso e a função cultural bem como a expressão simbólica
da experiência com o incondicional tornam-se dessa forma fundamentais, na medida em que a
partir dessa relação surge, como afirmou o teólogo, uma esfera especificamente religiosa-
cultural, isto é, “uma percepção religiosa – o mito e o dogma; uma esfera de estética religiosa
– o cultus; uma formação religiosa da pessoa – a santificação; uma forma religiosa de sociedade
– a Igreja, com sua peculiar lei canônica e sua ética comunal”241 (TILLICH, 1973 [1919], p.
161, grifo do autor). O que se tem aqui é a religião como ato, isto é, uma expressão cultural de
caráter simbólica e uma esfera cultural entre outras. “A religião como autotranscendência da
vida precisa das religiões e, concomitantemente, precisa negá-las” (TILLICH, 2011, p. 555).
Nesse sentido, Tillich enfatiza que a potência religiosa, enquanto uma certa qualidade
da consciência, não deve ser confundida com a ação religiosa, isto é, uma ação teórica ou prática
de caráter independente. “Enquanto religião, cada religião é relativa, pois cada religião
objetifica o Incondicional. Enquanto revelação, entretanto, cada religião pode ser absoluta, pois
revelação é a irrupção do Incondicional na sua incondicionalidade”242 (TILLICH, 1973 [1922],
p. 146). Tillich está lidando aqui com dois conceitos de religião. Há uma ideia de religião no
sentido mais estrito que se refere à religião como uma esfera particular da cultura composta por
símbolos, mitos, cultos, que está ao lado de outras esferas como a economia, política, arte, etc.
240Faith is orientation to the Unconditional through symbols drawn from the conditioned order. Every act of faith
therefore has a double meaning. It is directed immediately toward a holy object. It does not, however, intend this
object, but rather the Unconditional which is symbolically expressed in the object.
241A religious perception – myth or dogma; a sphere of religious aesthetics - the cultus; a religious molding of the
person – sanctification; a religious form of society – the church, with its special canon law and communal ethic.
242 As religion, every religion is relative, for every religion objectifies the Unconditional. As revelation, however,
every religion can be absolute, for revelation is the breakthrough of the Unconditional in its unconditionality.
121
No entanto, há também a religião no sentido mais amplo que se refere ao sentido último e mais
profundo, isto é, a religião enquanto um direcionamento da consciência ao sentido
incondicional. “De um lado, a religião é um fenômeno cultural, uma função do espírito entre
outras. Do outro lado, a essência mesma da religião encontra-se além de todas as formas
fenomenais, além de todas as realizações e expressões concretas” (HIGUET, 2008, p. 137).
A experiência religiosa se expressa, portanto através das formas culturais que podem
adquirir um caráter simbólico e configurar desta forma uma realidade religiosa cultural ao lado
de outras. O símbolo religioso encontra nesta dinâmica a sua origem e adquire o caráter
paradoxal de apontar para o incondicional negando e afirmando sua forma, como bem afirmou
o autor, o ato religioso só pode se tornar atual em outros atos do espírito. Isso quer dizer que
ele tem de aportar a estes outros atos uma forma na qual a sua qualidade religiosa seja visível,
e esta forma é paradoxal, isto é, é simultaneamente afirmação e negação da forma (TILLICH,
1973 [1922], p. 144).
A tensão entre forma e substância é constante e deve ser mantida, para Tillich, a
dinâmica interna dos sentidos se dá nessa relação, por isso como afirma o teólogo “A forma e
substância não podem se separar. Não faz sentido postular uma sem a outra”243 (TILLICH, 1973
[1925], p. 59). A religião diz respeito a um direcionamento da intencionalidade da consciência
ao incondicional, mas na medida em que não há como referir-se ao incondicional sem objetivá-
lo, o autor propõe a noção de substância, que de acordo com Neugebauer, constitui um dos
conceitos mais reluzentes da teologia da cultura. Com isso, o direcionamento da consciência ao
sentido incondicional através das formas também diz respeito a um direcionamento da
consciência à substância presente na forma. “A influência de Husserl e da então chamada escola
fenomenológica estende-se, por conseguinte, em ambas as localizações da consciência do
religioso”244 (NEUGEBAUER, 2011, p. 61). Esta formulação dos modos como religião e
cultura se relacionam a partir da intencionalidade do ato da consciência representa um aspecto
fundamental da Teologia da Cultura de Tillich que lhe permite afirmar tanto a autonomia da
religião e da cultura, bem como a relação necessária entre elas. É tarefa da teologia, portanto,
levar a expressão o devir-reflexivo do espírito em todas as esferas e criação da cultura (DANZ,
2009, p. 181).
243 Form and import belong together; it is meaningless to posit the one without the other.
244Der Einfluss Husserls und der sogenannten phänomenologischen Schule erstreckt sich somit auf beide
Bewusstseinslagen des Religiösen.
122
A proposta de Tillich de uma teologia da cultura dirige-se justamente nessa direção, isto
é, de possibilitar uma análise religiosa das criações culturais segundo a substância que se realiza
nelas considerando ambos os polos dessa relação, forma e substância. De acordo com o autor,
“A tarefa da teologia da cultura é acompanhar de perto este processo em todas as esferas da
criação cultural e dar-lhe expressão. Não do ponto de vista da forma [...] mas tomando a
significação ou substância como seu ponto de partida”245 (TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O
teólogo comenta também que essa proposta de uma teologia da cultura possui uma tríplice
missão: Fazer uma análise religiosa geral da cultura, fazer uma tipologia religiosa e filosofia da
história cultural propondo uma sistematização religiosa concreta da cultura.
A primeira se refere à relação entre a forma e a substância [...] a relação entre
o Sim e o Não, a relação e a força mediante a qual ambos encontram expressão.
[...] Isso nos leva a segunda tarefa que propomos à teologia da cultura, a tarefa
tipológica e histórica-filosófica. A limitação está dada pela imagem que
descrevemos anteriormente, a de uma linha com dois polos, respectivamente
a forma e a substância (ou significação). Esta imagem nos leva a três pontos
decisivos, que representam três tipos fundamentais: os dois polos e o ponto
central, onde a forma e substância mantém um perfeito equilíbrio. [...] Si esta
doutrina dos tipos se aplica ao presente e se relaciona sistematicamente com
o passado, irá se desenvolvendo uma classificação histórica-filosófica, que
nos leva diretamente à terceira tarefa, que é, propriamente dita, a tarefa
sistemática da teologia da cultura246 (TILLICH, 1973 [1919], p. 166-167).
A reflexão de Tillich sobre a proposta de uma teologia da cultura é bastante rica e
extensa, de modo que uma análise mais exaustiva sobre ela necessitaria ser objeto de um estudo
próprio, nesse sentido, a menção feita a este tema teve a pretensão apenas de apontar para as
implicações do contato de Tillich com a fenomenologia de Husserl, pois como bem frisou
Neugebauer, os fundamentos filosóficos-espirituais da teologia da cultura de Tillich remontam
ao pano de fundo de sua recepção da fenomenologia de Husserl (NEUGEBAUER, 2011, p. 38).
De modo que uma análise mais exaustiva sobre ela não pode mais ser desenvolvida dentro dos
limites dessa pesquisa.
245 The task of a theology of culture is to follow up this process in all the spheres and creations of culture and to
give it expression. Not from the standpoint of from [...] but taking the import or substance as its starting point.
246The first is the relation between form and substance. [...] the relation between the Yes and the No, the relation
and the force in which both find expression. [...] But there is also a certain limitation: and this leads us to the
second task assigned to theology of culture, the typological and historical-philosophical task. A limitation is given
by the afore-mentioned image of the line with the poles of form and substance (or import) respectively. This image
leads us to three decisive points representing the three fundamental types: the two poles and the central point where
form and substance are in equilibrium. [...] If this doctrine of types is applied to the present and systematically
related to the past, a historical-philosophical classification develops which then leads us directly to the third and,
properly speaking, systematic task of theology of culture.
123
A formulação dos modos como religião e cultura se relacionam demonstra em grande
medida as implicações da teoria da intencionalidade da consciência no pensamento de Tillich
bem como a importância que esta teoria teve para o desenvolvimento de sua teologia da cultura.
De acordo com Neugebauer, “Ambas as formas de consciência do religioso influenciam em sua
compreensão do espírito e são, com isto, essencialmente parte integrante dos fundamentos
filosófico-espirituais nos quais jaz seu princípio cultural-teológico”247 (NEUGEBAUER, 2011,
p. 63). Sendo assim, a demarcação conceitual dos modos como religião e cultura se relacionam
a partir do direcionamento da consciência subjetiva apresentam-se ao ver desta pesquisa como
os resultados ou implicações de um desenvolvimento de uma teoria da consciência intencional
no pensamento de Paul Tillich que é, como foi exposto no decorrer da pesquisa, oriunda de seu
contato com a fenomenologia de Edmund Husserl.
3.2. A relação entre forma e substância e os elementos intuitivo-descritivo e
existencial-crítico
A unidade entre religião e cultura como unidade entre forma e substância descreve a
dinâmica em que são formados os muitos fenômenos religiosos. Para o autor, “Cada ato
religioso, não apenas da religião organizada, mas também dos mais íntimos movimentos da
alma, é formado culturalmente” (TILLICH, 2009, p. 83). As expressões religiosas são, portanto,
formadas culturalmente, muito embora, não estejam limitadas à cultura, mas possuem uma
dimensão de profundidade que diz respeito ao caráter incondicional e subjetivo da experiência
religiosa. Trata-se, portanto, de um fenômeno que reúne um aspecto cultural e formal e um
aspecto substancial e incondicional, uma criação cultural que expressa o sentido incondicional
atualizado em formas condicionados.
Há, portanto, dois polos presente em toda expressão religiosa que devem ser
considerados. À luz do pensamento tillichiano, uma análise coerente de qualquer fenômeno
religioso deve levar em consideração a tensão formada entre ambos os polos dessa relação, pois
como afirmou o teólogo:
247Beide Bewusstseinsformen des Religiösen fließen in sein Verständnis von Geist ein und sind damit wesentlicher
Bestandteil der geistphilosophischen Grundlagen, auf denen sein kulturtheologischer Ansatz ruht.
124
A unidade da religião e cultura como unidade da substância de sentido
incondicionado e da forma de sentido condicionado é a relação adequada entre
as duas [...] A filosofia da religião tem seu ponto de partida, certamente nesta
coordenação e revela a unidade essencial somente por meio de uma análise
metalógica”248 (TILLICH, 1973 [1925], 62-74).
O método proposto por Tillich nesse sentido possibilitaria a preservação da unidade
essencial entre forma e substância. A união entre forma e substância como unidade de sentido
é o caminho para onde se dirige não apenas o método metalógico, como também o crítico-
intuitivo e o fenomenológico-crítico (considerando a hipótese dessa pesquisa de que se trata de
um único método), nesse sentido, o elemento intuitivo do método se volta para a substância da
forma como uma realidade a ser intuída e preservada em toda forma religiosa, e o elemento
crítico por sua vez volta-se para a forma, como o caráter concreto e existencial formado a partir
do solo cultural do mundo da vida. A unidade imprescindível entre forma e substância
pressupõe ambos os elementos metodológicos, como bem afirmou Neugebauer, “[...] o crítico,
dirigido ao sentido concreto ou funções culturais, e o intuitivo, dirigido ao caráter intencional
da consciência”249 (NEUGEBAUER, 2011, p. 61).
Neugebauer está se referindo especificamente ao método crítico-intuitivo de 1920.
Entretanto, se o método considerado para esta análise for o fenomenológico-crítico, a afirmação
deste autor permitiria deduzir também que enquanto o existencial-crítico volta-se para o sentido
cultural ou simbólico, o intuitivo-descritivo dirige-se para o caráter intencional e profundo. A
partir de uma abordagem fenomenológica-crítica, tem-se, portanto, as condições necessárias
para preservar a tensão existente na dinâmica dos elementos de sentido que derivam da
experiência intencional da consciência em sua autoreflexibilidade. “Mas segue-se também, ao
mesmo tempo, que a meta deste simbolismo é a intuição das formas significativas plenas de
substância viva, e não a intuição de qualquer outro tipo de essências metafísicas
independentes”250 (TILLICH, 1973 [1925], p. 53).
É nesta correlação entre forma e substância que se abre o caminho para entender as
possibilidades de aplicação do método fenomenológico-crítico. A relação que existe entre
248 The unity of religion and culture as a unity of unconditioned meaning-import and of conditioned meaning-
form is the authentic relation of the two. [...] The philosophy of religion does indeed begin from such a
coordination, and it reveals the essential unity only through the analysis of meaning.
249[...] das kritische, auf die konkreten Sinn- bzw. Kulturfunktionen gerichtete, und das intuitive, auf den
intentionalen Charakter des Bewusstseins gerichtete
250 But it follows at the same time that the goal of this symbolism is the intuition of the forms of meaning filled
with a living import, not the intuition of any sort of independent metaphysical essences.
125
forma e substância e os elementos existencial-crítico e intuitivo-descritivo do método
tillichiano, se mostra na medida em que o método se volta para esta polarização com o objetivo
de considerar ambos os polos e preservar sua unidade, ou seja, o método se estende crítica e
intuitivamente até os princípios de sentido que estão condicionados pela forma e substância e
dos quais depende toda apreensão das intuições particulares da essência. Disto pode-se deduzir
um possível caminho que a fenomenologia crítica de Tillich propõe para a análise do fenômeno
religioso.
A tensão entre religião e cultura é uma constante, e exige um método que dê conta de
ambos os polos sem a valorização de um em detrimento do outro. A conciliação que o teólogo
faz entre o método crítico e intuitivo irá salientar a relação entre forma e substância e propor
novas possibilidades de intuição das essências. Aqui a fenomenologia crítica é fundamental,
pois com sua distinção entre fundamento de sentido e a unidade de sentido, torna-se possível
apontar para as relações positivas e negativas entre a religião e a cultura, e com isso, trazer à
luz a função religiosa em sua pureza (TILLICH, 1973 [1925], p. 62). A aplicabilidade da
fenomenologia de Tillich encontra nesta tensão, forma e substância, a sua base e, portanto, a
abertura para a análise de fenômenos religiosos para além do sistema tillichiano, isto é,
apreender a experiência religiosa presente na cultura tanto lógica como intuitivamente.251
Da mesma forma o teólogo afirma que em uma análise religiosa de caráter metalógica
“[...] se pode falar de Deus apenas na medida em que ele for significado em uma ação religiosa.
Um discurso extrareligioso sobre Deus contradiz tanto os supostos metodológico como os
supostos materiais”252 (TILLICH, 1973 [1925], p. 79). As formas que compõe a religião devem
ser tomadas em seu caráter simbólico, isto é, precisamente como símbolos religiosos que
expressam o incondicional. O incondicional por sua vez, diz respeito a um sentido percebido
pela orientação intencional da consciência, intencionalidade que sustenta todas as funções
(TILLICH, 1973 [1925], p. 101). Em termos de categoria religiosa, a revelação diz respeito a
essa percepção do incondicional, de modo que segundo o autor “Falamos de revelação em
qualquer lugar que a significação incondicional do sentido atravessa a forma do sentido. A fé
251 Não se trata aqui de uma superação do sistema tillichiano. O ato de levar a fenomenologia de Tillich para além
do seu próprio sistema se refere às possibilidades de que este método não se limita apenas ao pensamento
tillichiano, mas que pode ser utilizado de maneira instrumental em outras circunstâncias analíticas.
252One can speak of God only insofar as he is intended in a religious act. An extrareligious speaking of God
contradicts the methodological as well as the material presuppositions.
126
sempre se fundamenta na revelação, porque é uma apreensão do sentido incondicional através
de formas”253 (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).
A revelação tem o caráter de criar formas, isto é, detrás de cada autentica criação existe
revelação (TILLICH, 1973 [1925], 105). Revelação, portanto, tem a ver com criações de
formas, e necessariamente com criação de símbolos religiosos. Nesse sentido “Em cada ato de
fé revelacional estão implicadas duas coisas: por um lado, a orientação em direção ao sentido
incondicionado e por outro, a forma simbólica através do qual se revela o Incondicional”254
(TILLICH, 1973 [1925], p. 109). Nesta declaração torna-se novamente possível perceber a
relação entre forma e substância em toda experiência religiosa. Tendo em conta que as formas
religiosas através das quais o incondicional é expresso adquirem o caráter paradoxal de símbolo
religioso, e para Tillich a linguagem da religião é necessariamente simbólica, então a
fenomenologia crítica pode ser aplicada na análise de fenômenos religiosos na medida em que
estas sejam consideradas como modos simbólicos de representação que advém de uma
experiência revelatória. Nisto se tem as primeiras possibilidades para se aproximar de um
fenômeno religioso a luz da fenomenologia crítica de Paul Tillich como método de abordagem.
O seguinte tópico terá por objetivo analisar estas possibilidades.
3.3. A aplicabilidade da fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso
Diante do exposto até o momento torna-se possível perceber que o método proposto por
Tillich em 1920, no contexto de sua filosofia da religião, alcançou sua formulação final na
fenomenologia crítica ou intuição crítica. Como já referido, a pesquisa opta em trabalhar com
a fenomenologia crítica por considerar que nela estão sintetizadas de maneira bastante didática
as três abordagens que o método propõe, facilitando dessa forma sua aplicação prática. Vale
ressaltar que uma análise a partir da fenomenologia crítica de Tillich não significa uma análise
a partir de sua teologia. Nesse sentido, abordar um fenômeno religioso a luz da fenomenologia
crítica significa, sobretudo, compreender este fenômeno como modos simbólicos de
253 We speak of revelation wherever the unconditioned import of meaning breaks through the form of meaning.
Faith is always based on revelation, for it is an apprehension of the unconditioned import through conditioned
forms.
254 In every act of revelational faith two things are involved: on the one hand directedness toward the unconditional
import and on the other the symbolic form through which the Unconditional is revealed.
127
representação em perspectiva fenomenológica. Ainda que elementos do pensamento teológico
e filosófico do autor sejam retomados, a análise encontra-se fora do círculo teológico cristão
propriamente dito e se insere no círculo fenomenológico, isto é, a partir dos recortes
metodológicos da fenomenologia crítica torna-se possível uma abordagem não condicionada à
perspectiva teológica cristã.
A experiência religiosa, como descrita no primeiro capítulo, se dá na apreensão de um
sentido incondicional pela intencionalidade da consciência através de uma forma concreta posta
pelo espírito em sua criatividade no mundo da vida. A apreensão imediata do incondicional é
também descrita por Tillich em termos de revelação, um termo correlato presente, sobretudo
nos contextos teológicos, como bem observado por Schüßler (1987, p. 163). A experiência da
revelação não é algo que vem de fora, mas é uma experiência que ocorre no encontro do sujeito
com o mundo da vida. Trata-se, como sugere Josgrilberg, de uma experiência imediata “como
mediação necessária, antes de qualquer reflexão ou expressão. Experiência e experiencial são
as condições prévia (vivência pré-reflexiva) de qualquer inteligência da realidade. A
experiência imediata é também condição prévia da recepção e reflexão da revelação”
(JOSGRILBERG, 1995, p. 69, nota 1). A fenomenologia crítica parte desse evento, isto é, a
vivência intencional da consciência ao sentido incondicional é tomada aqui como ponto de
partida experiencial.
Na experiência real do sujeito que recebe a revelação, o componente intencional que é
a priori sem conteúdo se junta com uma forma concreta repleta de conteúdo. Deste modo,
fenomenologicamente a experiência religiosa é constituída pela interação dinâmica do elemento
essencial e, portanto, universal com o contexto vivencial em que ocorre tal experiência. “Já que
o ser humano é essencialmente histórico, toda revelação, mesmo que seja mediada através de
uma rocha ou uma árvore, ocorre na história” (TILLICH, 2011, p. 133). Um exemplo concreto
disso é a experiência da árvore sagrada descrita pelo teólogo no livro Dinâmica da fé. “A
pessoa, cuja preocupação incondicional se exprime numa árvore santa, está tanto tomada por
uma preocupação incondicional como pela concreticidade da árvore, que simboliza a sua
dedicação ao incondicional” (TILLICH, 1985, p. 34). Este exemplo será tomado para ilustrar a
aplicabilidade da fenomenologia crítica de Tillich. O exemplo apresenta os dois polos de
sentido que envolvem toda experiência revelatória, a saber, a substância e forma, assim como
a posterior simbolização do segmento da realidade em que a experiência revelatória foi possível.
Para fins didáticos, a pesquisa irá se limitar ao simbolismo geral da árvore sagrada recorrendo
a alguns exemplos concretos no decorrer da exposição.
128
O primeiro polo da experiência diz respeito à percepção do sentido incondicional, que
como dito anteriormente, não é objeto da crítica, mas da intuição. O incondicional é a substância
própria e universalmente válida da experiência religiosa que é levada neste caso ao primeiro
plano mediante o contato do sujeito com a árvore. Neste modo religioso a priori de auto-
apreensão o indivíduo experimenta o fundamento e abismo do sentido através de seu contato
com o objeto que se apresenta a ele como mediador da revelação.
Na experiência revelatória, a consciência é levada além de sua estrutura sujeito-objeto
sem que haja desintegração alguma dos elementos centrais da pessoa. Segundo Tillich, o evento
revelatório só se torna possível quando sucede em estrita interdependência com o evento
extático onde algo que está oculto é manifestado de forma especial e extraordinária. “Tudo o
que possui qualidades extáticas – e existem poucas coisas que não podem possuí-las é portador
da revelação. Todo o real possui o poder interior e o sentido intrínseco para servir como portador
de um sentido incondicional”255 (TILLICH, 1973 [1925], p. 106).
O autor explica que neste estado de racionalidade extática nada irracional ou anti-
racional invade a razão, portanto o êxtase não é uma negação da razão “A ʻrazão extáticaʼ
continua sendo razão” (TILLICH, 2011, p. 124). Para ele, não existe a possibilidade de haver
uma experiência extática sem a manifestação de uma revelação. A consciência precisa deparar-
se com a revelação do mistério para uma possível ocorrência do êxtase. O mistério se refere a
algo que ao ser revelado não perde seu caráter misterioso, isto é, o mistério diz respeito a um
excesso de sentido que não se pode exprimir.
Somente aquilo que está escondido por essência, que não é acessível por
qualquer caminho do conhecimento, se comunica através da revelação. Não
deixa de estar oculto por se revelar; porque seu ocultamento corresponde a sua
essência; e quando se revela, também se revela o fato de que é o oculto256
(TILLICH, 1992b [1927], p. 102).
Van der Leeuw comenta que pode parecer assombroso o fato de que aquilo que se revela
não se mostre. Mas é preciso considerar que o mostrar-se do fenômeno precisa ser algo
essencialmente distinto que o mostrar-se do sagrado, aquilo do que se trata na revelação. “A
vivência é em parte fenômeno, mesmo a vivência da revelação. Mas esta permanece
255 Everything that has esctatic qualities – and there is scarcely anything that could not possess them – is a bearer
of revelation. Everything real has the inner powerfulness and intrinsic significance to serve as a bearer of the
unconditional import.
256Nur das, was wesensmäßig verborgen ist, was auf keinem Erkenntnisweg zuganglich ist, teilt sich durch
Offenbarung mit. Es hört dadurch, daß es sich offenbart, nicht auf, verborgen zu sein, denn seine Verborgenheit
gehört zu seinem Wesen; und wenn es offenbar wird, so wird auch dieses offenbar, daß es das Verborgene ist.
129
fundamentalmente oculta aos nossos olhos”257 (VAN DER LEEUW, 1964, p. 538). Dessa
forma, a revelação conduz a razão a seu abismo e fundamento, produzindo um evento objetivo
e subjetivo por meio do qual a mente depara-se com o sentido incondicional, último e mais
profundo na estrutura do espírito humano na dinâmica da vivência real.
A partir do elemento intuitivo-descritivo a revelação pode ser descrita como “uma
manifestação especial e extraordinária que remove o véu de algo que está oculto de forma
especial e extraordinária” (TILLICH, 2011, p. 121). Nesse sentido ela é entendida em termos
de estruturas gerais como uma categoria revelatória do ser humano. Na revelação, o sujeito
percebe a essência do fenômeno por meio do direcionamento subjetivo da consciência à
substância da forma258. No exemplo da árvore, o direcionamento noético visa ao sentido
incondicional na árvore. Esta atitude é própria da consciência e constitui-se como uma atividade
subjetiva, já que se trata do “eu” que confere sentido às coisas no mundo da vida. O sentido
incondicional, enquanto um noema jamais alcançado, encarna-se na imagem da árvore que
aparece à consciência do sujeito com um significado transcendental. “A experiência do sagrado
transcende a estrutura sujeito-objeto da experiência. O sujeito é atraído ao sagrado encarnado
em um objeto finito que, neste encontro, se torna sagrado”259 (TILLICH, 1987b [1961], p. 417).
O sujeito é atraído ao sagrado percebido na árvore. As expressões religiosas de maneira geral
encontram aqui seu fundamento. De acordo com Tillich (1992b [1966], p. 433) todas as
religiões estão fundamentadas numa experiência revelatória, e nesse sentido o teólogo comenta
também que:
Na história da religião, os eventos reveladores sempre foram descritos como
acontecimentos que chocam, transformam, exigem, que são significativos de
forma última. Eles procedem de fontes divinas, do poder daquilo que é santo
257La vivencia es en parte fenómeno (§67), aun la vivencia de la revelación. Pero esta permanece
fundamentalmente oculta a nuestras miradas.
258 Um exemplo disso é a própria experiência de Tillich com as Madonnas de Botticelli. Nas palavras do autor,
“Contemplando-a, fui tomado por um estado próximo do êxtase. Na beleza da pintura havia a beleza em si.
Brilhava através das cores do quadro como a luz do dia através dos vitrais de uma igreja medieval... aquele
momento afetou toda minha vida, me deu as chaves para a interpretação da existência humana, produzindo
vitalidade e verdade espiritual. Eu comparo com o que é geralmente chamado de revelação no linguajar da religião.
(TILLICH, 1987a [1955], 235). Tal perspectiva tem dado base para diferentes análises de uma teologia da arte.
No contexto brasileiro há vários estudos nesta direção. Veja especialmente CALVANI, Carlos Eduardo B.
Teologia da Arte. São Paulo, Fonte Editorial/Paulinas, 2010; DREBES, Haidi. A Teologia da Arte. in MUELLER,
Ênio R; BEIMS, Robert W. (org.). Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul Tillich em perspective
interdisciplinar. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005. HIGUET, Etienne. Interpretações das imagens da teologia e
nas ciências da religião. In NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (org.). Linguagens da religião. Desafios,
métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.
259The experience of the holy transcends the subject-object structure of experience. The subject is drawn into the
holy, embodied in a finite object, which, in this encounter, becomes sacred.
130
e que, portanto, possui uma reivindicação incondicional sobre nós (TILLICH,
2011, p. 123).
A revelação se dá de forma imediata no sentido especulativo ou categórico no momento
em que a essência do fenômeno é apreendida e o sujeito se depara com o sentido de
inesgotabilidade do real. Nesse sentido, a revelação, por exemplo, se estabelece como uma
predisposição a priori que pode ser encontrada nas mais diversas formas religiosas. Para o
autor, todas as expressões religiosas coincidem no fato de que a revelação é o sentido
incondicional que atravessa a forma, portanto, “Todas as religiões estão firmadas sobre algo
que um homem recebe onde quer que esteja, recebe uma revelação, uma experiência
determinada que sempre inclui poderes salvíficos260 [...] Existem tais poderes reveladores e
salvíficos em todas as religiões”261 (TILLICH, 1992b [1966], p. 433)262.
No caso da árvore, a revelação por meio dela é a manifestação de um sentido
incondicional que a eleva à categoria de sagrada. A luz da fenomenologia crítica pode-se dizer
que a árvore deixa de ser apenas árvore, ela é o meio, mas também representa aquilo que por
meio dela se revela. Ainda que a árvore continue um objeto no mundo da vida e seja utilizável
para outros fins e em outras atividades, ela não se limita mais a ser apenas um instrumento, o
260 Para Tillich, experiência revelatória e experiência salvífica estão unidas. “Não se pode separar revelação da
salvação” (TILLICH, 1992b [1966], p. 433). Na revelação é manifesto àquilo que diz respeito ao ser humano de
forma última, e tais manifestações “São eventos salvíficos em que está presente o poder do Novo, embora ele só
esteja presente de forma preparatória, fragmentária e sempre suscetível à distorção demoníaca. Mas está presente
e cura onde quer que seja realmente aceito” (TILLICH, 2011, p. 452). A integração do si mesmo pessoal só é
possível por meio de sua elevação até aquilo que se denomina simbolicamente de si mesmo, divino, isso só se
torna possível graças à irrupção do Espírito divino no espírito humano. De acordo com o teólogo, “na entrega a
algo que nos diz respeito incondicionalmente, ao sagrado que não pode ser forçado a se colocar a nosso serviço.
De tal entrega deriva a cura no centro da personalidade, integração das forças contraditórias que se subtraem ao
centro e querem então se apossar dele” (TILLICH apud HIGUET, 1999, p. 82). Nesse sentido a salvação se dá nas
condições existenciais por meio da experiência do sagrado no espírito humano, e mediante ela, em todas as
dimensões da vida.
261 Religions are based on something that is given to a man wherever he lives. He is given a revelation, a particular
kind of experience which always implies saving power. [...] There are revealing and saving powers in all religions.
262 A ideia de revelação como uma base comum para todas as religiões, assim como outros elementos do
pensamento do autor, tem dado base para diferentes análises de uma teologia das religiões, entre elas pode-se
mencionar algumas como: GEFFRÉ, Claude. “Paul Tillich and the future of interreligious ecumenism”. In:
Raymond F. Bulman & Frederick J. Parrela (eds.). Paul Tillich: a new catholic assessment. Collegeville,
Minnesota, The Liturgical Press, 1994; MATHIAS, Luiz Guilherme Kochem. “Teologia Sistemática e Religiões
Mundiais: aproximações tillichianas ao tema da pluralidade religiosa”. Tese de doutorado. Universidade Federal
de Juiz de Fora, 2013; HIGUET, E. Tendências pluralistas na teologia das religiões de Paul Tillich. Correlatio. V.
13, n. 25, 2014; RIBEIRO, C. de O. Fé e pluralismo religioso: reflexão a partir da teologia de Paul Tillich. In:
Correlatio, Vol. 12, Nº 23 (2013), p. 29-40; AVELINE, J-M. Paul Tillich et la théologie des religions. In: DANZ,
C., SCHÜSSLER, W. & STURM, E. (Eds.). Religionstheologie und interreligiöser Dialog. Internationales
Jahrbuch für die Tillich-Forschung, Bd. 5, 2009. Berlin: Lit Verlag, 2010, p. 21-36.
131
sentido incondicional percebido nela a torna sagrada, algo mais do que árvore263. O mistério
assume a forma da árvore, isto é, o sagrado adquire um perfil específico cujo conteúdo eidético
e intencional torna-se apreensível a todos que reconhecem este caráter sagrado. A
intencionalidade da consciência visa a substância da árvore, e atribui a este objeto um sentido
que não pode ser limitado as categorias lógicas de pensamento, a árvore ainda que não esgote
o sagrado, serve como base empírica por meio do qual o sagrado torna-se apreensível para o
sujeito ou comunidade.
Na árvore, “O sagrado é experimentado como estando presente. Ele está aqui e agora,
isto é, ele se nos depara num objeto, numa pessoa, num acontecimento” (TILLICH, 1985, p.
41). De acordo com Tillich (1985), nenhuma parte da realidade está excluída da possibilidade
de se tornar portadora do sagrado, e de fato quase tudo que existe foi já chamado alguma vez
de sagrado, seja por grupos ou indivíduos. O segmento da realidade que é experimentado como
portadora do sagrado, adquire o caráter sacramental, e o sujeito que o experimenta nessa
qualidade, experimenta o sentido incondicional.
Este cálice, este pão, esta árvore, este gesto da mão, este ajoelhar-se, este
edifício, este rio, esta cor, esta palavra, este livro, esta pessoa são portadores
do sagrado. Através deles a pessoa crente experimenta aquilo que a toca
incondicionalmente. Eles não são escolhidos arbitrariamente como portadores
do sagrado, e sim pela intuição visionaria de indivíduos (TILLICH, 1985, p.
41).
O aspecto irracional do fenômeno tem aqui seu lugar e é mantido através da abordagem
intuitiva. O sujeito percebe a dimensão substancial na árvore e atribui a ela um sentido diferente
em relação a outras árvores na situação normal do mundo da vida. Este segmento é valorizado
e diferenciado pela revelação, que mediante a intencionalidade da consciência do sujeito, faz
da árvore um tipo especial de árvore onde o universal e essencial estão presentes. Estes objetos
despertam naquele que reconhece seu caráter sagrado o sentido profundo do mistério que a
consciência esconde em sua estrutura. Na árvore, algo permanece indefinido e elusivo e não
pode ser tomado de outra forma senão como incondicional, fundamento e abismo, o absoluto e
vazio. O incondicional, tomado através da árvore que o revela, se torna objeto de preocupação
última e, portanto, verdade salvadora.
263Eliade comenta que o sagrado pode se manifestar em pedras ou árvores, mas não se trata de uma veneração da
pedra como pedra ou de um culto da árvore como árvore. O objeto sagrado não é adorado como tal, “mas
justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o
ganz Andere” (ELIADE, 1992, p. 13).
132
Tillich chama atenção para fato de que a revelação daquilo que preocupa a pessoa de
forma última, é sempre revelação para alguém numa situação concreta de preocupação. A
revelação sempre se apodera de um indivíduo ou de um grupo e só possui poder nesta
correlação. Se não houver alguém que a receba como sua preocupação última, então não há
revelação. “Se nada acontece objetivamente, nada é revelado. Se ninguém recebe
subjetivamente o que acontece, o evento deixa de revelar algo. A ocorrência objetiva e a
recepção subjetiva pertencem ao evento total da revelação” (TILLICH, 2011, p. 124). A
revelação só é possível através das formas existentes na realidade. A árvore se torna sagrada
tanto porque podia se tornar sagrada quanto porque foi recebida como sagrada.
Na experiência do sujeito que percebe a dimensão sagrada da árvore, há um movimento
da consciência para a realidade onde o incondicional é representado por uma forma
proporcionada pela estrutura do espírito. Isso significa que ali onde a consciência não é capaz
de falar por si mesmo, a árvore assume este lugar, ou seja, os inúmeros objetos sagrados
presente nas diversas expressões religiosas falam sobre o sagrado porque são a linguagem do
mistério revelado. Eles apontam para o sentido do incondicional que a consciência esconde em
si mesma, com isso a religião fica criticamente fundamentada, seu lugar na estrutura da
consciência é sinalado e representado por alguma forma real.
A fenomenologia crítica permite dessa forma identificar que o incondicional é para onde
a consciência se volta. Mas também pergunta pela forma que permite essa experiência, suas
características lógicas e de que maneira o sujeito está existencialmente envolvida com ela. Caso
contrário, o incondicional ficaria apenas como um apêndice da estrutura do espírito sem ser
nada em si mesmo. Uma vez pressuposto o caráter incondicional da experiência religiosa, a
atenção se volta para os aspectos concretos que por sua vez passam a fazer parte da descrição
do sagrado.
Universalmente em tudo o que é finito e particular, ou em tal ou qual finitude,
a sacralidade se manifesta de uma maneira especial. Chamarei isso de a base
sacramental de todas as religiões: a sacralidade que se pode ver, ouvir e
analisar, aqui e agora, a despeito de seu caráter misterioso264 (TILLICH, 1992b
[1966], p. 436).
A pergunta que a fenomenologia crítica propõe neste momento é “onde e para quem se
revela uma idéia” (TILLICH, 2011, p. 119). A fenomenologia pura, de acordo com Tillich
264 Universally in everything finite and particular, or in this and that finite, the Holy appears in a special way. I
could call this the sacramental basis of all religions – the Holy here and now which can be seen, heard, dealt with,
in spite of its mysterious character.
133
(1973 [1925], p. 61) passa por alto o fato de que religião e cultura se reúnem em sua orientação
a sínteses das formas, sendo assim, não é capaz de esclarecer a relação entre religião e cultura,
ela pode valorizar uma em detrimento da outra ou até mesmo se negar a definir tal relação. Mas
toda revelação para que seja considerada final e universalmente válida deve evidenciar absoluta
concretude e absoluta universalidade, “E este conceito pode ser empregado como critério,
porque expressa a natureza essencial de toda revelação” (TILLICH, 2011, p. 121). Dessa forma
o elemento existencial-crítico vem para o método chamando atenção da fenomenologia para a
experiência concreta e situacional da revelação, isto é, para seu significado histórico e cultural.
A experiência assimila uma característica histórica e cultural, mas conserva sua
universalidade. Enquanto o elemento intuitivo possibilita perceber o caráter universal da
revelação o elemento crítico possibilita perceber o caráter concreto dela, nesse sentido, o
exemplo da árvore sagrada une os dois polos de toda experiência revelatória, “Primeiro, em
termos de um princípio abstrato que é o critério de toda revelação pretensa ou real. Segundo,
em termos de uma imagem concreta que espelha a ocorrência da revelação final” (TILLICH,
2011, p. 146).
De acordo com o teólogo, o ser humano recebe a revelação no contexto de sua finitude
humana. “O homem está limitado biologicamente, psicologicamente e sociologicamente, de
maneira que a revelação é levada a cabo dentro das condições alienantes do homem”265
(TILLICH, 1992b [1966], p. 433). Para o teólogo, em todas as formas religiosas, a experiência
do sagrado é mediada por alguma parte dessa realidade.
Este é o caráter paradoxal do sagrado, que mesmo sendo incondicional e por definição
impossível de ser condicionado, se manifesta somente fragmentariamente através de categorias
condicionadas266. Enquanto que o elemento intuitivo-descritivo se volta para este aspecto
eidético e universal do fenômeno, o existencial-crítico apreende seu caráter singular nas
condições históricas, culturais e existenciais da situação humana. O paradoxo da dialética do
sagrado é mantido e ambos os polos valorizados. A religião enquanto substância é revelatória,
265 Man is biologically, psychologically, and sociologically limited. Revelation is received under the conditions of
man’s estranged character.
266 Eliade também destaca o caráter paradoxal do sagrado e afirma que mesmo sendo “eterno, absoluto e livre, se
manifesta num fragmento material, precário, condicionado, etc.” (ELIADE, 2002, p. 33).
134
e, portanto, universal. Na medida em que é expressa, a religião adquire forma e se torna
existencialmente condicionada pelas categorias fundamentais do ser267.
Sendo assim, todas as expressões daquilo que toca o ser humano incondicionalmente
são expressões religiosas que se utilizam de elementos da realidade finita. Toda revelação é
sempre revelação para alguém numa situação existencial concreta. É nesse sentido que o
elemento existencial-crítico chama atenção para o caráter concreto e singular em que se dá a
experiência religiosa já que cada período histórico se caracteriza pelo predomínio de elementos
diferentes dentro do conjunto de elementos e polaridades que integram o reino religioso
(TILLICH, 1988 [1963], p. 311).
Mas não se trata aqui de uma relativização da religião no sentido de que todas as
religiões são iguais. A fenomenologia de Tillich com seu elemento crítico chama atenção para
o fato de que não se pode desconsiderar as especificidades de cada religião e suas devidas
ênfases. De acordo com Tillich, a experiência revelatória pode dar origem a exemplos diferentes
e talvez até contraditórios de expressões religiosas. Sendo assim, por mais que se possa falar de
um eidos, de uma essência na religião, cada religião possui suas particularidades que devem ser
valorizadas.
Esta forma, por meio do qual a experiência torna-se possível, passa a adquirir o caráter
de símbolo religioso. Após receber a revelação, a pessoa a torna simbólica, mediando
reflexivamente o conteúdo revelado por meio da atividade da consciência (ABREU, 2015, p.
100). Posterior à experiência religiosa do sujeito, surgem os símbolos, mitos e ritos/cultos.
Etienne Higuet faz um resumo das seis características do símbolo apresentado por Tillich no
livro Dinâmica da fé:
Em primeiro lugar, Símbolos apontam para algo que está fora de si mesmos.
Segundo, o símbolo participa naquilo para o qual aponta. Terceiro, o símbolo
desvenda níveis de realidade que, sem ele, permaneceriam inacessíveis. Toda
arte, por exemplo uma imagem ou um poema, produz símbolos de uma
dimensão do real que, de outro modo, nos permaneceria inacessível. A quarta
característica consiste na abertura a elementos profundos do nosso próprio ser,
que correspondem às dimensões e estruturas da realidade. Há domínios dentro
de nós, que só podem chegar à consciência por intermédio de símbolos.
Quinto, os símbolos provêm do inconsciente individual ou coletivo e não
podem ser inventados arbitrariamente. Por isso, eles nascem e morrem como
os seres vivos. Eles surgem num momento de maturidade do tempo, isto é,
num Kairos, e desaparecem depois de terem sido percorridos pelo tempo. Eles
267 “Cada ser humano descobre aquilo que ele está culturalmente e espiritualmente preparado para descobrir”
(ELIADE, 1978, p. 94)
135
acabam, quando não encontram mais eco na comunidade que eles chegaram a
expressar algum dia (HIGUET, 2005, p. 61).
No que se refere aos mitos, estes são narrativas religiosas que descrevem as relações
entre o condicional e o incondicional e estão presente em todas as religiões. A palavra grega
“mito” está originalmente associada a “história dos deuses”. “Mitos são, portanto, símbolos da
fé associados a lendas, os quais falam dos encontros dos deuses entre si e dos deuses com os
homens. Mitos estão presentes em todo ato de crer, porque o símbolo é a linguagem da fé”
(TILLICH, 1985, p. 35-36). Também o cristianismo, como toda outra religião, fala a língua do
mito, caso contrário não seria expressão daquilo que toca o ser humano incondicionalmente.
Entre os mitos do cristianismo estão: o nascimento virginal do messias, sua ressurreição,
ascensão e retorno (TILLICH, 1985, p. 37). A noção de símbolo e mito no pensamento de
Tillich possui uma correspondência bastante grande e se expressa no fato de que os mitos são
simbólicos, isto é, as narrativas míticas comportam os símbolos.
O culto ou atividades ritualísticas, por sua vez, é a soma total daquelas atividades através
das quais se realiza o incondicional na esfera prática. Para o autor, toda atividade religiosa é
cúltica. Este conceito geral de culto se refere a todas as formas de atividades religiosas e se
apresenta paralelamente à forma cognitiva de expressão do incondicional, isto é, ao mito.
Narrativa mítica e atividade cúltica estão relacionados de tal modo que todo ato cúltico possui
um conteúdo mítico e todo objeto mítico possui uma realização cúltica. “Para a fé não pode
haver ação prática alguma que não esteja dirigida ao incondicional mediante o símbolo e além
deste. E para a fé não pode haver símbolo do Incondicional que não esteja dirigida a algum ato
prático”268 (TILLICH, 1973 [1925], p. 110). O culto, portanto, aponta para a ligação do símbolo
à ação, isto é, uma forma social de dizer o símbolo religioso numa práxis de sentido, onde o
símbolo e a ação aparecem unidos.
Símbolos, mitos e ritos são desdobramentos da consciência humana que percebe o
incondicional. Em outras palavras, ao receber a revelação, o ser humano torna simbólica a
forma por meio do qual a revelação foi possível, ou algum símbolo já existente pode também
representar esta revelação recebida, o mito narra a vivência do incondicional e o culto
possibilita sua atualização prática. Estas funções da mente humana que brotam da profundidade
da razão expressam o impulso em direção ao incondicional. “O mito e o culto, cujo caráter
racional não se pode afirmar nem negar, porque apresentam uma estrutura independente que
268 For faith there can be no practical act that would not be directed toward the Unconditional through and beyond
a symbol. And for faith there can be no symbol of the Unconditional toward which no practical act is directed.
136
não pode ser reduzida a outras funções da razão nem ser derivada de elementos psicológicos ou
sociológicos pré-racionais” (TILLICH, 2011, p. 93). A razão humana não se limita a suas
formulações lógicas, o sentido incondicional presente em todo sentido particular percebido pela
atividade da consciência se expressa em símbolos, narrativas míticas ou atividades cúlticas que
anunciam essa dimensão sempre aberta e que a razão humana não é capaz de esgotar.
A teoria do símbolo em Tillich é um aspecto fundamental para entender o
funcionamento de sua fenomenologia crítica, pois aproximar-se de um fenômeno religioso em
perspectiva fenomenológica, implica necessariamente em considerar o fenômeno como um
modo simbólico de representação. Ou seja, as expressões religiosas em sua diversidade referem-
se ao sagrado através de uma linguagem que é simbólica. Nesse sentido, o elemento intuitivo-
descritivo está para a consciência intencional assim como o elemento existencial-crítico está
para a forma de sentido, isto é, as formas simbólicas de representação do sagrado.
Para Tillich, a linguagem religiosa é uma linguagem simbólica, “Aquilo que toca o
homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos, porque apenas a
linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” (TILLICH, 1985, p. 30). A fé como
ato de ser tomado por uma preocupação última e incondicional não possui outra linguagem. A
linguagem marcada pela ambiguidade da existência está presa à estrutura eu-mundo, e
consequentemente se torna incapaz de se referir diretamente ao incondicional, mas apenas de
maneira indireta, isto é, através de formas simbólicas.
Da mesma forma, Tillich (2009, p. 89) afirma que qualquer tipo de linguagem é
resultado de inumeráveis atos de criatividade cultural, nesse sentido, não existe linguagem
sagrada oriunda de um céu sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um livro, o que existe
é a linguagem humana que se baseia no encontro com a realidade, usada para as necessidades
cotidianas, bem como para mostrar o sentido incondicional.
A linguagem religiosa é comum, mudando de acordo com o poder que
expressa, isto é, o Ser e o sentido absolutos. Essa expressão pode ter a forma
da narrativa (mitológica, lendária, histórica), ou da profecia, da poesia e da
liturgia. Torna-se santa para os que a recebem como expressão da preocupação
suprema, de geração em geração (TILLICH, 2009, p. 89).
Para Tillich (1985, p. 32) os símbolos existem nas diversas áreas da vida cultural, podem
ser imagens, representações, palavras, pessoas, grupos, ideias, coisas etc. que embora possam
ser encontradas na realidade objetiva, apontam para uma realidade além deles. Convém lembrar
a distinção que o autor faz entre símbolo e sinal. Segundo Tillich, símbolos e sinais possuem
137
identidades essenciais e apontam para uma realidade além de si, entretanto, a diferença entre
ambos está no fato de que “os sinais não participam na realidade e no poder daquilo que
indicam. Os símbolos, embora não sejam iguais ao que simbolizam, participam no seu poder e
sentido” (TILLICH, 2009, p. 100). Isso quer dizer que a resposta interna da pessoa em relação
ao símbolo não se limita ao símbolo, mas vai em direção àquilo que por ele é simbolizado.
Sendo assim, a diferença entre símbolo e sinal está na participação no símbolo e não
participação no sinal, na realidade simbolizada. Por exemplo, “O sinal ‘A’ ou ‘R’ não
participam no som que indicam; por outro lado, a bandeira participa no poder do rei ou da nação
a que pertence e que simboliza” (TILLICH, 2009, p. 99).
No exemplo da árvore sagrada, o sentido incondicional é percebido através da árvore e
usa esta forma para expressar a experiência, neste caso, a árvore é simbolizada e elevada a um
novo nível de relacionamento com o sujeito que percebe um novo perfil da árvore, seu perfil
sagrado. A resposta interna da pessoa em relação à árvore vai em direção àquilo que por ela é
simbolizado, de modo que o sentido da árvore para o sujeito ou comunidade que reconhece sua
dimensão sagrada não se limita ao perfil puramente físico da árvore. É certo dizer que a
materialidade da árvore traz consigo algo de sentido, mas quando simbolizado, torna-se
expressão do sentido do mistério. O símbolo está estruturalmente presente na própria
consciência e tem a mesma orientação para o incondicional, isto é, tanto o símbolo como o mito
“[...] revelam formas de pensamento e de intuição que estão inseparavelmente ligados à
estrutura da consciência humana” (TILLICH, 1985, p. 36). Há na árvore sagrada uma dimensão
de sentido que extravasa a própria árvore e se volta para o fundamento de sentido, mas sem
com isso anular a dimensão concreta da árvore.
O método fenomenológico-crítico ajuda compreender que nesta situação é possível
perceber o caráter paradoxal da religião. “A intuição é o método próprio do paradoxo, da
constante irrupção e anulação da forma pela realidade que está nela”269 (TILLICH, 1973 [1922],
p. 150). O símbolo não perde sua característica formal, a árvore continua árvore, mas também
é algo mais do que árvore, ela revela o sagrado. A ação religiosa só pode atualizar-se em outras
ações do espírito, e nesse sentido, através da intuição-descritiva a qualidade religiosa pode ser
trazida à luz. O intuído é a dimensão incondicional, o sagrado na árvore. “Mas aqui, novamente,
está presente o fato de que toda afirmação se expressa na forma material-objetiva, e que por
269 Intuition is the method appropriate to paradox, to the constant breakthrough and annulment of form for the sake
of the reality within it.
138
tanto, é verdadeira apenas quando se nos apresenta como uma afirmação quebrada,
paradoxal”270 (TILLICH, 1973 [1922], p. 141).
A árvore sagrada passa a atuar como meio através do qual a intencionalidade da religião
se expressa. Essa experiência, num sentido fenomenológico, estabelece bases para o surgimento
de uma nova forma de ser-no-mundo, aqui “O ser humano experimenta a si mesmo como
possuindo um mundo ao qual pertence” (TILLICH, 2011, p. 179). De acordo com Souza (2014,
p. 109) essa revelação de mundo se expressa, sobretudo, em palavras e se objetiva nos mitos e
símbolos que passam a organizar, normatizar e classificar esse mundo. Nesse sentido é possível
perceber a significação dessa forma religiosa como um sentido de vida.
A árvore é revestida com um valor de ultimidade. Para o sujeito que a contempla, a
árvore sagrada envolve também uma questão ontológica, de sentido existencial. Como afirma
Tillich os símbolos “[...] produzem a experiência na dimensão da profundidade na alma
humana” (TILLICH, 2009, p. 102 – 103). Há um poder inerente nos símbolos que está
envolvido existencialmente com a pessoa. A árvore ganha um sentido especial e é vista como
algo mais do que apenas árvore, ela pode revelar uma modalidade do mundo que não estava
evidente antes. A árvore se torna símbolo na vida do sujeito que a contempla e adquire um lugar
especial na consciência ritualística (SOUZA, 2014, p. 91).
De acordo com Tillich (1985, p. 41) o símbolo abre níveis da realidade da alma e situa
o sujeito em sua situação histórica e existencial. Nessa dinâmica o símbolo torna o mundo
aberto como um espaço de significação, onde o sujeito pode internalizar e objetivar sua
identidade. Da mesma forma, a comunidade articula uma visão de mundo a partir das formas
concretas oriundas da cultura que são assumidas existencialmente como símbolos. Estes
símbolos, por sua vez, elucidam a situação existencial que tornou possível a expressão dessa
religiosidade.
Para Tillich (2009, p. 103), na medida em que novos relacionamentos com o sagrado
são pressupostos, novos símbolos religiosos vão surgindo, e ainda que não seja o sagrado em
si, eles participam dessa realidade. A árvore sagrada se apresenta como forma concreta
mediante a qual se revela (embora permaneça sempre um mistério) uma realidade última que
para o sujeito não poderia se expressar de outra forma. Daí a especificidade do símbolo. A
270 But here again it is the case that every statement is expressed in a material-objective form, and therefore is true
only as a broken, paradoxical statement.
139
experiência do incondicional embora ocorra na dimensão da consciência envolve a pessoa como
um todo. “Uma preocupação incondicional se manifesta em todas as áreas da realidade e em
todas as expressões de vida da pessoa” (TILLICH, 1985, p.69). De acordo com o teólogo, no
centro da pessoa, todos os elementos da vida da personalidade estão unidos, as forças corporais,
inconscientes, conscientes e intelectuais. “Fé é um ato de paixão infinita, e paixão não é possível
sem ligação ao corpo, mesmo se se trata de paixão intelectual. Também o corpo participa de
todo ato de fé genuína” (TILLICH, 1985, p. 69). O corpo, portanto, é um corpo voltado para a
relação de sentido271.
A experiência do sentido envolve também a materialidade vivida do sensível, isto é, na
experiência com a árvore estão envolvidos tanto os elementos visíveis, táteis e olfativas quanto
o sentido mais profundo. Estes elementos são apropriados pelo sujeito e podem vir
acompanhados por características culturais particulares que podem atribuir características
específicas à experiência e sentidos diferentes ao símbolo, de modo que um mesmo símbolo
pode abrir horizonte de sentidos diferentes. Um exemplo concreto disso é a presença do Cristo
nas religiões afro-brasileiras. Higuet comenta que os afro-brasileiros, ao aderirem ao evangelho,
produziram uma nova expressão de Cristo na sua própria cultura.
Para o umbandista estrito, Jesus Cristo é apenas um orixá entre outros. Para o
umbandista católico, ou seja, no caso, freqüente no Brasil, de dupla pertença,
Cristo é muito mais: é um ser divino, venerado pessoalmente e
exclusivamente. Na imagem umbandista de Cristo, deparamos ao mesmo
tempo com uma grande diversidade e com um certo entrelaçamento, conforme
se trate, no resultado sincrético, do filho primogênito do Pai Olorum, do filho
humano normal de Maria e José (sem concepção virginal), do maior médium
ou do maior mediador espiritual; ou, afinal, do mestre divino morto na cruz e
ressuscitado ao terceiro dia e elevado ao céu. Jesus crucificado, o Senhor do
Bomfim ou da Boa Morte, é visto como o chefe supremo da umbanda. A sua
função é de destruir os males provocados pelos ritos negativos da quimbanda.
Ele é também legislador e suas diretrizes devem ser seguidas. Depois que
todos os seres humanos fizerem penitência e cumprirem as obrigações
vinculadas a essa, alcançarão também todos a salvação, que espera a
humanidade inteira como o seu verdadeiro destino (HIGUET, 2005, p. 74).
271 As menções que o teólogo faz ao corpo chamam atenção, pois a questão parece não estar completamente ausente
de seu pensamento. O “Si” para Tillich é sempre um “Si” encarnado, e nesse sentido, pode-se dizer que é por meio
do corpo que a consciência se volta para as coisas e torna possível ao ser humano perceber o mundo e inclusive o
sentido incondicional. Da mesma forma, o ponto de partida da fenomenologia crítica é o mundo da vida, solo de
toda existência e vivência concreta. Mas a questão do corpo continua secundária no pensamento do teólogo.
Embora o aspecto existencial presente nas últimas versões do método chame atenção para a necessidade de se
olhar as essências na existência, a questão da corporeidade não foi explicitada no escopo maior de sua proposta
metodológica. Esta pesquisa infere que a questão da corporeidade é secundária em Tillich, mas não ausente,
permanecendo uma questão implícita também em sua fenomenologia crítica. No entanto, para saber como o autor
lida com essa questão propriamente dita seria necessário ainda uma investigação mais detalhada sobre o tema que
escapa dos alcances dessa pesquisa.
140
No exemplo da árvore como símbolo, ela pode dessa forma, ter variações diferentes
e apontar para sentidos diferentes, como por exemplo, a adoração das árvores na Grécia
homérica em que “Havia muitos poderes divinos identificados com árvores”272 (TILLICH,
1965, p. 16). Entretanto, embora haja uma especificidade corporal-pessoal na experiência, há
também uma universalidade no fenômeno que permite ultrapassar os limites da linguagem
comum e se tornar simbolicamente reconhecível entre pessoas e comunidades distintas. Isso
permite compreender as muitas variações do simbolismo universal da árvore presente em
diversas culturas e narrativas sagradas, como a árvore Yggdrasil273, um dos mais antigos
registros de árvore cósmica nos mitos escandinavos, ou a árvore do êxodo no Sinai presente
tanto no judaísmo quanto no cristianismo e islamismo
A árvore neste contexto não é apenas material, mas é também força simbólica de
ampliação de sentido. Dessa forma, seu caráter simbólico não está limitado por regras ou
normas como a linguagem comum, mas abre níveis da realidade que permitem seu
reconhecimento dentro de uma universalidade que de outra maneira permaneceria inacessível.
Novos níveis da realidade são abertos, e a árvore como um segmento da realidade encontra-se
na esfera do sagrado. Se o sagrado é compreendido como o sentido incondicional que se
apreende por meio da árvore, diz-se algo não somente sobre a noção de sagrado na perspectiva
do sujeito, mas também sobre o próprio sujeito ou comunidade que se reconhece no símbolo da
árvore. Nesse sentido, é possível identificar não apenas uma modalidade do sagrado mediante
sua revelação na árvore, mas também um modo de ser do sujeito e seu relacionamento com o
mundo da vida274.
Para Tillich, esse é o papel do símbolo, pois “Um símbolo religioso usa o material da
experiência cotidiana para falar de Deus, mas o faz de tal forma que simultaneamente afirma e
nega o sentido comum do material que usa. Todo símbolo religioso se nega a si mesmo em seu
sentido literal, mas se afirma em seu sentido autotranscendente” (TILLICH, 2011, p. 305).
Dessa forma, embora a árvore seja um material da experiência cotidiana, também carrega um
272 There were many divine powers identified with trees.
273 Sobre a árvore Yggdrasil veja: THORPE, Benjamin (Trad.) The Poetic Edda. Michigan: The Northvegr Press,
2004; ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 223-224.
274Severino Croatto afirma que o “comportamento do ser humano religioso é o espelho de sua experiência do
sagrado. Tal comportamento manifesta-se em seus símbolos, mitos e ritos, que tem relação com sua vida concreta
e história” (CROATTO, 2004, p. 57).
141
sentido simbólico autotranscendente. Em outras palavras, há um valor existencial na árvore que
permite a própria comunidade se reconhecer neste símbolo.
O símbolo da árvore sagrada aponta para a natureza como meio da revelação. Este
símbolo, como por exemplo, no mito do Éden, “demonstra o poder da vida vegetativa,
representado pelas árvores e pelo significado que tinham para Adão. Eram portadoras de
poderes divinos, tais como a vida eterna e o conhecimento das forças do bem e do mal em todas
as coisas” (TILLICH, 1992a, p. 131). Para o sujeito que percebe a dimensão sagrada na árvore,
o símbolo torna-se expressão da apreensão da realidade, os aspectos físicos da árvore se
constituem como as mais genuínas expressões da presença divina que constituem um modo de
ser, fazer e viver a religiosidade.
Um exemplo disso é o cedro, árvore sagrada para o povo Mbyá no Paraguai. Cadogan
(1971, p. 23) comenta que o cedro é uma árvore sagrada e também fonte de madeira utilizada
para fabricar tambores, canoas e urnas para enterros. “o cedro ou ygary é uma árvore sagrada
receptáculo de um ‘fluido vital’ que permite aos heróis culturais dos distintos grupos criar de
seus galhos e cápsulas quatis e cervos; e o xamã mbyá comunicar-se com os deuses através de
uma criança cujo esqueleto se deposita em um cofre de madeira de ygary, prestando-lhe culto,
alma que as vezes volta a encarnar-se”275 (CADOGAN, 1971, p. 26-27). Nesse sentido, o sujeito
mbyá está envolvido com a árvore tanto pelo caráter sagrado da árvore quanto por sua
importância prática. A pessoa está existencialmente envolvida com o cedro, símbolo sagrado a
quem se volta com reverência e de onde retira o material para outros usos no cotidiano do
mundo da vida.
Isso implica também que os elementos que compõem o universo simbólico de cada
forma religiosa, devem ser encarados dentro de seu contexto específico, isto é, no contexto de
sua experiência revelatória. Fenomenologicamente falando, na aproximação com o fenômeno
religioso, os símbolos devem ser encarados tais como ‘‘se apresentam’, sem a interferência de
preconceitos e explicações negativas ou positivas” (TILLICH, 2011, p. 119). Os símbolos
religiosos que configuram a linguagem religiosa de um determinado fenômeno devem ser
275El cedro o ygary es un árbol sagrado receptáculo de un “fluido vital” que permite a los héroes culturales de los
distintos grupos crear de sus gajos y cápsulas coatíes y ciervos; y al chamán mbyá comunicarse con los dioses
mediante el alma de un párvulo cuyo esqueleto se deposita en un cofre de madera de ygary, rindiéndole culto,
alma que a veces vuelve a encarnarse.
142
compreendidos não a partir de um padrão exterior, mas neles mesmos dentro do seu contexto,
de tal forma que cada grupo tenha a validade de seus símbolos mantidas.
A linguagem religiosa além de ser o produto de uma comunidade, serve também para
expressar a compreensão do mundo presente nela. Para Tillich, sem a linguagem, a fé seria
cega, e “Aqui se encontra a importância primordial de uma comunhão de fé. É só como membro
de uma comunhão que o homem pode obter um conteúdo para sua preocupação incondicional”
(TILLICH, 1985, p. 20). Comunidade e linguagem estão interligadas, de modo que as muitas
linguagens religiosas, assim como os diferentes modos de discurso, pertencem a uma forma de
vida específica e se tornam portadores de uma lógica própria276.
A revelação enquanto experiência que se dá a partir das formas concretas e culturais
permite entender que contextos culturais diferentes podem gerar símbolos religiosos diferentes.
“[...] existem elementos da experiência da sacralidade que sempre estão presentes si é que
verdadeiramente se experimenta a sacralidade. Estes elementos, quando predominam em uma
religião, criam um estilo religioso particular”277 (TILLICH, 1992b [1966], p. 436). Cada grupo
religioso possui, portanto, um estilo religioso particular caracterizado por uma linguagem
simbólica e uma lógica própria. Nesse sentido, como afirma o teólogo: “Os diferentes tipos de
religião expressam os diferentes poderes de ser pelos quais os homens são tomados” (TILLICH,
2010, p. 166). Desta forma, os contextos religiosos expressam os diferentes poderes de ser do
humano. O sentido que se constrói nesses grupos deve ser entendido dentro de seus jogos de
linguagens e não podem ser reduzidos a conceitos rígidos e unívocos, isto é, torna-se necessário
uma visão que parta de dentro.
Os símbolos religiosos mantém seu valor simbólico para aquele que reconhece neste
símbolo o seu próprio ser. Sua subsistência ou morte vai depender de como o grupo percebe o
símbolo ainda como portador de sentido. Sendo assim o símbolo pode desaparecer quando a
situação do grupo mudar, e isso pode dar origem a um novo estilo religioso. “Ao mudar o
contexto, os símbolos, se não forem recriados, perdem o sentido e se tornam obsoletos e vazios
276 Keith Ward, comentando sobre a palavra Deus, afirma que esta palavra é usada por grupos de pessoas e
representa uma forma de ver o mundo, enquanto que para outras comunidades ela pode não fazer sentido. “A
palavra “Deus” não se refere a um objeto sobrenatural; entretanto, Deus pode existir. Eu digo ‘pode’ nesse caso,
simplesmente, porque há comunidades que não usam a palavra ou especificamente a excluem. Elas têm formas de
vida e práticas próprias, maneiras específicas de lidar com situações comuns dos seres humanos, finitos,
dependentes e incertos. Essas formas não têm como foco um ‘objeto’ de devoção, adoração, anseio e amparo, pois
sentem que pressupor tal objeto rebaixaria a humanidade de algum modo” (WARD, 2009, p. 281).
277 [...] there are elements in the experience of the Holy which are always there, if the Holy is experienced. These
elements, if they are predominant in one religion create a particular religious type.
143
de significado. Com isso, novos símbolos precisam emergir para que as experiências religiosas
possam conferir sentido às diferentes gerações e contextos culturais” (RIBEIRO, 2012, p. 231).
Com isso, tem-se que o objetivo da descrição fenomenológico-crítica foi alcançado, isto
é, a descrição do fenômeno religioso em seus aspectos essenciais e objetivos. A dimensão
subjetiva do sagrado é descrita e mantida assim como as formas concretas e culturais que
moldam o fenômeno. Estas formas, consideradas como modos simbólicos de representação, são
tomadas como constituidoras do universo simbólico da experiência religiosa, e se apresentam
como uma resposta oferecida a experiência humana e perguntas existenciais de quem as
experimenta. A aproximação ao fenômeno religioso se dá numa postura em que são suspensas
as afirmações sobre sua verdade e realidade efetiva, buscando compreender e descrever os
sentidos que se manifestam nele, evitando que o fenômeno se torne vítima de uma rejeição fácil
e injusta. Dessa forma, “por mais imperfeito e distorcido que o evento revelador seja
efetivamente. Julga-se cada exemplo de revelação segundo os termos deste conceito
fenomenológico” (TILLICH, 2011, p. 121). E através dessa abordagem é possível oferecer um
quadro do fenômeno religioso em que são observadas suas heranças culturais, suas formas
simbólicas e seus horizontes de sentido, de tal modo que sua expressão religiosa seja percebida
no círculo do fenômeno religioso como parte integrante e expressiva.
Com a fenomenologia crítica é possível, portanto, um retorno ao originário da
experiência religiosa e a descrição dos elementos constitutivos bem como a categorização das
formas que compõem a experiência religiosa. As formas são extraídas da cultura e elevadas à
categoria de símbolo. Nesse sentido, elas estão existencialmente envolvidas com a pessoa e
tornam-se organizadoras da vida humana. A fenomenologia crítica percorre assim a experiência
religiosa desde aquilo que é originário no fenômeno até sua efetivação nas dimensões concretas
da vida. Intuitiva-descritivamente se tem a experiência do sentido último e incondicional como
revelação do sagrado aquilo que é essencial no fenômeno e que está envolvido com dimensões
profundas do ser humano. Existencial-criticamente é possível identificar as formas por meio
das quais a experiência foi possível, consideradas como formas culturais presente no mundo da
vida do sujeito e que adquirem um valor existencial.
3.4. A atitude fenomenológica no reconhecimento da religião como modos
simbólicos de representação e o valor existencial do símbolo religioso
144
O objetivo deste tópico é entender de que maneira a teoria do símbolo de Tillich pode
ser compreendida em sintonia com o seu método fenomenológico-crítico. O teólogo afirma que,
“Nada que seja inferior a símbolos e mitos pode expressar aquilo que nos toca
incondicionalmente” (TILLICH, 1985, p. 38). A teoria do símbolo é uma contribuição
fundamental de Tillich para a análise da religião. Eliade comenta que Tillich “escreveu sobre o
simbolismo religioso com uma perspicácia única” (ELIADE, 1976, p. 8). A importância do
símbolo está em seu poder de expressar o sagrado, ele sempre quer dizer muito mais do que
expressa. “Seja acreditando em uma pedra sagrada ou em um Espírito pessoal omnipotente
(sic), a intenção da fé sempre transcende o objeto da fé. No abismo do Incondicional tanto um
quanto outro desaparecem”278 (TILLICH, 1973 [1925], p. 79). O sinal universal do poder
simbólico, de acordo com o teólogo, é a qualidade extática, isto é, o objeto está imbuído do
sentido do incondicional, algo que uma coisa pode ter ou receber por intenção subjetiva. Os
símbolos, portanto, revelam níveis da realidade que a linguagem não simbólica desconhece, a
poesia, a arte e a música, por exemplo, revelam níveis da realidade que não poderiam ser
percebidos de outra forma, nesse sentido, nem tudo na realidade pode ser compreendido pela
linguagem das ciências matemáticas (TILLICH, 2009, p. 98-100).
A maior função do símbolo é “apontar além deles mesmos, em direção à força que eles
apontam, para abrir níveis de realidades que de certo modo estão fechadas, e para abrir níveis
da mente humana que de certo modo ainda não estão conscientes”279 (TILLICH, 1955, p. 107).
Na dinâmica do fenômeno religioso, o símbolo aponta para aquilo que excede as formas de
sentido racionais e permite que o objeto para o qual aponta permaneça sempre em aberto e
irredutível, isto é, o sentido do símbolo religioso termina no indeterminado, no abismo do
sentido. Existe um mistério que o símbolo revela, mas que também esconde, e seguindo as
intuições de Tillich, a religião encontra aqui sua forma própria de expressão. Através da
linguagem simbólica é possível tornar “presente o ausente, sem transformar o ausente em
presente” (MARASCHIN, 1984, p. 123). O sentido incondicional percebido pela consciência
278 Whether a sacred stone or a personal omnipotent Spirit is believed in, the intention of Faith Always transcends
the object of faith. In the abyss of the Unconditional the one as well as the other disappears.
279 To point beyond them-selves, in the power of that to which they point, to open up levels of reality which
otherwise are closed, and to open up levels of the human mind of which we otherwise are not aware.
145
na experiência religiosa é representado no símbolo, muito embora continue mantendo seu
caráter incondicional.
Outro aspecto importante do símbolo é sua relação com a realidade histórica e cultural.
Na conferência sobre “O significado da história das religiões para um teólogo sistemático” o
autor afirma que “os símbolos religiosos não são pedras caídas do céu. Eles possuem suas raízes
fincadas na totalidade da experiência humana, incluindo os limites particulares em todas suas
manifestações, tanto políticas como econômicas”280 (TILLICH, 1992b [1966], p. 441). Para o
autor, o simbolismo religioso pode ser usado como expressão da doutrina sobre o ser humano,
como uma linguagem antropológica, não no sentido empírico do termo, mas no sentido da
doutrina sobre o ser humano em sua natureza.
Os símbolos religiosos nos comunicam algo a respeito da maneira em que os
homens deveriam analisa-los, a saber, no contexto de sua genuína natureza.
Um bom exemplo se encontra no debate sobre a ênfase que o cristianismo
coloca sobre o pecado, e a falta do mesmo no Islam. Isso demonstra uma
diferença fundamental na auto-interpretação de duas grandes religiões e
culturas que é, ao final, a dos homens como tais281 (TILLICH, 1992b [1966],
p. 441).
As formas por meio das quais as pessoas apreendem e compreendem seu mundo são
extraídas da realidade histórica e cultural. A religião se expressa justamente mediante estas
formas, e nesse sentido, os símbolos religiosos estão existencialmente envolvidos com a pessoa
e tornam-se organizadores da vida humana, como afirma Eliade “O símbolo religioso é capaz
de revelar a modalidade do real ou a estrutura do mundo que não está evidente no nível da
experiência imediata” (ELIADE, 1959, p. 98). Outro exemplo concreto disso, segundo Tillich
(2011, p. 131), são os ritos e símbolos sexuais de muitas religiões cuja riqueza simbólica o
protestantismo arrisca perder. Para o teólogo, os ritos e símbolos sexuais não revelam o sexual
em si mesmo, mas o mistério que através do sexual manifesta sua relação com as pessoas de
forma especial, abrindo níveis da realidade e da mente que de outras formas não seriam
possíveis. O protestantismo desenvolveu uma extrema desconfiança deles, esquecendo dessa
forma o caráter mediador do sexo em experiências reveladoras.
280 Religious symbols are not stones falling from heaven. They have their roots in the totality of human experience
including local surroundings, in all their ramifications, both political and economic.
281The religious symbols say something to us about the way in which men have understood themselves in their
very nature. The discussion about the emphasis on sin in Christianity and the lack of such emphasis in Islam is a
good example. This shows a fundamental difference in the self-interpretation of two great religions and cultures,
of men as men.
146
Mas as deusas do amor são em primeiro lugar deusas, manifestando poder e
dignidade divinos, e só em segundo lugar representam a esfera do sexual em
seu sentido último. O protestantismo ao rejeitar o simbolismo sexual, não só
se arrisca a perder muita riqueza simbólica, mas também a separar a esfera
sexual do fundamento do ser e sentido no qual está enraizada e do qual procede
sua consagração (TILLICH, 2011, p. 131, nota 4).
Nesse sentido, o símbolo se apresenta como porta de acesso à experiência religiosa e o
principal recurso para a fenomenologia crítica desenvolver sua análise. Os símbolos que
compõem o universo simbólico das formas religiosas usam o material do contexto em que estão
inseridos para se expressarem, e portanto, carregam um sentido histórico e cultural ao mesmo
tempo em que apontam para além deles. A fenomenologia crítica foi elaborada para dar conta
de ambos os polos dessa relação, de modo que, por meio dela é possível tanto identificar os
símbolos que compõem um fenômeno religioso, estudar sua morfologia, evidenciar a situação
histórica e cultural que deu origem a tais símbolos sem com isso esvaziá-lo de seu poder
simbólico. Sendo assim, os fenômenos religiosos são considerados, em perspectiva
fenomenológica, como modos simbólicos de representação, e desempenham um papel
fundamental na abordagem fenomenológica-crítica.
Dessa forma, a teoria do símbolo quando compreendida no escopo maior da
fenomenologia crítica torna-se parte elementar de um percurso de análise da religião que vai
daquilo que é originário na experiência religiosa, isto é, seu caráter sagrado, até a efetivação
dessa experiência nas formas concretas do mundo da vida em seus aspectos históricos e
culturais. Nesse sentido, as formações dos grupos religiosos não se limitam a fatores puramente
socioeconômicos e políticos e por isso mesmo não podem ser compreendidos apenas pelas
perspectivas de caráter mais positivista das ciências. O universo simbólico de um fenômeno
religioso não se limita a um sistema de signo que pode ser decifrado mecanicamente como se
decifra um código. Os símbolos envolvem uma dimensão de profundidade das pessoas que
passam a reconhecer nos símbolos o seu próprio poder de ser. Estes símbolos estão
existencialmente envolvidos com o sujeito que reconhece sua dimensão sagrada e através do
qual expressa uma perspectiva de como a vida é. Os símbolos não expressam apenas um
significado, mas a relação do significado com a fonte de sentido, por isso para o autor, “Nunca
se deveria dizer ‘apenas um símbolo’, mas sim: ‘nada menos que um símbolo’” (TILLICH,
1985, p. 33).
Tillich (2011, p. 247) comenta que para muitas pessoas a noção de “simbólico”
apresenta a conotação de irreal. Isto é uma consequência da confusão entre signo e símbolo e
em parte também a identificação da realidade com a realidade empírica, com todo o âmbito de
147
coisas e eventos objetivos. Ao contrário dessa perspectiva que tende a recortar a dimensão de
sentido aberta pelo símbolo, o autor afirma que “uma interpretação simbólica é genuína e
necessária. Ela amplia e não diminui, a realidade e o poder da linguagem religiosa. Ao fazer
isto, realiza uma função importante” (TILLICH, 2011, p. 247-248). Os seres humanos vivem
num mundo de sentido, e esse sentido é muito mais profundo daquilo que se pode ver ou ouvir,
e essa dimensão deve ser valorizada. A sensibilidade com que Tillich trabalha a linguagem
simbólica e a proposta de explorar os fenômenos religiosos como modos simbólicos de
representação em perspectiva fenomenológica permite situar essa metodologia tillichiana no
horizonte de uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso.
3.5. A fenomenologia crítica como abordagem compreensiva do fenômeno
religioso
A fenomenologia desde que passou a desfilar no cenário acadêmico encontrou
interlocutores distintos em diversos campos do conhecimento. O próprio Husserl, o pai
fundador dessa escola, percebeu que: “A fenomenologia se dá em nossas exposições como
ciência que está em seu início. Só o futuro há de ensinar o quanto dos resultados das análises
aqui tentadas é definitivo. Com certeza, muito daquilo que descrevemos terá de ser descrito de
maneira diferente sub specie aeterni” (HUSSERL, 2006, p. 221, grifo do autor). Pode-se dizer
ainda em conformidade com Husserl que é possível que a fenomenologia esteja na atualidade
interessando mais a outras áreas do conhecimento do que a própria tradição filosófica, e nesse
sentido, ela se constitui como um horizonte sempre aberto para novas possibilidades. É neste
horizonte que o pensamento de Paul Tillich pode ser situado, não como um representante dessa
escola, mas como um campo fecundado pela fenomenologia e que gerou a partir daí novas
possibilidades do método.
A proposta metodológica de Tillich de uma fenomenologia crítica apresenta-se como
fundamental para um novo processo de análise do fenômeno religioso que vem ganhando força
na atualidade. Este processo de análise voltado para um olhar mais compreensivo do fenômeno
religioso e com interesse em questões mais subjetivas da vida tem sido fortemente acolhido no
âmbito acadêmico. Como afirma Souza (2014, p. 98) “A nova hermenêutica, como sugerimos,
proposta a partir de Paul Tillich, Paul Ricoeur e Mircea Eliade, rompe com a antiga
148
hermenêutica ao abrir novos caminhos de significação para o símbolo e novos horizontes a
partir do mito religioso e da vivência espiritual”.
De acordo com Filoramo e Prandi (1999, p. 8), após a crise do positivismo no início do
século XX, surge pela primeira vez o problema epistemológico básico das ciências das
religiões, constituído pela alternativa “explicar ou compreender a religião”. O modelo da
explicação parte do pressuposto de que a religião, enquanto distinta do objeto de fé, é uma
manifestação antropológica e histórica que deve ser submetida aos métodos empíricos da
pesquisa crítica. Nesta perspectiva, o dado religioso pode ser progressivamente desvelado e
reconduzido a dados elementares subjacentes nos sentidos sociológico, psicológico,
antropológico, etc. cujos pesquisadores devem suprimir a própria subjetividade e garantir a
validade e o uso dos resultados.
Entretanto, as religiões possuem a compreensão de ser algo mais do que um fenômeno
puramente histórico e empírico (HOCK, 2010, p. 70). Ainda que seja possível partir de
pressupostos técnicos e racionalistas para olhar o dado religioso, é possível que esse modo de
olhar seja insuficiente para compreender este “algo mais” das religiões. Eliade afirma que
embora a religião seja também uma coisa social, linguística, econômica, etc, “Querer delimitar
este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela
linguística e pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de
único e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado” (ELIADE, 2010, p. 1). Nesse sentido,
limitar a compreensão de um fenômeno religioso a teorias explicativas é reduzir a multifacetada
“natureza” da vida religiosa. As abordagens, sejam elas psicológicas, sociais, teológicas,
biológicas, etc. devem ser encaradas como partes de um complexo mais amplo e que são
complementares na busca pela compreensão dos fenômenos religiosos e, portanto, capazes de
explorar apenas dimensões específicas de um fenômeno.
É neste cenário que a fenomenologia crítica de Tillich pode ser compreendida como
uma proposta de análise compreensiva do fenômeno religioso. Um dos aspectos que Tillich
valorizou no método fenomenológico foi justamente seu caráter compreensivo e descritivo,
como o próprio teólogo afirma, “Ele mostra, com razão, que as coisas que se pretende explicar
devem ser primeiramente compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas
de explicação genética, dessa forma, a descrição deve preceder a explicação” (TILLICH, 2001
[1920], p. 380). Tillich propõe uma ferramenta que rompe com os olhares explicativos e
reducionistas da experiência religiosa, e nesse sentido, o caráter compreensivo e descritivo do
149
seu método pode ser visto também como uma implicação da fenomenologia em seu
pensamento.
A experiência religiosa para Tillich se dá nesse direcionamento intencional da
consciência para o sentido incondicional, de modo que para acessar a essência mesma da
religião torna-se necessário um método que não reduza a religião apenas a mais uma função da
realidade. Aqui se concentra a crítica do teólogo aos métodos reducionistas do fenômeno
religioso como o empírico, supranaturalista e o especulativo que são incapazes de alcançar a
essência mesma do fenômeno. Em Tillich há uma valorização do caráter irracional da
experiência religiosa, como bem afirmou o autor, a objetividade não é suficiente e carece de
outro âmbito. Este âmbito subjetivo da religião pode ser descrito como a mais importante tarefa
da ciência da religião e da teologia (TILLICH, 1983 [1917], p. 102).
O fenômeno religioso nessa perspectiva é compreendido a partir das próprias
experiências com o sagrado. De acordo com o autor, “A santidade é um fenômeno
experienciado; ela é suscetível à descrição fenomenológica. Por conseguinte, é uma ‘porta de
acesso’ cognitiva muito importante para a compreensão da natureza da religião, porque é a base
mais adequada de que dispomos para a compreensão do divino” (TILLICH, 2011, p. 223). Em
perspectiva fenomenológica Tillich afirma a irredutibilidade do sagrado e propõe a intuição-
descritiva como o método para abordá-lo. Na experiência religiosa, a pessoa como um todo
encontra-se envolvida. Nesse sentido a experiência religiosa envolve também sentimentos
profundos de temor e admiração, alegria e tristeza, etc. Essas emoções estão relacionadas com
os símbolos religiosos que podem adquirir diversas formas nas diferentes culturas.
Há nesta abordagem uma preocupação com as dimensões mais profundas da experiência
religiosa que não deve ser apagada por explicações redutivas e tampouco limitadas a algo
diferente. Esta abordagem compreensiva, em contraponto a abordagem explicativa ou
reducionista, dirige-se à experiência germinal, livre e criadora que está na base das produções
espirituais e culturais. O objetivo é compreender e descrever o a priori de realidade do objeto,
isto é, a experiência religiosa vivida sem limitá-la a algum ângulo específico, mas “considerá-
lo em si mesmo, naquilo que contém de irredutível e de original” (ELIADE, 2010, p. 2).
Este tipo de abordagem, como descreveu Ricoeur (1977, p. 34) está preocupada com o
próprio objeto e apresenta-se na forma de uma vontade “neutra” de descrever e não de reduzir.
“Reduz-se explicando pelas causas (psicológicas, sociais, etc), pela gênese (individual,
histórica, etc.), pela função (afetiva, ideologia, etc.). Descreve-se extraindo a visada (noética) e
150
seu correlato (noemático): o algo visado, o objeto implícito no rito, no mito e na crença”
(RICOEUR, 1977, p. 34, grifo do autor). A análise se volta para a estrutura da consciência
religiosa e procura reconhecer de maneira intuitiva a essência do fenômeno. Dessa forma, torna-
se possível preservar aquilo que Ricoeur chamou de a “verdade dos símbolos” (RICOEUR,
1977, p. 35) sem esvaziá-los de seu valor “transcendente” na experiência religiosa.
A fenomenologia crítica de Tillich não pressupõe uma definição rígida do que seja a
religião, limitando-a à crença em seres e forças sobrenaturais ou a determinadas práticas e
comportamentos associados a elas. Como o próprio teólogo afirmou, “[...] a relação com deuses
não será um elemento necessário na definição de religião que se pretenda usar. E dando um
passo maior, é possível ainda incluir enquanto religião, aqueles movimentos seculares que
exibem traços decisivos das religiões propriamente ditas, ainda que ao mesmo tempo,
demonstrem profunda diferença”282 (TILLICH, 1988 [1963], 292-293).
Dessa forma, a fenomenologia crítica não se limita apenas ao pensamento de Tillich,
assim como tampouco está limitada a análise de conceitos ou símbolos cristãos. Seu método
que foi desenvolvido desde os anos 1920 e que esteve presente durante todo o percurso
acadêmico do autor, tanto nos contextos filosófico como teológico, pode ser aplicado para além
do pensamento de Tillich, isto é, aplicado para a análise dos fenômenos religiosos em sua
diversidade e pluralidade283. A abordagem fenomenológica se volta para a diversidade dos
símbolos religiosos como verdadeiros em última instância, evitando como quis o teólogo uma
rejeição fácil e injusta como muitas vezes tem acontecido nas histórias das religiões (TILLICH,
2011, p. 119).
O autor em sua última conferência intitulada “O significado da história das religiões
para um teólogo sistemático” proferida em 1965 afirma que “‘O significado da história das
Religiões para o teólogo sistemático’, é uma teologia de tal história das religiões na qual exista
282[...] the relation to gods is not a necessary element. And one can even take the further step of subsuming under
religion those secular movements which show decisive characteristics of the religions proper, although they are at
the same time profoundly different.
283 Um exemplo disso é a pesquisa de John Geeverghese Arapura intitulada Ensaios Hermenêuticos sobre tópicos
do Vedāntic (Hermeneutical Essays on Vedāntic Topics) em que o autor analisa os conceitos de transcendência e
transcendente e a orientação estrutural da consciência no contexto dos Vedāntic a partir da fenomenologia crítica
de Tillich. De acordo com Arapura “A aplicação promete entregar-nos a verdade de que a transcendência é a
orientação estrutural essencial da consciência. Mas usaremos a palavra "consciência" no sentido duplo que seu
equivalente em sânscrito, cit, garante, ou seja, tal como é entendido na linguagem diária, empírica, bem como
extraordinariamente em um sentido místico” (ARAPURA, 1986, p. 43, grifo do autor).
151
um equilíbrio entre a valorização positiva da revelação universal e a crítica”284 (TILLICH,
1992b [1966], p. 435). Tillich novamente chama atenção para os elementos universais e
concretos da experiência religiosa, que de acordo com o teólogo, é uma tensão que deve ser
mantida em toda análise do fenômeno religioso. Tillich nesta conferência também declarou que
se tivesse tempo, teria elaborado uma nova Teologia Sistemática em diálogo com toda a história
das religiões. Embora Tillich não tenha afirmado explicitamente qual método seguiria para isso,
é possível deduzir que a postura intuitiva e crítica estariam presentes. Como afirmou no final
da conferência: “Trata-se de formular as experiências básicas que são universalmente válidas
em termos que também o sejam. A universalidade de uma declaração religiosa não está numa
abstração que inclui tudo, e que destruiria a religião como tal, mas nas profundidades de toda
religião concreta”285 (TILLICH, 1992b [1966], p. 441).
A luz da fenomenologia crítica, o valor da experiência do sujeito com o sagrado é
mantido e compreendido como uma experiência de natureza última e que encontra suas raízes
nas dimensões profundas e fundamentais do ser humano. Esta experiência por sua vez se efetiva
a partir da interação com a cultura, e nesse sentido, há uma estrita relação entre as manifestações
religiosas e os sistemas sociais e culturais, momento em que a religião adquire seu caráter
concreto. O fenômeno religioso, portanto, carrega uma dimensão empírica ao passo que está
fundamentado em algo que transcende a situação temporal, a tensão entre estes dois polos deve
ser mantida e evidenciada, este é o caminho sugerido pela fenomenologia crítica.
Terrin comenta que antes das explicações está a vida e a criação incessante de sentido,
antes há algo como a religião, o amor, a vida em toda a sua expansão e só depois há uma
explicação destes fenômenos, é preciso, portanto, “respeitar o mundo em que se vive para
compreendê-lo e não se colocar logo numa atitude crítica ou de ‘suspeita’” (TERRIN, 1998, p.
34). Em outras palavras, existe um “pré-existente” no fenômeno que é ignorado pelas ciências
mais rígidas, este mundo ante-predicativo é anterior a qualquer juízo, e o rigor de uma
abordagem compreensiva está em começar justamente com o mundo da vida, que é solo das
possibilidades das percepções humanas e de construção de sentido de mundo. “Todo o universo
da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor,
284 “The Significance of the History of Religions for the Systematic Theologian,” is a theology of the history of
religions in which the positive valuation of universal revelation balances the critical one.
285 But it tries to formulate the basic experiences which are universally valid in universally valid statements. The
universality of a religious statement does not lie in an all-embracing abstraction which would destroy religion as
such, but it lies in the depths of every concrete religion.
152
apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).
Tillich pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que
valorize o caráter irredutível do sagrado e a dimensão subjetiva da experiência religiosa. Com
isso, Tillich também deixa uma inspiração tanto para as ciências da religião como para a
teologia, que é a importância de uma abordagem mais compreensiva e que leve em consideração
o valor da experiência do sujeito com o sagrado bem como o contexto histórico e cultural de
onde os símbolos são formados. De acordo com Tillich (1962, aula 9) o método não pode ser
monolítico e muito menos ignorar a complexidade que envolve a realidade humana. “Foi um
fracasso quando algumas pessoas tentaram entender a vida espiritual do homem apenas com
um método, ao invés de ver que a estrutura complexa da realidade exige uma estrutura complexa
do método. E o que eu lhe dei é uma estrutura complexa do método”286 (TILLICH, 1962, aula
9).
A crítica de Tillich às abordagens reducionistas, tal como visto no segundo capítulo, e
sua proposta de olhar para os símbolos religiosos considerando seu caráter complexo colocam
a fenomenologia crítica no horizonte de uma abordagem compreensiva. A sensibilidade com
que Tillich trata a experiência religiosa se apresenta ao profissional de teologia e ciências da
religião como um convite para olhar este fenômeno sem o intuito de explicá-lo, mas de
compreender, descrever e interpretar seus símbolos tais como se apresentam. A fenomenologia
crítica chama atenção para aquilo que é irredutível no fenômeno religioso bem como suas
formas simbólicas de representação, preocupado em manter vivo a tensão entre aquilo que é
essencial e ao mesmo tempo existencial, profundo e concreto, substancial e formal. Trata-se,
portanto, de um convite para perceber a essência paradoxal do fenômeno religioso na
diversidade e pluralidade de suas expressões.
Considerações Finais
286 It was a failure, when some people tried to understand man's spiritual life only with one method, instead of
seeing that the complex structure of reality demands a complex structure of the method. And what I gave you is
a complex structure of the method.
153
Como dito anteriormente, o objetivo desse capítulo foi analisar as implicações da
fenomenologia no pensamento de Tillich e as possibilidades de aplicação de seu método para
análise do fenômeno religioso. Para isso foram dados cinco passos importantes. O primeiro
passo demonstrou que as implicações da fenomenologia de Husserl no pensamento de Tillich
aparecem especialmente na formulação dos modos em que religião e cultura se relacionam.
Nesse sentido, quando a consciência se dirige para a substância da cultura se está diante da
religião e quando a consciência se dirige para as formas da cultura se está diante da cultura. A
unidade imprescindível entre religião e cultura ou seu correlato forma e substância desempenha
um papel fundamental no desenvolvimento da teologia da cultura. A experiência religiosa é
mediada pela cultura, e só é possível ser expressa por este meio. A experiência religiosa é
sempre composta por dois polos correlacionados, o da consciência imediata do incondicional e
a forma concreta em que a experiência recebe seu conteúdo.
No segundo passo foi possível perceber que a unidade interna dos sentidos, composta
pela polarização forma e substância, exige também um método capaz de preservar esta
polarização e manter viva a tensão. Nesse sentido, na medida em que o elemento intuitivo-
descritivo se volta para a dimensão substancial da experiência religiosa, o elemento existencial-
crítico se volta para o aspecto concreto e cultural. Por meio deste método, tanto o caráter
irracional e profundo da experiência quanto o aspecto concreto e existencial são valorizados e
preservados.
No terceiro passo foi possível analisar como a fenomenologia crítica pode ser aplicada
para análise do fenômeno religioso. O exercício fenomenológico com o simbolismo universal
da árvore sagrada demonstrou que ao se aproximar do fenômeno religioso o primeiro elemento
que chama atenção é o caráter revelatório do evento, isto é, a experiência do sujeito com o
sagrado. Posteriormente é possível identificar nessa experiência uma forma concreta através da
qual a consciência possibilita a mediação da revelação. Por último, um processo de
simbolização dessa forma concreta que passa a adquirir um valor existencial para o sujeito ou
comunidade que reconhece sua dimensão sagrada e torna-se parte estruturante de seu universo
simbólico religioso.
No quarto passo foi possível perceber a importância da teoria do símbolo religioso para
o método fenomenológico-crítico. O símbolo religioso expressa a relação fundamental do ser
humano com o sagrado. Essa relação possui um fundo de sentido que escapa das possibilidades
de análises reducionistas do fenômeno religioso. O símbolo aponta para o mistério, cuja razão
154
humana alcança apenas em partes. Essa maneira de entender o símbolo exige também uma
abordagem compreensiva que leve em consideração a questão do mistério que o símbolo
envolve.
No quinto e último passo foi possível perceber de que maneira a fenomenologia crítica
pode ser considerada como uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso. O método
proposto pelo autor rompe com a hermenêutica convencional marcada pelo positivismo lógico
e que se apresenta como reducionista do fenômeno religioso. Em contraponto a isso, Tillich
propõe uma abordagem mais compreensiva e preocupada tanto com a dimensão profunda da
experiência quanto com o valor existencial dos símbolos para quem vive a experiência. Antes
das explicações, há um mundo como experiência que ajuda a intuir a realidade numa certa
direção, este mundo é solo de possibilidades de construção da própria ciência em todas as suas
esferas. É deste solo que a análise do fenômeno religioso deve partir.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa, focada na fenomenologia crítica de Paul Tillich, originou-se da
necessidade de compreender como a fenomenologia aparece no pensamento desse autor. O
objetivo proposto foi analisar como o teólogo aplicou a fenomenologia na elaboração de sua
própria teologia e quais as implicações disso para o método e saber teológico. Com tal questão
em mente, a pesquisa constatou que a presença da fenomenologia em Tillich não se limita a sua
fenomenologia crítica apresentada na primeira parte da TS, e que o contato do autor com esta
escola remonta ao seu período revisionista, que vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os
últimos anos da década de 1920. É neste contexto que Tillich conheceu a fenomenologia pura
de Edmund Husserl e onde foi possível identificar também em torno de quais elementos mais
especificamente o autor se aproximou dessa escola.
A recepção da fenomenologia no pensamento do autor se dá num primeiro momento a
partir da teoria da intencionalidade da consciência. No final da Primeira Guerra Mundial,
especialmente pelo seu envolvimento pastoral e político com os efeitos dela, o autor encontrava-
se na difícil tarefa de revisão de seu pensamento, e diante disso, a fenomenologia é recebida de
maneira especial como um espaço teórico a partir do qual ele pode preencher algumas de suas
lacunas. A teoria da intencionalidade da consciência será aplicada pelo autor na fundamentação
de seu conceito de religião, que passa a ser descrito a partir de então como uma intencionalidade
da consciência dirigida ao sentido incondicional. Isso significa que a noção de religião descrita
por Tillich neste período opera na dimensão da vida consciente e encontra seus fundamentos na
teoria do sentido em diálogo com a fenomenologia de Husserl.
Para Husserl, toda consciência é consciência de alguma coisa, e para Tillich, o sentido
incondicional também é algo de que se possa estar consciente, como um sentido percebido na
realidade do mundo da vida. O sentido incondicional, como referido, não é um ser absoluto ou
uma realidade externa ao ser humano, mas trata-se de um mistério percebido pela própria
consciência de que o sentido termina sempre no indeterminado. A presença das categorias
fenomenológicas como “direcionamento” e “visar” no pensamento de Tillich, e que são comuns
também em Husserl, permitiram identificar os contornos da aplicação que o teólogo fez da
teoria da intencionalidade na fundamentação do conceito de religião. Com isso, foi possível
perceber que a experiência religiosa para Tillich se caracteriza por um ato intencional de visar
o sentido incondicional por meio de algum segmento presente na realidade. A religião nestes
156
termos, seria possível somente por meio da cultura, isto é, pelas formas concretas postas pelo
espírito em sua criatividade no mundo da vida.
Da mesma forma, é possível concluir que o sentido incondicional é um elemento
presente na estrutura da consciência, e não uma dimensão histórica ao lado de outras. Na
experiência religiosa, o incondicional apresenta-se como o sagrado que se revela ao ser humano,
uma experiência que pode suceder em qualquer ato de significar o mundo. A consciência do
incondicionado, tanto no período revisionista como no posterior a ele, é descrita pelo autor
como o elemento necessário e em virtude do qual a experiência pode ser caracteriza como
religiosa. Nesse sentido, pode-se dizer que há no pensamento de Tillich uma teoria da
consciência religiosa intencional de recorte fenomenológico que demarca a recepção da
fenomenologia husserliana em Tillich. Essa é a primeira forma em que a fenomenologia aparece
no pensamento do autor.
O segundo elemento em torno do qual Tillich se aproxima da fenomenologia de Husserl
é a intuição das essências. Ao contrário da intencionalidade da consciência, este elemento
reaparece de maneira explícita em vários momentos posteriores ao período revisionista do
autor, o principal exemplo disso é a própria fenomenologia crítica na primeira parte de sua TS,
em cuja estrutura encontra-se o elemento intuitivo-descritivo como eixo fundante ao lado do
existencial-crítico.
A análise que a pesquisa realizou sobre a crítica de Tillich ao método fenomenológico
demonstrou que o teólogo valoriza o caráter rigoroso e radical do método na exigência do
esclarecimento de sentidos e percebe as possibilidades dessa contribuição na esfera das análises
do fenômeno religioso. Através do elemento intuitivo, o autor entende que seria possível intuir
eideticamente a essência e as qualidades peculiares da religião em qualquer manifestação
religiosa. A análise fenomenológica possui um caráter descritivo da experiência vivida que
valoriza sobremaneira a experiência religiosa. Tillich ressalta este aspecto, por exemplo, na
descrição que Rudolf Otto faz do numinoso como uma realidade que transpassa todas as formas
objetivas e se apresenta à consciência como mysterium tremendum et fascinans. Tillich chegou
a afirmar que neste aspecto, sua proposta e a de Otto eram tão semelhantes que se dispensava
maiores ênfases.
Entretanto, a crítica de Tillich à fenomenologia reside no fato de que este método carece
de um critério que permita a valorização dos aspectos concretos da experiência religiosa. A
fenomenologia seria portadora de um caráter a-histórico e incapaz de dar conta da diversidade
157
das expressões religiosas, ela chegaria à proposição de uma essência da religião que transcenda
toda religião empírica. Essa essência, por sua vez, só poderia estar dotada das características de
uma determinada religião histórica ou então proporia a construção de uma nova religião ideal.
Diante disso, Tillich propõe unir ao elemento intuitivo da fenomenologia pura um elemento
crítico. Este elemento possibilitaria evidenciar a forma em que o sentido incondicional é
atualizado na estrutura do espírito. Para o autor, as formas através das quais a experiência
religiosa torna-se possível é tão importante para a análise do fenômeno religioso quanto o
incondicional que se revela nela. O autor entende que a intuição sozinha não seria capaz de dar
conta da forma de sentido e por isso acrescentou o elemento crítico, através do qual a religião
em seus aspectos concretos é devidamente valorizada.
Na sequência da pesquisa, foram analisados os quatro métodos desenvolvidos sob esta
base: o crítico-intuitivo (1920), metalógico (1923), fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-
crítico (1962). Embora Tillich tenha fundamentado sua fenomenologia crítica a partir da união
de ambos os elementos, esta união aparece também como fundamento de outros dois métodos
que precederam sua fenomenologia crítica, a saber, o método crítico-intuitivo em 1920 e
metalógico em 1923. Este último se caracteriza pela intuição das essência a partir da soma dos
elementos intuitivo e dinâmico ao método crítico. Semelhantemente, em 1962 no curso sobre
filosofia da religião ministrado em Harvard, como referido anteriormente, outro método
construído sobre esta mesma base é apresentado pelo autor, este método é denominado agora
como intuitivo-crítico.
Embora o foco da pesquisa estivesse sobre a fenomenologia crítica, foi possível
constatar que estes métodos desenvolvidos por Tillich em diferentes períodos e contextos de
sua produção acadêmica, não são propostas metodológicas diferentes uma da outra, ao contrário
trata-se de uma mesma proposta. Ao analisar os elementos que constituem os quatro métodos,
percebeu-se que embora existam modificações realizadas pelo teólogo em decorrência de seus
avanços acadêmicos, todos os métodos preservam os mesmos elementos estruturantes, a união
dos elementos intuitivo e crítico, assim como estão também direcionados para os mesmos
objetivos. Tillich aparentemente não muda sua abordagem. Para o teólogo o método crítico
continua sendo incapaz de chegar a essência da coisa, e o método intuitivo por si só não pode
dar conta da existência.
Tillich nunca fixou um nome para seu método, ao longo dos anos foram quatro
denominações diferentes e em todas elas a estrutura central do método permaneceu a mesma.
158
Sendo assim, pode-se dizer que o teólogo conservou a mesma postura metodológica que foi
sendo desenvolvida e modificada com o passar dos anos de acordo os próprios rumos que o
pensamento de Tillich tomou.
A pesquisa identificou que a principal diferença encontrada entre os métodos está na
presença da abordagem existencial nos métodos fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-
crítico (1962). Na fenomenologia crítica a abordagem existencial aparece junto com a
abordagem crítica, expresso no elemento “existencial-crítico”, enquanto que no método
intuitivo-crítico, este elemento é apresentado a partir da abordagem ontológica e colocada ao
lado da abordagem intuitiva e crítica. Dessa forma, o método proposto pelo autor passa por três
abordagens interligadas, a abordagem intuitiva, oriunda da fenomenologia de Husserl, a
abordagem ontológica, oriunda da filosofia existencial, e a abordagem crítica, oriunda da escola
kantiana e neokantiana. As abordagens intuitiva e crítica, estão presentes no método desde sua
formulação original em 1920, enquanto que a abordagem existencial é acrescida
posteriormente. Para o autor, cada abordagem desempenha um papel específico na análise do
fenômeno religioso e não devem ser tomadas isoladamente. Nesse sentido, não há substituição
de um pelo outro. O aporte existencial é fundamental para o método mas desempenha um papel
específico ao lado da intuição e da crítica.
Nesse sentido, pode-se dizer que o método que começa a ser desenvolvido em 1920 sob
o nome de crítico-intuitivo terá na fenomenologia crítica ou intuição-crítica sua formulação
final, isto é, a união das abordagens intuitiva, existencial e crítica constituem a versão final do
método. A opção que a presente pesquisa fez por focar na fenomenologia crítica se deve ao fato
de que nela estão sintetizadas de forma bastante didática as três abordagens que o método
propõe. Enquanto que no método intuitivo-crítico de 1962 o autor descreve as três abordagens
separadamente, na fenomenologia crítica a proposta é sintetizada como união dos elementos
intuitivo-descritivo e existencial-crítico. Esta formulação facilita a compreensão do método
bem como seu uso prático.
Esta união por sua vez aponta para outra questão importante em Tillich, a tensão sempre
constante entre o aspecto último e irracional da experiência religiosa com o aspecto concreto e
lógico. A tensão entre o indizível e as formas lógicas de raciocínios é um pressuposto que para
Tillich deve ser considerado, inclusive no fazer teológico. A teologia ainda que trabalhe com
símbolos de uma religião específica, deve estar consciente de que há uma dimensão da realidade
que está sempre aberta e que não pode ser condicionada. Nesse sentido pode-se pensar que
159
teologia não está para falar do incondicional, mas para garantir a possibilidade desta fala. Da
mesma forma, a análise da religião na perspectiva da fenomenologia crítica não se trata de
reencontrar um objeto ausente, mas de apontar para o fato de sua inacessibilidade.
Essa tensão foi identificada na dinâmica de relacionamento entre religião e cultura. A
pesquisa analisou as implicações da fenomenologia no pensamento teológico do autor, e nesse
sentido, foi possível perceber que a teoria da intencionalidade da consciência desempenha um
papel importante na formulação dos modos em que religião e cultura se relacionam, e por
consequência, em sua proposta de uma teologia da cultura. A religião como direcionamento
intencional da consciência ao sentido incondicional só é possível através da cultura. Por
semelhança, toda forma cultural possui o poder de ser mediadora de um sentido incondicional.
Como não se pode falar sobre o incondicional sem transformá-lo num objeto, e como
não há expressão cultural que não possa se tornar mediadora de um sentido incondicional, o
teólogo emprega as categorias semânticas de forma e substância que ajuda sobremaneira a
compreender a dinâmica de relação entre religião e cultura. A religião como experiência do
incondicionado está para a substância assim como a cultura está para a forma. Nesse sentido,
toda expressão cultural é substancialmente religiosa (possui o poder de expressar o sentido
incondicional) assim como toda expressão religiosa é formalmente cultural (utiliza as formas
concretas para expressar o incondicional). Diante disso, quando a intencionalidade da
consciência se volta para a substância se está diante da religião e quando a consciência se volta
para a forma se está diante da cultura. O caráter cultural ou religioso depende do direcionamento
subjetivo da consciência intencional. É neste contexto que se torna possível compreender com
maior nitidez a máxima tillichiana que religião é substância da cultura e cultura é forma da
religião.
Tillich descreve, portanto, dois estados da intencionalidade da consciência, uma dirigida
à forma e a outra à substância. Um mesmo segmento da realidade pode ter um sentido religioso
e um sentido cultural. Sendo assim, cultura e religião constituem dimensões codependentes e
não podem jamais serem compreendidas separadamente. Religião e cultura estão
essencialmente unidas, e a dinâmica interna dos sentidos se dá nessa relação. É nesse contexto
que foi possível perceber as possibilidades de aplicação da fenomenologia crítica de Tillich.
A unidade entre religião e cultura como unidade entre forma e substância descreve a
dinâmica em que são formados os muitos fenômenos religiosos. A pesquisa constatou no
terceiro capítulo que uma análise coerente de qualquer fenômeno religioso, à luz do pensamento
160
tillichiano, deve levar em consideração a tensão formada por ambos os polos dessa relação.
Diante de tal desafio constatou-se também que a fenomenologia crítica constitui um método
adequado para abordar o fenômeno religioso, pois na medida em que o elemento intuitivo-
descritivo se volta para a substância da forma, isto é, seu sentido profundo e incondicional, o
elemento existencial-crítico se volta para os aspectos concretos, históricos e culturais da
experiência religiosa.
Assim, uma contribuição importante da fenomenologia crítica consiste na explicitação
e preservação da tensão entre os dois polos de sentido presentes nos fundamentos das estruturas
religiosas das mais diferentes religiões. A fenomenologia crítica percorre assim a experiência
religiosa desde aquilo que é originário no fenômeno até sua efetivação nas dimensões concretas
da vida. Nesse sentido, por via da intuição-descritiva se tem acesso ao caráter experiencial do
fenômeno como o mistério que se revela através de algum segmento da realidade, assumindo
com isso, um perfil sagrado e específico. Por via do elemento existencial-crítico se tem a
possibilidade de identificar as formas por meio das quais a experiência foi possível,
consideradas como formas simbólicas de representação extraídas da realidade histórica e
cultural.
Outro aspecto da contribuição metodológica da fenomenologia crítica nas análises do
fenômeno religioso foi o caráter compreensivo do método. A análise realizada sobre os vários
métodos em filosofia da religião discutidos por Tillich possibilitou evidenciar a oposição do
teólogo em relação as abordagens reducionistas do fenômeno religioso, bem como seu
posicionamento de valorização da experiência religiosa. Este caráter compreensivo se faz sentir
também na importância que o teólogo atribui ao símbolo religioso, que além de apontar para
uma realidade de sentido que escapa às abordagens racionalistas, também possui um valor
existencial para o sujeito ou comunidade que reconhece sua dimensão sagrada. Em perspectiva
fenomenológica, o símbolo deixa de ser apenas um código a ser decifrado, mas é visto como
possuidor de um fundo de sentido que escapa das análises de caráter mais positivista.
Desta forma, a pesquisa também buscou apresentar a fenomenologia crítica como uma
possibilidade metodológica de análise do fenômeno religioso. Constatou-se que à luz da
fenomenologia crítica, os fenômenos religiosos são encarados como modos simbólicos de
representação, e nesse sentido, a utilização da fenomenologia crítica como referencial teórico
não se dá no âmbito do pensamento teológico do autor, mas na perspectiva de sua proposta
metodológica, tal como realizado por John Geeverghese Arapura em seu livro Ensaios
161
Hermenêuticos sobre tópicos do Vedāntic, referenciado no terceiro capítulo. Nesse sentido, o
método fenomenológico-crítico não se limita apenas ao pensamento tillichiano ou a religião
cristã, mas pode ser aplicado para análise dos fenômenos religiosos independentemente de suas
formas de expressão. O exemplo utilizado para explorar essas possibilidades foi o da árvore
sagrada, mas outros poderiam ser usados, como as experiências religiosas nos cultos afro-
brasileiros, embora um tipo de análise assim exigiria um espaço maior daquele que foi dedicado
para tal objetivo nesta pesquisa.
A fenomenologia crítica, portanto, se apresenta como uma nova possibilidade de análise
do fenômeno religioso na atualidade. A relação entre o elemento intuitivo-descritivo com o
elemento existencial-crítico tal como propõe a fenomenologia de Tillich, além de interessar aos
estudiosos da teologia e ciências da religião por colaborar com a reflexão em torno do fenômeno
religioso através do método fenomenológico, apresenta também uma nova versão do método
que pressupõe como ponto de partida a relação entre forma e substância. Esta relação que se
expressa categoricamente nos modos como religião e cultura se relacionam demonstra em
grande medida o aspecto inovador da fenomenologia tillichiana e também as possibilidades de
sua aplicação prática. No entanto, seria preciso ainda, para expandir os alcances de sua
fenomenologia crítica, compreender de maneira sistemática como o autor lidou com os aspectos
constitutivos do mundo religioso como o mito, rito, símbolo. Este último foi analisado nesta
pesquisa dentro do escopo maior da fenomenologia crítica. Embora estes elementos tenham
sido referidos brevemente no terceiro capítulo, o objetivo maior da pesquisa não permitiu um
desenvolvimento mais exaustivo sobre eles, e, portanto, seguem apenas como provocação para
pesquisas futuras.
Por fim, pode-se dizer que a fenomenologia esteve presente no pensamento de Tillich
durante todo seu percurso acadêmico e com, pelo menos, duas formas. Por um lado, a
fenomenologia tem a ver com a apropriação da teoria da intencionalidade da consciência na
fundamentação do conceito de religião, e por outro, tem a ver com a concepção de um método
fundamentado, em parte, a partir do elemento intuitivo-descritivo. Embora estes dois aspectos
não estejam separados, fazer tal distinção ajuda na compreensão sobre o que se quer dizer
quando se fala de fenomenologia no pensamento do autor. Da mesma forma, reconhecer este
duplo aspecto ajuda a compreender que a fenomenologia em Tillich não se limita a sua
fenomenologia crítica e a sua Teologia Sistemática, mas que se estende através de suas obras
aparecendo tanto explicita como implicitamente, seja na fundamentação de conteúdos
teológicos ou como atitude metodológica.
162
A proposta metodológica com base nos elementos intuitivo e crítico, que acompanhou
o autor durante todo seu percurso acadêmico e foi descrito por ele mesmo como o mais
adequado método em filosofia da religião e em teologia, embora nunca tenha recebido um nome
específico, mostra-se na atualidade como uma contribuição fundamental de Tillich para análise
do fenômeno religioso. Portanto, a fenomenologia crítica ainda que tenha sido apresentada no
contexto da TS, não se limita a ela, mas constitui-se como um complexo método que reúne,
como foi visto, três abordagens distintas e propõe a partir daí uma perspectiva compreensiva e
de valorização da experiência religiosa e dos universos simbólicos em toda sua complexidade.
Com isso, espera-se também que essa pesquisa possa contribuir para a reflexão do
fenômeno religioso através do instrumental da fenomenologia crítica. Na condição de teólogo,
Tillich elaborou sua fenomenologia crítica aproximando-a da teologia e nesse sentido o autor
deixa o caminho aberto para novas possibilidades de aplicação de seu método tanto no contexto
teológico cristão como para além dele. No final de sua carreira, Tillich expressou o desejo e
necessidade de pensar uma teologia em diálogo com a história das religiões. Se a motivação de
Tillich for considerada juntamente com sua proposta metodológica, então pode-se dizer ainda
que seu pensamento pode ser desdobrado e revigorado para novos campos de pesquisas que
nem o próprio Tillich talvez tenha pensado em chegar dentro de seu contexto. Nesse sentido, a
proposta da fenomenologia crítica na esteira de uma abordagem compreensiva da religião
chama atenção para a sensibilidade de refletir sobre o valor dos símbolos sagrados para quem
vive a própria experiência e faz o convite para olhar novamente a religião no lugar onde ela
nasce, isto é, na experiência humana de sentir o mundo.
163
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