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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Thiago Rafael Englert Kelm PAUL TILLICH E O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO- CRÍTICO São Bernardo do Campo 2017

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Thiago Rafael Englert Kelm

PAUL TILLICH E O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO-

CRÍTICO

São Bernardo do Campo

2017

Thiago Rafael Englert Kelm

PAUL TILLICH E O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO-

CRÍTICO

Dissertação apresentada em cumprimento parcial às

exigências do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Religião, para obtenção do grau de

Mestre. Orientador: Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro.

São Bernardo do Campo

2017

A dissertação de mestrado sob o título “Paul Tillich e o pensamento fenomenológico-crítico”,

elaborada por Thiago Rafael Englert Kelm, foi apresentada e aprovada com louvor em 15 de

agosto de 2017, perante banca examinadora composta pelos professores Doutores Cláudio de

Oliveira Ribeiro (Presidente/UMESP), Etienne Alfred Higuet (Titular/UEPA) e Rui de

Souza Josgrilberg (Titular/UMESP).

__________________________________________

Prof. Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Linguagens da Religião

Linha de Pesquisa: Teologias das Religiões e Cultura

para Diani Lange

AGRADECIMENTOS

Usar palavras é limitar a imensa gratidão que tenho a cada pessoa que caminhou comigo

na construção deste trabalho. A estas pessoas quero escrever meus mais sinceros e profundos

agradecimentos. Agradeço...

À minha esposa Diani Lange, pela compreensão, apoio e por se tornar desde o início

desta pesquisa meu incentivo constante. Obrigado pelas palavras, olhares e sorrisos que me

deram forças em momentos de desânimo.

Aos meus pais Noeli Kelm e Mario Osmar Englert e ao meu irmão Carlos Daniel Englert

Kelm, pela demonstração de amor e carinho e pelo voto de confiança em minhas andanças

acadêmicas.

Ao Gilmar Romualdo Somacal por apoiar a iniciativa do mestrado e contribuir para sua

realização.

Ao Prof. Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro, pela paciência exemplar, e ajudas decisivas

que criaram condições de enriquecimentos da pesquisa. Dele nunca faltou constante apoio, e

bom ânimo em caminhar comigo o percurso deste trabalho, e a amizade que foi além da relação

orientador-orientando.

Ao Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet, pela inspiração na pesquisa e ajuda com as obras

de Tillich, especialmente pelas discussões e ideias no grupo de pesquisa Paul Tillich que foram

fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa.

Aos professores Dr. Helmut Renders e Dr. Rui de Souza Josgrilberg pelos comentários

enriquecedores e desafiadores na ocasião da qualificação.

Ao Roberto Carlos Porto pelas leituras da pesquisa, sugestões e pela ajuda com as

traduções e revisões dos textos em alemão.

Ao Fábio Henrique de Abreu, Giovanni Catenaci e Vitor Chaves de Souza pelas

conversas, provocações e questionamentos que contribuíram sobremaneira para o

desenvolvimento e fundamentação deste trabalho.

À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa

integral de mestrado e financiamento de todo o projeto.

“La filosofía es una reacción al misterio de la realidad, concretamente al de la vida humana

y su destino”

(Miguel de Unamuno)

“E é só você que tem a cura para o meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo

que eu ainda não vi”

(Renato Russo)

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo analisar de que maneira o teólogo e filósofo Paul Tillich

(1986-1965) aplicou a fenomenologia na elaboração de sua própria teologia e quais as

implicações disso para o método teológico. Em sua Teologia Sistemática, Tillich desenvolve o

método chamado de fenomenologia crítica e afirma ser este o mais adequado para a análise dos

conceitos teológicos. Entretanto, a presença da fenomenologia no pensamento tillichiano é

anterior à sua TS. Durante o período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os últimos

anos de 1920, Tillich assume uma postura revisionista em relação ao seu período inicial e

estabelece importantes diálogos com a escola fenomenológica, principalmente a de Edmund

Husserl. Esses diálogos se tornam evidentes na apropriação que o teólogo faz da teoria da

intencionalidade da consciência e da intuição das essências. Entretanto, Tillich se apropria da

fenomenologia husserliana de maneira crítica e rejeita, como o próprio teólogo afirma, o

realismo a-histórico adotado por Husserl. Para Tillich, forma e substância são indissociáveis e

nesse sentido torna-se necessário um método que valorize ambos os polos. É neste contexto que

o teólogo propõe a união de um elemento crítico à fenomenologia pura, e mais tarde em sua

TS, a ideia de uma fenomenologia crítica. A união entre os elementos crítico e intuitivo no

pensamento de Tillich se constitui como o fundamento e também o aspecto inovador de sua

fenomenologia. Compreender esta apropriação que o teólogo faz da fenomenologia é

fundamental para um entendimento rigoroso da totalidade de seu trabalho assim como para

apreender as possibilidades de aplicação que seu método fenomenológico possui para a

atualidade.

Palavras-chave: Paul Tillich. Fenomenologia. Intencionalidade. Crítico. Intuitivo.

ABSTRACT

This research aims to analyze the way that the theologian and philosopher Paul Tillich (1986-

1965) applied the phenomenology in the elaboration of his own theology and which are the

implications of this for the theological method. In his Systematic Theology, Tillich developed

the method called critical phenomenology and stated this is the most appropriate method for

the analysis of the theological concepts. However, the presence of phenomenology in the

tillichian thoughts is previous of his ST. During the period since the ending of the First World

War until the last years of the 1920, Tillich took over a revisionist stance in relation to his

previous period and established important dialogs with the phenomenological school, mainly

the school of Edmund Husserl. These dialogs became evident in the appropriation of the

intentionality of conscious and the intuition of essences did by the theologian. Nevertheless,

Tillich appropriated of the husserlian phenomenology in the critical way and he rejected, as the

theologian has claimed, the ahistorical realism adopted by Edmund Husserl. For Tillich, the

form and substance aren’t dissociable and therefore becomes necessary a method which values

both poles. In this context, the theologian proposed the union of a critical element to the pure

phenomenology, and later, in his ST, the idea of a critical phenomenology. The union of the

critical and intuitive elements in the Tillich thought constitutes as the basis and the innovator

aspect of his phenomenology. Comprehend this appropriation of the phenomenology by the

theologian is fundamental for a rigorous understanding about the totality of his work as well as

the possibilities to application of his phenomenological method for the current days.

Key-words: Paul Tillich. Phenomenology. Intentionality. Critical. Intuitive.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11

CAPÍTULO 1 – A RECEPÇÃO DA FENOMENOLOGIA NO PENSAMENTO

TEOLÓGICO DE PAUL TILLICH ............................................................................ 17

1.1. Época de guerras: o período revisionista de Paul Tillich ................................... 18

1.2. A teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl ..................... 24

1.3. Contatos com a escola fenomenológica e a apropriação da noção de intencionalidade

da consciência .......................................................................................................... 30

1.3.1. Carta a Richard Wegener e os primeiros contatos com a escola fenomenológica

...................................................................................................................... 30

1.3.2. Carta a Emanuel Hirsch e os contornos gerais de uma teoria do sentido absoluto

(Urständliche) em diálogo com a fenomenologia ........................................ 31

1.3.3. O curso sobre filosofia da religião de 1920 e a apropriação do termo visar (Meinen)

como ato intencional da consciência ............................................................ 35

1.4. Aplicações da intencionalidade da consciência na fundamentação do conceito de

religião ...................................................................................................................... 37

1.4.1. A teoria do sentido em Tillich como pano de fundo de sua recepção da

fenomenologia .............................................................................................. 37

1.4.2. O sentido incondicional como experiência religiosa imediata ..................... 40

1.4.3. O conceito de religião como direcionamento intencional da consciência .... 46

1.4.4. Apontamentos sobre a noção de religião como preocupação última nos escritos

posteriores ao período revisionista de Paul Tillich....................................... 51

CAPÍTULO 2 – OS ELEMENTOS INTUITIVO E CRÍTICO COMO EPICENTRO DA

FENOMENOLOGIA CRÍTICA .................................................................................. 56

2.1. Críticas de Tillich ao método fenomenológico e a proposta de união entre os elementos

intuitivo e crítico ...................................................................................................... 56

2.1.1. O contexto da crítica: uma análise sobre os métodos da filosofia da religião56

2.1.2. Crítica ao método fenomenológico .............................................................. 61

2.1.3. A proposta de união entre os elementos intuitivo e crítico .......................... 68

2.2. O método crítico-intuitivo ...................................................................................... 71

2.3. O método metalógico .............................................................................................. 79

2.4. O método fenomenológico-crítico ......................................................................... 88

2.5. O caso especial do curso do verão de 1962 ........................................................... 98

2.6. A abordagem ontológica no contexto da fenomenologia crítica ....................... 103

CAPÍTULO 3 – IMPLICAÇÕES E APLICABILIDADE DA FENOMENOLOGIA DE

TILLICH ...................................................................................................................... 108

3.1. Implicações da fenomenologia na elaboração de uma Teologia da Cultura ... 110

3.1.1. Relação entre Religião e Cultura ................................................................ 110

3.1.2. Relação entre forma e substância ............................................................... 113

3.1.3. Dois estados da intencionalidade da consciência e a distinção entre a potência

religiosa e o ato religioso ............................................................................ 116

3.2. A relação entre forma e substância e os elementos intuitivo-descritivo e existencial-

crítico ...................................................................................................................... 123

3.3. A aplicabilidade da fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso126

3.4. A atitude fenomenológica no reconhecimento da religião como modos simbólicos de

representação e o valor existencial do símbolo religioso .................................... 143

3.5. A fenomenologia crítica como abordagem compreensiva do fenômeno religioso147

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 155

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 163

11

INTRODUÇÃO

O teólogo e filósofo Paul Tillich (1886-1965) é um pensador de fronteiras. Esta é uma

característica que marca não apenas sua trajetória de vida como também todo seu percurso

acadêmico. O autor comenta em sua autobiografia intitulada “Na fronteira: um esboço

autobiográfico” (On the boundary: an autobiographical sketch) que o conceito de fronteira se

constitui como um símbolo adequado para toda sua evolução pessoal e intelectual. Nesse

sentido, entender o pensamento desse autor não é uma tarefa fácil, já que se trata de um

pensamento original, sofisticado e marcado pela interlocução com diversas áreas do

conhecimento. Mesmo como teólogo cristão, sua teologia é caracterizada por uma postura

menos unívoca do cristianismo e que vai numa direção horizontal da religião, abrindo um leque

de possibilidades de diálogo com outras formas de pensamento, entre elas, a fenomenologia.

Tillich dialogou com a fenomenologia filosófica e também foi influenciado por ela. O

contato dele com esta escola, em especial a de Edmund Husserl, aconteceu durante a Primeira

Guerra Mundial, um momento histórico que deixou marcas profundas em sua vida e

pensamento. A experiência de guerra revelou um abismo na existência humana que não podia

ser ignorado, e sob este impacto, a filosofia romântica do século XIX e o idealismo teológico

que marcaram a primeira fase do pensamento do teólogo foram profundamente abaladas. Nessa

época, o autor assume uma postura revisionista em relação ao seu período inicial, e como ele

mesmo relata, este processo aconteceu em um diálogo crítico com o neokantismo, a filosofia

do valor e a fenomenologia. A presença da fenomenologia no pensamento de Tillich após este

período foi intensa.

O teólogo não apenas fez uso de alguns postulados da escola fenomenológica, como

também desenvolveu uma versão própria do método. A aproximação de Tillich com a

fenomenologia de Husserl se deu de maneira crítica, e nesse sentido, o mais importante em

Husserl para Tillich foi a teoria da intencionalidade da consciência e a intuição das essências.

É em torno destes dois elementos que os primeiros contatos do autor com a fenomenologia

aconteceram.

12

A noção de intencionalidade do ato da consciência se torna um elemento importante

para entender o pensamento de Tillich, principalmente em seu período revisionista1. Essa teoria

será aplicada pelo teólogo na fundamentação de seu conceito de religião, que passa a ser

descrito a partir de então como intencionalidade dirigida ao sentido incondicionado. Da mesma

forma, para dar conta dessa experiência intencional da consciência, o teólogo emprega um

segundo elemento oriundo da fenomenologia de Husserl, a saber, o elemento intuitivo, que,

para o autor, possibilita intuir a essência e as qualidades da religião em qualquer manifestação

religiosa. Tillich valoriza, portanto, o caráter rigoroso e radical da intuição das essências na

exigência do esclarecimento de sentidos e percebe, a partir disto, as possibilidades dessa

contribuição na esfera das análises do fenômeno religioso.

Entretanto, a pesquisa que ora se apresenta procurará mostrar que na visão de Tillich

falta à fenomenologia pura de Husserl um elemento crítico, que permita também a valorização

dos aspectos concretos e existenciais da experiência religiosa. Dessa forma, o teólogo soma ao

elemento intuitivo-descritivo um elemento existencial-crítico e desenvolve a partir daí uma

fenomenologia crítica. A união destes elementos constitui os fundamentos e também o aspecto

inovador da fenomenologia tillichiana. Com este método, torna-se possível, segundo o autor, e,

como também será apresentado, abordar o fenômeno religioso tanto em seus aspectos essenciais

quanto em seus aspectos concretos e existenciais. Estes dois elementos estão correlacionados e

estabelecidos numa tensão.

Tendo isso em conta, é possível perceber que a fenomenologia no pensamento de Tillich

não se limita a sua fenomenologia crítica, e tampouco aparece apenas como método em

teologia. A presença da fenomenologia pode ser percebida no pensamento do autor desde seu

período revisionista, quando ele fala em intencionalidade da consciência em direção ao sentido

incondicional e na necessidade de um método intuitivo para dar conta dessa experiência

intencional. É com base nestas formulações iniciais que Tillich vai falar mais tarde em sua

Teologia Sistemática (TS) de uma fenomenologia crítica. No entanto, até mesmo essa

fenomenologia crítica desenvolvida em 1951 se apresenta como o resultado de um método que

1O percurso acadêmico de Tillich pode ser dividido de várias formas. A pesquisa adotou as análises que o dividem

em três momentos. A recepção entusiástica do idealismo de Fichte e Schelling que marca profundamente seu

período de formação e se estende até o final da Primeira Guerra Mundial. Um segundo momento que vai deste

acontecimento até os últimos anos da década de vinte em que o autor assume uma postura revisionista em relação

ao seu período anterior e passa a reformula-lo na forma de uma nova teoria do sentido, e posteriormente um período

marcado por questões ontológicas, mas que conserva a teoria do sentido, que vai dos anos vinte até a Teologia

Sistemática nos anos de 1950 e 60 (DANZ, 2009, p. 173).

13

já vinha sendo desenvolvido muito antes por ele em termos de método crítico-intuitivo (1920)

e metalógico (1923), e posterior à fenomenologia crítica, em termos de método intuitivo-crítico

(1962)

No entanto, entre as pesquisas que envolvem o pensamento de Paul Tillich,

principalmente em solo brasileiro, são poucas aquelas que discutem sobre o assunto ou que

fazem um uso instrumental de seu método, tal como acontece com outros temas do teólogo

como o Reino de Deus, Kairos, Princípio protestante, Correlação, etc. Existe, portanto, uma

escassez de discussões sobre o lugar da fenomenologia no pensamento de Tillich e a maneira

como o teólogo aplicou, seja explicita ou implicitamente, a fenomenologia na elaboração de

sua própria teologia. O mesmo se dá com as possibilidades de aplicação de seu método

fenomenológico para a análise do fenômeno religioso na atualidade.

Diante disso, esta pesquisa se propõe a abordar o tema a partir de três hipóteses: A

primeira delas é que a fenomenologia em Tillich aparece de duas formas. Primeiro na

apropriação que o autor faz da teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl

para fundamentar seu conceito de religião, e segundo, na apropriação do elemento intuitivo-

descritivo para fundamentar seu próprio método fenomenológico-crítico. A segunda hipótese

desta pesquisa é que o método fenomenológico-crítico, trabalhado pelo teólogo na primeira

parte de sua TS pode ser compreendido como correlato aos métodos crítico-intuitivo e

metalógico, desenvolvido pelo autor em seu período revisionista. A terceira e última hipótese

desta pesquisa é que a fenomenologia crítica, tal como aplicada pelo autor na elaboração de sua

TS e no contexto de sua filosofia da religião, pode ser usada de maneira instrumental para a

análise de fenômenos religiosos na atualidade, assim como, pode ser também situada no

contexto de uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso.

Com isto, esta pesquisa pretende trazer para a discussão uma delimitação conceitual e

metodológica pouco discutida e valorizada por comentadores de Tillich no contexto brasileiro.

A apropriação de elementos da escola fenomenológica marca uma etapa decisiva e de intensa

produção acadêmica do teólogo e que na atualidade podem se abrir para novas perspectivas

analíticas e interpretativas sobre este autor e sobre a questão da fenomenologia como método

de pesquisa.

O método fenomenológico-crítico dele se apresenta como fundamental para um novo

processo de análise que, como será visto, vem ganhando força na atualidade. Esta proposta de

análise voltada para um olhar mais compreensivo do fenômeno religioso e com interesse em

14

questões mais subjetivas da vida tem sido fortemente acolhido no âmbito acadêmico. Tillich

pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que valorize o

caráter irredutível do sagrado e a dimensão subjetiva da experiência religiosa. O fenômeno

religioso na perspectiva do autor é composto por uma dimensão empírica ao passo que está

fundamentado em algo que transcende a situação temporal. A tensão entre estes dois polos deve

ser mantida e evidenciada, este é o caminho sugerido pela fenomenologia crítica. Com isso,

pretende-se mostrar que a fenomenologia crítica também aponta para a importância de uma

abordagem que leve em consideração o valor da experiência do sujeito com o sagrado bem

como o contexto histórico e cultural de onde os universos simbólicos são formados.

Esta pesquisa se justifica também por colocar a fenomenologia crítica de Tillich como

correlata aos métodos crítico-intuitivo e metalógico, elaborados por ele nas primeiras décadas

do século XX. O esforço será mostrar que existem pesquisas importantes que demonstram como

o método crítico-intuitivo e metalógico constituem-se essencialmente como um único método

no pensamento do autor. Entretanto, não se encontrou nenhum trabalho que incluísse o método

fenomenológico-crítico nessa mesma categoria. É possível que esta relação ainda não tenha

sido realizada pelo fato de que enquanto os método crítico-intuitivo e metalógico encontram-se

em escritos sobre filosofia da religião de Tillich, o método fenomenológico-crítico está situado

no contexto de sua Teologia Sistemática. Entretanto, isto não anula as possibilidades de tal

relação, ao contrário, apenas demonstra a importância que este método possui para o

pensamento do autor. Se a fenomenologia crítica for considerada como correlata aos métodos

anteriores desenvolvidos pelo autor, então pode-se dizer também que esta proposta

metodológica não se limita ao contexto teológico, mas pode ser usada também para abordar a

questão da religião em perspectiva filosófica.

Dessa forma, o objetivo central desta pesquisa é analisar de que maneira Tillich aplicou

a fenomenologia, em especial a noção de intencionalidade da consciência e o elemento

intuitivo-descritivo, na elaboração de sua teologia, e quais as implicações disso para o método

e saber teológico. Este questionamento inicial se desdobra, por sua vez, em três objetivos

específicos, que estruturam a pesquisa. São eles: (1) Apresentar o contexto do período

revisionista do autor a partir de uma análise de seus textos autobiográficos e analisar a recepção

da fenomenologia, especialmente a de Husserl, com o foco na teoria da intencionalidade da

consciência como elemento estruturante na reformulação de sua teologia. (2) Analisar os

desdobramentos do contato de Tillich com o método fenomenológico presente na crítica do

teólogo à escola fenomenológica e na posterior elaboração de uma proposta metodológica

15

construída sobre uma base crítica e intuitiva, bem como analisar em que medida os métodos

crítico-intuitivo e metalógico podem ser compreendidos como correlatos ao método

fenomenológico-crítico. (3) Analisar o conteúdo fenomenológico e suas implicações no

pensamento teológico do autor expressos nos modos em que religião e cultura se relacionam, e

identificar de que maneira a co-dependência entre religião e cultura na dinâmica da experiência

religiosa aponta para as possibilidades de aplicar a fenomenologia crítica para a análise do

fenômeno religioso na atualidade.

Para alcançar os objetivos propostos, a pesquisa seguirá metodologicamente três passos:

Primeiro, analisar os contatos iniciais do autor com a escola fenomenológica, seu

posicionamento crítico e os elementos teóricos que foram apropriados e aplicados na elaboração

de seu pensamento, tendo como fonte de pesquisa o material teórico da época como cartas,

livros e cursos ministrados. Segundo, refletir a fenomenologia crítica do autor a partir de suas

considerações ao método fenomenológico e daqueles métodos que a precederam, como o

crítico-intuitivo e o metalógico. Terceiro, identificar as implicações da fenomenologia no saber

teológico do autor, como na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, bem

como as possibilidades de aplicação de seu método fenomenológico para análise do fenômeno

religioso na atualidade.

Para tanto, a pesquisa será dividida em três capítulos: No primeiro, A recepção da

fenomenologia no pensamento teológico de Paul Tillich, o objetivo será analisar como se deu

a recepção da fenomenologia no pensamento do autor. De acordo com ele, os anos de guerra

deixaram marcas profundas em sua vida e pensamento. É neste contexto que Tillich assume

uma postura revisionista em relação ao seu período anterior e estabelece importantes diálogos

com a escola fenomenológica. As primeiras expressões desse diálogo podem ser observadas em

cartas que o teólogo escreve durante os anos de 1917-1918 em que comenta sobre seu crescente

interesse pela fenomenologia.

O segundo capítulo, Os elementos intuitivo e crítico como epicentro da fenomenologia

crítica, apresenta-se em que consiste a fenomenologia crítica do autor partindo de uma análise

dos elementos basilares que constituem o método, a saber: os elementos intuitivo e crítico. O

teólogo se apropria do método fenomenológico, mas afirma que falta a este método um

elemento crítico, que valorize os aspectos concretos e existenciais da experiência religiosa.

Dessa forma Tillich propõe unir o elemento intuitivo da escola fenomenológica com um

elemento crítico oriundo do pensamento kantiano.

16

O terceiro capítulo, Implicações e aplicabilidade da fenomenologia de Paul Tillich,

analisa quais foram as implicações da fenomenologia para o pensamento do autor e de que

maneira a fenomenologia crítica deste teólogo pode ser aplicada para análise do fenômeno

religioso na atualidade. A maneira em que Tillich aplica a noção de intencionalidade da

consciência na fundamentação de seu conceito de religião repercutiu em sua formulação dos

modos como religião e cultura se relacionam. Nesse sentido, quando a consciência se dirige

para a substância da forma, encontra-se o conceito de religião e quando a consciência se dirige

para as formas concretas de sentido encontra-se o conceito de cultura. Entretanto, forma e

substância não podem ser separadas, não faz sentido por uma sem a outra. A dinâmica interna

dos sentidos para o autor se dá necessariamente nessa relação.

Entende-se, portanto, que a possibilidade de aplicar a fenomenologia de Tillich de forma

prática passa necessariamente pela consideração da forma e substância. Dessa maneira, o

capítulo conclui apresentando as contribuições e possibilidade de aplicação do método

tillichiano para além de sua TS.

17

CAPÍTULO 1

A RECEPÇÃO DA FENOMENOLOGIA NO PENSAMENTO TEOLÓGICO DE

PAUL TILLICH

O objetivo deste primeiro capítulo, como referido inicialmente, é analisar como se deu

a recepção da fenomenologia no pensamento de Tillich. De acordo com ele, os anos de guerra

deixaram marcas profundas em sua vida e pensamento. É neste contexto que o autor assume

uma postura revisionista em relação ao seu período anterior e estabelece importantes diálogos

com a escola fenomenológica. As primeiras expressões desse diálogo podem ser observadas em

cartas que o teólogo escreve durante os anos de 1917 e 1918 em que comenta sobre seu

crescente interesse pela fenomenologia. Neste contexto, ele se apropria da noção de

intencionalidade da consciência de Edmund Husserl, e aplica este conceito na fundamentação

de seu conceito de religião. Dessa forma, os primeiros contatos de Tillich com a escola

fenomenológica acontecem principalmente através da teoria da intencionalidade e são

fundamentais para uma compreensão rigorosa do desenvolvido do seu próprio método

fenomenológico.

Para alcançar o objetivo proposto, o seguinte capítulo será construído em quatro passos.

O primeiro consiste em analisar os aspectos biográficos do período revisionista de Tillich, que

vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os últimos anos da década de 1920. Este passo

ajudará compreender os motivos que levaram o teólogo a assumir uma postura revisionista em

relação ao seu período inicial, e em torno de quais pressupostos teóricos essa revisão acontece.

O segundo passo estará voltado para a própria teoria da intencionalidade da consciência

de Edmund Husserl. Considerando que é em torno da teoria da intencionalidade da consciência

que os primeiros contatos de Tillich com a fenomenologia acontecem, compreender em que

consiste essa proposta teórica facilitará o entendimento de como o teólogo se aproximou dela.

O terceiro passo da pesquisa será analisar os contatos de Tillich com a fenomenologia,

e a apropriação que o teólogo faz da teoria da intencionalidade da consciência. Este item ajudará

entender como a fenomenologia foi recebida pelo autor e em que medida a teoria da

intencionalidade da consciência foi apropriada pelo teólogo na revisão de seu pensamento.

O quarto e último passo do capítulo visará entender a aplicação que Tillich faz da teoria

da intencionalidade da consciência na fundamentação de seu conceito de religião. Com este

passo será possível observar qual o papel que a teoria da intencionalidade da consciência

18

desempenha no pensamento do autor e quais foram as implicações de sua utilização para outros

aspectos do pensamento dele, como a formulação dos modos em que religião e cultura se

relacionam e a posterior elaboração de um método fenomenológico.

1.1 Época de guerras: o período revisionista de Paul Tillich

Conhecer a biografia e o percurso acadêmico de Paul Tillich, embora já bem

apresentadas em outras pesquisas2, é um passo importante para entender de forma mais rigorosa

as inquietações e pressupostos que fundamentam seu pensamento teológico e filosófico. Nesse

sentido, para cumprir com os objetivos propostos nesta primeira parte da pesquisa torna-se

necessário compreender alguns aspectos biográficos do período revisionista de Tillich e que

será também o contexto de seu encontro com a escola fenomenológica.3

Tillich (1886-1965) foi um pensador de fronteiras, com grande habilidade para lidar

com áreas diferentes do conhecimento sempre de maneira séria e profunda. Ele entendia que

para cumprir com as exigências de receptividade que o pensamento pressupõe diante das

possibilidades que se abrem na vida, estar na fronteira é o melhor dos lugares para adquirir

conhecimento, tanto que segundo ele, a fronteira poderia constituir um símbolo adequado para

toda a sua evolução pessoal e intelectual (TILLICH, 1967 [1936], p. 13).

2TILLICH, Paul. On the Boundary: an autobiographical sketch [1936]. London: Collins, 1967; TILLICH, Paul.

What Am I? in My search for Absolutes. New York: Simon and Shuster, 1967; TILLICH, Paul. My Travel Diary:

1936. Between two worlds. [1936]. New York: Harper & Row, 1970. PAUCK, Wilhelm; PAUCK, Marion. Paul

Tillich: His Life and Thought, vol. I, Life, New York: Harper and Row, 1976; - MUELLER, Ênio. Paul Tillich:

vida e obra, in MUELLER, Ênio R; BEIMS, Robert W. (org.). Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul

Tillich em perspective interdisciplinar. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005. CALVANI, Carlos E. B. Paul Tillich:

aspectos biográficos, referenciais teóricos e desafios teológicos, in MARASCHIN, Jaci (ed.). Paul Tillich: Trinta

anos depois. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 1995. RIBEIRO, Cláudio de

Oliveira. Teologia no plural: fragmentos biográficos de Paul Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, São Paulo,

v. 2, n. 3, p. 03-26, abr. 2003. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-

metodista/index.php/COR/article/view/1798/1783 > ; PARELLA, Frederik. Vida e espiritualidade no pensamento

de Paul Tillich. Revista Eletrônica Correlatio, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 48-70, nov. 2004. Disponível em:

<https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/COR/article/view/1764/1750>.

3Christian Danz (DANZ, 2009, p. 173-188) propõe uma periodização do percurso acadêmico de Tillich em três

momentos. A recepção entusiástica do idealismo de Fichte e Schelling que marca profundamente seu período de

formação e se estende até o final da Primeira Guerra Mundial. Um segundo momento que começa no fim da

Primeira Guerra Mundial e vai até os últimos anos da década de vinte em que Tillich assume uma postura

revisionista em relação ao seu período anterior e passa a reformulá-lo na forma de uma nova teoria do sentido, e

posteriormente um período marcado por questões ontológicas, mas que conserva a teoria do sentido, que vai dos

anos vinte até a Teologia Sistemática.

19

Em sua autobiografia o autor menciona doze fronteiras e destaca uma em particular que

considera mais significativa, a saber, a fronteira entre teologia e filosofia. De acordo com ele,

é nesta fronteira onde se percebe com maior nitidez a situação fronteiriça a partir da qual ele

tenta explicar sua vida e pensamento (TILLICH, 1967 [1936], p. 46). Quando assumiu a cátedra

de Teologia Filosófica no Union Theological Seminary, nos Estados Unidos, o teólogo declarou

numa conferência que nenhum outro nome se aplicaria tão bem a ele quanto o de teologia

filosófica, e prosseguiu dizendo que a linha fronteiriça entre filosofia e teologia era o centro de

todo seu trabalho e de seu pensamento. Tillich diz que “como teólogo procurei continuar sendo

filósofo e como filósofo teólogo. Seria mais fácil abandonar a fronteira e escolher uma ou outra.

Mas interiormente este caminho foi impossível. Felizmente, as oportunidades exteriores

coincidiram com minhas inclinações internas”4 (TILLICH, 1967 [1936], p. 58, tradução

nossa)5.

Em 1914, com o início da Primeira Guerra Mundial, passa a integrar o exército alemão

na condição de capelão, cargo que exercerá até o fim da guerra. Quando a guerra foi anunciada,

muitos jovens alemães movidos pelo fervor nacionalista se prontificaram para lutar, “Quando

os soldados alemães entraram na Primeira Guerra Mundial, a maioria deles compartilhavam a

crença popular em um Deus bom que faria tudo funcionar para o melhor”6 (TILLICH, 2005b

[1955], p. 52). Semelhantemente, o jovem teólogo aceitou o cargo de capelão com entusiasmo,

e assumiu o compromisso de lutar ao lado de outros soldados alemães. Entretanto, o autor

afirma que “Não tinham se passado nem as primeiras semanas para que meu entusiasmo inicial

desaparecesse. Depois de alguns meses, eu estava convencido de que a guerra seria por tempo

indefinido e arruinaria toda a Europa”7 (TILLICH, 1956 [1952], p. 12).

Durante a guerra, Tillich conduziu diversos momentos cúlticos sob as árvores, ou em

cavernas e em trincheiras, e cultivou boas amizades entre os soldados e oficiais alemães. O

período inicial da guerra foi marcado por uma atmosfera mais tensa, de espera e tédio, mas em

outubro de 1915 os exércitos alemães atacaram nas proximidades de Tahure, muitos oficiais e

4As a theologian I have tried to remain a philosopher, and vice versa. It would have been easier to abandon the

boundary and to choose one or the other. Inwardly this course was impossible for me. Fortunately, outward

opportunities matched my inward inclinations.

5Todas as traduções de textos em língua estrangeira para o português, salvo quando houver menção do contrário,

são nossas.

6When the German soldiers went into the First World War most of them shared the popular belief in a nice God

who would make everything work out for the best

7 The first weeks had not passed before one’s original enthusiasm disappeared; after a few months I became

convinced that the war would last indefinitely and ruin all Europe.

20

inúmeros homens foram mortos e Tillich fazia o acompanhamento pastoral. Considerando esse

contexto, no final de novembro de 1916, o teólogo escreve uma carta para Maria Klein. O casal

Pauck, na obra Paul Tillich: His Life & Thought. Vol1: Life (1976, p. 51) a reproduz:

Tenho constantemente o sentimento mais imediato e muito forte de que não

estou mais vivo. Portanto, não levo a vida a sério. Encontrar alguém, tornar-

se alegre, reconhecer Deus, todas essas coisas são coisas da vida. Mas a

própria vida não é um chão confiável. [...] Prego quase exclusivamente "o

fim".... De vez em quando, supero todo o sofrimento, colando imagens em

livros e trabalhando cientificamente em um sistema de ciências8.

Durante a guerra, o teólogo conta que encontrou no mundo das artes um alívio para

aquele momento conturbado. A descoberta da pintura representou para ele uma experiência

crucial, mesmo as pobres reproduções que se podia encontrar nas livrarias militares,

possibilitaram um deleite que se tornou mais tarde num estudo sistemático da história da arte.

“Fruto deste estudo foi a experiência artística; lembro nitidamente meu primeiro encontro –

quase uma revelação – com um quadro de Botticelli, que teve lugar em Berlim durante minha

última licença”9 (TILLICH, 1967 [1936], p. 28). A partir de algumas reflexões de caráter

filosófico e teológico que seguiram estas experiências, o autor desenvolveu algumas categorias

fundamentais da filosofia da religião e da cultura, a saber: forma e substância.

O interesse de Tillich pela arte o aproximou bastante com a Igreja Católica Romana. De

acordo com o teólogo, o profundo impacto que a arte do cristianismo primitivo da Itália exerceu

sobre ele resultou numa crescente preferência pela antiga Igreja e as soluções que ela oferecia

aos problemas teológicos tais como Deus e o mundo, a Igreja e o Estado, e afirma também que,

o estudo da história eclesiástica, por intenso que tenha sido, jamais teria conseguido o que

conseguiram os mosaicos das antigas basílicas romanas (TILLICH, 1967 [1936], p. 29).

No início da guerra, Tillich era um jovem tímido, verdadeiramente um “inocente

sonhador”. Era um patriota alemão, orgulhoso e ansioso por lutar pelo seu país como muitos

jovens da época, mas “Quando retornou a Berlim quatro anos mais tarde, ele estava

completamente transformado. O monarquista tradicional torna-se um socialista religioso, o

8 I have constantly the most immediate and very strong feeling that I am no longer alive. Therefore I don’t take

life seriously. To find someone, to become joyful, to recognize God, all these things are things of life. But life

itself is not dependable ground [...] I preach almost exclusively “the end”… Now and then I overcome all the

suffering by pasting pictures into books and working scientifically on a system of the sciences.

9 And out of this study came the experience of art; I recall most vividly my first encounter – almost a revelation –

with a Botticelly painting in Berlin during my last furlough of the war.

21

crente cristão um pessimista cultural, e o menino puritano reprimido um ‘homem selvagem”10

(PAUCK. M e PAUCK. W, 1976, p. 41).

Os anos de guerra representam um momento de transformação na vida e pensamento do

autor, e, como descreveu o próprio teólogo, a Primeira Guerra Mundial foi o fim do seu período

de preparação (TILLICH, 1956 [1952], p. 12)11. A trágica experiência de guerra causou fortes

impactos em Tillich e foi decisiva para o rumo que sua carreira acadêmica iria tomar. Anos

mais tarde numa entrevista à revista Time, Tillich faz uma afirmação que se tornou célebre:

A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve

um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa a não ser caminhar

entre os feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos.

Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que

morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica rui em

pedaços. A convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência

do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência. [...] Lembro-

me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou

Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em

contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da

heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche,

‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo

morto12 (TILLICH, 1959, p. 47).

10 When he returned to Berlin four years later he was utterly transformed. The traditional monarchist had become

a religious socialist, the Christian believer a cultural pessimist, and the repressed puritanical boy a “wild man”

11 O período de preparação refere-se sobre tudo à formação do teólogo. Tillich ingressa à universidade em 1904.

Durantes os anos de formação, Tillich estudou teologia e filosofia em Berlim, Tübingen e Halle. Na universidade

de Halle Tillich teve contato com Martin Kahler e Fritz Medicus. O contato de Tillich com estes dois pensadores

será decisivo nas inclinações acadêmicas que seu pensamento terá neste período. Kahler era um professor de

teologia bastante popular na época e por quem Tillich entusiasmou-se fortemente, principalmente por suas

discussões sobre a ideia bíblico-luterana de justificação. Na filosofia, Tillich recebeu orientação do professor e

amigo Fritz Medicus (1876 – 1956) e por influência deste, dá início a intensos estudos sobre a filosofia de Fichte,

e em agosto de 1910, Tillich profere uma palestra inaugural na Universidade de Breslau intitulada “A Liberdade

como Princípio Filosófico em Fichte” (Die Freiheit als philosophisches Prinzip bei Fichte). Neste mesmo ano,

Tillich conclui seu doutorado em filosofia na Universidade de Breslau, defendendo a tese sobre “A construção da

história da religião na filosofia positiva de Schelling, seus pressupostos e princípios” (Die Religionsgeschichtliche

Konstruktion in Schellings Positiver Philosophie, ihre Voraussetzungen und Prinzipien). Em 1912 licenciou-se

em Teologia na Universidade de Halle sob a tese “Mística e consciência de culpa no desenvolvimento filosófico

de Schelling” (Mystik und Schuldbewusstsein in Schellings Philosophischer Entwicklung) e em 1915, nessa mesma

universidade, Tillich apresenta seu trabalho de livre-docência sobre “O conceito de sobrenatural, seu caráter

dialético e o princípio de identidade na teologia Sobrenaturalista antes de Schleiermacher” (Der Begriff des

Übernatürlichen, sein dialektischer Charakter und das Prinzip der Identität, dargestellt an der

supranaturalistischen Theologie vor Schleiermacher).

12But he real transformation happened at the Battle of Champagne in 1915. A night attack came, and all night long

I moved among the wounded and dying as they were brought in – many of them my close friends. All that horrible,

long night I walked along the rows of dying men, and much of my German classical philosophy broke down that

night – the belief that man could master cognitively the essence of his being, the belief in the identity of essence

and existence [...] I well remember sitting in the woods in France reading Nietzsche’s Thus Spoke Zarathustra, as

many other German soldiers did, in a continuous state of exaltation. This was the final liberation from heteronomy.

European nihilism carried Nietzsche’s prophetic word that ‘God is dead.’ Well, the traditional concept of God was

dead.

22

Diante da guerra, grande parte do otimismo presente na cultura europeia entrou em

colapso, juntamente com o tradicional conceito de Deus. Tillich havia encontrado a libertação

final deste conceito no dito profético de Nietzsche: não havia mais lugar para tal conceito diante

daquela realidade. De acordo com o teólogo “A consequência mais importante do símbolo da

morte de Deus é a queda do sistema de valores éticos em que se baseava a sociedade. [...] A

ideia quer dizer que morreu na consciência do homem a ideia tradicional do absoluto ou

supremo” (TILLICH, 2010, p. 209). O autor (1967 [1936], p. 56) comenta que ficou

entusiasmado com a filosofia da vida de Nietzsche, pois sua afirmação extática da existência o

atraiu novamente à paixão pela vida. A ideia do Deus que faria tudo dar certo perdeu seu poder

e precisa ser substituída. Pauck e Pauck (1976, p. 54) relatam outra carta de Tillich, para Maria

Klein, de dezembro de 1917, onde ele escreve: “Há muito tempo que venho ao paradoxo da fé

sem Deus, ao levar a ideia de justificação pela fé à sua conclusão lógica13”.

Os quatro anos de guerra, relata o teólogo, “revelaram, como aconteceu com toda minha

geração, um abismo na existência humana que não podia ser ignorado”14 (TILLICH, 1967

[1936], p. 52). O autor afirma que “A Primeira Guerra Mundial teve consequências desastrosas

para o pensamento idealista em geral. Também a filosofia de Schelling resultou afetada pela

catástrofe”15 (TILLICH, 1967 [1936], p. 52). Em meio a este caos, o teólogo assume uma

postura revisionista em relação a seu período de preparação e dá início a um novo momento em

seu percurso acadêmico.

Tillich assume uma postura de revisão dos fundamentos de sua teologia e filosofia e

como o próprio teólogo afirma, este processo aconteceu “[...] em um diálogo crítico com o

neokantismo, a filosofia do valor e a fenomenologia”16 (TILLICH, 1967 [1936], p. 53). A

presença da fenomenologia no pensamento do autor após este período se torna evidente. Tillich

comenta numa carta para Emanuel Hirsch em 1917 que estava lidando “energicamente com a

filosofia moderna”17 (TILLICH, 1983 [1917], 98-99), e afirma que “De forma mais energética

possível me dediquei à lógica, a Husserl, Lotze, Sigwart, Windelband e Lask. Como nova

13I have long since come to the paradox of faith without God, by thinking through the idea of justification by faith

to its logical conclusion.

14revealed to me and to my entire generation an abyss in human existence that could not be ignored.

15 World War I was disastrous for idealistic thought in general. Schelling’s philosophy was also affected by this

catastrophe.

16[...] in critical dialogue with neo-Kantianism, the philosophy of value, and phenomenology.

17 habe die moderne Philosophie energisch in Angriff genommen.

23

ciência eu conheci a estética nas obras volumosas de Hartmann, Lipps, etc”18 (TILLICH, 1983

[1917], p. 99).

De acordo com Danz (2009, p. 177), Tillich encontra-se, neste período, dialogando com

os principais representantes do debate contemporâneo sobre as teorias do sentido, e de maneira

especial com o neokantismo e a fenomenologia. É nesta atmosfera que a reformulação de seu

pensamento se constrói. Para Danz, esta fase demarca o momento em que Tillich começa a

desenvolver sua teoria idealista neokantiana do sentido, que irá constituir a estrutura conceitual

fundante não apenas de seu período intermediário como também de suas produções posteriores.

A categoria de sentido torna-se, portanto, um elemento característico deste período, e “A

influência da fenomenologia de Husserl no desenvolvimento da filosofia de consciência e

sentido de Tillich é, portanto, bastante notável”19 (ABREU, 2017, p. 10).

Para Tillich (1962 [1956], p. 74) “A fenomenologia veio a ser de importância decisiva

para a filosofia do século XX. Ela surgiu, como já indicamos anteriormente, dos Estudos

Lógicos de Husserl que apareceram na virada do século e que representaram uma verdadeira

mudança no movimento filosófico”20. Abreu afirma que na medida em que Tillich se apropria

das principais características da fenomenologia husserliana fica evidente que a filosofia de

Tillich “deve ser interpretada como uma construção sistemática entre a tradição idealista

neokantiana e a escola fenomenológica-psicológica de Husserl”21 (ABREU, 2017, p. 11).

O contato do teólogo com a fenomenologia de Husserl, durante os anos de guerra, se

tornou, portanto, um fator estruturante no processo de reformulação de seu pensamento. De

acordo com Thomas (2000), Husserl foi um dos filósofos que mais impressionou Tillich neste

momento de reformulação de seu pensamento. Da mesma forma, Thomas relata que no verão

antes da morte de Tillich, numa conversa que teve com o teólogo durante um ciclo de palestras

ministradas no Union Theological Seminary, Tillich “aplaudiu meu plano de começar com a

18 Am energischsten habe ich mich auf die Logik geworfen, Husserl, Lotze, Sigwart, Windelband, Lask. Als neue

Wissenschaft habe ich die Ästhetik kennen gelernt in dicken Banden von Hartmann, Lipps etc.

19 The influence of Husserl’s phenomenology in the development of Tillich’s philosophy of consciousness and

meaning is, thus, quite remarkable

20 Phenomenology came to be of decisive importance for the philosophy of the twentieth century. It arose, as we

have previously indicated, out of Husserl’s Logical Studies which appeared at the turn of the century and which

represented a real turn in the philosophical movement.

21 is to be interpreted as a systematic building standing between the idealist-neo-Kantian tradition and the

Husserlian phenomenological-psychological school

24

fenomenologia de Husserl, descrevendo-se como parte de uma geração de pensadores salvas

por Husserl do naturalismo”22 (THOMAS, 2000, p. 51).

Ao retornar da guerra, o teólogo se depara com um contexto que ele mesmo descreve

como um “caos criativo”. Nos anos que se seguiram, Tillich se torna Privatdozent na

Universidade de Berlim (1919 a 1924) e lecionou sobre assuntos que incluíram a relação da

religião com a política, arte, filosofia, psicologia e sociologia. Além dos grandes avanços

teóricos, uma vasta quantidade de material acadêmico é produzido neste momento, de acordo

com Tillich (1956 [1952], p. 13) “A situação durante esses anos em Berlim foi muito favorável

para tal empreendimento”23. Os anos de 1919 a 1933 foram os anos em que o autor produziu

praticamente todos os seus textos do período alemão. Muitos deles como “Ideias para uma

teologia da cultura” (1919), “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”

(1922), “Filosofia da Religião” (1925) entre outros, trazem menções explícitas à escola

fenomenológica e foram descritos por Tillich como “passos decisivos na minha estrada

cognitiva”24 (TILLICH, 1956 [1952], p. 15).

Esse período de reformulação marca, portanto, uma nova fase no pensamento teológico-

filosófico de Tillich, de modo que levá-lo em consideração é fundamental para uma

compreensão rigorosa de sua produção intelectual posterior. Embora este período como um

todo mereça ser cuidadosamente analisado, o importante para os objetivos desta pesquisa é o

contato de Tillich com as ideias de Husserl e a escola fenomenológica, mas sem com isso

obliterar o escopo maior de seu período revisionista.

1.2. A teoria da intencionalidade da consciência de Edmund Husserl

Para Husserl (2006, p. 189) a intencionalidade é um tema fenomenológico capital, pois

“Ela é uma peculiaridade da essência da esfera dos vividos em geral, visto que de alguma

maneira todos os vividos participam da intencionalidade”. Husserl (2006, p. 190) afirma

também que “a intencionalidade é aquilo que caracteriza a consciência em sentido forte, e que

22 He applauded my plan of beginning with Husserl’s phenomenology, describing himself as one of a generation

of thinkers saved by Husserl from naturalism.

23 The situation during these years in Berlin was very favorable for such an enterprise.

24 These were decisive steps on my cognitive road.

25

justifica ao mesmo tempo designar todo o fluxo de vivido como fluxo de consciência e como

unidade de uma única consciência”. Para Husserl, toda consciência é consciência de alguma

coisa, e por conta disso, a consciência é necessariamente intencional, ou seja, o ser humano

sempre tem consciência de alguma coisa do mundo que se apresenta a sua consciência

fenomenicamente.

Dessa forma, todo estado de consciência em geral é, em si mesmo, consciência

de alguma coisa, qualquer que seja a existência real desse objeto e seja qual

for a abstenção que eu faça, na atitude transcendental que é minha, da posição

dessa existência e de todos os atos da atitude natural. Em consequência, será

necessário ampliar o conteúdo do ego cogito transcendental, acrescentar-lhe

um novo elemento e dizer que todo cogito, ou ainda todo estado de

consciência, “assume” algo, e que ele carrega em si mesmo como “assumido”

(como objeto de uma intenção) seu cogitatum respectivo. Cada cogito, de

resto, o faz à sua maneira (HUSSERL, 2001, p. 50-51).

A fenomenologia se volta para a intencionalidade da consciência como uma “visada”

de sentido. O vivido, como esta consciência dotada de sentido, de acordo com o filósofo, pode

ser tanto o percebido, sentido como recordado, pois a intencionalidade da consciência é uma

“propriedade dos vividos de ‘ser consciência de algo’” (HUSSERL, 2006, p. 190). Este “algo”

ou alguma “coisa” de que se possa estar consciente, de acordo com Fink pode ser “qualquer

coisa que possa ser trazido à vista, seja algo real, um ideal, um horizonte, um sentido, uma

referência-de-sentido, o nada, etc.”25 (FINK, 1933, p. 330).

A intencionalidade da consciência, portanto não diz respeito somente aquilo que é

objetivamente encontrável no espaço objetivo, “[...] a consciência é o horizonte intranscendível

(sic) que transcende e contêm todas as partes, todas as subdivisões e todas as relações entre as

coisas...” (SEVERINO, 1987, p. 207). Para Husserl (2001, p. 60) a vida é um cogito universal,

que abrange sinteticamente todos os estados da consciência que possam surgir dessa vida, e que

possui o seu cogitatum universal, que por sua vez se encontram fundados de maneiras diferentes

em múltiplos cogitata particulares. A intencionalidade da consciência, como este “estar

direcionado para”, se refere, portanto, a esta ligação que o ser humano tem com o mundo, com

a vida, ligação esta que é inalienável, porque o ser humano sempre está voltado para algo,

direcionado para o mundo numa relação que é infatigavelmente posta.

O mundo nesse sentido funciona sempre como um solo, como uma presença inalienável.

O contato com o mundo coloca o ser humano diante de muitas experiências fenomênicas, ou

25alles und jedes, was an ihm selbst zu Gesicht gebracht wird, sei es ein Reales, ein Ideales, ein Horizont, ein Sinn,

eine Sinnesverweisung, das Nichts usw.

26

seja, a consciência é presenteada com aparições das mais diversas ordens, que se constituem

como fenômeno exatamente porque aparecem à consciência numa relação intencional.

Entretanto, “Deve-se observar que não se está falando aqui de uma referência entre um evento

psicológico qualquer – chamado vivido – e uma outra existencial real – chamada objeto, ou de

um vínculo psicológico entre um e outro que se daria na efetividade objetiva” (HUSSERL,

2006, p. 89, grifo do autor).

Para a fenomenologia husserliana, não é possível a existência de um pensamento que

não esteja relacionado com o objeto do qual se pensa. É neste relacionar-se dos objetos com as

pessoas que se torna possível a constituição do “eu”. É nessa relação com o mundo que se

constitui um jeito de viver ou um modo de habitar, pois tudo que existe está nessa relação

consciência-objeto. Este mundo se constitui, no solo das possibilidades das percepções

humanas e de construção de sentido de mundo, este é, portanto, o mundo da vida26, um mundo

que é construção da experiência humana e que só às pessoas faz sentido.

Este mundo é, portanto, a fonte de consciência que é uma consciência voltada,

decorrente, que está necessariamente ligada ao mundo. Nesse sentido, o ser e o mundo não são

coisas que se podem separar, pois tudo que existe se dá nessa relação, nessa unidade entre o ser

e o fenômeno. O fenômeno só se constitui propriamente fenômeno diante do ser humano, é a

partir dessa relação que o ser humano estabelece com o mundo é que se pode falar em

fenômeno. Existe, portanto, um solo do mundo vivido e só há sentido em falar de fenômeno

diante da consciência27.

26 O conceito de mundo da vida (Lebenswelt) aparece na última fase do pensamento de Husserl, depois de 1930.

Uma das principais expressões dessa fase são os escritos da crise em que o conceito de mundo da vida é posto em

oposição ao mundo das ciências. De acordo com Husserl (2012) a ciência objetivista incorreu no erro de tomar o

“mundo objetivo” como sendo o universo de todo o existente, desconsiderando com isso, que a subjetividade

criadora da ciência não pode ter seu lugar legítimo em ciência objetiva alguma. “Mas o investigador da natureza

não se dá conta de que o fundamento permanece de seu trabalho mental, subjetivo, e o mundo circundante

(Lebensumwelt) vital, que constantemente é pressuposto como base, como o terreno da atividade, sobre o qual suas

perguntas e seus métodos de pensar adquirem um sentido” (HUSSERL, 2012, p. 86). Comentando sobre esta fase

Josgrilberg afirma que a Krisis é uma obra que se propõe a desdobrar a questão da historicidade transcendental do

sentido e sua permanência na história como tradição e linguagem. Esta fase apresenta uma nova forma de fazer

fenomenologia que retoma as outras fases em um novo contexto, o arsenal da fenomenologia é transferido em

bloco para o centro do mundo vivido. “O próprio mundo vivido carrega com ele a transcendentalidade constitutiva

em forma de expressividade linguística, historicidade, corporeidade, alteridade, intersubjetividade, etc. como

estrutura desse mundo. O que mudou foi a abordagem transcendental que sofre uma “encarnação” com a terra, a

sociedade, a história, a linguagem. [...] A vida histórica pode ser entendida (sem querer limitar a história a esse

aspecto) como história de formação do sentido; ou seja, como uma forma de encarnação linguística do significado

sem perder por isso sua dimensão transcendental e universal em relação ao Lebenswelt, que é o que garante para

Husserl a possibilidade de ciência” (JOSGRILBERG, 2002, p. 262).

27Vale lembrar que não se pode entender que a fenomenologia anunciada assim por Husserl, possa ser

compreendida como um fenomenismo, significando isso, aquela ideia de que só existe o que aparece a consciência,

27

Não há, portanto, consciência separada de mundo no sentido que lhe foi dado

especificamente em Descartes. Para o filósofo, “Infelizmente, é o que acontece com Descartes,

um resultado de uma confusão, que parece pouco importante, mas acaba sendo muito funesta,

e faz do ego como uma substantia cogitans separada, uma mens sive animus humano, ponto de

partida de raciocínios de causalidades” (HUSSERL, 2001, p. 42). A consciência nestas

circunstâncias fica numa posição radicalmente distinta em relação aos objetos, sendo ela

também, apenas uma “coisa que pensa”. Husserl nesse sentido vai além da dicotomia moderna

entre sujeito e objeto. Essa vinculação necessária entre sujeito e objeto permite compreender

que a consciência e aquilo que aparece à consciência estão estritamente inter-relacionadas por

meio da vivência.

No vivido a consciência sempre se volta ao seu objeto intencionalmente e a essência

deste vivido não se encontra nem no objeto nem na consciência, mas neste “entre” vivencial.

Dessa forma, para Husserl, o vivido intencional não acontece senão nessa relação sujeito-

objeto, transcendente-transcendental. O conhecimento, tal como concebido em grande parte

pela filosofia, perde seu caráter dualista no sentido de que a consciência que conhece e o objeto

conhecido são duas coisas que podem se dar de maneira separada. Husserl por outro lado, ainda

que entenda que um não pode ser tomado sem o outro, afirma que esta polarização apresenta

uma distinção fundamental para a intencionalidade, “qual seja, a distinção entre componentes

próprios dos vividos intencionais e seus correlatos intencionais, ou os componentes destes”

(HUSSERL, 2006, p. 203, grifo do autor). Toda vivência intencional, portanto, está constituída

por dois polos correlacionados que podem ser distinguidos entre noese e noema.

Para o filósofo, a noese, constitui o específico do nous (sentido), “que nos remete,

segundo todas as suas formas atuais de vida, a cogitationes e a vividos intencionais em geral

[...] que é pressuposição eidética da ideia de forma” (HUSSERL, 2006, p. 195, grifo do autor).

De acordo com o autor, todo o vivido intencional é vivido noético, e é de sua essência guardar

em si mesmo algo como um “sentido”, e, por vezes, um sentido múltiplo. “São exemplos de

tais momentos noéticos: os direcionamentos do olhar do eu puro para o objeto ‘visado’ por ele

em virtude da doação de sentido, para aquele objeto que ‘não lhe sai do sentido’ (HUSSERL,

pois essa é uma radicalidade que talvez se aproximaria ao cartesianismo quando defende a ideia de que a rigor só

existe o que é pensado. Para Husserl, a fenomenologia como estudo destes fenômenos que se apresentam a

consciência tem por finalidade estudar, compreender, o que ele chama de vivências da consciência, ou os sentidos

das vivências da consciência

28

2006, p. 203). A noese dessa forma se caracteriza pelo ato intencional de “visar” e fazer com

que a coisa “visada” cobre sentido, ou seja, trata-se do dar sentido a uma vivência.

Entretanto, toda vivência intencional por sua vez possui um sentido objetivo, isto é, um

componente real e intencional do vivido. A este polo o autor denominou noema, “[...] o campo

fundamental da fenomenologia” (HUSSERL, 2006, p. 118, grifo do autor). O noema é aquilo

que na coisa é “visado”, isto é, aquilo que na coisa se é consciente “exatamente assim como ele

está contido de maneira ‘imanente” no vivido de percepção, de julgamento, de prazer etc., isto

é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogamos puramente esse vivido mesmo (HUSSERL,

2006, p. 204). O noema, portanto é o objeto intencional, àquilo que é objetivado nos atos da

consciência e que aparece efetivamente e exatamente na maneira de se dar pela qual se tem

consciência dele na percepção. “Aos múltiplos dados do conteúdo real, noético, corresponde

uma multiplicidade de dados, mostráveis em intuição pura efetiva, num ‘conteúdo noemático’

correlativo ou, resumidamente, no ‘noema’” (HUSSERL, 2006, p. 203, grifo do autor).

Noese e noema estão correlacionados e compõem uma vivência, “Pois não há momento

noético algum sem um momento noemático que pertença especificamente, é o que reza a lei

eidética que pode ser comprovada onde quer que seja”. (HUSSERL, 2006, p. 214, grifo do

autor). O componente real do ato e seu correlato estão necessariamente relacionados entre si

pelo fato de que a vivência como tal pode sempre guardar um sentido. Noese e noema

constituem uma estrutura paralela correlacionada que permite conhecer tanto o objeto real como

o correlato de sentido, dessa forma, a partir da correlação destes polos é possível descrever as

sínteses de toda consciência, ou seja, afirmar a unidade entre cogitatio e cogitatum é afirmar a

constituição de uma unidade doadora de sentido instituída em toda intencionalidade.

A intencionalidade ao colocar o ser humano nessa vinculação permanente com o mundo

o coloca necessariamente neste movimento de noese e noema. O ser humano sempre está diante

de objetos que se apresentam a ele como desafios, como estímulos à suas experiências de

construir conhecimento, construção essa que dá aos objetos a condição de novos sentidos.

Quando se fala em mundo ou “mundo da vida”, usando uma terminologia husserliana, deve-se

entender por isso não o mundo da natureza, mas este mundo que é produto dessa experiência

intencional, ou seja, um mundo que decorre de um sentido que se dá a própria experiência de

viver no mundo. O mundo é, portanto, esta experiência de viver e que permite transformar-se

pelas pessoas.

29

A intencionalidade se fundamenta, portanto, na consciência que percebe alguma coisa e

o dota de sentido. “Tão-somente noutras palavras: ter sentido ou ‘estar com o sentido voltado

para’ algo é o caráter fundamental de toda consciência, que, por isso não é apenas vivido, mas

também vivido que tem sentido, vivido ‘noético’” (HUSSERL, 2006 p. 206-207). Toda

consciência intencional é, portanto, um “visar” algo, um orientar-se até a coisa.

De modo que quando se fala em intencionalidade, se fala de uma maneira, de uma

experiência de como os corpos sentem o mundo, de como as pessoas sentem o mundo. A

intencionalidade é dessa forma uma experiência de sentir o mundo. Posteriormente destaca-se

a direção, a intencionalidade enquanto possibilidade de dar sentido a própria presença no

mundo, isto é, de existir numa certa direção. A consciência enquanto aquilo que atribui sentido

às coisas aponta para o fato de que perceber o objeto, é percebê-lo dentro de uma experiência

que tem valor existencial. Portanto é a percepção das coisas da natureza, dos próprios objetos

criados pelos seres humanos com alguma finalidade, é a percepção dessas coisas dentro de uma

experiência de viver. E por fim, a cogitação, a interpretação é sempre intencional, está sempre

ligada ao mundo e decorre sempre de uma maneira de como se vê o mundo e o modo de como

isso orienta o rumo que se dá ao existir.

A intencionalidade é, portanto, essa ligação que faz que o mundo seja muito mais que

um lugar geográfico, ou pura e simplesmente “coisas da natureza”. Ele é uma organização de

um sentido intuído, construído, nesta relação dos corpos entre as pessoas, e este sentido não é

um falseamento ou distanciamento do mundo. Antes, este sentido é a própria realidade, um jeito

de ser que se apresenta como possível, até que novos sentidos sejam desenhados. Em outras

palavras, há uma consciência que se constitui como consciência porque está voltada ao mundo,

e o objeto é objeto porque é percebido como tal pela consciência. Dessa forma, a consciência

que é “sempre consciência de algo”, é também um testemunho da intencionalidade, e por

consequência, dessa inevitável ligação que se tem com o mundo.

Este é o mundo da vida, mundo que decorre das vivências intencionais, solo de intuição

da essência que permite dizer novas coisas sobre o mundo e de construir novos conhecimentos

sobre a realidade. Retornar as coisas mesmas é a condição permanente de se lembrar dessa

vinculação, entre esse trabalho que a consciência faz de elaborar significativamente,

existencialmente a aparição do mundo a ela, trata-se de uma tentativa de se colocar nessa trama,

sem pressupostos, de modo que se possa olhar a realidade como solo de possibilidade de novas

intuições.

30

1.3. Contatos com a escola fenomenológica e a apropriação da noção de

intencionalidade da consciência

1.3.1. Carta a Richard Wegener e os primeiros contatos com a escola

fenomenológica

Durante a época de guerra Tillich enfrentou sérios problemas de saúde de modo que em

agosto de 1917 outro capelão foi enviado para auxiliá-lo. O teólogo relata que desde então

dispôs de mais tempo para o trabalho científico e pode dedicar-se mais à revisão de seu próprio

pensamento. Em agosto de 1917, ele escreve uma carta para seu amigo Richard Wegener. No

início da carta, referindo-se a Husserl, Tillich diz:

Nessas três semanas eu o tive [trabalho científico] e aproveitei de manhã cedo

até tarde, de modo que já ontem eu consegui terminar o Husserl inteiro! Eu

aprendi muitas coisas através disso; primeiramente e antes de tudo a

profundidade total do meu não-saber (Nicht-Wissens) em relação aos

problemas e métodos e também os méritos verdadeiros da nossa filosofia28

(TILLICH, 1983 [1917], p. 90).

Na sequência, o autor afirma que essa postura de diálogo diante do pensamento atual

deve-se se esperar de todo teólogo e filósofo científico, e acrescenta ainda que “Uma coisa é o

conhecer, outra coisa é ser-dependente; e esta dependência, que se chama ‘estar no tempo’

certamente tem que ser exigida, já para que, com isto, torna-se entendido”29 (TILLICH, 1983

[1917], p. 90). De acordo com Neugebauer (2011, p. 39), Tillich se torna consciente, durante

os anos de guerra, das limitações e insuficiências de sua teoria para lidar com os discursos

científicos, culturais e espirituais de seu tempo, e nesse contexto, a fenomenologia de Husserl

foi por ele recebida de forma especial.

Ainda na carta, o teólogo destaca o fato de ter começado a aprender a entender o conceito

de filosofia científica, “É verdadeiramente ciência acadêmica e, até mesmo, no melhor sentido,

escolástica, a saber, esclarecimento de conceitos. Especialmente, isto se aplica aos

28In diesen drei Wochen habe ich sie gehabt und von früh bis spät ausgenutzt, so daß ich gestern schon mit dem

ganzen Husserl fertig wurde! Ich habe mancherlei dadurch gelernt; zuerst und vor allem die ganze Tiefe meines

Nicht-Wissens in Bezug auf die Probleme und Methoden und auch wirklichen Leistungen unserer Philosophie.

29Etwas anderes ist, es Kennen, etwas anderes, Abhängig-Sein; und diejenige Abhängigkeit, die man „Stehen in

der Zeit" nennt, ist doch wohl zu verlangen, schon damit man verstanden wird.

31

fenomenólogos, cujo trabalho inteiro se volta para o significado dos conceitos atuais”30

(TILLICH, 1983 [1917], p. 90). Na continuação da carta o teólogo comenta que a ciência muitas

vezes tende a se concentrar numa determinada área e com um método específico, e que mesmo

preservando certa criatividade, há sempre um recorte do mundo, “são pesquisas, assim, são

apenas teorias aplicadas; elas não contêm criação, mas meramente axiomas criados tornados

normativos de funções técnicas e espirituais31”32 (TILLICH, 1983 [1917], p. 90). Para o autor,

este olhar voltado apenas para um aspecto da realidade é possível, mas não precisa ser

necessariamente assim, diante disso o autor pergunta se a ciência “tem o direito de tratá-la de

forma diferente do que objetivantes, do que conjunto de fatos?”33 (TILLICH, 1983 [1917], p.

91).

Na parte final da carta Tillich faz algumas considerações sobre a teologia católica e a

dialética do protestantismo, demonstrado certo entusiasmo com ambos, e finaliza com um

pedido de alguns livros, entre eles, o livro de Husserl, embora este último Tillich diz que já

havia pedido o “terceiro volume de Husserl bem como sua fenomenologia diretamente para

Niemann”34 (TILLICH, 1983 [1917], p. 92). Isto permite deduzir que a fenomenologia de

Emund Husserl ainda estava no foco de suas pesquisas.

1.3.2. Carta a Emanuel Hirsch e os contornos gerais de uma teoria do sentido

absoluto (Urständliche) em diálogo com a fenomenologia

Alguns meses depois, em dezembro deste mesmo ano, o teólogo escreve outra carta para

seu amigo Emanuel Hirsch contando que havia voltado a trabalhar em agosto daquele ano e que

dispunha agora de um ambiente mais favorável para isto. Na carta, Tillich diz, em relação ao

seu pensamento, que nesta atmosfera “eu me tornei erudito novamente e me fechei

30Das ist wirklich Schulwissenschaft und sogar in bestem Sinne Scholastik, nämlich Begriffsklärung. Besonders

gilt das für die Phänomenologen, die ihre ganze Arbeit den „Bedeutungen" der aktuellen Begriffe zuwenden.

31Sempre que aparecer a palavra “espírito” (Geist) ou “espiritual” (geistig), provavelmente, refere-se a capacidade

intelectual do ser humano. “Geist” pode ser a “consciência pensante do ser humano” (denken des Bewusstsein des

Menschen), “espírito” ou “mentalidade”.

32Sind sie Forschung, so sind sie nur angewandte Theorie; sie enthalten keine neuen Schöpfungen, sondern

lediglich normativ gewendete Wesenssätze der technischen und geistigen Funktionen.

33Aber hat sie ein Recht dazu, sie anders als objektivierend, als Tatbestand, zu behandeln?

34Den dritten Band von Husserl sowie seine Phänomenologie habe ich bei Niemann direkt bestellt.

32

consideravelmente contra a guerra”35 (TILLICH, 1983 [1917], p. 99) de modo que foi possível

começar a partir de então a “preencher as grandes lacunas”36 (TILLICH, 1983 [1917], p. 98).

O autor faz referência ao seu “Sistema das Ciências” e afirma ter dado um início decisivo, a

literatura parecia agora mais clara, os caminhos mais nítidos e os principais problemas

compreensíveis. E na sequência ele afirma, “A coisa que o mais vividamente me interessa, é a

escola fenomenológica fundada por Husserl que encontrou em Scheler37 um partidário católico

e escolastizante. Temos todos os motivos para tê-la [a escola fenomenológica] em mira”38

(TILLICH, 1983 [1917], p. 99, grifo nosso).

Na mesma carta a Hirsch, Tillich falou de uma revisão na fundamentação de sua teologia

e filosofia da religião e da necessidade de ter que resolver um “problema central” em seu

pensamento: “Como aquela certeza, que constitui a essência da fé, é compatível com a dúvida

teórica? Ou: como podem ser superados os obstáculos de (para?) a função religiosa os quais

procedem da reflexão (do pensamento)?”39 (TILLICH, 1983 [1917], p. 99). O teólogo dedica

praticamente todo o restante da carta para discutir esta questão descrevendo elementos

argumentativos tanto de sua perspectiva quanto a de Emanuel Hirsch. Para o autor, a função

religiosa envolve um âmbito subjetivo e “Descrever este momento absoluto (urständliche)40

subjetivo da religião é, então, a tarefa mais importante da ciência da religião e da teologia”41

(TILLICH, 1983 [1917], p. 102). Na sequência ele afirma:

35Ich bin also seit August wieder „gelehrter“ geworden und habe mich innerlich weitgehend gegen den Krieg

abgeschlossen.

36meine größte Lücke auszufüllen.

37 Esta menção a Scheler chama atenção, pois posteriormente Tillich irá criticar a fenomenologia, entre outras

coisas, por possuir “tendências católicas conservadoras”. Tillich afirma: “Por sua vez, a fenomenologia carece do

elemento dinâmico e possui tendências de índole católico-conservadora, como se pode observar nas biografias de

alguns de seus adeptos” (TILLICH, 1967 [1936], p. 53). Embora fosse necessária uma pesquisa mais apurada

sobre o assunto, a impressão que se tem é que a crítica inclui também o filósofo Max Scheler.

38Am lebhaftesten interessiert mich die von Husserl begründete phänomenologische Schule, die in Scheler einen

katholischen und scholastisierenden Anhänger gefunden hat. Wir haben allen Anlaß, unser Augenmerk auf sie zu

richten.

39Wie ist mit dem theoretischen Zweifel diejenige Gewißheit vereinbar, die das Wesen des Glaubens ausmacht?

Oder: Wie können die aus dem Denken erwachsenden Hemmnisse der religiösen Funktion überwunden werden?

40O termo traduzido aqui como “absoluto” que aparece na carta como “urständliche”. A palavra se consagrou com

Schelling. Ständlich é “contínuo”, “permanente”. “Ur”, quando juntado a uma palavra, tem o sentido de algo

recente do passado. Por exemplo: “Christentum” significa “cristianismo”; “Urchristentum” significa “cristianismo

primitivo”. A impressão que se tem é que Schelling quer expressar um sentido de algo absoluto que é universal,

desde os povos mais antigos até hoje.

41Dieses subjektive urständliche Moment der Religion zu beschreiben, ist nun die wichtigste Aufgabe der

Religionswissenschaft und Theologie.

33

Isto contém, certamente, vários elementos, cada um podendo ser qualificado

de “absoluto”, como: consciência de infinidade, consciência de valor próprio,

consciência de uma ordem de mundo, consciência de dependência e liberdade,

consciência de totalidade, etc., cada um podendo ser qualificado de

“absoluto”. [...] Assim, a religião livre de ceticismo é pura competência que

dá à experiência geral uma coloração; mas não é uma vivência. Isto (que a

religião sem ceticismo seria uma vivência/experiência concreta) seria uma

contradição com o caráter de absoluto, mas [a religião sem ceticismo] é uma

coloração, um som, uma direção, uma forma, uma expressão, uma alma de

toda experiência (segundo a ideia). Com isto é dada, simultaneamente, sua

universalidade; isto, evidentemente não é verificável se cada indivíduo da

espécie humana (determinada esta última em termos das ciências naturais)

participe de dita determinação das suas vivências, se bem que apenas em grau

mínimo. Mas pode-se, sem hesitar, definir o ser humano, compreendido este

último como ser (dotado) de espírito, por meio desta determinação [se trata da

determinação da consciência do absoluto que se dá como uma coloração, um

som, etc. em todas as vivências]: a qualidade de ser um ser humano se inicia

com esta forma de vivência!42 (TILLICH, 1983 [1917], p. 102).

De acordo com o autor, é neste fundamento universal interior e exterior que surge então

a religião objetiva. O teólogo explica que nem todas as experiências contêm, de fato, a certeza

religiosa e que toda experiência especial impele à interpretação. Esta interpretação é por sua

vez a objetivação, ou seja, “E a experiência nunca se apresenta, supostamente, sem essa

interpretação ou objetivação. A objetivação tem diferentes níveis: mito, dogma, filosofia, auto-

observação [Selbstbetrachtung]43”44 (TILLICH, 1983 [1917], p. 102). Para Tillich (1983

[1917]) o primeiro nível é o mais profundo e em geral “insuprimível”45, e ligado a este, embora

separável, está o último. É a vida com uma determinação interior, o entendimento-de-si-mesmo

em relação a si, ao mundo e à eternidade. No segundo se baseia a igreja e no terceiro a igreja

chega ao acordo com a consciência teorética.

42Es enthält sicher mehrere Elemente, alle unter dem Exponenten „absolut", also etwa: Unendlichkeitsbewußtsein,

Eigenwertbewußtsein, Bewußtsein einer Wertordnung, Abhängigkeits- und Freiheitsbewußtsein,

Totalitätsbewußtsein etc., alles unter dem Exponenten „absolut". [...] So ist die skepsisfreie Religion eine reine

Zuständlichkeit, die dem gesamten Erleben eine Färbung gibt; sie ist also kein Erlebnis. Dies widerspräche der

Absolutheit, sondern eine Färbung, ein Klang, eine Richtung, eine Form, ein Ausdruck, eine Seele jedes

Erlebnisses (der Idee nach). Damit ist zugleich ihre Universalität gegeben; es ist natürlich nicht feststellbar, ob

jedes Individuum der naturwissenschaftlichen Species Mensch an dieser Bestimmtheit seiner Erlebnisse teilnimmt,

wenn auch nur im geringsten Grade. Aber man kann unbedenklich die Menschen als Geistwesen mit dieser

Bestimmtheit definieren: das Menschsein fängt mit dieser Erlebnisform an!

43 “Selbstbetrachtung” é emprestado da metodologia das ciências naturais, onde se observa o objeto a partir de

testes controlados.

44Und das Erlebnis tritt vermutlich nie ohne diese Deutung oder Objektivierung auf. Die Objektivierung hat

verschiedene Stufen: Mythos, Dogma, Philosophie, Selbstbetrachtung.

45Tillich usa o termo unaufhebbare, um termo hegeliano. Hegel usa o verbo aufheben no sentido de superar na

medida em que mantém algo anterior, sem descarta-lo, mas aprimorando-o.

34

Tillich termina a carta defendendo, “um verdadeiro universalismo do humano em

relação ao que diz respeito aos valores, um universalismo do espiritual em relação ao

ajustamento aos valores e um particularismo da personalidade perfeita”46 (TILLICH, 1983

[1917], p. 104). Para o teólogo, nestes três níveis a religião é em sentido absoluto (urständliche)

e de algum modo uma forma de objetivação. “Mas com estes três níveis os níveis de objetivação

não têm mesmo nada para fazer. Estes se direcionam, simplesmente, para a formação da

consciência cultural de círculos singulares ou maiores”47 (TILLICH, 1983 [1917], p. 104).

Neugebauer comenta que o problema de Tillich, portanto, está no fato de que as objetivações

religiosas que emergem sob a condicionalidade categorial da reflexão proporcionam o solo da

dúvida. Isso impossibilita responder a questão da certeza que constitui a essência da fé. Neste

ponto Tillich levanta a questão sobre como os objetos da consciência religiosa devem ser

fornecidos (NEUGEBAUER, 2011, p. 53). Com isso o teólogo encerra a carta pedindo ainda a

Emanuel Hirsch que faça críticas a opinião central na esperança de que não haja grandes

contradições entre sua opinião e a dele.

Em outra carta escrita em maio de 1918 a Emanuel Hirsch, Tillich afirma que “a vida

espiritual é a vida no sentido ou na incessante doação criativa de sentido”48 (TILLICH, 1983

[1918], p. 125). Esta sentença tillichiana apresenta as demarcações da teoria do sentido

desenvolvido durante seu período revisionista e de acordo com Neugebauer, ela sugere também

uma tentativa de solução do problema da objetivação a partir do conceito de sentido. Da mesma

forma, “A frase citada por último dificilmente permite compreender outra coisa a não ser o pano

de fundo da fenomenologia de Edmund Husserl, que até mesmo na dicção se aproxima”49

(NEUGEBAUER, 2011, p. 54).

De acordo com Neugebauer (2011, p. 49), na fenomenologia de Husserl, a referência da

consciência com um objeto é construída por meio do sentido. Husserl trabalha essa questão em

Ideen I, e especifica essa dinâmica em termos de Noese e Noema. Como afirma Husserl “Todo

noema tem um conteúdo, isto é, seu ‘sentido’, e se refere, por meio dele, a ‘seu’ objeto”

(HUSSERL, 2006, p. 287). Sendo assim, a consciência é dirigida por meio da intenção do

46Einen Universalismus des Menschlichen bezüglich der Wertbezogenheit überhaupt, einen Universalismus des

Geistigen bezüglich des Gerichtetseins auf die Werte, und einen Partikularismus des vollkommen Persönlichen.

47Mit diesen Stufen haben aber die Objektivationsstufen gar nichts zu tun. Diese richten sich lediglich nach der

Gestaltung des Kulturbewußtseins einzelner und größerer Kreise.

48Geistiges Leben ist Leben im Sinn oder unablässige schöpferische Sinngebung

49Der zuletzt zitierte Satz lässt sich kaum anders als vor dem Hintergrund der Phänomenologie Edmund Husserl

begreifbar machen, was bereits die Diktion nahe legt.

35

sentido a um objeto. O correlato da intencionalidade, isto é, o “de que” o ato tem consciência,

não é um objeto, mas sentido. A dimensão do sentido, por tanto, expressa o caráter básico de

toda consciência, como afirma o autor:

Tal como a percepção, todo vivido intencional possui – é justamente isto que

constitui o ponto fundamental da intencionalidade – seu ‘objeto intencional’,

isto é, seu sentido objetivo. Tão-somente noutras palavras: ter sentido ou ‘estar

com o sentido voltado para’ algo é o caráter fundamental de toda consciência,

que, por isso, não é apenas vivido, mas também vivido que tem sentido, vivido

‘noético’ (HUSSERL, 2006, p. 206-207, grifo do autor).

De acordo com Neugebauer (2011, p. 48), estes elementos ocupam um lugar de

centralidade na teoria da intencionalidade da consciência de Husserl. É, portanto, a partir desse

pano de fundo que se torna possível entender a assimilação do conceito de intencionalidade da

consciência no contexto da teoria do ato religioso em Tillich e em sua posterior formulação dos

modos como religião e cultura se relacionam.

1.3.3. O curso sobre filosofia da religião de 1920 e a apropriação do termo visar

(Meinen) como ato intencional da consciência

Em 1920 num curso sobre filosofia da religião ministrado em Berlim, Tillich fala dos

métodos utilizados para a determinação do conceito de religião. A sétima aula é dedicada para

falar do método fenomenológico e do método crítico, com uma crítica do último. Nesta aula o

teólogo faz referência explícita a escola fenomenológica, especialmente a Edmund Husserl, e

destaca o verbo Meinen, um termo que passa a ocupar um lugar importante em suas produções

acadêmicas.

Mas agora o que é para encontrar imediatamente na mente é o visar (das

Meinen), o ser direcionado a um sentido, a uma cor, a um sentimento, a um

objeto, a um conceito, a uma ideia. Pode-se, com isso, fazer-se ainda uma

diferenciação, [estar] atento ao próprio visar e ao que é visado. Husserl o

diferencia como noesis e noema, isto é: o ato mental e o objeto ao qual ele se

direciona. Há diferentes tipos de noeses, positivos, negativos, questionadores,

duvidosos e assim por diante e, ao mesmo tempo, diversos tipos de noemata,

que devem ser agrupados e representados, por exemplo: religião, moral

36

(Sittlichkeit),50 biologia, mecânica e assim por diante51 (TILLICH, 2001

[1920], p. 379).

De acordo com Heineman (2009, p. 33) o conceito “Meinen” 52 serviu como um termo

técnico para Tillich durante todo os anos 20. E é com base nestes elementos oriundos da escola

fenomenológica que o teólogo vai moldando sua teoria da consciência intencional ou noética

em relação à religião na vida humana, e como bem observou Neugebauer, nesta assimilação

“Tillich avista uma possibilidade de reagir ao problema de objetivação e, com isto, tomar conta

do ‘problema central’ de sua reflexão”53 (NEUGEBAUER, 2011, p. 55).

Embora a referência seja bastante rápida, com o objetivo específico de esclarecer um

conceito no contexto de uma aula, pode-se dizer que há uma indicação importante sobre o uso

que o autor começa a fazer de elementos da escola fenomenológica. Neugebauer afirma que a

menção explícita que Tillich faz da escola fenomenológica como a fonte de onde ele retira o

conceito de intencionalidade “indica inconfundivelmente que Tillich liga o conceito de fé ou o

conceito de consciência religiosa com a teoria da consciência intencional redigida por

50Sittlichkeit: o alemão tem a palavra Moral, moralische; contudo, Sitte significa hábito, costume, por isto

Sittlichkeit como “moral”.

51Was nun aber in der Seele unmittelbar zu finden ist, das ist das Meinen, das Gerichtetsein auf einen Sinn, auf

eine Farbe, ein Gefühl, einen Gegenstand, einen Begriff, eine Idee. Man kann dabei noch eine Unterscheidung

machen, man [wird] aufmerksam auf das Meinen selbst und auf das, was gemeint ist. Husserl unterscheidet es als

noesis und noema, das heißt: den geistigen Akt und den Gegenstand, auf den er sich richtet. Es gibt verschiedene

Arten der Noesen, positive, negative, fragende, zweifelnde und so weiter und zugleich 'viele Arten von Noemata,

die aber doch zu gruppieren und darzustellen sind, zum Beispiel Religion, Sittlichkeit, Biologie, Mechanik und so

weiter.

52 O verbo “Visar” (Meinen) presente nesta citação merece destaque por dois motivos: primeiro porque se trata de

um verbo de fundamental importância para a compreensão da fenomenologia em Husserl, tal como os termos

“sentido” e “significação”. De acordo com Husserl “Acabamos de dizer ‘visado’. Essa palavra se impõe aqui em

geral, assim como as palavras ‘sentido’ e ‘significação’. Ao visar ou intencionar corresponde então o visado, ao

significar, o significado” (HUSSERL, 2006, p. 219). Nesse sentido, a intencionalidade da consciência se dá através

de um visar, isto é, a consciência é intencional justamente por sempre visar, tender, para alguma coisa. De acordo

com Husserl “Em consequência, será necessário ampliar o conteúdo do ego cogito transcendental. Acrescentar-

lhe um novo elemento e dizer que todo cogito, ou ainda todo estado de consciência, ‘assume’ algo, e que ele

carrega em si mesmo, como ‘assumido’ (como objeto de uma intenção) seu cogitatum respectivo (HUSSERL,

2001, p. 50-51). Segundo porque o próprio Tillich em 1919 se utiliza desse mesmo termo (Meinen) para construir

sua definição de fé, mencionando de maneira explícita que o termo foi extraído da fenomenologia de Husserl.

Entretanto, não existe unanimidade sobre qual a melhor tradução para o termo, embora nesta citação a tradução

para meint seja “assume”, e gemeinten “assumido” (tradução de Frank de Oliveira) o presente trabalho julga ser

mais apropriada a tradução do verbo por “visar” e “visado”, tal como aparece em algumas traduções como as de

Diogo Ferrer (HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas: Primeiro Volume – Prolegómenos à Lógica Pura.

Trad. Diogo F. Ferrer. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014) e Márcio Suzuki (HUSSERL, Edmund. Ideias para

uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura.

Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006.)

53In dieser Verbindung erblickt Tillich eine Möglichkeit, auf das Objektivationsproblem zu reagieren und damit

dem „Zentralproblem“ seines Denkens Herr zu werden.

37

Husserl”54 (NEUGEBAUER, 2011, p. 54-55). Nesse contexto, o teólogo vê uma oportunidade

para responder aos problemas centrais de seu pensamento em relação à função religiosa assim

como consegue os elementos necessários para preencher suas “grandes lacunas” que se abriram

durante os anos de guerra. Dessa forma, “Durante a primeira Guerra Mundial, a mudança de

sentido teorético do conceito de mente torna-se dificilmente compreensível se não levar em

conta o conceito de consciência intencional de Husserl”55 (NEUGEBAUER, 2011, p. 39).

Tillich não apenas fez uso de alguns postulados da fenomenologia de Husserl, como

também desenvolveu uma versão própria do método. Embora a fenomenologia que esteja

presente em Tillich não seja a fenomenologia pura de Husserl, o teólogo se apropria da

fenomenologia husserliana de maneira crítica, e nesse sentido, o mais importante em Husserl

para Tillich é a teoria da intencionalidade e a intuição das essências.

Estes dois elementos tornam-se fundamentais no pensamento de Tillich e encontram-se

interligados, pois na medida em que Tillich se a apropriou da teoria da intencionalidade da

consciência para fundamentar seu conceito de religião, o teólogo também percebeu a

necessidade do método intuitivo-descritivo. Entretanto, a pesquisa irá se deter neste momento

somente à teoria da intencionalidade da consciência.

1.4. Aplicações da intencionalidade da consciência na fundamentação do

conceito de religião

1.4.1. A teoria do sentido em Tillich como pano de fundo de sua recepção da

fenomenologia

A recepção da fenomenologia, especialmente a de Edmund Husserl no pensamento de

Tillich pode ser percebida na medida em que o teólogo se apropria da noção de intencionalidade

da consciência para fundamentar seu próprio conceito de religião. A religião passa a ser descrita

neste momento como um direcionamento intencional da consciência subjetiva ao sentido

54Dieser Satz zeigt unverkennbar an, dass Tillich den Glaubensbegriff bzw. den Begriff des religiösen

Bewusstseins mit der Theorie des intentional verfassten Bewusstseins Husserls verknüpft.

55Die während des Ersten Weltkriegs vorgenommene sinntheoretische Wendung des Geistbegriffs lässt sich kaum

unter Absehung von Husserl Theorie des intentionalen Bewusstseins begreiflich machen.

38

incondicional da realidade, isto é, um “direcionamento intencional ao Incondicional”56

(TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor). Esta experiência adquire o caráter de ser uma

experiência fundamental, anterior a todo conceito, símbolo ou palavras, e é sobre esta base que

o autor fundamenta seu conceito de religião. Dessa forma, para uma compreensão e valorização

da fenomenologia em Tillich e de como ela aparece em seus escritos, a teoria da

intencionalidade da consciência torna-se um aspecto elementar a ser considerado para uma

compreensão rigorosa da fenomenologia em seu pensamento.

A teoria da intencionalidade do ato da consciência será aplicada por Tillich num

primeiro momento para fundamentar seu próprio conceito de religião, entendido desde então,

não como uma esfera entre outra, mas como um sentido incondicional57. A teoria da

intencionalidade da consciência não é única ferramenta tomada por ele na fundamentação do

conceito de religião. Ela desempenha um papel importante, mas encontra-se entrelaçada com

outros pressupostos teóricos assimilados pelo teólogo nesse período, como é caso da teoria

neokantiana do sentido. De acordo com Neugebauer, “a compreensão de Tillich da consciência

religiosa intencional se liga com o conceito de funções da mente, que ele já usa antes da

Primeira Guerra Mundial e que não foi recebido de Schelling”58 (NEUGEBAUER, 2011, p. 62)

mas da escola kantiana. Sendo assim, embora o foco esteja na teoria da intencionalidade, outros

aspectos relacionados a ela também devem ser considerados. Danz (2009, p. 179) comenta que

a ideia de religião como sentido incondicional é fundamental no pensamento de Tillich por ter

sido desenvolvida como uma solução para o problema contemporâneo sobre a relação entre

religião e cultura. A partir dessa perspectiva, Tillich faz uma crítica as concepções

56 “Religion is directedness toward the Unconditional” no original em alemão é “Religion ist Richtung auf das

Unbedingte” (TILLICH, 1987b [1925], p. 134). O termo Richtung é traduzido aqui como direcionamento ou

direção, mas como Tillich provavelmente está usando o termo no mesmo sentido que Husserl, a ideia então é de

“direcionamento intencional”. Nesse caso, o direcionamento ao incondicional é, sobre tudo, um direcionamento

intencional ao incondicional.

57 De acordo com Tillich “O termo ‘incondicionado’, ou a substantivação ‘o incondicional’, [...] Não se trata de

um ser, mas de uma qualidade. Caracteriza nossa preocupação suprema e, consequentemente, incondicional, não

importando se a chamarmos de ‘Deus’, de ‘ser’, do ‘bem’, da ‘verdade’, ou de qualquer outro nome. Incorreríamos

em crasso erro se entendêssemos o incondicional como um ser cuja existência pudesse ser discutida. Só falará a

respeito da ‘existência do incondicional’ quem não entender o sentido do termo. Trata-se da qualidade

experimentada no encontro com a realidade, por exemplo, no caráter incondicional da voz da consciência, tanto

lógica quanto moral” (TILLICH, 1992a, p. 63). Torna-se importante destacar ainda a afirmação de Tillich de que

o incondicional não é um ser, ou um objeto no sentido do mundo real do objeto, mas um sentido incondicional

percebido pela consciência em seu encontro com a realidade. Como afirma Tillich “que, absolutamente, o

incondicional não é um objeto, mas um sentido” (daß das Unbedingte überhaupt kein Gegenstand ist, sondern ein

Sinn) (TILLICH, 2001 [1920], p. 312, grifo do autor).

58Wie wir gesehen haben, knüpft Tillichs Verständnis der intentional religiösen Bewusstseinsakte an den Begriff

der Geistfunktionen an, den er schon vor dem Ersten Weltkrieg verwendet und nicht von Schelling übernommen

hat.

39

transcendentais da religião, afirmando que o lugar da religião não deve ser procurado ao lado

de outras funções como a lógica, ética, estética, mas como algo presente em todos estes

domínios.

Ao tratar sobre a essência da religião, o teólogo começa sua reflexão fundamentando-

a sobre a base de uma teoria do sentido. De acordo com Tillich todo ato espiritual é um ato de

sentido e o espírito por sua vez “[...] é sempre o meio para a atualização do sentido (Sinnvolzug)

e aquilo que o espírito pretende é sempre uma conexão sistemática de sentido. O sentido é a

característica comum e a unidade última da esfera teórica e prática do espírito”59 (TILLICH,

1973 [1925], p. 56-57).

A partir deste horizonte, Tillich afirma que em toda consciência de sentido existem três

elementos. Primeiro, existe uma consciência da interconexão do sentido, em que cada sentido

subsiste e sem a qual não haveria sentido algum. Segundo, a consciência de um sentido

incondicional que está presente em cada sentido particular. Terceiro, a exigência sob a qual

subsiste cada sentido particular de “realizar o sentido incondicional”. O sentido incondicional,

dessa forma, perpassa todo o sentido particular presente nas expressões do espírito assim como

também é o fundamento para todo sentido particular. De acordo com o autor (1973 [1925], p.

57-58)

Mesmo a totalidade do sentido não é necessariamente plena de sentido, já que

poderia desaparecer, como qualquer sentido particular, no Abismo (Abgrund)

da falta de sentido, se a pressuposição de uma plenitude de sentido

incondicionada não estiver viva em cada ato de sentido. Esta

incondicionalidade de sentido é ela mesma, contudo, não um sentido, mas

melhor dizendo, o fundamento do sentido.60

O sentido incondicional está implícito à toda atividade da consciência, e dessa forma,

ele atua não apenas como o fundamento, mas também como o abismo61 de cada sentido

59[...] is always (the medium for) the actualization of meaning (Sinnvollzug), and the thing intended by the spirit is

a systematic interconnection of meaning. Meaning is the common characteristic and the ultimate unity of the

theoretical and the practical sphere of spirit, of scientific and aesthetic, of legal and social structures.

60 Even the totality of meaning need not be meaningful, but rather could disappear, like every particular meaning,

in the abyss (Abgrund) of meaninglessness, if the presupposition of an unconditioned meaningfulness were not

alive in every act of meaning. This unconditionality of meaning is itself, however, not a meaning, but rather is the

ground of meaning.

61 O caráter abismal da experiência religiosa é o que torna a revelação misteriosa, trata-se daquilo que não pode

ser esgotado por nenhuma criação nem pela totalidade delas e que representa, portanto, a dissolução de todo

sentido. Na infinita possibilidade de ser e de sentido cada forma particular de sentido está sob o “Não” do sentido

incondicionado, isto é, seu abismo, e somente por meio deste “Não” pode-se receber, ao mesmo tempo, o “Sim”

da significabilidade. Este elemento abismal, “[...] está sempre potencialmente presente, e podemos detectá-lo nas

experiências tanto cognitivas quanto comunitárias. É um elemento necessário da revelação. Sem ele, o mistério

não seria mistério. Sem o ‘eu estou perdido’ de Isaías em sua visão vocacional, não pode haver experiência de

40

particular, pois somente aquilo que é o abismo do sentido pode ser, ao mesmo tempo, seu

fundamento (TILLICH, 1973 [1925], p. 61). De acordo com Abreu, a noção de incondicional

traz para si o status de ser simultaneamente o fundamento e abismo de toda experiência de

sentido, a dimensão de profundidade e o objetivo da intencionalidade da consciência, e por

conta disso devem ser interpretadas estritamente dentro dos limites da auto-relação do espírito

em sua auto-certeza e reflexibilidade interior (ABREU, 2017, p. 23).

Dessa forma, o sentido incondicional é aquilo que dá sustentação a cada ato particular

do espírito humano, e nessa condição, ele atua na interconexão universal do sentido e pode ser

entendido também como a “substância de sentido”. Para o autor, a substância de sentido tem

em relação à forma de sentido o caráter de fundamento da totalidade de sentido, assim como

funciona em oposição em relação a forma, isto é, como exigência de uma realização

incondicional do sentido, uma exigência que só pode ser satisfeita pela inter-relação completa

ou perfeita de todos os sentidos, a forma incondicional. Sendo assim, esta substância é “[...] a

significância que que outorga a cada sentido particular sua realidade, significância e

essencialidade”62 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44). A plenitude do sentido só é possível,

portanto, por meio da completa ou perfeita conexão de todo sentido e nunca em um dos

elementos apenas.

1.4.2. O sentido incondicional como experiência religiosa imediata

Tendo isso em conta, Tillich descreve a experiência do incondicionado num primeiro

momento como sendo uma experiência básica sem conteúdo objetivo, isto é, “Os seres humanos

são imediatamente conscientes de algo incondicional que é o prius da separação e interação

entre sujeito e objeto, tanto teórica como praticamente” (TILLICH, 2009, p. 60, grifo do autor).

De acordo com o autor:

[...] qualquer conhecimento simbólico pressupõe alguma base de

conhecimento não-simbólico [...] O elemento não simbólico em todo

Deus (Is. 6.5). Sem a ‘noite escura da alma’, o místico não pode experienciar o mistério do fundamento”

(TILLICH, 2011, p. 123). Como fundamento, o mistério “manifesta-se na revelação efetiva. [...] Aparece como

poder de ser, vencendo o não-ser. Aparece como nossa preocupação última e se expressa em símbolos e mitos que

apontam para a profundidade da razão e seu mistério” (TILLICH, 2011, p. 123).

62[...] the meaningfulness that gives to every particular meaning its reality, significance, and essentiality.

41

conhecimento religioso é a experiência do incondicionado como limite,

fundamento e abismo de todo condicionado. Essa experiência é experiência-

limite da razão humana e, portanto, expressível em termos racionais-

negativos63 (TILLICH, 1987 [1940/1941], p. 273).

A experiência do incondicionado, por ser anterior a toda forma muito embora só possa

ser expresso por meio de formas, caracteriza-se então por ser uma experiência não simbólica e

imediata, ou seja, na experiência imediata do incondicional o ser humano “não possui trabalho

cognitivo algum, nenhum conteúdo do pensamento para ostentar”64 (TILLICH, 1992b [1924],

p. 90). Para o autor, o sentido incondicional percebido nesta experiência é apreendido por meio

do “eu”. “O eu é o meio da apreensão incondicional da realidade, e como meio participa da

certeza daquilo que medeia. Mas participa só enquanto meio, não é aquilo que suporta, mas sim

o que é suportado”65 (TILLICH, 1973 [1922] p. 138).

O “eu” de Tillich é descrito neste momento como possuindo uma dimensão reflexiva,

isto é, a consciência de si mesmo é um dado básico (o que é diferente de Heidegger, por

exemplo, em que a consciência é vazia e se preenche a partir de seu encontro com o mundo). O

teólogo entende que há uma consciência consistente, uma autoconsciência que não depende

realmente do mundo para se configurar, para se constituir, não se trata, portanto, de pura saída

de si mesmo ou de pura existência, há uma essência que continua prioritária em relação a

existência. Esta essência é, portanto, a essência do si mesmo, do self, do ego, do eu centrado.

Essa insistência no ego centrado, que se percebe em Tillich, é uma herança que o teólogo traz

do idealismo e que está presente também em Husserl, ou seja, a herança de um ego

transcendental, algo que não está presente na filosofia existencial.

O sentido do incondicional, portanto, participa da consciência como um elemento

constitutivo de todo sentido particular. Embora o próprio Tillich utilize a expressão

“experiência do incondicional”, não existe tal experiência estritamente falando como algo que

suceda de forma isolada. O incondicionado não é algo que existe fora do sujeito e que, portanto,

possa ser isoladamente buscado. O incondicional é antes um elemento constitutivo da

63 [...] any symbolic knowledge presupposes some basis of non-symbolic knowledge. [...] The non-symbolic

element in all religious knowledge is the experience of the Unconditioned as the boundary, ground, and abyss of

everything conditioned. This experience is the boundary-experience of human reason and therefore expressible in

negative-rational terms.

64Der Moment des Durchbruchs ist in Bezug auf Inhalte völlige indifferent. Der Mensch hat kein Werk des

Erkennens, keinen Gedankeninhalt vorzuweisen

65 The self is the medium of the unconditional apprehension of reality, and as medium it participates in the certainty

of that which it mediates. Still, it participates only as a medium; it is not that which upholds, but rather that which

is upheld.

42

experiência, a sua forma necessária, ou seja, o incondicionado está presente na experiência

espiritual do ser humano como uma demanda, como um elemento que a constitui.

Abreu (2017, p. 23) comenta que o incondicional deve ser entendido aqui como um

fundamento primordial constitutivo para auto-relação do espírito em sua relação com sigo

mesmo. Nesse sentido, o incondicional não existe como alguma coisa fora da autoconsciência,

pois trata-se de uma descrição da autoconsciência como tal. Tillich estaria formulando neste

momento uma nova descrição da autoconsciência em que seu status transcendental não pode

implicar em algo que se encontre fora do espírito humano. Dessa forma, o status transcendental

do incondicional como sentido da consciência intencional, bem como sua descrição como

fundamento e abismo de todo sentido, devem ser interpretados estritamente dentro dos limites

da auto-relação do espírito em sua auto-certeza e reflexibilidade interior.

Na auto-certeza do eu existem dois fatores: “A incondicionalidade de uma apreensão da

realidade que está além do sujeito e objeto, e a participação do eu subjetivo nesta realidade

incondicional em que repousa”66 (TILLICH, 1973 [1922], p. 138). Nesse sentido, o

incondicional estaria, portanto, nos fundamentos da relação circular do eu consigo mesmo e

representa, como afirma Abreu (2017, p. 25), a auto-certeza espiritual e a auto-relação

implicada nela. A realidade incondicional é dessa forma o meio para o “eu” experimentar sua

própria auto-certeza sendo, portanto inconcebível alguma auto-certeza além do fundamento

incondicional da realidade, como afirma o autor, “não existe consciência não religiosa em

substância, embora possa sim existir na intenção. Todo ato de auto-apreensão possui como

fundamento na realidade a relação com o Incondicional”67 (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).

Para o autor, o incondicional é dessa forma o fundamento sobre o qual se apoia todo

juízo teórico e a pressuposição de toda antítese possível do sujeito a objeto. Sendo assim, ele

expressa em forma paradoxal:

A certeza de Deus é a certeza do Incondicional que está contida e fundamenta

a auto-certeza do eu. A certeza com respeito a Deus é deste modo totalmente

independente de toda outra certeza presuposicional. Tanto o eu como sua

66The unconditionality of an apprehension of reality that lies beyond subject and object, and the participation of

the subjective self in this unconditional reality which supports it.

67 There is no consciousness unreligious in substance, though it can certainly be son in intention. Every act of self-

apprehension contains, as its foundation within reality, the relation to the Unconditional

43

religião se subordinam ao Incondicional; eles se tornam possíveis graças ao

Incondicional68 (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).

Ainda de forma paradoxal pode-se dizer que Deus é revelado ao ser humano antes

mesmo de qualquer conhecimento sobre Deus. A consciência imediata do incondicional tem o

caráter de ser desta forma um elemento constitutivo na formação da autoconsciência. Em seu

texto “Justificação e Dúvida” (Rechtfertigung und Zweifel) de 1924 o teólogo chama esta

experiência de revelação fundamental (Grundoffenbarung)69, e afirma que nela “O divino é o

fundamento e o abismo do sentido, o princípio e o fim de todo o conteúdo possível”70

(TILLICH, 1992b [1924], p. 92). Na revelação fundamental, o incondicional não possui nome

ou forma, é anterior a toda mediação simbólica, e configura-se como “[...] o momento do

nascimento da religião em cada homem”71 (TILLICH, 1992b [1924], p. 92).

Para Tillich, a consciência imediata do incondicional descrita como irrupção da

revelação fundamental funda a base da religião no ser humano. Por ser caracteristicamente não-

simbólica, a revelação fundamental é também “a base para cada irrupção em direção a uma

objetividade, em direção a um nome e uma forma”72 (TILLICH, 1992b [1924], p. 92). Toda

expressão simbólica da experiência religiosa encontra-se dessa forma fundamentada na

revelação fundamental e imediata do incondicionado. Schüßler comenta que esta forma

imediata de apreensão do incondicional descrita por Tillich como revelação fundamental

apresenta a base de toda possibilidade de apreensão simbólica do divino, isto é, “a apreensão

simbólica do divino está fundamentada num agarrar imediato do divino que recebemos dentro

da revelação fundamental”73 (SCHÜßLER, 1987, p. 161).

Entretanto, Schüßler (1987, p. 162) chama atenção para o fato de que esta revelação

fundamental num sentido mais amplo, não pode ser confundida com aquilo que Tillich chama

68 God-certainty is the certainty of the Unconditional contained in and grounding the self-certainty of the ego.

Certainty of God is in this way utterly independent of any other presuppositional certainty. Both the self and its

religion are subordinated to the Unconditional; they first become possible through the Unconditional.

69Schüßler comenta que quando se trata de Paul Tillich não se pode fazer a distinção entre teólogo ou filósofo, “O

que Tillich diz como teólogo, ele também pode dizer como filósofo e vice-versa, embora os termos especiais

estejam mudando [...]. Em um contexto filosófico, não encontramos o termo Grundoffenbarung. Este é um termo

religioso ou teológico especial. Mas nos escritos filosóficos de Tillich, encontramos a apreensão imediata do

incondicional que é dada pela Grundoffenbarung. (SCHÜßLER, 1987, p. 163).

70Das Göttliche ist der Sinnabgrund und-grund, das Ende und der Anfang jedes möglichen Inhaltes.

71[...] es ist die Geburtsstunde der Religion in jedem Menschen,

72die die Basis für jeden Durchbruch zur Objektivität, zu Name und Form sein muß.

73Symbolical apprehension of the divine is based on an immediate grasping of the divine which we receive within

the Grundoffenbarung.

44

de revelação (Offenbarung)74 num sentido mais estrito, pois enquanto a primeira diz respeito

ao início da revelação que se dá de maneira imediata e não simbólica, a segunda diz respeito a

uma experiência que acontece através das formas concretas posta pelo espirito humano, e

portanto, mediada simbolicamente. Enquanto a revelação fundamental encontra-se na formação

da autoconsciência, a revelação pressupõe tal estrutura reflexiva da consciência para dirigir-se

em direção ao sentido incondicionado. Sem esta distinção, Tillich não poderia comparar a

revelação fundamental ao “princípio da identidade” (Das Prinzip der Identität)75 como faz,

muito embora tal distinção só pode ser feita abstratamente, já que tanto a revelação fundamental

como a revelação encontram-se interligadas. Ou seja, a revelação fundamental é um elemento

constitutivo da revelação, sem a qual não haveria revelação, mas que se manifesta plenamente

na estrutura reflexiva do ato da consciência.

É possível perceber, portanto, como afirma Abreu (2017, p. 25-26), que o incondicional

é entendido como uma nova descrição da autoconsciência, como determinação do fundamento

do espírito e, portanto, como o meio de toda auto-certeza e conhecimento. O condicionado é o

meio no qual e através do qual o incondicional poder ser captado, a este meio como bem

descreveu Tillich (1973 [1922], p. 138) pertence o sujeito que o percebe como o lugar onde o

incondicional se manifesta dentro do condicionado.

É nesse sentido que o teólogo afirma também que o incondicional pode ser um

pressuposto absoluto, mas nunca um objeto de uma teoria. Embora o sentido incondicional não

seja um objeto, mas o pressuposto de todo juízo teórico, a necessidade de referir-se a ele faz

com que surja um paradoxo necessário, ou seja, “Este ponto é aquele onde o incondicional se

transforma em objeto”76 (TILLICH, 1973 [1922], p. 122). O fato de que se transforme em objeto

é por si mesmo o paradoxo primordial pois não é possível falar do incondicional sem ao menos

torna-lo um objeto (TILLICH, 1973 [1922], p. 141).

Toda afirmação a respeito do incondicional tem por tanto, necessariamente a forma de

um paradoxo. A consciência imediata do sentido incondicional é dessa forma uma experiência

74 De acordo com Tillich, “A revelação (Offenbarung) é a irrupção do Incondicional (Durchbruch des

Unbedingten) no condicional. Não é nem a realização nem a destruição das formas condicionadas, mas sua

comoção e inversão” (2005a [1925/1927], p. 19).

75 “O princípio da identidade é legalmente lógico (logisch gesetzliche) e, nisto, formulação não credível do

paradoxo que está presente na compreensão credível da revelação básica (Grundoffenbarung vorliegt)” (TILLICH,

1992b [1924], p. 93).

76the point at which the Unconditional becomes an Object.

45

básica sem conteúdo objetivo, mas que mesmo sendo anterior a todo conceito, coloca-se

também como descrição da religião, muito embora como afirma o autor “A religião sabe que

não é possível dar vida ao Incondicional na consciência apontando-o de maneira teórica. Porque

a teoria transforma o Incondicional em objeto, ou seja, precisamente naquilo que não é”77

(TILLICH, 1973 [1922], p. 140). Entretanto, é preciso reconhecer que toda atualidade existe

nas formas da objetividade, mas que dentro de toda atualidade existe algo incondicionalmente

real que pode ser percebido. Este incondicionalmente real não está definido pelas formas e não

possui existência, de modo que “Quando o espírito ele mesmo se dirige ao mundo de tal maneira

que traz à consciência o impulso de incondicionalidade que está implícito em todas as coisas,

está direcionado a Deus”78 (TILLICH, 1973 [1922], p. 140). Este poder do incondicional

presente em todo o condicional, de acordo com o teólogo, “[...] é aquilo que constitui o

fundamento sobre o qual se apoiam todas as coisas (Ding), a verdadeira raiz do seu ser, sua

absoluta seriedade, sua profundidade impenetrável e sua santidade”79 (TILLICH, 1973 [1922],

p. 140).

A apreensão imediata do incondicional dado na revelação fundamental como dito

anteriormente, é tanto a base e o início da religião como também o começo da própria linguagem

simbólica da religião que se constitui a partir da realidade condicional e existente. Para o autor,

tanto o eu como sua religião se subordinam ao incondicional (TILLICH, 1973 [1922], p. 139).

Nesse sentido, o incondicional é tanto o fundamento da autoconsciência e de todo sentido

particular como também o “noema” ou “objeto” para o qual a consciência se volta em sua

intencionalidade por meio das formas condicionadas em busca de unidade.

Este ato de dirigir-se ao sentido incondicional caracteriza a experiência religiosa, nela o

ser humano visa o incondicional pela intencionalidade do ato da consciência. De acordo com

Tillich (1973 [1922], p. 142) a função da incondicionalidade está presente no espírito humano,

embora apenas paradoxalmente ela pode ser chamada assim. Nesta função o espírito irrompe

através de todas as formas e chega ao seu fundamento, isto é:

Fenomenologicamente falando, existe um tipo de ações que se origina a partir

de uma profundidade na qual se transcende o contraste entre uma ação e outra.

77Religion is aware that no theoretical pointing to the ground of all theory can make the Unconditional alive within

consciousness. For theory makes the Unconditional into an object, i.e., precisely what it is not.

78 Where the spirit directs itself upon the world and its contents in such a way that it brings to awareness the

impulse of unconditionality implicit in all things, there it is directed toward God.

79[...] is that which is the supporting ground in everything (Ding), its very root of being, its absolute seriousness,

its unfathomable depth, and its holiness.

46

Em consequência, as ações desta categoria só podem assumir um caráter

específico irrompendo na consciência. Entretanto, essencialmente não se trata

de outra coisa a não ser da relação com o Incondicional que é inerente a cada

ação80 (TILLICH, 1973 [1922], p. 142-143).

O sentido incondicional não é algo que pode ser localizado, portanto, como uma das

funções do espírito, mas como aquele sentido inerente a cada função particular e que se constitui

como o fundamento último e mais importante de todo sentido. Este sentido, portanto, encontra-

se pressuposto em cada experiência religiosa, ou seja, a consciência do incondicionado é

apresentada por Tillich como o elemento necessário e em virtude do qual a experiência pode

ser caracteriza como religiosa, de acordo com o teólogo, o incondicional “refere-se ao elemento

presente em qualquer experiência religiosa responsável pelo caráter religioso dessa

experiência” (TILLICH, 1992a, p. 63).

1.4.3. O conceito de religião como direcionamento intencional da consciência

A religião, como afirma o autor, é dessa forma, “intencionalidade dirigida ao sentido

incondicionado”81 (TILLICH, 1973 [1925], p. 78). Trata-se, portanto, de um direcionamento

da intencionalidade do ato da consciência em direção ao sentido incondicionado presente em

qualquer encontro com a realidade, seja num contexto estético, cognitivo, social, político, ou

inclusive religioso. Trata-se de uma experiência básica ou essencial em que o ser humano se

torna imediatamente consciente do incondicional. A religião é, portanto, a dimensão da

profundidade em todas as outras dimensões, ela se volta para os elementos supremos, infinitos

e incondicionados, é a preocupação suprema. Esta atitude encontra-se sempre fundamentada

numa orientação do espírito em direção ao sentido incondicional (TILLICH, 1973 [1925], p.

78).

Esta orientação do espírito em direção ao sentido incondicional, que caracteriza a

experiência religiosa, acontece como afirma o próprio Tillich, quando a consciência se dirige

intencionalmente em direção ao sentido incondicional. Dessa forma, nas palavras do autor, “Ele

80Phenomenologically expressed, there is a class of acts which originates out of a depth in which the contrast

between one act and another is transcended. Consequently, the acts of this category can only take on a specific

character by breaking into the medium of consciousness. Essentially, however, this is nothing other than the

relation to the Unconditional inherent in every act.

81directedness toward the unconditioned meaning-import.

47

[o sentido incondicional] não pode ser objetivado em algo, não pode ser dito, só pode ser visado

(gemeint). Quando se o disser, se terá que usar símbolos”82 (TILLICH, 1999a [1923], p. 337).

De acordo com o teólogo:

A atitude da fé religiosa pode ser esclarecida pelo conceito Meinen (visar) que

é utilizada pela escola fenomenológica. Cada conceito visa algo, tende para

algo, e esse (objeto) visado é algo totalmente diferente da representação83

através da qual ele é visado. Assim, o incondicionado é visado por meio de

representações condicionadas84 (TILLICH, 1999a [1924], p. 225).

De acordo com Neugebauer (2011, p. 56), Tillich coloca paralelamente o ato da fé e seu

conteúdo a outros atos da consciência, isto é, com a diferenciação entre Noese e Noema. O visar

(das Meinen) ou o apontar para aproveitam o caráter intencional da consciência. Este “algo”

visado (Gemeinte) coloca-se para a substância intencional do ato da consciência, que assim

como propõe Husserl, sempre se coloca como teor de substância de sentido correlativo à

consciência. Dessa forma, “A consciência religiosa e o Incondicional comportam-se entre si

como Noese e Noema”85 (NEUGEBAUER, 2011, p. 56). Ou seja, o incondicionado recebe o

status de Noema “[...] o campo fundamental da fenomenologia” (HUSSERL, 2006, p. 118, grifo

do autor). Na sequência, Neugebauer afirma que “Diante deste pano de fundo, o conceito de

incondicional não deve ser compreendido diferentemente do que sentido incondicional, e o

82Er kann nicht vergegenständlicht, nicht gesagt werden; er kann nur gemeint sein. Sagt man ihn, so muß man

Symbole verwenden.

83 O termo “representação” usado neste contexto não quer dizer que o incondicional está no símbolo ou que o

incondicional se identifica com o símbolo. O termo “Vorstellung“ traduzido aqui como representação vem do

verbo vorstellen que significa apresentar, representar, adivinhar. Nesse sentido vorstellen é uma representação e

não uma identificação. Na teologia da cultura o teólogo comenta que a função representativa é a primeira função

do símbolo, para o autor “O símbolo representa algo além dele, com o qual se relacionam e em cujo poder e sentido

participa” (2009, p. 100), por semelhança o teólogo também afirma que “Assim, podemos dizer que os símbolos

religiosos são símbolos sagrado. Participam na santidade do sagrado, segundo nossa definição básica. Participação,

no entanto, não é identificação: eles não são o sagrado. O transcendente absoluto está além de todos os símbolos

que o representam. Tais símbolos são tomados de diversos materiais dados pela experiência” (2009, p. 103). Este

esclarecimento torna-se importante pois no decorrer deste trabalho os fenômenos religiosos serão descritos como

modos simbólicos de representação. Dessa forma, é importante distinguir entre a forma de expressão do

incondicional que atua como meio através do qual o incondicional é representado e o próprio incondicional que

está além de qualquer possível representação objetiva. Um exemplo disso é símbolo de Deus, de acordo com o

teólogo, “Na palavra ‘Deus’ está contido, ao mesmo tempo, aquilo que de fato funciona como representação e

também a ideia de que é apenas uma representação. Tem a peculiaridade de transcender seu próprio conteúdo

conceitual [...] Deus como um objeto é uma representação da realidade, em última instância, referida no ato

religioso, mas na palavra ‘Deus’ essa objetividade é negada e, ao mesmo tempo, seu caráter representativo é

afirmado” (TILLICH, 1987 [1940/1941], p. 264).

84Klärend für dieses Verhalten des Glaubens ist der von der phänomenologischen Schule gebrauchte Begriff des

Meinens. Jeder Begriff meint etwas, zielt auf etwas hin, und dieses Gemeinte ist etwas ganz anderes als die

Vorstellung, durch die hindurch gemeint wird. So wird das Unbedingte gemeint durch bedingte Vorstellungen

hindurch.

85Das religiöse Bewusstsein und das Unbedingte verhalten sich zueinander wie Noesis und Noema.

48

sentido incondicional forma, para ele, um correlato intencional da consciência religiosa”86

(NEUGEBAUER, 2011, p. 56).

Nessa dinâmica, o direcionamento noético é universal, mas este universal somente se

concretiza no particular, no individual. A consciência intencional se volta para o sentido

incondicionado – que não possui nenhuma realidade objetiva – enquanto um noema jamais

alcançado, muito embora necessário para a busca contínua pela unidade da consciência, pois

como declara o teólogo, “[...] as funções significativas chegam a sua realização no sentido

somente ao manter a relação que lhes corresponde com o sentido incondicionado e que, por

tanto, a intenção religiosa é o pressuposto de uma satisfatória realização de sentido em todas as

funções”87 (TILLICH, 1973 [1925], p. 73). Nesse sentido, ele também afirma que o núcleo da

história é o desenvolvimento da consciência orientada em direção ao incondicional, é a história

da religião. Apenas na relação com o incondicional se experimenta e se forma o sentido

incondicionado da vida e do espírito (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 279). Dessa forma, o

teólogo atribui ao sentido incondicionado o caráter de ser intrínseco à vida consciente, e,

portanto, presente em todo o mundo da vida como um noema visado pela consciência.

O ato de visar o sentido religioso é empregado pelo autor de forma enérgica para

descrever com rigor a “essência do visar religioso”88 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 122,

grifo do autor) e torna-se um conceito fundamental na descrição da função religiosa. Dessa

forma, o autor afirma que “Ao demonstrar que a função religiosa é a função fundamentadora

do sentido, se dá, de maneira imediata uma prova da natureza e a verdade da religião e uma

indicação com respeito a ação religiosa e seu objeto”89 (TILLICH, 1973 [1925], p. 70). A

questão da verdade da religião para o autor “[...] é respondida por meio da apreensão metalógica

da natureza da religião como orientação em direção ao sentido incondicional”90 (TILLICH,

1973 [1925], p. 70-71).

86Der Begriff des Unbedingten ist vor diesem Hintergrund nicht anders zu begreifen als unbedingter Sinn, und der

unbedingte Sinn bildet für ihn ein intentionales Korrelat des religiösen Bewusstseins.

87[...] the meaning-functions come to the unconditioned meaning, and that therefore the religious intention is the

presupposition for successful meaning-fulfillment in all functions.

88Wesen des religiösen Meinens.

89 In the proof that the religious function is the grounding function of meaning, a proof of the nature and truth of

religion and an indication of the act and the object of the act are immediately given.

90 [...] is answered by the metalogical apprehension of the nature of religion as directedness toward the

unconditioned meaning.

49

Para o teólogo, não faz sentido perguntar para além disso, se o incondicional existe e se

a ação religiosa se dirige para algo real, pois a pergunta sobre o incondicional já pressupõe o

sentido incondicionado que é inerente a todo ato de conhecer. A “transcendência grita mais alto

do que o próprio ser e do que o próprio sentido, isto é, o incondicional. Pois não há nada mais

‘elevado’ além do ser e do sentido, mas apenas o que dá ao ser e ao sentido”91 (TILLICH, 1999b

[1927/1928], p. 125). O sentido leva o ser a sua realização espiritual, algo que se percebe no

fato de que toda ação está relacionada com o sentido incondicional que atua como abismo do

sentido. Para o autor, “Esta é a relação que está encerrada92 no ato religioso; esta é a essência

da transcendência incondicional – não deve ser um passo no vazio, mas no incondicional pleno.

Mas é o que visa (Meint) o ato religioso”93 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 125). A função

religiosa como sentido incondicional é, portanto, o fundamento de todo sentido e também o

alvo para onde a consciência se dirige em busca de sua unidade. Este é o objeto (paradoxalmente

falando) do visar religioso.

O incondicional está presente na experiência humana como uma demanda, isto é,

“Nenhuma forma pode ser compreendida sem a direção imediata ao Incondicional”94

(TILLICH, 1999a [1923], p. 342). A religião, portanto “[...] não é uma esfera de sentido ao lado

de outras, mas uma atitude em todas as esferas: a direção imediata ao Incondicional”95

(TILLICH, 1989 [1923], p. 209)96 e nesse sentido a experiência religiosa não é algo que possa

ser propositalmente experimentado. Quando a experiência do incondicionado é “buscada”, o

elemento religioso é colocado como uma função em conjunto com outras funções do espírito e

dessa forma a religião torna-se uma criação cultural ao lado de outras criações.

91Die Transzendenz überschreitet vielmehr das Sein selbst und den Sinn selbst, d.h. aber sie ist unbedingt. Denn

jenseits des Seins und des Sinnes gibt es nichts „Höheres“ mehr, sondern nur das, was dem Sein das Sein und dem

Sinn den Sinn gibt.

92 Tillich usa o verbo einschliessen [particípio eingeschlossen]. A ideia é de trancar uma porta à chave, mas também

tem o sentido de cercar e incluir. Parece que Tillich quer expressar que, assim como a chave na fechadura tranca

a porta, tal se dá no ato religioso: inclui e encerra [o ser ao ser, o sentido ao sentido].

93Dieses ist die Beziehung, die im religiösen Akt eingeschlossen ist; dieses ist das Wesen der unbedingten

Transzendenz — sofern sie nicht der Schritt ins Leere, sondern in das unbedingt Erfüllte sein soll. Das aber meint

der religiöse Akt.

94Keine Gestalt kann verstanden werden ohne die unmittelbare Richtung auf das Unbedingte.

95Keine Sinn-sphäre neben den anderen ist, sondern eine Haltung in allen Sphären: Die unmittelbare Richtung auf

das Unbedingte.

96Ver também: “Direção imediata a Deus (unmittelbare Richtung auf Gott)” (TILLICH, 2005a [1925/1927], p.

197); “Relação imediata do espírito ao que é incondicional (unmittelbare Beziehung des Geistes auf das

Unbedingt-Seiende)” (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 279)”.

50

Para Tillich (1999b [1927/1928], p. 125) o ato religioso não está ao lado ou acima de

outros atos espirituais, mas está presente em cada ato irrompendo e afirmando sua

condicionalidade. O incondicional é o objeto do ato religioso como ser-transcendência e

sentido–transcendência, assim, o próprio ato religioso não pode ter o caráter de um ato especial,

portanto, a religião não pode ser confundida nesse sentido como uma função entre outras, mas

como uma atitude presente em todas as funções. Não se trata apenas de uma função da vida, de

modo que não pode ficar restrita a ética, nem a função cognitiva, nem a estética, nem ao

sentimento, embora a religião esteja presente em todas estas dimensões.

Não há nenhum ato especial de incondicionalidade; mas cada ato do espírito

pode assumir a qualidade de se tornar um ato de incondicionalidade, isto é,

que tal ato, em que as características e especialidades do ato são,

simultaneamente, estabelecidas e transcendidas. Esta possibilidade é o que

torna o espírito espírito e que torna o ser humano ser humano,

simultaneamente, eleva o espírito sobre o espírito e o ser humano sobre o ser

humano. Este é o ponto em que a dignidade e indignidade do ser humano estão

em um. Não se pode falar a não ser de sua possibilidade. Falar sobre a sua

realidade significaria classificá-lo no contexto do espírito, na essência do ser

humano, e com isto [significaria] suspendê-lo. Talvez esta compreensão seja

a mais importante de toda a filosofia da religião97 (TILLICH, 1999b

[1927/1928], p. 125-126).

Entretanto, o autor discute o “problema da objetivação religiosa” e afirma que a

religião em seu sentido mais estreito, isto é, como uma criação cultural ao lados de outras não

é algo que deva ser descartada pois o “objeto visado (gemeinte) de cada ato religioso é o

Incondicional”98 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 129), o incondicional permanece como o

fundamento e abismo de sentido, como o “último visado (Letzt-Gemeinte)”, sempre

indiretamente por meios do conteúdo através do qual a experiência com o incondicional foi

possível. Este conteúdo adquire o status de símbolo religioso com o qual o ato religioso está

sempre relacionado. Como afirma o teólogo “Contanto que um ato religioso se direciona para

97Es gibt keinen besonderen Akt der Unbedingtheit; aber jeder Geistesakt kann die Qualität annehmen, ein „Akt

der Unbedingtheit" zu werden, d.h. ein solcher Akt, in dem die Eigentlichkeit, die Besonderung des Aktes zugleich

gesetzt und transcendiert wird. Diese Möglichkeit ist das, was den Geist zum Geist und den Menschen zum

Menschen macht und was zugleich den Geist über den Geist und den Menschen über den Menschen erhebt. Es ist

der Punkt, an dem Würde und Unwürdigkeit des Menschen in einem sind. Es ist nie mehr erlaubt, als von seiner

Möglichkeit zu sprechen. Von seiner Wirklichkeit zu reden, hieße ihn einzuordnen in den Zusammenhang des

Geistes, in das Wesen des Menschen, eben damit aber ihn aufheben. Diese Einsicht ist vielleicht die wichtigste der

ganzen Religionsphilosophie.

98Der gemeinte Gegenstand jedes religiösen Aktes ist das Unbedingte.

51

um conteúdo substituinte e através dele, para o último visado, é o conhecimento religioso”99

(TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 136).

Abreu comenta que com a fórmula “direcionamento intencional ao incondicional”, a

religião não pode ser compreendida como uma esfera entre outras, mas como um evento que

ocorre no espírito e nas funções de sentido do espírito. Este incondicional para o qual a

consciência se dirige pode ser percebido no universo cultural e natural de modo que as próprias

funções culturais se tornam o meio para tal experiência. “Nesse sentido, é mais do que evidente

que a determinação de Tillich do conceito de religião, fundamentada como está em sua filosofia

do espírito caracterizada por uma teoria do sentido, também é fenomenologicamente

inspirada”100 (ABREU, 2017, p. 18). A presença da teoria da intencionalidade da consciência

na formulação do conceito de religião tem dessa forma implicações diretas na posterior

formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, assim como, é somente a partir

desta dinâmica entre religião e cultura ou forma e substância que se torna possível entender em

que medida o método fenomenológico de Tillich pode ser aplicado. Entretanto, as implicações

da teoria da intencionalidade da consciência na formulação dos modos como religião e cultura

se relacionam não podem mais ser seguidas nesse capítulo e por conta disso serão retomadas

no terceiro capítulo desta pesquisa juntamente com a análise sobre as possibilidades de

aplicações do método fenomenológico-crítico desenvolvido pelo autor.

1.4.4. Apontamentos sobre a noção de religião como preocupação última nos

escritos posteriores ao período revisionista de Paul Tillich

Tillich em sua produção teórica posterior ao período revisionista, passa a descrever a

religião com uma formulação diferente daquela analisada até aqui, isto é, religião como

direcionamento ao sentido incondicional. Por conta disso, vale destacar que no fim dos anos de

1920 a descrição de religião como aquilo que preocupa o ser humano de forma última começa

a ganhar mais ênfase nos escritos do autor. Esta formulação pode ser vista em alguns textos

99Sofern ein religiöser Akt sich auf einen vertretenden Inhalt und durch ihn hindurch auf das Letzt-Gemeinte

richtet, ist er religiöse Erkenntnis.

100 In this sense, it is more than evident that Tillich’s determination of the concept of religion, grounded as it is on

his philosophy of spirit characterized by a theory of meaning, is also phenomenologically inspired

52

como a Teologia Sistemática (1951-1963) Religião Bíblica e a busca pela realidade última

(1955), Dinâmica da Fé (1957) entre outras dessa época. Aqui a religião é descrita como “[...]

estado de se encontrar apoderado por uma preocupação última, uma preocupação que qualifica

todas as outras preocupações como preliminares, e que possui, ela mesma, a resposta para a

questão do sentido de nossas vidas”101 (TILLICH, 1988 [1963], p. 293). Chama atenção o fato

de que tal descrição da religião não rompe com os fundamentos de seu período intermediário e

encontra-se dessa forma fundamentada sobre a experiência religiosa do direcionamento

intencional da consciência ao sentido incondicional. De acordo com Tillich: “[...] podemos e

devemos entender que o termo preocupação final, como a frase alemã de que é uma tradução102,

é intencionalmente ambígua. Indica, por um lado, nossa preocupação última - o lado subjetivo

- e, por outro lado, o objeto de nossa preocupação última”103 (TILLICH, 1965, p. 11).

O teólogo comenta que o objeto da preocupação última não pode ser outra coisa a não

ser o sentido incondicional. Para Tillich, nem tudo que ocupa o lugar de preocupação última é

verdadeiramente preocupação última, de modo que torna-se necessário considerar o princípio

crítico presente no ser humano, que procura distinguir aquilo que de fato é realmente

incondicional daquilo que reivindica para si esse caráter, pois na “Na fé verdadeira a

preocupação incondicional é o estar tomado pelo que é verdadeiramente incondicional; a fé

idólatra, com contraste, eleva coisas passageiras e finitas à categoria de incondicionais”

(TILLICH, 1985, p. 12).

Em sua TS, o teólogo comenta que na preocupação última o ser humano deve estar

“incondicionalmente preocupado por aquilo que condiciona seu ser para além de todos os

101[...] state of being grasped by an ultimate concern, a concern which qualifies all other concerns as preliminary

and which itself contains the answer to the question of the meaning of our life.

102A fórmula traduzida em português como preocupação última corresponde ao que Tillich descreveu em 1925-

1927 em alemão como was uns, unbedingt angeht. Dogmatik handelt von dem, was uns unbedingt angeht“ (A

dogmática trata daquilo que nos preocupa incondicionalmente) (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 2); „Insofern er

uns unbedingt angeht, ist es der Weg des Offenbarungsdurchbruchs“ [...] (Na medida em que nos preocupa

incondicionalmente, o mito é o caminho da irrupção da revelação) (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 91) ou ainda

“Das Gleiche kann auch so ausgedrückt werden: Das uns unbedingt Angehende ist das uns unbedingt Verborgene.

(Pode-se expressar o mesmo da seguinte maneira: o que nos preocupa incondicionalmente é o que se nos esconde

incondicionalmente)“ (TILLICH, 2005a [1925/1927], p. 15). De acordo com Danz esta fórmula permanece no

período posterior ao período revisionista em termos de preocupação última (ultimate concern), “‘religião é o que

nos preocupa incondicionalmente’ [Religion ist das, was uns unbedingt angeht] (also prevalent in his later period

– ‘religion is that which concerns us unconditionally’ [Religion ist das, was uns unbedingt angeht]) (DANZ, 2099,

p. 179).

103we can and must understand that the term ultimate concern, like the German phrase of which it is a translation,

is intentionally ambiguous. It indicates, on the one hand, our being ultimately concerned — the subjective side—

and on the other hand, the object of our ultimate concern.

53

condicionamentos que existem nele e ao redor dele” (TILLICH, 2011, p. 32), isto é, a

preocupação incondicional do ser humano fundamenta-se naquele sentido que está para além

de qualquer objetificação, nesse sentido, aquilo que preocupa o ser humano de forma última

deve ser nada menos do que o incondicional, que tal como dito anteriormente, não é um ser ou

um objeto, mas um sentido.

Seria necessário ainda um mapeamento para identificar quando a fórmula “preocupação

última” começa a ser utiliza pelo autor. Esta pesquisa infere que nos escritos de Dresden (1925-

1927) a fórmula já estava presente e começa a ser enfatizada. Tendo isso em conta, pode-se

dizer que as primeiras formulações da “preocupação última” encontram-se no final do período

revisionista do autor, marcado pela filosofia do espírito e do sentido, e está em conformidade

com a noção de intencionalidade da consciência ao sentido incondicional. A preocupação

última está ligada ao sentido incondicional e se apresenta como uma versão abreviada desta,

isso aponta para uma continuidade no desenvolvimento intelectual de Tillich onde a noção de

intencionalidade da consciência permanece como fundamento também de seus escritos

posteriores. Entretanto, uma análise mais detalhada sobre a definição tillichiana de religião

como preocupação última e sua relação com a definição de seu período intermediário se torna

inviável de ser feita de forma mais exaustiva nesta pesquisa e segue apenas como provocação

para pesquisas posteriores.

Considerações finais

Tillich fundamenta, no contexto de seu período revisionista que vai do fim da Primeira

Guerra Mundial até os últimos anos da década de 1920, a noção de religião como uma atitude

intencional da consciência em direção ao sentido incondicional presente nas formas postas pelo

espírito humano. Isso significa que a noção de religião descrita pelo autor neste período opera

na dimensão da vida consciente e encontra seus fundamentos na teoria do sentido em diálogo

com a fenomenologia de Husserl, mais especificamente sua teoria da intencionalidade da

consciência.

Como dito anteriormente, o objetivo deste primeiro capítulo foi apresentar a recepção

da fenomenologia no pensamento teológico de Tillich. Para isso, foram dados quatro passos

importantes: primeiro, uma revisão sobre os aspectos biográficos do período revisionista de

54

Tillich onde foi possível observar as motivações que levaram o teólogo a assumir essa postura,

como o abalo da filosofia romântica e do idealismo que marcara a sua primeira fase, e também

os interlocutores com os quais Tillich dialogou para revisar seu pensamento, especialmente o

neokantismo e a fenomenologia de Husserl. Num segundo passo a discussão girou em torno da

teoria da intencionalidade da consciência de Husserl, onde foi possível compreender que para

este pensador a intencionalidade da consciência diz respeito a uma ligação que o ser humano

tem com o mundo da vida, ligação esta que é infatigavelmente posta, no sentido de que toda

consciência é consciência de algo. A intencionalidade se fundamenta, portanto, na consciência

que visa algo e o dota de sentido.

Num terceiro passo foram analisados os contatos do teólogo com a fenomenologia de

Husserl, expressa primeiramente em cartas escritas pelo teólogo durante seu período

revisionista, e o entusiasmo com o qual ele dialoga com a escola fenomenológica. Aqui o foco

esteve na maneira em que a fenomenologia é recebida por Tillich na esteira de sua teoria do

sentido, bem como a ênfase que o autor dá ao verbo “Visar”, através do qual o teólogo vai

moldando sua teoria da consciência intencional ou noética em relação à religião na vida

humana. O último passo do capítulo foi analisar as aplicações que Tillich faz da teoria da

intencionalidade da consciência na fundamentação de seu conceito de religião. Com essa

aplicação o teólogo descreve a religião como um direcionamento intencional da consciência ao

sentido incondicional através das formas postas pelo espírito humano em sua incessante

criatividade no mundo da vida.

A presença das categorias fenomenológicas “direcionamento” e “visar” ajuda a delinear

os contornos da aplicação que Tillich faz da teoria da intencionalidade do ato da consciência de

Edmund Husserl para fundamentar seu próprio conceito de religião. Assim, a noção de religião

em Tillich encontra-se fundamentada numa consciência imediata e não simbólica do sentido

incondicional que funda a autoconsciência, e numa realidade concreta e finita por meio da qual

a consciência se dirige em direção ao sentido incondicional. Embora estes dois elementos

possam ser separados didaticamente para fins de análise, tal como feito nesta pesquisa, eles são

inseparáveis na experiência real e permanecem essencialmente unidos.

A experiência religiosa se caracteriza exatamente pelo ato intencional de “visar” o

sentido incondicional e fazer com que a coisa “visada” cobre sentido no mundo da vida através

do ato reflexivo da consciência. Ou seja, assim como toda consciência é consciência de algo

para Husserl, em Tillich o sentido incondicional também é algo do que se possa estar

55

consciente. Em Tillich, portanto, a consciência é constituída por um visar original ou “ato puro

de direção a (reinem Akt der Richtung auf)” (TILLICH, 1989 [1923], p. 123), cujo correlato

noemático intencional é o sentido incondicional.

A religião torna-se então o pressuposto de uma satisfatória realização do sentido em

todas as funções. Em outras palavras, a religião como sentido incondicional pode ser percebido

pela intencionalidade da consciência em toda forma cultural, e nesse sentido, as formas culturais

podem servir como símbolos que apontam para esse sentido incondicional. A cultura, portanto,

atua como meio através do qual a religião torna-se possível. Ambas estão unidades em todo

sentido particular.

Diante disso, o teólogo afirma que em toda experiência religiosa é preciso distinguir

dois pontos: “(1) o ‘ponto’ da consciência imediata do incondicional que é vazio, mas

incondicionalmente certo; e (2) a ‘amplitude” de uma preocupação concreta repleta de conteúdo

[...] A teologia lida com o segundo elemento, pressupondo o primeiro”104 (TILLICH, 1987b

[1947], p. 308). O que está vazio é sem conteúdo e não-simbólico mas é a base da religião, o

que tem conteúdo é simbólico e extraído das formas culturais posto pelo espírito humano.

Ambos os elementos precisam ser considerados em toda análise da religião e para tanto a

proposta de Tillich consiste em formular um método que une um elemento crítico com um

elemento intuitivo.

É para dar conta de ambos os polos dessa relação que se torna possível perceber a

importância da fenomenologia crítica de Tillich, denominado num primeiro momento de

método crítico-intuitivo e depois de metalógico. No método tillichiano, o elemento intuitivo-

descritivo está para a consciência intencional assim como o elemento existencial-crítico está

para a forma de sentido, isto é, o elemento concreto através do qual o incondicional é percebido.

Na sequência, a presente pesquisa se concentrará em torno deste método tillichiano

desenvolvido desde os anos 1920 e que receberá em 1951 o nome de fenomenologia crítica.

104 (1) the 'point' of immediate awareness of the unconditional which is empty but unconditionally certain; and (2)

the 'breadth' of a concrete concern which is full of content [...]. Theology deals with the second element, while

presupposing the first and measuring every theological statement by the standard of the ultimacy of the ultimate

concern.

56

CAPÍTULO 2

OS ELEMENTOS INTUITIVO E CRÍTICO COMO EPICENTRO DA

FENOMENOLOGIA CRÍTICA

O objetivo deste capítulo é apresentar em que consiste a fenomenologia crítica de Tillich

partindo de uma análise dos elementos basilares que constituem o método, a saber: os elementos

intuitivo e crítico.

Tillich no contexto de seu período revisionista, entre o fim da Primeira Guerra Mundial

e os últimos anos de 1920, discute o lugar da fenomenologia no âmbito das análises do

fenômeno religioso e reconhece seu caráter radical bem como sua importância para chegar a

essência da religião. Entretanto, o teólogo se apropria da fenomenologia de maneira crítica e

afirma que falta ao método fenomenológico um elemento crítico, que valorize os aspectos

concretos e existenciais da experiência religiosa. Dessa forma o autor propõe unir o elemento

intuitivo da escola fenomenológica com um elemento crítico oriundo do pensamento kantiano.

A união destes elementos constitui os fundamentos e também o aspecto inovador da

fenomenologia tillichiana. Entretanto, embora Tillich tenha fundamentado sua fenomenologia

crítica a partir da união de ambos os elementos, esta união aparece também como fundamento

de outros métodos do autor denominados num primeiro momento de crítico-intuitivo (1920) e

posteriormente de metalógico (1923).

Da mesma forma, posterior a fenomenologia crítica, o autor apresenta um quarto método

denominado intuitivo-crítico (1962). Diferente dos dois primeiros, os dois últimos acrescentam

a abordagem ontológica existencial como uma abordagem necessária ao lado da intuição e da

crítica. Tanto a fenomenologia crítica (1951) como a intuição-crítica (1962) representam, dessa

forma, as formulações finais do método. Sendo assim, para uma compreensão rigorosa da

fenomenologia crítica de Tillich torna-se necessário uma análise dos métodos anteriores e

posteriores à fenomenologia crítica e que estão fundamentados sobre uma base em comum.

2.1. Críticas de Tillich ao método fenomenológico e a proposta de união entre

os elementos intuitivo e crítico

2.1.1. O contexto da crítica: uma análise sobre os métodos da filosofia da religião

57

O pressuposto de Tillich é compreender a religião como uma função necessária na

constituição da consciência humana, tal como discutido no capítulo anterior, e não apenas como

uma entre outras funções da consciência. Nesse sentido, ele começa sua discussão metodológica

afirmando que o objeto da filosofia da religião é a religião. Para o autor, esta definição de caráter

elementar apresenta um problema, trata-se em termos gerais, do problema fundamental da

filosofia da religião. “Na religião a filosofia encontra um objeto que resiste a ser tornado objeto

da filosofia. Quanto mais forte, pura e originária seja uma religião, mais ela reclamará ser

abstraída ao universo dos conceitos generalizantes”105 (TILLICH, 1973 [1925], p. 27).

De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 27-28) ideias como revelação ou salvação são

opostas ao conceito de religião, pois expressam ações que acontecem apenas uma vez, sua

origem é transcendente e seus efeitos transformam a realidade, religião tem a ver com a cultura;

‘revelação’ com aquilo que está além da cultura. Por esta razão a religião se sente atacada em

sua essência mais íntima quando é chamada de religião. Por este motivo afirma o teólogo, a

religião se fecha ao enfrentar-se com a filosofia da religião e se abre à teologia na medida em

que esta se afirma como ciência da revelação. Dessa forma a filosofia da religião se vê numa

situação peculiar diante da religião. “Está obrigada a dissolver o objeto que deseja compreender,

ou a declarar-se nula e vazia. Se ela não considerar o caráter revelado da religião, seu objeto se

lhe escapa e acaba não falando de uma religião genuína. Mas se aceitar, ela se transforma em

teologia”106 (TILLICH, 1973 [1925], p. 28).

De acordo com o teólogo, ambos os caminhos devem ser evitados pela filosofia da

religião, de modo que a questão que emerge é como a filosofia da religião pode lançar luz de

forma plena sobre seu objeto, sem com isso comprometer sua consciência filosófica da verdade.

Para o pensador alemão, “Existe um ponto na doutrina da revelação e na filosofia em que os

dois são um. Encontrar este ponto, e a partir dele construir uma solução a partir da síntese, é a

tarefa decisiva da filosofia da religião”107 (TILLICH, 1973 [1925], p. 30). Diante deste

problema, Tillich propõe uma reflexão de caráter metodológico passando por aquilo que ele

105 In religion, philosophy encounters something that resists becoming an object of philosophy. The stronger, purer,

and more original the religion, the more emphatically it makes the claim to be exempt from all generalizing

conceptual structures.

106 It must either dissolve away the object it wishes to grasp or declare itself null and void. If it does not recognize

religion’s claim to revelation, then it misses its object and does not speak of genuine religion. If, on the other hand,

it acknowledges the claim to revelation, then it becomes theology.

107For there is a point in the doctrine of revelation and philosophy at which the two are one. To find this point and

from there to construct a synthetic solution is the decisive task of the philosophy of religion.

58

chama de métodos impróprios da filosofia da religião e em contrapartida o método correto.

Sendo assim, a crítica de Tillich ao método fenomenológico está inserida num contexto maior

de análises sobre os métodos em filosofia da religião, de modo que, entender este contexto de

análise é importante para uma compreensão de sua própria proposta metodológica108.

Higuet (2011, p. 30) comenta que Tillich começa por excluir três métodos oriundos da

ciência da religião, da teologia e da metafísica. Tratam-se dos métodos, empírico,

supranaturalista e especulativo. De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 38), estes métodos são

insuficientes para alcançar a essência da religião e consequentemente conduzem a resultados

negativos. O método das ciências empíricas, tais como a psicologia, sociologia ou história

buscam abstrair um conceito da essência da religião a partir de fenômenos individuais, por meio

da consideração de sua origem e formação em um objeto particular na sociedade ou na

totalidade da história. O método teológico ou supranatural é a tentativa de derivar o conceito de

religião da própria religião revelada e, portanto, tida como verdadeira, este método é empírico,

ainda quando limita seu empirismo a um lugar designado de maneira sobrenatural. O método

especulativo ou metafísico, por sua vez, se propõe determinar a essência da religião a partir do

objeto ao qual o ato religioso é dirigido. Este método supõe que o objeto religioso poderia ser

captado independentemente das ações religiosas e que o incondicional é um objeto possível de

conhecimento racional. Em relação a estes métodos, “Eles sãos impróprios porque nenhum

deles alcança satisfatoriamente a essência da religião” (HIGUET, 2011, p. 30).

Para Tillich o método filosófico deve abstrair os princípios formativos a partir da

realidade informada pelo sentido109 e deve colocar os princípios significativos em uma relação

108 As considerações metodológicas de Tillich podem ser analisadas em quatro textos de seu período alemão: “a 7,

8 e 9 aula do curso filosofia da religião ministrado em Berlim em 1920”, “A superação do conceito de religião na

filosofia da religião” (1922), “Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (1923) e a “Filosofia da Religião”

(1925). No primeiro e segundo texto Tillich fala de três métodos para a filosofia da religião, o fenomenológico ou

intuitivo, crítico e crítico-intuitivo ou paradoxal. O terceiro traz também três métodos, de acordo com Higuet

(2011, p. 27) já chegando a uma formulação mais definitiva: crítico, fenomenológico e metalógico. E o último

apresenta quatro métodos: dialético-crítico, fenomenológico, pragmático e metalógico ou crítico-intuitivo. Em

relação ao método fenomenológico, há um outro texto em que Tillich dirige-se especificamente a ele, este texto é

a primeira parte da Teologia Sistemática de 1951. Neste texto, além de direcionar sua crítica ao método

fenomenológico de Edmund Husserl, Tillich também se dirige diretamente a Max Scheler, considerado pelo

teólogo como um discípulo de Husserl. A despeito do longo período de tempo transcorrido entre o primeiro e

último texto, a pesquisa se utilizará de todos os textos simultaneamente devido ao fato de Tillich ter reproduzido

ao longo destes anos uma crítica que se manteve essencialmente a mesma.

109 “O sentido explicita-se em dois elementos ou aspectos fundamentais: a forma (Sinnform) e o conteúdo ou

substância (Sinngehalt). A forma do sentido corresponde ao pensamento, enquanto o conteúdo corresponde ao ser.

Gehalt designa um conteúdo mais profundo, mais substancial que Inhalt, que seria o conteúdo concreto e objetivo.

Gehalt significa especialmente o sentido e o valor de alguma coisa. É a substância que funda tudo, é também o

conteúdo que preenche toda forma, cuja ausência provoca o vazio do não-sentido” (HIGUET, 2011, p. 32).

59

coerente, unificada e necessária, trata-se, portanto, de uma dupla demanda que precisa ser

respondida. Tendo isso em conta, o teólogo analisa três métodos em filosofia da religião que

preparam o caminho em direção aquilo que o teólogo chamou de o método correto da filosofia

da religião (TILLICH, 1973 [1925], p. 41). Estes métodos são: o método crítico-dialético, o

fenomenológico e o pragmático. Na sequência, serão analisados primeiramente o método crítico

e pragmático, e posteriormente com um enfoque maior, o método fenomenológico.

Para o autor, na medida em que a filosofia abstrai os princípios de sentido da realidade

significativa, é crítica, e na medida em que os inter-relacionam sistematicamente, é dialética.

“Entretanto, ambos os métodos são a mesma coisa. O método crítico é sempre dialético, [...] e

o método dialético é também necessariamente crítico”110 (TILLICH, 1973 [1925], p. 41-42).

Este método pressupõe a autonomia do espiritual em relação a qualquer objeto que se dê de

maneira imediata. Os princípios de sentido aos que se submete a consciência em toda ação

espiritual, são também os princípios de sentido aos quais se submete o ser. O “método crítico-

dialético desenvolve as formas de sentido universais que são ao mesmo tempo as funções do

espírito e princípios da realidade de sentido”111 (TILLICH, 1973 [1925], p. 42).

De acordo com Tillich (1973 [1925], p. 43), o método crítico, especialmente no

desenvolvimento que se deu em Kant e a escola neokantiana, volta-se, sobretudo, às condições

prévias de toda estrutura unificada na realidade de sentido. Ele se dirige à interconexão das

formas de sentido e separa a realidade de sentidos de outros conteúdos da realidade e os submete

ao princípio lógico fundamental da unidade. Com isso, o método crítico-dialético implica

somente um dos elementos inerentes a toda consciência de sentido, a saber, a forma do sentido,

deixando de lado a substância. Sendo assim, este método acaba por não dar conta da realidade

fundamental que está pressuposta em todas as formas de sentido, isto é, a substância do sentido.

De acordo com o teólogo, a substância do sentido é o fundamento da realidade sobre o

qual estão as formas de sentido, assim como é o lugar onde repousa o sentido último e a

essencialidade de cada ação de sentido. A unidade das formas, bem como as formas individuais,

ficaria completamente desprovida de conteúdo se não manterem uma relação com a substância

do sentido. O método crítico, comenta o teólogo, coloca esta substância entre parêntesis e “Pode

110 Both methods, however, are one: the critical method is always dialectical as well [...] and the dialectical method

is necessarily also critical.

111 The critical-dialectical method develops the universal forms of meaning, which are at the same time functions

of the spirit and principles of the meaning-reality.

60

traçar o esquema puramente lógico das relações dos diversos princípios e ao terminar esta

tarefa, pode encontrar-se com um sistema de formas – que, por outro lado e sem dúvidas, estará

perfeitamente vazio”112 (TILLICH, 1973 [1925], p. 43). Dessa forma, a dimensão relacionada

ao sentido e à substância não podem ser devidamente captadas através deste instrumental.

O caminho que Kant seguiu foi de uma profundidade que o leva à observação

que a dedução das categorias seja a investigação mais difícil que jamais fosse

empreendida ao propósito da filosofia. [...] Kant o nomeia mundo da

manifestação. Tudo que está aí para nós é o mundo de manifestação, o mundo

formado pelo sujeito. Mas as formas de estruturação são provadas, através

disto, como de validade geral e necessárias, pelo fato de que são necessárias

para a unidade da consciência. [...] Mas para a religião, de fato, não permanece

nenhum lugar e tem-se, agora, que procurar alguma coisa em que possa ser

pendurada. Neste ponto [da], para o filósofo do iluminismo o qual tinha posto

a religião a serviço do melhoramento moral, resulta surgindo a razão prática,

e nasce a famosa prova moral de Deus e a “religião nos limites da simples

razão”, dentro dos quais está contida a filosofia da religião de Kant a qual é

não crítica [ou acrítica] – assim devemos dizer113 (TILLICH, 2001 [1920], p.

381-382).

O autor comenta que isso vale para todas as funções teóricas e práticas, mas de maneira

fundamental para a filosofia da religião. Quando a crítica da religião é realizada seguindo essa

postura, chega a concepção da religião como uma orientação em direção a unidade das formas

de sentido, à sínteses absoluta das funções. Entretanto, a religião não aceita ser transformada

em uma síntese das funções do espírito, e expressa isso ao rejeitar a identificação entre divino

e humano, Espírito Santo e espírito natural, e de forma mais radical, entre o Sagrado e o cultural.

Conceitos como graça, revelação, e “demônia”, que irrompe através das formas, não são

capazes de serem apreendidos pelo método crítico, e de acordo com o teólogo, “um método que

não pode captar conceitos tais como ‘graça’, ‘revelação’ ou ‘demônio’, conceitos que desfazem

todas as formas, é absolutamente inadequado para a religião. Por conta disso, o elemento crítico

não deve ser o único”114 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44).

112 It can trace out the purely logical-dialectical relations of the separate principles, and it then finds itself in

possession of a system of forms – which, to be sure, are absolutely empty.

113Der Weg, den Kant ging, war von einer Tiefe, die ihn selbst zu der Bemerkung veranlaßt, daß die Deduktion

der Kategorien die schwerste Untersuchung sei, die je zum Behufe der Philosophie unternommen sei. [...] Kant

nennt sie Erscheinungswelt. Alles, was für uns da ist, ist Erscheinungswelt, Subjekt-gestaltete Welt. Die

Gestaltungsformen aber sind eben dadurch als allgemeingültig und notwendig bewiesen, daß sie zur Einheit des

Bewußtseins nötig sind. [...] Für die Religion aber bleibt überhaupt kein Platz, und es muß nun etwas gesucht

werden, an das sie angehängt werden kann. Da ergibt sich für den Philosophen der Aufklarung, der die Religion

in den Dienst der moralischen Aufbesserung gestellt haste, die praktische Vernunft, und es entsteht der berühmte

moralische Gottesbeweis und die „Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft“, in denen zusammen

Kants unkritische — so müssen wir sagen — Religionsphilosophie enthalten ist.

114 A method that cannot grasp concepts such as grace, revelation and the demonic, which break through all forms,

is absolutely inadequate for religion. The critical element, however, must not remain the only element.

61

Outro método analisado por Tillich (1973 [1925], p. 47) é o pragmático. Este método

considera que os conceitos são construções subjetivas, como as palavras ou a ficção que

adquirem sentido enquanto conservam sua vigência, mas que não possuem uma verdade

objetiva. O sentido que possibilita sua vigência consiste no fato de facilitarem o domínio que

um organismo ou espécie exerce sobre seu meio ambiente e sobre seu mundo interior. Este

método, portanto, se nega a reconhecer nas coisas nada que seja estático ou que possa se parecer

a uma essência. Considera que o conceito pode mudar em cada instante, sendo assim, um

momento transitório na dinâmica das relações de poder.

Compreender uma realidade como a religião significa demonstrar o sentido enaltecedor

de vida que a ficção religiosa possui, apontar o lugar no processo vital no qual essa ficção se

torna necessária. O método pragmático leva em consideração o caráter criativo individual da

realidade viva, e opõe-se a qualquer fixação espiritual racional ou intuitiva de essências

espirituais. Entretanto, o autor comenta que este método é tolerado apenas quando a atitude

espiritual de quem o professa consegue separar a teoria da convicção vivida, e deixa que a teoria

fique no campo teórico e, portanto, sem qualquer envolvimento com a realidade. Nesse sentido,

o método pragmático torna-se inibidor da vida, pois ao passo que destaca o caráter fomentador

da vida, ele também a destrói ao impedir a participação efetiva em tais ficções, promovendo

dessa forma uma atitude puramente teórica, ou seja, “sua capacidade de reafirmar e fortalecer

a vida se volta contra ela mesma. Por esta razão deve-se rejeitar o método pragmático na

filosofia da religião”115 (TILICH, 1973 [1925], p. 47).

2.1.2. Crítica ao método fenomenológico

As primeiras considerações críticas de Tillich ao método fenomenológico podem ser

observadas na sétima aula de um curso sobre filosofia da religião ministrado em Berlim em

1920. Aqui o teólogo inicia seu discurso apresentando a fenomenologia como uma ciência que

emergiu da psicologia e engajada numa luta violenta contra o psicologismo116. Este método,

115 Its life-strengthening power, turns against itself. For that reason the pragmatic method must be rejected for

philosophy of religion.

116Husserl assumiu uma postura de oposição em relação ao psicologismo, de acordo com o filósofo: “É em geral

conhecido que a teoria do conhecimento de Kant tem aspectos que procuram e, de fato, conseguem, elevar-se

acima deste psicologismo das faculdades anímicas como fontes de conhecimento. Basta dizer-se que ela tem

também aspectos com forte recorte psicologista, o que não exclui naturalmente a polêmica acesa contra outras

62

afirma o teólogo, conseguiu instaurar-se, sob o comando de Edmund Husserl como uma

proposta autônoma no campo da ciência do espírito. Este “É o método fenomenológico,

primeiramente apresentado nas Investigações Lógicas de Husserl, 1900, volume II [1901].

Husserl parte [do pressuposto] que a psicologia usual torna a alma objeto para depois explica-

la ao modo de um objeto, assim cientificamente natural”117 (TILLICH, 2001 [1920], p. 379) e

na sequência o teólogo comenta também que a fenomenologia enquanto proposta metodológica,

“O método não é reflexivo, mas intuitivo, e não é direcionado aos motivos os quais tem que ser

explicados, mas direcionado à própria coisa”118 (TILLICH, 2001 [1920], p. 380).

De acordo com o pensador alemão, a fenomenologia tem se colocado como uma das

mais vigorosas críticas a outros métodos de seu tempo, sobre tudo à escola kantiana. Ela parte

de “uma tentativa de construir um sistema de essências mediante a recuperação do realismo

lógico – sistema que acede à consciência através da intuição imediata das essências (intuição

eidética) (Wesensschau)”119 (TILLICH, 1973 [1925], p. 44). O teólogo comenta que toda

essência é um a priori, mas que o empirismo provê apenas o material para a intuição no qual

torna-se possível perceber a essência, mas a essência em si não é empírica e por conta disso

torna-se necessário superar o caráter racional e formal do a priori crítico, algo que a

fenomenologia tem logrado fazer pelo fato de que o a priori fenomenológico é a própria

essência apreendida em toda vivência. Dessa forma, a primeira finalidade do método

fenomenológico é “descrever ‘significados’, deixando de lado, por um tempo, a questão da

realidade à qual se referem” (TILLICH, 2011, p. 119).

Consequentemente, afirma Tillich (1973 [1925], p. 45), a intuição das essências se

estende uniformemente a todos os objetos espirituais e sensoriais. Não existe desta forma uma

distinção entre o ser e o espírito, mas entre a essência e existência. A essência no contexto da

fenomenologia diz respeito a plenitude em que participam todo os existentes, seja em maior ou

formas de fundamentação psicologística do conhecimento. Aliás, não somente Lange, como também uma boa

parte dos filósofos de estilo kantiano [A: neo-kantianos] pertencem à esfera da teoria do conhecimento

psicologista, ainda que não queiram aceitar o termo. Psicologia transcendental é, exatamente, também psicologia

(HUSSERL, 2014, p. 70, nota 23)

117Es ist die phänomenologische Methode, zuerst dargestellt in Husserls Logischen Untersuchungen, 1900, Band

II [1901]. Husserl geht davon aus, daß die gewöhnliche Psychologie die Seele zum Objekt mache, um sie dann

[nach] Art eines Objektes, also naturwissenschaftlich, zu erklären.

118Die Methode ist also nicht reflektiv, sondern intuitiv, und sie ist nicht auf die zu erklärenden Ursachen, sondern

auf die Sache selbst gerichtet.

119 This is the attempt to construct a system of essences through the recovery of logical realism – a system that is

brought to consciousness by an immediate intuition of essences (Wesensschau).

63

menor grau. A intuição de uma essência por sua vez pode se dar a partir de qualquer objeto,

real ou imaginário e sua veracidade pode ser atestada quando consegue penetrar até a essência

mesma do fenômeno, ou seja, o “teste de uma descrição fenomenológica consiste em sua

capacidade de oferecer um quadro que seja convincente, de torna-lo visível a qualquer pessoa

que esteja disposta a olhar na mesma direção, de iluminar com ele outras ideias afins e de tornar

compreensível a realidade que estas ideias pretendem refletir” (TILLICH, 2011, p. 119).

Tillich valoriza, portanto, o caráter rigoroso e radical da fenomenologia na exigência do

esclarecimento de sentidos e percebe a partir disto, as possibilidades dessa contribuição na

esfera das análises do fenômeno religioso. Dessa forma, o teólogo afirma que este método “[...]

será capaz de intuir eideticamente a essência e as qualidades peculiares da religião em qualquer

manifestação religiosa. Tal intuição será independente da realidade empírica do objeto, e da

mesma forma, irá possuir um a priori de rico conteúdo, não meramente formal”120 (TILLICH,

1973 [1925], p. 45). O autor supõe que dessa forma não haveria dificuldades em reconhecer o

caráter único da religião entre as demais essências do espírito, e nesse sentido, se fosse

necessário escolher entre o método crítico e o fenomenológico, “a fenomenologia sem dúvidas,

seria preferível, pelo menos em filosofia da religião. Com ela é possível aproximar-se ao objeto

verdadeiro da investigação muito mais perto e muito mais vitalmente que a crítica ou a dialética.

Ela vive na própria coisa e não em seu aspecto racional e abstrato”121 (TILLICH, 1973 [1925],

p. 45).

O destaque que Tillich dá ao método fenomenológico concentra-se sobretudo em seu

aspecto intuitivo. Este elemento para ele é essencial e serve como um padrão para medir a crítica

kantiana. O método é descrito em 1920, como sendo um dos mais recentes métodos existentes

e como um marco no pensamento filosófico. Por ser uma ciência recém-chegada, o autor

comenta que há ainda muita coisa para se fazer, “Embora este trabalho, pensa Husserl, pode ser

prestado em breve, em que a maioria do trabalho esteja concluído”122 (TILLICH, 2001 [1920],

p. 379).

120 [...] would therefore be able to intuit the essence and the peculiar qualities of religion in any example of it. It

would be independent of the empirical and yet would have an a priori rich in content and not merely formal.

121 Phenomenology without any doubt would be preferable for philosophy of religion. It is able to approach the

real object of inquiry more closely and vitally than is possible for either criticism or dialectic. It lives in the very

thing itself, not in its rational-abstract aspect.

122 Diese Arbeit aber, meint Husserl, kann in absehbarer Zeit so geleistet werden, daß sie in gewisser Weise

abgeschlossen ist.

64

Entretanto, Tillich afirma que existem fortes objeções à fenomenologia, tanto no que se

refere ao aspecto metodológico como em relação a seus princípios. Estas objeções se baseiam

sobretudo na relação que existe entre essência e existência. Para o realismo fenomenológico,

comenta o autor, a existência se origina em uma confluência acidental de diversos atributos

essenciais em um indivíduo. Fora de sua mera existência, o indivíduo não possui nada além da

essência da qual participa. A infinitude interior e o sentido eterno do indivíduo desaparecem

completamente. Isso se deve ao fato de que “a fenomenologia não possui órgão algum que lhe

permita perceber o caráter criativo e único do evento histórico”123 (TILLICH, 1973 [1925], p.

29).

Embora Tillich destaque a importância do elemento intuitivo, o teólogo afirma que tal

intuição é independente da realidade empírica. A fenomenologia nesse sentido seria portadora

de um caráter a-histórico124 e, portanto, incapaz de fazer justiça ao problema da existência. De

acordo com o autor:

O método fenomenológico é a expressão de uma atividade que se afasta do

mundo das manifestações concretas para se concentrar na essência interior das

coisas. Esta inversão do olhar natural sobre o mundo, esta intuição interior das

essências, possui um elemento místico-ascético e expressa uma metafísica

estática e o desejo de alcançar a união com a realidade eterna mediante o ato,

um ato de conhecimento. A equiparação dos conceitos de essências e norma

supõe uma situação espiritual em que é dominante uma cosmovisão

autossuficiente fechada à crítica; por essa razão as formas espirituais dadas da

vida podem se transformar, sem mediação, em exemplos imediatos das

essências eternas. No campo da epistemologia o método fenomenológico é a

expressão autentica de tal situação espiritual. Entretanto, assim que o fatal

curso da história rompe a unidade e a certeza imediata, e assim como o

interesse em mudar as aparências troca a preocupação pelas essências eternas,

a fenomenologia perde seu sentido mais profundo. Não pode fazer justiça ao

problema da existência e somente se retém o sentido de uma protesta a viva

123 For phenomenology has no organ for apprehending the uniquely creative character of the historical event.

124 É preciso levar em consideração que a crítica de Tillich a fenomenologia de Husserl não se refere à totalidade

do pensamento de Husserl, mas apenas a um momento específico marcado sobretudo pelo idealismo das

Investigações Lógicas e das Ideias, obras com as quais Tillich trabalhou e menciona em diversos momentos no

decorrer de seus próprios escritos. A maior parte das obras de Husserl será publicada somente após sua morte em

1938 de modo que não haveria como Tillich, no contexto de seu período revisionista, ter tido uma noção da

totalidade do pensamento de Husserl. Como já referido, Husserl em sua terceira fase, após 1930, valoriza

sobremaneira a questão da história e o “mundo da vida” como lugar originário das vivências concretas. O conceito

de mundo da vida expressa bem essa reconciliação da fenomenologia com a história. No entanto, Tillich

aparentemente não teve contato com as obras do último Husserl, e se teve, não trouxe isso com muita ênfase para

os seus escritos, pois como será visto no decorrer dessa pesquisa, Tillich reproduziu em seus escritos tardios uma

crítica à fenomenologia de Husserl bastante próxima àquela feita em seu período revisionista.

65

voz contra a atitude exclusivamente crítica e formal125 (TILLICH, 1973

[1925], p. 48).

Tillich comenta que a fenomenologia tem razão naqueles casos em que a essência está

relacionada com o fenômeno tal como o triangulo matemático está relacionado com o triangulo

concreto. Nestes casos comuns ao reino da natureza, o exemplo nada mais é do que um

exemplar de uma espécie, isto é, o fenômeno não é mais do que uma ilustração concreta ou

exemplificação da essência. “Mas nisto se revela a problemática do método inteiro. O que é

exemplar? O que é um processo religioso-exemplar? O que conduz para além da

subjetividade?”126 (TILLICH, 2001 [1920], p. 381)127. Ao aplicar o método no campo do

fenômeno religioso o teólogo percebe que a fenomenologia é incapaz de responder uma questão

de caráter decisiva para sua validez, “Onde e para quem se revela uma idéia? O fenomenólogo

responde: tome como exemplo um evento revelatório típico e veja nele e através dele o sentido

universal de revelação” (TILLICH, 2011, p. 119).

Para Tillich, esta resposta demonstra a insuficiência do método na medida em que a

intuição fenomenológica se depara com exemplos diferentes e por vezes até mesmo

contraditórios de revelação no contexto histórico da experiência religiosa. Diante disso torna-

se elementar a pergunta sobre que critério deve determinar a escolha de um exemplo? Para o

teólogo, a fenomenologia não responde essa pergunta. “Isso indica que a fenomenologia,

embora seja competente no âmbito das significações lógicas, que são o objeto das pesquisas

125 The phenomenological method is the expression of an attitude that turns away from the world of appearance to

the inner essence of things. This inversion of the natural view of the world, this inner intuition of essences, contains

a mystical and ascetic element and is the expression of a static metaphysics and of the desire to achieve union with

the eternally abiding reality through an act of knowledge. The equating of the concept of essence with the concept

of norm presupposes a spiritual situation in which a self-sufficient world view shut off from criticism is dominant,

and for that reason the given spiritual forms of life can become immediate examples of eternal essences. In the

field of epistemology the phenomenological method is the authentic expression for such a spiritual situation. As

soon, however, as the unity and the immediate certainty of the traditional meaning-reality is broken by the fateful

course of history, and as soon as concern for changing appearances has replaced preoccupation with eternal

essences, then phenomenology loses its deepest meaning. It cannot do jus-tice to the problem of existence, and

retains only the significance of a standing protest against the exclusively critical and formal attitude.

126Darin aber offenbart sich die Problematik der ganzen Methode. Was ist exemplarisch? Was ist ein exemplarisch-

religiöser Vorgang? Was führt über die Subjektivität hinaus?

127 No mesmo curso de 1920 em que Tillich discute o método fenomenológico de Edmund Husserl, o teólogo

também menciona o trabalho de Max Scheler. De acordo com Tillich “Do tipo como este método trabalha pode-

se fazer uma apresentação dos escritos de Scheler [...] Se Scheler, por exemplo, quer desenvolver o conceito de

guerra (Max Scheler, Der Genius des Krieges und der Deutsche Krieg. Leipzig 1915, 2 ed., 1916, 3. Ed., 1917)

fenomenologicamente, então ele não pergunta de onde ele vem, como ele deve julgá-lo, etc., mas o que o idioma

visa (meint) com ele, ele o delimita contra os conceitos relacionados como luta, disputa ou coisa semelhante. Ele

observa o oposto, paz, e o compara com pax, que não é apenas direcionado negativamente, e assim por diante. Em

outro lugar, ele faz igualmente com o conceito amor, e poder-se-ia deduzir o mesmo com fé, santidade etc. [...] De

forma característica, o livro de Scheler foi um livro alemão do ponto de vista da guerra, então, não pode, pelo

menos, reivindicar uma validade universal (Allgemeingültigkeit) (TILLICH, 2001 [1920], p. 379-380).

66

originais de Husserl, o inventor do método fenomenológico, é só parcialmente competente no

âmbito das realidades espirituais, como a religião128” (TILLICH, 2011, p. 120). Para Tillich, a

fenomenologia perdeu muito de sua posição:

[...] em parte por exageros como na tentativa de Scheler de tornar bispos e

anjos em objetos de intuição fenomenológica necessária, em parte pela

impossibilidade de evitar decisões existenciais na escolha de exemplos da

intuição e em parte por confusões entre afirmações empíricas e

fenomenológicas [...] Desde a época de Platão e de Aristóteles, há uma falta

de acordo sobre os primeiros princípios, e o ideal de Husserl da filosofia como

ciência estrita desabou em todos os seus alunos (como o Sr. Husserl certa vez

me confessou com grande tristeza)129 (TILLICH, 1989 [1955], p. 384).

Ao lidar com a filosofia da religião, por exemplo, Tillich (1973 [1925], p. 46) comenta

que a fenomenologia chegaria à proposição de uma essência da religião que transcenda toda

religião empírica. Essa essência só poderia estar dotada das características de uma determinada

religião histórica ou então proporia a construção de uma nova religião ideal. No primeiro caso

ficaria evidente um tradicionalismo metodológico que se aproxima muito ao sobrenaturalismo,

e, no segundo caso, somente se poderia evitar o racionalismo construtivo se a proposta fosse

tratar de uma visão profética da religião e não de uma ciência metodológica como é o caso.

Dessa forma, o autor afirma: “A fenomenologia enfrenta uma alternativa: Pode interpretar a

realidade histórica individual como manifestação não significativa da essência, a fim de ser

capaz de encarar a intuição da essência em qualquer fenômeno religioso, ou pode oferecer

provas (procedimentos que não poderiam ser fenomenológicos) de porque se utiliza apenas um

fenômeno particular como material para a intuição da essência”130 (TILLICH, 1973 [1925], p.

46).

Para o autor, “com respeito à história a fenomenologia carece de validez”131 (TILLICH,

1973 [1925], p. 46). Esta objeção chama atenção para o caráter a-histórico do método, e por

128 Tillich comenta em nota de rodapé esta é “a justificação fenomenológica que Max SCHELER nos oferece de

todo o sistema católico romano em seu livro Vom Ewigen im Menschen, Leipzig: Neuer Geist, 1923. Husserl com

razão rejeitou esse empreendimento” (TILLICH, 2011, p. 120, nota 2).

129[...] partly by exaggerations as in Scheler’s attempt to make bishops and angels into objects of necessary

phenomenological intuition, partly by the impossibility of avoiding existential decisions in the choice of examples

of the intuition, and partly by confusions between empirical and phenomenological statement [...] Since the time

of Plato and Aristotle there has been lack of agreement about he first principles, and Husserl’s ideal of philosophy

as a strict science has broken down in all his pupils (as Mr. Husserl once confessed to me with great sorrow).

130 Phenomenology faces this alternative: Either it can interpret the individual historical reality as an insignificant

manifestation of essence, in order to be able to undertake the intuiting of essence in any and every religious

phenomenon; or it can offer a proof (a procedure that could not be phenomenological) as to why just one particular

phenomenon is employed as the material for the intuition of essence.

131That with respect to history phenomenology is wrong.

67

consequência sua impossibilidade de uma análise totalmente competente no âmbito dos

fenômenos religiosos pois “tão logo a intuição fenomenológica se depare com exemplos

diferentes e talvez contraditórios de revelação” (TILLICH, 2011, p. 120) o método se mostra

carente de critérios capazes de determinar a escolha de um exemplo. Nesse sentido, a crítica

tillichiana ao método fenomenológico dirige-se sobretudo ao lado unilateral e estático do

método.

Chama atenção o fato de que em todos os três textos mencionados a crítica de Tillich se

manteve essencialmente a mesma, contendo apenas algumas diferenças devido a proposta

maior do livro. Em 1920 o método é apresentado como um dos mais recentes métodos chegados

no cenário acadêmico e de fundamental importância para a crítica kantiana, a preocupação neste

momento parece girar mais em torno de uma avaliação sobre suas vantagens e desvantagens.

Em 1925 o método ganha importante espaço nas discussões sobre os métodos coerentes em

filosofia da religião, e em 1951 o método é rapidamente descrito como um prelúdio àquilo que

na sequência o teólogo chama de fenomenologia crítica. Mas em todos os três textos é possível

perceber uma postura semelhante por parte de Tillich, primeiramente há um destaque sobre a

importância do elemento intuitivo e na sequência uma crítica ao aspecto a-histórico, unilateral

e estático do método.

A semelhança das críticas à fenomenologia com o passar do tempo pode revelar algo

bastante importante, a saber: a possibilidade do teólogo não ter dado continuidade a suas leituras

sobre Husserl. Embora o contato de Tillich com a escola fenomenológica tenha sido

acompanhado de grande entusiasmo, é possível que o autor não tenha avançado para além do

primeiro Husserl, essa atitude talvez possa estar relacionada com a mudança de Tillich para os

Estados Unidos, pois como ele falou certa vez para um pesquisador de Husserl, a fenomenologia

na América é fracamente estimada132 (TILLICH, 1970 [1936], p. 107). Entretanto, os motivos

pelos quais o teólogo abandonou seus estudos sobre a fenomenologia de Husserl não podem ser

discutidos neste espaço e seguem apenas como provocações para pesquisas futuras.

Entretanto, a despeito de seus comentários bastantes críticos à fenomenologia, Tillich

não rejeita o método. O teólogo irá encontrar no pensamento fenomenológico um elemento

essencial que além de servir como um paradigma para a crítica kantiana, como o próprio teólogo

afirmou, servirá também como um aspecto fundamental para o desenvolvimento de seu próprio

132On the way back I run into Gurwitch, a student of Husserl’s, who wants to go to America. I tell him in what low

esteem phenomenology is held in America.

68

método fenomenológico. Como o autor declara no final de suas considerações sobre a

fenomenologia no curso de 1920:

Contudo, o método fenomenológico tem um duplo significado. Ele mostra,

com razão, que as coisas que se pretende explicar devem ser primeiramente

compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas de

explicação genética, dessa forma, a descrição deve preceder a explicação.

Segundo, e este é de altíssima importância, a exigência de uma intuição e um

visar interior (inneren Meinens) antes de qualquer explicação ou avaliação133

(TILLICH, 2001 [1920], p. 380).

O elemento intuitivo do método fenomenológico além de ser valorizado por Tillich será

resgatado pelo teólogo na posterior formulação de seu próprio método fenomenológico.

Entretanto, o teólogo entende que o método estará incompleto se apenas o elemento intuitivo

for considerado. Aqui, portanto é anunciada a necessidade de somar à fenomenologia pura de

Husserl um segundo elemento que tornará o método mais competente para a análise do

fenômeno religioso. O teólogo não rejeita o método, apenas indica sua insuficiência para

compreender o fenômeno da religião. Para Tillich, isso acontece por ignorar os aspectos

particulares e formais da recepção do fenômeno revelatório. É nesse sentido que o autor afirma

a necessidade de introduzir um elemento crítico na fenomenologia “pura”, pois a questão acerca

do critério que deve determinar a escolha de um “exemplo” só pode ser respondida por meio

do elemento crítico.

2.1.3. A proposta de união entre os elementos intuitivo e crítico

Tillich conclui a primeira parte de sua sétima aula, até então dedicada ao método

fenomenológico, com o início de uma crítica às limitações da crítica kantiana (já discutidas no

tópico anterior). Tais considerações sobre o esgarçamento do método crítico de Kant demonstra

o caminho que Tillich percorre em direção a formulação daquilo que viria a ser seu método

crítico-intuitivo em 1920. Então o autor conclui:

É o começo do século XX que torna notável a rejeição do método puramente

formal do neokantismo, que impele para uma compreensão de conteúdo de

uma nova forma. E não é por acaso que é a árvore genealógica de eruditos

133 Dennoch hat die phänomenologische Methode eine doppelte Bedeutung. Sie zeigt mit Recht, daß vor den

genetischen Erklärungsversuchen die zu erklärende Sache erst einmal in ihrer Eigentümlichkeit erfaßt sein muß

und daß darum die Beschreibung der Erklärung vorausgehen muß. Zweitens ist von höchster Wichtigkeit die

Forderung der Intuition, der Anschauung, des inneren Meinens vor jeder Erklärung und Bewertung.

69

católicos134 que, aqui, conduziu e impele para uma nova intuição. Mas este

caminho só é praticável na base do método crítico, não fora dele nem contra

ele135 (TILLICH, 2001 [1920], p. 380-381).

Assim como a fenomenologia carece de validez no âmbito dos fenômenos religiosos se

for tomada sem o elemento crítico, o mesmo vale para o método crítico se for tomado sem o

elemento intuitivo da fenomenologia pura. A união de ambos os elementos é um pressuposto

necessário para Tillich, algo que pode ser percebido, por exemplo, em seus comentários sobre

a abordagem de Rudolf Otto. O teólogo comenta que a compreensão de Otto a respeito do

numinoso como realidade que transpassa todas as formas objetivas expressa muito bem o

elemento intuitivo. “Para Otto a religião é esta experiência do numinoso, que tem a

particularidade de se apresentar como mysterium tremendum e fascinium. A semelhança com

os nossos conceitos é tão óbvia que dispensa maiores ênfases”136 (TILLICH, 2001 [1920], p.

438). Entretanto, na continuação o autor afirma que “falta a compreensão da relação entre forma

de pensamento e substância, porque o método crítico está ausente”137 (TILLICH, 2001 [1920],

p. 439). Em outro texto, o teólogo explica que “mesmo uma definição tão original e

extremamente significativa como a que Rudolf Otto oferece da religião sofre com essa recusa

de fazer uma delimitação sistemática da relação entre religião e cultura - isto não é acidental no

caso de Otto, mas uma consequência do caráter fenomenológico do método que adotou”138

(TILLICH, 1973 [1925], p. 61).

Para Tillich, no âmbito do fenômeno religioso, “A questão acerca do critério que deve

determinar a escolha de um exemplo só pode ser respondida se introduzirmos um elemento

crítico na fenomenologia pura” (TILLICH, 2011, p. 120). Nesse sentido, as possibilidades de

134 Em sua “Introdução à filosofia” (6 ed., Leipzig 1914) Wilhelm Wundt nomeia B. Bolzano, E. Husserl, F.

Brentano e A.v. Meinong (S. 9s), sobre a palavra-chave, de “moderna escolástica, Brentano e sua escola”. Ele até

fala de uma “árvore genealógica (Stammbaum) de estudiosos católicos” que têm mostrado o caminho para essa

nova compreensão da intuição (TILLICH, 2001 [1920], p. 380, nota 4).

135 Es ist der Beginn des 20. Jahrhunderts, der in Ablehnung der rein formalistischen neukantischen Methode sich

bemerkbar [macht], der nach neuer Gehaltserfassung drängt. Und es ist kein Zufall, daß es ein Stammbaum

katholischer Gelehrter ist, die hier geführt haben und auf eine neue Intuition hindrängen. Gangbar aber ist dieser

Weg erst auf dem Boden der kritischen Methode, nicht außer ihr oder gegen sie.

136 Für Otto ist Religion das Erlebnis des Numinösen, dessen Eigenart es ist, uns einerseits als mysterium

tremendum, andererseits als fascinosum entgegenzutreten. Die Ähnlichkeit mit unsern Begriffen liegt so auf der

Hand, daß ich darauf nicht näher einzugehen

137 Es fehlt die Einsicht in das Verhältnis von Denkform und Gehalt; denn es fehlt die kritische Methodik.

138 Even an original and extremely significant definition of the nature of religion such as that of Rudolph Otto

suffers from this refusal to make a systematic definition of the relation between religion and culture - and this

was not accidental in Otto’s case, but rather was due to the phenomenological character of the method he

adopted.

70

solução aos problemas básicos da filosofia da religião dependem da maneira em que o método

crítico pode ser colocado como resposta às exigências da fenomenologia.

Contudo, fez-se possível, nos últimos tempos e em toda parte, um impulso que

deve ir além, por um lado, da psicologia e, por outro, do formalismo kantiano.

Os representantes deste novo intuicionismo, que é marcada grosso modo pela

linha seguinte: a dedução de Kant das categorias, a auto-compreensão do Eu

de Fichte, a contemplação intelectual de Schelling, são Husserl e Bergson.

Com ambos se dá a exigência que o Eu não se relacione de forma reflexiva

com os objetos, mas se compreenda em sua atividade imediata, mas ambos em

oposição pura ao método crítico. Esta exigência da intuição não se deve

rejeitar, mas deve ser determinada exatamente e conduzida em harmonia com

a consideração crítica139 (TILLICH, 2001 [1920], p. 388).

Novamente aqui o teólogo reafirma sua posição de fronteira com a proposta de uma

tensão sempre constante entre o elemento intuitivo e o crítico. O método crítico como um

produto final não é reconhecido por Tillich como suficiente para uma análise do fenômeno

religioso, antes sua intenção é a relação entre as possibilidades de uma abordagem crítica da

religião pressupondo como base a apreensão deste fenômeno mediante a fenomenologia. Tillich

quer manter o mais próximo possível o momento intuitivo do crítico de tal modo que seja

possível evitar conduzir a religião para um reino das puras formas ou da pura essência. A tensão

entre estas duas esferas deve ser mantida. Nesse sentido, “o conceito desta função [a função

religiosa, uma vez que emerge da abordagem crítica] pode aparecer com maior

desenvolvimento na análise fenomenológica”140 (TILLICH, 2001 [1920], p. 392). É com a

intenção de evitar o afastamento entre estes dois elementos que o teólogo irá desenvolver o

método crítico-intuitivo. Neste momento, a posição de Tillich não é nem de um fenomenólogo

e nem de um racionalista, mas é fronteiriça, convencido de que a abordagem coerente do

fenômeno religioso é por si mesmo complexa e, portanto, exige um relacionamento mútuo entre

a crítica e a intuição.

O desenvolvimento dessa proposta metodológica de Tillich pode ser observado

inicialmente em quatro textos do período alemão. O curso sobre filosofia da religião ministrado

em Berlim em 1920, “A superação do conceito de religião na filosofia da religião” (1922), o

139 Dennoch hat sich in der letzten Zeit allenthalben ein Drängen bemerkbar gemacht, das einerseits über die

Psychologie, andererseits über den Kantischen Formalismus hinausführen soll. Die Wortführer in diesem neuen

Intuitionismus, der etwa durch die Linie: Kants Deduktion der Kategorien, Fichtes Selbsterfassung des Ich,

Schellings intellektuelle Anschauung bezeichnet ist, sind Husserl und Bergson. Bei beiden die Forderung, daß das

Ich sich nicht auf Gegenstände reflektierend beziehe, sondern sich in seiner Aktivität unmittelbar erfasse, beide

aber in reinem Gegensatz zu der kritischen Methode. Diese Forderung der Intuition ist nicht abzuweisen, muß aber

genau bestimmt und mit der kritischen Betrachtung in Einklang gebracht werden.

140[...] so daß der Funktionsbegriff als Fortbildung des phänomenologischen erscheinen kann.

71

“Sistema das Ciências segundo objetos e métodos” (1923) e na “Filosofia da Religião” (1925).

Béland (1995, p. 134) comenta que em “A superação do conceito de religião na filosofia da

religião”, e aqui pode-se incluir também o curso de 1920, a proposta do método parece ser

ainda embrionária e o teólogo trabalha apenas com o método que ele chama de “crítico-

intuitivo”. No Sistema das Ciências segundo objetos e métodos Tillich começa a desenvolver o

método metalógico e atribui a ele certa singularidade no âmbito das ciências do espírito. Já na

Filosofia da Religião Tillich vai valorizar o método metalógico em relação a outros métodos

discutidos pelo teólogo, e termina dizendo que este método é o mais adequado para a filosofia

da religião.

2.2. O método crítico-intuitivo

De acordo com o pensador alemão, o “método é a maneira sistemática de fazer algo,

especialmente de obter conhecimento. Nenhum método pode ser encontrado isolado da sua

aplicação real; considerações metodológicas são abstrações dos métodos em uso”141 (TILLICH,

1987b [1947], p. 301). Perrottet (2008, p. 223) comenta que para Tillich, o método é inerente

ao processo do pensamento e não um instrumento importado de fora, de modo que todo método

deve possuir um caráter dinâmico para evitar que se instaure um imperialismo metodológico.

Da mesma forma, o teólogo destaca a estrita relação que existe entre método e objeto,

especificamente no caso da filosofia da religião, ele afirma que de fato, pode-se dizer que o

método aqui é quase a coisa em si (TILLICH, 2001 [1920], p. 367). Entretanto, o teólogo afirma

também que embora esta relação seja de fato importante, não significa que para cada objeto

exista apenas um método. Nesse sentido:

o mesmo método quer compreender vários objetos e o mesmo objeto está

aberto a vários métodos; sim, ao observar mais de perto, a diferença entre

objeto e método fica difusa e se levanta a grande questão, até que ponto os

objetos criam os métodos e até que ponto os métodos criam os objetos142

(TILLICH, 1989 [1923], p. 117).

141 Method is the systematic way of doing something, especially of gaining knowledge. No method can be found

in separation from its actual exercise; methodological considerations are abstractions from methods actually used.

142 die gleiche Methode will mancherlei Gegenstände erfassen und der gleiche Gegenstand ist manchen Methoden

offen; ja, bei näherem Zusehen wird der Unterschied von Gegenstand und Methode flüssig und es erhebt sich das

große Problem, inwieweit die Gegenstände die Methoden und inwieweit die Methoden die Gegenstände schaffen.

72

O que se pretende destacar com isto é a proximidade que existe entre a definição de

religião elaborada por Tillich e o método proposto para abordá-la. Nesse sentido, a questão

sobre como proceder em filosofia da religião e em teologia, bem como o objeto sobre qual se

está falando, estão interligados e ocupam um espaço importante nas reflexões do teólogo. Uma

das primeiras expressões dessa preocupação pode ser encontrada no curso sobre filosofia da

religião de 1920 e no texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião” de

1922 em que o método proposto é o crítico-intuitivo. No curso sobre filosofia da religião, o

teólogo dedica a nona aula para apresentar os fundamentos de seu método crítico-intuitivo e

afirma também que através dele espera-se dar “um passo importante para a nova formação das

ciências da cultura e da filosofia da religião em especial”143 (TILLICH, 2001 [1920], p. 392).

O autor afirma que “No método crítico-intuitivo três elementos estão unidos: o crítico,

o idealista e o transcendental-psicológico. Os dois primeiros 144 estão reunidos na doação dos

nomes”145 (TILLICH, 2001 [1920], p. 391). Na sequência o teólogo comenta que o primeiro

passo será investigar o que deve ser compreendido sob o momento crítico do método, então,

até que ponto ambos os outros se unem no intuitivo, enfim, como o crítico e o intuitivo podem

formar uma unidade. Sendo assim, no início da nona aula do curso de 1920 Tillich começa com

uma declaração sobre o momento crítico de seu método, e afirma que:

Falar sobre o significado do momento crítico é, após todos os precedidos,

fácil: significa que no contexto da consciência uma função deve ser mostrada,

a qual é necessária para a constituição da consciência e, com isto, ao mundo

de manifestação e cuja característica aproxima ela da proximidade daquela

manifestação, que é sinalizada como “religião” na descrição da experiência

fenomenológica. Ela merece este nome também se bem que [ou: embora], de

fato, se desvia dos resultados da fenomenologia em algo, mas dentro das suas

funções ainda lhe está mais próxima e permite-se mostrar uma continuidade

de contexto, de modo que o conceito de função pode aparecer como

continuação [do desenvolvimento] do fenomenológico. Deve-se conduzir, em

primeira linha, a prova que fora da então conhecida e identificável função

fenomenológica existe uma [função], que é constitutiva para o mundo de

manifestação, sem a qual uma síntese da variedade na unidade da consciência

não seria possível, sem a qual teria que quebrar a unidade da realidade.

Conseguida esta prova, deve-se mostrar que esta função mantém

essencialmente isto, o que se visa com aquela manifestação que está

143 Gelingt es, eine solche Methode zu finden, so ist damit ein wichtiger Schritt zur Neugestaltung der

Kulturwissenschaften und der Religionsphilosophie im besonderen geschehen.

144 Visa-se o elemento idealista e o transcendental-psicológico.

145 In der Kritisch-intuitiven Methode sin also drei Elemente vereinigt: das kritische, das idealistische, das

transcendentalpsychologische. Die beiden zweiten werden in der Namengebung zusammengefaßt.

73

fenomenologicamente conhecida como religião. Com isto está caracterizado

o momento crítico de nosso método146 (TILLICH, 2001 [1920], p. 391-392).

Tillich (2001 [1920], p. 346) afirma que “a prova da verdade da religião está na prova

de sua necessidade em termos de consciência, que se torna válido sob a crítica”147. Nesse

sentido a religião como uma função necessária para a constituição da consciência e, portanto,

do mundo fenomenal é compreendida como portadora de um papel insubstituível no

funcionamento do pensamento, isto é, o elemento crítico possibilita apresentar uma justificação

dos processos mentais na medida em que sua validade é comprovada através de uma análise do

seu funcionamento (PERROTTET, 2008, p. 70). De acordo com Tillich (2001 [1920], p. 392),

neste caso a unidade da consciência aparecerá como uma simples função lógica, que constrói a

realidade a partir de elementos lógicos. A realidade é a rede das determinações lógicas, que

constitui a realidade, através da qual ela é aproximada, em um processo infinito ao ideal lógico,

da absoluta síntese de toda variedade.

Entretanto, a ação religiosa não é uma esfera ao lado de outras, mas uma ação que se

atualiza por meio das formas posta pelo espírito em sua incessante criatividade. Para dar conta

desse objeto, o método deve simultaneamente ser lógico, por causa das formas do pensamento,

mas também algo mais do que lógico, por conta do conteúdo das formas. O elemento crítico,

portanto, possibilitaria evidenciar a forma em que o sentido incondicional é atualizado na

estrutura do espírito, mas na medida em que o pensamento reflete sobre sua própria existência,

afirma Tillich, “conduz-se um momento irracional na consciência que não pode ser resolvido

nas determinações do pensamento, mas deve ser compreendido intuitivamente. Assim, teríamos

146Über die Bedeutung des kritischen Momentes zu reden, ist nach allem Vorangegangenen leicht: Es bedeutet

dieses, daß im Zusammenhange des Bewußtseins eine Funktion aufgewiesen werden muß, die zur Konstitution

des Bewußtseins und damit der Erscheinungswelt notwendig ist und deren Charakterisierung sie in die Nähe

derjenigen Erscheinung rückt, die in der phänomenologischen Erfahrungsbeschreibung als „Religion"

gekennzeichnet wird. Sie verdient diesen Namen auch dann, wenn sie zwar von den Resultaten der

Phänomenologie in manchem abweicht, aber innerhalb der Funktionen ihr doch am nächsten steht und sich eine

Kontinuität des Zusammenhanges aufweisen läßt, so daß der Funktionsbegriff als Fortbildung des

phänomenologischen erscheinen kann. Es ist also in erster Linie der Nachweis zu führen, daß außer der sonst

bekannten und phänomenologisch identifizierbaren Funktion eine besteht, die konstitutiv für die Erscheinungswelt

ist, ohne die eine Synthesis der Mannichfaltigkeit in der Einheit des Bewußtseins nicht möglich wäre, ohne die

also die Einheit der Wirklichkeit zerbrechen müßte. Ist dieser Nachweis gelungen, so ist zu zeigen, daß diese

Funktion das im Wesentlichen hält, was die phänomenologisch als Religion bekannte Erscheinung meint. Damit

ist das kritische Moment unserer Methode charakterisiert.

147Der Wahrheitsbeweis der Religion ist der Beweis ihrer Bewußtseinsnotwendigkeit, ihres Geltens im kritischen

Sinne.

74

alcançado o outro momento do método crítico-intuitivo, o intuitivo”148 (TILLICH, 2001 [1920],

p. 392). O elemento crítico evidencia as formas em que os sentidos são dados, mas este é

também seu limite, ou seja, não consegue ir além das formas e para tanto, torna-se necessário

um elemento intuitivo.

No elemento intuitivo, afirma Tillich (2001 [1920], p. 392-393), “encontramos um

momento especulativo e psicológico. Intuição no sentido em que aqui é visada é psicologia

especulativa. Uma psicologia é especulativa se, nos elementos da consciência que ela procura

compreender, ela compreende de forma imediata os elementos da realidade como tal”149. O

autor comenta que esta forma de pensar é própria de toda a tradição mística, e que inclusive

este método poderia receber o nome de místico caso tal palavra como designação metodológica

não fosse tão mal compreendida. “A ideia de que os elementos da realidade não são

compreendidos em qualquer lugar no mundo exterior, mas apenas ‘nas pessoas, nos corações’

é tanto a base do pensamento filosófico Hindu como da mística vitoriana e eckhartiana”150

(TILLICH, 2001 [1920], p. 393). Na sequência, ele exemplifica dizendo que “O Brahman, isto

é, o princípio do mundo, é o Atman, isto é, o Si como é experiência do próprio Si. O Si próprio

e o Si geral não são dois, mas um e o mesmo. Na compreensão do próprio Si o Si cósmico é

compreendido”151 (TILLICH, 2001 [1920], p. 393).

Perrottet (2008, p. 182) comenta que a presença da palavra psicologia não deve ser

entendido no sentido usual da psicologia, mas no sentido da psicologia transcendental e

especulativa. Trata-se da percepção imediata da realidade pela consciência, isto é, uma

percepção direta por intuição daquilo que se apresenta a consciência. Esta abordagem imediata

e intuitiva à realidade, onde o individual e o universal, onde Atman e Brahman se unem, tem

sido praticada por toda a tradição mística e é comum a uma longa linhagem de pensadores que

através do tempo, serviu para contrabalançar tendências racionalistas. Tillich não é nem um

148 Aber, so muß es sich die übrigen Geistestätigkeiten gleichstellen, damit aber ein irrationales Moment in das

Bewußtsein einführen, das nicht in Denkbestimmungen aufgelöst werden kann, sondern nur intuitiv zu erfassen

ist. Damit hätten wir dann das andere Moment der kritisch-intuitiven Methode, das intuitive, erreicht.

149 In ihm treffen sich ein spekulatives und psychologisches Moment. Intuition in dem Sinne, wie sie hier gemeint

ist, ist spekulative Psychologie. Eine Psychologie ist spekulativ, wenn sie in den Bewußtseinselementen, die sie

zu erfassen sucht, unmittelbar die Elemente der Wirklichkeit überhaupt erfaßt.

150 Der Gedanke, daß die Elemente der Wirklichkeit nicht irgendwo in der Außenwelt zu erfassen sind, sondern

allein „im Menschen im Herzen", ist ebensosehr der Grundgedanke der indischen Philosophie, wie er der

Grundgedanke der viktorinischen und Eckhartschen Mystik ist.

151 Das Brahman, das heißt das Weltprincip, ist das Atman, das heißt das Selbst, wie [es] im eigenen Selbst erfahren

wird. Das eigene und das allgemeine Selbst sind aber nicht zwei, sondern ist ein und dasselbe. In der Erfassung

des eigenen Selbst wird das kosmische Selbst erfaßt.

75

místico e nem um racionalista, embora seja um pouco dos dois, assumindo como fez em muitos

momentos, uma posição de fronteiras. “O que lhe interessa aqui é a articulação de uma

abordagem coerente que faça justiça a ambos. E não é porque ele insiste em incluir as duas

áreas, mas porque ele está convencido de que a solução está em uma compreensão correta de

seu relacionamento mútuo”152 (PERROTTET, 2008, p. 181).

Semelhantemente, Richard (2008, p. 269) comenta que o conceito de intuição foi

aprofundado e fundamentado por Tillich em termos filosóficos para que sua aproximação com

o método crítico fosse possível. “Tillich encontra tal filosofia na Logische Untersuchungen de

Edmund Husserl. Lá, ele reconhece um novo método filosófico, ou seja, o método

fenomenológico [...] Esta não é uma tarefa fácil de conseguir, já que significa um acordo entre

Kant e Husserl”153 (RICHARD, 2008, p. 269). De acordo com o teólogo, o que Husserl está

procurando é uma nova forma de apreensão do self como um sujeito e não como objeto de uma

consideração empírico-psicológica. Este é, portanto, o caminho da intuição proposto por

Husserl, mas como pode um sujeito ver a si próprio? Tem-se que mudar o olhar para dentro,

tem que compreender a si próprio em seu ato. “Assim, o método não é reflexivo, mas intuitivo,

e não é direcionado aos motivos explicativos, mas direcionado à própria coisa”154 (TILLICH,

2001 [1920], p. 379). Esta abordagem intuitiva permite dar o passo necessário para além da

psicologia empírica e do formalismo kantiano.

O método intuitivo volta-se, portanto, para o problema do irracional. Nas palavras de

Tillich (2001 [1920], p. 397) “Quanto ao problema que para ser resolvido através do método

intuitivo pode, de agora em diante, ser designado brevemente como o irracional”155. O método

crítico sozinho também pode falar sobre o irracional, mas no final ele o racionaliza. Ele o

resolve em uma determinalidade racional. Por outro lado, “O método intuitivo por si só não

pode ganhar nenhuma relação normal com o racional. Ele o usa por isso de maneira ingênua,

152 Ce qui l'intéresse avant tout ici, c'est l'articulation d'une méthode cohérente qui fasse justice aux deux. Et ce

n'est pas parce qu'il tient absolument à inclure les deux domaines, mais parce qu'il est convaincu que la solution

se trouve dans une saisie correcte de leur rapport mutuel.

153 Tillich finds such a philosophy in the Logische Untersuchungen of Edmund Husserl. There he recognizes a

new philosophical method, that is, the phenomenological method [...] This is not an easy task to achieve, since it

means an agreement between Kant and Husserl.

154Die Methode ist also nicht reflektiv, sondern intuitiv, und sie ist nicht auf die zu erklärenden Ursachen, sondern

auf die Sache selbst gerichtet.

155 Das Problem selbst aber, das durch die intuitive Methode zu lösen ist, kann nunmehr kurz bezeichnet werden

als das des Irrationalen.

76

para puxá-lo para baixo metafisicamente”156 (TILLICH, 2001 [1920], p. 397). O método crítico

é incapaz de ir além das formas, e ao considerar o problema da realidade, este método se perde

na própria realidade e, portanto, é incapaz de alcançar a essência da coisa. Por outro lado, o

método intuitivo ou fenomenológico por sua intuição imediata do que existe acaba perdendo de

vista o problema da realidade, isto é, não consegue dar conta da existência.

Enquanto Kant, afirma Tillich (2001 [1920], p. 397), tentou encontrar os princípios do

mundo na filosofia racionalista derivada das ciências naturais matemática, o místico tem

procurado tais princípios nas profundezas do sentimento criador e irracional. Um pela crítica e

outro pela intuição. Ambos os elementos precisam ser unidos, pois “enquanto o pensamento na

forma de reflexão mantém as coisas à distância, a intuição os coloca em um estado de identidade

com o sujeito que as contempla”157 (TILLICH, 2001 [1920], p. 152).

Nesse sentido, tanto no curso sobre filosofia da religião de 1920 quanto no texto “A

superação do conceito de religião na filosofia da religião” de 1922, o método crítico-intuitivo

“Procede da convicção de que nem o método crítico e nem o intuitivo, por si mesmos, são

capazes de resolver o problema central da filosofia da religião e portanto, também da filosofia

da cultura – ou seja, a pergunta sobre o sentido último da realidade de cada coisa concreta”158

(TILLICH, 1973 [1922], p. 149). Para o autor, o problema do incondicional é determinar um

ponto que transcenda a distinção entre essência e existência, e para este fim a utilização de

apenas um dos dois métodos é impossível. “O alvo metodológico será então uma ligação do

crítico com o intuitivo, do racional e do irracional”159 (TILLICH, 2001 [1920], p. 397).

O método crítico-intuitivo, comenta Tillich (1973 [1922], p. 148) parte das funções do

espírito consideradas como as formas nas quais se dão todas as coisas, ele se volta sobre si

mesmo e percebe que todas estas formas estão vazias a menos que sejam preenchidas com o

sentido de algo incondicionalmente real. “O que é ‘real’ em todas as coisas não é em si uma

realidade, nem é a totalidade, nem mesmo a infinitude do real. Mas a percepção disso já não é

156 Die intuitive Methode allein kann kein normales Verhältnis zum Rationalen gewinnen. Sie benutzt es deswegen

naiv, um es metaphysisch herabzudrücken.

157 Während das reflektierende Denken die Dinge in Distanz hält, bringt die Anschauung sie in Identität mit dem

betrachtenden subjekt.

158 It proceeds from the conviction that neither the critical nor the intuitive method alone is capable of solving the

central problem of philosophy of religion, and hence also of philosophy of culture – namely, the question

concerning the ultimate meaning and reality of every actual thing.

159 Es ist also eine Verbindung der kritischen und der intuitiven, der rationalen und der irrationalen Methode das

methodische Ziel.

77

assunto da crítica, mas da intuição”160 (TILLICH, 1973 [1922], p. 150). Ali onde a crítica

estabelece seus conceitos limites e testemunha suas próprias limitações, a intuição percebe o

incondicionalmente real que constitui a raiz da realidade e a partir do qual toda crítica vive. A

intuição possibilita com isso um contato imediato com as formas de sentido a verificação de

uma realidade de valor incondicional. De acordo com Tillich (2001 [1920], p. 579):

O método crítico-intuitivo [riscado: crítico-místico]. Seu princípio volta a

separar o criticismo kantiano de seus elementos antrópicos e psicológicos e a

compreender que as relações de validez são válidas “em si”. [...] Fazendo isto,

vai-se – além da oposição entre sujeito individual e sujeito humano – ao

objeto. O princípio de identidade no sentido da mística está alcançado. -

Assim, toda a problemática do objetivo se torna supérflua. A especulação, sob

todas as formas, é superada. [...] Este método é intuitivo como o método

fenomenológico, mas, ao mesmo tempo, é crítico; ele é crítico-racional mas,

ao mesmo tempo, psicológico-irracional. É especulativo e, ao mesmo tempo,

empírico. [...] A antítese primária entre pensamento e ser como princípio para

uma solução do problema da coisa em si. É aí que a identidade entre o mundo

e a consciência está dada161.

O teólogo apresenta um cenário paradoxal em que o racional e irracional estão unidos e

devem ser considerados. Trata-se de um paradoxo necessário, pois “toda afirmação em relação

ao Incondicional tem necessariamente a forma de um paradoxo [...] Mas o paradoxo do

Incondicional não pode ser resolvido. Ele propõe um problema que requer o exercício da

intuição (Schauen)”162 (TILLICH, 1973 [1922], p. 123). Nesse sentido, o método crítico-

intuitivo é, portanto, o método do paradoxo, da constante irrupção e anulação da forma pela

realidade que está nela, isto é, o incondicional ao mesmo tempo que afirma a forma, também a

rompe paradoxalmente.

Para o autor, na plena afirmação da forma crítica autônoma, a significação do

incondicional é de se libertar, irromper e destruir toda forma, não de maneira informal, mas

paradoxalmente. “A vida que se vive dentro dessa tensão, a mais alta de todas as tensões, é vida

160 That which is the “real” (Reale) in all things is not itself a reality, nor is it the totality or even the infinity of the

real. The perception of this, however, is no longer a matter of criticism but of intuition.

161 Die kritisch-intuitive Methode. Ihr Prinzip ist die Loslösung des kantischen Kriticismus von anthropistisch-

psychologischen Elementen und die Einsicht, daß die Geltungszusammenhänge „an sich" gültig sind. [...] Damit

wird vor den Gegensatz von individuellem und menschlichem Subjekt zum Objekt gegangen. Das Prinzip der

Identität im Sinne der Mystik ist erreicht. — Dadurch wird die ganze Problematik des Objektiven überflüssig. Die

Spekulation in jeder Form ist überwunden. — Diese Methode ist intuitiv wie die phänomenologische, aber

zugleich kritisch; sie ist kritisch-rational, aber zugleich psychologisch irrational. Sie ist spekulativ, aber zugleich

empirisch. [...] Die primäre Antithese von Denken und Sein als Lösungsprincip für das Ding-an-sich-Problem.

Eben darin die Identität von Welt und Bewußtsein gegeben

162 Every statement about the Unconditional is necessarily in the form of Paradox. [...] But the paradox of the

Unconditional is not resolvable. It poses a problem that calls for intuition (Schauen).

78

que provém de Deus. A intuição deste paradoxo infinito é pensar a respeito de Deus; e se isso

for desenvolvido metodologicamente, se transforma em filosofia da religião ou em teologia”163

(TILLICH, 1973 [1922], p. 150-151).

A reflexão sobre Deus é uma reflexão intuitiva, e como visto no capítulo anterior, uma

experiência de caráter reflexivo que ocorre na dimensão da vida consciente. O ser humano é

imediatamente consciente de algo incondicional, que ao irromper na consciência assume um

caráter específico. Trata-se da relação com o incondicional que é inerente a cada ação, pois

assim que a intencionalidade da consciência se dirige ao incondicional, há certa dualidade da

ação e objeto, mas tal como foi dito, uma ação religiosa não é uma ação especial, e só se atualiza

em outras ações do espírito. Nessa atualização,

[...] deve dar uma formação peculiar a estas outras ações de tal modo que se

faça visível sua qualidade religiosa, e esta formação é o paradoxo, ou seja, a

afirmação e negação simultânea da forma autônoma. O pensamento religioso

– e a intuição se transforma assim em uma maneira de pensar – é uma “ação

perceptiva” (Anschauen) na qual as formas autônomas do pensamento e a

intuição são ao mesmo tempo usadas e demolidas164 (TILLICH, 1973 [1922],

p. 144).

Nesse sentido como afirma Tillich, o método crítico-intuitivo volta-se para a

consciência, isto é “a direção do método crítico-intuitivo é a consciência. Nisto ele é

psicológico. Mas a consciência não [é de se compreender] como processo psicológico, mas

como princípio do mundo de manifestação. Nisto ele é especulativo”165 (TILLICH, 2001

[1920], p. 397). Quando considerados a partir dessa perspectiva torna-se possível preservar o

caráter formal e racional das formas religiosas bem como seu aspecto irracional e subjetivo,

“Portanto, na presença do Incondicional o conhecimento é inspiração, a percepção intuitiva é

um mistério, a ação é graça e a comunidade é o Reino de Deus. Todos estes conceitos são

163 Life within this highest of tensions is life from God. Intuition of this infinite paradox is thinking about God;

and if it is methodically developed, it becomes philosophy of religion or theology.

164 [...] it must give these other acts a formation in which their religious quality is visible, and that formation is

paradox, i.e., the simultaneous affirmation and negation of autonomous form. Religious thinking – and intuitive

perception is thus a mode of thinking – is a “perceiving” (Anschauen) in which the autonomous forms of thought

and intuition are simultaneously employed and shattered.

165 Die Richtung der kritisch-intuitiven Methode ist das Bewußtsein. Darin ist sie psychologisch. Aber das

Bewußtsein nicht als psychologischer Vorgang, sondern als Princip der Erscheinungswelt. Darin ist sie spekulativ.

79

paradoxais, isto é, conceitos que perdem seu sentido imediatamente quando se trata de explicá-

los objetivamente”166 (TILLICH, 1973 [1922], 144).

A religião, por outro lado, trabalha com tais conceitos e ao proceder dessa forma acaba

incorrendo em objetivações. A proposta de um método crítico-intuitivo possibilita dessa forma

uma abordagem das formas religiosas em que a constante afirmação e negação das formas são

pressupostas. Paradoxalmente o incondicional se manifesta através das formas, embora não se

limite à forma, mas a transcende infinitamente. A abordagem, portanto, se concentra no aspecto

formal e racional, mas pressupondo seu caráter irracional. O método crítico-intuitivo permite

que a tensão entre os dois polos seja sempre mantida e que a experiência não seja reduzida a

um aspecto puramente racional ou irracional.

Em seu texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, o teólogo

comenta também que sua preocupação neste momento não era resolver um problema puramente

teórico, mas indicar uma situação espiritual para qual avança inevitavelmente o curso do

desenvolvimento espiritual da cultura. Trata-se, portanto, de “preparar o caminho para uma

atitude mental na qual se tenha derrubado a auto-certeza do condicionado frente a certeza e

realidade do Incondicional”167 (TILLICH, 1973 [1922], p. 149). O autor consegue dessa forma

alcançar a meta que estava procurando, isto é, lançar as bases metodológicas para compreender

a religião como a intuição do mistério que se apresenta a consciência em sua intencionalidade

dirigida ao incondicional. De acordo com Richard, “finalmente, isto é o que Tillich pretendia

apresentar: na consciência ou espírito humano, existe uma função religiosa especial – em outras

palavras, um a priori religioso”168 (RICHARD, 2008, p. 270). A religião, com isto, fica

criticamente justificada e fundamentada (TILLICH, 2001 [1920], p. 402).

2.3. O método metalógico

166 Thus, in the presence of the Unconditional, knowing is inspiration, intuitive perception is mystery, acting is

grace, and community is the kingdom of God. These are all paradoxical concepts, i.e., concepts that immediately

lose their meaning when construed objectively.

167 It was to prepare the way for a state of mind in which the self-certainty of the conditioned was shattered before

the certainty and reality of the Unconditional.

168 Finally, this is what Tillich intended to show: in human consciousness or spirit, there is a special religious

function - in other words, a religious a priori.

80

A elaboração do método crítico-intuitivo tal como proposto por Tillich em 1920 e em

1922, ganha em 1923 no Sistema das Ciências segundo objetos e métodos e na Filosofia da

Religião de 1925 o nome de método metalógico169. Higuet (2011, p. 40) comenta que o método

crítico e o método intuitivo constituem num primeiro momento o método crítico-intuitivo ou

paradoxal que irá desembocar no método metalógico, “que é próprio da filosofia e das ciências

do espírito ou da cultura; enfim, na Filosofia da Religião de 1925, o método crítico-dialético é

ampliado a partir do pragmatismo e da fenomenologia, para constituir o método metalógico, o

mais adequado ao objeto religioso” (HIGUET, 2011, p. 40).

Em Sistema das Ciências segundo objetos e métodos (System der Wissenschaften nach

Gegenständen und Methoden) de 1923, Tillich chama atenção para as tensões existentes na vida

e suas relações. A vida neste sentido é um solo composto por esferas do tipo racional,

emocional, religioso (no sentido estrito), etc. que não podem ser fragmentadas, e que por conta

disso, se encontram em constante tensão. Dessa forma, Tillich propõe uma análise integradora

que encara cada uma das múltiplas esferas da vida a partir do próprio ato de conhecer, isto é, a

partir de seu fundamento. Nesse sentido, por detrás das diferentes esferas do conhecimento há

uma unidade que deve ser considerada. Para o autor, um verdadeiro sistema sempre manifesta

através de suas formas algo mais do que a pura forma. Em toda forma há uma substância que

caracteriza a própria força viva de um sistema, sua intuição original. Nesse sentido todo sistema

vive a partir do princípio sobre o qual foi construído

Entretanto, cada princípio último é a manifestação de uma visão da realidade

última, de uma visão de vida que coloca fundamentos. Assim, a todo instante

rompe através do Sistema Formal das Ciências um valor que é metafísico, isso

significa que ele está para além de toda forma individual e além de todas as

formas e, por isso, nunca pode ser ele mesmo uma forma ao lado de outras,

como uma espécie de falsa Metafísica. O metafísico é a força viva, o sentido

e o sangue (Blut) do Sistema. Nesse sentido – e somente neste – o Sistema

Formal das Ciências é metafísico170 (TILLICH, 1989 [1923], p. 118).

169

De acordo com Perrottet (2008, p. 214) o termo “metalógica” foi primeiramente encontrado entre os lógicos

como Frege, quando fala sobre aquilo que vai além da simples lógica e diz respeito à justificação teórica de

modelos lógicos. Nada que se aproxime muita da filosofia da religião. A maneira como Tillich usa o termo é

retomado a partir de Troeltsch, muito embora, como afirma Adams (1970, p. 148), existem diferenças entre o uso

que Troeltsch e Tillich fazem do método.

170 Jedes letzte Prinzip aber ist der Ausdruck einer letzten Wirklichkeitsschau, einer grundlegenden Lebenshaltung.

So bricht durch das Formalsystem der Wissenschaften in jedem Augenblick ein Gehalt hindurch, der metaphysisch

ist, d. h. der jenseits jeder einzelnen Form und aller Formen liegt, und darum nie nach Art einer falschen

Metaphysik selbst eine Form neben anderen sein kann. Das Metaphysische ist die lebendige Kraft, der Sinn und

das Blut des Systems. In diesem - aber nur in diesem Sinne – ist das Formalsystem der Wissenschaften

metaphysisch.

81

Para dar conta dessa empreitada o teólogo propõe o método metalógico. Para Tillich

(1989 [1923], p. 122) “O método das ciências humanas é metalógico; é lógico por conta das

formas de pensamento e metalógico por causa do conteúdo inerente ao ser. Mas ambos

constituem uma unidade”171. O teólogo afirma que o logicismo não é capaz de alcançar o

conteúdo do ser, ele priva o pensamento de sua substância e impede o acesso à natureza do

sentido. O alogismo por outro lado, abre mão do elemento racional da consciência e não alcança

a forma do pensamento. “O primeiro deve impor-se (violentar) às ciências a partir de um

esquema lógico-formal, o segundo não tem as condições de realizar uma construção sistemática

fechada e intrinsecamente necessária”172 (TILLICH, 1989 [1923], p. 122). Higuet (2011, p. 36)

comenta que através do método metalógico, o ser não será pensado somente como categoria

lógica, mas intuído como substância viva. Dessa forma, a essência do método metalógico está

em sua intuição do elemento irracional nas funções de conhecimento.

De acordo com Tillich (1989 [1923], p. 123) o método metalógico pretende abarcar os

dois elementos fundamentais do ato de conhecer e permitir a continuidade da tensão entre eles.

Em outras palavras, o método metalógico procura evidenciar a forma do ser sem anular seu

conteúdo, na medida em que também possibilita revelar o conteúdo do ser sem anular sua

forma. A justificativa para tal método é que o pensamento na sua pura auto-compreensão (o

ponto de partida) tenha se percebido diferente até do ato de conhecer, que é apenas uma

realidade espiritual ao lado de outras. Para o autor, há uma diferença fundamental entre o

pensamento como puro ato que se dirigi ao ser e o refletir como uma realização formal desse

direcionamento.

Paralelamente à reflexão, aparecem também o contemplar, o estruturar, o crer, etc. que

estão mais voltados ao elemento conteúdo. Nesse sentido, “é de natureza do método metalógico

que, através dele, o elemento irracional destas funções olhe para dentro do lógico”173

(TILLICH, 1989 [1923], p. 123). O pensamento, portanto, pode inclinar-se mais para a forma

do ser assim como para o conteúdo do ser. Desta forma, com um toque metalógico que agrega

um elemento irracional ao lógico, o ‘“pensamento’ se iguala a ‘forma em geral’ e, ‘Ser’, se

171 Die Methode der Geisteswissenschaften ist metalogisch: logisch um der Denkformen, metalogische um des

Seinsgehaltes willen. Beides aber ist eine Einheit.

172 Der erste muss alle Wissenschaften von einem formal-logischen Schema aus vergewaltigen, der zweite ist außer

Stande, einen geschlossenen, in sich notwendigen systematischen Aufbau zu leisten.

173 Es ist nun das Wesen der metalogischen Methode, daß sie das irrationale Element dieser Funktionen in das

Logische hineinschaut.

82

torna igual a ‘conteúdo em geral’. ‘Pensamento’ se torna a expressão do elemento racional

estruturador e portador da forma, ‘Ser’ se torna a expressão do elemento irracional, vivo,

infinito, da profundidade e da força criadora de todo o real”174 (TILLICH, 1989 [1923], p. 123,

grifo do autor).

Outra característica importante do método metalógico no contexto do sistema das

ciências é que ao contrário da pura lógica, que procura sempre capturar toda a realidade numa

forma racional estática, o método metalógico é dinâmico. Trata-se de um método que revela o

conteúdo através da viva mobilidade da forma, e que apesar de toda movimentação, não perde

sua unidade lógica. Todo o Sistema das Ciências foi esboçado tendo em conta esta dinâmica,

“como viva contradição e viva unidade entre pensamento e ser”175 (TILLICH, 1989 [1923], p.

123). A sistemática e o espírito devem fazer uso de ambas as formas de conhecer, da mesma

forma que o ser também não pode ser visto como uma categoria lógica, mas como conteúdo

vivo presente em toda esfera do conhecimento. “Para cada uma destas funções o ser é algo

diferente, mesmo assim, em todas elas o visado (gemeint) é o mesmo, o Incondicionalmente-

real que confere conteúdo a todas as formas”176 (TILLICH, 1989 [1923], p. 123). Em toda forma

de sentido está presente uma substância que deve ser evidenciada metalogicamente, isto é, a

dinâmica da forma e substância se apresenta como o requisito necessário na constituição da

teoria sistemática.

Com isso, o teólogo demonstra que o sentido de pensamento e ser no Sistema das

Ciências, jamais será puramente lógico, e nem mitológico, pois não se trata de categorias vazias

e nem de coisas de natureza superior, “mas sim, são os elementos de sentido da realidade,

compreendidos com a ajuda de todas as funções do espírito, descritos como conceitos

científicos”177 (TILLICH, 1989 [1923], p. 124). O método metalógico adquire no Sistema das

Ciências um caráter fundamental porque consegue, como comenta Higuet (2011, p. 37)

incorporar o “compreender” na crítica. O ato da compreensão nessa dinâmica significa

apreender os elementos do sentido e as tensões que são inerentes a forma. Trata-se, portanto,

174 „Denken“ wird gleich Form überhaupt“ und „Sein“ gleich „Gehalt überhaupt“. „Denken“ wird Ausdruck des

rationalen, gestaltenden, formtragenden Elementes, „Sein“ wird Ausdruck des irrationalen, lebendigen,

unendlichen Elementes, der Tiefe und der Schöpferkraft alles Wirklichen.

175 Als lebendiger Widerspruch und lebendige Einheit von Denken und Sein.

176 Für jede dieser Funktionen ist das Sein etwas anderes, und doch ist in allen dasselbe gemeint, das allen Formen

Gehalt gebende Unbedingt-Wirkliche.

177 Es sind keine leeren Kategorien, aber es sind erst recht keine Dinge höherer Art, sondern es sind die von allen

Geistesfunktionen her erfaßten Sinnelemente der Wirklichkeit, dargestellt im wissenschaftlichen Begriff.

83

do pensar enquanto elemento doador de sentido e do ser enquanto elemento receptor. O método

metalógico possibilita o reconhecimento da relação que existe entre as formas de sentido com

a forma incondicionada (aspecto crítico) e o sentido próprio de cada forma de sentido (aspecto

fenomenológico). No sistema das ciências, o pensamento e ser são categorias elementares do

sentido que devem ser considerados metalogicamente, assim como forma e substância, tal como

descritos por Tillich de maneira especifica em sua filosofia da religião.

No texto Filosofia da Religião, de 1925, o método metalógico será mais diretamente

aplicado à análise da religião, considerado aqui como o método mais adequado para este fim.

Novamente aqui o método metalógico é descrito como a soma dos elementos intuitivo e

dinâmico ao método crítico. De acordo com o autor, o método metalógico é:

É lógico enquanto conserva a orientação às puras formas racionais que

caracteriza o método crítico. É metalógico porque vai além do puro

formalismo, em um duplo sentido, em primeiro lugar porque procura

apreender a substância inerente às formas; em segundo lugar, enquanto

estabelece normas de maneira criativa e individual178 (TILLICH, 1973 [1925],

p. 50).

O método metalógico, assim como o método crítico-dialético, abstrai as funções e

categorias do universo do sentido e as coloca como fatores condicionantes na construção da

realidade significante, conectadas de maneira dialética entre si. Entretanto, o elemento crítico-

dialético não é o único que participa no método metalógico, junto a ele está a intuição das

essências que se volta para a dimensão substancial das funções e categorias presente na

realidade. Com isso, Tillich consegue propor um método que é “intuitivo e dinâmico ao método

crítico”. Ou seja, trata-se de uma metodologia que é ao mesmo tempo crítica, na medida em

que ela preserva seu formalismo lógico, mas é também intuitiva, a partir do momento que

apreende a substância das formas. O teólogo concede ao método crítico, a força intuitiva (ou

fenomenológica) da substância religiosa.

A intuição metalógica das essências não se dirige para as coisas particulares

ou suas qualidades; não se limita à forma individual, mas sim percebe as

tensões e as polaridades que, para ela, constituem o elemento verdadeiramente

essencial da essência. O objetivo do método metalógico é a intuição (Schau)

da dinâmica interna na estrutura da realidade de sentido179 (TILLICH, 1973

[1925], p. 51).

178 It is logical in the sense that the orientation to pure rational forms, involved in the critical method, is retained.

It is Metalogical because it goes beyond pure formalism in a double sense, on the one hand in that it apprehends

the import inhering in the forms, on the other in that it sets up norms in an individual-creative way.

179 Metalogical intuition of essences is not directed toward particular things and qualities: it does not remain

attached to the individual form, but rather it perceives the tensions and polarities that seem to it to constitute the

84

Com isso, a dinâmica entre forma e substância passa a ser percebida como um fator

elementar na filosofia da religião do autor. O direcionamento às formas de sentido, não se

limita à forma particular e individual. Existe sempre uma mediação entre a forma e a substância,

e a tensão entre estes dois elementos é o que dará sustentação ao método. Assim, o teólogo

afirma que “o método metalógico, com sua distinção entre fundamento de sentido e a unidade

de sentido, é capaz de apontar, ao mesmo tempo, para as relações positivas e negativas entre a

religião e a cultura, e com isso, trazer à luz a função religiosa em sua pureza”180 (TILLICH,

1973 [1925], p. 62). Higuet (2011, p. 35) comenta que a análise metalógica mostra que a religião

é orientação em direção ao sentido incondicional, enquanto que a cultura é orientação para as

formas condicionadas. Da mesma forma, o método mostra que ambas se encontram na

orientação para a unidade completa das formas do sentido. Esta unidade por sua vez é um

símbolo que para a religião deve ser ao mesmo tempo afirmado e negado. “Lembramos que,

para Tillich, o incondicionado não é um ser, nem a totalidade do ser, mas é uma qualidade

presente em toda experiência da realidade. Por isso, toda experiência do real apresenta uma

dimensão absoluta ou religiosa” (HIGUET, 2011, p. 35).

Dessa forma, Tillich afirma que por um lado, seu método se volta exclusivamente para

as formas de sentido, as funções e categorias mediante as quais os objetos são constituídos, e

por outro lado “deixa os objetos de sentido, as totalidades vivas (Gestalten) da natureza e

história às investigações empíricas fundamentadas na intuição categórica das essências”181

(TILLICH, 1973 [1925], p. 51). Por conta disso, como bem observou Béland (1995, p. 135), o

método de Tillich não pode ser completamente associado a outros métodos presente no

idealismo alemão como o idealismo subjetivo (Fichte), objetivo (Schelling) ou absoluto

(Hegel), pois como afirma o próprio Tillich, seu método tenta dar um passo além, porque

Ao reconhecer a tensão infinita entre forma e substância, não pode sequer

considerar a possibilidade de apreender os objetos significantes

metalogicamente à maneira da dialética hegeliana, ou do sistema da natureza

really essential element in the essence. The intuition (Schau) of the inner dynamic in the structure of the meaning-

reality is the goal of metalogic.

180 The metalogical method with its distinction between ground of meaning and unity of meaning is able to indicate

at the same time the positive and the negative relations between religion and culture, and thus to present the

religious function in its purity.

181 It leaves the objects of meaning, the living wholes (Gestalten) of nature and history, to empirical

investigations supported by the categorial intuition of essences.

85

de Schelling. A consciência da infinitude de todo o real faz que tal intenção

seja impossível182 (TILLICH, 1973 [1925], p. 51).

Por esta mesma razão Tillich vai apontar a diferença do seu método em relação a

fenomenologia. O autor afirma que a peculiaridade de seu método está no fato de que o método

metalógico não fica preso as formas particulares, mas se dirige crítica e intuitivamente por meio

delas até alcançar os princípios de sentido que estão condicionados tanto pela forma como pela

substância, e sobre os quais se fundamentam todas as intuições particulares da essência. Nessa

perspectiva, a fenomenologia por si só não seria capaz de estabelecer uma interface intuitiva

com os princípios fundamentais de sentido que são determinados pela forma e substância, ela

estaria carente de uma fundamentação crítica. O âmbito fenomenológico das essências, comenta

o teólogo, é dividido entre a dialética dinâmica dos elementos de sentido e a experiência

objetiva. Para Tillich, o método “Consegue deste modo, em primeiro lugar, uma base para a

crítica (da qual carece a fenomenologia) sem tornar-se formalista e, em segundo lugar, leva o

empirismo à altura de uma intuição viva das essências, sem ter que postular, como a

fenomenologia um segundo empirismo místico, além do empirismo objetivo”183 (TILLICH,

1973 [1925], p. 52).

Devido a este elemento intuitivo presente no método metalógico, o teólogo comenta que

seu método não está completamente distanciado do misticismo. “A concepção básica de toda

mística, que os princípios do macrocosmo estão dados no microcosmo, encontra sua expressão

ao nível epistemológico na teoria da realização do sentido do ser pelo espírito”184 (TILLICH,

1973 [1925], p. 52). Isto significa que os elementos de todo sentido, a forma e substância, são

elementos essenciais de tudo que há. Dessa forma, a meta deste simbolismo é a intuição das

formas significativas plenas de uma substância viva, e não a intuição de qualquer tipo de

essência metafísica independente. Os elementos do sentido formam um todo coerente de modo

que não se pode falar de uma substância sem forma e vice-versa. Esta antítese da forma e

substância é válida apenas para o método de intuição das essências que consegue perceber a

182 Just because it knows of the infinite tension between form and import it cannot even consider trying to

apprehend the objects of meaning metalogically in the manner of the Hegelian dialectic or of Schelling's system

of nature. The awareness of the infinity of everything real makes such an intention impossible.

183 In thus achieves on the one hand a basis for criticism (which is lacking in phenomenology) without becoming

formalistic, and on the other it raises empiricism to the height of a living intuition of essences, without thereby

having to posit, like phenomenology, a second mystical empiricism beside the objective one.

184 The basic insight of all mysticism, that the principles of the macrocosm are given in the microcosm, finds its

epistemological expression in the theory of the spirit fulfilling being through meaning.

86

vida e as relações das formas do sentido por meio da maneira em que estas dão expressão à

substância. Na prática, o teólogo afirma que:

A dinâmica interna das formas de sentido, as funções e as categorias, nos

levam mais além das considerações filosóficas à história da cultura e, depois,

ao estabelecimento das normas. A polaridade interior de todas as formas de

sentido torna possível uma compreensão construtiva da realização do sentido

na história da cultura e nos empurra a que cheguemos a conceber a

possibilidade de resolver a tensão; porém, não de maneira abstrata, mas

mediante uma solução criativa dos problemas que propõe, num primeiro

plano, o processo do espírito (Geistesprozess)185 (TILLICH, 1973 [1925], p.

53).

A metalógica, portanto, se propõe a evidenciar a tensão dinâmica e infinita entre forma

e substância presente na própria realidade histórica da criação espiritual. Com o elemento crítico

é possível perceber a unidade das formas de sentido, isto é, ele cumpre uma função racional,

mas na medida em que não é possível ir além das formas apenas com este elemento, Tillich

recorre ao elemento intuitivo para perceber nas formas sua substância, ou seja, o sentido

incondicional presente nela. O sentido incondicional, percebido pela intencionalidade do ato da

consciência é a dimensão profunda da realidade, como dito no capítulo anterior, o fundamento

e abismo de todo sentido. A abordagem metalógica tenta alcançar os elementos próprios do

sentido e encontrar neles o universal de tal modo que seja possível construir a partir daí um

sistema de princípios.

Entretanto, Tillich comenta também que uma das dificuldades que se apresenta ao

método metalógico está relacionado com a nomenclatura. Isto é, como se pode justificar a

introdução de um conceito de essência como a essência de fenômenos particulares individuais

que já possuem um nome fixo. Para a fenomenologia, a linguagem oferece uma via de acesso

à intuição das essências. Intuir a intenção que possui uma palavra é, para a fenomenologia uma

demanda básica. Pressupõe-se que o todo que cria a linguagem está numa relação intuitiva de

unidade com as essências, e que a linguagem, portanto, é uma revelação imediata das essências.

O método metalógico pode compartilhar este pressuposto, mas com algumas limitações. É

possível reconhecer a pretensão de que o espírito criativo se revela na linguagem, mas não pode

admitir que as “intenções” da linguagem revelam as essências enquanto tais. Sendo assim, ele

185 The inner dynamic of the forms of meaning, of the functions and categories, leads beyond philosophical

considerations to cultural history, and then to the establishment of norms. The inner polarity of all forms of

meaning makes possible a constructive understanding of the fulfillments of meaning realized in cultural history,

and pushes on to the idea of a resolution of tension, not in an abstract manner, but in a creative solution of the

problems brought to the fore by the spiritual process (Geistesprozess).

87

pode se ocupar da linguagem de tal maneira que não apenas compreende suas intenções, mas

que também no processo as modifica.

A metalógica está situada na corrente viva das realidades significativas, uma

corrente que também inclui as realidades santas ou religiosamente

qualificadas. A metalógica só pode desenvolver sua análise a partir da

realidade significada; mas sem se ater as criações estabelecidas desta corrente,

e muito menos à linguagem. Ao contrário, através de uma crítica produtiva da

palavra e da realidade, molda novas formas a partir da corrente das realidades

significadas186 (TILLICH, 1973 [1925], p. 54).

Sendo assim, pode-se dizer que a forma não força a substância a se enquadrar nas suas

concepções generalizadoras, e a substância deixa de resistir à forma e passa a lhe conceber

sentido de maneira intuitiva e criativa tornando possível uma diferenciação harmônica entre o

conceito de essência e o conceito de norma. Esta tensão dinâmica presente no método

metalógico é que evita a redução de toda a realidade às puras formas como o faz o criticismo

puro, e proporciona a criação de um conceito normativo concreto, sem se abster da substância

religiosa.

O método metalógico transcende o puro racionalismo por meio do aporte intuitivo e

consegue com isso destacar o elemento vivo e dinâmico nas formas de sentido. No caminho

proposto pela metalógica, tanto os aspectos racionais (crítico, formal) quanto irracionais

(intuitivo, subjetivo) são valorizados. Este tipo de análise torna-se possível porque para Tillich

em todo ato espiritual estão presentes elementos de racionalidade e irracionalidade que

subsistem numa tensão interna e infinita, o método metalógico encontra-se dessa forma

fundamentado na consciência desta tensão, trata-se de uma valorização do aspecto inesgotável

e irredutível do sentido. Para o autor “A superioridade do método metalógico é que apreende

juntamente a natureza e verdade da religião [...] A questão da verdade da religião se responde

através da apreensão metalógica da natureza da religião como orientação ao sentido

incondicional”187 (TILLICH, 1973 [1925], p. 70-71).

O sentido incondicional não é um objeto, mas uma exigência, de modo que a busca pela

verdade é nesse sentido a busca pelo incondicional que é inatingível e interminável, muito

186 Language but also alters it in the process. Metalogic stands in the living stream of meaning-realities, a stream

that also includes the holy or religiously qualified realities. Only on the basis of the meaning-reality can metalogic

accomplish its critical analysis; but it does not bind itself to fixed creations of this stream, not even to language.

Rather, through a productive criticism of word and reality, it shapes new forms out of the stream.

187 It is the superiority of the metalogical method that it apprehends the truth along with the nature of religion [...] The question concerning the truth of religion is answered by the metalogical apprehension of the nature of religion

as directedness toward the unconditioned meaning.

88

embora necessário para o método em filosofia da religião, assim como é para a unidade da

consciência. Por consequência, a abordagem metalógica encontra-se em sintonia com o

conceito de religião em Tillich e pode ser compreendido no horizonte de sua teoria de sentido

e intencionalidade. O teólogo quer manter vivo aquilo que é essencial na religião assumindo

uma atitude de ir além do formalismo lógico empírico para perceber no fenômeno a tensão

infinita e dinâmica entre forma e substância na própria construção do universo de sentido. Estar

consciente desta tensão como movimento incessante de criação que se dá na confluência de

elementos racionais e irracionais é a base para aproximar-se metalogicamente de um fenômeno.

Com isso Tillich entende que é necessário frisar que “a análise da essência do religioso, segundo

o método metalógico não requer complementação alguma de uma prova da verdade da religião;

ele contém em si mesmo a solução do ‘problema da realidade’ tanto para a esfera religiosa como

para todas as outras esferas de sentido”188 (TILLICH, 1973 [1925], p. 72).

2.4. O método fenomenológico-crítico

Entre os anos 1951 e 1963, já nos EUA, o autor escreve sua Teologia Sistemática. Na

primeira parte desta obra, o autor propõe um novo método, a saber, a fenomenologia crítica.

Diferente dos métodos analisados anteriormente, o contexto agora é teológico, o que dará novos

traços às possibilidades de aplicação do método. Na teologia de Tillich a fenomenologia é usada

como método de investigação para analisar e validar os conceitos teológicos. Sua finalidade é

descrever os sentidos, deixando de lado, temporariamente, a questão da realidade à qual se

referem. Ela “é uma forma de considerar os fenômenos tal como ‘se apresentam’, sem a

interferência de preconceitos e explicações negativas ou positivas” (TILLICH, 2011, p. 119).

Tillich num primeiro momento retoma os conceitos da fenomenologia filosófica de Husserl e

faz uma aproximação à teologia. O teólogo descreve a fenomenologia como um método

eficiente na descrição das essências e que poderia prestar grande contribuição para a teologia.

A descrição das essências é trabalhada por Husserl em Ideias, obra com a qual Tillich

teve contato e menciona em nota no início da segunda seção de seu texto Razão e Revelação

188 The analysis of the essence of the religious according to the metalogical method requires no supplementation

by a proof of the truth of religion; indeed, it contains within itself the solution of “the problem of reality” for all

the spheres of meaning.

89

(primeira parte da TS). O teólogo retoma o princípio da epoqué apresentado por Husserl,

reconhece a contribuição do método e afirma que: “A importância desta abordagem

metodológica está em sua exigência de que o sentido de uma noção seja esclarecido e

circunscrito antes que se determine sua validez, antes que se aceite ou se rechace tal noção”

(TILLICH, 2011, p. 119). Tillich valoriza o caráter rigoroso e radical da fenomenologia na

exigência do esclarecimento de sentidos e percebe as possibilidades dessa contribuição na

esfera das análises do fenômeno religioso. De acordo com Tillich (2011, p. 119)

Em muitos casos, especialmente no âmbito da religião, uma idéia foi tomada

em seu sentido não purificado, vago ou popular, e tornada vítima de uma

rejeição fácil e injusta. A teologia deve aplicar a abordagem fenomenológica

a todos os seus conceitos básicos, forçando assim seus críticos a ver sobretudo

o que significam os conceitos criticados e obrigando a si própria a fazer

descrições cuidadosas de seus conceitos e a usá-los com consistência lógica,

evitando assim o perigo de tentar preencher as lacunas lógicas com material

devocional.

Tillich começa cada uma das cinco partes de sua TS com a aplicação do método

fenomenológico, fazendo uma descrição do sentido das ideias determinantes, antes de qualquer

afirmação ou discussão de sua verdade e realidade efetiva. A aplicação do método em sua

própria produção teológica demonstrou seu interesse pela fenomenologia, principalmente pelo

postulado fenomenológico da descrição das essências. Conforme Losee “A eliminação dos

preconceitos e distorções impostas pelo sujeito é essencial para a preservação da integridade do

encontro do sujeito com seu mundo. Tillich estava de acordo com Husserl sobre este ponto”189

(LOSEE, 2015, p. 17). Dessa forma, embora o teólogo não tenha produzido muito material

especificamente sobre a questão do método, o teólogo oferece no decorrer de suas obras

inúmeros exemplos de exercícios fenomenológicos.

Após apresentar a fenomenologia husserliana e sua importância para o âmbito teológico,

o autor retoma a crítica ao método fenomenológico tal como fizera em outras discussões

metodológicas. Tillich mantém seu posicionamento de que a fenomenologia se for tomada sem

o aporte do elemento crítico é por si só insuficiente para uma análise do fenômeno religioso.

Ela se dirige para a essência a partir de um exemplar privilegiado, e faz do dado ideal um dado

normativo. Muito embora a intuição das essências seja um aspecto elementar tanto para a

filosofia da religião quanto para a Teologia Sistemática, falta à fenomenologia uma abordagem

crítica que lhe permita fazer uma distinção na apreensão dos princípios do sentido. Tillich

189 The elimination of prejudices and distortions imposed by the subject is essential to the preservation of the

integrity of the subject's encounter with its world. Tillich was in agreement with Husserl on this point.

90

reproduz em 1951 na primeira parte de sua TS a mesma crítica que realizou em outros

momentos de sua produção teórica. A fenomenologia embora importante, carece de um

elemento crítico.

O elemento crítico é importante, pois chama atenção para o aspecto formal e exemplar

em que a experiência religiosa acontece. Para Tillich, a decisão com relação ao exemplo não

pode ser deixada ao acaso. “Se o exemplo não fosse nada mais do que um exemplar de uma

espécie, como acontece no reino da natureza, não haveria problema. Mas a vida espiritual cria

mais do que exemplares; ela cria corporificações únicas de algo universal” (TILLICH, 2011, p.

120). Nesse sentido a proposta vai na direção de encontrar nos exemplos de revelação

particularidades únicas, isto é, que estão além do universal. Estas incorporações únicas só

podem ser sondadas por um elemento existencial-crítico no sentido fenomenológico, que possa

explicitar a concretude e singularidade do fenômeno. A abordagem fenomenológica é

preservada, por isso, como afirma Tillich (2011, p. 120): “Trata-se de uma ‘fenomenologia

crítica’, que une um elemento intuitivo-descritivo com um elemento existencial-crítico”. Com

isso o teólogo traz para a fenomenologia pura uma nova contribuição que permite desenvolver

elementos que não ficaram esclarecidos na fenomenologia de Husserl.

A fenomenologia tillichiana une, portanto, o elemento intuitivo-descritivo da

fenomenologia pura, que permite encarar o sentido universal da revelação, com a análise do

elemento existencial-crítico, que aponta para o caráter concreto e único daquilo que se revela.

Estes dois elementos no método tillichiano estão correlacionados e estabelecidos numa tensão.

De acordo com o autor, o elemento existencial-crítico é o critério segundo o qual se seleciona

o exemplo, e o elemento intuitivo-descritivo é a técnica por meio da qual se descreve o sentido

que é manifesto no exemplo.

Enquanto que no método crítico-intuitivo e metalógico a experiência religiosa é

encarada como o direcionamento intencional ao sentido incondicional, devido ao contexto de

caráter mais filosófico em que está inserido, a fenomenologia crítica encara a experiência

religiosa em termos de experiência revelatória, devido ao contexto teológico. Nesse sentido, o

autor comenta que, “A revelação é a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última.

O mistério revelado é nossa preocupação última, porque é o fundamento de nosso ser”

(TILLICH, 2011, p. 123). Aquilo que é dado como último na revelação, “É o correlato de uma

preocupação incondicional, mas não é uma ‘coisa superior’ chamada ‘absoluto’ ou ‘o

incondicionado’, [...] O último é o objeto de uma entrega total, exigindo também, enquanto

91

olhamos para ele, a entrega de nossa subjetividade” (TILLICH, 2011, p. 29). Trata-se, portanto,

de uma irrupção do incondicional no mundo do condicional, isto é, um sentido incondicional

que irrompe através das formas condicionadas e que é imediatamente percebido pela

consciência humana. Cabe ressaltar que quando se refere à revelação enquanto este sentido

incondicional que é percebido pela consciência humana, Tillich está lidando aqui com um

conceito de religião que opera na dimensão da vida consciente, isto é, “A religião é a orientação

intencional ao Incondicional”190 (TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor).

O que se revela, portanto, não é algo objetivado externo ao observador, mas um sentido

incondicional que se atualiza necessariamente por meio das formas condicionadas. “A

revelação é a forma em que o objeto religioso é dado teoricamente à fé religiosa” e “A fé sempre

se baseia na revelação, porque é uma apreensão do sentido incondicionado por meio das formas

condicionadas”191 (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).

Deste modo, o elemento intuitivo-descritivo permite perceber a revelação no sentido

especulativo ou categórico no momento em que a essência do fenômeno é apreendida. Este

elemento opera na dimensão da consciência, e quando usado para compreender o evento

revelatório, possibilita evidenciar a orientação intencional da consciência ao sentido

incondicional. Isso implica no fato de que o conteúdo incondicional nunca perde seu caráter

inesgotável em relação a qualquer forma condicional, esta inesgotabilidade da substância

possibilita compreender o incondicional como pressuposto de todo sentido particular. O

incondicional permanece como indefinido, inesgotável, a preocupação última manifesta na

revelação.

Neste evento revelatório é possível perceber nele e através dele o sentido universal de

revelação, e é neste momento que o segundo elemento da fenomenologia de Tillich, a saber, o

elemento existencial-crítico, aparece com toda sua força chamando atenção da fenomenologia

para a experiência concreta e situacional da revelação. A consciência por sua natureza intrínseca

se dirige ao incondicional através das formas condicionadas presente na realidade concreta e

existencial, por conta disso, a experiência religiosa deve ser entendida tanto de forma intuitiva-

descritiva como existencial-crítica.

190Religion is directedness toward the Unconditional.

191 Faith is always based on revelation, for it is an apprehension of the unconditioned import through conditioned

forms.

92

O elemento existencial-crítico diz respeito ao momento em que o universal é

manifestado de forma singular elucidando sua concretude. Neste sentido pode-se pensar a

experiência dentro da vivência do ser, momento em que a experiência assimila uma

característica existencial tornando-se algo único e final, mas conservando sua universalidade.

Tillich propõe compreender as experiências a partir da própria condição existencial do ser no

mundo.

A análise da essência do fenômeno religioso não pode se deter às categorias universais

e negligenciar a contingência dos fatos. Na revelação a coisa é “dada ‘em pessoa’ ou ‘em carne

e osso’. [...] um interior que se revela no exterior, uma significação que irrompe no mundo e aí

se põe a existir, e que só se pode compreender plenamente procurando-a em seu lugar com o

olhar” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 428). É nesse sentido que o elemento existencial-crítico

chama atenção para o caráter concreto e singular em que se dá a experiência existencial e coloca

a fenomenologia crítica de Tillich como uma contribuição importante para os estudos

fenomenológicos. Trata-se de perceber o essencial ainda quando se olha para o existencial.

O caráter concreto e único do exemplo revelatório, de acordo com Tillich (2011, p. 120)

está em constante tensão com a reivindicação universal da descrição fenomenológica de que o

sentido de tal exemplo é válido para todos os demais exemplos. O problema que o teólogo

apresenta, portanto, é como uma reivindicação religiosa particular pode ser legitimada como

possuidora de valor universal. Para Tillich, esta tensão é inevitável, e por este motivo o método

deve olhar para os dois polos desta tensão. Sua fenomenologia, como foi possível observar,

considera fundamental o aspecto particular do evento histórico, e dessa forma, o autor consegue

evitar a redução do sentido revelatório a uma generalidade vazia que não é, por exemplo, nem

judaica, nem cristã, nem profética e nem mística. Os eventos particulares de revelação, como

“(p. ex., a aceitação de Jesus como o Cristo por Pedro) é a revelação final e, em consequência,

é universalmente válida” (TILLICH, 2011, p. 120). Os eventos particulares de revelação,

portanto, agem como procedimento capaz de chegar ao sentido universal da revelação.

O exemplo de revelação, de acordo com Tillich é julgado em termos do conceito

fenomenológico de revelação que pode ser usado como critério por ser capaz de expressar a

natureza essencial de toda a revelação. A natureza essencial diz respeito aquilo que é último e

incondicional, e nesse sentido parece agir de maneira normativa para os eventos particulares

que reivindicam historicamente o caráter de revelação. Entretanto, a natureza essencial da

revelação é também constituída pelo equivalente de sua forma, de modo que a partir de um

93

processo que também é crítico, é possível selecionar o evento revelatório pertinente a partir do

qual a natureza essencial da revelação possa ser evidenciada, pois para Tillich, a decisão em

relação ao exemplo depende de uma revelação que tenha sido recebida e que seja considerada

final. Nesse sentido “O significado da revelação é derivado do exemplo ‘clássico’, mas a ideia

inferida desta maneira é válida para toda revelação, por mais imperfeito e distorcido que o

evento revelador seja efetivamente” (TILLICH, 2011, p. 121).

O evento revelatório é percebido a partir de uma ocorrência histórica particular. Nesse

sentido, o dado histórico e existencial desempenha um papel constitutivo no processo de

teorização. Tanto o aspecto universal da descrição fenomenológica quanto as formas

específicas e particulares das religiões são valorizadas, evitando aquilo que Tillich chamou de

uma rejeição fácil e injusta. Por este motivo também, o teólogo conclui que “A fenomenologia

crítica é o método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos significados

espirituais (e também Espirituais). A teologia deve usá-lo ao tratar de cada um de seus conceitos

básicos” (TILLICH, 2011, p. 121).

A transposição que Tillich faz de seu método de um contexto filosófico para um

contexto teológico chama atenção. Enquanto os métodos crítico-intuitivo e metalógico foram

discutidos e aplicados no âmbito da filosofia da religião, sobretudo para alcançar a essência da

religião, o método fenomenológico-crítico é aplicado em um contexto teológico. Da mesma

forma que em 1925 em sua Filosofia da Religião o autor descreve seu método como o mais

adequado para a filosofia da religião, novamente em 1951 Tillich o descreve como o mais

adequado para a teologia.

A presença deste método em sua TS demonstra em grande medida a importância que

este método possui para o pensamento do autor, bem como o alcance de sua aplicabilidade

teórica. Higuet (2011, p. 40) comenta que “A apreensão metalógica da essência da religião se

limita, na teologia, a uma única religião, mas não é essencialmente diferente da apreensão

filosófica. É que a filosofia e teologia compartilham uma dimensão mística na intuição do

incondicionado”. Este comentário de Higuet ajuda sobremaneira entender de que forma Tillich

consegue aplicar seu método para além dos limites da filosofia da religião. Tillich não manteve

o nome metalógico, mas se sua fenomenologia crítica for tomada como um método correlato

ao crítico-intuitivo e metalógico, como pressupõe esta pesquisa, então é possível observar como

o teólogo procedeu com o método na elaboração de sua TS.

94

Tendo isso em conta é possível constatar também que a presença deste método no

contexto de sua Teologia Sistemática demonstra em grande medida elementos de continuidade

entre o período intermediário do autor com o assim chamado terceiro período. Como bem

observou Danz (2009, p. 185) a filosofia de Tillich continua sendo ao longo de sua vida uma

filosofia do espírito, baseada na sua interpretação do espírito e sentido. Mesmo no contexto de

sua Teologia Sistemática, onde a ontologia é mais forte, a presença deste método demonstra

que para Tillich a religião enquanto direcionamento da consciência intencional ao sentido

incondicional continua vigente e precisa, portanto, ser compreendida a partir de um elemento

intuitivo-descritivo. O teólogo entende que o problema central da filosofia da religião para o

qual o método pretende dar uma resposta, a saber, “A pergunta sobre o sentido último da

realidade de cada coisa concreta”192 (TILLICH, 1973 [1922], p. 149) não é diferente na teologia,

embora no contexto teológico a apreensão deste sentido último se limita a uma religião

específica, como muito bem observou Higuet. Dessa forma, a intuição do incondicionado é uma

exigência tanto na filosofia como na teologia devido à dimensão mística que ambas

compartilham.

Na introdução de sua TS, o teólogo discute a natureza da teologia sistemática e chama

atenção para os elementos fundamentais de toda teologia. Tillich (2011, p. 26) comenta que

tanto nas abordagens teológicas empíricas e metafísicas, ou nos muitos casos em que ambas

são combinadas, é possível observar que o a priori que dirige a indução e a dedução é um tipo

de experiência mística. Para o teólogo:

Seja ele o “ser-em-si” (escolástica) ou a “substância universal” (Spinoza), seja

o “além da subjetividade e objetividade” (James) ou a “identidade de espírito

e natureza” (Schelling), seja o “universo” (Schleiermacher) ou a “totalidade

cósmica” (Hocking), seja o “processo criador de valor” (Whitehead) ou a

“integração progressiva” (Wieman), seja o “espírito absoluto” (Hegel) ou a

“pessoa cósmica” (Brightman), - cada um desses conceitos está baseado em

uma experiência imediata de um valor ou ser último, do qual podemos chegar

a ser conscientes intuitivamente (TILLICH, 2011, p. 27).

Na sequência Tillich afirma que tanto o idealismo quanto o naturalismo diferem muito

pouco em seu ponto de partida quando desenvolvem conceitos teológicos. Ambos são

dependentes de um ponto de identidade entre o sujeito que vive a experiência e o elemento de

caráter último que aparece na experiência religiosa ou na experiência do mundo como religioso.

Os conceitos teológicos de ambos “estão enraizados em um ‘a priori místico’, uma consciência

192 The question concerning the ultimate meaning and reality of every actual thing.

95

de algo que transcende a separação entre sujeito e objeto. E se, no curso de um processo

‘científico’, descobrimos tal a priori, isto só é possível porque ele já estava presente desde o

começo” (TILLICH, 2011, p. 27). Este é o círculo, comenta Tillich, do qual nenhum filósofo

religioso pode escapar, e a diferença deste para o círculo teológico, é que no círculo teológico

“Ele acrescenta ao ‘a priori místico’ o critério da mensagem cristã. Enquanto o filósofo da

religião tenta permanecer geral e abstrato em seus conceitos, como o próprio termo ‘religião’

indica, o teólogo é, consciente e intencionalmente, específico e concreto. A diferença

naturalmente não é absoluta” (TILLICH, 2011, p. 27). O conceito de religião, que no contexto

filosófico permanece neutro, é posto na TS sob o domínio do círculo teológico cristão.

A consciência imediata do incondicional é, portanto, uma experiência básica, isto é,

trata-se de uma condição sine qua non tanto para a filosofia como para a teologia193. Este

direcionamento intencional continua em sua TS um pressuposto, muito embora seja descrito de

forma concreta “como revelação do mistério que é nossa preocupação última” (TILLICH, 2011,

p. 123). A preocupação religiosa é última, afirma Tillich, “A preocupação última é

incondicional, independentemente de qualquer condição de caráter, desejo ou circunstância. A

preocupação incondicional é total: nenhuma parte de nós mesmos ou de nosso mundo está

excluída dela” (TILLICH, 2011, p. 29). Aquilo que preocupa o ser humano de forma última e

incondicional é o ser-em-si, que como dito no capítulo anterior não é um ser, mas um sentido,

o sentido incondicional. A preocupação última, assim como o sentido incondicional se refere a

algo presente em todas as funções da vida espiritual do ser humano, não há nenhuma esfera da

vida espiritual onde o sentido último não esteja presente, ele é a raiz de todas as outras funções.

Dessa forma, o método crítico-intuitivo e metalógico não são diferentes do fenomenológico-

crítico, o que mudou foi o contexto em que foram aplicados, mas isso não impede que o método

fenomenológico-crítico seja usado num contexto filosófico e o metalógico ou crítico-intuitivo

num contexto teológico.

Em termos de continuidades e descontinuidades entres os dois primeiros métodos e a

fenomenologia crítica, algumas considerações podem ser feitas. Embora o cerne do método

continue sendo a união entre o elemento intuitivo da fenomenologia pura e o elemento crítico

da escola de Kant e do neokantismo, Tillich adiciona ao elemento intuitivo o caráter de ser

193 Vale relembrar neste momento a afirmação de Tillich de que em toda experiência religiosa existem dois pontos:

“(1) o ‘ponto’ da consciência imediata do incondicional que é vazio, mas incondicionalmente certo; e (2) a

‘amplitude” de uma preocupação concreta repleta de conteúdo [...] A teologia lida com o segundo elemento,

pressupondo o primeiro” (TILLICH, 1987b [1947], p. 308).

96

descritivo e ao elemento crítico o caráter de ser existencial. O caráter descritivo da intuição das

essências é próprio da fenomenologia pura. Husserl apresenta sua fenomenologia como uma

ciência descritiva das essências194, algo que Tillich já havia percebido e destacado em outros

momentos195, mas omitido em títulos anteriores. O aspecto existencial enfatizado pelo autor

possivelmente esteja relacionado ao contexto maior de seu pensamento que se encontra neste

momento em seu terceiro período, um período caracterizado por questões ontológicas de cunho

existencialista.

De acordo com Danz (2009, p. 184-185) este momento do pensamento de Tillich

começa no final da década de 1920 e se desenvolve sobretudo em seu período americano com

forte expressão na produção dos três volumes de sua TS. A ontologia torna-se um aspecto

característico desse terceiro período. O conceito de Deus como “ser-em-si”, por exemplo, é uma

das grandes expressões dessa guinada ontológica. O contato do teólogo com o pensamento de

Heidegger196 possivelmente teve um papel importante no interesse de Tillich pela ontologia e

filosofia existencial. O autor comenta que

Quando a filosofia existencial foi introduzida na Alemanha alcancei uma nova

compreensão do vínculo entre teologia e filosofia. As conferências de

Heidegger em Marburg, a publicação de Ser e Tempo, e sua interpretação de

Kant resultaram significativas neste sentido. Tanto para os partidários quanto

para os opositores da filosofia existencial nada existe de mais importante,

depois das Investigações Lógicas de Husserl, que a obra de Heidegger197

(TILLICH, 1967 [1936], p. 56).

194 Nas palavras de Husserl “No que concerne à fenomenologia, ela quer ser uma doutrina eidética descritiva dos

vividos transcendentais puros em orientação fenomenológica, e como toda disciplina descritiva, que não opera por

substrução nem por idealização, ela tem sua legitimidade em si” (HUSSERL, 2006, p. 161).

195 Sobre a fenomenologia, Tillich comenta que “Ela mostra, com razão, que as coisas que se pretende explicar

devem ser primeiramente compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas de explicação

genética (genetischen Erklärungsversuchen), dessa forma, a descrição deve preceder a explicação”. (TILLICH,

2001 [1920], p. 380).

196 Tillich teve contato com Heidegger em 1924-1925 na Philipps-Universitat Marburg (chamada assim por ter

sido fundada por Filipe de Hesse em 1527). Tillich ocupou a prestigiada cadeira de Rudolf Otto e lecionou durante

três semestres na condição de Professor Associado. Neste período Tillich foi colega de Rudolf Bultmann e Martin

Heidegger, ambos professores dessa mesma universidade. Nessa mesma época, Heidegger escrevia sua grande

obra Ser e Tempo, que seria publicado em 1927. Tanto o contato direto com Heidegger quanto a posterior leitura

de Ser e Tempo deixaram marcas importantes em Tillich.

197 When existential philosophy was introduced into Germany, I came to a new understanding of the relationship

between theology and philosophy. Heidegger’s lectures at Marburg, the publication of his Sein und Zeit (Being

and Time), and also his interpretation of Kant were significant in this connection. Both to the followers and to the

opponents of existential philosophy, Heidegger’s work is more important than anything since Husserl’s Logische

Untersuchungen (Studies in Logic).

97

Heidegger foi discípulo de Husserl198 mas afastou-se oficialmente da fenomenologia

sistemática husserliana com a publicação de Ser e Tempo (GOTO, 2004, p. 41). Mesmo com

este distanciamento, a fenomenologia continuou presente no pensamento de Heidegger, sobre

tudo se considerar que “A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação para se

determinar o que deve constituir tema da ontologia. A ontologia só é possível como

fenomenologia” (HEIDEGGER, 1993, p. 66). Considerando que as últimas discussões de

Tillich sobre seu método tenham se desenvolvido principalmente em 1925 na Filosofia da

Religião onde o método ainda é chamado de metalógico, o contato que o teólogo teve com

Heidegger possivelmente encorajou o teólogo a renomear, anos mais tarde, seu método para

fenomenologia crítica e adicionar ao elemento crítico o aspecto existencial. Entretanto, não se

sabe ao certo qual foi o motivo que levou Tillich a mudar pela terceira vez o nome de seu

método, de modo que as razões apontadas aqui são apenas suspeitas e ficam abertas para

pesquisas futuras.

Nesse sentido, embora a fenomenologia crítica tenha adquirido um caráter existencial

em 1951, conserva como epicentro fundamental a união do elemento intuitivo da

fenomenologia de Husserl que se volta para o sentido incondicional percebido pela

intencionalidade da consciência, isto é, o aspecto essencial da religião, com o elemento crítico

das escolas kantiana e neokantiana, que se volta para o sentido concreto, ou seja, a forma por

meio do qual o sentido incondicional é percebido.

Sendo assim pode-se dizer que o método fenomenológico-crítico ocupa um lugar

fundamental na TS, sobre tudo por garantir ao contexto teológico o elemento a priori sobre o

qual encontram-se fundamentadas as formas concretas que expressam a dimensão de

ultimidade. Em postura fenomenológica-crítica pode-se dizer que a experiência religiosa é

constituída pela interação dinâmica do elemento essencial e, portanto, universal com o contexto

vivencial em que ocorre tal experiência. Tendo isso em conta, a fenomenologia crítica de Tillich

aponta para as possibilidades reais de reconhecimento da dimensão religiosa na experiência

humana bem como a diversidade de expressões possíveis. No caso da teologia, este método

possibilita uma valorização do caráter subjetivo e objetivo da experiência religiosa, focando

198

De acordo com Heidegger “quando, a partir de 1919, eu próprio, ensinando e aprendendo próximo de Husserl,

me exercitei na visão fenomenológica e, simultaneamente, pus à prova, nos Seminários, uma leitura de Aristóteles

diferente da habitual, retomei o meu interesse pelas Investigações Lógicas, muito especialmente pela sexta, da

primeira edição. A distinção, ali elaborada, entre intuição sensível e categorial, revelou-se-me, em todo o seu

alcance, como capaz de determinar «o múltiplo sentido do ente»” (HEIDEGGER, 2009, p. 8-9).

98

sobretudo em um modo simbólico específico de representação da experiência, mas pressupondo

seu caráter inesgotável e incondicional.

2.5. O caso especial do curso do verão de 1962

Num curso sobre filosofia da religião realizada em Harvard em 1962, Tillich retoma sua

discussão sobre os métodos em filosofia da religião e apresenta aquilo que novamente é descrito

como o método adequado em filosofia da religião. O método apresentado em Harvard é

denominado agora de método intuitivo-crítico199. Richard (2008, p. 270) comenta que em

Harvard, Tillich apresenta sua metodologia de forma mais simplificada em relação ao primeiro

curso realizado na Alemanha em 1920. Na quinta aula, o teólogo afirma que dentre os muitos

métodos na filosofia da religião ele vai se limitar a três fundamentais, a saber: o método

ontológico, que investiga a ontologia da finitude, o fenomenológico que descreve o fenômeno

do sagrado, e o crítico que se volta para a estrutura do espírito humano. Estes três métodos são

interdependentes, já que cada um deles deriva de um aspecto da religião, e nenhum é suficiente

por si só, de modo que “[...] se você tomar apenas um desses métodos, jamais atingirá

plenamente o fenômeno da religião”200 (TILLICH, 1962, aula 5).

Richard (2008, p. 271) comenta que a segunda parte da quinta aula e toda a sexta aula o

autor dedica para discutir o sentido verdadeiro e profundo das provas de Deus. Tillich retoma

algumas questões do primeiro volume de sua TS, e conclui dizendo que durante toda essa aula

o método discutido foi o ontológico, de acordo com o autor:

Eu discuti o método, o ontológico, com os argumentos a favor da existência

de Deus, que todos desçam para a experiência ontológica da presença do

199

O curso realizado no verão de 1962 ainda não foi publicado, o acesso ao material foi possível graças ao prof.

Dr. Jean Richard que enviou uma cópia do documento. Sobre as cópias destes documentos, Richard comenta que

“Então lembrei-me de que tínhamos nos arquivos de Quebec a transcrição das aulas sobre a filosofia da religião,

dadas por Tillich em Harvard, durante o semestre de primavera de 1962. Há cerca de vinte anos recebemos de

Renate Albrecht as fitas dessas aulas, eram cópias do material de Peter John. No entanto, de acordo com Grace

Cali, ex-secretária de Tillich em Harvard, as fitas originais foram feitas por Paul Lee, assistente de Tillich na época.

Então, nós transcrevemos as aulas das fitas, e a transcrição foi revisada por Werner Schüßler e Grace Cali. Além

disso, a Sra. Cali fez um ligeiro trabalho de edição do manuscrito, como costumava fazer com Tillich em Harvard”

(RICHARD, 2008, p. 259). Uma rápida pesquisa também mostrou que uma cópia desse material pode ser

encontrada na Andover-Harvard Theological Library. De acordo com o Site da Biblioteca, os arquivos foram

transcritos e entregues por Peter John e encontram-se juntamente com outros documentos mecanografiados sobre

Tillich.

200[...] if you stick to one of these methods, you never reach fully the phenomenon of religion

99

infinito no finito. Estes são verdadeiros na medida em que eles analisam a

finitude e descobrem o contraste do infinito e o finito dentro dela, mas eles

estão errados se fazem o salto para um ser supremo, que, sem dizer por que

justificação, que, em seguida, chamam de ‘Deus’201 (TILLICH, 1962, aula 7).

O método fenomenológico será o objeto da sétima e oitava aula. O autor começa com A

fenomenologia do espírito de Hegel e em seguida vai para a fenomenologia de Husserl que de

acordo com o teólogo, libertou as ciências do espírito – a filosofia, as artes, ética e assim por

diante – de uma completa sujeição aos métodos empíricos. Em suas Investigações Lógicas,

comenta Tillich, Husserl demonstrou que a mente deve dirigir-se primeiramente para o sentido

dos conceitos que utiliza antes de perguntar sobre como veio a existência. Este pressuposto é

fundamental para o âmbito das análises do fenômeno religioso:

Significa que se você quer saber o que é esse fato universal que chamamos de

religião no sentido empírico, como aparece, então não podemos fazê-lo de tal

maneira que começamos por tentar explicar, ou mais, tentando explicar

reduzindo-o a outras realidades sem tendo perguntado o que é realmente. E o

que realmente é [...] só pode ser entendido se olharmos para a sua natureza

essencial como a podemos descrever, como se mostra a nós, através de todos

os fatos empíricos, à nossa própria mente, em nossa própria experiência202

(TILLICH, 1962, aula 7).

É neste momento que a intuição vem para método. De acordo com o teólogo, a intuição

significa precisamente “ver a essência de uma coisa dentro da multiplicidade de fenômenos

empíricos”203 (TILLICH, 1962, aula 8). Entretanto, diferente de Husserl que entendia que no

exercício de intuir as essências era necessário colocar a existência entre colchetes, Tillich está

preocupado aqui com a relação do fenômeno religioso com as outras funções da mente humana.

Dessa forma, a nona aula será dedicada inteiramente ao método crítico de Kant. O teólogo

começa com uma exposição das três críticas de Kant sobre a determinação das estruturas da

mente que são pressupostos em cada experiência e termina com uma consideração sobre as

conquistas de Kant na ciência, ética e estética. Entretanto, Tillich diz que a mesma questão

deveria ser feita à religião, isto é, como a religião é possível?

201I discussed the one method, the ontological, with the arguments for the existence of God which all come down

to the ontological experience of the presence of the infinite in the finite, which are true insofar as they analyze

finitude and discover the contrast of the infinite and the finite within it, and are wrong if they make the jump to a

Highest Being which we then call, without saying with which justification, "God".

202It meant, if you want to know what is this universal fact which we call Religion in the empirical sense as they

appear, then we cannot do it in such a way that we first start by trying to explain it or more actually by trying to

explain it away by reducing it to other realities without having asked what it really is. And what it really is [...] It can be understood only if we look at its essential nature, as we can describe it, as it shows itself to us, through all

the empirical facts and to our own mind, in our own experience.

203seeing the essence of a thing within the manifoldness of empirical phenomena

100

Tillich conclui esta parte do curso dizendo que a partir do que foi exposto, a religião

pode ser compreendida como estando presente em todas as funções da vida espiritual do ser

humano, isto é, como o fundamento de todas as outras funções do espírito atuando como a

função do incondicional. Mas isso não quer dizer que há uma religião inata no ser humano,

“Mas isso significa que a estrutura da experiência, se analisada, mostra um ponto em que o

elemento religioso pode ser descoberto, tal como o elemento teórico, o elemento ético, o

elemento estético também pode ser descoberto”204 (TILLICH, 1962, aula 9). Há, portanto, um

ponto na totalidade da vida espiritual em que algo incondicional está presente, é assim, no

âmbito teórico como a demanda incondicional da verdade, na razão prática, como o comando

incondicional do bem, e no reino estético como a elevação do belo em si (TILLICH, 1962, aula

9).

O teólogo conclui a nona aula com a definição de religião como preocupação última e a

proposta do método “intuitivo-crítico”. De acordo com Tillich (1962, aula 9), o método

intuitivo-crítico é uma síntese metodológica das três abordagens analisadas anteriormente, a

saber, a ontológica, fenomenológica e a crítica. Por meio desse método torna-se possível:

A intuição crítica da finitude existencial do homem, que discuti na análise dos

argumentos sobre a existência de Deus; a intuição crítica dos inúmeros

fenômenos da vida religiosa, eu o discuti em conexão com o método

fenomenológico; e a intuição crítica da estrutura espiritual do homem – eu

discuti apenas em relação com Kant e seus sucessores205 (TILLICH, 1962,

aula 9).

Para o autor, a análise fenomenológica da experiência do sagrado deve ser

compreendida à luz dos outros dois elementos do método intuitivo-crítico, isto é, o elemento

ontológico e crítico. Percebe-se aqui que tal como na fenomenologia crítica, o elemento

intuitivo vem acompanhado do elemento crítico e existencial e não apenas do elemento crítico

como nos método crítico-intuitivo e metalógico.

O autor afirma que o método deve levar em consideração estas três abordagens. Dessa

forma, quando a história da religião é vista a luz da intuição-crítica, é possível descobrir que há

em todos os fenômenos chamados de “sagrado”, um elemento que aparece e reaparece, a saber:

204But it means that the structure of experience, if you analyze it, shows a point in which the religious element

can be discovered, as the theoretical element, the ethical element, the aesthetic element can be discovered.

205the critical intuition of man's existential finitude, which I've discussed in the discussion of the arguments for the

existence of God; the critical intuition of the innumerable phenomena of religious life — I discussed it in

connection with the phenomenological method; and the critical intuition of man's spiritual structure — I just

discussed it in connection with Kant and his successors

101

“o elemento de que a santidade é de importância incondicional para aqueles que a

experimentam, que se torna para eles uma questão de preocupação última”206 (TILLICH, 1962,

aula 9). Por outro lado, é possível perceber também, que essa preocupação última não é apenas

uma função especial na estrutura da mente humana, mas algo que se move em toda a vida

espiritual, ou seja, de que a religião é uma dimensão em todas as funções do espírito humano

“Esta é uma descoberta que fazemos quando olhamos com o método da intuição-crítica para

nossa mente”207 (TILLICH, 1962, aula 9). Depois de ter descoberto o fenômeno do sagrado e a

dimensão incondicional em todas as funções da mente humana, o autor afirma que é possível

reconhecer, por meio da abordagem ontológica, estas mesmas coisas na estrutura do mundo

encontrado. Trata-se do reconhecimento daquilo que está no próprio ser humano, no

reconhecimento da condição finita, limitada e contingente da realidade que impele o ser humano

à questão do incondicional.

Finalmente, Tillich afirma que quando a questão sobre o que é a religião for levantada,

pode se dizer a partir do método intuitivo-crítico que:

do ponto de vista da abordagem fenomenológica, a religião é a experiência do

sagrado [...] Do ponto de vista da abordagem crítica, é a dimensão do último

em todas as funções da vida espiritual do homem. Do ponto de vista da

abordagem ontológica, é a resposta à questão implícita na finitude humana.

Esses três elementos juntos, tentei resumir na fórmula [...] que a religião é a

experiência da preocupação última208 (TILLICH, 1962, aula 9).

Com isso, o autor irá discutir nas aulas 10, 11 e 12 o conceito de religião como

preocupação última, fazendo a distinção entre o princípio religioso e a religião histórica

concreta, bem como a relação entre o princípio religioso e funções culturais, “Aqui somos

levados de volta à palestra de 1919 Sobre a ideia de uma teologia da cultura, onde a distinção

entre o princípio religioso e a religião histórica concreta é claramente declarada, como a

distinção entre a potência religiosa e o ato religioso”209 (RICHARD, 2008, p. 276).

206the element that holiness is of unconditional significance for those who experience it, that it becomes for them

a matter of ultimate concern

207This is a discovery which we make when we look with the method of critical intuition at our mind.

208in the view of the phenomenological approach, religion is the experience of the holy, [...]; in the view of the

critical approach, it is the dimension of the ultimate in all functions of man's spiritual life; in view of the ontological

approach, it is the answer to the question implied in human finitude. And all three elements together, I tried to

sum up in the formula [...] that religion is the experience of ultimate concern.

209Here we are carried back to the 1919 lecture On the Idea of a Theology of Culture, where the distinction between

the religious principle and the concrete historical religion is clearly stated, as the distinction between the religious

potency and the religious act.

102

Para Tillich a religião se atualiza necessariamente através das formas concretas postas

pelo espírito humano em sua incessante criatividade no mundo da vida. “Isto mostra claramente

o suficiente a continuidade entre ambos os cursos sobre a filosofia da religião. O pensamento

de Tillich sobre essa questão é substancialmente o mesmo em 1920 e 1962”210 (RICHARD,

2008, p. 277). A dinâmica de relação entre forma e substância como aquilo que constitui a

experiência religiosa como tal é uma constante no pensamento do autor e aponta o caminho

através do qual seu método fenomenológico-crítico pode ser aplicado. Nesse sentido, para

compreender os alcances do método de Tillich para a atualidade e suas possibilidades de

aplicação, torna-se indispensável compreender em que consiste sua proposta de relacionamento

interdependente entre religião e cultura, e as implicações que a teoria da intencionalidade teve

sobre a formulação tillichiana dos modos como religião e cultura se relacionam.

Em relação ao curso de 1962, Perrottet (2008, p. 218) comenta que ele demonstra que a

preocupação com o método em filosofia da religião ainda estava viva. O método metalógico,

que havia substituído o crítico-intuitivo, foi também substituído pelo intuitivo-crítico, que tal

como foi possível perceber, continuava vivo e existindo ao lado do método da correlação, isto

é, o método intuitivo-crítico simplesmente não exclui o método da correlação211. Outro aspecto

que vale destacar é a posição em que os elementos são postos. Enquanto que em 1920 e 1922 o

método é chamado de crítico-intuitivo, com prioridade ao elemento crítico, em 1962 o nome é

intuitivo-crítico, com prioridade ao elemento intuitivo, o mesmo vale para o método

fenomenológico-crítico, a prioridade recai sobre o elemento intuitivo que é, como já foi dito,

um correlato de fenomenológico. Dessa forma, pode-se dizer que a versão final do método de

Tillich pressupõe num primeiro momento o elemento intuitivo-descritivo, e posteriormente um

210 This shows clearly enough the continuity between both series of lectures on the philosophy of religion. Tillich’s

thought on that matter is substantially the same in 1920 and 1962.

211 Tanto o método da correlação como a fenomenologia crítica estão presente na TS. De acordo com Tillich, o

método da correlação “explica os conteúdos da fé cristã através de perguntas existenciais e de respostas teológicas

em interdependência mútua” (TILLICH, 2011, p. 74) O termo correlação pode ser usado de três maneiras: há uma

correlação entre símbolos religiosos e aquilo que é simbolizado por eles. Há uma correlação entre conceitos que

denotam o humano e aqueles que denotam o divino. E há uma correlação entre a preocupação última e aquilo pelo

que se preocupa de forma última. Este método, portanto, “faz uma análise da situação humana a partir da qual

surgem as perguntas existenciais e demonstra que os símbolos usados na mensagem cristã são as respostas a estas

perguntas” (TILLICH, 2011, p. 76). O procedimento seguido pelo método da correlação não exclui a

fenomenologia crítica, que de acordo com o teólogo deve ser usada ao tratar de cada um dos conceitos teológicos

básicos. Os muitos dados teológicos devem ser analisados fenomenologicamente e “A fenomenologia crítica é o

método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos significados espirituais” (TILLICH, 2011, p.

121). Sendo assim, a fenomenologia crítica é empregada em sintonia com a correlação atuando de forma

entrelaçada e auxiliar no contexto da TS. Diferente é o caso no contexto da filosofia da religião em que a correlação

está ausente e o papel da fenomenologia crítica seria, portanto, fundamental. No entanto, uma análise mais

criteriosa sobre a relação entre o método da correlação e a fenomenologia crítica, e como ambos os métodos se

situam na TS, segue apenas como provocação para pesquisas futura.

103

elemento existencial-crítico, muito embora como já foi enfatizado nesta pesquisa, o método só

possui validade quando todos os elementos são devidamente considerados.

2.6. A abordagem ontológica no contexto da fenomenologia crítica

O curso sobre filosofia da religião ministrado em 1962 reforça sobremaneira a posição

anterior de que a versão final do método inclui o elemento existencial em sua abordagem, tal

como proposto pela fenomenologia crítica. Nesse sentido, o caráter ontológico e existencialista

não substitui o elemento intuitivo-descritivo ou fenomenológico. A intuição-descritiva continua

um elemento necessário para alcançar a essência do fenômeno, enquanto que o aspecto

ontológico existencial e crítico aparece como um outro momento necessário na análise.

Portanto, o caminho que a fenomenologia crítica propõe trilhar passa por três abordagens

interligadas, a abordagem intuitiva ou fenomenológica, a abordagem existencial ou ontológica

e a abordagem crítica. As abordagens intuitiva e crítica, estão presentes no método desde sua

formulação original em 1920, enquanto que a abordagem existencial ou ontológica aparece

posteriormente com a proposta da fenomenologia crítica e do método intuitivo-crítico.

É possível perceber que para o teólogo, cada abordagem desempenha um papel

específico na análise do fenômeno religioso e não deve ser tomada isoladamente. Nesse sentido,

não há substituição de um pelo outro. A ontologia embora complemente a fenomenologia, não

a substitui, pois, “A ontologia não é uma tentativa especulativa e fantástica de estabelecer um

mundo por trás do mundo; ela é uma análise daquelas estruturas do ser com as quais nos

deparamos em todo encontro com a realidade” (TILLICH, 2011, p. 37). Abreu (2015, p. 105)

comenta que a ontologia permanece dessa forma um momento necessário atuando como uma

explicação da estrutura da experiência, como afirma Tillich (2011, p. 179), “a verdade de todos

os conceitos ontológicos é seu poder de expressar aquilo que torna possível a estrutura sujeito-

objeto. Eles constituem esta estrutura; não são, pois, controlados por ela”.

A revelação embora seja um a priori vivenciado na dimensão da consciência reflexiva,

ela envolve também uma dimensão existencial. O sujeito que expressa sua experiência

revelatória encontra-se na relação si-mundo, sujeito-objeto. O caráter existencial continua

fundamental no método de Tillich. Dessa forma, a experiência religiosa como direcionamento

da consciência se envolve também com a questão de atribuir sentido à existência. A ontologia

104

relaciona-se com a experiência e se faz presente toda vez que algo é experimentado. Isso não

significa que os conceitos ontológicos sejam conhecidos antes da experiência, mas que são

produtos desta. Nesse sentido, há uma estrutura que poderá ser reconhecida dentro do processo

da experiência, e que, portanto, poderá ser compreendida ontologicamente. É a partir da

descrição do ser dado na experiência que Tillich elabora sua ontologia.

A experiência religiosa envolve o caráter finito da realidade, Tillich (1962, aula 9),

comenta que após ter analisado o fenômeno do sagrado e a dimensão do incondicional em todas

as funções da mente, deve-se reconhecer também a estrutura do mundo encontrado. “É o

reconhecimento daquilo que está em nós, na realidade encontrada, ou seja, o reconhecimento

da condição denominada de caráter finito, limitado e contingente da realidade” (TILLICH,

1962, aula 9). A percepção do sentido incondicional dentro de uma experiência de viver atribui

ao objeto mediador do incondicional um valor existencial. A experiência religiosa reúne dessa

forma, concretude, desejo, subjetividade de pessoas em sua condição de ser humano no mundo.

É nesse sentido que as formas religiosas tomadas simbolicamente estão existencialmente

envolvidas com a pessoa e se apresentam como respostas para as questões que emergem da

finitude humana. De acordo com Tillich (1962, aula 9), a realidade tem o caráter de produzir a

questão religiosa, questão que é respondida na religião, caso a realidade existencial não tivesse

o caráter de produzir a questão “então nunca poderíamos aceitar a resposta, os símbolos seriam

absurdos para nós” (TILLICH, 1962, aula 9).

Os símbolos e mitos religiosos por terem seu material retirado da realidade revelam

também elementos dessa realidade, eles podem ser expressões de um estado da existência de

uma pessoa ou de toda uma cultura, dessa forma “A essência de seu significado mitológico está

refletida em seu significado ontológico” (TILLICH, 2004, p. 32). Ou seja, a vida como

experiência do ser para o ser humano se expressa na religião através da linguagem simbólica

que carrega consigo as marcas da situação existencial de quem os reconhece como símbolos

sagrados. De acordo com o teólogo, a ontologia analisa o ser humano em interdependência com

o mundo dele. “O método ontológico como indicado aqui não argumenta sobre a existência de

um ser, sobre o qual a religião faz declarações simbólicas, mas dá uma análise do mundo

105

encontrado em relação à sua finitude e descobre através dessa análise sua qualidade auto-

transcendente”212 (TILLICH, 1987b [1961], p. 417-418).

O caráter finito e existencial da realidade faz parte da experiência religiosa e por isso

deve ser considerado em toda análise do fenômeno. Nesse sentido, como afirma o autor:

Todo método tem inconscientemente estes três elementos, se tratar

completamente da realidade. Você não pode evitar nenhum desses elementos

do método em nenhum método. [...] Assim, podemos dizer: esses três

elementos, o elemento da realidade universal e sua finitude, o elemento do

fenômeno da religião que se mostra como realidade na história e na nossa

própria vida e, em terceiro lugar, a estrutura crítica da mente humana, onde

descobrimos a dimensão da ultimidade ou da transcendência. Isto é o que é

necessário para entender a religião213 (TILLICH, 1962, aula 9).

A análise do fenômeno religioso, portanto, como propõe o método do autor reúne a

abordagem intuitiva, ontológica e crítica. Estas três estão sintetizadas, como foi possível

observar, nos dois elementos da fenomenologia crítica de Tillich, a saber, o elemento intuitivo-

descritivo e existencial-crítico. Vale lembrar que para o teólogo, o elemento intuitivo-descritivo

é um correlato da fenomenologia, de modo que independentemente se o método é apresentado

como intuitivo ou fenomenológico, a referência continua sendo a fenomenologia pura de

Husserl e a intuição-descritiva das essências. Dessa forma, o método intuitivo-crítico de 1962

não rompe com o fenomenológico-crítico de 1951, de modo que pode-se dizer que a soma dos

elementos intuitivo-descritivo com o existencial-crítico constituem a versão final do método de

Tillich.

Considerações finais

Em seu texto “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, de 1922, o

teólogo comenta sobre a importância da união dos elementos crítico e intuitivo na abordagem

212 The ontological method, as indicated here, does not argue for the existence of a being, about which religion

makes symbolic statements, but it gives an analysis of the encountered world with respect to its finitude and finds

through this analysis its self-transcending quality.

213Every method has unconsciously these three elements if it deals fully with reality. You cannot avoid any of

these elements of the method in any method actually [...] So we can say: these three elements, the element of the

universal reality and its finitude, the element of the phenomenon of religion which shows itself to us as a reality

in history and in our own life, and third, the critical structure of the human mind, where we discuss, where we

discover the dimension of ultimacy or of transcendence. This is what is necessary in order to understand religion.

106

metodológica, e afirma ainda que “quando tal exigência for plenamente satisfeita, surgirá

também uma denominação adequada para este método”214 (TILLICH, 1973 [1922], p. 150).

Entretanto, o autor nunca fixou um nome para seu método. Ao longo dos anos, Tillich utilizou

quatro nomes diferentes para referir-se a seu método, estes são: crítico-intuitivo (1920),

metalógico (1923) fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-crítico (1962). Em todas as

quatros formulações apresentadas por ele a estrutura central do método permaneceu a mesma:

a união de um elemento intuitivo com um elemento crítico. A fenomenologia crítica e o método

intuitivo-crítico adquiriram um caráter existencial por conta das preocupações ontológicas que

passaram a acompanhar o autor no final da década de 1920. Dessa forma, pode-se dizer que

enquanto o método crítico-intuitivo e metalógico expressam o período revisionista de Tillich,

que vai do final da Primeira Guerra Mundial até os últimos anos de 1920, o método

fenomenológico-crítico e o intuitivo-crítico expressam o terceiro período, que vai do fim dos

anos de 1920 até a Teologia Sistemática. Entretanto, isso não significa que exista um

rompimento entre os dois primeiros métodos com os dois últimos. O epicentro continua sendo

a união dos elementos intuitivo e crítico. A diferença está, no entanto, na presença do elemento

existencial nos dois últimos.

Em relação ao método intuitivo-crítico, foi possível perceber que ele embora possua um

nome diferente daquele apresentado na Teologia Sistemática, não se difere fundamentalmente

dele. Nesse sentido, a fenomenologia crítica e o método intuitivo-crítico são correlatos por

conservarem a estrutura original do método, a saber, a união dos elementos intuitivo e crítico,

e acrescentarem a estes dois o elemento existencial. Tillich quando tratou da fenomenologia

crítica o fez em sua TS e dedicou pouco espaço para tratar do método. Pode-se dizer que essa

carência de explicação foi suprida no curso sobre filosofia da religião de 1962, em Harvard.

Neste curso, o autor dedica um espaço maior para discutir seu método. Nesse sentido, pode-se

dizer que o método que começa a ser desenvolvido em 1920 sob o nome de crítico-intuitivo

terá na fenomenologia crítica ou intuição-crítica sua formulação final. Como a intuição é um

correlato da fenomenologia, e tendo em conta que Tillich não determinou um nome específico

para seu método, esta pesquisa considera que a fenomenologia crítica descreve bem a proposta

de Tillich e por conta disso utilizará a partir de agora esta nomeação para se referir a este método

tillichiano.

214 When this demand has been fully realized, an adequate name for the method will also emerge.

107

Em relação a fenomenologia de Husserl, Tillich reconheceu a importância do método

principalmente pelo seu rigor em descrever as essências e suspender os juízos em torno daquilo

que se quer analisar. Entretanto, ele não deixou de dialogar criticamente e propor a partir dessas

críticas uma nova forma de pensar a fenomenologia. É a partir desse diálogo crítico com a

fenomenologia filosófica que o teólogo desenvolve sua fenomenologia crítica.

Este método foi aplicado pelo autor tanto no contexto da filosofia da religião quanto no

contexto teológico. A questão sobre a verdade da religião na filosofia da religião é discutida

por ele por intermédio das considerações de sua essência e das formas que possibilitam a

apreensão dessa essência. Para Tillich, a caracterização intuitiva e crítica do conceito de religião

implica em perceber o incondicional como aquilo que é essencial na religião. No âmbito

teológico, embora se trate de um círculo específico, o sentido incondicional permanece como

um pressuposto, de modo que ao lidar com as formas de sentido, a abordagem precisa

considerar ambos os polos, e para isso a fenomenologia crítica é, como bem demonstrou Tillich,

um caminho adequado. O aspecto existencial é aqui de grande importância, pois as formas que

possibilitam a experiência revelatória, ou a percepção intencional do sentido incondicional,

adquirem o caráter de símbolo religioso e passam a estar existencialmente envolvidas com a

pessoa ou grupo que reconhece nesses símbolos o seu próprio poder de ser. Sendo assim, com

a abordagem fenomenológica seria possível perceber a ideia da religião como a experiência do

sagrado, com a ontologia é possível perceber a correlação entre o finito e infinito e por

intermédio da abordagem crítica é possível compreender a função religiosa como a dimensão

do último em todas as funções do espírito. Estas três abordagens não podem ser tomadas

isoladamente e por conta disso Tillich as reúne em único método.

A relação entre a experiência religiosa e as formas que possibilitam essa experiência

aponta para a formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, algo que o teólogo

trabalha mais exaustivamente em sua Teologia da Cultura. Este é um aspecto de continuidade

entre as duas fases do pensamento de Tillich e por conta disso desempenha um papel

fundamental na compreensão do seu pensamento. Entretanto, esta formulação dos modos como

religião e cultura se relacionam demonstra em grande medida o caminho pelo qual a

fenomenologia crítica pode ser aplicada para a análise das experiências religiosas. Dessa forma,

ao identificar as possibilidades de aplicação do método fenomenológico-crítico de Tillich será

possível levá-lo para além de seu pensamento, isto é, pensar nas possibilidades de um uso

instrumental de sua metodologia. Esta é, portanto, a proposta do próximo capítulo.

108

CAPÍTULO 3

IMPLICAÇÕES E APLICABILIDADE DA FENOMENOLOGIA DE TILLICH

O objetivo deste capítulo é analisar quais foram as implicações da fenomenologia para

o pensamento de Paul Tillich e de que maneira a fenomenologia crítica deste teólogo pode ser

aplicada para análise do fenômeno religioso. A máxima tillichiana “Religião é substância da

cultura e cultura é a forma da religião” é frequentemente citada para demarcar o ponto central

da teologia da cultura de Tillich. Esta frase está entre as mais conhecidas do teólogo e como

afirma Rendtorff, “trata-se de uma melodia de reconhecimento que, onde ressoa, permite-se

reconhecer inequivocamente: aqui fala Paul Tillich”215 (RENDTORFF, 1989, p. 335). De

acordo com Neugebauer, a teologia da cultura baseia-se em conceitos específicos cujos

fundamentos encontram-se em seu período inicial marcado pela filosofia de Schelling, mas que

irá consolidar-se somente durante seu período intermediário por conta de seu contato com a

fenomenologia de Husserl. É através de “[...] suas leituras de Husserl durante a Primeira Guerra

Mundial, que Tillich foi capaz de estabelecer o fundamento filosófico espiritual, no qual se

constrói seu escrito programático teológico-cultural ‘Sobre a ideia de uma teologia da cultura’

(Über die Idee einer Theologie der Kultur) (1919)216” (NEUGEBAUER, 2011, p. 38). Dessa

forma, a fenomenologia de Husserl, ou mais especificamente sua teoria da intencionalidade da

consciência, desempenha um papel importante na formulação dos modos como religião e

cultura se relacionam no pensamento de Tillich, e por consequência, em sua proposta de uma

teologia da cultura.

É neste contexto também que a fenomenologia crítica pode ser melhor compreendida.

Para o autor, a dinâmica interna dos sentidos se dá necessariamente na relação entre forma e

substância. Esta polarização deve ser mantida em toda análise do fenômeno religioso. Nesse

sentido, na medida em que o elemento intuitivo-descritivo do método se propõe a preservar o

aspecto substancial e subjetivo da experiência religiosa, o elemento existencial-crítico preserva

as formas através das quais a experiência foi possível. Com isso Tillich evita um reducionismo

metodológico de abrir mão dos aspectos profundos da experiência como também valoriza os

elementos concretos e existenciais, evitando a valorização de um polo em detrimento de outro.

215Erkennungsmelodie“ handelt, „die, wo sie ertönt, unverwechselbar zu erkennen gibt: Hier spricht Paul Tillich.

216[...] Husserllektüre während des Ersten Weltkriegs angeregt wurde, hat Tillich es vermocht, das

geistphilosophische Fundament zu legen, auf dem seine kulturtheologische Programmschrift Über die Idee einer

Theologie der Kultur (1919) aufbaut.

109

Entende-se, portanto, que a possibilidade de aplicar a fenomenologia de Tillich de forma prática

passa necessariamente pela consideração simultânea da forma e substância.

Dessa forma, para alcançar os objetivos propostos serão dados cinco passos importantes.

O primeiro será analisar as implicações da fenomenologia na formulação dos modos como

religião e cultura se relacionam. A aplicação que o autor faz da teoria da intencionalidade da

consciência na fundamentação de seu conceito de religião, tal como visto no primeiro capítulo,

irá repercutir na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam. Religião e

cultura, ou os correlatos forma e substância, estão essencialmente unidos numa relação de

interdependência, e nesse sentido a determinação do caráter religioso ou cultural de uma forma

depende do direcionamento da consciência que pode estar dirigido para à substância ou para a

forma.

No segundo passo o objetivo será analisar de que maneira a polarização forma e

substância está em sintonia com os elementos intuitivo-descritivo e existencial-crítico do

método tillichiano. Entende-se que para dar conta do caráter substancial da experiência religiosa

o autor emprega o elemento intuitivo-descritivo, e para dar conta do aspecto concreto e

existencial, o autor emprega o elemento existencial-crítico.

No terceiro passo o objetivo será analisar as possibilidades de aplicação da

fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso. Tendo em conta que toda

experiência religiosa é composta pela união de um elemento substancial e outro formal, a

análise do fenômeno religioso passa necessariamente por este caminho, e nesse sentido a

fenomenologia crítica construída a partir do elemento intuitivo-descritivo com o elemento

existencial-crítico se propõe a dar conta de ambos os polos dessa relação.

O quarto passo do capítulo pretende analisar de que maneira a teoria tillichiana do

símbolo pode ser compreendida em sintonia com sua fenomenologia crítica. Em perspectiva

fenomenológica, os fenômenos religiosos são considerados como modos simbólicos de

representação e, nesse sentido, os símbolos representam uma porta de acesso à experiência

religiosa e o principal recurso para a fenomenologia crítica desenvolver sua análise.

O quinto e último passo do capítulo se propõe a analisar em que medida a fenomenologia

crítica pode ser compreendida no horizonte de uma abordagem compreensiva da religião.

Tillich pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que

valorize tanto o caráter irredutível do sagrado como as formas concretas de sua expressão. O

110

método leva em consideração a estrutura complexa das formas simbólicas de representação e

procura descrevê-las sem esvaziá-las de seu valor profundo na experiência religiosa.

3.1. Implicações da fenomenologia na elaboração de uma Teologia da Cultura

3.1.1. Relação entre Religião e Cultura

Tillich afirma que o problema da relação entre religião e cultura sempre esteve no centro

de suas preocupações (2009, p. 33). O teólogo comenta que diante da presença do incondicional

não existe nenhuma esfera privilegiada, isto é, não existem esferas sagradas em si mesmas como

também não há esferas profanas em si mesmas. “A cultura é religiosa ali onde a existência

humana está submetida a questões últimas, deste modo, transcendida; e ali onde um sentido

incondicionado se torna visível em obras que possuem apenas um sentido condicionado em si

mesmas”217 (TILLICH, 1967 [1936], p. 68-69). Como exemplificação o autor comenta que se

uma pessoa, profundamente comovida pelos mosaicos de Ravena, os murais da cúpula da

Capela Sistina e os retratos de Rembrandt da última época, tivesse que responder se sua

experiência foi cultural ou religiosa, possivelmente veria essa questão difícil de responder.

Talvez seja correto dizer que foi cultural em sua forma e religiosa em sua substância (TILLICH,

1967 [1936], p. 68). A questão que se levanta neste momento é, como se dá essa relação na

experiência humana?

Vale lembrar que Tillich durante seu período revisionista reformula seu conceito de

religião a luz de uma teoria do sentido e nos termos de um direcionamento intencional da

consciência. Dessa forma, tal como discutido no primeiro capítulo, religião pode ser

compreendida como um direcionamento da intencionalidade do ato da consciência ao sentido

incondicional presente em qualquer encontro com a realidade, seja num contexto estético,

cognitivo, social, político, ou inclusive religioso. Não se trata, portanto, de uma esfera ao lado

de outras, mas de um sentido profundo e inesgotável presente em todas estas esferas. Nas

precisas palavras do teólogo, a religião “não é uma esfera de sentido ao lado de outras, mas uma

217 Culture is religious wherever human existence is subjected to ultimate questions and thus transcended; and

wherever unconditioned meaning becomes visible in works that have only conditioned meaning in themselves.

111

atitude em todas as esferas: a direção imediata ao Incondicional”218 (TILLICH, 1989 [1923], p.

209).

Da mesma forma, Tillich entende a cultura como o direcionamento para as formas

condicionadas e sua inter-relação do sentido. De acordo com o teólogo “Definimos a cultura

como a autocriatividade da vida sob a dimensão do espírito e a dividimos em theoria, em que

a realidade é apreendida, e práxis, em que a realidade é configurada” (TILLICH, 2011, p. 830).

Higuet (2008, p. 135) comenta que na dimensão da cultura é possível distinguir dois níveis de

sentido. Por um lado, há um nível preliminar, que se refere ao sentido direto e conscientemente

visado em que a cultura é de fato uma direção do espírito voltada para as formas condicionadas.

Nesse sentido a cultura é uma atividade simbólica do espírito humano que procura dar sentido

ao real com ajuda de formas lógicas, isto é, um esforço para dar uma forma racional a um

conteúdo determinado. Por outro lado, há um nível de sentido mais profundo, um Sentido do

Sentido, no qual se fundamenta o sentido preliminar, imanente e formal de toda cultura. “Esse

sentido último não pode ser apreendido por uma análise puramente objetiva e científica: ele só

é acessível a uma ‘percepção ou intuição imaginativa’” (HIGUET, 2008, p. 136).

Toda forma cultural, possui, portanto, uma dimensão religiosa, assim como a religião

por sua vez torna-se possível somente através destas formas. A religião se liga à cultura numa

relação de co-dependência. Para o autor, a religião possui a peculiaridade de não ser atribuível

a uma única função psíquica. Ela não se limita a alguma esfera específica, não é somente uma

função especial do espírito humano, mas ela se atualiza na diversidade das formas culturais, em

outras palavras, a religião torna-se possível somente por meio das formas posta pelo espírito

humano em sua criatividade no mundo da vida. Nesse sentido, a cultura é o meio através do

qual a religião pode ser expressa. De acordo com Tillich “A unidade da religião e da cultura

como unidade da substância de sentido incondicionada e da forma de sentido condicionada é a

relação adequada entre ambas”219 (TILLICH, 1973 [1925], p. 74).

O princípio religioso existe apenas em relação com funções culturais, de acordo com

Tillich, (1973 [1919], p. 161), a função religiosa não da forma a um princípio na vida do espírito

ao lado de outros princípios; a natureza absoluta de toda consciência religiosa desmoronaria as

218Keine Sinnsphäre neben den anderen ist, sondern eine Haltung in allen Sphären: Die unmittelbare Richtung auf

das Unbedingte.

219 The unity of religion and culture as a unity of unconditioned meaning-import and of conditioned meaning-form

is the authentic relation of the to.

112

barreiras deste tipo. Mas o princípio religioso se atualiza em todas as esferas da vida espiritual

ou cultural. Diante de toda a realidade existente se torna evidente o sentido de uma realidade

incondicional. Assim como declara Tillich:

A religião é a orientação em direção ao Incondicional. Através das realidades

existentes, através dos valores, através da vida pessoal, se torna evidente o

sentido da realidade incondicional; diante da qual cada coisa particular e a

totalidade dos particulares, todo o valor e todo sistema de valores, toda

personalidade e toda comunidade são abalados no mais profundo de seu auto-

suficiente ser e valor. Não se trata de uma nova realidade que estaria acima

das outras coisas, ou junto delas, se fosse assim, seria apenas mais alguma

coisa, ainda que de uma ordem superior, que sucumbiria ao Não absoluto do

Incondicional. Ao contrário, é precisamente através das coisas dessa realidade

que são lançadas sobre que é, ao mesmo tempo, o Sim e o Não de todas as

coisas. Não é um ser, nem a substância ou a totalidade de todos os seres; é,

para usar uma formula mística, aquilo que está acima de todo ser; é, ao mesmo

tempo, o Nada absoluto e o Algo absoluto220 (TILLICH, 1973 [1919], p. 162).

Este incondicional não diz respeito a uma realidade da existência, para Tillich (1973

[1919], p. 163), trata-se de uma realidade do sentido, e este é certamente o sentido último mais

profundo: aquela realidade que abala os fundamentos de todas as coisas, derrubando-as e torna

a construí-la novamente. Todo ato cultural “repousa” na base de sentido, isto é, “todo ato

cultural contém o sentido incondicional; ele descansa na base de sentido, na medida em que é

um ato de sentido é substancialmente religioso”221 (TILLICH, 1973 [1925], p. 59). Neugebauer

(2011, p. 59) comenta que a significatividade da cultura, fica assim, fundamentada a priori no

sentido incondicional. Tillich aceita para cada singularidade a pressuposição necessária de um

sentido incondicional de atos de sentido que se consumam em ações espirituais concretas, dessa

forma, “O conceito de Tillich de uma consciência religiosa substancial se constrói nesta

fundamentação de dependência”222 (NEUGEBAUER, 2011, p. 59). Ainda que seja possível

apontar as distinções entre religião e cultura, ambas se relacionam na co-participação na

220 Religion is directedness toward the Unconditional. Through existing realities, through values, through personal

life, the meaning of unconditional reality becomes evident; before which every particular thing and the totality of

all particulars—before which every value and the system of values—before which personality and community are

shattered in their own self-sufficient being and value. This is not a new reality, alongside or above other things:

that would only be a thing of a higher order which would again fall under the No. On the contrary, it is precisely

through things that that reality is thrust upon us which is at one and the same time the No and the Yes to every

thing. It is not a being, nor is it the substance or totality of beings; it is—to use a mystical formula—that which is

above all beings which at the same time is the absolute Nothing and the absolute Something.

221 Every cultural act contains the unconditional meaning; it is based upon the ground of meaning; insofar as it is

an act meaning it is substantially religious

222Auf diesem Begründungszusammenhang baut Tillichs Begriff eines substantiell religiösen Bewusstseins auf.

113

profundidade do espírito e este é o campo em que cultura e religião se encontram em um comum

direcionamento à unidade de sentido (TILLICH, 1973 [1925], p. 60).

Por conseguinte, segue-se que religião e cultura encontram-se em estrita relação e como

afirma o teólogo, “A religião é a orientação intencional ao Incondicional, e a cultura é a

orientação intencional às formas condicionadas e sua unidade. Estas são as definições mais

gerais e formais que se pode chegar em filosofia da religião e em filosofia da cultura”223

(TILLICH, 1973 [1925], p. 59, grifo do autor). Entende-se, portanto, que as formas

condicionadas que compõem a cultura estão necessariamente interligadas ao fundamento do

sentido, de modo que, mesmo sendo possível toma-los didaticamente separados, religião e

cultura são indissociáveis e permanecem essencialmente unidos.

3.1.2. Relação entre forma e substância

De acordo com Danz (2009, p. 181), Tillich assimila estes níveis de conhecimento

reflexivo, religião e cultura, nas categorias semânticas de forma e substância, que são

fundamentalmente constitutivos para sua explicação de influência neokantiana da filosofia do

espírito em 1920. A categoria de substância, portanto foi posta para representar o conhecimento

do espírito na reflexividade de sua atividade cultural, e a categoria de forma para as atividades

autônomas do espírito relacionadas ao objeto e à ação, isto é, as funções transcendentais do

espírito. Por conta dessa relação interna de forma e substância, ambas as categorias coexistem

tanto no religioso quanto no cultural. Em sua conferencia “Sobre a ideia de uma teologia da

cultura” realizada em 1919 para a Sociedade Kantiana de Berlim, Tillich chama atenção para

importância de esclarecer os conceitos de forma e substância, de acordo com o autor:

O conteúdo substancial é diferente do conteúdo objetivo. Por meio do termo

“conteúdo objetivo” entendemos algo objetivo em sua simples existência, que

através da forma será elevada até a esfera espiritual-cultural. E com “conteúdo

substancial”, devemos entender o sentido, a substancialidade espiritual, que é

a única em outorgar o sentido à forma. Podemos, portanto, dizer: A substância

223Religion is directedness toward the Unconditional, and culture is directedness toward the conditioned forms

and their unity. These are the most general and formal definitions arrived at in philosophy of religion and

philosophy of culture.

114

é apreendida por meio da forma e se expressa num objeto224 (TILLICH, 1973

[1919], p. 165, grifo do autor).

A religião como experiência do incondicionado está para a substância assim como a

cultura está para a forma. De acordo com Higuet “o Gehalt é a substância que funda tudo, e é

também o conteúdo que preenche toda forma. [...] A forma prende-se à estrutura racional da

realidade e faz com que a obra cultural seja o que é concretamente: um poema, uma pintura,

um regime político, um sistema filosófico etc.” (HIGUET, 2008, p. 137). A religião é nestes

termos o conteúdo vivo da cultura, ao passo que a cultura é o meio através do qual a religião se

expressa.

A aplicação que Tillich faz da teoria da intencionalidade da consciência na

fundamentação de seu conceito de religião sugere que a consciência ao perceber o sentido

incondicional o faz sempre através de uma forma. Isso implica no relacionamento

imprescindível entre religião e cultura ou no correlato forma e substância, pois o sentido

incondicional percebido na forma, coloca-se para esta forma como sua substância, de tal modo,

que uma não é possível sem a outra. “A relação entre o sentido e a forma deve interpretar-se

como similar a uma linha, em que um dos extremos representa a pura forma e o outro o puro

sentido. Entretanto, ao largo da linha forma e sentido estão sempre misturados, ainda que em

distintas proporções”225 (TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O sentido incondicional como

fundamento da realidade permanece nas formas de sentido como sua substância, “porque é

precisamente na substância que aparece a realidade religiosa, com seu Sim e seu Não frente a

todas as coisas”226 (TILLICH, 1973 [1919], p. 166).

Abreu comenta que esta relação permanente entre religião e cultura pode ser considerada

uma necessidade da filosofia da religião de Tillich, “Esta configuração se torna necessária em

função de seu desenvolvimento nos termos de uma teoria da consciência, ou, mais

precisamente, de uma teoria da consciência intencional ou noética” (ABREU, 2015, p. 94). De

acordo com o teólogo, “A religião é a orientação do espírito ao sentido incondicionado. A

cultura é a orientação do espírito às formas condicionadas. Ambos se encontram em sua

224Substance or import is something different from con-tent. By content we mean something objective in its simple

existence, which by form is raised up to the intellectual-cultural sphere. By substance or import, however, we

understand the meaning, the spiritual substantiality, which alone gives form its significance. We can therefore say:

Substance or import is grasped by means of a form and given expression in a content.

225 The relation of import to form must be taken as resembling a line, one pole of which represents pure form and

the other pole pure import. Along the line itself, however, the two are always in unity.

226for it is precisely in the substance that the religious reality appears with its Yes and No to all things.

115

orientação em direção a unidade completa das formas de sentido”227 (TILLICH, 1973 [1925],

p. 72). Comentando sobre o assunto, Chun afirma que “A consciência da forma, conteúdo e

substância indica uma direção dupla da consciência religiosa, aquela em direção às formas

condicionadas de sentido e sua inter-relação, e aquela em direção ao incondicional sentido da

realidade, que é a base da substância”228 (CHUN, 2008, p. 165).

Todo ato cultural, portanto, possui uma dimensão religiosa quando visto à luz de sua

substância, assim como, todo ato religioso é também cultural quando visto a partir de sua forma.

A relação entre religião e cultura é, portanto, permanente, pois na medida em que a consciência

se dirige para as formas se está diante da cultura, e na medida em que a consciência se volta

para o sentido incondicional se está diante da religião. Neugebauer (2011, p. 60) comenta que

as características da noção de experiência incondicional que Tillich elabora diante do pano de

fundo da fenomenologia aplica-se também para a noção de consciência religiosa substancial,

isto é, a consciência que se volta para a substância através de uma forma, ou a consciência que

se volta apenas para a forma, onde a substância está presente, mas não diretamente visada.

Em “A superação do conceito de religião na filosofia da religião”, Tillich (1973 [1922],

138) afirma que em todo encontro com a realidade, é possível que o “eu” perceba sua

autocerteza de tal maneira que a relação incondicional com a realidade passe para o primeiro

plano, este é o modo religioso a priori de auto-apreensão. Por outro lado, existe a possibilidade

de que o “eu” experimente sua autocerteza de tal modo que sua relação com seu próprio ser seja

o que ocupe o primeiro plano. Este é o modo não religioso a priori de auto-apreensão. No

primeiro caso, o modo religioso a priori, o “eu” penetra a forma de sua consciência e alcança

o fundamento da realidade sobre o qual está fundamentada. No segundo caso, o modo não

religioso a priori, este fundamento continua presente, já que sem ele não haveria autocerteza

nenhuma, mas o “eu” não chega a tocá-lo, o “eu” permanece separado, contentando-se com a

forma da consciência.

Esta segunda posição pode ser qualificada como não religiosa, mas apenas no

que se refere a sua intenção e não em relação a seus resultados. Não existe

consciência não religiosa em substância, embora sim possa existir em sua

intenção. Todo ato de auto-apreensão contém, como seu fundamento na

realidade, a relação com o Incondicional; mas esta relação não sempre se

227 Religion is directedness of the spirit toward the unconditioned meaning. Culture is directedness of the spirit

toward conditioned forms. Both, however, meet in orientation to the completed unity of the forms of meaning.

228 Awareness of form, content, and import bespeaks a double-directedness of the religious consciousness, that

toward the conditioned forms of meanings and their interrelation, and that, toward the unconditional meaning-

reality, which is the Ground of the import.

116

manifesta. É necessário, pois, diferenciar os dois estados de consciência229

(TILLICH, 1973 [1922], p. 139).

Tillich descreve dois estados da intencionalidade da consciência, uma dirigida à forma

e a outra à substância. “A mesma ideia, portanto, pode ter um sentido imediato e um sentido

simbólico, um sentido religioso e um sentido cultural; pode ser Deus e o mundo”230 (TILLICH,

1973 [1925], p. 80). O conceito de “Espírito absoluto” de Hegel por exemplo, é de maneira

imediata a síntese das formas do mundo, mas também pode ter o sentido simbólico de Deus.

Nesse sentido, os dois estados da consciência, um dirigido à substância e outro à forma,

expressa em grande medida as implicações da teoria da intencionalidade da consciência de

Husserl na formulação dos modos como religião e cultura se relacionam, de acordo com o

teólogo “É de decisiva importância para a filosofia da religião e para a teologia captar esta

diferença em toda sua agudez”231 (TILLICH, 1973 [1925], p. 80).

3.1.3. Dois estados da intencionalidade da consciência e a distinção entre a

potência religiosa e o ato religioso

Tendo isso em conta, Danz (2009, p. 180) comenta que para Tillich, o espírito em sua

relação paradoxal consigo mesmo é a base da religião e cultura, nesse sentido, a religião como

intuição contingente da estrutura reflexiva do espírito em sua autorrelação só pode acontecer

através das formas concretas postuladas pelo espírito. “Assim, para Tillich, religião no que diz

respeito tanto ao conhecimento e à ação, se refere a um conhecimento reflexivo do espírito em

suas atividades teóricas e práticas, com o resultado de que estas funções podem ser consideradas

culturais”232 (DANZ, 2009, p. 180-181).

229 One can properly call this second position unreligious, but only with regard to its intention and not with regard

to its outcome. There is no consciousness unreligious in substance, though it can certainly be so in intention. Every

act of self-apprehension contains, as its foundation within reality, the relation to the Unconditional, but this relation

is not in every case intended. The two states of consciousness are differentiated accordingly.

230 The same idea can therefore have an immediate and a symbolic, a religious and a cultural, significance; it can

be God and the world.

231 It is now of decisive importance for philosophy of religion and theology, to grasp this difference in all its

sharpness.

232Thus, for Tillich, religion, with respect both to knowledge and to action, relates to a reflexive knowledge of

spirit in its theoretical and practical activities, with the result that these functions can themselves be considered

culture.

117

De acordo com Neugebauer (2011, p. 60), essa descrição de Tillich especifica o caráter

da substância da consciência religiosa como a substância para a relação com o incondicional,

isto é, a intencionalidade da consciência voltada para a substância da forma é

caracteristicamente religiosa, nesse sentido, “A consciência substancialmente religiosa é

especificada aqui como classe própria de ato da consciência intencional. Com a essência desta

classe de ato é visada sua constituição substancial”233 (NEUGEBAUER, 2011, p. 60).

Logo, pode-se dizer que o caráter especifico da intencionalidade da consciência

substancial é proposto por Tillich para descrever os modos de relacionamento entre forma e

substância, como polos que mesmo sendo inseparáveis, podem adquirir configurações

diferentes na consciência. Comentando sobre o assunto Abreu (2015, p. 97) afirma que a

determinação do caráter religioso ou cultural de um determinado ato depende do

direcionamento da consciência subjetiva em sua atividade no mundo da vida. A distinção entre

ambas está relacionada à atitude de intencionalidade da consciência que embora discerníveis,

cultura e religião constituem dimensões codependentes e não podem jamais serem

compreendidas separadamente. Nesse sentido, do ponto de vista de sua intencionalidade, ou

sob o aspecto da consciência subjetiva, a cultura não é religiosa, mas quando considerada a

partir de sua dimensão de profundidade, a luz de sua substância, todo ato cultural possui um

elemento religioso, uma vez que sendo um ato de sentido particular, ele se encontra

fundamentado no sentido incondicional. Da mesma forma, todo ato religioso enquanto

atividade do espírito é uma ação cultural, ainda que do ponto de vista da intencionalidade da

consciência subjetiva ele permaneça distinto da cultura.

De acordo com Tillich, todo ato cultural contém um sentido incondicional, encontra-se

baseado no fundamento de sentido e por conta disso é substancialmente religioso. Entretanto,

mesmo sendo substancialmente religioso, a cultura não é necessariamente religiosa se

considerada a partir de sua intencionalidade que pode estar dirigida a um ato cultural. Por outro

lado, todo ato religioso só pode dirigir-se em direção ao incondicional através da unidade das

formas de sentido. Considerado a partir de sua forma, todo ato religioso é, portanto, cultural;

embora permaneça distinto por dirigir-se ao sentido incondicional. A forma ainda que participe

da unidade de sentido, não pode ser considerada por si só a totalidade de sentido, sendo assim,

Tillich afirma que:

233Das substantiell religiöse Bewusstsein wird hier als eigene Aktklasse des intentionalen Bewusstseins

spezifiziert. Mit dem Wesen dieser Aktklasse ist deren substantielle Verfasstheit gemeint

118

No ato cultural, por tanto, o religioso é substancial, no ato religioso, o cultural

é formal. Cultura é a soma total de todos os atos espirituais dirigidos à

plenitude das formas particulares de sentido e de sua unidade. Religião é a

soma total de todos os atos espirituais dirigidos à apreensão da substância de

sentido incondicionado através da realização da unidade de sentido234

(TILLICH, 1973 [1925], p. 60).

Religião e cultura estão relacionadas na dimensão de incondicionalidade do espírito.

Novamente nas palavras de Abreu:

Torna-se evidente que tanto a unidade imprescindível, quanto a distinção entre

religião e cultura, dizem respeito à atitude de intencionalidade da

consciência: a religião é o direcionamento da consciência intencional ou

noética ao sentido incondicionado – ou, para usarmos um termo correlato, à

substância do sentido (Sinngehalt) -, ao passo que a cultura é o direcionamento

noético às formas condicionadas e sua unidade (ABREU, 2015, p. 97-98).

É neste contexto que se torna possível compreender com maior clareza a máxima

tillichiana de que religião é substância da cultura e cultura é a forma da religião como bem

descreveu o autor: “A religião, considerada preocupação suprema, é a substância que dá sentido

à cultura, e a cultura, por sua vez, é a totalidade das formas que expressam as preocupações

básicas da religião. Em resumo: religião é a substância da cultura e a cultura é a forma da

religião” (TILLICH, 2009, p. 83). A cultura, portanto, sempre manifesta uma dimensão

religiosa, e de acordo com o autor estas expressões são aspectos da auto-criatividade do espírito

humano.

O condicionado é o meio no qual e através do qual se capta o Incondicional.

[...] Mas posto que toda afirmação enquanto tal se expressa no modo

subjetivo-objetivo, e portanto, nas formas do condicionado, as afirmações

com respeito ao Incondicional devem evidentemente utilizar estas formas.

Mas deve fazê-lo apenas de tal maneira que se faça evidente até que ponto são

inadequadas, ou seja, devem ter a forma de um paradoxo sistemático235

(TILLICH, 1973 [1922], p. 137-138).

O diferencial cultural, em que se assenta todo conhecimento, é a fonte de onde brotam

as inúmeras formas religiosas. Estas formas configuram o conhecimento religioso em suas

várias expressões, são materiais retirados dos contextos marcados pelas circunstâncias

234 In the cultural act, therefore, the religious is substantial; in the religious act the cultural is formal. Culture is the

sum total of all spiritual acts directed toward the fulfillment of particular forms of meaning and their unity. Religion

is the sum total of all spiritual acts directed toward grasping the unconditioned import of meaning through the

fulfillment of the unity of meaning.

235The conditioned is the medium in and through which the Unconditional is apprehended. [...] But since every

statement as such is expressed in the subject-object mode, and hence in the forms of the conditioned, statements

about the Unconditional must, to be sure, utilize these forms. But this must occur in such a way that their

inadequacy becomes evident, i.e., they must bear form of systematic paradox.

119

históricas, psicológicas, culturais e outras situações que atuam como meio através do qual a

experiência religiosa adquire sua expressão concreta. Como afirma o teólogo “Contanto que

um ato religioso se direciona para um conteúdo representativo e através dele, pelo último

visado, é o conhecimento religioso”236 (TILLICH, 1999b [1927/1928], p. 136). O incondicional

é para onde se dirige a consciência, mas o incondicional não pode ser diretamente visado, de

modo que o conteúdo substitui o incondicional, mas sem com isso ocupar o seu lugar, mas

como aquilo através do qual o incondicional pode ser visado.

A intencionalidade da religião se dirige à essência, é a fonte incondicionada e

o abismo do sentido, e as formas culturais servem como símbolos dessa

essência. A intencionalidade da cultura se dirige à forma, que representa o

sentido condicionado. A essência, que representa o sentido incondicionado,

apenas se vislumbra de maneira indireta por meio da forma autônoma

proporcionada pela cultura que atua como meio237 (TILLICH, 1967 [1936], p.

70).

Esta forma de caráter paradoxal é o símbolo religioso presente na diversidade das

expressões religiosas, nisto constitui-se o conhecimento religioso para o autor. Danz (2009, p.

181) comenta que a religião, nesse sentido, é o local onde o espírito se torna transparente em

sua atividade cultural e na concretude de suas ações. “É aqui que a teoria dos símbolos de Tillich

tem sua base. Esta teoria não está preocupada com a representação de algum tipo de ser

transcendente substancial, mas sim com o fato de que o espírito pode criar símbolos da sua

própria autotransparência em sua atividade”238 (DANZ, 2009, p. 181). De acordo com

Neugebauer “Os conteúdos que substituem o Incondicional, tomam o status de símbolo

religioso. Estes símbolos estão relacionados com o ato religioso. Seu caráter intencional,

contudo, não aparece nessa referência, mas é dirigido através do símbolo para o incondicionado

ou o último”239 (NEUGEBAUER, 2011, p. 58).

236Sofern ein religiöser Akt sich auf einen vertretenden Inhalt und durch ihn hindurch auf das Letzt-Gemeinte

richtet, ist er religiöse Erkenntnis.

237 Religion’s intentionality is toward substance, which is the unconditioned source and abyss of meaning, and

cultural forms serve as symbols of that substance. Culture’s intentionality is toward the form, representing

conditioned meaning. The substance, representing unconditioned meaning, can be glimpsed only indirectly

through the medium of the autonomous form granted by culture.

238It is here that Tillich’s theory of symbols has its basis. This theory is not concerned with the representation of

some sort of substantial transcendent being, but rather with the fact that spirit can create symbols of its own self-

transparency in its activity.

239Die Inhalte, die das Unbedingte vertreten, nehmen den Status religiöser Symbole ein. Auf diese Symbole ist der

religiöse Akt bezogen. Sein intentionaler Charakter geht jedoch nicht in dieser Bezugnahme auf, sondern richtet

sich durch die Symbole hindurch auf das Unbedingte bzw. Letztgemeinte.

120

O incondicional, portanto, não pode ser um objeto, mas pode ser intuído e significado

através do objeto simbólico. Dessa forma como afirma o teólogo, “A fé é a orientação em

direção ao incondicional através dos símbolos extraídos da ordem condicionada. Todo ato de

fé, portanto, possui um duplo significado. Se dirige de maneira imediata ao objeto sagrado. Mas

não significa, porém, este objeto, mas o Incondicional, que expressa de maneira simbólica”240

(TILLICH, 1973 [1925], p. 76-77). É na relação dinâmica entre o imediatamente existente e o

espírito que atualiza o sentido no existente, bem como a unidade perfeita entre ambos que a

configuração simbólica se torna possível. Somente em sua unidade é que se expressa de maneira

completa a relação entre o Incondicional e o condicionado. Somente assim se consegue um

autêntico simbolismo (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).

A relação entre o princípio religioso e a função cultural bem como a expressão simbólica

da experiência com o incondicional tornam-se dessa forma fundamentais, na medida em que a

partir dessa relação surge, como afirmou o teólogo, uma esfera especificamente religiosa-

cultural, isto é, “uma percepção religiosa – o mito e o dogma; uma esfera de estética religiosa

– o cultus; uma formação religiosa da pessoa – a santificação; uma forma religiosa de sociedade

– a Igreja, com sua peculiar lei canônica e sua ética comunal”241 (TILLICH, 1973 [1919], p.

161, grifo do autor). O que se tem aqui é a religião como ato, isto é, uma expressão cultural de

caráter simbólica e uma esfera cultural entre outras. “A religião como autotranscendência da

vida precisa das religiões e, concomitantemente, precisa negá-las” (TILLICH, 2011, p. 555).

Nesse sentido, Tillich enfatiza que a potência religiosa, enquanto uma certa qualidade

da consciência, não deve ser confundida com a ação religiosa, isto é, uma ação teórica ou prática

de caráter independente. “Enquanto religião, cada religião é relativa, pois cada religião

objetifica o Incondicional. Enquanto revelação, entretanto, cada religião pode ser absoluta, pois

revelação é a irrupção do Incondicional na sua incondicionalidade”242 (TILLICH, 1973 [1922],

p. 146). Tillich está lidando aqui com dois conceitos de religião. Há uma ideia de religião no

sentido mais estrito que se refere à religião como uma esfera particular da cultura composta por

símbolos, mitos, cultos, que está ao lado de outras esferas como a economia, política, arte, etc.

240Faith is orientation to the Unconditional through symbols drawn from the conditioned order. Every act of faith

therefore has a double meaning. It is directed immediately toward a holy object. It does not, however, intend this

object, but rather the Unconditional which is symbolically expressed in the object.

241A religious perception – myth or dogma; a sphere of religious aesthetics - the cultus; a religious molding of the

person – sanctification; a religious form of society – the church, with its special canon law and communal ethic.

242 As religion, every religion is relative, for every religion objectifies the Unconditional. As revelation, however,

every religion can be absolute, for revelation is the breakthrough of the Unconditional in its unconditionality.

121

No entanto, há também a religião no sentido mais amplo que se refere ao sentido último e mais

profundo, isto é, a religião enquanto um direcionamento da consciência ao sentido

incondicional. “De um lado, a religião é um fenômeno cultural, uma função do espírito entre

outras. Do outro lado, a essência mesma da religião encontra-se além de todas as formas

fenomenais, além de todas as realizações e expressões concretas” (HIGUET, 2008, p. 137).

A experiência religiosa se expressa, portanto através das formas culturais que podem

adquirir um caráter simbólico e configurar desta forma uma realidade religiosa cultural ao lado

de outras. O símbolo religioso encontra nesta dinâmica a sua origem e adquire o caráter

paradoxal de apontar para o incondicional negando e afirmando sua forma, como bem afirmou

o autor, o ato religioso só pode se tornar atual em outros atos do espírito. Isso quer dizer que

ele tem de aportar a estes outros atos uma forma na qual a sua qualidade religiosa seja visível,

e esta forma é paradoxal, isto é, é simultaneamente afirmação e negação da forma (TILLICH,

1973 [1922], p. 144).

A tensão entre forma e substância é constante e deve ser mantida, para Tillich, a

dinâmica interna dos sentidos se dá nessa relação, por isso como afirma o teólogo “A forma e

substância não podem se separar. Não faz sentido postular uma sem a outra”243 (TILLICH, 1973

[1925], p. 59). A religião diz respeito a um direcionamento da intencionalidade da consciência

ao incondicional, mas na medida em que não há como referir-se ao incondicional sem objetivá-

lo, o autor propõe a noção de substância, que de acordo com Neugebauer, constitui um dos

conceitos mais reluzentes da teologia da cultura. Com isso, o direcionamento da consciência ao

sentido incondicional através das formas também diz respeito a um direcionamento da

consciência à substância presente na forma. “A influência de Husserl e da então chamada escola

fenomenológica estende-se, por conseguinte, em ambas as localizações da consciência do

religioso”244 (NEUGEBAUER, 2011, p. 61). Esta formulação dos modos como religião e

cultura se relacionam a partir da intencionalidade do ato da consciência representa um aspecto

fundamental da Teologia da Cultura de Tillich que lhe permite afirmar tanto a autonomia da

religião e da cultura, bem como a relação necessária entre elas. É tarefa da teologia, portanto,

levar a expressão o devir-reflexivo do espírito em todas as esferas e criação da cultura (DANZ,

2009, p. 181).

243 Form and import belong together; it is meaningless to posit the one without the other.

244Der Einfluss Husserls und der sogenannten phänomenologischen Schule erstreckt sich somit auf beide

Bewusstseinslagen des Religiösen.

122

A proposta de Tillich de uma teologia da cultura dirige-se justamente nessa direção, isto

é, de possibilitar uma análise religiosa das criações culturais segundo a substância que se realiza

nelas considerando ambos os polos dessa relação, forma e substância. De acordo com o autor,

“A tarefa da teologia da cultura é acompanhar de perto este processo em todas as esferas da

criação cultural e dar-lhe expressão. Não do ponto de vista da forma [...] mas tomando a

significação ou substância como seu ponto de partida”245 (TILLICH, 1973 [1919], p. 164). O

teólogo comenta também que essa proposta de uma teologia da cultura possui uma tríplice

missão: Fazer uma análise religiosa geral da cultura, fazer uma tipologia religiosa e filosofia da

história cultural propondo uma sistematização religiosa concreta da cultura.

A primeira se refere à relação entre a forma e a substância [...] a relação entre

o Sim e o Não, a relação e a força mediante a qual ambos encontram expressão.

[...] Isso nos leva a segunda tarefa que propomos à teologia da cultura, a tarefa

tipológica e histórica-filosófica. A limitação está dada pela imagem que

descrevemos anteriormente, a de uma linha com dois polos, respectivamente

a forma e a substância (ou significação). Esta imagem nos leva a três pontos

decisivos, que representam três tipos fundamentais: os dois polos e o ponto

central, onde a forma e substância mantém um perfeito equilíbrio. [...] Si esta

doutrina dos tipos se aplica ao presente e se relaciona sistematicamente com

o passado, irá se desenvolvendo uma classificação histórica-filosófica, que

nos leva diretamente à terceira tarefa, que é, propriamente dita, a tarefa

sistemática da teologia da cultura246 (TILLICH, 1973 [1919], p. 166-167).

A reflexão de Tillich sobre a proposta de uma teologia da cultura é bastante rica e

extensa, de modo que uma análise mais exaustiva sobre ela necessitaria ser objeto de um estudo

próprio, nesse sentido, a menção feita a este tema teve a pretensão apenas de apontar para as

implicações do contato de Tillich com a fenomenologia de Husserl, pois como bem frisou

Neugebauer, os fundamentos filosóficos-espirituais da teologia da cultura de Tillich remontam

ao pano de fundo de sua recepção da fenomenologia de Husserl (NEUGEBAUER, 2011, p. 38).

De modo que uma análise mais exaustiva sobre ela não pode mais ser desenvolvida dentro dos

limites dessa pesquisa.

245 The task of a theology of culture is to follow up this process in all the spheres and creations of culture and to

give it expression. Not from the standpoint of from [...] but taking the import or substance as its starting point.

246The first is the relation between form and substance. [...] the relation between the Yes and the No, the relation

and the force in which both find expression. [...] But there is also a certain limitation: and this leads us to the

second task assigned to theology of culture, the typological and historical-philosophical task. A limitation is given

by the afore-mentioned image of the line with the poles of form and substance (or import) respectively. This image

leads us to three decisive points representing the three fundamental types: the two poles and the central point where

form and substance are in equilibrium. [...] If this doctrine of types is applied to the present and systematically

related to the past, a historical-philosophical classification develops which then leads us directly to the third and,

properly speaking, systematic task of theology of culture.

123

A formulação dos modos como religião e cultura se relacionam demonstra em grande

medida as implicações da teoria da intencionalidade da consciência no pensamento de Tillich

bem como a importância que esta teoria teve para o desenvolvimento de sua teologia da cultura.

De acordo com Neugebauer, “Ambas as formas de consciência do religioso influenciam em sua

compreensão do espírito e são, com isto, essencialmente parte integrante dos fundamentos

filosófico-espirituais nos quais jaz seu princípio cultural-teológico”247 (NEUGEBAUER, 2011,

p. 63). Sendo assim, a demarcação conceitual dos modos como religião e cultura se relacionam

a partir do direcionamento da consciência subjetiva apresentam-se ao ver desta pesquisa como

os resultados ou implicações de um desenvolvimento de uma teoria da consciência intencional

no pensamento de Paul Tillich que é, como foi exposto no decorrer da pesquisa, oriunda de seu

contato com a fenomenologia de Edmund Husserl.

3.2. A relação entre forma e substância e os elementos intuitivo-descritivo e

existencial-crítico

A unidade entre religião e cultura como unidade entre forma e substância descreve a

dinâmica em que são formados os muitos fenômenos religiosos. Para o autor, “Cada ato

religioso, não apenas da religião organizada, mas também dos mais íntimos movimentos da

alma, é formado culturalmente” (TILLICH, 2009, p. 83). As expressões religiosas são, portanto,

formadas culturalmente, muito embora, não estejam limitadas à cultura, mas possuem uma

dimensão de profundidade que diz respeito ao caráter incondicional e subjetivo da experiência

religiosa. Trata-se, portanto, de um fenômeno que reúne um aspecto cultural e formal e um

aspecto substancial e incondicional, uma criação cultural que expressa o sentido incondicional

atualizado em formas condicionados.

Há, portanto, dois polos presente em toda expressão religiosa que devem ser

considerados. À luz do pensamento tillichiano, uma análise coerente de qualquer fenômeno

religioso deve levar em consideração a tensão formada entre ambos os polos dessa relação, pois

como afirmou o teólogo:

247Beide Bewusstseinsformen des Religiösen fließen in sein Verständnis von Geist ein und sind damit wesentlicher

Bestandteil der geistphilosophischen Grundlagen, auf denen sein kulturtheologischer Ansatz ruht.

124

A unidade da religião e cultura como unidade da substância de sentido

incondicionado e da forma de sentido condicionado é a relação adequada entre

as duas [...] A filosofia da religião tem seu ponto de partida, certamente nesta

coordenação e revela a unidade essencial somente por meio de uma análise

metalógica”248 (TILLICH, 1973 [1925], 62-74).

O método proposto por Tillich nesse sentido possibilitaria a preservação da unidade

essencial entre forma e substância. A união entre forma e substância como unidade de sentido

é o caminho para onde se dirige não apenas o método metalógico, como também o crítico-

intuitivo e o fenomenológico-crítico (considerando a hipótese dessa pesquisa de que se trata de

um único método), nesse sentido, o elemento intuitivo do método se volta para a substância da

forma como uma realidade a ser intuída e preservada em toda forma religiosa, e o elemento

crítico por sua vez volta-se para a forma, como o caráter concreto e existencial formado a partir

do solo cultural do mundo da vida. A unidade imprescindível entre forma e substância

pressupõe ambos os elementos metodológicos, como bem afirmou Neugebauer, “[...] o crítico,

dirigido ao sentido concreto ou funções culturais, e o intuitivo, dirigido ao caráter intencional

da consciência”249 (NEUGEBAUER, 2011, p. 61).

Neugebauer está se referindo especificamente ao método crítico-intuitivo de 1920.

Entretanto, se o método considerado para esta análise for o fenomenológico-crítico, a afirmação

deste autor permitiria deduzir também que enquanto o existencial-crítico volta-se para o sentido

cultural ou simbólico, o intuitivo-descritivo dirige-se para o caráter intencional e profundo. A

partir de uma abordagem fenomenológica-crítica, tem-se, portanto, as condições necessárias

para preservar a tensão existente na dinâmica dos elementos de sentido que derivam da

experiência intencional da consciência em sua autoreflexibilidade. “Mas segue-se também, ao

mesmo tempo, que a meta deste simbolismo é a intuição das formas significativas plenas de

substância viva, e não a intuição de qualquer outro tipo de essências metafísicas

independentes”250 (TILLICH, 1973 [1925], p. 53).

É nesta correlação entre forma e substância que se abre o caminho para entender as

possibilidades de aplicação do método fenomenológico-crítico. A relação que existe entre

248 The unity of religion and culture as a unity of unconditioned meaning-import and of conditioned meaning-

form is the authentic relation of the two. [...] The philosophy of religion does indeed begin from such a

coordination, and it reveals the essential unity only through the analysis of meaning.

249[...] das kritische, auf die konkreten Sinn- bzw. Kulturfunktionen gerichtete, und das intuitive, auf den

intentionalen Charakter des Bewusstseins gerichtete

250 But it follows at the same time that the goal of this symbolism is the intuition of the forms of meaning filled

with a living import, not the intuition of any sort of independent metaphysical essences.

125

forma e substância e os elementos existencial-crítico e intuitivo-descritivo do método

tillichiano, se mostra na medida em que o método se volta para esta polarização com o objetivo

de considerar ambos os polos e preservar sua unidade, ou seja, o método se estende crítica e

intuitivamente até os princípios de sentido que estão condicionados pela forma e substância e

dos quais depende toda apreensão das intuições particulares da essência. Disto pode-se deduzir

um possível caminho que a fenomenologia crítica de Tillich propõe para a análise do fenômeno

religioso.

A tensão entre religião e cultura é uma constante, e exige um método que dê conta de

ambos os polos sem a valorização de um em detrimento do outro. A conciliação que o teólogo

faz entre o método crítico e intuitivo irá salientar a relação entre forma e substância e propor

novas possibilidades de intuição das essências. Aqui a fenomenologia crítica é fundamental,

pois com sua distinção entre fundamento de sentido e a unidade de sentido, torna-se possível

apontar para as relações positivas e negativas entre a religião e a cultura, e com isso, trazer à

luz a função religiosa em sua pureza (TILLICH, 1973 [1925], p. 62). A aplicabilidade da

fenomenologia de Tillich encontra nesta tensão, forma e substância, a sua base e, portanto, a

abertura para a análise de fenômenos religiosos para além do sistema tillichiano, isto é,

apreender a experiência religiosa presente na cultura tanto lógica como intuitivamente.251

Da mesma forma o teólogo afirma que em uma análise religiosa de caráter metalógica

“[...] se pode falar de Deus apenas na medida em que ele for significado em uma ação religiosa.

Um discurso extrareligioso sobre Deus contradiz tanto os supostos metodológico como os

supostos materiais”252 (TILLICH, 1973 [1925], p. 79). As formas que compõe a religião devem

ser tomadas em seu caráter simbólico, isto é, precisamente como símbolos religiosos que

expressam o incondicional. O incondicional por sua vez, diz respeito a um sentido percebido

pela orientação intencional da consciência, intencionalidade que sustenta todas as funções

(TILLICH, 1973 [1925], p. 101). Em termos de categoria religiosa, a revelação diz respeito a

essa percepção do incondicional, de modo que segundo o autor “Falamos de revelação em

qualquer lugar que a significação incondicional do sentido atravessa a forma do sentido. A fé

251 Não se trata aqui de uma superação do sistema tillichiano. O ato de levar a fenomenologia de Tillich para além

do seu próprio sistema se refere às possibilidades de que este método não se limita apenas ao pensamento

tillichiano, mas que pode ser utilizado de maneira instrumental em outras circunstâncias analíticas.

252One can speak of God only insofar as he is intended in a religious act. An extrareligious speaking of God

contradicts the methodological as well as the material presuppositions.

126

sempre se fundamenta na revelação, porque é uma apreensão do sentido incondicional através

de formas”253 (TILLICH, 1973 [1925], p. 105).

A revelação tem o caráter de criar formas, isto é, detrás de cada autentica criação existe

revelação (TILLICH, 1973 [1925], 105). Revelação, portanto, tem a ver com criações de

formas, e necessariamente com criação de símbolos religiosos. Nesse sentido “Em cada ato de

fé revelacional estão implicadas duas coisas: por um lado, a orientação em direção ao sentido

incondicionado e por outro, a forma simbólica através do qual se revela o Incondicional”254

(TILLICH, 1973 [1925], p. 109). Nesta declaração torna-se novamente possível perceber a

relação entre forma e substância em toda experiência religiosa. Tendo em conta que as formas

religiosas através das quais o incondicional é expresso adquirem o caráter paradoxal de símbolo

religioso, e para Tillich a linguagem da religião é necessariamente simbólica, então a

fenomenologia crítica pode ser aplicada na análise de fenômenos religiosos na medida em que

estas sejam consideradas como modos simbólicos de representação que advém de uma

experiência revelatória. Nisto se tem as primeiras possibilidades para se aproximar de um

fenômeno religioso a luz da fenomenologia crítica de Paul Tillich como método de abordagem.

O seguinte tópico terá por objetivo analisar estas possibilidades.

3.3. A aplicabilidade da fenomenologia crítica para a análise do fenômeno religioso

Diante do exposto até o momento torna-se possível perceber que o método proposto por

Tillich em 1920, no contexto de sua filosofia da religião, alcançou sua formulação final na

fenomenologia crítica ou intuição crítica. Como já referido, a pesquisa opta em trabalhar com

a fenomenologia crítica por considerar que nela estão sintetizadas de maneira bastante didática

as três abordagens que o método propõe, facilitando dessa forma sua aplicação prática. Vale

ressaltar que uma análise a partir da fenomenologia crítica de Tillich não significa uma análise

a partir de sua teologia. Nesse sentido, abordar um fenômeno religioso a luz da fenomenologia

crítica significa, sobretudo, compreender este fenômeno como modos simbólicos de

253 We speak of revelation wherever the unconditioned import of meaning breaks through the form of meaning.

Faith is always based on revelation, for it is an apprehension of the unconditioned import through conditioned

forms.

254 In every act of revelational faith two things are involved: on the one hand directedness toward the unconditional

import and on the other the symbolic form through which the Unconditional is revealed.

127

representação em perspectiva fenomenológica. Ainda que elementos do pensamento teológico

e filosófico do autor sejam retomados, a análise encontra-se fora do círculo teológico cristão

propriamente dito e se insere no círculo fenomenológico, isto é, a partir dos recortes

metodológicos da fenomenologia crítica torna-se possível uma abordagem não condicionada à

perspectiva teológica cristã.

A experiência religiosa, como descrita no primeiro capítulo, se dá na apreensão de um

sentido incondicional pela intencionalidade da consciência através de uma forma concreta posta

pelo espírito em sua criatividade no mundo da vida. A apreensão imediata do incondicional é

também descrita por Tillich em termos de revelação, um termo correlato presente, sobretudo

nos contextos teológicos, como bem observado por Schüßler (1987, p. 163). A experiência da

revelação não é algo que vem de fora, mas é uma experiência que ocorre no encontro do sujeito

com o mundo da vida. Trata-se, como sugere Josgrilberg, de uma experiência imediata “como

mediação necessária, antes de qualquer reflexão ou expressão. Experiência e experiencial são

as condições prévia (vivência pré-reflexiva) de qualquer inteligência da realidade. A

experiência imediata é também condição prévia da recepção e reflexão da revelação”

(JOSGRILBERG, 1995, p. 69, nota 1). A fenomenologia crítica parte desse evento, isto é, a

vivência intencional da consciência ao sentido incondicional é tomada aqui como ponto de

partida experiencial.

Na experiência real do sujeito que recebe a revelação, o componente intencional que é

a priori sem conteúdo se junta com uma forma concreta repleta de conteúdo. Deste modo,

fenomenologicamente a experiência religiosa é constituída pela interação dinâmica do elemento

essencial e, portanto, universal com o contexto vivencial em que ocorre tal experiência. “Já que

o ser humano é essencialmente histórico, toda revelação, mesmo que seja mediada através de

uma rocha ou uma árvore, ocorre na história” (TILLICH, 2011, p. 133). Um exemplo concreto

disso é a experiência da árvore sagrada descrita pelo teólogo no livro Dinâmica da fé. “A

pessoa, cuja preocupação incondicional se exprime numa árvore santa, está tanto tomada por

uma preocupação incondicional como pela concreticidade da árvore, que simboliza a sua

dedicação ao incondicional” (TILLICH, 1985, p. 34). Este exemplo será tomado para ilustrar a

aplicabilidade da fenomenologia crítica de Tillich. O exemplo apresenta os dois polos de

sentido que envolvem toda experiência revelatória, a saber, a substância e forma, assim como

a posterior simbolização do segmento da realidade em que a experiência revelatória foi possível.

Para fins didáticos, a pesquisa irá se limitar ao simbolismo geral da árvore sagrada recorrendo

a alguns exemplos concretos no decorrer da exposição.

128

O primeiro polo da experiência diz respeito à percepção do sentido incondicional, que

como dito anteriormente, não é objeto da crítica, mas da intuição. O incondicional é a substância

própria e universalmente válida da experiência religiosa que é levada neste caso ao primeiro

plano mediante o contato do sujeito com a árvore. Neste modo religioso a priori de auto-

apreensão o indivíduo experimenta o fundamento e abismo do sentido através de seu contato

com o objeto que se apresenta a ele como mediador da revelação.

Na experiência revelatória, a consciência é levada além de sua estrutura sujeito-objeto

sem que haja desintegração alguma dos elementos centrais da pessoa. Segundo Tillich, o evento

revelatório só se torna possível quando sucede em estrita interdependência com o evento

extático onde algo que está oculto é manifestado de forma especial e extraordinária. “Tudo o

que possui qualidades extáticas – e existem poucas coisas que não podem possuí-las é portador

da revelação. Todo o real possui o poder interior e o sentido intrínseco para servir como portador

de um sentido incondicional”255 (TILLICH, 1973 [1925], p. 106).

O autor explica que neste estado de racionalidade extática nada irracional ou anti-

racional invade a razão, portanto o êxtase não é uma negação da razão “A ʻrazão extáticaʼ

continua sendo razão” (TILLICH, 2011, p. 124). Para ele, não existe a possibilidade de haver

uma experiência extática sem a manifestação de uma revelação. A consciência precisa deparar-

se com a revelação do mistério para uma possível ocorrência do êxtase. O mistério se refere a

algo que ao ser revelado não perde seu caráter misterioso, isto é, o mistério diz respeito a um

excesso de sentido que não se pode exprimir.

Somente aquilo que está escondido por essência, que não é acessível por

qualquer caminho do conhecimento, se comunica através da revelação. Não

deixa de estar oculto por se revelar; porque seu ocultamento corresponde a sua

essência; e quando se revela, também se revela o fato de que é o oculto256

(TILLICH, 1992b [1927], p. 102).

Van der Leeuw comenta que pode parecer assombroso o fato de que aquilo que se revela

não se mostre. Mas é preciso considerar que o mostrar-se do fenômeno precisa ser algo

essencialmente distinto que o mostrar-se do sagrado, aquilo do que se trata na revelação. “A

vivência é em parte fenômeno, mesmo a vivência da revelação. Mas esta permanece

255 Everything that has esctatic qualities – and there is scarcely anything that could not possess them – is a bearer

of revelation. Everything real has the inner powerfulness and intrinsic significance to serve as a bearer of the

unconditional import.

256Nur das, was wesensmäßig verborgen ist, was auf keinem Erkenntnisweg zuganglich ist, teilt sich durch

Offenbarung mit. Es hört dadurch, daß es sich offenbart, nicht auf, verborgen zu sein, denn seine Verborgenheit

gehört zu seinem Wesen; und wenn es offenbar wird, so wird auch dieses offenbar, daß es das Verborgene ist.

129

fundamentalmente oculta aos nossos olhos”257 (VAN DER LEEUW, 1964, p. 538). Dessa

forma, a revelação conduz a razão a seu abismo e fundamento, produzindo um evento objetivo

e subjetivo por meio do qual a mente depara-se com o sentido incondicional, último e mais

profundo na estrutura do espírito humano na dinâmica da vivência real.

A partir do elemento intuitivo-descritivo a revelação pode ser descrita como “uma

manifestação especial e extraordinária que remove o véu de algo que está oculto de forma

especial e extraordinária” (TILLICH, 2011, p. 121). Nesse sentido ela é entendida em termos

de estruturas gerais como uma categoria revelatória do ser humano. Na revelação, o sujeito

percebe a essência do fenômeno por meio do direcionamento subjetivo da consciência à

substância da forma258. No exemplo da árvore, o direcionamento noético visa ao sentido

incondicional na árvore. Esta atitude é própria da consciência e constitui-se como uma atividade

subjetiva, já que se trata do “eu” que confere sentido às coisas no mundo da vida. O sentido

incondicional, enquanto um noema jamais alcançado, encarna-se na imagem da árvore que

aparece à consciência do sujeito com um significado transcendental. “A experiência do sagrado

transcende a estrutura sujeito-objeto da experiência. O sujeito é atraído ao sagrado encarnado

em um objeto finito que, neste encontro, se torna sagrado”259 (TILLICH, 1987b [1961], p. 417).

O sujeito é atraído ao sagrado percebido na árvore. As expressões religiosas de maneira geral

encontram aqui seu fundamento. De acordo com Tillich (1992b [1966], p. 433) todas as

religiões estão fundamentadas numa experiência revelatória, e nesse sentido o teólogo comenta

também que:

Na história da religião, os eventos reveladores sempre foram descritos como

acontecimentos que chocam, transformam, exigem, que são significativos de

forma última. Eles procedem de fontes divinas, do poder daquilo que é santo

257La vivencia es en parte fenómeno (§67), aun la vivencia de la revelación. Pero esta permanece

fundamentalmente oculta a nuestras miradas.

258 Um exemplo disso é a própria experiência de Tillich com as Madonnas de Botticelli. Nas palavras do autor,

“Contemplando-a, fui tomado por um estado próximo do êxtase. Na beleza da pintura havia a beleza em si.

Brilhava através das cores do quadro como a luz do dia através dos vitrais de uma igreja medieval... aquele

momento afetou toda minha vida, me deu as chaves para a interpretação da existência humana, produzindo

vitalidade e verdade espiritual. Eu comparo com o que é geralmente chamado de revelação no linguajar da religião.

(TILLICH, 1987a [1955], 235). Tal perspectiva tem dado base para diferentes análises de uma teologia da arte.

No contexto brasileiro há vários estudos nesta direção. Veja especialmente CALVANI, Carlos Eduardo B.

Teologia da Arte. São Paulo, Fonte Editorial/Paulinas, 2010; DREBES, Haidi. A Teologia da Arte. in MUELLER,

Ênio R; BEIMS, Robert W. (org.). Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul Tillich em perspective

interdisciplinar. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005. HIGUET, Etienne. Interpretações das imagens da teologia e

nas ciências da religião. In NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (org.). Linguagens da religião. Desafios,

métodos e conceitos centrais. São Paulo: Paulinas, 2012.

259The experience of the holy transcends the subject-object structure of experience. The subject is drawn into the

holy, embodied in a finite object, which, in this encounter, becomes sacred.

130

e que, portanto, possui uma reivindicação incondicional sobre nós (TILLICH,

2011, p. 123).

A revelação se dá de forma imediata no sentido especulativo ou categórico no momento

em que a essência do fenômeno é apreendida e o sujeito se depara com o sentido de

inesgotabilidade do real. Nesse sentido, a revelação, por exemplo, se estabelece como uma

predisposição a priori que pode ser encontrada nas mais diversas formas religiosas. Para o

autor, todas as expressões religiosas coincidem no fato de que a revelação é o sentido

incondicional que atravessa a forma, portanto, “Todas as religiões estão firmadas sobre algo

que um homem recebe onde quer que esteja, recebe uma revelação, uma experiência

determinada que sempre inclui poderes salvíficos260 [...] Existem tais poderes reveladores e

salvíficos em todas as religiões”261 (TILLICH, 1992b [1966], p. 433)262.

No caso da árvore, a revelação por meio dela é a manifestação de um sentido

incondicional que a eleva à categoria de sagrada. A luz da fenomenologia crítica pode-se dizer

que a árvore deixa de ser apenas árvore, ela é o meio, mas também representa aquilo que por

meio dela se revela. Ainda que a árvore continue um objeto no mundo da vida e seja utilizável

para outros fins e em outras atividades, ela não se limita mais a ser apenas um instrumento, o

260 Para Tillich, experiência revelatória e experiência salvífica estão unidas. “Não se pode separar revelação da

salvação” (TILLICH, 1992b [1966], p. 433). Na revelação é manifesto àquilo que diz respeito ao ser humano de

forma última, e tais manifestações “São eventos salvíficos em que está presente o poder do Novo, embora ele só

esteja presente de forma preparatória, fragmentária e sempre suscetível à distorção demoníaca. Mas está presente

e cura onde quer que seja realmente aceito” (TILLICH, 2011, p. 452). A integração do si mesmo pessoal só é

possível por meio de sua elevação até aquilo que se denomina simbolicamente de si mesmo, divino, isso só se

torna possível graças à irrupção do Espírito divino no espírito humano. De acordo com o teólogo, “na entrega a

algo que nos diz respeito incondicionalmente, ao sagrado que não pode ser forçado a se colocar a nosso serviço.

De tal entrega deriva a cura no centro da personalidade, integração das forças contraditórias que se subtraem ao

centro e querem então se apossar dele” (TILLICH apud HIGUET, 1999, p. 82). Nesse sentido a salvação se dá nas

condições existenciais por meio da experiência do sagrado no espírito humano, e mediante ela, em todas as

dimensões da vida.

261 Religions are based on something that is given to a man wherever he lives. He is given a revelation, a particular

kind of experience which always implies saving power. [...] There are revealing and saving powers in all religions.

262 A ideia de revelação como uma base comum para todas as religiões, assim como outros elementos do

pensamento do autor, tem dado base para diferentes análises de uma teologia das religiões, entre elas pode-se

mencionar algumas como: GEFFRÉ, Claude. “Paul Tillich and the future of interreligious ecumenism”. In:

Raymond F. Bulman & Frederick J. Parrela (eds.). Paul Tillich: a new catholic assessment. Collegeville,

Minnesota, The Liturgical Press, 1994; MATHIAS, Luiz Guilherme Kochem. “Teologia Sistemática e Religiões

Mundiais: aproximações tillichianas ao tema da pluralidade religiosa”. Tese de doutorado. Universidade Federal

de Juiz de Fora, 2013; HIGUET, E. Tendências pluralistas na teologia das religiões de Paul Tillich. Correlatio. V.

13, n. 25, 2014; RIBEIRO, C. de O. Fé e pluralismo religioso: reflexão a partir da teologia de Paul Tillich. In:

Correlatio, Vol. 12, Nº 23 (2013), p. 29-40; AVELINE, J-M. Paul Tillich et la théologie des religions. In: DANZ,

C., SCHÜSSLER, W. & STURM, E. (Eds.). Religionstheologie und interreligiöser Dialog. Internationales

Jahrbuch für die Tillich-Forschung, Bd. 5, 2009. Berlin: Lit Verlag, 2010, p. 21-36.

131

sentido incondicional percebido nela a torna sagrada, algo mais do que árvore263. O mistério

assume a forma da árvore, isto é, o sagrado adquire um perfil específico cujo conteúdo eidético

e intencional torna-se apreensível a todos que reconhecem este caráter sagrado. A

intencionalidade da consciência visa a substância da árvore, e atribui a este objeto um sentido

que não pode ser limitado as categorias lógicas de pensamento, a árvore ainda que não esgote

o sagrado, serve como base empírica por meio do qual o sagrado torna-se apreensível para o

sujeito ou comunidade.

Na árvore, “O sagrado é experimentado como estando presente. Ele está aqui e agora,

isto é, ele se nos depara num objeto, numa pessoa, num acontecimento” (TILLICH, 1985, p.

41). De acordo com Tillich (1985), nenhuma parte da realidade está excluída da possibilidade

de se tornar portadora do sagrado, e de fato quase tudo que existe foi já chamado alguma vez

de sagrado, seja por grupos ou indivíduos. O segmento da realidade que é experimentado como

portadora do sagrado, adquire o caráter sacramental, e o sujeito que o experimenta nessa

qualidade, experimenta o sentido incondicional.

Este cálice, este pão, esta árvore, este gesto da mão, este ajoelhar-se, este

edifício, este rio, esta cor, esta palavra, este livro, esta pessoa são portadores

do sagrado. Através deles a pessoa crente experimenta aquilo que a toca

incondicionalmente. Eles não são escolhidos arbitrariamente como portadores

do sagrado, e sim pela intuição visionaria de indivíduos (TILLICH, 1985, p.

41).

O aspecto irracional do fenômeno tem aqui seu lugar e é mantido através da abordagem

intuitiva. O sujeito percebe a dimensão substancial na árvore e atribui a ela um sentido diferente

em relação a outras árvores na situação normal do mundo da vida. Este segmento é valorizado

e diferenciado pela revelação, que mediante a intencionalidade da consciência do sujeito, faz

da árvore um tipo especial de árvore onde o universal e essencial estão presentes. Estes objetos

despertam naquele que reconhece seu caráter sagrado o sentido profundo do mistério que a

consciência esconde em sua estrutura. Na árvore, algo permanece indefinido e elusivo e não

pode ser tomado de outra forma senão como incondicional, fundamento e abismo, o absoluto e

vazio. O incondicional, tomado através da árvore que o revela, se torna objeto de preocupação

última e, portanto, verdade salvadora.

263Eliade comenta que o sagrado pode se manifestar em pedras ou árvores, mas não se trata de uma veneração da

pedra como pedra ou de um culto da árvore como árvore. O objeto sagrado não é adorado como tal, “mas

justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o

ganz Andere” (ELIADE, 1992, p. 13).

132

Tillich chama atenção para fato de que a revelação daquilo que preocupa a pessoa de

forma última, é sempre revelação para alguém numa situação concreta de preocupação. A

revelação sempre se apodera de um indivíduo ou de um grupo e só possui poder nesta

correlação. Se não houver alguém que a receba como sua preocupação última, então não há

revelação. “Se nada acontece objetivamente, nada é revelado. Se ninguém recebe

subjetivamente o que acontece, o evento deixa de revelar algo. A ocorrência objetiva e a

recepção subjetiva pertencem ao evento total da revelação” (TILLICH, 2011, p. 124). A

revelação só é possível através das formas existentes na realidade. A árvore se torna sagrada

tanto porque podia se tornar sagrada quanto porque foi recebida como sagrada.

Na experiência do sujeito que percebe a dimensão sagrada da árvore, há um movimento

da consciência para a realidade onde o incondicional é representado por uma forma

proporcionada pela estrutura do espírito. Isso significa que ali onde a consciência não é capaz

de falar por si mesmo, a árvore assume este lugar, ou seja, os inúmeros objetos sagrados

presente nas diversas expressões religiosas falam sobre o sagrado porque são a linguagem do

mistério revelado. Eles apontam para o sentido do incondicional que a consciência esconde em

si mesma, com isso a religião fica criticamente fundamentada, seu lugar na estrutura da

consciência é sinalado e representado por alguma forma real.

A fenomenologia crítica permite dessa forma identificar que o incondicional é para onde

a consciência se volta. Mas também pergunta pela forma que permite essa experiência, suas

características lógicas e de que maneira o sujeito está existencialmente envolvida com ela. Caso

contrário, o incondicional ficaria apenas como um apêndice da estrutura do espírito sem ser

nada em si mesmo. Uma vez pressuposto o caráter incondicional da experiência religiosa, a

atenção se volta para os aspectos concretos que por sua vez passam a fazer parte da descrição

do sagrado.

Universalmente em tudo o que é finito e particular, ou em tal ou qual finitude,

a sacralidade se manifesta de uma maneira especial. Chamarei isso de a base

sacramental de todas as religiões: a sacralidade que se pode ver, ouvir e

analisar, aqui e agora, a despeito de seu caráter misterioso264 (TILLICH, 1992b

[1966], p. 436).

A pergunta que a fenomenologia crítica propõe neste momento é “onde e para quem se

revela uma idéia” (TILLICH, 2011, p. 119). A fenomenologia pura, de acordo com Tillich

264 Universally in everything finite and particular, or in this and that finite, the Holy appears in a special way. I

could call this the sacramental basis of all religions – the Holy here and now which can be seen, heard, dealt with,

in spite of its mysterious character.

133

(1973 [1925], p. 61) passa por alto o fato de que religião e cultura se reúnem em sua orientação

a sínteses das formas, sendo assim, não é capaz de esclarecer a relação entre religião e cultura,

ela pode valorizar uma em detrimento da outra ou até mesmo se negar a definir tal relação. Mas

toda revelação para que seja considerada final e universalmente válida deve evidenciar absoluta

concretude e absoluta universalidade, “E este conceito pode ser empregado como critério,

porque expressa a natureza essencial de toda revelação” (TILLICH, 2011, p. 121). Dessa forma

o elemento existencial-crítico vem para o método chamando atenção da fenomenologia para a

experiência concreta e situacional da revelação, isto é, para seu significado histórico e cultural.

A experiência assimila uma característica histórica e cultural, mas conserva sua

universalidade. Enquanto o elemento intuitivo possibilita perceber o caráter universal da

revelação o elemento crítico possibilita perceber o caráter concreto dela, nesse sentido, o

exemplo da árvore sagrada une os dois polos de toda experiência revelatória, “Primeiro, em

termos de um princípio abstrato que é o critério de toda revelação pretensa ou real. Segundo,

em termos de uma imagem concreta que espelha a ocorrência da revelação final” (TILLICH,

2011, p. 146).

De acordo com o teólogo, o ser humano recebe a revelação no contexto de sua finitude

humana. “O homem está limitado biologicamente, psicologicamente e sociologicamente, de

maneira que a revelação é levada a cabo dentro das condições alienantes do homem”265

(TILLICH, 1992b [1966], p. 433). Para o teólogo, em todas as formas religiosas, a experiência

do sagrado é mediada por alguma parte dessa realidade.

Este é o caráter paradoxal do sagrado, que mesmo sendo incondicional e por definição

impossível de ser condicionado, se manifesta somente fragmentariamente através de categorias

condicionadas266. Enquanto que o elemento intuitivo-descritivo se volta para este aspecto

eidético e universal do fenômeno, o existencial-crítico apreende seu caráter singular nas

condições históricas, culturais e existenciais da situação humana. O paradoxo da dialética do

sagrado é mantido e ambos os polos valorizados. A religião enquanto substância é revelatória,

265 Man is biologically, psychologically, and sociologically limited. Revelation is received under the conditions of

man’s estranged character.

266 Eliade também destaca o caráter paradoxal do sagrado e afirma que mesmo sendo “eterno, absoluto e livre, se

manifesta num fragmento material, precário, condicionado, etc.” (ELIADE, 2002, p. 33).

134

e, portanto, universal. Na medida em que é expressa, a religião adquire forma e se torna

existencialmente condicionada pelas categorias fundamentais do ser267.

Sendo assim, todas as expressões daquilo que toca o ser humano incondicionalmente

são expressões religiosas que se utilizam de elementos da realidade finita. Toda revelação é

sempre revelação para alguém numa situação existencial concreta. É nesse sentido que o

elemento existencial-crítico chama atenção para o caráter concreto e singular em que se dá a

experiência religiosa já que cada período histórico se caracteriza pelo predomínio de elementos

diferentes dentro do conjunto de elementos e polaridades que integram o reino religioso

(TILLICH, 1988 [1963], p. 311).

Mas não se trata aqui de uma relativização da religião no sentido de que todas as

religiões são iguais. A fenomenologia de Tillich com seu elemento crítico chama atenção para

o fato de que não se pode desconsiderar as especificidades de cada religião e suas devidas

ênfases. De acordo com Tillich, a experiência revelatória pode dar origem a exemplos diferentes

e talvez até contraditórios de expressões religiosas. Sendo assim, por mais que se possa falar de

um eidos, de uma essência na religião, cada religião possui suas particularidades que devem ser

valorizadas.

Esta forma, por meio do qual a experiência torna-se possível, passa a adquirir o caráter

de símbolo religioso. Após receber a revelação, a pessoa a torna simbólica, mediando

reflexivamente o conteúdo revelado por meio da atividade da consciência (ABREU, 2015, p.

100). Posterior à experiência religiosa do sujeito, surgem os símbolos, mitos e ritos/cultos.

Etienne Higuet faz um resumo das seis características do símbolo apresentado por Tillich no

livro Dinâmica da fé:

Em primeiro lugar, Símbolos apontam para algo que está fora de si mesmos.

Segundo, o símbolo participa naquilo para o qual aponta. Terceiro, o símbolo

desvenda níveis de realidade que, sem ele, permaneceriam inacessíveis. Toda

arte, por exemplo uma imagem ou um poema, produz símbolos de uma

dimensão do real que, de outro modo, nos permaneceria inacessível. A quarta

característica consiste na abertura a elementos profundos do nosso próprio ser,

que correspondem às dimensões e estruturas da realidade. Há domínios dentro

de nós, que só podem chegar à consciência por intermédio de símbolos.

Quinto, os símbolos provêm do inconsciente individual ou coletivo e não

podem ser inventados arbitrariamente. Por isso, eles nascem e morrem como

os seres vivos. Eles surgem num momento de maturidade do tempo, isto é,

num Kairos, e desaparecem depois de terem sido percorridos pelo tempo. Eles

267 “Cada ser humano descobre aquilo que ele está culturalmente e espiritualmente preparado para descobrir”

(ELIADE, 1978, p. 94)

135

acabam, quando não encontram mais eco na comunidade que eles chegaram a

expressar algum dia (HIGUET, 2005, p. 61).

No que se refere aos mitos, estes são narrativas religiosas que descrevem as relações

entre o condicional e o incondicional e estão presente em todas as religiões. A palavra grega

“mito” está originalmente associada a “história dos deuses”. “Mitos são, portanto, símbolos da

fé associados a lendas, os quais falam dos encontros dos deuses entre si e dos deuses com os

homens. Mitos estão presentes em todo ato de crer, porque o símbolo é a linguagem da fé”

(TILLICH, 1985, p. 35-36). Também o cristianismo, como toda outra religião, fala a língua do

mito, caso contrário não seria expressão daquilo que toca o ser humano incondicionalmente.

Entre os mitos do cristianismo estão: o nascimento virginal do messias, sua ressurreição,

ascensão e retorno (TILLICH, 1985, p. 37). A noção de símbolo e mito no pensamento de

Tillich possui uma correspondência bastante grande e se expressa no fato de que os mitos são

simbólicos, isto é, as narrativas míticas comportam os símbolos.

O culto ou atividades ritualísticas, por sua vez, é a soma total daquelas atividades através

das quais se realiza o incondicional na esfera prática. Para o autor, toda atividade religiosa é

cúltica. Este conceito geral de culto se refere a todas as formas de atividades religiosas e se

apresenta paralelamente à forma cognitiva de expressão do incondicional, isto é, ao mito.

Narrativa mítica e atividade cúltica estão relacionados de tal modo que todo ato cúltico possui

um conteúdo mítico e todo objeto mítico possui uma realização cúltica. “Para a fé não pode

haver ação prática alguma que não esteja dirigida ao incondicional mediante o símbolo e além

deste. E para a fé não pode haver símbolo do Incondicional que não esteja dirigida a algum ato

prático”268 (TILLICH, 1973 [1925], p. 110). O culto, portanto, aponta para a ligação do símbolo

à ação, isto é, uma forma social de dizer o símbolo religioso numa práxis de sentido, onde o

símbolo e a ação aparecem unidos.

Símbolos, mitos e ritos são desdobramentos da consciência humana que percebe o

incondicional. Em outras palavras, ao receber a revelação, o ser humano torna simbólica a

forma por meio do qual a revelação foi possível, ou algum símbolo já existente pode também

representar esta revelação recebida, o mito narra a vivência do incondicional e o culto

possibilita sua atualização prática. Estas funções da mente humana que brotam da profundidade

da razão expressam o impulso em direção ao incondicional. “O mito e o culto, cujo caráter

racional não se pode afirmar nem negar, porque apresentam uma estrutura independente que

268 For faith there can be no practical act that would not be directed toward the Unconditional through and beyond

a symbol. And for faith there can be no symbol of the Unconditional toward which no practical act is directed.

136

não pode ser reduzida a outras funções da razão nem ser derivada de elementos psicológicos ou

sociológicos pré-racionais” (TILLICH, 2011, p. 93). A razão humana não se limita a suas

formulações lógicas, o sentido incondicional presente em todo sentido particular percebido pela

atividade da consciência se expressa em símbolos, narrativas míticas ou atividades cúlticas que

anunciam essa dimensão sempre aberta e que a razão humana não é capaz de esgotar.

A teoria do símbolo em Tillich é um aspecto fundamental para entender o

funcionamento de sua fenomenologia crítica, pois aproximar-se de um fenômeno religioso em

perspectiva fenomenológica, implica necessariamente em considerar o fenômeno como um

modo simbólico de representação. Ou seja, as expressões religiosas em sua diversidade referem-

se ao sagrado através de uma linguagem que é simbólica. Nesse sentido, o elemento intuitivo-

descritivo está para a consciência intencional assim como o elemento existencial-crítico está

para a forma de sentido, isto é, as formas simbólicas de representação do sagrado.

Para Tillich, a linguagem religiosa é uma linguagem simbólica, “Aquilo que toca o

homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos, porque apenas a

linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” (TILLICH, 1985, p. 30). A fé como

ato de ser tomado por uma preocupação última e incondicional não possui outra linguagem. A

linguagem marcada pela ambiguidade da existência está presa à estrutura eu-mundo, e

consequentemente se torna incapaz de se referir diretamente ao incondicional, mas apenas de

maneira indireta, isto é, através de formas simbólicas.

Da mesma forma, Tillich (2009, p. 89) afirma que qualquer tipo de linguagem é

resultado de inumeráveis atos de criatividade cultural, nesse sentido, não existe linguagem

sagrada oriunda de um céu sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um livro, o que existe

é a linguagem humana que se baseia no encontro com a realidade, usada para as necessidades

cotidianas, bem como para mostrar o sentido incondicional.

A linguagem religiosa é comum, mudando de acordo com o poder que

expressa, isto é, o Ser e o sentido absolutos. Essa expressão pode ter a forma

da narrativa (mitológica, lendária, histórica), ou da profecia, da poesia e da

liturgia. Torna-se santa para os que a recebem como expressão da preocupação

suprema, de geração em geração (TILLICH, 2009, p. 89).

Para Tillich (1985, p. 32) os símbolos existem nas diversas áreas da vida cultural, podem

ser imagens, representações, palavras, pessoas, grupos, ideias, coisas etc. que embora possam

ser encontradas na realidade objetiva, apontam para uma realidade além deles. Convém lembrar

a distinção que o autor faz entre símbolo e sinal. Segundo Tillich, símbolos e sinais possuem

137

identidades essenciais e apontam para uma realidade além de si, entretanto, a diferença entre

ambos está no fato de que “os sinais não participam na realidade e no poder daquilo que

indicam. Os símbolos, embora não sejam iguais ao que simbolizam, participam no seu poder e

sentido” (TILLICH, 2009, p. 100). Isso quer dizer que a resposta interna da pessoa em relação

ao símbolo não se limita ao símbolo, mas vai em direção àquilo que por ele é simbolizado.

Sendo assim, a diferença entre símbolo e sinal está na participação no símbolo e não

participação no sinal, na realidade simbolizada. Por exemplo, “O sinal ‘A’ ou ‘R’ não

participam no som que indicam; por outro lado, a bandeira participa no poder do rei ou da nação

a que pertence e que simboliza” (TILLICH, 2009, p. 99).

No exemplo da árvore sagrada, o sentido incondicional é percebido através da árvore e

usa esta forma para expressar a experiência, neste caso, a árvore é simbolizada e elevada a um

novo nível de relacionamento com o sujeito que percebe um novo perfil da árvore, seu perfil

sagrado. A resposta interna da pessoa em relação à árvore vai em direção àquilo que por ela é

simbolizado, de modo que o sentido da árvore para o sujeito ou comunidade que reconhece sua

dimensão sagrada não se limita ao perfil puramente físico da árvore. É certo dizer que a

materialidade da árvore traz consigo algo de sentido, mas quando simbolizado, torna-se

expressão do sentido do mistério. O símbolo está estruturalmente presente na própria

consciência e tem a mesma orientação para o incondicional, isto é, tanto o símbolo como o mito

“[...] revelam formas de pensamento e de intuição que estão inseparavelmente ligados à

estrutura da consciência humana” (TILLICH, 1985, p. 36). Há na árvore sagrada uma dimensão

de sentido que extravasa a própria árvore e se volta para o fundamento de sentido, mas sem

com isso anular a dimensão concreta da árvore.

O método fenomenológico-crítico ajuda compreender que nesta situação é possível

perceber o caráter paradoxal da religião. “A intuição é o método próprio do paradoxo, da

constante irrupção e anulação da forma pela realidade que está nela”269 (TILLICH, 1973 [1922],

p. 150). O símbolo não perde sua característica formal, a árvore continua árvore, mas também

é algo mais do que árvore, ela revela o sagrado. A ação religiosa só pode atualizar-se em outras

ações do espírito, e nesse sentido, através da intuição-descritiva a qualidade religiosa pode ser

trazida à luz. O intuído é a dimensão incondicional, o sagrado na árvore. “Mas aqui, novamente,

está presente o fato de que toda afirmação se expressa na forma material-objetiva, e que por

269 Intuition is the method appropriate to paradox, to the constant breakthrough and annulment of form for the sake

of the reality within it.

138

tanto, é verdadeira apenas quando se nos apresenta como uma afirmação quebrada,

paradoxal”270 (TILLICH, 1973 [1922], p. 141).

A árvore sagrada passa a atuar como meio através do qual a intencionalidade da religião

se expressa. Essa experiência, num sentido fenomenológico, estabelece bases para o surgimento

de uma nova forma de ser-no-mundo, aqui “O ser humano experimenta a si mesmo como

possuindo um mundo ao qual pertence” (TILLICH, 2011, p. 179). De acordo com Souza (2014,

p. 109) essa revelação de mundo se expressa, sobretudo, em palavras e se objetiva nos mitos e

símbolos que passam a organizar, normatizar e classificar esse mundo. Nesse sentido é possível

perceber a significação dessa forma religiosa como um sentido de vida.

A árvore é revestida com um valor de ultimidade. Para o sujeito que a contempla, a

árvore sagrada envolve também uma questão ontológica, de sentido existencial. Como afirma

Tillich os símbolos “[...] produzem a experiência na dimensão da profundidade na alma

humana” (TILLICH, 2009, p. 102 – 103). Há um poder inerente nos símbolos que está

envolvido existencialmente com a pessoa. A árvore ganha um sentido especial e é vista como

algo mais do que apenas árvore, ela pode revelar uma modalidade do mundo que não estava

evidente antes. A árvore se torna símbolo na vida do sujeito que a contempla e adquire um lugar

especial na consciência ritualística (SOUZA, 2014, p. 91).

De acordo com Tillich (1985, p. 41) o símbolo abre níveis da realidade da alma e situa

o sujeito em sua situação histórica e existencial. Nessa dinâmica o símbolo torna o mundo

aberto como um espaço de significação, onde o sujeito pode internalizar e objetivar sua

identidade. Da mesma forma, a comunidade articula uma visão de mundo a partir das formas

concretas oriundas da cultura que são assumidas existencialmente como símbolos. Estes

símbolos, por sua vez, elucidam a situação existencial que tornou possível a expressão dessa

religiosidade.

Para Tillich (2009, p. 103), na medida em que novos relacionamentos com o sagrado

são pressupostos, novos símbolos religiosos vão surgindo, e ainda que não seja o sagrado em

si, eles participam dessa realidade. A árvore sagrada se apresenta como forma concreta

mediante a qual se revela (embora permaneça sempre um mistério) uma realidade última que

para o sujeito não poderia se expressar de outra forma. Daí a especificidade do símbolo. A

270 But here again it is the case that every statement is expressed in a material-objective form, and therefore is true

only as a broken, paradoxical statement.

139

experiência do incondicional embora ocorra na dimensão da consciência envolve a pessoa como

um todo. “Uma preocupação incondicional se manifesta em todas as áreas da realidade e em

todas as expressões de vida da pessoa” (TILLICH, 1985, p.69). De acordo com o teólogo, no

centro da pessoa, todos os elementos da vida da personalidade estão unidos, as forças corporais,

inconscientes, conscientes e intelectuais. “Fé é um ato de paixão infinita, e paixão não é possível

sem ligação ao corpo, mesmo se se trata de paixão intelectual. Também o corpo participa de

todo ato de fé genuína” (TILLICH, 1985, p. 69). O corpo, portanto, é um corpo voltado para a

relação de sentido271.

A experiência do sentido envolve também a materialidade vivida do sensível, isto é, na

experiência com a árvore estão envolvidos tanto os elementos visíveis, táteis e olfativas quanto

o sentido mais profundo. Estes elementos são apropriados pelo sujeito e podem vir

acompanhados por características culturais particulares que podem atribuir características

específicas à experiência e sentidos diferentes ao símbolo, de modo que um mesmo símbolo

pode abrir horizonte de sentidos diferentes. Um exemplo concreto disso é a presença do Cristo

nas religiões afro-brasileiras. Higuet comenta que os afro-brasileiros, ao aderirem ao evangelho,

produziram uma nova expressão de Cristo na sua própria cultura.

Para o umbandista estrito, Jesus Cristo é apenas um orixá entre outros. Para o

umbandista católico, ou seja, no caso, freqüente no Brasil, de dupla pertença,

Cristo é muito mais: é um ser divino, venerado pessoalmente e

exclusivamente. Na imagem umbandista de Cristo, deparamos ao mesmo

tempo com uma grande diversidade e com um certo entrelaçamento, conforme

se trate, no resultado sincrético, do filho primogênito do Pai Olorum, do filho

humano normal de Maria e José (sem concepção virginal), do maior médium

ou do maior mediador espiritual; ou, afinal, do mestre divino morto na cruz e

ressuscitado ao terceiro dia e elevado ao céu. Jesus crucificado, o Senhor do

Bomfim ou da Boa Morte, é visto como o chefe supremo da umbanda. A sua

função é de destruir os males provocados pelos ritos negativos da quimbanda.

Ele é também legislador e suas diretrizes devem ser seguidas. Depois que

todos os seres humanos fizerem penitência e cumprirem as obrigações

vinculadas a essa, alcançarão também todos a salvação, que espera a

humanidade inteira como o seu verdadeiro destino (HIGUET, 2005, p. 74).

271 As menções que o teólogo faz ao corpo chamam atenção, pois a questão parece não estar completamente ausente

de seu pensamento. O “Si” para Tillich é sempre um “Si” encarnado, e nesse sentido, pode-se dizer que é por meio

do corpo que a consciência se volta para as coisas e torna possível ao ser humano perceber o mundo e inclusive o

sentido incondicional. Da mesma forma, o ponto de partida da fenomenologia crítica é o mundo da vida, solo de

toda existência e vivência concreta. Mas a questão do corpo continua secundária no pensamento do teólogo.

Embora o aspecto existencial presente nas últimas versões do método chame atenção para a necessidade de se

olhar as essências na existência, a questão da corporeidade não foi explicitada no escopo maior de sua proposta

metodológica. Esta pesquisa infere que a questão da corporeidade é secundária em Tillich, mas não ausente,

permanecendo uma questão implícita também em sua fenomenologia crítica. No entanto, para saber como o autor

lida com essa questão propriamente dita seria necessário ainda uma investigação mais detalhada sobre o tema que

escapa dos alcances dessa pesquisa.

140

No exemplo da árvore como símbolo, ela pode dessa forma, ter variações diferentes

e apontar para sentidos diferentes, como por exemplo, a adoração das árvores na Grécia

homérica em que “Havia muitos poderes divinos identificados com árvores”272 (TILLICH,

1965, p. 16). Entretanto, embora haja uma especificidade corporal-pessoal na experiência, há

também uma universalidade no fenômeno que permite ultrapassar os limites da linguagem

comum e se tornar simbolicamente reconhecível entre pessoas e comunidades distintas. Isso

permite compreender as muitas variações do simbolismo universal da árvore presente em

diversas culturas e narrativas sagradas, como a árvore Yggdrasil273, um dos mais antigos

registros de árvore cósmica nos mitos escandinavos, ou a árvore do êxodo no Sinai presente

tanto no judaísmo quanto no cristianismo e islamismo

A árvore neste contexto não é apenas material, mas é também força simbólica de

ampliação de sentido. Dessa forma, seu caráter simbólico não está limitado por regras ou

normas como a linguagem comum, mas abre níveis da realidade que permitem seu

reconhecimento dentro de uma universalidade que de outra maneira permaneceria inacessível.

Novos níveis da realidade são abertos, e a árvore como um segmento da realidade encontra-se

na esfera do sagrado. Se o sagrado é compreendido como o sentido incondicional que se

apreende por meio da árvore, diz-se algo não somente sobre a noção de sagrado na perspectiva

do sujeito, mas também sobre o próprio sujeito ou comunidade que se reconhece no símbolo da

árvore. Nesse sentido, é possível identificar não apenas uma modalidade do sagrado mediante

sua revelação na árvore, mas também um modo de ser do sujeito e seu relacionamento com o

mundo da vida274.

Para Tillich, esse é o papel do símbolo, pois “Um símbolo religioso usa o material da

experiência cotidiana para falar de Deus, mas o faz de tal forma que simultaneamente afirma e

nega o sentido comum do material que usa. Todo símbolo religioso se nega a si mesmo em seu

sentido literal, mas se afirma em seu sentido autotranscendente” (TILLICH, 2011, p. 305).

Dessa forma, embora a árvore seja um material da experiência cotidiana, também carrega um

272 There were many divine powers identified with trees.

273 Sobre a árvore Yggdrasil veja: THORPE, Benjamin (Trad.) The Poetic Edda. Michigan: The Northvegr Press,

2004; ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 223-224.

274Severino Croatto afirma que o “comportamento do ser humano religioso é o espelho de sua experiência do

sagrado. Tal comportamento manifesta-se em seus símbolos, mitos e ritos, que tem relação com sua vida concreta

e história” (CROATTO, 2004, p. 57).

141

sentido simbólico autotranscendente. Em outras palavras, há um valor existencial na árvore que

permite a própria comunidade se reconhecer neste símbolo.

O símbolo da árvore sagrada aponta para a natureza como meio da revelação. Este

símbolo, como por exemplo, no mito do Éden, “demonstra o poder da vida vegetativa,

representado pelas árvores e pelo significado que tinham para Adão. Eram portadoras de

poderes divinos, tais como a vida eterna e o conhecimento das forças do bem e do mal em todas

as coisas” (TILLICH, 1992a, p. 131). Para o sujeito que percebe a dimensão sagrada na árvore,

o símbolo torna-se expressão da apreensão da realidade, os aspectos físicos da árvore se

constituem como as mais genuínas expressões da presença divina que constituem um modo de

ser, fazer e viver a religiosidade.

Um exemplo disso é o cedro, árvore sagrada para o povo Mbyá no Paraguai. Cadogan

(1971, p. 23) comenta que o cedro é uma árvore sagrada e também fonte de madeira utilizada

para fabricar tambores, canoas e urnas para enterros. “o cedro ou ygary é uma árvore sagrada

receptáculo de um ‘fluido vital’ que permite aos heróis culturais dos distintos grupos criar de

seus galhos e cápsulas quatis e cervos; e o xamã mbyá comunicar-se com os deuses através de

uma criança cujo esqueleto se deposita em um cofre de madeira de ygary, prestando-lhe culto,

alma que as vezes volta a encarnar-se”275 (CADOGAN, 1971, p. 26-27). Nesse sentido, o sujeito

mbyá está envolvido com a árvore tanto pelo caráter sagrado da árvore quanto por sua

importância prática. A pessoa está existencialmente envolvida com o cedro, símbolo sagrado a

quem se volta com reverência e de onde retira o material para outros usos no cotidiano do

mundo da vida.

Isso implica também que os elementos que compõem o universo simbólico de cada

forma religiosa, devem ser encarados dentro de seu contexto específico, isto é, no contexto de

sua experiência revelatória. Fenomenologicamente falando, na aproximação com o fenômeno

religioso, os símbolos devem ser encarados tais como ‘‘se apresentam’, sem a interferência de

preconceitos e explicações negativas ou positivas” (TILLICH, 2011, p. 119). Os símbolos

religiosos que configuram a linguagem religiosa de um determinado fenômeno devem ser

275El cedro o ygary es un árbol sagrado receptáculo de un “fluido vital” que permite a los héroes culturales de los

distintos grupos crear de sus gajos y cápsulas coatíes y ciervos; y al chamán mbyá comunicarse con los dioses

mediante el alma de un párvulo cuyo esqueleto se deposita en un cofre de madera de ygary, rindiéndole culto,

alma que a veces vuelve a encarnarse.

142

compreendidos não a partir de um padrão exterior, mas neles mesmos dentro do seu contexto,

de tal forma que cada grupo tenha a validade de seus símbolos mantidas.

A linguagem religiosa além de ser o produto de uma comunidade, serve também para

expressar a compreensão do mundo presente nela. Para Tillich, sem a linguagem, a fé seria

cega, e “Aqui se encontra a importância primordial de uma comunhão de fé. É só como membro

de uma comunhão que o homem pode obter um conteúdo para sua preocupação incondicional”

(TILLICH, 1985, p. 20). Comunidade e linguagem estão interligadas, de modo que as muitas

linguagens religiosas, assim como os diferentes modos de discurso, pertencem a uma forma de

vida específica e se tornam portadores de uma lógica própria276.

A revelação enquanto experiência que se dá a partir das formas concretas e culturais

permite entender que contextos culturais diferentes podem gerar símbolos religiosos diferentes.

“[...] existem elementos da experiência da sacralidade que sempre estão presentes si é que

verdadeiramente se experimenta a sacralidade. Estes elementos, quando predominam em uma

religião, criam um estilo religioso particular”277 (TILLICH, 1992b [1966], p. 436). Cada grupo

religioso possui, portanto, um estilo religioso particular caracterizado por uma linguagem

simbólica e uma lógica própria. Nesse sentido, como afirma o teólogo: “Os diferentes tipos de

religião expressam os diferentes poderes de ser pelos quais os homens são tomados” (TILLICH,

2010, p. 166). Desta forma, os contextos religiosos expressam os diferentes poderes de ser do

humano. O sentido que se constrói nesses grupos deve ser entendido dentro de seus jogos de

linguagens e não podem ser reduzidos a conceitos rígidos e unívocos, isto é, torna-se necessário

uma visão que parta de dentro.

Os símbolos religiosos mantém seu valor simbólico para aquele que reconhece neste

símbolo o seu próprio ser. Sua subsistência ou morte vai depender de como o grupo percebe o

símbolo ainda como portador de sentido. Sendo assim o símbolo pode desaparecer quando a

situação do grupo mudar, e isso pode dar origem a um novo estilo religioso. “Ao mudar o

contexto, os símbolos, se não forem recriados, perdem o sentido e se tornam obsoletos e vazios

276 Keith Ward, comentando sobre a palavra Deus, afirma que esta palavra é usada por grupos de pessoas e

representa uma forma de ver o mundo, enquanto que para outras comunidades ela pode não fazer sentido. “A

palavra “Deus” não se refere a um objeto sobrenatural; entretanto, Deus pode existir. Eu digo ‘pode’ nesse caso,

simplesmente, porque há comunidades que não usam a palavra ou especificamente a excluem. Elas têm formas de

vida e práticas próprias, maneiras específicas de lidar com situações comuns dos seres humanos, finitos,

dependentes e incertos. Essas formas não têm como foco um ‘objeto’ de devoção, adoração, anseio e amparo, pois

sentem que pressupor tal objeto rebaixaria a humanidade de algum modo” (WARD, 2009, p. 281).

277 [...] there are elements in the experience of the Holy which are always there, if the Holy is experienced. These

elements, if they are predominant in one religion create a particular religious type.

143

de significado. Com isso, novos símbolos precisam emergir para que as experiências religiosas

possam conferir sentido às diferentes gerações e contextos culturais” (RIBEIRO, 2012, p. 231).

Com isso, tem-se que o objetivo da descrição fenomenológico-crítica foi alcançado, isto

é, a descrição do fenômeno religioso em seus aspectos essenciais e objetivos. A dimensão

subjetiva do sagrado é descrita e mantida assim como as formas concretas e culturais que

moldam o fenômeno. Estas formas, consideradas como modos simbólicos de representação, são

tomadas como constituidoras do universo simbólico da experiência religiosa, e se apresentam

como uma resposta oferecida a experiência humana e perguntas existenciais de quem as

experimenta. A aproximação ao fenômeno religioso se dá numa postura em que são suspensas

as afirmações sobre sua verdade e realidade efetiva, buscando compreender e descrever os

sentidos que se manifestam nele, evitando que o fenômeno se torne vítima de uma rejeição fácil

e injusta. Dessa forma, “por mais imperfeito e distorcido que o evento revelador seja

efetivamente. Julga-se cada exemplo de revelação segundo os termos deste conceito

fenomenológico” (TILLICH, 2011, p. 121). E através dessa abordagem é possível oferecer um

quadro do fenômeno religioso em que são observadas suas heranças culturais, suas formas

simbólicas e seus horizontes de sentido, de tal modo que sua expressão religiosa seja percebida

no círculo do fenômeno religioso como parte integrante e expressiva.

Com a fenomenologia crítica é possível, portanto, um retorno ao originário da

experiência religiosa e a descrição dos elementos constitutivos bem como a categorização das

formas que compõem a experiência religiosa. As formas são extraídas da cultura e elevadas à

categoria de símbolo. Nesse sentido, elas estão existencialmente envolvidas com a pessoa e

tornam-se organizadoras da vida humana. A fenomenologia crítica percorre assim a experiência

religiosa desde aquilo que é originário no fenômeno até sua efetivação nas dimensões concretas

da vida. Intuitiva-descritivamente se tem a experiência do sentido último e incondicional como

revelação do sagrado aquilo que é essencial no fenômeno e que está envolvido com dimensões

profundas do ser humano. Existencial-criticamente é possível identificar as formas por meio

das quais a experiência foi possível, consideradas como formas culturais presente no mundo da

vida do sujeito e que adquirem um valor existencial.

3.4. A atitude fenomenológica no reconhecimento da religião como modos

simbólicos de representação e o valor existencial do símbolo religioso

144

O objetivo deste tópico é entender de que maneira a teoria do símbolo de Tillich pode

ser compreendida em sintonia com o seu método fenomenológico-crítico. O teólogo afirma que,

“Nada que seja inferior a símbolos e mitos pode expressar aquilo que nos toca

incondicionalmente” (TILLICH, 1985, p. 38). A teoria do símbolo é uma contribuição

fundamental de Tillich para a análise da religião. Eliade comenta que Tillich “escreveu sobre o

simbolismo religioso com uma perspicácia única” (ELIADE, 1976, p. 8). A importância do

símbolo está em seu poder de expressar o sagrado, ele sempre quer dizer muito mais do que

expressa. “Seja acreditando em uma pedra sagrada ou em um Espírito pessoal omnipotente

(sic), a intenção da fé sempre transcende o objeto da fé. No abismo do Incondicional tanto um

quanto outro desaparecem”278 (TILLICH, 1973 [1925], p. 79). O sinal universal do poder

simbólico, de acordo com o teólogo, é a qualidade extática, isto é, o objeto está imbuído do

sentido do incondicional, algo que uma coisa pode ter ou receber por intenção subjetiva. Os

símbolos, portanto, revelam níveis da realidade que a linguagem não simbólica desconhece, a

poesia, a arte e a música, por exemplo, revelam níveis da realidade que não poderiam ser

percebidos de outra forma, nesse sentido, nem tudo na realidade pode ser compreendido pela

linguagem das ciências matemáticas (TILLICH, 2009, p. 98-100).

A maior função do símbolo é “apontar além deles mesmos, em direção à força que eles

apontam, para abrir níveis de realidades que de certo modo estão fechadas, e para abrir níveis

da mente humana que de certo modo ainda não estão conscientes”279 (TILLICH, 1955, p. 107).

Na dinâmica do fenômeno religioso, o símbolo aponta para aquilo que excede as formas de

sentido racionais e permite que o objeto para o qual aponta permaneça sempre em aberto e

irredutível, isto é, o sentido do símbolo religioso termina no indeterminado, no abismo do

sentido. Existe um mistério que o símbolo revela, mas que também esconde, e seguindo as

intuições de Tillich, a religião encontra aqui sua forma própria de expressão. Através da

linguagem simbólica é possível tornar “presente o ausente, sem transformar o ausente em

presente” (MARASCHIN, 1984, p. 123). O sentido incondicional percebido pela consciência

278 Whether a sacred stone or a personal omnipotent Spirit is believed in, the intention of Faith Always transcends

the object of faith. In the abyss of the Unconditional the one as well as the other disappears.

279 To point beyond them-selves, in the power of that to which they point, to open up levels of reality which

otherwise are closed, and to open up levels of the human mind of which we otherwise are not aware.

145

na experiência religiosa é representado no símbolo, muito embora continue mantendo seu

caráter incondicional.

Outro aspecto importante do símbolo é sua relação com a realidade histórica e cultural.

Na conferência sobre “O significado da história das religiões para um teólogo sistemático” o

autor afirma que “os símbolos religiosos não são pedras caídas do céu. Eles possuem suas raízes

fincadas na totalidade da experiência humana, incluindo os limites particulares em todas suas

manifestações, tanto políticas como econômicas”280 (TILLICH, 1992b [1966], p. 441). Para o

autor, o simbolismo religioso pode ser usado como expressão da doutrina sobre o ser humano,

como uma linguagem antropológica, não no sentido empírico do termo, mas no sentido da

doutrina sobre o ser humano em sua natureza.

Os símbolos religiosos nos comunicam algo a respeito da maneira em que os

homens deveriam analisa-los, a saber, no contexto de sua genuína natureza.

Um bom exemplo se encontra no debate sobre a ênfase que o cristianismo

coloca sobre o pecado, e a falta do mesmo no Islam. Isso demonstra uma

diferença fundamental na auto-interpretação de duas grandes religiões e

culturas que é, ao final, a dos homens como tais281 (TILLICH, 1992b [1966],

p. 441).

As formas por meio das quais as pessoas apreendem e compreendem seu mundo são

extraídas da realidade histórica e cultural. A religião se expressa justamente mediante estas

formas, e nesse sentido, os símbolos religiosos estão existencialmente envolvidos com a pessoa

e tornam-se organizadores da vida humana, como afirma Eliade “O símbolo religioso é capaz

de revelar a modalidade do real ou a estrutura do mundo que não está evidente no nível da

experiência imediata” (ELIADE, 1959, p. 98). Outro exemplo concreto disso, segundo Tillich

(2011, p. 131), são os ritos e símbolos sexuais de muitas religiões cuja riqueza simbólica o

protestantismo arrisca perder. Para o teólogo, os ritos e símbolos sexuais não revelam o sexual

em si mesmo, mas o mistério que através do sexual manifesta sua relação com as pessoas de

forma especial, abrindo níveis da realidade e da mente que de outras formas não seriam

possíveis. O protestantismo desenvolveu uma extrema desconfiança deles, esquecendo dessa

forma o caráter mediador do sexo em experiências reveladoras.

280 Religious symbols are not stones falling from heaven. They have their roots in the totality of human experience

including local surroundings, in all their ramifications, both political and economic.

281The religious symbols say something to us about the way in which men have understood themselves in their

very nature. The discussion about the emphasis on sin in Christianity and the lack of such emphasis in Islam is a

good example. This shows a fundamental difference in the self-interpretation of two great religions and cultures,

of men as men.

146

Mas as deusas do amor são em primeiro lugar deusas, manifestando poder e

dignidade divinos, e só em segundo lugar representam a esfera do sexual em

seu sentido último. O protestantismo ao rejeitar o simbolismo sexual, não só

se arrisca a perder muita riqueza simbólica, mas também a separar a esfera

sexual do fundamento do ser e sentido no qual está enraizada e do qual procede

sua consagração (TILLICH, 2011, p. 131, nota 4).

Nesse sentido, o símbolo se apresenta como porta de acesso à experiência religiosa e o

principal recurso para a fenomenologia crítica desenvolver sua análise. Os símbolos que

compõem o universo simbólico das formas religiosas usam o material do contexto em que estão

inseridos para se expressarem, e portanto, carregam um sentido histórico e cultural ao mesmo

tempo em que apontam para além deles. A fenomenologia crítica foi elaborada para dar conta

de ambos os polos dessa relação, de modo que, por meio dela é possível tanto identificar os

símbolos que compõem um fenômeno religioso, estudar sua morfologia, evidenciar a situação

histórica e cultural que deu origem a tais símbolos sem com isso esvaziá-lo de seu poder

simbólico. Sendo assim, os fenômenos religiosos são considerados, em perspectiva

fenomenológica, como modos simbólicos de representação, e desempenham um papel

fundamental na abordagem fenomenológica-crítica.

Dessa forma, a teoria do símbolo quando compreendida no escopo maior da

fenomenologia crítica torna-se parte elementar de um percurso de análise da religião que vai

daquilo que é originário na experiência religiosa, isto é, seu caráter sagrado, até a efetivação

dessa experiência nas formas concretas do mundo da vida em seus aspectos históricos e

culturais. Nesse sentido, as formações dos grupos religiosos não se limitam a fatores puramente

socioeconômicos e políticos e por isso mesmo não podem ser compreendidos apenas pelas

perspectivas de caráter mais positivista das ciências. O universo simbólico de um fenômeno

religioso não se limita a um sistema de signo que pode ser decifrado mecanicamente como se

decifra um código. Os símbolos envolvem uma dimensão de profundidade das pessoas que

passam a reconhecer nos símbolos o seu próprio poder de ser. Estes símbolos estão

existencialmente envolvidos com o sujeito que reconhece sua dimensão sagrada e através do

qual expressa uma perspectiva de como a vida é. Os símbolos não expressam apenas um

significado, mas a relação do significado com a fonte de sentido, por isso para o autor, “Nunca

se deveria dizer ‘apenas um símbolo’, mas sim: ‘nada menos que um símbolo’” (TILLICH,

1985, p. 33).

Tillich (2011, p. 247) comenta que para muitas pessoas a noção de “simbólico”

apresenta a conotação de irreal. Isto é uma consequência da confusão entre signo e símbolo e

em parte também a identificação da realidade com a realidade empírica, com todo o âmbito de

147

coisas e eventos objetivos. Ao contrário dessa perspectiva que tende a recortar a dimensão de

sentido aberta pelo símbolo, o autor afirma que “uma interpretação simbólica é genuína e

necessária. Ela amplia e não diminui, a realidade e o poder da linguagem religiosa. Ao fazer

isto, realiza uma função importante” (TILLICH, 2011, p. 247-248). Os seres humanos vivem

num mundo de sentido, e esse sentido é muito mais profundo daquilo que se pode ver ou ouvir,

e essa dimensão deve ser valorizada. A sensibilidade com que Tillich trabalha a linguagem

simbólica e a proposta de explorar os fenômenos religiosos como modos simbólicos de

representação em perspectiva fenomenológica permite situar essa metodologia tillichiana no

horizonte de uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso.

3.5. A fenomenologia crítica como abordagem compreensiva do fenômeno

religioso

A fenomenologia desde que passou a desfilar no cenário acadêmico encontrou

interlocutores distintos em diversos campos do conhecimento. O próprio Husserl, o pai

fundador dessa escola, percebeu que: “A fenomenologia se dá em nossas exposições como

ciência que está em seu início. Só o futuro há de ensinar o quanto dos resultados das análises

aqui tentadas é definitivo. Com certeza, muito daquilo que descrevemos terá de ser descrito de

maneira diferente sub specie aeterni” (HUSSERL, 2006, p. 221, grifo do autor). Pode-se dizer

ainda em conformidade com Husserl que é possível que a fenomenologia esteja na atualidade

interessando mais a outras áreas do conhecimento do que a própria tradição filosófica, e nesse

sentido, ela se constitui como um horizonte sempre aberto para novas possibilidades. É neste

horizonte que o pensamento de Paul Tillich pode ser situado, não como um representante dessa

escola, mas como um campo fecundado pela fenomenologia e que gerou a partir daí novas

possibilidades do método.

A proposta metodológica de Tillich de uma fenomenologia crítica apresenta-se como

fundamental para um novo processo de análise do fenômeno religioso que vem ganhando força

na atualidade. Este processo de análise voltado para um olhar mais compreensivo do fenômeno

religioso e com interesse em questões mais subjetivas da vida tem sido fortemente acolhido no

âmbito acadêmico. Como afirma Souza (2014, p. 98) “A nova hermenêutica, como sugerimos,

proposta a partir de Paul Tillich, Paul Ricoeur e Mircea Eliade, rompe com a antiga

148

hermenêutica ao abrir novos caminhos de significação para o símbolo e novos horizontes a

partir do mito religioso e da vivência espiritual”.

De acordo com Filoramo e Prandi (1999, p. 8), após a crise do positivismo no início do

século XX, surge pela primeira vez o problema epistemológico básico das ciências das

religiões, constituído pela alternativa “explicar ou compreender a religião”. O modelo da

explicação parte do pressuposto de que a religião, enquanto distinta do objeto de fé, é uma

manifestação antropológica e histórica que deve ser submetida aos métodos empíricos da

pesquisa crítica. Nesta perspectiva, o dado religioso pode ser progressivamente desvelado e

reconduzido a dados elementares subjacentes nos sentidos sociológico, psicológico,

antropológico, etc. cujos pesquisadores devem suprimir a própria subjetividade e garantir a

validade e o uso dos resultados.

Entretanto, as religiões possuem a compreensão de ser algo mais do que um fenômeno

puramente histórico e empírico (HOCK, 2010, p. 70). Ainda que seja possível partir de

pressupostos técnicos e racionalistas para olhar o dado religioso, é possível que esse modo de

olhar seja insuficiente para compreender este “algo mais” das religiões. Eliade afirma que

embora a religião seja também uma coisa social, linguística, econômica, etc, “Querer delimitar

este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela

linguística e pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de

único e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado” (ELIADE, 2010, p. 1). Nesse sentido,

limitar a compreensão de um fenômeno religioso a teorias explicativas é reduzir a multifacetada

“natureza” da vida religiosa. As abordagens, sejam elas psicológicas, sociais, teológicas,

biológicas, etc. devem ser encaradas como partes de um complexo mais amplo e que são

complementares na busca pela compreensão dos fenômenos religiosos e, portanto, capazes de

explorar apenas dimensões específicas de um fenômeno.

É neste cenário que a fenomenologia crítica de Tillich pode ser compreendida como

uma proposta de análise compreensiva do fenômeno religioso. Um dos aspectos que Tillich

valorizou no método fenomenológico foi justamente seu caráter compreensivo e descritivo,

como o próprio teólogo afirma, “Ele mostra, com razão, que as coisas que se pretende explicar

devem ser primeiramente compreendidas em sua particularidade antes de executar as tentativas

de explicação genética, dessa forma, a descrição deve preceder a explicação” (TILLICH, 2001

[1920], p. 380). Tillich propõe uma ferramenta que rompe com os olhares explicativos e

reducionistas da experiência religiosa, e nesse sentido, o caráter compreensivo e descritivo do

149

seu método pode ser visto também como uma implicação da fenomenologia em seu

pensamento.

A experiência religiosa para Tillich se dá nesse direcionamento intencional da

consciência para o sentido incondicional, de modo que para acessar a essência mesma da

religião torna-se necessário um método que não reduza a religião apenas a mais uma função da

realidade. Aqui se concentra a crítica do teólogo aos métodos reducionistas do fenômeno

religioso como o empírico, supranaturalista e o especulativo que são incapazes de alcançar a

essência mesma do fenômeno. Em Tillich há uma valorização do caráter irracional da

experiência religiosa, como bem afirmou o autor, a objetividade não é suficiente e carece de

outro âmbito. Este âmbito subjetivo da religião pode ser descrito como a mais importante tarefa

da ciência da religião e da teologia (TILLICH, 1983 [1917], p. 102).

O fenômeno religioso nessa perspectiva é compreendido a partir das próprias

experiências com o sagrado. De acordo com o autor, “A santidade é um fenômeno

experienciado; ela é suscetível à descrição fenomenológica. Por conseguinte, é uma ‘porta de

acesso’ cognitiva muito importante para a compreensão da natureza da religião, porque é a base

mais adequada de que dispomos para a compreensão do divino” (TILLICH, 2011, p. 223). Em

perspectiva fenomenológica Tillich afirma a irredutibilidade do sagrado e propõe a intuição-

descritiva como o método para abordá-lo. Na experiência religiosa, a pessoa como um todo

encontra-se envolvida. Nesse sentido a experiência religiosa envolve também sentimentos

profundos de temor e admiração, alegria e tristeza, etc. Essas emoções estão relacionadas com

os símbolos religiosos que podem adquirir diversas formas nas diferentes culturas.

Há nesta abordagem uma preocupação com as dimensões mais profundas da experiência

religiosa que não deve ser apagada por explicações redutivas e tampouco limitadas a algo

diferente. Esta abordagem compreensiva, em contraponto a abordagem explicativa ou

reducionista, dirige-se à experiência germinal, livre e criadora que está na base das produções

espirituais e culturais. O objetivo é compreender e descrever o a priori de realidade do objeto,

isto é, a experiência religiosa vivida sem limitá-la a algum ângulo específico, mas “considerá-

lo em si mesmo, naquilo que contém de irredutível e de original” (ELIADE, 2010, p. 2).

Este tipo de abordagem, como descreveu Ricoeur (1977, p. 34) está preocupada com o

próprio objeto e apresenta-se na forma de uma vontade “neutra” de descrever e não de reduzir.

“Reduz-se explicando pelas causas (psicológicas, sociais, etc), pela gênese (individual,

histórica, etc.), pela função (afetiva, ideologia, etc.). Descreve-se extraindo a visada (noética) e

150

seu correlato (noemático): o algo visado, o objeto implícito no rito, no mito e na crença”

(RICOEUR, 1977, p. 34, grifo do autor). A análise se volta para a estrutura da consciência

religiosa e procura reconhecer de maneira intuitiva a essência do fenômeno. Dessa forma, torna-

se possível preservar aquilo que Ricoeur chamou de a “verdade dos símbolos” (RICOEUR,

1977, p. 35) sem esvaziá-los de seu valor “transcendente” na experiência religiosa.

A fenomenologia crítica de Tillich não pressupõe uma definição rígida do que seja a

religião, limitando-a à crença em seres e forças sobrenaturais ou a determinadas práticas e

comportamentos associados a elas. Como o próprio teólogo afirmou, “[...] a relação com deuses

não será um elemento necessário na definição de religião que se pretenda usar. E dando um

passo maior, é possível ainda incluir enquanto religião, aqueles movimentos seculares que

exibem traços decisivos das religiões propriamente ditas, ainda que ao mesmo tempo,

demonstrem profunda diferença”282 (TILLICH, 1988 [1963], 292-293).

Dessa forma, a fenomenologia crítica não se limita apenas ao pensamento de Tillich,

assim como tampouco está limitada a análise de conceitos ou símbolos cristãos. Seu método

que foi desenvolvido desde os anos 1920 e que esteve presente durante todo o percurso

acadêmico do autor, tanto nos contextos filosófico como teológico, pode ser aplicado para além

do pensamento de Tillich, isto é, aplicado para a análise dos fenômenos religiosos em sua

diversidade e pluralidade283. A abordagem fenomenológica se volta para a diversidade dos

símbolos religiosos como verdadeiros em última instância, evitando como quis o teólogo uma

rejeição fácil e injusta como muitas vezes tem acontecido nas histórias das religiões (TILLICH,

2011, p. 119).

O autor em sua última conferência intitulada “O significado da história das religiões

para um teólogo sistemático” proferida em 1965 afirma que “‘O significado da história das

Religiões para o teólogo sistemático’, é uma teologia de tal história das religiões na qual exista

282[...] the relation to gods is not a necessary element. And one can even take the further step of subsuming under

religion those secular movements which show decisive characteristics of the religions proper, although they are at

the same time profoundly different.

283 Um exemplo disso é a pesquisa de John Geeverghese Arapura intitulada Ensaios Hermenêuticos sobre tópicos

do Vedāntic (Hermeneutical Essays on Vedāntic Topics) em que o autor analisa os conceitos de transcendência e

transcendente e a orientação estrutural da consciência no contexto dos Vedāntic a partir da fenomenologia crítica

de Tillich. De acordo com Arapura “A aplicação promete entregar-nos a verdade de que a transcendência é a

orientação estrutural essencial da consciência. Mas usaremos a palavra "consciência" no sentido duplo que seu

equivalente em sânscrito, cit, garante, ou seja, tal como é entendido na linguagem diária, empírica, bem como

extraordinariamente em um sentido místico” (ARAPURA, 1986, p. 43, grifo do autor).

151

um equilíbrio entre a valorização positiva da revelação universal e a crítica”284 (TILLICH,

1992b [1966], p. 435). Tillich novamente chama atenção para os elementos universais e

concretos da experiência religiosa, que de acordo com o teólogo, é uma tensão que deve ser

mantida em toda análise do fenômeno religioso. Tillich nesta conferência também declarou que

se tivesse tempo, teria elaborado uma nova Teologia Sistemática em diálogo com toda a história

das religiões. Embora Tillich não tenha afirmado explicitamente qual método seguiria para isso,

é possível deduzir que a postura intuitiva e crítica estariam presentes. Como afirmou no final

da conferência: “Trata-se de formular as experiências básicas que são universalmente válidas

em termos que também o sejam. A universalidade de uma declaração religiosa não está numa

abstração que inclui tudo, e que destruiria a religião como tal, mas nas profundidades de toda

religião concreta”285 (TILLICH, 1992b [1966], p. 441).

A luz da fenomenologia crítica, o valor da experiência do sujeito com o sagrado é

mantido e compreendido como uma experiência de natureza última e que encontra suas raízes

nas dimensões profundas e fundamentais do ser humano. Esta experiência por sua vez se efetiva

a partir da interação com a cultura, e nesse sentido, há uma estrita relação entre as manifestações

religiosas e os sistemas sociais e culturais, momento em que a religião adquire seu caráter

concreto. O fenômeno religioso, portanto, carrega uma dimensão empírica ao passo que está

fundamentado em algo que transcende a situação temporal, a tensão entre estes dois polos deve

ser mantida e evidenciada, este é o caminho sugerido pela fenomenologia crítica.

Terrin comenta que antes das explicações está a vida e a criação incessante de sentido,

antes há algo como a religião, o amor, a vida em toda a sua expansão e só depois há uma

explicação destes fenômenos, é preciso, portanto, “respeitar o mundo em que se vive para

compreendê-lo e não se colocar logo numa atitude crítica ou de ‘suspeita’” (TERRIN, 1998, p.

34). Em outras palavras, existe um “pré-existente” no fenômeno que é ignorado pelas ciências

mais rígidas, este mundo ante-predicativo é anterior a qualquer juízo, e o rigor de uma

abordagem compreensiva está em começar justamente com o mundo da vida, que é solo das

possibilidades das percepções humanas e de construção de sentido de mundo. “Todo o universo

da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor,

284 “The Significance of the History of Religions for the Systematic Theologian,” is a theology of the history of

religions in which the positive valuation of universal revelation balances the critical one.

285 But it tries to formulate the basic experiences which are universally valid in universally valid statements. The

universality of a religious statement does not lie in an all-embracing abstraction which would destroy religion as

such, but it lies in the depths of every concrete religion.

152

apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa

experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 3).

Tillich pretende evitar reducionismos metodológicos e, portanto, propõe um método que

valorize o caráter irredutível do sagrado e a dimensão subjetiva da experiência religiosa. Com

isso, Tillich também deixa uma inspiração tanto para as ciências da religião como para a

teologia, que é a importância de uma abordagem mais compreensiva e que leve em consideração

o valor da experiência do sujeito com o sagrado bem como o contexto histórico e cultural de

onde os símbolos são formados. De acordo com Tillich (1962, aula 9) o método não pode ser

monolítico e muito menos ignorar a complexidade que envolve a realidade humana. “Foi um

fracasso quando algumas pessoas tentaram entender a vida espiritual do homem apenas com

um método, ao invés de ver que a estrutura complexa da realidade exige uma estrutura complexa

do método. E o que eu lhe dei é uma estrutura complexa do método”286 (TILLICH, 1962, aula

9).

A crítica de Tillich às abordagens reducionistas, tal como visto no segundo capítulo, e

sua proposta de olhar para os símbolos religiosos considerando seu caráter complexo colocam

a fenomenologia crítica no horizonte de uma abordagem compreensiva. A sensibilidade com

que Tillich trata a experiência religiosa se apresenta ao profissional de teologia e ciências da

religião como um convite para olhar este fenômeno sem o intuito de explicá-lo, mas de

compreender, descrever e interpretar seus símbolos tais como se apresentam. A fenomenologia

crítica chama atenção para aquilo que é irredutível no fenômeno religioso bem como suas

formas simbólicas de representação, preocupado em manter vivo a tensão entre aquilo que é

essencial e ao mesmo tempo existencial, profundo e concreto, substancial e formal. Trata-se,

portanto, de um convite para perceber a essência paradoxal do fenômeno religioso na

diversidade e pluralidade de suas expressões.

Considerações Finais

286 It was a failure, when some people tried to understand man's spiritual life only with one method, instead of

seeing that the complex structure of reality demands a complex structure of the method. And what I gave you is

a complex structure of the method.

153

Como dito anteriormente, o objetivo desse capítulo foi analisar as implicações da

fenomenologia no pensamento de Tillich e as possibilidades de aplicação de seu método para

análise do fenômeno religioso. Para isso foram dados cinco passos importantes. O primeiro

passo demonstrou que as implicações da fenomenologia de Husserl no pensamento de Tillich

aparecem especialmente na formulação dos modos em que religião e cultura se relacionam.

Nesse sentido, quando a consciência se dirige para a substância da cultura se está diante da

religião e quando a consciência se dirige para as formas da cultura se está diante da cultura. A

unidade imprescindível entre religião e cultura ou seu correlato forma e substância desempenha

um papel fundamental no desenvolvimento da teologia da cultura. A experiência religiosa é

mediada pela cultura, e só é possível ser expressa por este meio. A experiência religiosa é

sempre composta por dois polos correlacionados, o da consciência imediata do incondicional e

a forma concreta em que a experiência recebe seu conteúdo.

No segundo passo foi possível perceber que a unidade interna dos sentidos, composta

pela polarização forma e substância, exige também um método capaz de preservar esta

polarização e manter viva a tensão. Nesse sentido, na medida em que o elemento intuitivo-

descritivo se volta para a dimensão substancial da experiência religiosa, o elemento existencial-

crítico se volta para o aspecto concreto e cultural. Por meio deste método, tanto o caráter

irracional e profundo da experiência quanto o aspecto concreto e existencial são valorizados e

preservados.

No terceiro passo foi possível analisar como a fenomenologia crítica pode ser aplicada

para análise do fenômeno religioso. O exercício fenomenológico com o simbolismo universal

da árvore sagrada demonstrou que ao se aproximar do fenômeno religioso o primeiro elemento

que chama atenção é o caráter revelatório do evento, isto é, a experiência do sujeito com o

sagrado. Posteriormente é possível identificar nessa experiência uma forma concreta através da

qual a consciência possibilita a mediação da revelação. Por último, um processo de

simbolização dessa forma concreta que passa a adquirir um valor existencial para o sujeito ou

comunidade que reconhece sua dimensão sagrada e torna-se parte estruturante de seu universo

simbólico religioso.

No quarto passo foi possível perceber a importância da teoria do símbolo religioso para

o método fenomenológico-crítico. O símbolo religioso expressa a relação fundamental do ser

humano com o sagrado. Essa relação possui um fundo de sentido que escapa das possibilidades

de análises reducionistas do fenômeno religioso. O símbolo aponta para o mistério, cuja razão

154

humana alcança apenas em partes. Essa maneira de entender o símbolo exige também uma

abordagem compreensiva que leve em consideração a questão do mistério que o símbolo

envolve.

No quinto e último passo foi possível perceber de que maneira a fenomenologia crítica

pode ser considerada como uma abordagem compreensiva do fenômeno religioso. O método

proposto pelo autor rompe com a hermenêutica convencional marcada pelo positivismo lógico

e que se apresenta como reducionista do fenômeno religioso. Em contraponto a isso, Tillich

propõe uma abordagem mais compreensiva e preocupada tanto com a dimensão profunda da

experiência quanto com o valor existencial dos símbolos para quem vive a experiência. Antes

das explicações, há um mundo como experiência que ajuda a intuir a realidade numa certa

direção, este mundo é solo de possibilidades de construção da própria ciência em todas as suas

esferas. É deste solo que a análise do fenômeno religioso deve partir.

155

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa, focada na fenomenologia crítica de Paul Tillich, originou-se da

necessidade de compreender como a fenomenologia aparece no pensamento desse autor. O

objetivo proposto foi analisar como o teólogo aplicou a fenomenologia na elaboração de sua

própria teologia e quais as implicações disso para o método e saber teológico. Com tal questão

em mente, a pesquisa constatou que a presença da fenomenologia em Tillich não se limita a sua

fenomenologia crítica apresentada na primeira parte da TS, e que o contato do autor com esta

escola remonta ao seu período revisionista, que vai do fim da Primeira Guerra Mundial até os

últimos anos da década de 1920. É neste contexto que Tillich conheceu a fenomenologia pura

de Edmund Husserl e onde foi possível identificar também em torno de quais elementos mais

especificamente o autor se aproximou dessa escola.

A recepção da fenomenologia no pensamento do autor se dá num primeiro momento a

partir da teoria da intencionalidade da consciência. No final da Primeira Guerra Mundial,

especialmente pelo seu envolvimento pastoral e político com os efeitos dela, o autor encontrava-

se na difícil tarefa de revisão de seu pensamento, e diante disso, a fenomenologia é recebida de

maneira especial como um espaço teórico a partir do qual ele pode preencher algumas de suas

lacunas. A teoria da intencionalidade da consciência será aplicada pelo autor na fundamentação

de seu conceito de religião, que passa a ser descrito a partir de então como uma intencionalidade

da consciência dirigida ao sentido incondicional. Isso significa que a noção de religião descrita

por Tillich neste período opera na dimensão da vida consciente e encontra seus fundamentos na

teoria do sentido em diálogo com a fenomenologia de Husserl.

Para Husserl, toda consciência é consciência de alguma coisa, e para Tillich, o sentido

incondicional também é algo de que se possa estar consciente, como um sentido percebido na

realidade do mundo da vida. O sentido incondicional, como referido, não é um ser absoluto ou

uma realidade externa ao ser humano, mas trata-se de um mistério percebido pela própria

consciência de que o sentido termina sempre no indeterminado. A presença das categorias

fenomenológicas como “direcionamento” e “visar” no pensamento de Tillich, e que são comuns

também em Husserl, permitiram identificar os contornos da aplicação que o teólogo fez da

teoria da intencionalidade na fundamentação do conceito de religião. Com isso, foi possível

perceber que a experiência religiosa para Tillich se caracteriza por um ato intencional de visar

o sentido incondicional por meio de algum segmento presente na realidade. A religião nestes

156

termos, seria possível somente por meio da cultura, isto é, pelas formas concretas postas pelo

espírito em sua criatividade no mundo da vida.

Da mesma forma, é possível concluir que o sentido incondicional é um elemento

presente na estrutura da consciência, e não uma dimensão histórica ao lado de outras. Na

experiência religiosa, o incondicional apresenta-se como o sagrado que se revela ao ser humano,

uma experiência que pode suceder em qualquer ato de significar o mundo. A consciência do

incondicionado, tanto no período revisionista como no posterior a ele, é descrita pelo autor

como o elemento necessário e em virtude do qual a experiência pode ser caracteriza como

religiosa. Nesse sentido, pode-se dizer que há no pensamento de Tillich uma teoria da

consciência religiosa intencional de recorte fenomenológico que demarca a recepção da

fenomenologia husserliana em Tillich. Essa é a primeira forma em que a fenomenologia aparece

no pensamento do autor.

O segundo elemento em torno do qual Tillich se aproxima da fenomenologia de Husserl

é a intuição das essências. Ao contrário da intencionalidade da consciência, este elemento

reaparece de maneira explícita em vários momentos posteriores ao período revisionista do

autor, o principal exemplo disso é a própria fenomenologia crítica na primeira parte de sua TS,

em cuja estrutura encontra-se o elemento intuitivo-descritivo como eixo fundante ao lado do

existencial-crítico.

A análise que a pesquisa realizou sobre a crítica de Tillich ao método fenomenológico

demonstrou que o teólogo valoriza o caráter rigoroso e radical do método na exigência do

esclarecimento de sentidos e percebe as possibilidades dessa contribuição na esfera das análises

do fenômeno religioso. Através do elemento intuitivo, o autor entende que seria possível intuir

eideticamente a essência e as qualidades peculiares da religião em qualquer manifestação

religiosa. A análise fenomenológica possui um caráter descritivo da experiência vivida que

valoriza sobremaneira a experiência religiosa. Tillich ressalta este aspecto, por exemplo, na

descrição que Rudolf Otto faz do numinoso como uma realidade que transpassa todas as formas

objetivas e se apresenta à consciência como mysterium tremendum et fascinans. Tillich chegou

a afirmar que neste aspecto, sua proposta e a de Otto eram tão semelhantes que se dispensava

maiores ênfases.

Entretanto, a crítica de Tillich à fenomenologia reside no fato de que este método carece

de um critério que permita a valorização dos aspectos concretos da experiência religiosa. A

fenomenologia seria portadora de um caráter a-histórico e incapaz de dar conta da diversidade

157

das expressões religiosas, ela chegaria à proposição de uma essência da religião que transcenda

toda religião empírica. Essa essência, por sua vez, só poderia estar dotada das características de

uma determinada religião histórica ou então proporia a construção de uma nova religião ideal.

Diante disso, Tillich propõe unir ao elemento intuitivo da fenomenologia pura um elemento

crítico. Este elemento possibilitaria evidenciar a forma em que o sentido incondicional é

atualizado na estrutura do espírito. Para o autor, as formas através das quais a experiência

religiosa torna-se possível é tão importante para a análise do fenômeno religioso quanto o

incondicional que se revela nela. O autor entende que a intuição sozinha não seria capaz de dar

conta da forma de sentido e por isso acrescentou o elemento crítico, através do qual a religião

em seus aspectos concretos é devidamente valorizada.

Na sequência da pesquisa, foram analisados os quatro métodos desenvolvidos sob esta

base: o crítico-intuitivo (1920), metalógico (1923), fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-

crítico (1962). Embora Tillich tenha fundamentado sua fenomenologia crítica a partir da união

de ambos os elementos, esta união aparece também como fundamento de outros dois métodos

que precederam sua fenomenologia crítica, a saber, o método crítico-intuitivo em 1920 e

metalógico em 1923. Este último se caracteriza pela intuição das essência a partir da soma dos

elementos intuitivo e dinâmico ao método crítico. Semelhantemente, em 1962 no curso sobre

filosofia da religião ministrado em Harvard, como referido anteriormente, outro método

construído sobre esta mesma base é apresentado pelo autor, este método é denominado agora

como intuitivo-crítico.

Embora o foco da pesquisa estivesse sobre a fenomenologia crítica, foi possível

constatar que estes métodos desenvolvidos por Tillich em diferentes períodos e contextos de

sua produção acadêmica, não são propostas metodológicas diferentes uma da outra, ao contrário

trata-se de uma mesma proposta. Ao analisar os elementos que constituem os quatro métodos,

percebeu-se que embora existam modificações realizadas pelo teólogo em decorrência de seus

avanços acadêmicos, todos os métodos preservam os mesmos elementos estruturantes, a união

dos elementos intuitivo e crítico, assim como estão também direcionados para os mesmos

objetivos. Tillich aparentemente não muda sua abordagem. Para o teólogo o método crítico

continua sendo incapaz de chegar a essência da coisa, e o método intuitivo por si só não pode

dar conta da existência.

Tillich nunca fixou um nome para seu método, ao longo dos anos foram quatro

denominações diferentes e em todas elas a estrutura central do método permaneceu a mesma.

158

Sendo assim, pode-se dizer que o teólogo conservou a mesma postura metodológica que foi

sendo desenvolvida e modificada com o passar dos anos de acordo os próprios rumos que o

pensamento de Tillich tomou.

A pesquisa identificou que a principal diferença encontrada entre os métodos está na

presença da abordagem existencial nos métodos fenomenológico-crítico (1951) e intuitivo-

crítico (1962). Na fenomenologia crítica a abordagem existencial aparece junto com a

abordagem crítica, expresso no elemento “existencial-crítico”, enquanto que no método

intuitivo-crítico, este elemento é apresentado a partir da abordagem ontológica e colocada ao

lado da abordagem intuitiva e crítica. Dessa forma, o método proposto pelo autor passa por três

abordagens interligadas, a abordagem intuitiva, oriunda da fenomenologia de Husserl, a

abordagem ontológica, oriunda da filosofia existencial, e a abordagem crítica, oriunda da escola

kantiana e neokantiana. As abordagens intuitiva e crítica, estão presentes no método desde sua

formulação original em 1920, enquanto que a abordagem existencial é acrescida

posteriormente. Para o autor, cada abordagem desempenha um papel específico na análise do

fenômeno religioso e não devem ser tomadas isoladamente. Nesse sentido, não há substituição

de um pelo outro. O aporte existencial é fundamental para o método mas desempenha um papel

específico ao lado da intuição e da crítica.

Nesse sentido, pode-se dizer que o método que começa a ser desenvolvido em 1920 sob

o nome de crítico-intuitivo terá na fenomenologia crítica ou intuição-crítica sua formulação

final, isto é, a união das abordagens intuitiva, existencial e crítica constituem a versão final do

método. A opção que a presente pesquisa fez por focar na fenomenologia crítica se deve ao fato

de que nela estão sintetizadas de forma bastante didática as três abordagens que o método

propõe. Enquanto que no método intuitivo-crítico de 1962 o autor descreve as três abordagens

separadamente, na fenomenologia crítica a proposta é sintetizada como união dos elementos

intuitivo-descritivo e existencial-crítico. Esta formulação facilita a compreensão do método

bem como seu uso prático.

Esta união por sua vez aponta para outra questão importante em Tillich, a tensão sempre

constante entre o aspecto último e irracional da experiência religiosa com o aspecto concreto e

lógico. A tensão entre o indizível e as formas lógicas de raciocínios é um pressuposto que para

Tillich deve ser considerado, inclusive no fazer teológico. A teologia ainda que trabalhe com

símbolos de uma religião específica, deve estar consciente de que há uma dimensão da realidade

que está sempre aberta e que não pode ser condicionada. Nesse sentido pode-se pensar que

159

teologia não está para falar do incondicional, mas para garantir a possibilidade desta fala. Da

mesma forma, a análise da religião na perspectiva da fenomenologia crítica não se trata de

reencontrar um objeto ausente, mas de apontar para o fato de sua inacessibilidade.

Essa tensão foi identificada na dinâmica de relacionamento entre religião e cultura. A

pesquisa analisou as implicações da fenomenologia no pensamento teológico do autor, e nesse

sentido, foi possível perceber que a teoria da intencionalidade da consciência desempenha um

papel importante na formulação dos modos em que religião e cultura se relacionam, e por

consequência, em sua proposta de uma teologia da cultura. A religião como direcionamento

intencional da consciência ao sentido incondicional só é possível através da cultura. Por

semelhança, toda forma cultural possui o poder de ser mediadora de um sentido incondicional.

Como não se pode falar sobre o incondicional sem transformá-lo num objeto, e como

não há expressão cultural que não possa se tornar mediadora de um sentido incondicional, o

teólogo emprega as categorias semânticas de forma e substância que ajuda sobremaneira a

compreender a dinâmica de relação entre religião e cultura. A religião como experiência do

incondicionado está para a substância assim como a cultura está para a forma. Nesse sentido,

toda expressão cultural é substancialmente religiosa (possui o poder de expressar o sentido

incondicional) assim como toda expressão religiosa é formalmente cultural (utiliza as formas

concretas para expressar o incondicional). Diante disso, quando a intencionalidade da

consciência se volta para a substância se está diante da religião e quando a consciência se volta

para a forma se está diante da cultura. O caráter cultural ou religioso depende do direcionamento

subjetivo da consciência intencional. É neste contexto que se torna possível compreender com

maior nitidez a máxima tillichiana que religião é substância da cultura e cultura é forma da

religião.

Tillich descreve, portanto, dois estados da intencionalidade da consciência, uma dirigida

à forma e a outra à substância. Um mesmo segmento da realidade pode ter um sentido religioso

e um sentido cultural. Sendo assim, cultura e religião constituem dimensões codependentes e

não podem jamais serem compreendidas separadamente. Religião e cultura estão

essencialmente unidas, e a dinâmica interna dos sentidos se dá nessa relação. É nesse contexto

que foi possível perceber as possibilidades de aplicação da fenomenologia crítica de Tillich.

A unidade entre religião e cultura como unidade entre forma e substância descreve a

dinâmica em que são formados os muitos fenômenos religiosos. A pesquisa constatou no

terceiro capítulo que uma análise coerente de qualquer fenômeno religioso, à luz do pensamento

160

tillichiano, deve levar em consideração a tensão formada por ambos os polos dessa relação.

Diante de tal desafio constatou-se também que a fenomenologia crítica constitui um método

adequado para abordar o fenômeno religioso, pois na medida em que o elemento intuitivo-

descritivo se volta para a substância da forma, isto é, seu sentido profundo e incondicional, o

elemento existencial-crítico se volta para os aspectos concretos, históricos e culturais da

experiência religiosa.

Assim, uma contribuição importante da fenomenologia crítica consiste na explicitação

e preservação da tensão entre os dois polos de sentido presentes nos fundamentos das estruturas

religiosas das mais diferentes religiões. A fenomenologia crítica percorre assim a experiência

religiosa desde aquilo que é originário no fenômeno até sua efetivação nas dimensões concretas

da vida. Nesse sentido, por via da intuição-descritiva se tem acesso ao caráter experiencial do

fenômeno como o mistério que se revela através de algum segmento da realidade, assumindo

com isso, um perfil sagrado e específico. Por via do elemento existencial-crítico se tem a

possibilidade de identificar as formas por meio das quais a experiência foi possível,

consideradas como formas simbólicas de representação extraídas da realidade histórica e

cultural.

Outro aspecto da contribuição metodológica da fenomenologia crítica nas análises do

fenômeno religioso foi o caráter compreensivo do método. A análise realizada sobre os vários

métodos em filosofia da religião discutidos por Tillich possibilitou evidenciar a oposição do

teólogo em relação as abordagens reducionistas do fenômeno religioso, bem como seu

posicionamento de valorização da experiência religiosa. Este caráter compreensivo se faz sentir

também na importância que o teólogo atribui ao símbolo religioso, que além de apontar para

uma realidade de sentido que escapa às abordagens racionalistas, também possui um valor

existencial para o sujeito ou comunidade que reconhece sua dimensão sagrada. Em perspectiva

fenomenológica, o símbolo deixa de ser apenas um código a ser decifrado, mas é visto como

possuidor de um fundo de sentido que escapa das análises de caráter mais positivista.

Desta forma, a pesquisa também buscou apresentar a fenomenologia crítica como uma

possibilidade metodológica de análise do fenômeno religioso. Constatou-se que à luz da

fenomenologia crítica, os fenômenos religiosos são encarados como modos simbólicos de

representação, e nesse sentido, a utilização da fenomenologia crítica como referencial teórico

não se dá no âmbito do pensamento teológico do autor, mas na perspectiva de sua proposta

metodológica, tal como realizado por John Geeverghese Arapura em seu livro Ensaios

161

Hermenêuticos sobre tópicos do Vedāntic, referenciado no terceiro capítulo. Nesse sentido, o

método fenomenológico-crítico não se limita apenas ao pensamento tillichiano ou a religião

cristã, mas pode ser aplicado para análise dos fenômenos religiosos independentemente de suas

formas de expressão. O exemplo utilizado para explorar essas possibilidades foi o da árvore

sagrada, mas outros poderiam ser usados, como as experiências religiosas nos cultos afro-

brasileiros, embora um tipo de análise assim exigiria um espaço maior daquele que foi dedicado

para tal objetivo nesta pesquisa.

A fenomenologia crítica, portanto, se apresenta como uma nova possibilidade de análise

do fenômeno religioso na atualidade. A relação entre o elemento intuitivo-descritivo com o

elemento existencial-crítico tal como propõe a fenomenologia de Tillich, além de interessar aos

estudiosos da teologia e ciências da religião por colaborar com a reflexão em torno do fenômeno

religioso através do método fenomenológico, apresenta também uma nova versão do método

que pressupõe como ponto de partida a relação entre forma e substância. Esta relação que se

expressa categoricamente nos modos como religião e cultura se relacionam demonstra em

grande medida o aspecto inovador da fenomenologia tillichiana e também as possibilidades de

sua aplicação prática. No entanto, seria preciso ainda, para expandir os alcances de sua

fenomenologia crítica, compreender de maneira sistemática como o autor lidou com os aspectos

constitutivos do mundo religioso como o mito, rito, símbolo. Este último foi analisado nesta

pesquisa dentro do escopo maior da fenomenologia crítica. Embora estes elementos tenham

sido referidos brevemente no terceiro capítulo, o objetivo maior da pesquisa não permitiu um

desenvolvimento mais exaustivo sobre eles, e, portanto, seguem apenas como provocação para

pesquisas futuras.

Por fim, pode-se dizer que a fenomenologia esteve presente no pensamento de Tillich

durante todo seu percurso acadêmico e com, pelo menos, duas formas. Por um lado, a

fenomenologia tem a ver com a apropriação da teoria da intencionalidade da consciência na

fundamentação do conceito de religião, e por outro, tem a ver com a concepção de um método

fundamentado, em parte, a partir do elemento intuitivo-descritivo. Embora estes dois aspectos

não estejam separados, fazer tal distinção ajuda na compreensão sobre o que se quer dizer

quando se fala de fenomenologia no pensamento do autor. Da mesma forma, reconhecer este

duplo aspecto ajuda a compreender que a fenomenologia em Tillich não se limita a sua

fenomenologia crítica e a sua Teologia Sistemática, mas que se estende através de suas obras

aparecendo tanto explicita como implicitamente, seja na fundamentação de conteúdos

teológicos ou como atitude metodológica.

162

A proposta metodológica com base nos elementos intuitivo e crítico, que acompanhou

o autor durante todo seu percurso acadêmico e foi descrito por ele mesmo como o mais

adequado método em filosofia da religião e em teologia, embora nunca tenha recebido um nome

específico, mostra-se na atualidade como uma contribuição fundamental de Tillich para análise

do fenômeno religioso. Portanto, a fenomenologia crítica ainda que tenha sido apresentada no

contexto da TS, não se limita a ela, mas constitui-se como um complexo método que reúne,

como foi visto, três abordagens distintas e propõe a partir daí uma perspectiva compreensiva e

de valorização da experiência religiosa e dos universos simbólicos em toda sua complexidade.

Com isso, espera-se também que essa pesquisa possa contribuir para a reflexão do

fenômeno religioso através do instrumental da fenomenologia crítica. Na condição de teólogo,

Tillich elaborou sua fenomenologia crítica aproximando-a da teologia e nesse sentido o autor

deixa o caminho aberto para novas possibilidades de aplicação de seu método tanto no contexto

teológico cristão como para além dele. No final de sua carreira, Tillich expressou o desejo e

necessidade de pensar uma teologia em diálogo com a história das religiões. Se a motivação de

Tillich for considerada juntamente com sua proposta metodológica, então pode-se dizer ainda

que seu pensamento pode ser desdobrado e revigorado para novos campos de pesquisas que

nem o próprio Tillich talvez tenha pensado em chegar dentro de seu contexto. Nesse sentido, a

proposta da fenomenologia crítica na esteira de uma abordagem compreensiva da religião

chama atenção para a sensibilidade de refletir sobre o valor dos símbolos sagrados para quem

vive a própria experiência e faz o convite para olhar novamente a religião no lugar onde ela

nasce, isto é, na experiência humana de sentir o mundo.

163

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