UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO...

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3: UMA ANÁLISE DA PROFECIA COMO PORTADORA DE UM CONFLITO SOCIAL ORIUNDO DA COBRANÇA EXCESSIVA DE TRIBUTO SAMUEL DE FREITAS SALGADO SÃO BERNARDO DO CAMPO 2014

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    A PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3: UMA ANÁLISE DA PROFECIA COMO PORTADORA DE

    UM CONFLITO SOCIAL ORIUNDO DA COBRANÇA EXCESSIVA DE TRIBUTO

    SAMUEL DE FREITAS SALGADO

    SÃO BERNARDO DO CAMPO

    2014

  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

    FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    A PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3: UMA ANÁLISE DA PROFECIA COMO PORTADORA DE

    UM CONFLITO SOCIAL ORIUNDO DA COBRANÇA EXCESSIVA DE TRIBUTO

    Por

    Samuel de Freitas Salgado Orientador: Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

    Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Doutor

    SÃO BERNARDO DO CAMPO

    2014

  • FICHA CATALOGRÁFICA

    SaL32p Salgado, Samuel Freitas A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo / Samuel Freitas Salgado -- São Bernardo do Campo, 2014. 337fl. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo Bibliografia Orientação de: Tércio Machado Siqueira

    1. Bíblia – A.T. – Jeremias – Crítica e interpretação 2. Bíblia – A.T. – Exegese I. Título

    CDD 224.207

  • A tese de doutorado sob o título “A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da

    profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de

    tributo” elaborada por Samuel de Freitas Salgado foi defendida e aprovada em 11 de

    novembro de 2014, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Tércio Machado

    Siqueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. José Ademar Kaefer (Titular/UMESP), Prof.

    Dr. Edson de Faria Francisco (Titular/UMESP), Prof. Dr. Haroldo Reimer

    (Titular/UEG), Prof. Dr. Landon Booth Jones (Titular/FTBSP).

    ________________________________________ Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    ____________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

    Coordenador do Programa de Pós-Graduação

    Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

    Área de Concentração: Linguagens da Religião

    Linha de Pesquisa: Literatura e religião no mundo bíblico

  • AGRADECIMENTOS Nestas breves linhas estendo minha humilde gratidão a todos quantos

    contribuíram direta ou indiretamente para que eu chegasse a esta etapa de minha jornada

    acadêmica. Agradeço, sobretudo, ao trino Deus todo-poderoso que até aqui tem me

    ajudado, com seu poder, graça, misericórdia e amor infinitos. A ele o louvor!

    Agradeço também a minha amada esposa Márcia, fiel auxiliadora e companheira

    em minha peregrinação, e a meu filho Israel, grandes incentivadores nas horas difíceis.

    Sou grato ainda a todos os professores e funcionários da Universidade Metodista de São

    Paulo pelo empenho e dedicação ao ensino. Não poderia deixar de expressar meu

    reconhecimento póstumo ao professor Milton Schwantes por sua valiosa contribuição

    para minha vida acadêmica e ministério pastoral, bem como pelo legado deixado, não

    somente a mim, mas a todos que tiveram o grande privilégio de conhecê-lo. Minha

    gratidão se estende ao professor Tércio Machado Siqueira, por sua dedicação e interesse

    na orientação desta pesquisa.

    Reconheço o grande e imprescindível auxílio que me foi concedido pelo

    Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião (IEPG), o qual

    financiou integralmente meus estudos. A Ana Fonseca, que faz parte dessa importante

    instituição, agradeço profundamente por tudo e oro para que o Senhor Jesus esteja

    sempre a seu lado.

    Finalmente, expresso todo meu carinho e afeto a todos os membros da

    comunidade Missão Gente de Jesus e a meus amados colegas de ministério,

    especialmente meu sogro, irmão Nelson, e os pastores Rick e Marcelo, amigos sempre

    presentes.

    Que o Senhor abençoe a todos!

  • SALGADO, Samuel de Freitas, A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da

    profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo,

    São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.

    RESUMO

    Esta pesquisa privilegia o enfoque histórico ao analisar o texto bíblico, como produto

    histórico-social, a partir do método sociológico. O material disposto ao longo desta

    investigação pretende ser uma ajuda para a compreensão de alguns textos do profeta

    Jeremias. Partindo do princípio de que o texto possui um vínculo com a sociedade na

    qual foi criado e fazendo uso da metodologia exegética, realiza-se uma análise

    histórico-sociológica da palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3 como portadora de um

    conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo em uma sociedade judaíta

    marcadamente tributária. Busca-se, por esse meio, o sentido do texto dentro do provável

    cenário histórico-social que permeia o escrito. Para isso, faz-se necessária a

    investigação dos aspectos preliminares que envolvem tanto o livro de Jeremias,

    sobretudo, os polêmicos caps. 7,1–8,3, como também a questão do estudo da pesquisa

    moderna acerca dessa magnífica obra. Vale a pena também salientar o conceito

    semiótico da poética sociológica que procura estudar a interação causal entre literatura e

    seu meio social. Além disso, avalia-se o âmbito histórico social da unidade literária alvo

    de nossa pesquisa, situando-a em seu provável contexto histórico social e determinando

    a datação, o cenário político e o modo de produção vigente nesse período. Não

    olvidando, contudo, do fator desencadeador do conflito social e o papel da religião

    nesse cenário. Além do mais, examina-se o sentido dos textos específicos ou unidades

    literárias concluídas (perícopes) presentes nos caps. 7,1–8,3, tendo como pressuposto o

    modelo teórico do modo de produção tributário e os passos da exegese histórico-social.

    O mecanismo socioanalítico do modo de produção tributário servirá como instrumento

    de análise da condição socioeconômica, centrando-se nos componentes externos

    incorporados na coletânea, não em sua história redacional, mas sim em sua formação

    social.

    Palavras-chave: Jeremias, Antigo Testamento, Bíblia, modo de produção tributário,

    exegese histórico-social, poética sociológica, templo.

  • SALGADO, Samuel de Freitas, The Word of Yahweh in Jeremiah 7,1–8,3: An Analysis

    of Prophecy as Carrier of a Social Conflict Arising from the Excessive Tribute

    Collection, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.

    ABSTRACT

    This research focuses on the historical approach to analyze the biblical text as a

    historical-social product, from the sociological method. The material arranged along this

    research is intended to be an aid to understanding some texts from the prophet Jeremiah.

    Assuming that the text has a link with the society in which it was created and making

    use of exegetical methodology, carried out a historical-sociological analysis of the word

    of Yahweh in Jeremiah from 7,1–8,3 as carrier of a social conflict arising from

    excessive tribute collection on a Judahite society markedly tributary. It seeks, through

    this, the meaning of the text within the historical setting likely that permeated the social

    writing. For this, it is necessary to research the primary aspects involving both the book

    of Jeremiah, especially the controversial caps. 7,1–8,3, as well as the question of

    modern research study about this magnificent work. It is also worth highlighting the

    semiotic concept of sociological poetics that seeks to study the causal interaction

    between literature and the social environment. Moreover, it evaluates the social

    historical context of the literary unit target of our research, situating it in its likely social

    and historical context, determining the date, the political scene and the production mode

    current at this time. Not forgetting, however, the triggering factor of social conflict and

    the role of religion in this scenario. Furthermore, it examines the meaning of specific

    texts or completed literary units (pericopes) present in caps. 7,1–8,3, with the

    assumption the theoretical model of the tributary production mode and the steps of the

    social-historical exegesis. The social analytical mechanism of the tributary production

    mode will serve as a tool for analysis of socioeconomic status, such analysis is focused

    on the external components incorporated in the collection, not in its editorial history, but

    in its social formation.

    Keywords: Jeremiah, Old Testament, Bible, Mode of Production Tributary, Social-

    Historical Exegesis, Sociological Poetics, Temple.

  • SALGADO, Samuel de Freitas, La palabra de Javé en Jeremías 7,1–8,3: un análisis de

    la profecía como portadora de un conflicto social oriundo de la cobranza excesiva de

    tributo, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.

    RESUMEN

    Esta pesquisa privilegia el enfoque histórico para analizar el texto bíblico, como un

    producto histórico-social, a partir del método sociológico. El material dispuesto a lo

    largo de esta investigación pretende ser una ayuda para la comprensión de algunos

    textos del profeta Jeremías. Partindo de principio que el texto posea un vínculo con la

    sociedad en la cual fue creada y haciendo uso de la metodología exegética, se realiza un

    análisis histórico-sociológico de la palabra de Javé en Jeremías 7,1–8,3 como portadora

    de un conflicto social oriundo de la cobranza excesiva de tributo en una sociedad judaíta

    marcadamente tributaria. Busca, por este médio, el sentido del texto dentro del probable

    escenario histórico social que impregnaba el escrito. Para esto, es necesario investigar

    los aspectos preliminares que invuelven tanto el libro de Jeremías, sobre todo, los

    polémicos caps. 7,1–8,3, así como la cuestión del estudio de la pesquisa moderna sobre

    esta magnífica obra. También vale la pena resaltar el concepto semiótico de la poética

    sociológica que busca estudiar la interacción causal entre la literatura y su medio social.

    Además de esto, se evalúa el ámbito histórico-social de la unidad literaria objeto de

    nuestra pesquisa, situándola en su probable contexto histórico-social y determinando la

    datación, el escenario político y el modo de producción vigente en este período. No

    olvidando, todavia, del factor desencadenante del conflicto social y el papel de la

    religión en este escenario. Además, se examina el sentido de los textos específicos o

    unidades literarias concluidas (perícopas) presentes en los caps. 7,1–8,3, tomando por

    supuesto el modelo teórico del modo de producción tributario y los pasos de la exégesis

    histórico-social. El mecanismo socio analítico del modo de producción tributario servirá

    como una herramienta de análisis de la condición socioeconómica, centrándose en los

    componentes externos incorporados en la colección, no en su historia redaccional, pero

    si en su formación social.

    Palabras clave: Jeremías, Antiguo Testamento, Biblia, modo de producción tributario,

    exégesis histórico-social, poética sociológica, templo.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 19

    CAPÍTULO 1

    A PALAVRA DE JAVÉ QUE ACONTECEU EM JEREMIAS 7,1–8,3 ............ 25

    1.1. QUESTÕES PRELIMINARES ........................................................................... 25

    1.1.1. O livro de Jeremias, suas etapas e seus dilemas ............................................... 25

    1.1.2. A questão do arranjo e estrutura do livro de Jeremias ...................................... 29

    1.2. DEMARCANDO OS LIMITES DA UNIDADE PESQUISADA ...................... 37

    1.2.1. A palavra de Javé como marco introdutório ..................................................... 37

    1.2.2. A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 e seu entorno ............................................ 40

    1.2.3. Delimitação e associação das pequenas unidades de Jeremias 7,1–8,3............ 43

    1.2.3.1. Dificuldades quanto à divisão da unidade ..................................................... 44

    1.2.3.2. Relacionamento e coesão interna .................................................................. 46

    1.2.4. De olho nas pequenas unidades de sentido ....................................................... 52

    1.2.5. Em busca do sentido das pequenas unidades.................................................... 53

    1.3. O ESTUDO DA QUESTÃO: ESTILO E AUTENTICIDADE .......................... 58

    1.3.1. O dilema literário do “discurso do templo” nos caps. 7,1–8,3 ......................... 59

    1.3.2. Um olhar sobre a história da pesquisa de Jeremias .......................................... 59

    1.3.2.1. Duhm e Mowinckel ....................................................................................... 59

    1.3.2.2. Hyatt e Bright ................................................................................................ 63

    1.3.2.3. Weippert e Thiel ............................................................................................ 66

    1.3.2.4. Thompson ...................................................................................................... 69

    1.3.2.5. Carroll, Mckane, Holladay e Clements ......................................................... 70

    1.3.2.6. Craigie ........................................................................................................... 77

    1.3.2.7. Huey .............................................................................................................. 78

    1.3.2.8. Lundbom ........................................................................................................ 80

    1.3.2.9. Sharp .............................................................................................................. 81

    1.3.3. Parâmetros norteadores da unidade dos caps. 7,1–8,3 ..................................... 82

    1.4. CONCLUSÕES PARCIAIS ................................................................................ 87

    CAPÍTULO 2

    O “ROSTO” DA PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3 ....................... 91

    2.1. O DELINEAMENTO DO PERFIL DO PRIMEIRO BLOCO ........................... 92

  • 2.1.1. A provável tradução de Jeremias 7,1-15 .......................................................... 92

    2.1.2. Observações sobre questões gramaticais .......................................................... 94

    2.1.2.1. Primeira subunidade (v. 1-2) ......................................................................... 97

    2.1.2.2. Indicadores de assuntos (v. 3-4) .................................................................... 99

    2.1.2.3. Segunda subunidade (v. 3. 5-7) ................................................................... 101

    2.1.2.4. Terceira subunidade (v. 4. 8-12) .................................................................. 103

    2.1.2.5. Quarta subunidade (v. 13-15) ...................................................................... 107

    2.1.3. Uma variedade de gêneros e fórmulas ............................................................ 110

    2.1.4. Situando lugar e data ..................................................................................... 116

    2.2. OS TRAÇOS MARCANTES DO SEGUNDO BLOCO .................................. 119

    2.2.1. Enveredando na tradução de Jeremias 7,16-20 .............................................. 119

    2.2.2. Apontamentos gramaticais ............................................................................. 120

    2.2.3. Desvendando gêneros e fórmulas ................................................................... 126

    2.2.4. A indicação do lugar e data ........................................................................... 127

    2.3. VISLUMBRANDO A APARÊNCIA DO TERCEIRO BLOCO ..................... 128

    2.3.1. Uma proposta tradutiva para Jeremias 7,21-28 .............................................. 128

    2.3.2. Principais características gramaticais ............................................................. 129

    2.3.3. Estudo dos gêneros e fórmulas ....................................................................... 137

    2.3.4. A determinação do lugar e data ..................................................................... 138

    2.4. A CONFIGURAÇÃO EXTERIOR DO QUARTO BLOCO ............................ 140

    2.4.1. Traduzindo a porção de Jeremias 7,29-34 ...................................................... 140

    2.4.2. Questões gramaticais ...................................................................................... 141

    2.4.3. Detalhamento dos gêneros e fórmulas ............................................................ 146

    2.4.4. A investigação do lugar e data ....................................................................... 146

    2.5. A FISIONOMIA DO QUINTO BLOCO .......................................................... 148

    2.5.1. O texto traduzido de Jeremias 8,1-3 ............................................................... 148

    2.5.2. Análise dos principais elementos gramaticais ................................................ 149

    2.5.3. Gêneros e fórmulas em destaque .................................................................... 153

    2.5.4. Lugar e data do evento.................................................................................... 153

    2.6. CONCLUSÕES PARCIAIS .............................................................................. 154

    CAPÍTULO 3

    O AMBIENTE HISTÓRICO-SOCIAL DA PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS

    7,1–8,3 ...................................................................................................................... 157

    3.1. PROVÁVEL DATAÇÃO INICIAL ................................................................. 157

  • 3.2. A PESSOA DO PROFETA ............................................................................... 161

    3.3. A UNIDADE DOS CAPS. 7,1–8,3 NO CURSO HISTÓRICO-SOCIAL ........ 167

    3.3.1. A supremacia assíria e seus efeitos em Israel e Judá ...................................... 167

    3.3.2. O reino de Judá no vácuo das potências ......................................................... 172

    3.3.2.1. O “povo da terra” ......................................................................................... 173

    3.3.2.2. A reforma josiânica ..................................................................................... 177

    3.3.3. Supremacia egípcia e babilônica e seus efeitos em Judá ................................ 180

    3.3.4. Um breve balanço dos acontecimentos .......................................................... 182

    3.4. ABORDAGEM MATERIALISTA DA SOCIEDADE .................................... 185

    3.4.1. A definição de modo de produção .................................................................. 187

    3.4.2. A definição de economia sagrada ................................................................... 192

    3.4.2.1. Comunidade aldeã, complexo templo-cidade e Estado despótico. .............. 193

    3.4.2.2. Trabalho e classe ......................................................................................... 199

    3.4.2.3. Sistema de partilha versus extração ............................................................. 200

    3.5. A TRIBUTAÇÃO NO ANTIGO ISRAEL ....................................................... 206

    3.5.1. As consequências da tributação em Judá ........................................................ 210

    3.6. CONCLUSÕES PARCIAIS ............................................................................. 211

    CAPÍTULO 4

    AS PALAVRAS DE REJEIÇÃO AOS SETORES SOCIAIS CIRCUNSCRITOS

    AOS SENHORES DO PODER ............................................................................. 215

    4.1. JEREMIAS 7,1-15: OUVI A PALAVRA DO SENHOR ................................. 215

    4.1.1. Instrução para o profeta (Jr 7,1-2) .................................................................. 215

    4.1.2. Eu deixarei morar a vós neste lugar (Jr 7,3.5-7). ............................................ 219

    4.1.3. Eu vi (Jr 7,4.8-12). .......................................................................................... 233

    4.1.4. A chegada do castigo (Jr 7,13-15) .................................................................. 245

    4.2. JEREMIAS 7,16-20: NÃO VÊS O QUE ESTÃO FAZENDO ......................... 248

    4.2.1. Não te ouvirei (Jr 7,16) ................................................................................... 248

    4.2.2. Eles provocaram a minha ira (Jr 7,17-19) ...................................................... 250

    4.2.3. Minha ira será derramada (Jr 7,20) ................................................................. 255

    4.3. JEREMIAS 7,21-28: FALARÁS E ELES NÃO OUVIRÃO ........................... 258

    4.3.1. A desobediência dos pais (Jr 7,21-24) ............................................................ 258

    4.3.2. Tais pais, tais filhos (Jr 7,25-26): ................................................................... 266

    4.3.3. Eles não responderão a ti (Jr 7,27-28) ............................................................ 268

    4.4. JEREMIAS 7,29-34: CESSARÁ A VOZ DO NOIVO E DA NOIVA ............. 270

  • 4.4.1. “Corte” a corte (v. 29) .................................................................................... 270

    4.4.2. Eles fizeram a maldade (Jr 7,30-31) ............................................................... 273

    4.4.3. Não haverá quem espante (Jr 7,32-34) ........................................................... 280

    4.5. JEREMIAS 8,1-3: OS DIGNITÁRIOS SEM DIGNIDADE ............................ 284

    4.5.1. A violação das sepulturas como castigo (Jr 8,1-3) ......................................... 284

    4.6. CONCLUSÕES PARCIAIS .............................................................................. 292

    CONCLUSÃO GERAL ......................................................................................... 295

    BIBLIOGRAFIA BÁSICA .................................................................................... 301

  • 19

    INTRODUÇÃO

    Esta pesquisa de cunho exegético tem como ponto central investigar os textos

    proféticos disponibilizados nos caps. 7,1–8,3 do livro de Jeremias como reflexo de um

    conflito social desencadeado pela cobrança excessiva de tributo na perspectiva dos que

    vivenciaram o acontecimento fundante. A análise deste material pode contribuir para o

    esclarecimento de algumas questões concernentes a obra de Jeremias. Parte da

    dificuldade na investigação deste livro profético está na desordem de seus materiais. A

    obra está disposta numa lógica de difícil compreensão e pouquíssimos materiais são

    datados. Além do mais, o debate crítico histórico tem levantado a questão da relação

    entre Jeremias, o homem, e o livro que leva o seu nome.

    Na tentativa de superar estes e outros obstáculos, analisaremos o texto em sua

    forma e essência a fim de compreendê-lo como literatura (por meio da análise literária)

    e como produto histórico-social (por meio da análise sociológica). No entanto, não se

    pode olvidar que as palavras do profeta nasceram da situação pragmática extraverbal e

    mantém a conexão com essa situação. Tal discurso está vinculado com a vida e não

    pode ser dissociado dela sem perder seu significado. Na avaliação dos passos

    importantes da interpretação dos caps. 7,1-8,3 de Jeremias faremos uso da metodologia

    exegética a fim de aclarar o sentido que tinha o relato para o local, a época e a

    comunidade em que fora formulado originalmente e permitir que transpareça a intenção

    original do escrito.

    O foco de nossa investigação não privilegiará os últimos redatores, mas sim os

    que vivenciaram o acontecimento fundante. Ao fazermos tal abordagem, estamos

    cientes da limitação e parcialidade de nossa pesquisa por não enfatizarmos a natureza

    das palavras de Jeremias e sua relevância para o povo de Judá no período do exílio e do

    pós-exílio. Ambos os aspectos das implicações da mensagem profética são importantes.

    O fechamento em uma época não permite compreender a futura vida da obra nos

    séculos subsequentes.

    Embora tal ponto de vista tenha certa coerência é salutar também entender que

    uma obra não pode viver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os

    séculos passados. É esse passado que procuraremos analisar em nossa pesquisa. Embora

    sabedor da relevância dos seguidores do profeta em sua obra, neste trabalho

  • 20

    procuraremos privilegiar a pregação do próprio Jeremias para o povo de Judá em seus

    dias.

    Muito já se tem escrito sobre Jeremias destacando a relevância de sua mensagem

    para o povo de Judá no período do exílio e pós-exílio, em detrimento de sua importância

    para o povo de Judá no período pré-exílico. Nesta pesquisa procuraremos enfatizar a

    origem e importância da mensagem do profeta Jeremias durante esse período turbulento

    da história de Judá.

    Dessa forma, nossa abordagem estende-se além do texto e seu entorno imediato

    a fim de captar as tensões sociais, econômicas e políticas das quais o escrito originou-se

    e faz parte. A unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias está permeada por essas tensões, e

    nelas essa unidade desempenha um papel decisivo. Para compreendê-las é preciso situar

    os ditos de Jeremias no tempo e no espaço a fim de não depreciar o seu verdadeiro

    significado como também fazer uso da teoria e ferramenta fornecida pela ciência social.

    Sobre esse aspecto seria importante aplicar o conceito do “modo de produção

    tributário”, que nos auxiliará na identificação da causa e dos envolvidos no conflito.

    Nosso objetivo ao estudar a unidade dos caps. 7,1–8,3 é analisar os componentes do

    conflito social que se encontram emaranhados no relato testemunhal do profeta.

    Diante disso, o estudo proporá que a unidade consiste fundamentalmente de

    autênticos ditos proféticos de Jeremias, reunidos num grande conjunto literário

    unificado e dispostos em estilo de prosa elevada, caracterizada por frequentes

    paralelismos. Ademais, a pesquisa ressaltará também a importância da centralidade da

    abordagem materialista histórica na interpretação do conteúdo da mensagem profética.

    O conceito do modo de produção tributário como mecanismo de análise da sociedade

    judaíta contribuirá para a fundamentação da hipótese de que as duras palavras do

    profeta expressas nessa unidade tiveram seu nascedouro em um conflito social entre

    campo e cidade, por conta da cobrança excessiva de tributo numa sociedade

    caracterizada pela tensão entre a economia de partilha e a economia extrativa.

    Afora o interesse pessoal do pesquisador, o tema se impõe pela sua relevância

    para a pesquisa acadêmica do Antigo Testamento na América Latina. A análise

    sociológica da referida unidade nos permite entender o cenário socioeconômico, político

    e ideológico donde emergiu o relato. Tal abordagem interpretativa, por um lado,

    desperta a sensibilidade em relação a questões que, embora não tão aparentes, devido a

    seu caráter teológico, são de fundamental importância para o seu entendimento. Por

    outro lado, contribui para uma análise científica do material bíblico, libertando-o do

  • 21

    reducionismo das amarras meramente doutrinárias e de uma leitura bíblica intimista,

    individualizante e espiritualizante, que procura retirar os assuntos religiosos do âmbito

    da materialidade concreta da vida.4

    Conforme veremos ao longo desta pesquisa, para Jeremias, Javé não estava

    aquém da realidade humana, mas desejava inserir-se nela e se tornar presente e

    transparente nas esferas determinantes da vida como a política, a economia, as relações

    sociais e as ideologias. Tais abordagens da vida do povo bíblico têm recebido pouca

    atenção por parte da pesquisa acadêmica e da Igreja na América Latina em nossos dias.

    Por meio desta pesquisa tentaremos oferecer uma pequena contribuição para o resgate

    da compreensão da gênese histórica ou a emergência social da palavra profética na

    unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias.

    É verdade que temos trabalhos acerca do livro de Jeremias disponíveis no Brasil.

    Todavia, grande parte deles prioriza a dimensão teológica. Tal abordagem não deve ser

    descartada, uma vez que a perspectiva teológica revela a tendência dos que criaram e

    colecionaram os materiais bíblicos. Qualquer oposição ao profeta era entendida em

    termos anti-javistas, anti-proféticos e até mesmo paganistas. Verdade e falsidade

    dominavam o cenário no antigo Israel.5

    Embora seja importante para a avaliação do conflito profético, a proposta

    teológica, por si só, como qualquer outro método, limita enquanto ilumina. A fim de

    examinar aspectos da situação israelita, é interessante que levemos em consideração não

    somente o interesse teológico, mas também a análise dos componentes socioeconômicos

    e políticos. Ainda que tais facetas não se apresentem claramente, elas se evidenciam

    como um subtexto, escondido no meio de outras perspectivas que se encontram no

    horizonte da unidade dos escritos de Jeremias.

    Os detalhes que escapam frequentemente ao domínio da teologia podem ser

    assimilados pelas sugestões de corrente social, econômica e política, as quais nos

    fornecem uma compreensão histórica e sociológica mais ampla. Isso não quer dizer que

    a questão teológica seja irrelevante. A questão teológica tem sua relevância para o

    estudo da literatura profética. No entanto, por si só, representa apenas uma parcela do

    todo bíblico. É impossível ignorar ou suprimir os aspectos sociais do conflito profético,

    44 Uwe Wegner, A leitura bíblica por meio do método sociológico, em Mosaicos da Bíblia, São Paulo, CEDI, vol. 12, 1993, p. 7-13. 5 James L. Crenshaw, Prophetic Conflict Its Effect Upon Israelite Religion, BZAW 124, Berlin, Walter de Gruyter, 1971, 134 p.

  • 22

    tais como os fatores políticos, sociais e econômicos que fazem parte de qualquer

    demonstração pública de disputa.6

    É inegável que o discurso profético esteja calcado em termos religiosos e brota

    de profunda experiência religiosa. Se não atentarmos a esse aspecto depreciaremos o

    significado daquele e não poderemos entendê-lo de forma plena. No entanto, no

    discurso profético é preciso valorizarmos também a sua dimensão histórico-sociológica.

    Porquanto a indignação profética surge da realidade, do sofrimento e da opressão

    vivenciados em seu contexto histórico.7

    Neste trabalho privilegiaremos esse último aspecto. A presente pesquisa

    procurará servir como complementação e contribuição para a ampliação dos estudos

    acadêmicos realizados na América Latina sobre o livro profético de Jeremias; como

    também intentará oferecer uma melhor compreensão da natureza e do impulso inicial ou

    fator desencadeador da fala do profeta para o povo de Judá no período do próprio

    Jeremias, e isso é algo de fundamental importância para qualquer exegeta. Uma boa

    compreensão da forma como as palavras de Jeremias se originaram em seu próprio

    contexto histórico-social contribuirá para demonstrar a relevância dessas palavras para

    um período que pouco tem sido pesquisado. A ênfase em demasia na relevância das

    palavras de Jeremias para Judá no período pós 587 a.C., tem obscurecido a importância

    das palavras de Jeremias para Judá antes de 587 a.C. Nesta pesquisa procuraremos

    aclarar tal importância.

    Nosso trabalho procurará fornecer subsídios de clarificação tanto para estudantes

    da matéria quanto para leitores em geral que procurem interpretar as palavras e alargar

    seu conhecimento acerca do contexto histórico-sociológico no qual emergiram os ditos

    proféticos que se encontram na unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Esses capítulos

    constituem um conjunto específico, conforme proporemos no decorrer dos

    procedimentos exegéticos. Tal unidade de ditos proféticos não somente expressa a voz

    solitária do profeta, como também formulações da dor e resistência de um povo. Sendo

    assim, as relações sociais marcadas pelo tributarismo serão mediações hermenêuticas

    necessárias para sua compreensão.

    Desse modo, a pesquisa se estrutura em quatro capítulos. O primeiro capítulo

    concentra-se em alguns aspectos preliminares que darão suporte e fornecerão subsídios

    6 Burke O. Long, Social Dimensions of Prophetic Conflict, em Semeia, Atlanta, Society of Biblical Literature Scholars, n. 21, 1981, p. 31-33. 7 Anthony R. Ceresko, Introdução ao Antigo Testamento numa perspectiva libertadora, São Paulo, Paulus, 1996, p. 191.

  • 23

    para a futura análise interpretativa das palavras contidas na unidade literária situada nos

    caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Investiga-se assuntos relativos à origem, composição,

    autoria, estilo, integridade, coesão e delimitação do material disposto na obra de

    Jeremias. Verificando, assim, as principais questões que permeiam o escrito, como

    também indicando propostas adequadas a fim de solucioná-las.

    No segundo capítulo observar-se alguns elementos formais do texto

    imprescindíveis para sua identificação, como também para a futura tarefa da

    interpretação do conteúdo. Todavia, ainda não se trata da interpretação propriamente

    dita, mas apenas da perscrutação das condições formais dentro das quais se poderão

    explicar os trechos. Com isso, procura-se indicar caminhos no texto que auxiliem na

    futura tarefa de sua identificação e interpretação. Primeiramente realiza-se a tradução do

    hebraico para o português. Em seguida, enfocam-se aspectos formais, porém decisivos

    para a interpretação de cada texto. Uma vez concluídas essas etapas e a perícope esteja

    caracterizada em sua forma, prossegue-se no aprofundamento do lugar histórico-social

    em que o texto se situa.

    No terceiro capítulo a investigação se foca na tentativa de determinar a provável

    datação dos ditos e de traçar o perfil sociológico do profeta. Além de analisar os

    acontecimentos mais relevantes da história que de alguma maneira influenciaram a

    trajetória de Judá, como também estabelecer a abordagem materialista histórica, por

    meio do uso do modo de produção tributário, como um instrumental teórico adequado

    para a análise da sociedade judaíta, com o intuito de situar o profeta e sua mensagem

    dentro de seu ambiente histórico-sociológico e de se fazer justiça a tal proclamação.

    O último capítulo da pesquisa concentra-se no exame do conteúdo das palavras

    de cada perícope da unidade. Para isso, faz-se necessário identificar o assunto básico em

    torno do qual gravita o assunto da unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Nesse sentido,

    investiga-se basicamente o conflito que subjaz o escrito, o local do acontecimento, seus

    principais personagens, bem como a questão que o motivou. Por fim, a conclusão geral

    aponta os principais resultados do trabalho. Segue-se, então, no final do trabalho a

    bibliografia com as obras utilizadas na pesquisa.

  • 24

  • 25

    CAPÍTULO 1

    A PALAVRA DE JAVÉ QUE ACONTECEU EM JEREMIAS 7,1–8,3

    Neste primeiro momento da pesquisa procuraremos nos concentrar em alguns

    aspectos preliminares que darão suporte e fornecerão subsídios para a futura análise

    interpretativa das palavras contidas na unidade literária situada nos caps. 7,1–8,3 de

    Jeremias. Partiremos em busca de informações que nos permitam descobrir a provável

    origem, composição, autoria e estilo do material disposto na obra de Jeremias. Diante

    disso, verificaremos as principais questões que permeiam o escrito, além de indicarmos

    propostas adequadas a fim de solucioná-las.

    Serão abordados assuntos que envolvem o livro e suas principais dificuldades,

    sua composição e estrutura. Delinearemos suas grandes seções em busca daquela em

    que está situada a unidade literária dos caps. 7,1–8,3. Constatado este fato, seguiremos

    ao encontro da unidade alvo de nossa pesquisa. Delimitaremos cada uma das pequenas

    unidades de sentido presentes nos caps. 7,1–8,3, destacando evidências que certifiquem

    a integridade e a coesão interna da unidade como um todo, e assim também de cada

    pequena unidade de sentido.

    Evidenciaremos também a importância das pequenas unidades de sentido, assim

    como do mecanismo da análise exegética histórico-sociológica para a compreensão da

    palavra de Javé transmitida pelo profeta Jeremias. Finalmente, por meio da história da

    pesquisa do livro de Jeremias, discutiremos as principais propostas interpretativas da

    obra de Jeremias a fim de estabelecermos diretrizes baseadas no estudo acadêmico

    acerca da autoria, estilo, autenticidade e origem dos escritos expressos na unidade dos

    caps. 7,1–8,3.

    1.1 QUESTÕES PRELIMINARES

    1.1.1 O livro de Jeremias, suas etapas e seus dilemas

    Nossa pesquisa de cunho exegético tem como ponto central os ditos proféticos

    agrupados nos caps. 7,1–8,3 do livro de Jeremias. No texto hebraico, a obra de

    Jeremias, uma das mais extensas entre os profetas, é única não somente pelo registro

    prolongado das experiências e palavras de Jeremias, mas também por causa de seus

    relatos autobiográficos e temas históricos significantes. Encontra-se no centro dos livros

    comumente conhecidos como “profetas maiores”, entre Isaías e Ezequiel, e seu

  • 26

    ministério profético de aproximadamente quatro décadas testemunhou eventos

    históricos cruciais associados à queda do reino do Sul, Judá.8

    Jeremias desempenhou seu ministério num período de agitação, no limiar entre o

    declínio do Império assírio e o surgimento do Império babilônico. A trajetória de Judá

    foi marcada por curtos períodos de independência e de sujeição, primeiro para o Egito e

    depois para a Babilônia. O ministério de Jeremias foi exercido contra o pano de fundo

    do governo de três filhos e um neto de Josias, os últimos dirigentes de Judá. A

    independência de Judá estava próxima do fim, e Jeremias testemunharia a derrocada da

    cidade de Jerusalém e de seu templo.9

    A atividade de Jeremias pode ser dividida em quatro fases, nas quais as

    circunstâncias internas de Judá e os eventos cruciais daquelas décadas no cenário

    internacional modelaram as palavras e a vida do profeta. A primeira fase se estende

    desde sua vocação profética (627 a.C.) até um pouco antes da conclusão da reforma de

    Josias (622 a.C.). A mensagem desse período está contida, grosso modo, nos capítulos

    1-6 e termina com uma conclusão desoladora (6,27-30). Logo depois, Jeremias silencia

    por mais de uma década. Por conta disso, costuma-se declarar que Jeremias deu apoio

    incondicional à reforma josiânica.

    Todavia, é improvável que o referido profeta tenha apoiado incondicionalmente

    a reforma e paralisado suas atividades após o êxito dela, pois nesse caso sua sentença

    negativa não teria nenhum sentido. Tal evidência demonstra que suas atividades foram

    interrompidas num período anterior à reforma, e não por sua causa ou consequência.

    Talvez o profeta estivesse em sintonia com alguns pontos da reforma, tal como o

    combate ao espírito pagão e o empenho em uma ação social, embora não admitisse os

    aspectos duvidosos que o levaram mais tarde a rejeitá-la: a ênfase nas leis cultuais e no

    templo. Diante disso, é possível conjecturar que Jeremias não dera apoio incondicional à

    reforma josiânica, antes, assumira desde o princípio uma postura bilateral: uma em

    relação ao Deuteronômio e outra em relação à reforma.

    No início do reinado de Jeoaquim, o profeta reinicia sua atividade. Essa segunda

    fase de seu ministério se estende até a primeira conquista de Jerusalém pela Babilônia 8 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, em Review & Expositor, Louisville, Review and Expositor/ Southern Baptist Theological Seminary, vol. 78, n. 3, 1981, p. 303. 99 C. Hassell Bullock, An Introduction to the Old Testament Prophetic Books, Chicago, Moody Press, 1986, p. 186-194. Também Gary V. Smith, The Prophets as Preachers: An Introduction to the Hebrews Prophets, Nashville, Broadman & Holman, 1994, p. 192-193; William Sanford Lasor; David Allan Hurbard; Frederic William Bush, Panorama Del Antiguo Testamento: Mensaje, Forma Y Trasfondo Del Antiguo Testamento, Grand Rapids, Libros Desafio, 2004, p. 394-421; Clyde T. Francisco; Juan Juan Lacue, Introduccion al Antiguo Testamento, El Paso, Casa Bautista De Publicaciones, 1999, p. 198-201.

  • 27

    (de 609-597 a.C.). Os oráculos e relatos oriundos desse período se encontram divididos

    em 7-20; 22; 25,1-14; 26; 35s. A terceira fase, por sua vez, compreende o período do

    reinado de Zedequias, entre a primeira e a segunda conquista de Jerusalém (597-587

    a.C.). Os capítulos 21–24; 27–29; 32; 34; 37–39 remontam essa época. A última fase,

    descrita entre os capítulos 40-44, abrange a queda de Jerusalém até a permanência

    forçada no Egito (depois de 587 a.C.).10

    O desenvolvimento do livro percorreu um processo longo e complexo

    evidenciado pela dificuldade de se estabelecer um padrão coerente e unificado para sua

    estrutura como um todo. Vários indícios apontam à possibilidade de que Jeremias não

    tenha sido necessariamente o “autor” de tudo que se encontra no livro que leva seu

    nome.11 Ao longo de seus escritos, diversos acontecimentos são datados, todavia, as

    referências cronológicas não são sequenciais.12 Além disso, aqui e acolá pululam

    informações na primeira e na terceira pessoa, as quais apontam respectivamente para a

    existência de relatos do próprio profeta e outros produzidos por alguém que escrevia

    acerca do profeta. Ambos, ocasionalmente, aparecem na mesma unidade textual.13

    Ademais, na conclusão do livro (Jr 51,64) encontra-se a seguinte declaração:

    “Até aqui as palavras de Jeremias”, a qual vem acompanhada por um apêndice (Jr 52 =

    2Rs 24,18–25,30). O cabeçalho situa as últimas palavras de Jeremias próximo ao final

    do reinado de Zedequias (Jr 1.1). Todavia, alguns materiais são considerados

    posteriores (Jr 42-44).14 Além do mais, as duplicatas15 corroboram as evidências de que

    o livro de Jeremias não é obra de uma única mão, mas sim obra agrupada e editada. Por

    isso, alguns pesquisadores costumam afirmar que o próprio Jeremias editou o livro.

    Outros admitem que os responsáveis seriam, sobretudo, Baruque ou editores

    posteriores.16 No entanto, seria viável admitir que tanto o próprio Jeremias como seu

    10 Milton Schwantes, Sofrimento e esperança no exílio: história e teologia do povo de Deus no século VI a. C., São Leopoldo, Oikos, 2009, p. 46-47. Na obra de Ernest Sellin; Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Ed. Academia Cristã, 2007, p. 549-553. Também Werner H. Schmidt, Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 229-230. 11 Joseph Schreiner, Palavra e mensagem do Antigo Testamento, São Paulo, Teológica/Paulus, 2004, p. 239-240. 12 Observe o capítulo 24 datado no período de 597 a.C. e o capítulo 25 durante o ano de 605 a.C. 13 Cf. Jeremias 28,1.5; 25,13.15. 14 É provável que o cabeçalho tenha servido como introdução aos capítulos 1-25 do livro de Jeremias. 15 Duplicatas são versos que aparecem em mais de um lugar. Compare, por exemplo, os seguintes trechos (6,13-15 e 8,10c-12; 10,12-16 e 51,15-19; 15,13-14 e 17,3-4; 16,14-16 e 23,7-8; 23,19-20 e 30,23-24; 30,10-11 e 46,27-28). 16 E. A. Martens, Jeremiah. Believers Church Bible Commentary, Scottdale, Herald Press, 1986, p. 296.

  • 28

    companheiro e secretário Baruque; também seus discípulos contribuíram com a redação

    da profecia jeremiana.17

    A coleção escrita dos oráculos e provérbios provavelmente teve início com

    Jeremias e foi sendo complementada concomitantemente. Todavia, pesquisadores

    afirmam que os oráculos poéticos representam palavras originais de Jeremias, enquanto

    que as narrativas históricas e biográficas seriam de Baruque. Ademais, há supostos

    sermões e discursos espalhados ao longo do livro e intercalados entre material poético e

    biográfico. A origem desse material tem sido tema de considerável debate; alguns

    consideram como material autêntico de Jeremias, outros como composição de Baruque

    ou de seguidores de Jeremias, e outros ainda como decorrentes dos deuteronomistas.18

    Voltaremos a esse assunto quando investigarmos a história da pesquisa do livro.

    A obra de Jeremias, além do mais, oscila entre duas posições distintas. De um

    lado, o julgamento divino e o castigo sobre Jerusalém seriam inevitáveis; de outro,

    haveria a possibilidade de arrependimento e afastamento do castigo.19 Entre as várias

    propostas para solucionar esse dilema, destaca-se a hipótese de William Holladay20. O

    autor se baseia na passagem situada em Jeremias 36 que menciona a existência de dois

    rolos ditados pelo profeta ao escriba Baruque, sendo que o primeiro, escrito no ano de

    605 a.C., continha as palavras que Javé havia proferido “sobre Israel, e sobre Judá, e

    sobre todas as nações, desde o dia que eu te falei a ti, desde os dias de Josias até hoje”

    (v. 2).

    Conforme as cronologias disponíveis nas introduções dos caps. 25,1-3 e 1,2 do

    livro Jeremias, o primeiro rolo continha as palavras pronunciadas durante os anos de

    627-605 a.C. Essas duras palavras foram lidas logo em seguida no templo de Jerusalém

    e culminaram na exclusão do profeta de seus arredores e, posteriormente, de acordo

    com o MT, provocaram a queima do rolo pelo rei Jeoaquim, um ano depois, em 604

    a.C.21 Após tal fato, o profeta dita um novo rolo a Baruque, repete as palavras contidas

    no primeiro rolo e acrescenta-lhes novos detalhes (Jr 36,32).22

    17 Ildo Bohn Gass (Org.), Uma introdução à Bíblia: reino dividido, São Leopoldo/São Paulo, Cebi/Paulus, 2005, p. 170. 18 J. A. Thompson, The Book of Jeremiah. The New International Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1980, p. 32. 19 Robert Alter; Frank Kermode, Guia literário da Bíblia, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 202. 20 William Lee Holladay, The Identification of the Two Scrolls of Jeremiah, em Vetus Testamentum, Leiden, Brill Academic Publishers, vol. 30, n. 4 O, 1980, p. 452-467. 21 A LXX data a queima do rolo três anos mais tarde, isto é, 601 a.C. 22 Veja discussão sobre o rolo de 605 em Jack R. Lundbom, Jeremiah 1-20: A New Translation with Introduction and Commentary, New Haven/ London, Yale University Press, 2008, p. 92

  • 29

    Embora seja aventado por pesquisadores que o segundo rolo continha o mesmo

    tamanho e o mesmo conteúdo do primeiro, e que sua ampliação se deu em época

    posterior a Jeremias23, Holladay propõe que no primeiro rolo as palavras do profeta

    continham a possibilidade de arrependimento, mas nos oráculos ampliados no segundo

    rolo não.24 É evidente que os conteúdos do segundo rolo escrito por Baruque (36,22)

    estão preservados no atual livro de Jeremias.

    Não obstante seja possível afirmar que esse material encontra-se dentro dos

    capítulos 1–25 do atual livro, é praticamente impossível identificá-lo na referida seção.

    O rearranjo, o complemento e o posterior desenvolvimento de temas proféticos

    impossibilitam tal identificação. Por conseguinte, a importância do capítulo 36 está no

    que ele nos revela sobre o tempo e as circunstâncias do relato das profecias de Jeremias,

    e não em qual parte do atual livro foi escrita primeiro.25

    1.1.2. A questão do arranjo e estrutura do livro de Jeremias

    Como mencionado anteriormente, parte do desafio do livro de Jeremias vem do

    fato de os materiais não se apresentarem numa sucessão ou estrutura facilmente

    compreensível. Diante disso, muitos pesquisadores consideram sua estrutura

    praticamente um mistério.26 Vários são os entraves que dificultam uma correta

    compreensão dessa estrutura, a saber, as questões cronológicas, a falta de um

    desenvolvimento coerente de pensamento, a referência a vários manuscritos e outros

    escritos, a diferença entre o material encontrado na Bíblia Hebraica e na LXX, bem

    como a existência de inúmeros gêneros literários e as diferentes teorias acerca da

    composição e compilação da obra.27

    23 Ernest Sellin, Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p. 553-554. 24 William Lee Holladay, The Identification of the Two Scrolls of Jeremiah, p. 452-467. Também E. A. Martens, Jeremiah. Believers Church Bible Commentary, p. 297. 25 R. E. Clements, Jeremiah. Interpretation. A Bible Commentary for Teaching and Preaching, Atlanta, J. Knox Press, 1988, p. 7. 26 Vários pesquisadores esboçam a dificuldade para determinar a estrutura do livro de Jeremias. Entre eles se destacam: Robert P. Carroll, Halfway through a Dark Wood: Reflections on Jeremiah 25, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 73; Terence E. Fretheim, Jeremiah, Macon, Smith & Helwys, 2002, p. 17; A. R. Peter Diamond, Introduction, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 15; Walter Brueggemann, A Commentary on Jeremiah: Exile and Homecoming, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1998, p. 7. 27 Veja uma excelente discussão sobre essas questões em S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, em Bibliotheca Sacra, Dallas, Dallas Theological Seminary, vol. 166, n. 663, 2009, p. 306-318.

  • 30

    Tais obstáculos evidenciam que a extraordinária obra de Jeremias, assim como

    outras obras proféticos, não é um livro no sentido moderno do termo. Na verdade, seria

    uma coleção de oráculos proféticos e outros materiais que passaram por uma extensa

    história de transmissão de difícil explicação. Craigie a descreve como uma antologia, ou

    mais precisamente uma antologia de antologias. Todavia, adverte-nos de que, enquanto

    a antologia moderna fornece abundante orientação para seus leitores por meio de títulos,

    notas e cabeçalhos, o livro de Jeremias oferece apenas algumas esparsas instruções.28

    Ainda que existam inúmeras propostas em relação à estrutura e divisão do

    material no livro de Jeremias29, é coerente afirmar que essa obra contém diversas

    coleções menores de material que refletem um arranjo por tópicos. Ou seja, Jeremias é

    um “livro de livros”, construído a partir da reunião de coleções tópicas menores, várias

    delas introduzidas por seus títulos.30

    Decerto um leitor atento rapidamente descobrirá grandes divisões na obra de

    Jeremias. Em outras palavras, tal como já afirmamos, esse livro parece conter uma

    coleção de pequenos livros de Jeremias, acrescido de outros materiais. A crítica retórica,

    um subconjunto da crítica literária, tem contribuído para desvendar as seções ou

    “livros” existentes nessa antologia, uma vez que procura não se afastar da crítica

    histórica, mas destaca as características estéticas e estilísticas do texto a fim de

    descobrir o arranjo e a estrutura do pensamento do escritor.31 Sua tarefa é observar as

    características literárias da obra, tais como as diferentes unidades, a repetição de

    palavras-chave, frases e temas, jogos de palavras e características estruturais, como por

    exemplo inclusio e quiasmo.

    28 Peter C. Craigie, Page H. Kelley; Joel F. Drinkard, Word Biblical Commentary: Jeremiah 1-25, Dallas/Texas, Word Books, vol. 26, 2002, p. xxxi-xxxii. 29Entre as propostas destacam-se J. Andrew Dearman, The NIV Application Commentary: Jeremiah and Lamentations, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 2002, p. 41; R. K. Harrison, Introduction to the Old Testament, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1969, p. 801. Ambos dividem o livro em duas partes: caps. 1–25; 26–52. David Francis Hinson, The Books of the Old Testament, London, SPCK, vol. 10, 1974, p. 140 assim como F. B. Huey, The New American Commentary: Jeremiah, Lamentations, Nashville, Broadman & Holman Publishers, vol. 16, 2001, p. 24-25. Estruturam a obra em quatro partes: caps. 1–25; 26–45; 46–51; 52. Robert P. Carroll, Jeremiah, London/New York, T&T Clark, 1997, p. 17-19. Divide o livro em cinco partes: 1,1-19; 2,1–25,14; 25,15–38.46-51; 26–36; 37–45; 52,1-34. S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 306-318. Propõe uma divisão em seis partes: caps. 1; 2–25; 26–35; 36–45; 46–51; 52. 30 Raymond B. Dillard; Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 2006, p. 280. 31 James Muilenburg, Form Criticism and Beyond, em Journal of Biblical Literature, Atlanta, Society of Biblical Literature, vol. 88, 1969, p. 1-18. Veja acerca da origem e a importância da crítica literária para os estudos do Antigo Testamento em Paul R. House, The Rise and Current Status of Literary Cristicism of the Old Testament, em Beyond Form Criticism, Winona Lake, Eisenbrauns, 1992, p. 3-22.

  • 31

    A aplicação desse método no estudo do livro de Jeremias contribui para o

    entendimento de como foram combinadas as diversas seções ou “pequenos livros”

    contidos na obra. A conclusão de um desses livros pode ser vislumbrada em 25,1-13a,

    “tudo que está escrito neste livro”. A partir desse ponto, o v. 13 é interrompido,

    conforme atestado pela inserção na LXX dos conjuntos dos caps. 46-51 (em ordem

    diferente) depois do v. 13a (LXX omite v. 14). Em seguida, a frase do v. 13b, “que

    Jeremias profetizou contra todas as nações”, aparece como cabeçalho para os vv. 15-38.

    O conteúdo da conclusão (Jr 25,1-13a) aponta tanto para o alcance original do

    livro, situando o início do ministério de Jeremias em 627 a.C. (Jr 1,2) como para a

    grande similaridade entre 25,3-9 e o cap. 1 (especialmente vv. 15-19), sugerindo que o

    cap. 1 e 25,1-13 formam um inclusio que inicia e encerra uma seção maior. Esses

    capítulos, portanto, parecem indicar respectivamente o início e o fim desse livro de

    Jeremias. Nele se encontram palavras proferidas entre seu chamado (627 a.C.) e o

    quarto ano de Jeoaquim (605). Os materiais oriundos de períodos posteriores a 605 a.C.

    espalhados ao longo dos caps. 1–24 pode encontrar sua explicação no indício de que,

    com a circulação separada desse livro, houve inserções de outros materiais de

    Jeremias.32

    Os caps. 46–51, denominados como “oráculos contra as nações estrangeiras”,

    consistem em outro livro.33 Se por um lado existem evidências de que foram proferidos

    pelo próprio profeta, por outro, parece que a história de sua transmissão ocorreu

    separadamente, uma vez que sua disposição na LXX está diferente da apresentada na

    Bíblia Hebraica.34

    A introdução no cap. 30,1-3 indica a existência de mais um livro que abrange os

    caps. 30–31 e provavelmente os caps. 32–33. Consiste num conjunto da mensagem de

    esperança proferida pelo profeta que geralmente leva o título de Livro da Consolação.

    Os caps. 30–31 estão unidos ao tema do cap. 30,3, enquanto que o cap. 32, basicamente

    um incidente biográfico, tem o mesmo tema do cap. 33 (LXX omite 33,14-26). Toda

    32 R. E. Clements, Jeremiah 1-25 and the Deuteronomistic History, em A. Graeme Auld (ed.), Understanding Poets and Prophets, Sheffield, JSOT Press, 1993, p. 93-113. 33 Compare esse material com coleções proféticas similares. Veja Amós 1,3-2,3; Isaías 13-23, a obra completa de Naum e Obadias; Zacarias 2,4-15; Ezequiel 25-32. 34 H. G. L. Peels, You Shall Certainly Drink!: The Place and Significance of the Oracles Against the Nations in the Book of Jeremiah, em European Journal of Theology, Carlisle, Paternoster Periodicals, vol. 16, n. 6, p. 81-91.

  • 32

    seção seria um bloco separado no meio de uma série de capítulos de caráter

    biográfico.35

    Portanto, a obra de Jeremias parece conter três “livros” separados [1,1–25,13a;

    30–31 (32–33); 46–51]. Entre os três encontram-se dois outros blocos de material (cap.

    26–29; 34–45). Eles são compostos em grande parte de narrativas biográficas que

    relatam incidentes da vida de Jeremias não em ordem cronológica. Ademais, no cap. 52

    (como Is 36–39) deparamo-nos com um esboço histórico muito similar ao material

    disposto em 2Rs 24–25.36

    Em relação à composição e compilação da obra, a pesquisa bíblica moderna

    apresenta basicamente três propostas, as quais concordam que o livro é uma coletânea

    de materiais independentes reunidos e organizados por editores posteriores.37 Porém,

    discordam quanto ao vínculo entre Jeremias e a obra que leva seu nome. S. Jonathan

    Murphy define as três propostas da seguinte forma:

    A primeira abordagem centra-se na historicidade da obra. Ela tenta

    determinar uma data e configuração precisa para cada unidade literária.

    Porque essa abordagem incide sobre a historicidade da obra, o papel do

    profeta Jeremias na composição e compilação da obra é maximizado. A

    abordagem é sensível a aceitar a origem da obra a partir do profeta Jeremias.

    A segunda abordagem centra-se na edição deuteronômica da obra no período

    exílico na Babilônia após a vida de Jeremias. A obra é considerada uma

    reformulação e transformação do material mais antigo por editores exílicos

    para o benefício da comunidade exilada. A necessidade de recuperar as

    palavras de Jeremias é subestimada. A busca histórica é insignificante. O

    foco está na agenda da comunidade exilada cujas necessidades moldaram o

    arranjo atual da obra. A terceira abordagem propõe que questões históricas

    sejam subordinadas à forma canônica final da abordagem da obra – a

    proposta crítica canônica. Essa visão propõe que o Jeremias histórico foi

    reformulado pelo Jeremias deuteronômico. A especulação histórica, no

    entanto, põe-se a serviço da intenção teológica da forma final do texto. Essa

    agenda teológica canônica molda a forma final da obra. Até mesmo dentro

    35 Bob Becking, Between Fear and Freedom: Essays on the Interpretation of Jeremiah 30-31, Leiden/Boston, Brill Academic, 2004, p. 50-52. 36 John Bright, Book of Jeremiah: Its Structure, Its Problems and their Significance for the Interpreter, em Interpretation, Richmond, Union Theological Seminary and Presbyterian School of Christian Education /Union Theological Seminary in Virginia, vol. 9, n. 3, 1955, p. 262. 37 Mais adiante, ofereceremos uma análise não exaustiva da história da pesquisa acerca da questão da composição e compilação do livro de Jeremias.

  • 33

    das três abordagens da composição e compilação não há consenso sobre a

    questão da estrutura do livro.38

    Para o propósito de nossa pesquisa a primeira abordagem que enfoca a

    historicidade da obra parece ser a mais adequada. Entendemos, tal como John Bright,

    que a interpretação da mensagem profética inicia com a exegese baseada no princípio

    histórico-gramatical. Esta procura entender o significado das palavras contra o pano de

    fundo da situação histórica em que foram proferidas; isso envolve um estudo preciso do

    texto a fim de se desvendar a intenção do escritor e a relevância das palavras de Javé

    proclamadas por Jeremias para a antiga Judá.

    Bright alerta contra o erro de se considerar a composição dos livros proféticos

    como um simples problema de crítica literária. O livro de Jeremias, por exemplo, esteve

    envolvido num processo literário iniciado por Jeremias e Baruque, porém, ao lado desse

    processo encontrava-se também em plena atividade a tradição oral. Seja como for, o

    livro de Jeremias como o encontramos hoje representa a coligação gradual de correntes

    de tradição de Jeremias. No entanto, tais tradições são tão antigas quanto o profeta,

    surgem a partir de suas próprias palavras e são transmitidas lado a lado em seu círculo

    de seguidores.

    Os detalhes acerca de como essas correntes de tradição convergiram só podem

    ser inferidos. Todavia, gradualmente, no decurso da transmissão seja oral, escrita ou

    ambas, seja pela própria mão do profeta ou de outro, os materiais começaram a serem

    reunidos em pequenos complexos tradicionais e complexos editoriais maiores. A base

    sobre a qual isso ocorreu parece ter sido a do tema comum, ocasião comum, ou mesmo

    palavra de ordem.

    O livro de Jeremias, na verdade, seria uma criação antiga que teve início a partir

    das palavras ditadas pelo próprio profeta no ano de 605 a.C. (cap. 36).39 Há grande

    probabilidade de que muitos dos complexos do material básico existentes nas seções

    dos caps. 1–25 representem combinações e unidades editoriais compostas pelo próprio

    profeta. Ao mesmo tempo em que o material dos caps. 1–25 estava tomando forma, uma

    38 S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 311-312. 39 Confira uma discussão sobre a literalização da profecia em Martti Nissinen, How Prophecy Became Literature, em Scandinavian Journal of the Old Testament, Philadelphia, Taylor & Francis, vol. 19, n. 2, 2005, p. 153-172.

  • 34

    grande quantidade de material de Jeremias continuava a circular separadamente ou em

    pequenas coleções.40

    A mensagem de Jeremias apresenta-se numa forma literária ou estrutural que

    deve ser recuperada para se entender o que o texto quer dizer. O texto se encontra

    atualmente numa forma final que não corresponde à enunciação histórica original.41 Ele

    tende a se aproximar mais dos questionamentos e dilemas enfrentados pelo compositor

    final.42

    A proclamação profética de Jeremias não se encerra em sua primeira produção,

    mas se desencadeia num continuum de releituras. Para seu entendimento faz-se

    necessário um discernimento crítico do processo das releituras hermenêuticas que

    acompanham as distintas situações vividas, a “distância” entre o ponto de partida do

    texto de Jeremias e seu ponto de chegada redacional. Cada etapa não é mais do que um

    novo momento da revelação continuada de Javé na história.

    O texto de Jeremias é produto de um longo processo hermenêutico caracterizado

    pelo contínuo acréscimo de fragmentos devido à necessidade de atualização.43 O profeta

    proclamou a palavra de Javé em um dado momento histórico; ao longo do tempo, outras

    vozes foram sendo-lhe acrescentadas.44 O livro de Jeremias, à primeira vista, parece de

    Jeremias, mas na realidade a “memória de Jeremias” se fez texto e, como tal, é a

    produção de outras mãos que a foram relendo.45

    Ele não é um todo homogêneo: com a mudança da situação, a palavra de Javé

    não se manteve a mesma, todavia, continuou sendo a palavra de Jeremias. A obra de

    Jeremias em sua forma atual é uma composição que pretende ser um texto final. Ela

    poderia ter sido retrabalhada outras vezes, mas, como a temos, é sua forma final. Se as

    40 John Bright, Book of Jeremiah: Its Structure, Its Problems and their Significance for the Interpreter, p. 259-278. 41 Cf. H. W. Wollf, The Kerygma of the Deuteronomic Historical Work, em W. Brueggemann; H. W. Wolff (eds.), The Vitality of Old Testament Traditions, Atlanta, John Knox Press, 1985, p. 83-100. Também R. E. Clements, Jeremiah 1–25 and the Deuteronomistic History, p. 93-113, destaque para a página 108. 42 Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p. 146. 43 O mesmo processo de acréscimo de fragmento se dá no livro do Cântico dos Cânticos. O autor da obra compõe uma série de grandes poemas utilizando pequenos poemas ou cantos de amor. Confira o artigo de David A. Dorsey, Literary Structuring in the Song of Songs, em Journal for the Study of the Old Testament, London, Sage Publication, n. 46F, 1990, p. 81-96. 44 Cf. James R. Linville, Amos Among the “Dead Prophets Society”: Re-Reading the Lion’s Roar, em Journal for the Study of the Old Testament, London, Sage Publication, n. 90, 2000, p. 55-77. 45 Destacam-se dois processos nessa etapa: a atualização, que consiste em um processo mais linear, uma vez que supõe continuidade entre a palavra originária e a redacional, e a releitura, que indica uma ação mais profunda sobre a proclamação original, podendo transformá-la radicalmente invertendo seu sentido original, por exemplo, na justaposição de mensagens de salvação ao lado de oráculos de salvação.

  • 35

    redações do Jeremias TM ou do Jeremias da LXX representam dois textos distintos,

    cada um é “final” dentro de sua própria tradição.46

    Como sabemos, há grandes diferenças entre as várias tradições textuais do livro

    de Jeremias. Entre a Septuaginta (LXX) e o Texto Massorético (TM) destacam-se

    basicamente duas delas: a Septuaginta é aproximadamente 1/8 menor do que o Texto

    Massorético, e está disposta numa ordem diferente, com os oráculos para as nações

    situados depois do cap. 25,13.47 Surgiram, a partir daí, duas propostas sobre a relação

    entre esses dois textos.

    A primeira centra-se na existência de apenas um livro de Jeremias. A versão

    grega em comparação com o Texto Massorético representaria o estágio mais antigo do

    texto hebraico, ou seja, a partir da LXX seria possível realizar a reconstrução de um

    Vorlage48 hebraico mais antigo. A outra conjectura admite a existência de mais do que

    uma tradição do livro de Jeremias em circulação, e que a LXX representa uma tradição

    diferente do Texto Massorético.49 Nossa pesquisa tende a se harmonizar mais com a

    proposta que sustenta a possibilidade de várias tradições textuais coexistentes do que

    com aquela que destaca a primazia de uma tradição sobre a outra.

    O texto de Jeremias em sua forma atual não é uma simples recopilação de

    materiais já existentes. Estes serviram como base sobre a qual o autor final erigiu sua

    obra, sendo que o objetivo final da obra difere do propósito de cada um de seus

    componentes isolados. A proclamação final do texto completo não repete a dos oráculos

    recopilados, mas exprime algo novo. A redação final do livro de Jeremias não produz

    uma obra literariamente homogênea, mas, de certo modo, preserva o caráter de

    recopilação, uma vez que os materiais de origem são geralmente preservados em sua

    forma prévia.50 São nestes materiais de origem, situados nos caps. 7,1–8,3, que

    46 José Severino Croatto, A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, Vozes, n. 35/36, 2000, p. 7-27. 47 Duane L. Christensen, In Quest of the Autograph of the Book of Jeremiah: A Study of Jeremiah 25 in Relation to Jeremiah 46–51, em Journal of the Evangelical Theological Society, Lynchburg/Wheaton, Evangelical Theological Society, vol. 33, n. 2, p. 145-153. 48 A expressão alemã Vorlage denota uma fonte literária ou modelo por trás de uma composição extensa de um texto bíblico. Confira Arthur G. Patzia; Anthony J. Petrotta, Pocket Dictionary of Biblical Studies, Downers Grove, InterVarsity Press, 2002, p. 122. 49 Rannfrid I. Thelle, Babylon in the Book of Jeremiah (MT): Negotiating a Power Shift, em Hans M. Barstad; Reinhard G. Kratz (eds.), Prophecy in the Book of Jeremiah, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2009, p. 191. Veja Emanuel Tov (ed.), The Greek and Hebrew Bible: Collected Essays on the Septuagint, Leiden/Boston/köln, Brill Academic, 1999, p. 363-384. Anneli Aejmelaeus, Jeremiah at the Turning-Point of History: The Function of Jer. XXV 1-14 in the Book of Jeremiah, em Vetus Testamentum, Leiden, Brill Academic Publishers, vol. 52, n. 4, 2002, p. 459-482. 50 José Severino Croatto, A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético, p. 9-10.

  • 36

    procuraremos nos concentrar no curso de nosso estudo a fim de entender o ambiente e a

    intenção das palavras originais de Jeremias.

    O livro de Jeremias, portanto, seria uma antologia das palavras e dos incidentes

    ocorridos na vida desse profeta.51 Como já vimos e veremos também mais adiante,

    embora essa obra tenha passado por uma longa e complexa história de redação que a

    aproxima dos questionamentos e dilemas enfrentados pelo compositor final, existe uma

    profunda e estreita ligação entre ela e o profeta Jeremias, dado que a maior parte do

    material encontrado nela pode ser atribuída a ele ou a seu amanuense Baruque. Além do

    mais, é provável que tanto a composição das unidades individuais como a forma final

    do livro tenham se dado dentro de uma mesma ótica e círculo social e os materiais de

    origem geralmente sido preservados em sua forma prévia, o que implica que tanto na

    formação como na finalização da obra houve pouca ou até nenhuma mudança na

    intenção e propósito original dos componentes isolados do livro.

    Sua composição pode ser esboçada através da seguinte estrutura que

    apresentaremos abaixo. Nela os compiladores dividiram todo o material agrupando-o

    basicamente em cinco porções. Seguindo a ordem da Septuaginta encontramos o

    seguinte padrão:52

    1,1–25,14 Ameaças contra Judá e Jerusalém

    25,15-38; 46–51 Ameaças contra as nações estrangeiras (Septuaginta: 25,14–32,38)

    26–35 Promessas para Israel e Judá (Septuaginta: 33–42)

    36–45 Porções maiores do documento de Baruque (Septuaginta: 43–51)

    52 Apêndice

    Na tradição textual do Texto Massorético essa ordem foi alterada pela

    transposição dos oráculos contra as nações estrangeiras (46–51), ficando somente a

    introdução desses oráculos em seu lugar (25,15-38):53

    51 Philip S. Johnston, Now You See Me, Now You Don’t! Jeremiah and God, em John Day (ed.), Prophecy and Prophets in Ancient Israel, New York/London, T&T Clark, 2010, p. 291-292. Confira também R. K. Harrison, Jeremiah and Lamentations: An Introduction and Commentary, Nottingham, Inter-Varsity, vol. 21, 1973, p. 32. 52 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, p. 305. 53 Ernest Sellin; Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p. 565. Veja também outras sugestões de estrutura em S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 317. Richard D. Patterson, Of Bookends, Hinges, and Hooks: Literary Clues to the Arrangement of Jeremiah’s Prophecies, em Westminster Theological Journal, Philadelphia, Westminster Theological Seminary, vol. 51, n. 1, 1989, p. 109-131. T. Raymond Hoobs, Some Remarks on the Composition and Structure of the Book of Jeremiah, em Catholic Biblical Quarterly, Washington, Catholic Biblical Association of America, vol. 34, n. 3, 1972, p. 267.

  • 37

    1–25 Ameaças contra Judá e Jerusalém (incluindo 25,15-38)

    26–35 Promessas para Israel e Judá

    36–45 Porção maior do documento de Baruque

    46–51 Ameaças contra as nações estrangeiras

    52 Apêndice

    1.2. DEMARCANDO OS LIMITES DA UNIDADE PESQUISADA

    1.2.1. A palavra de Javé como marco introdutório

    Definimos como alvo de nosso estudo exegético os caps. 7,1–8,3 de Jeremias.

    Estes capítulos fazem parte dos caps. 1–25. E estes vinte cinco capítulos, por sua vez,

    compõem um primeiro “livro” em nosso profeta.54 T. E. Fretheim segue esse ponto de

    vista ao distinguir em sua obra a seção dos caps. 26–45 da seção que compreende os

    caps. 1–25.55

    No cap. 25 de Jeremias temos a conclusão formal do primeiro “livro”,

    estabelecida por um sumário de advertência para Judá (25,1-14) e para as nações

    (25,15-38). E no cap. 26 inicia uma nova grande unidade de nosso profeta. Esta ampla

    unidade se estende até o cap. 45; seu principal tema são os eventos na vida de Jeremias

    (26,1–45,5), começando no cap. 26 com conflito entre o profeta e as lideranças de

    Jerusalém. Portanto, é recomendável fecharmos o primeiro “livro” no cap. 25.

    A avaliação de aproximadamente 162 ocorrências do termo “palavra” em

    Jeremias tem nos levado a inferir que a frase “a palavra que aconteceu para Jeremias de

    Javé” ou sua versão ligeiramente modificada introduz novas seções no livro. Cada uma

    delas utiliza o artigo definido “a” (palavra) e a frase “de Javé”. Partindo desse

    pressuposto, parece que o texto final gravita ao redor do tema central “a palavra que

    54 Louis Stulman, Order Amid Chaos: Jeremiah as Simbolic Tapestry, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998, p. 17-19. Stulman admite que o arranjo de Jeremias “consiste de amplas unidades composicionais” (caps. 1–25 e 26–52). A primeira grande unidade em Jeremias 1–25 ou “primeiro rolo” “testifica o colapso da ordem criada” e a “demolição das redes de significados de Israel”. Para ele, a primeira unidade em 1–25 serve como prolegômeno para a segunda unidade nos caps. 26–52, que documenta o julgamento anunciado em 1–25, mas também oferece “estratégias de esperança e novos começos”. É provável que em algum ponto no desenvolvimento do texto amplos contornos de Jeremias 1–25 tenham desfrutado de uma existência independente de Jeremias 26–52. Veja Kathleen M. O’Connor, Do not Trim a Word: The Contributions of Chapter 26 to the Book of Jeremiah, em Catholic Biblical Quarterly, Washington, Catholic Biblical Association of America, vol. 51, n. 4, 1989, p. 617-630. Martin Kessler, Reading the Book of Jeremiah: A Search for Coherence, Winona Lake, Eisenbrauns, 2004, p. 1-13. 55 Terence E. Fretheim, Jeremiah, p. 364. Quanto ao estudo da estrutura e arranjo da unidade literária refletida em Jeremias 26–45, indico o artigo de Gary E. Yates, Narrative Parallelism and the “Jehoiakim Frame”: A Reading Strategy for Jeremiah 26–45, em Journal of the Evangelical Theological Society, Lynchburg/Wheaton, Evangelical Theological Society, vol. 48, n. 2, 2005, p. 263-281.

  • 38

    aconteceu a Jeremias de Javé”. Embora tal abordagem abarque pequenas deficiências,

    de modo geral fornece a estrutura apropriada para o livro de Jeremias.56

    Os primeiros 25 capítulos são basicamente oráculos de julgamento profético,

    estruturados com o objetivo de demonstrar o desmantelamento do universo simbólico de

    Judá, ou seja, sua percepção da vida e da realidade.57 Louis Stulman estabelece que os

    caps. 1–25 de Jeremias são acessíveis em sua forma final e não refletem desarranjo de

    materiais. Sendo assim, ele propõe que os capítulos 1 e 25 estão dispostos como uma

    estrutura editorial ou um invólucro para cinco grandes unidades dentro dos caps. 1–25.

    O cap. 1 serve como uma introdução ao livro, apresentando seus grandes temas

    em termos antecipatórios e enigmáticos. O ponto de partida do livro consiste de um

    cabeçalho introdutório (v. 1-3) seguido pelo relato de ordenação ou chamado de

    Jeremias (v. 4-19). Os temas apresentados neste primeiro capítulo foram sintetizados

    por Louis Stulman da seguinte forma:

    Emergem do capítulo introdutório, portanto, temas que não estão apenas

    presentes nos caps. 1–25, mas são seus principais pontos de referência. Ou

    seja, o cap. 1 é concebido como um microcosmo temático do primeiro rolo.

    Ele inclui os seguintes temas: a proclamação da palavra de Javé por alguém

    que é um “profeta como Moisés”, a confiabilidade dessa palavra e sua

    afirmação do governo soberano de Deus sobre Judá e todas as nações (isto é,

    a afirmação de que a geopolítica é governada por Deus e não pela

    engenhosidade e poder humanos), a rejeição da mensagem profética e o

    resultante desmantelamento de todos os apoios sociais e simbólicos por um

    bárbaro do norte, a guerra interna travada contra Jeremias pelas camadas

    superiores da hierarquia social, e a esperança enigmática de salvação em

    meio à destruição e a destruição de todos os suportes sociais e simbólicos.

    Todos esses temas prenunciam e encapsulam os temas literários dominantes

    que estão localizados na primeira parte do livro.58

    O cap. 25 encerra a coleção e a primeira fase da vida pública de Jeremias com o

    anúncio do cumprimento da palavra de Javé e seus efeitos devastadores para Judá (25,1-

    56 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, p. 305-307. 57 Veja W. Rudolph, Jeremia, Tübingen, J.C.B. Mohr, 1947, 325 p., que nomeia os caps. 1–25 como “ditos de julgamento contra Jerusalém e Judá”. Assim como Douglas Rawlinson Jones, Jeremiah: New Century Bible Commentary, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1992, 557 p., que o descreve como “crítica profética e advertência contra Judá e Jerusalém”. 58 Louis Stulman, The Prose Sermons as Hermeneutical Guide to Jeremiah 1–25: The Desconstruction of Judah’s Symbolic World, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 46.

  • 39

    14) e para todas as nações (25,15-38). Este capítulo anuncia a soberania de Javé sobre

    todas as nações e coloca Jeremias nesse sistema simbólico como o “profeta para as

    nações” (1,5), estabilizando e preenchendo as brechas ideológicas enigmáticas do cap.

    1. Em sua análise estrutural, Stulman sugere a seguinte divisão das unidades

    macroestruturais contidas em Jeremias 1-25:59

    1–25 O desmantelamento dos “primeiros princípios” de Judá.

    1,1-19 A introdução funcional: plano soberano de Deus a respeito do lugar original de Judá entre

    as nações.

    2,1–6,30 Macro-unidade 1. Judá abandona Javé: a base para a culpa e pena de morte.

    7,1-10,25 Macro-unidade 2. Desmantelamento da ideologia do templo.

    11,1-17,27 Macro-unidade 3. Desmantelamento da ideologia da Aliança.

    18,1-20,18 Macro-unidade 4. Desmantelamento da compreensão de íntimo e estranho.

    21,1-24,10 Macro-unidade 5. Desmantelamento da ideologia real.

    25,1-38 O fechamento funcional: o cumprimento do plano soberano de Deus a respeito do lugar

    original de Judá entre as nações.

    Os caps. 7,1–8,3 de Jeremias, objeto de nosso estudo, estão situados no grande

    bloco que engloba os caps. 7,1–10,25, o qual, por sua vez, encontra-se emoldurado por

    duas outras grandes unidades: de um lado, temos os caps. 2,1–6,30 e, de outro, os caps.

    11,1–17,27.60 Para nosso propósito, devido aos limites do trabalho aqui apresentado,

    basta averiguarmos alguns detalhes acerca dessas três seções, uma vez que a unidade

    analisada se encontra dentro da seção contígua às outras duas. Buscaremos, a seguir,

    delimitar cada uma dessas grandes seções, bem como as unidades menores que fazem

    parte desse universo literário, a fim de demarcarmos e definirmos com maior precisão a

    unidade alvo de nossa pesquisa.61

    59 Louis Stulman, The Prose Sermons as Hermeneutical Guide to Jeremiah 1–25: The Desconstruction of Judah’s Symbolic World, p. 34-63. As cinco unidades apresentam uma palavra introdutória de Javé, um imperativo dirigido ao profeta para agir e falar e o conteúdo da ação ou mensagem comunicada. 60 Veja sobre a relação de simetria entre os caps. 7,1–10,25 no artigo de Alicia Winters, Ouvi a palavra. Jeremias 7-10 + 34-38, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/Ribla, Vozes, São Leopoldo/Petrópolis, 2000, v. 35/36, p. 93-96. 61 Sobre a tarefa da delimitação veja Raymond de Hoop; Marjo Korpel; Stanley Porter (eds.), Method in Unit Delimitation (Pericope 6): Scripture as Written and Read in Antiquity, Leiden/Boston, Brill Academic, vol. 6, 2007, 231p. Também Raymond de Hoop; Marjo Korpel; Stanley Porter (eds.), The Impact of Unit Delimitation on Exegesis (Pericope 7): Scripture as Written and Read in Antiquity, Leiden/Boston, Brill Academic, vol. 7, 2009, 285p.

  • 40

    1.2.2. A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 e seu entorno

    A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 registra um conflito social envolvendo o

    profeta e seus contemporâneos. Seu assunto principal é o “desmantelamento da

    ideologia do templo”. Ao analisá-la pelo prisma literário é possível primeiramente

    constatar uma ruptura entre as profecias registradas nos caps. 2–6 e as encontradas nos

    caps. 7–10. Se, por um lado, há continuidade e repetida ênfase no tema central da

    violação da aliança de Javé e o iminente castigo caso não haja arrependimento, por

    outro, há claros indícios de ruptura.

    A seção dos caps. 2,1–6,30 engloba uma coleção de oráculos marcados por uma

    progressão de pensamento cujo realce recai sobre culpa e punição de Judá. A primeira

    subunidade é caracterizada pelo tema da “infidelidade do povo de Javé” (2,1-37).

    Destaca-se nesse contexto um conjunto de quatro unidades menores, que descrevem

    respectivamente “a infidelidade para com a aliança de Javé” (2,1-13); “as consequências

    da apostasia de Israel” (2,14-19); “a natureza degenerativa do pecado de Judá” (2,20-

    28); “a certeza do julgamento de Javé” (2,29-37).

    Segue-se uma segunda subunidade que tem como lema “a natureza e a

    necessidade do verdadeiro arrependimento” (3,1–4,4). Encontramos aí oráculos que

    falam “da necessidade de mudança de vida” (3,1-5.19-20); “da apostasia de Israel e da

    infidelidade de Judá” (3,6-11); “da súplica para o arrependimento e a promessa de

    restauração” (3,12-18); e “da necessidade de arrependimento sincero” (3,1–4,4). A

    seção é concluída com uma subunidade que descreve “a certeza do julgamento de Javé

    por meio de um inimigo do norte”, caso não ocorra o arrependimento mencionado (4,5–

    6,30). Três pequenas unidades fazem parte dessa subunidade: o “inimigo do norte” (4,5-

    31); as “razões para a ruína de Jerusalém” (5,1-31); uma “recapitulação” (6,1-30).62

    O último capítulo dessa seção (6,1-30) revela um sumário dos prévios

    pronunciamentos de Jeremias contidos nos caps. 4,1–5,31, sendo que o clímax do

    capítulo como também da seção é alcançado por meio de uma metáfora extraída do

    processo de mineração (6,27-30). Além do mais, a evidência de marcadores de seção na

    Bíblia Hebraica, ou seja, o petuhah63, no término dos caps. 1 e 6, o marco introdu