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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
A PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3: UMA ANÁLISE DA PROFECIA COMO PORTADORA DE
UM CONFLITO SOCIAL ORIUNDO DA COBRANÇA EXCESSIVA DE TRIBUTO
SAMUEL DE FREITAS SALGADO
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2014
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
A PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3: UMA ANÁLISE DA PROFECIA COMO PORTADORA DE
UM CONFLITO SOCIAL ORIUNDO DA COBRANÇA EXCESSIVA DE TRIBUTO
Por
Samuel de Freitas Salgado Orientador: Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira
Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Doutor
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2014
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FICHA CATALOGRÁFICA
SaL32p Salgado, Samuel Freitas A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo / Samuel Freitas Salgado -- São Bernardo do Campo, 2014. 337fl. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Pós Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo Bibliografia Orientação de: Tércio Machado Siqueira
1. Bíblia – A.T. – Jeremias – Crítica e interpretação 2. Bíblia – A.T. – Exegese I. Título
CDD 224.207
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A tese de doutorado sob o título “A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da
profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de
tributo” elaborada por Samuel de Freitas Salgado foi defendida e aprovada em 11 de
novembro de 2014, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Tércio Machado
Siqueira (Presidente/UMESP), Prof. Dr. José Ademar Kaefer (Titular/UMESP), Prof.
Dr. Edson de Faria Francisco (Titular/UMESP), Prof. Dr. Haroldo Reimer
(Titular/UEG), Prof. Dr. Landon Booth Jones (Titular/FTBSP).
________________________________________ Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira
Orientador e Presidente da Banca Examinadora
____________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião
Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de Pesquisa: Literatura e religião no mundo bíblico
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AGRADECIMENTOS Nestas breves linhas estendo minha humilde gratidão a todos quantos
contribuíram direta ou indiretamente para que eu chegasse a esta etapa de minha jornada
acadêmica. Agradeço, sobretudo, ao trino Deus todo-poderoso que até aqui tem me
ajudado, com seu poder, graça, misericórdia e amor infinitos. A ele o louvor!
Agradeço também a minha amada esposa Márcia, fiel auxiliadora e companheira
em minha peregrinação, e a meu filho Israel, grandes incentivadores nas horas difíceis.
Sou grato ainda a todos os professores e funcionários da Universidade Metodista de São
Paulo pelo empenho e dedicação ao ensino. Não poderia deixar de expressar meu
reconhecimento póstumo ao professor Milton Schwantes por sua valiosa contribuição
para minha vida acadêmica e ministério pastoral, bem como pelo legado deixado, não
somente a mim, mas a todos que tiveram o grande privilégio de conhecê-lo. Minha
gratidão se estende ao professor Tércio Machado Siqueira, por sua dedicação e interesse
na orientação desta pesquisa.
Reconheço o grande e imprescindível auxílio que me foi concedido pelo
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião (IEPG), o qual
financiou integralmente meus estudos. A Ana Fonseca, que faz parte dessa importante
instituição, agradeço profundamente por tudo e oro para que o Senhor Jesus esteja
sempre a seu lado.
Finalmente, expresso todo meu carinho e afeto a todos os membros da
comunidade Missão Gente de Jesus e a meus amados colegas de ministério,
especialmente meu sogro, irmão Nelson, e os pastores Rick e Marcelo, amigos sempre
presentes.
Que o Senhor abençoe a todos!
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SALGADO, Samuel de Freitas, A palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3: uma análise da
profecia como portadora de um conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo,
São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.
RESUMO
Esta pesquisa privilegia o enfoque histórico ao analisar o texto bíblico, como produto
histórico-social, a partir do método sociológico. O material disposto ao longo desta
investigação pretende ser uma ajuda para a compreensão de alguns textos do profeta
Jeremias. Partindo do princípio de que o texto possui um vínculo com a sociedade na
qual foi criado e fazendo uso da metodologia exegética, realiza-se uma análise
histórico-sociológica da palavra de Javé em Jeremias 7,1–8,3 como portadora de um
conflito social oriundo da cobrança excessiva de tributo em uma sociedade judaíta
marcadamente tributária. Busca-se, por esse meio, o sentido do texto dentro do provável
cenário histórico-social que permeia o escrito. Para isso, faz-se necessária a
investigação dos aspectos preliminares que envolvem tanto o livro de Jeremias,
sobretudo, os polêmicos caps. 7,1–8,3, como também a questão do estudo da pesquisa
moderna acerca dessa magnífica obra. Vale a pena também salientar o conceito
semiótico da poética sociológica que procura estudar a interação causal entre literatura e
seu meio social. Além disso, avalia-se o âmbito histórico social da unidade literária alvo
de nossa pesquisa, situando-a em seu provável contexto histórico social e determinando
a datação, o cenário político e o modo de produção vigente nesse período. Não
olvidando, contudo, do fator desencadeador do conflito social e o papel da religião
nesse cenário. Além do mais, examina-se o sentido dos textos específicos ou unidades
literárias concluídas (perícopes) presentes nos caps. 7,1–8,3, tendo como pressuposto o
modelo teórico do modo de produção tributário e os passos da exegese histórico-social.
O mecanismo socioanalítico do modo de produção tributário servirá como instrumento
de análise da condição socioeconômica, centrando-se nos componentes externos
incorporados na coletânea, não em sua história redacional, mas sim em sua formação
social.
Palavras-chave: Jeremias, Antigo Testamento, Bíblia, modo de produção tributário,
exegese histórico-social, poética sociológica, templo.
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SALGADO, Samuel de Freitas, The Word of Yahweh in Jeremiah 7,1–8,3: An Analysis
of Prophecy as Carrier of a Social Conflict Arising from the Excessive Tribute
Collection, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.
ABSTRACT
This research focuses on the historical approach to analyze the biblical text as a
historical-social product, from the sociological method. The material arranged along this
research is intended to be an aid to understanding some texts from the prophet Jeremiah.
Assuming that the text has a link with the society in which it was created and making
use of exegetical methodology, carried out a historical-sociological analysis of the word
of Yahweh in Jeremiah from 7,1–8,3 as carrier of a social conflict arising from
excessive tribute collection on a Judahite society markedly tributary. It seeks, through
this, the meaning of the text within the historical setting likely that permeated the social
writing. For this, it is necessary to research the primary aspects involving both the book
of Jeremiah, especially the controversial caps. 7,1–8,3, as well as the question of
modern research study about this magnificent work. It is also worth highlighting the
semiotic concept of sociological poetics that seeks to study the causal interaction
between literature and the social environment. Moreover, it evaluates the social
historical context of the literary unit target of our research, situating it in its likely social
and historical context, determining the date, the political scene and the production mode
current at this time. Not forgetting, however, the triggering factor of social conflict and
the role of religion in this scenario. Furthermore, it examines the meaning of specific
texts or completed literary units (pericopes) present in caps. 7,1–8,3, with the
assumption the theoretical model of the tributary production mode and the steps of the
social-historical exegesis. The social analytical mechanism of the tributary production
mode will serve as a tool for analysis of socioeconomic status, such analysis is focused
on the external components incorporated in the collection, not in its editorial history, but
in its social formation.
Keywords: Jeremiah, Old Testament, Bible, Mode of Production Tributary, Social-
Historical Exegesis, Sociological Poetics, Temple.
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SALGADO, Samuel de Freitas, La palabra de Javé en Jeremías 7,1–8,3: un análisis de
la profecía como portadora de un conflicto social oriundo de la cobranza excesiva de
tributo, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2014.
RESUMEN
Esta pesquisa privilegia el enfoque histórico para analizar el texto bíblico, como un
producto histórico-social, a partir del método sociológico. El material dispuesto a lo
largo de esta investigación pretende ser una ayuda para la comprensión de algunos
textos del profeta Jeremías. Partindo de principio que el texto posea un vínculo con la
sociedad en la cual fue creada y haciendo uso de la metodología exegética, se realiza un
análisis histórico-sociológico de la palabra de Javé en Jeremías 7,1–8,3 como portadora
de un conflicto social oriundo de la cobranza excesiva de tributo en una sociedad judaíta
marcadamente tributaria. Busca, por este médio, el sentido del texto dentro del probable
escenario histórico social que impregnaba el escrito. Para esto, es necesario investigar
los aspectos preliminares que invuelven tanto el libro de Jeremías, sobre todo, los
polémicos caps. 7,1–8,3, así como la cuestión del estudio de la pesquisa moderna sobre
esta magnífica obra. También vale la pena resaltar el concepto semiótico de la poética
sociológica que busca estudiar la interacción causal entre la literatura y su medio social.
Además de esto, se evalúa el ámbito histórico-social de la unidad literaria objeto de
nuestra pesquisa, situándola en su probable contexto histórico-social y determinando la
datación, el escenario político y el modo de producción vigente en este período. No
olvidando, todavia, del factor desencadenante del conflicto social y el papel de la
religión en este escenario. Además, se examina el sentido de los textos específicos o
unidades literarias concluidas (perícopas) presentes en los caps. 7,1–8,3, tomando por
supuesto el modelo teórico del modo de producción tributario y los pasos de la exégesis
histórico-social. El mecanismo socio analítico del modo de producción tributario servirá
como una herramienta de análisis de la condición socioeconómica, centrándose en los
componentes externos incorporados en la colección, no en su historia redaccional, pero
si en su formación social.
Palabras clave: Jeremías, Antiguo Testamento, Biblia, modo de producción tributario,
exégesis histórico-social, poética sociológica, templo.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 19
CAPÍTULO 1
A PALAVRA DE JAVÉ QUE ACONTECEU EM JEREMIAS 7,1–8,3 ............ 25
1.1. QUESTÕES PRELIMINARES ........................................................................... 25
1.1.1. O livro de Jeremias, suas etapas e seus dilemas ............................................... 25
1.1.2. A questão do arranjo e estrutura do livro de Jeremias ...................................... 29
1.2. DEMARCANDO OS LIMITES DA UNIDADE PESQUISADA ...................... 37
1.2.1. A palavra de Javé como marco introdutório ..................................................... 37
1.2.2. A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 e seu entorno ............................................ 40
1.2.3. Delimitação e associação das pequenas unidades de Jeremias 7,1–8,3............ 43
1.2.3.1. Dificuldades quanto à divisão da unidade ..................................................... 44
1.2.3.2. Relacionamento e coesão interna .................................................................. 46
1.2.4. De olho nas pequenas unidades de sentido ....................................................... 52
1.2.5. Em busca do sentido das pequenas unidades.................................................... 53
1.3. O ESTUDO DA QUESTÃO: ESTILO E AUTENTICIDADE .......................... 58
1.3.1. O dilema literário do “discurso do templo” nos caps. 7,1–8,3 ......................... 59
1.3.2. Um olhar sobre a história da pesquisa de Jeremias .......................................... 59
1.3.2.1. Duhm e Mowinckel ....................................................................................... 59
1.3.2.2. Hyatt e Bright ................................................................................................ 63
1.3.2.3. Weippert e Thiel ............................................................................................ 66
1.3.2.4. Thompson ...................................................................................................... 69
1.3.2.5. Carroll, Mckane, Holladay e Clements ......................................................... 70
1.3.2.6. Craigie ........................................................................................................... 77
1.3.2.7. Huey .............................................................................................................. 78
1.3.2.8. Lundbom ........................................................................................................ 80
1.3.2.9. Sharp .............................................................................................................. 81
1.3.3. Parâmetros norteadores da unidade dos caps. 7,1–8,3 ..................................... 82
1.4. CONCLUSÕES PARCIAIS ................................................................................ 87
CAPÍTULO 2
O “ROSTO” DA PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS 7,1–8,3 ....................... 91
2.1. O DELINEAMENTO DO PERFIL DO PRIMEIRO BLOCO ........................... 92
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2.1.1. A provável tradução de Jeremias 7,1-15 .......................................................... 92
2.1.2. Observações sobre questões gramaticais .......................................................... 94
2.1.2.1. Primeira subunidade (v. 1-2) ......................................................................... 97
2.1.2.2. Indicadores de assuntos (v. 3-4) .................................................................... 99
2.1.2.3. Segunda subunidade (v. 3. 5-7) ................................................................... 101
2.1.2.4. Terceira subunidade (v. 4. 8-12) .................................................................. 103
2.1.2.5. Quarta subunidade (v. 13-15) ...................................................................... 107
2.1.3. Uma variedade de gêneros e fórmulas ............................................................ 110
2.1.4. Situando lugar e data ..................................................................................... 116
2.2. OS TRAÇOS MARCANTES DO SEGUNDO BLOCO .................................. 119
2.2.1. Enveredando na tradução de Jeremias 7,16-20 .............................................. 119
2.2.2. Apontamentos gramaticais ............................................................................. 120
2.2.3. Desvendando gêneros e fórmulas ................................................................... 126
2.2.4. A indicação do lugar e data ........................................................................... 127
2.3. VISLUMBRANDO A APARÊNCIA DO TERCEIRO BLOCO ..................... 128
2.3.1. Uma proposta tradutiva para Jeremias 7,21-28 .............................................. 128
2.3.2. Principais características gramaticais ............................................................. 129
2.3.3. Estudo dos gêneros e fórmulas ....................................................................... 137
2.3.4. A determinação do lugar e data ..................................................................... 138
2.4. A CONFIGURAÇÃO EXTERIOR DO QUARTO BLOCO ............................ 140
2.4.1. Traduzindo a porção de Jeremias 7,29-34 ...................................................... 140
2.4.2. Questões gramaticais ...................................................................................... 141
2.4.3. Detalhamento dos gêneros e fórmulas ............................................................ 146
2.4.4. A investigação do lugar e data ....................................................................... 146
2.5. A FISIONOMIA DO QUINTO BLOCO .......................................................... 148
2.5.1. O texto traduzido de Jeremias 8,1-3 ............................................................... 148
2.5.2. Análise dos principais elementos gramaticais ................................................ 149
2.5.3. Gêneros e fórmulas em destaque .................................................................... 153
2.5.4. Lugar e data do evento.................................................................................... 153
2.6. CONCLUSÕES PARCIAIS .............................................................................. 154
CAPÍTULO 3
O AMBIENTE HISTÓRICO-SOCIAL DA PALAVRA DE JAVÉ EM JEREMIAS
7,1–8,3 ...................................................................................................................... 157
3.1. PROVÁVEL DATAÇÃO INICIAL ................................................................. 157
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3.2. A PESSOA DO PROFETA ............................................................................... 161
3.3. A UNIDADE DOS CAPS. 7,1–8,3 NO CURSO HISTÓRICO-SOCIAL ........ 167
3.3.1. A supremacia assíria e seus efeitos em Israel e Judá ...................................... 167
3.3.2. O reino de Judá no vácuo das potências ......................................................... 172
3.3.2.1. O “povo da terra” ......................................................................................... 173
3.3.2.2. A reforma josiânica ..................................................................................... 177
3.3.3. Supremacia egípcia e babilônica e seus efeitos em Judá ................................ 180
3.3.4. Um breve balanço dos acontecimentos .......................................................... 182
3.4. ABORDAGEM MATERIALISTA DA SOCIEDADE .................................... 185
3.4.1. A definição de modo de produção .................................................................. 187
3.4.2. A definição de economia sagrada ................................................................... 192
3.4.2.1. Comunidade aldeã, complexo templo-cidade e Estado despótico. .............. 193
3.4.2.2. Trabalho e classe ......................................................................................... 199
3.4.2.3. Sistema de partilha versus extração ............................................................. 200
3.5. A TRIBUTAÇÃO NO ANTIGO ISRAEL ....................................................... 206
3.5.1. As consequências da tributação em Judá ........................................................ 210
3.6. CONCLUSÕES PARCIAIS ............................................................................. 211
CAPÍTULO 4
AS PALAVRAS DE REJEIÇÃO AOS SETORES SOCIAIS CIRCUNSCRITOS
AOS SENHORES DO PODER ............................................................................. 215
4.1. JEREMIAS 7,1-15: OUVI A PALAVRA DO SENHOR ................................. 215
4.1.1. Instrução para o profeta (Jr 7,1-2) .................................................................. 215
4.1.2. Eu deixarei morar a vós neste lugar (Jr 7,3.5-7). ............................................ 219
4.1.3. Eu vi (Jr 7,4.8-12). .......................................................................................... 233
4.1.4. A chegada do castigo (Jr 7,13-15) .................................................................. 245
4.2. JEREMIAS 7,16-20: NÃO VÊS O QUE ESTÃO FAZENDO ......................... 248
4.2.1. Não te ouvirei (Jr 7,16) ................................................................................... 248
4.2.2. Eles provocaram a minha ira (Jr 7,17-19) ...................................................... 250
4.2.3. Minha ira será derramada (Jr 7,20) ................................................................. 255
4.3. JEREMIAS 7,21-28: FALARÁS E ELES NÃO OUVIRÃO ........................... 258
4.3.1. A desobediência dos pais (Jr 7,21-24) ............................................................ 258
4.3.2. Tais pais, tais filhos (Jr 7,25-26): ................................................................... 266
4.3.3. Eles não responderão a ti (Jr 7,27-28) ............................................................ 268
4.4. JEREMIAS 7,29-34: CESSARÁ A VOZ DO NOIVO E DA NOIVA ............. 270
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4.4.1. “Corte” a corte (v. 29) .................................................................................... 270
4.4.2. Eles fizeram a maldade (Jr 7,30-31) ............................................................... 273
4.4.3. Não haverá quem espante (Jr 7,32-34) ........................................................... 280
4.5. JEREMIAS 8,1-3: OS DIGNITÁRIOS SEM DIGNIDADE ............................ 284
4.5.1. A violação das sepulturas como castigo (Jr 8,1-3) ......................................... 284
4.6. CONCLUSÕES PARCIAIS .............................................................................. 292
CONCLUSÃO GERAL ......................................................................................... 295
BIBLIOGRAFIA BÁSICA .................................................................................... 301
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INTRODUÇÃO
Esta pesquisa de cunho exegético tem como ponto central investigar os textos
proféticos disponibilizados nos caps. 7,1–8,3 do livro de Jeremias como reflexo de um
conflito social desencadeado pela cobrança excessiva de tributo na perspectiva dos que
vivenciaram o acontecimento fundante. A análise deste material pode contribuir para o
esclarecimento de algumas questões concernentes a obra de Jeremias. Parte da
dificuldade na investigação deste livro profético está na desordem de seus materiais. A
obra está disposta numa lógica de difícil compreensão e pouquíssimos materiais são
datados. Além do mais, o debate crítico histórico tem levantado a questão da relação
entre Jeremias, o homem, e o livro que leva o seu nome.
Na tentativa de superar estes e outros obstáculos, analisaremos o texto em sua
forma e essência a fim de compreendê-lo como literatura (por meio da análise literária)
e como produto histórico-social (por meio da análise sociológica). No entanto, não se
pode olvidar que as palavras do profeta nasceram da situação pragmática extraverbal e
mantém a conexão com essa situação. Tal discurso está vinculado com a vida e não
pode ser dissociado dela sem perder seu significado. Na avaliação dos passos
importantes da interpretação dos caps. 7,1-8,3 de Jeremias faremos uso da metodologia
exegética a fim de aclarar o sentido que tinha o relato para o local, a época e a
comunidade em que fora formulado originalmente e permitir que transpareça a intenção
original do escrito.
O foco de nossa investigação não privilegiará os últimos redatores, mas sim os
que vivenciaram o acontecimento fundante. Ao fazermos tal abordagem, estamos
cientes da limitação e parcialidade de nossa pesquisa por não enfatizarmos a natureza
das palavras de Jeremias e sua relevância para o povo de Judá no período do exílio e do
pós-exílio. Ambos os aspectos das implicações da mensagem profética são importantes.
O fechamento em uma época não permite compreender a futura vida da obra nos
séculos subsequentes.
Embora tal ponto de vista tenha certa coerência é salutar também entender que
uma obra não pode viver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os
séculos passados. É esse passado que procuraremos analisar em nossa pesquisa. Embora
sabedor da relevância dos seguidores do profeta em sua obra, neste trabalho
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procuraremos privilegiar a pregação do próprio Jeremias para o povo de Judá em seus
dias.
Muito já se tem escrito sobre Jeremias destacando a relevância de sua mensagem
para o povo de Judá no período do exílio e pós-exílio, em detrimento de sua importância
para o povo de Judá no período pré-exílico. Nesta pesquisa procuraremos enfatizar a
origem e importância da mensagem do profeta Jeremias durante esse período turbulento
da história de Judá.
Dessa forma, nossa abordagem estende-se além do texto e seu entorno imediato
a fim de captar as tensões sociais, econômicas e políticas das quais o escrito originou-se
e faz parte. A unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias está permeada por essas tensões, e
nelas essa unidade desempenha um papel decisivo. Para compreendê-las é preciso situar
os ditos de Jeremias no tempo e no espaço a fim de não depreciar o seu verdadeiro
significado como também fazer uso da teoria e ferramenta fornecida pela ciência social.
Sobre esse aspecto seria importante aplicar o conceito do “modo de produção
tributário”, que nos auxiliará na identificação da causa e dos envolvidos no conflito.
Nosso objetivo ao estudar a unidade dos caps. 7,1–8,3 é analisar os componentes do
conflito social que se encontram emaranhados no relato testemunhal do profeta.
Diante disso, o estudo proporá que a unidade consiste fundamentalmente de
autênticos ditos proféticos de Jeremias, reunidos num grande conjunto literário
unificado e dispostos em estilo de prosa elevada, caracterizada por frequentes
paralelismos. Ademais, a pesquisa ressaltará também a importância da centralidade da
abordagem materialista histórica na interpretação do conteúdo da mensagem profética.
O conceito do modo de produção tributário como mecanismo de análise da sociedade
judaíta contribuirá para a fundamentação da hipótese de que as duras palavras do
profeta expressas nessa unidade tiveram seu nascedouro em um conflito social entre
campo e cidade, por conta da cobrança excessiva de tributo numa sociedade
caracterizada pela tensão entre a economia de partilha e a economia extrativa.
Afora o interesse pessoal do pesquisador, o tema se impõe pela sua relevância
para a pesquisa acadêmica do Antigo Testamento na América Latina. A análise
sociológica da referida unidade nos permite entender o cenário socioeconômico, político
e ideológico donde emergiu o relato. Tal abordagem interpretativa, por um lado,
desperta a sensibilidade em relação a questões que, embora não tão aparentes, devido a
seu caráter teológico, são de fundamental importância para o seu entendimento. Por
outro lado, contribui para uma análise científica do material bíblico, libertando-o do
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reducionismo das amarras meramente doutrinárias e de uma leitura bíblica intimista,
individualizante e espiritualizante, que procura retirar os assuntos religiosos do âmbito
da materialidade concreta da vida.4
Conforme veremos ao longo desta pesquisa, para Jeremias, Javé não estava
aquém da realidade humana, mas desejava inserir-se nela e se tornar presente e
transparente nas esferas determinantes da vida como a política, a economia, as relações
sociais e as ideologias. Tais abordagens da vida do povo bíblico têm recebido pouca
atenção por parte da pesquisa acadêmica e da Igreja na América Latina em nossos dias.
Por meio desta pesquisa tentaremos oferecer uma pequena contribuição para o resgate
da compreensão da gênese histórica ou a emergência social da palavra profética na
unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias.
É verdade que temos trabalhos acerca do livro de Jeremias disponíveis no Brasil.
Todavia, grande parte deles prioriza a dimensão teológica. Tal abordagem não deve ser
descartada, uma vez que a perspectiva teológica revela a tendência dos que criaram e
colecionaram os materiais bíblicos. Qualquer oposição ao profeta era entendida em
termos anti-javistas, anti-proféticos e até mesmo paganistas. Verdade e falsidade
dominavam o cenário no antigo Israel.5
Embora seja importante para a avaliação do conflito profético, a proposta
teológica, por si só, como qualquer outro método, limita enquanto ilumina. A fim de
examinar aspectos da situação israelita, é interessante que levemos em consideração não
somente o interesse teológico, mas também a análise dos componentes socioeconômicos
e políticos. Ainda que tais facetas não se apresentem claramente, elas se evidenciam
como um subtexto, escondido no meio de outras perspectivas que se encontram no
horizonte da unidade dos escritos de Jeremias.
Os detalhes que escapam frequentemente ao domínio da teologia podem ser
assimilados pelas sugestões de corrente social, econômica e política, as quais nos
fornecem uma compreensão histórica e sociológica mais ampla. Isso não quer dizer que
a questão teológica seja irrelevante. A questão teológica tem sua relevância para o
estudo da literatura profética. No entanto, por si só, representa apenas uma parcela do
todo bíblico. É impossível ignorar ou suprimir os aspectos sociais do conflito profético,
44 Uwe Wegner, A leitura bíblica por meio do método sociológico, em Mosaicos da Bíblia, São Paulo, CEDI, vol. 12, 1993, p. 7-13. 5 James L. Crenshaw, Prophetic Conflict Its Effect Upon Israelite Religion, BZAW 124, Berlin, Walter de Gruyter, 1971, 134 p.
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tais como os fatores políticos, sociais e econômicos que fazem parte de qualquer
demonstração pública de disputa.6
É inegável que o discurso profético esteja calcado em termos religiosos e brota
de profunda experiência religiosa. Se não atentarmos a esse aspecto depreciaremos o
significado daquele e não poderemos entendê-lo de forma plena. No entanto, no
discurso profético é preciso valorizarmos também a sua dimensão histórico-sociológica.
Porquanto a indignação profética surge da realidade, do sofrimento e da opressão
vivenciados em seu contexto histórico.7
Neste trabalho privilegiaremos esse último aspecto. A presente pesquisa
procurará servir como complementação e contribuição para a ampliação dos estudos
acadêmicos realizados na América Latina sobre o livro profético de Jeremias; como
também intentará oferecer uma melhor compreensão da natureza e do impulso inicial ou
fator desencadeador da fala do profeta para o povo de Judá no período do próprio
Jeremias, e isso é algo de fundamental importância para qualquer exegeta. Uma boa
compreensão da forma como as palavras de Jeremias se originaram em seu próprio
contexto histórico-social contribuirá para demonstrar a relevância dessas palavras para
um período que pouco tem sido pesquisado. A ênfase em demasia na relevância das
palavras de Jeremias para Judá no período pós 587 a.C., tem obscurecido a importância
das palavras de Jeremias para Judá antes de 587 a.C. Nesta pesquisa procuraremos
aclarar tal importância.
Nosso trabalho procurará fornecer subsídios de clarificação tanto para estudantes
da matéria quanto para leitores em geral que procurem interpretar as palavras e alargar
seu conhecimento acerca do contexto histórico-sociológico no qual emergiram os ditos
proféticos que se encontram na unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Esses capítulos
constituem um conjunto específico, conforme proporemos no decorrer dos
procedimentos exegéticos. Tal unidade de ditos proféticos não somente expressa a voz
solitária do profeta, como também formulações da dor e resistência de um povo. Sendo
assim, as relações sociais marcadas pelo tributarismo serão mediações hermenêuticas
necessárias para sua compreensão.
Desse modo, a pesquisa se estrutura em quatro capítulos. O primeiro capítulo
concentra-se em alguns aspectos preliminares que darão suporte e fornecerão subsídios
6 Burke O. Long, Social Dimensions of Prophetic Conflict, em Semeia, Atlanta, Society of Biblical Literature Scholars, n. 21, 1981, p. 31-33. 7 Anthony R. Ceresko, Introdução ao Antigo Testamento numa perspectiva libertadora, São Paulo, Paulus, 1996, p. 191.
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para a futura análise interpretativa das palavras contidas na unidade literária situada nos
caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Investiga-se assuntos relativos à origem, composição,
autoria, estilo, integridade, coesão e delimitação do material disposto na obra de
Jeremias. Verificando, assim, as principais questões que permeiam o escrito, como
também indicando propostas adequadas a fim de solucioná-las.
No segundo capítulo observar-se alguns elementos formais do texto
imprescindíveis para sua identificação, como também para a futura tarefa da
interpretação do conteúdo. Todavia, ainda não se trata da interpretação propriamente
dita, mas apenas da perscrutação das condições formais dentro das quais se poderão
explicar os trechos. Com isso, procura-se indicar caminhos no texto que auxiliem na
futura tarefa de sua identificação e interpretação. Primeiramente realiza-se a tradução do
hebraico para o português. Em seguida, enfocam-se aspectos formais, porém decisivos
para a interpretação de cada texto. Uma vez concluídas essas etapas e a perícope esteja
caracterizada em sua forma, prossegue-se no aprofundamento do lugar histórico-social
em que o texto se situa.
No terceiro capítulo a investigação se foca na tentativa de determinar a provável
datação dos ditos e de traçar o perfil sociológico do profeta. Além de analisar os
acontecimentos mais relevantes da história que de alguma maneira influenciaram a
trajetória de Judá, como também estabelecer a abordagem materialista histórica, por
meio do uso do modo de produção tributário, como um instrumental teórico adequado
para a análise da sociedade judaíta, com o intuito de situar o profeta e sua mensagem
dentro de seu ambiente histórico-sociológico e de se fazer justiça a tal proclamação.
O último capítulo da pesquisa concentra-se no exame do conteúdo das palavras
de cada perícope da unidade. Para isso, faz-se necessário identificar o assunto básico em
torno do qual gravita o assunto da unidade dos caps. 7,1–8,3 de Jeremias. Nesse sentido,
investiga-se basicamente o conflito que subjaz o escrito, o local do acontecimento, seus
principais personagens, bem como a questão que o motivou. Por fim, a conclusão geral
aponta os principais resultados do trabalho. Segue-se, então, no final do trabalho a
bibliografia com as obras utilizadas na pesquisa.
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CAPÍTULO 1
A PALAVRA DE JAVÉ QUE ACONTECEU EM JEREMIAS 7,1–8,3
Neste primeiro momento da pesquisa procuraremos nos concentrar em alguns
aspectos preliminares que darão suporte e fornecerão subsídios para a futura análise
interpretativa das palavras contidas na unidade literária situada nos caps. 7,1–8,3 de
Jeremias. Partiremos em busca de informações que nos permitam descobrir a provável
origem, composição, autoria e estilo do material disposto na obra de Jeremias. Diante
disso, verificaremos as principais questões que permeiam o escrito, além de indicarmos
propostas adequadas a fim de solucioná-las.
Serão abordados assuntos que envolvem o livro e suas principais dificuldades,
sua composição e estrutura. Delinearemos suas grandes seções em busca daquela em
que está situada a unidade literária dos caps. 7,1–8,3. Constatado este fato, seguiremos
ao encontro da unidade alvo de nossa pesquisa. Delimitaremos cada uma das pequenas
unidades de sentido presentes nos caps. 7,1–8,3, destacando evidências que certifiquem
a integridade e a coesão interna da unidade como um todo, e assim também de cada
pequena unidade de sentido.
Evidenciaremos também a importância das pequenas unidades de sentido, assim
como do mecanismo da análise exegética histórico-sociológica para a compreensão da
palavra de Javé transmitida pelo profeta Jeremias. Finalmente, por meio da história da
pesquisa do livro de Jeremias, discutiremos as principais propostas interpretativas da
obra de Jeremias a fim de estabelecermos diretrizes baseadas no estudo acadêmico
acerca da autoria, estilo, autenticidade e origem dos escritos expressos na unidade dos
caps. 7,1–8,3.
1.1 QUESTÕES PRELIMINARES
1.1.1 O livro de Jeremias, suas etapas e seus dilemas
Nossa pesquisa de cunho exegético tem como ponto central os ditos proféticos
agrupados nos caps. 7,1–8,3 do livro de Jeremias. No texto hebraico, a obra de
Jeremias, uma das mais extensas entre os profetas, é única não somente pelo registro
prolongado das experiências e palavras de Jeremias, mas também por causa de seus
relatos autobiográficos e temas históricos significantes. Encontra-se no centro dos livros
comumente conhecidos como “profetas maiores”, entre Isaías e Ezequiel, e seu
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ministério profético de aproximadamente quatro décadas testemunhou eventos
históricos cruciais associados à queda do reino do Sul, Judá.8
Jeremias desempenhou seu ministério num período de agitação, no limiar entre o
declínio do Império assírio e o surgimento do Império babilônico. A trajetória de Judá
foi marcada por curtos períodos de independência e de sujeição, primeiro para o Egito e
depois para a Babilônia. O ministério de Jeremias foi exercido contra o pano de fundo
do governo de três filhos e um neto de Josias, os últimos dirigentes de Judá. A
independência de Judá estava próxima do fim, e Jeremias testemunharia a derrocada da
cidade de Jerusalém e de seu templo.9
A atividade de Jeremias pode ser dividida em quatro fases, nas quais as
circunstâncias internas de Judá e os eventos cruciais daquelas décadas no cenário
internacional modelaram as palavras e a vida do profeta. A primeira fase se estende
desde sua vocação profética (627 a.C.) até um pouco antes da conclusão da reforma de
Josias (622 a.C.). A mensagem desse período está contida, grosso modo, nos capítulos
1-6 e termina com uma conclusão desoladora (6,27-30). Logo depois, Jeremias silencia
por mais de uma década. Por conta disso, costuma-se declarar que Jeremias deu apoio
incondicional à reforma josiânica.
Todavia, é improvável que o referido profeta tenha apoiado incondicionalmente
a reforma e paralisado suas atividades após o êxito dela, pois nesse caso sua sentença
negativa não teria nenhum sentido. Tal evidência demonstra que suas atividades foram
interrompidas num período anterior à reforma, e não por sua causa ou consequência.
Talvez o profeta estivesse em sintonia com alguns pontos da reforma, tal como o
combate ao espírito pagão e o empenho em uma ação social, embora não admitisse os
aspectos duvidosos que o levaram mais tarde a rejeitá-la: a ênfase nas leis cultuais e no
templo. Diante disso, é possível conjecturar que Jeremias não dera apoio incondicional à
reforma josiânica, antes, assumira desde o princípio uma postura bilateral: uma em
relação ao Deuteronômio e outra em relação à reforma.
No início do reinado de Jeoaquim, o profeta reinicia sua atividade. Essa segunda
fase de seu ministério se estende até a primeira conquista de Jerusalém pela Babilônia 8 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, em Review & Expositor, Louisville, Review and Expositor/ Southern Baptist Theological Seminary, vol. 78, n. 3, 1981, p. 303. 99 C. Hassell Bullock, An Introduction to the Old Testament Prophetic Books, Chicago, Moody Press, 1986, p. 186-194. Também Gary V. Smith, The Prophets as Preachers: An Introduction to the Hebrews Prophets, Nashville, Broadman & Holman, 1994, p. 192-193; William Sanford Lasor; David Allan Hurbard; Frederic William Bush, Panorama Del Antiguo Testamento: Mensaje, Forma Y Trasfondo Del Antiguo Testamento, Grand Rapids, Libros Desafio, 2004, p. 394-421; Clyde T. Francisco; Juan Juan Lacue, Introduccion al Antiguo Testamento, El Paso, Casa Bautista De Publicaciones, 1999, p. 198-201.
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(de 609-597 a.C.). Os oráculos e relatos oriundos desse período se encontram divididos
em 7-20; 22; 25,1-14; 26; 35s. A terceira fase, por sua vez, compreende o período do
reinado de Zedequias, entre a primeira e a segunda conquista de Jerusalém (597-587
a.C.). Os capítulos 21–24; 27–29; 32; 34; 37–39 remontam essa época. A última fase,
descrita entre os capítulos 40-44, abrange a queda de Jerusalém até a permanência
forçada no Egito (depois de 587 a.C.).10
O desenvolvimento do livro percorreu um processo longo e complexo
evidenciado pela dificuldade de se estabelecer um padrão coerente e unificado para sua
estrutura como um todo. Vários indícios apontam à possibilidade de que Jeremias não
tenha sido necessariamente o “autor” de tudo que se encontra no livro que leva seu
nome.11 Ao longo de seus escritos, diversos acontecimentos são datados, todavia, as
referências cronológicas não são sequenciais.12 Além disso, aqui e acolá pululam
informações na primeira e na terceira pessoa, as quais apontam respectivamente para a
existência de relatos do próprio profeta e outros produzidos por alguém que escrevia
acerca do profeta. Ambos, ocasionalmente, aparecem na mesma unidade textual.13
Ademais, na conclusão do livro (Jr 51,64) encontra-se a seguinte declaração:
“Até aqui as palavras de Jeremias”, a qual vem acompanhada por um apêndice (Jr 52 =
2Rs 24,18–25,30). O cabeçalho situa as últimas palavras de Jeremias próximo ao final
do reinado de Zedequias (Jr 1.1). Todavia, alguns materiais são considerados
posteriores (Jr 42-44).14 Além do mais, as duplicatas15 corroboram as evidências de que
o livro de Jeremias não é obra de uma única mão, mas sim obra agrupada e editada. Por
isso, alguns pesquisadores costumam afirmar que o próprio Jeremias editou o livro.
Outros admitem que os responsáveis seriam, sobretudo, Baruque ou editores
posteriores.16 No entanto, seria viável admitir que tanto o próprio Jeremias como seu
10 Milton Schwantes, Sofrimento e esperança no exílio: história e teologia do povo de Deus no século VI a. C., São Leopoldo, Oikos, 2009, p. 46-47. Na obra de Ernest Sellin; Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Ed. Academia Cristã, 2007, p. 549-553. Também Werner H. Schmidt, Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 229-230. 11 Joseph Schreiner, Palavra e mensagem do Antigo Testamento, São Paulo, Teológica/Paulus, 2004, p. 239-240. 12 Observe o capítulo 24 datado no período de 597 a.C. e o capítulo 25 durante o ano de 605 a.C. 13 Cf. Jeremias 28,1.5; 25,13.15. 14 É provável que o cabeçalho tenha servido como introdução aos capítulos 1-25 do livro de Jeremias. 15 Duplicatas são versos que aparecem em mais de um lugar. Compare, por exemplo, os seguintes trechos (6,13-15 e 8,10c-12; 10,12-16 e 51,15-19; 15,13-14 e 17,3-4; 16,14-16 e 23,7-8; 23,19-20 e 30,23-24; 30,10-11 e 46,27-28). 16 E. A. Martens, Jeremiah. Believers Church Bible Commentary, Scottdale, Herald Press, 1986, p. 296.
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companheiro e secretário Baruque; também seus discípulos contribuíram com a redação
da profecia jeremiana.17
A coleção escrita dos oráculos e provérbios provavelmente teve início com
Jeremias e foi sendo complementada concomitantemente. Todavia, pesquisadores
afirmam que os oráculos poéticos representam palavras originais de Jeremias, enquanto
que as narrativas históricas e biográficas seriam de Baruque. Ademais, há supostos
sermões e discursos espalhados ao longo do livro e intercalados entre material poético e
biográfico. A origem desse material tem sido tema de considerável debate; alguns
consideram como material autêntico de Jeremias, outros como composição de Baruque
ou de seguidores de Jeremias, e outros ainda como decorrentes dos deuteronomistas.18
Voltaremos a esse assunto quando investigarmos a história da pesquisa do livro.
A obra de Jeremias, além do mais, oscila entre duas posições distintas. De um
lado, o julgamento divino e o castigo sobre Jerusalém seriam inevitáveis; de outro,
haveria a possibilidade de arrependimento e afastamento do castigo.19 Entre as várias
propostas para solucionar esse dilema, destaca-se a hipótese de William Holladay20. O
autor se baseia na passagem situada em Jeremias 36 que menciona a existência de dois
rolos ditados pelo profeta ao escriba Baruque, sendo que o primeiro, escrito no ano de
605 a.C., continha as palavras que Javé havia proferido “sobre Israel, e sobre Judá, e
sobre todas as nações, desde o dia que eu te falei a ti, desde os dias de Josias até hoje”
(v. 2).
Conforme as cronologias disponíveis nas introduções dos caps. 25,1-3 e 1,2 do
livro Jeremias, o primeiro rolo continha as palavras pronunciadas durante os anos de
627-605 a.C. Essas duras palavras foram lidas logo em seguida no templo de Jerusalém
e culminaram na exclusão do profeta de seus arredores e, posteriormente, de acordo
com o MT, provocaram a queima do rolo pelo rei Jeoaquim, um ano depois, em 604
a.C.21 Após tal fato, o profeta dita um novo rolo a Baruque, repete as palavras contidas
no primeiro rolo e acrescenta-lhes novos detalhes (Jr 36,32).22
17 Ildo Bohn Gass (Org.), Uma introdução à Bíblia: reino dividido, São Leopoldo/São Paulo, Cebi/Paulus, 2005, p. 170. 18 J. A. Thompson, The Book of Jeremiah. The New International Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1980, p. 32. 19 Robert Alter; Frank Kermode, Guia literário da Bíblia, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 202. 20 William Lee Holladay, The Identification of the Two Scrolls of Jeremiah, em Vetus Testamentum, Leiden, Brill Academic Publishers, vol. 30, n. 4 O, 1980, p. 452-467. 21 A LXX data a queima do rolo três anos mais tarde, isto é, 601 a.C. 22 Veja discussão sobre o rolo de 605 em Jack R. Lundbom, Jeremiah 1-20: A New Translation with Introduction and Commentary, New Haven/ London, Yale University Press, 2008, p. 92
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Embora seja aventado por pesquisadores que o segundo rolo continha o mesmo
tamanho e o mesmo conteúdo do primeiro, e que sua ampliação se deu em época
posterior a Jeremias23, Holladay propõe que no primeiro rolo as palavras do profeta
continham a possibilidade de arrependimento, mas nos oráculos ampliados no segundo
rolo não.24 É evidente que os conteúdos do segundo rolo escrito por Baruque (36,22)
estão preservados no atual livro de Jeremias.
Não obstante seja possível afirmar que esse material encontra-se dentro dos
capítulos 1–25 do atual livro, é praticamente impossível identificá-lo na referida seção.
O rearranjo, o complemento e o posterior desenvolvimento de temas proféticos
impossibilitam tal identificação. Por conseguinte, a importância do capítulo 36 está no
que ele nos revela sobre o tempo e as circunstâncias do relato das profecias de Jeremias,
e não em qual parte do atual livro foi escrita primeiro.25
1.1.2. A questão do arranjo e estrutura do livro de Jeremias
Como mencionado anteriormente, parte do desafio do livro de Jeremias vem do
fato de os materiais não se apresentarem numa sucessão ou estrutura facilmente
compreensível. Diante disso, muitos pesquisadores consideram sua estrutura
praticamente um mistério.26 Vários são os entraves que dificultam uma correta
compreensão dessa estrutura, a saber, as questões cronológicas, a falta de um
desenvolvimento coerente de pensamento, a referência a vários manuscritos e outros
escritos, a diferença entre o material encontrado na Bíblia Hebraica e na LXX, bem
como a existência de inúmeros gêneros literários e as diferentes teorias acerca da
composição e compilação da obra.27
23 Ernest Sellin, Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p. 553-554. 24 William Lee Holladay, The Identification of the Two Scrolls of Jeremiah, p. 452-467. Também E. A. Martens, Jeremiah. Believers Church Bible Commentary, p. 297. 25 R. E. Clements, Jeremiah. Interpretation. A Bible Commentary for Teaching and Preaching, Atlanta, J. Knox Press, 1988, p. 7. 26 Vários pesquisadores esboçam a dificuldade para determinar a estrutura do livro de Jeremias. Entre eles se destacam: Robert P. Carroll, Halfway through a Dark Wood: Reflections on Jeremiah 25, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 73; Terence E. Fretheim, Jeremiah, Macon, Smith & Helwys, 2002, p. 17; A. R. Peter Diamond, Introduction, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 15; Walter Brueggemann, A Commentary on Jeremiah: Exile and Homecoming, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1998, p. 7. 27 Veja uma excelente discussão sobre essas questões em S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, em Bibliotheca Sacra, Dallas, Dallas Theological Seminary, vol. 166, n. 663, 2009, p. 306-318.
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Tais obstáculos evidenciam que a extraordinária obra de Jeremias, assim como
outras obras proféticos, não é um livro no sentido moderno do termo. Na verdade, seria
uma coleção de oráculos proféticos e outros materiais que passaram por uma extensa
história de transmissão de difícil explicação. Craigie a descreve como uma antologia, ou
mais precisamente uma antologia de antologias. Todavia, adverte-nos de que, enquanto
a antologia moderna fornece abundante orientação para seus leitores por meio de títulos,
notas e cabeçalhos, o livro de Jeremias oferece apenas algumas esparsas instruções.28
Ainda que existam inúmeras propostas em relação à estrutura e divisão do
material no livro de Jeremias29, é coerente afirmar que essa obra contém diversas
coleções menores de material que refletem um arranjo por tópicos. Ou seja, Jeremias é
um “livro de livros”, construído a partir da reunião de coleções tópicas menores, várias
delas introduzidas por seus títulos.30
Decerto um leitor atento rapidamente descobrirá grandes divisões na obra de
Jeremias. Em outras palavras, tal como já afirmamos, esse livro parece conter uma
coleção de pequenos livros de Jeremias, acrescido de outros materiais. A crítica retórica,
um subconjunto da crítica literária, tem contribuído para desvendar as seções ou
“livros” existentes nessa antologia, uma vez que procura não se afastar da crítica
histórica, mas destaca as características estéticas e estilísticas do texto a fim de
descobrir o arranjo e a estrutura do pensamento do escritor.31 Sua tarefa é observar as
características literárias da obra, tais como as diferentes unidades, a repetição de
palavras-chave, frases e temas, jogos de palavras e características estruturais, como por
exemplo inclusio e quiasmo.
28 Peter C. Craigie, Page H. Kelley; Joel F. Drinkard, Word Biblical Commentary: Jeremiah 1-25, Dallas/Texas, Word Books, vol. 26, 2002, p. xxxi-xxxii. 29Entre as propostas destacam-se J. Andrew Dearman, The NIV Application Commentary: Jeremiah and Lamentations, Grand Rapids, Zondervan Publishing House, 2002, p. 41; R. K. Harrison, Introduction to the Old Testament, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1969, p. 801. Ambos dividem o livro em duas partes: caps. 1–25; 26–52. David Francis Hinson, The Books of the Old Testament, London, SPCK, vol. 10, 1974, p. 140 assim como F. B. Huey, The New American Commentary: Jeremiah, Lamentations, Nashville, Broadman & Holman Publishers, vol. 16, 2001, p. 24-25. Estruturam a obra em quatro partes: caps. 1–25; 26–45; 46–51; 52. Robert P. Carroll, Jeremiah, London/New York, T&T Clark, 1997, p. 17-19. Divide o livro em cinco partes: 1,1-19; 2,1–25,14; 25,15–38.46-51; 26–36; 37–45; 52,1-34. S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 306-318. Propõe uma divisão em seis partes: caps. 1; 2–25; 26–35; 36–45; 46–51; 52. 30 Raymond B. Dillard; Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Vida Nova, 2006, p. 280. 31 James Muilenburg, Form Criticism and Beyond, em Journal of Biblical Literature, Atlanta, Society of Biblical Literature, vol. 88, 1969, p. 1-18. Veja acerca da origem e a importância da crítica literária para os estudos do Antigo Testamento em Paul R. House, The Rise and Current Status of Literary Cristicism of the Old Testament, em Beyond Form Criticism, Winona Lake, Eisenbrauns, 1992, p. 3-22.
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31
A aplicação desse método no estudo do livro de Jeremias contribui para o
entendimento de como foram combinadas as diversas seções ou “pequenos livros”
contidos na obra. A conclusão de um desses livros pode ser vislumbrada em 25,1-13a,
“tudo que está escrito neste livro”. A partir desse ponto, o v. 13 é interrompido,
conforme atestado pela inserção na LXX dos conjuntos dos caps. 46-51 (em ordem
diferente) depois do v. 13a (LXX omite v. 14). Em seguida, a frase do v. 13b, “que
Jeremias profetizou contra todas as nações”, aparece como cabeçalho para os vv. 15-38.
O conteúdo da conclusão (Jr 25,1-13a) aponta tanto para o alcance original do
livro, situando o início do ministério de Jeremias em 627 a.C. (Jr 1,2) como para a
grande similaridade entre 25,3-9 e o cap. 1 (especialmente vv. 15-19), sugerindo que o
cap. 1 e 25,1-13 formam um inclusio que inicia e encerra uma seção maior. Esses
capítulos, portanto, parecem indicar respectivamente o início e o fim desse livro de
Jeremias. Nele se encontram palavras proferidas entre seu chamado (627 a.C.) e o
quarto ano de Jeoaquim (605). Os materiais oriundos de períodos posteriores a 605 a.C.
espalhados ao longo dos caps. 1–24 pode encontrar sua explicação no indício de que,
com a circulação separada desse livro, houve inserções de outros materiais de
Jeremias.32
Os caps. 46–51, denominados como “oráculos contra as nações estrangeiras”,
consistem em outro livro.33 Se por um lado existem evidências de que foram proferidos
pelo próprio profeta, por outro, parece que a história de sua transmissão ocorreu
separadamente, uma vez que sua disposição na LXX está diferente da apresentada na
Bíblia Hebraica.34
A introdução no cap. 30,1-3 indica a existência de mais um livro que abrange os
caps. 30–31 e provavelmente os caps. 32–33. Consiste num conjunto da mensagem de
esperança proferida pelo profeta que geralmente leva o título de Livro da Consolação.
Os caps. 30–31 estão unidos ao tema do cap. 30,3, enquanto que o cap. 32, basicamente
um incidente biográfico, tem o mesmo tema do cap. 33 (LXX omite 33,14-26). Toda
32 R. E. Clements, Jeremiah 1-25 and the Deuteronomistic History, em A. Graeme Auld (ed.), Understanding Poets and Prophets, Sheffield, JSOT Press, 1993, p. 93-113. 33 Compare esse material com coleções proféticas similares. Veja Amós 1,3-2,3; Isaías 13-23, a obra completa de Naum e Obadias; Zacarias 2,4-15; Ezequiel 25-32. 34 H. G. L. Peels, You Shall Certainly Drink!: The Place and Significance of the Oracles Against the Nations in the Book of Jeremiah, em European Journal of Theology, Carlisle, Paternoster Periodicals, vol. 16, n. 6, p. 81-91.
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32
seção seria um bloco separado no meio de uma série de capítulos de caráter
biográfico.35
Portanto, a obra de Jeremias parece conter três “livros” separados [1,1–25,13a;
30–31 (32–33); 46–51]. Entre os três encontram-se dois outros blocos de material (cap.
26–29; 34–45). Eles são compostos em grande parte de narrativas biográficas que
relatam incidentes da vida de Jeremias não em ordem cronológica. Ademais, no cap. 52
(como Is 36–39) deparamo-nos com um esboço histórico muito similar ao material
disposto em 2Rs 24–25.36
Em relação à composição e compilação da obra, a pesquisa bíblica moderna
apresenta basicamente três propostas, as quais concordam que o livro é uma coletânea
de materiais independentes reunidos e organizados por editores posteriores.37 Porém,
discordam quanto ao vínculo entre Jeremias e a obra que leva seu nome. S. Jonathan
Murphy define as três propostas da seguinte forma:
A primeira abordagem centra-se na historicidade da obra. Ela tenta
determinar uma data e configuração precisa para cada unidade literária.
Porque essa abordagem incide sobre a historicidade da obra, o papel do
profeta Jeremias na composição e compilação da obra é maximizado. A
abordagem é sensível a aceitar a origem da obra a partir do profeta Jeremias.
A segunda abordagem centra-se na edição deuteronômica da obra no período
exílico na Babilônia após a vida de Jeremias. A obra é considerada uma
reformulação e transformação do material mais antigo por editores exílicos
para o benefício da comunidade exilada. A necessidade de recuperar as
palavras de Jeremias é subestimada. A busca histórica é insignificante. O
foco está na agenda da comunidade exilada cujas necessidades moldaram o
arranjo atual da obra. A terceira abordagem propõe que questões históricas
sejam subordinadas à forma canônica final da abordagem da obra – a
proposta crítica canônica. Essa visão propõe que o Jeremias histórico foi
reformulado pelo Jeremias deuteronômico. A especulação histórica, no
entanto, põe-se a serviço da intenção teológica da forma final do texto. Essa
agenda teológica canônica molda a forma final da obra. Até mesmo dentro
35 Bob Becking, Between Fear and Freedom: Essays on the Interpretation of Jeremiah 30-31, Leiden/Boston, Brill Academic, 2004, p. 50-52. 36 John Bright, Book of Jeremiah: Its Structure, Its Problems and their Significance for the Interpreter, em Interpretation, Richmond, Union Theological Seminary and Presbyterian School of Christian Education /Union Theological Seminary in Virginia, vol. 9, n. 3, 1955, p. 262. 37 Mais adiante, ofereceremos uma análise não exaustiva da história da pesquisa acerca da questão da composição e compilação do livro de Jeremias.
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33
das três abordagens da composição e compilação não há consenso sobre a
questão da estrutura do livro.38
Para o propósito de nossa pesquisa a primeira abordagem que enfoca a
historicidade da obra parece ser a mais adequada. Entendemos, tal como John Bright,
que a interpretação da mensagem profética inicia com a exegese baseada no princípio
histórico-gramatical. Esta procura entender o significado das palavras contra o pano de
fundo da situação histórica em que foram proferidas; isso envolve um estudo preciso do
texto a fim de se desvendar a intenção do escritor e a relevância das palavras de Javé
proclamadas por Jeremias para a antiga Judá.
Bright alerta contra o erro de se considerar a composição dos livros proféticos
como um simples problema de crítica literária. O livro de Jeremias, por exemplo, esteve
envolvido num processo literário iniciado por Jeremias e Baruque, porém, ao lado desse
processo encontrava-se também em plena atividade a tradição oral. Seja como for, o
livro de Jeremias como o encontramos hoje representa a coligação gradual de correntes
de tradição de Jeremias. No entanto, tais tradições são tão antigas quanto o profeta,
surgem a partir de suas próprias palavras e são transmitidas lado a lado em seu círculo
de seguidores.
Os detalhes acerca de como essas correntes de tradição convergiram só podem
ser inferidos. Todavia, gradualmente, no decurso da transmissão seja oral, escrita ou
ambas, seja pela própria mão do profeta ou de outro, os materiais começaram a serem
reunidos em pequenos complexos tradicionais e complexos editoriais maiores. A base
sobre a qual isso ocorreu parece ter sido a do tema comum, ocasião comum, ou mesmo
palavra de ordem.
O livro de Jeremias, na verdade, seria uma criação antiga que teve início a partir
das palavras ditadas pelo próprio profeta no ano de 605 a.C. (cap. 36).39 Há grande
probabilidade de que muitos dos complexos do material básico existentes nas seções
dos caps. 1–25 representem combinações e unidades editoriais compostas pelo próprio
profeta. Ao mesmo tempo em que o material dos caps. 1–25 estava tomando forma, uma
38 S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 311-312. 39 Confira uma discussão sobre a literalização da profecia em Martti Nissinen, How Prophecy Became Literature, em Scandinavian Journal of the Old Testament, Philadelphia, Taylor & Francis, vol. 19, n. 2, 2005, p. 153-172.
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grande quantidade de material de Jeremias continuava a circular separadamente ou em
pequenas coleções.40
A mensagem de Jeremias apresenta-se numa forma literária ou estrutural que
deve ser recuperada para se entender o que o texto quer dizer. O texto se encontra
atualmente numa forma final que não corresponde à enunciação histórica original.41 Ele
tende a se aproximar mais dos questionamentos e dilemas enfrentados pelo compositor
final.42
A proclamação profética de Jeremias não se encerra em sua primeira produção,
mas se desencadeia num continuum de releituras. Para seu entendimento faz-se
necessário um discernimento crítico do processo das releituras hermenêuticas que
acompanham as distintas situações vividas, a “distância” entre o ponto de partida do
texto de Jeremias e seu ponto de chegada redacional. Cada etapa não é mais do que um
novo momento da revelação continuada de Javé na história.
O texto de Jeremias é produto de um longo processo hermenêutico caracterizado
pelo contínuo acréscimo de fragmentos devido à necessidade de atualização.43 O profeta
proclamou a palavra de Javé em um dado momento histórico; ao longo do tempo, outras
vozes foram sendo-lhe acrescentadas.44 O livro de Jeremias, à primeira vista, parece de
Jeremias, mas na realidade a “memória de Jeremias” se fez texto e, como tal, é a
produção de outras mãos que a foram relendo.45
Ele não é um todo homogêneo: com a mudança da situação, a palavra de Javé
não se manteve a mesma, todavia, continuou sendo a palavra de Jeremias. A obra de
Jeremias em sua forma atual é uma composição que pretende ser um texto final. Ela
poderia ter sido retrabalhada outras vezes, mas, como a temos, é sua forma final. Se as
40 John Bright, Book of Jeremiah: Its Structure, Its Problems and their Significance for the Interpreter, p. 259-278. 41 Cf. H. W. Wollf, The Kerygma of the Deuteronomic Historical Work, em W. Brueggemann; H. W. Wolff (eds.), The Vitality of Old Testament Traditions, Atlanta, John Knox Press, 1985, p. 83-100. Também R. E. Clements, Jeremiah 1–25 and the Deuteronomistic History, p. 93-113, destaque para a página 108. 42 Milton Schwantes, A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e estudo sobre Amós, São Paulo, Paulinas, 2004, p. 146. 43 O mesmo processo de acréscimo de fragmento se dá no livro do Cântico dos Cânticos. O autor da obra compõe uma série de grandes poemas utilizando pequenos poemas ou cantos de amor. Confira o artigo de David A. Dorsey, Literary Structuring in the Song of Songs, em Journal for the Study of the Old Testament, London, Sage Publication, n. 46F, 1990, p. 81-96. 44 Cf. James R. Linville, Amos Among the “Dead Prophets Society”: Re-Reading the Lion’s Roar, em Journal for the Study of the Old Testament, London, Sage Publication, n. 90, 2000, p. 55-77. 45 Destacam-se dois processos nessa etapa: a atualização, que consiste em um processo mais linear, uma vez que supõe continuidade entre a palavra originária e a redacional, e a releitura, que indica uma ação mais profunda sobre a proclamação original, podendo transformá-la radicalmente invertendo seu sentido original, por exemplo, na justaposição de mensagens de salvação ao lado de oráculos de salvação.
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redações do Jeremias TM ou do Jeremias da LXX representam dois textos distintos,
cada um é “final” dentro de sua própria tradição.46
Como sabemos, há grandes diferenças entre as várias tradições textuais do livro
de Jeremias. Entre a Septuaginta (LXX) e o Texto Massorético (TM) destacam-se
basicamente duas delas: a Septuaginta é aproximadamente 1/8 menor do que o Texto
Massorético, e está disposta numa ordem diferente, com os oráculos para as nações
situados depois do cap. 25,13.47 Surgiram, a partir daí, duas propostas sobre a relação
entre esses dois textos.
A primeira centra-se na existência de apenas um livro de Jeremias. A versão
grega em comparação com o Texto Massorético representaria o estágio mais antigo do
texto hebraico, ou seja, a partir da LXX seria possível realizar a reconstrução de um
Vorlage48 hebraico mais antigo. A outra conjectura admite a existência de mais do que
uma tradição do livro de Jeremias em circulação, e que a LXX representa uma tradição
diferente do Texto Massorético.49 Nossa pesquisa tende a se harmonizar mais com a
proposta que sustenta a possibilidade de várias tradições textuais coexistentes do que
com aquela que destaca a primazia de uma tradição sobre a outra.
O texto de Jeremias em sua forma atual não é uma simples recopilação de
materiais já existentes. Estes serviram como base sobre a qual o autor final erigiu sua
obra, sendo que o objetivo final da obra difere do propósito de cada um de seus
componentes isolados. A proclamação final do texto completo não repete a dos oráculos
recopilados, mas exprime algo novo. A redação final do livro de Jeremias não produz
uma obra literariamente homogênea, mas, de certo modo, preserva o caráter de
recopilação, uma vez que os materiais de origem são geralmente preservados em sua
forma prévia.50 São nestes materiais de origem, situados nos caps. 7,1–8,3, que
46 José Severino Croatto, A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, Vozes, n. 35/36, 2000, p. 7-27. 47 Duane L. Christensen, In Quest of the Autograph of the Book of Jeremiah: A Study of Jeremiah 25 in Relation to Jeremiah 46–51, em Journal of the Evangelical Theological Society, Lynchburg/Wheaton, Evangelical Theological Society, vol. 33, n. 2, p. 145-153. 48 A expressão alemã Vorlage denota uma fonte literária ou modelo por trás de uma composição extensa de um texto bíblico. Confira Arthur G. Patzia; Anthony J. Petrotta, Pocket Dictionary of Biblical Studies, Downers Grove, InterVarsity Press, 2002, p. 122. 49 Rannfrid I. Thelle, Babylon in the Book of Jeremiah (MT): Negotiating a Power Shift, em Hans M. Barstad; Reinhard G. Kratz (eds.), Prophecy in the Book of Jeremiah, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 2009, p. 191. Veja Emanuel Tov (ed.), The Greek and Hebrew Bible: Collected Essays on the Septuagint, Leiden/Boston/köln, Brill Academic, 1999, p. 363-384. Anneli Aejmelaeus, Jeremiah at the Turning-Point of History: The Function of Jer. XXV 1-14 in the Book of Jeremiah, em Vetus Testamentum, Leiden, Brill Academic Publishers, vol. 52, n. 4, 2002, p. 459-482. 50 José Severino Croatto, A estrutura dos livros proféticos. As releituras dentro do corpus profético, p. 9-10.
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procuraremos nos concentrar no curso de nosso estudo a fim de entender o ambiente e a
intenção das palavras originais de Jeremias.
O livro de Jeremias, portanto, seria uma antologia das palavras e dos incidentes
ocorridos na vida desse profeta.51 Como já vimos e veremos também mais adiante,
embora essa obra tenha passado por uma longa e complexa história de redação que a
aproxima dos questionamentos e dilemas enfrentados pelo compositor final, existe uma
profunda e estreita ligação entre ela e o profeta Jeremias, dado que a maior parte do
material encontrado nela pode ser atribuída a ele ou a seu amanuense Baruque. Além do
mais, é provável que tanto a composição das unidades individuais como a forma final
do livro tenham se dado dentro de uma mesma ótica e círculo social e os materiais de
origem geralmente sido preservados em sua forma prévia, o que implica que tanto na
formação como na finalização da obra houve pouca ou até nenhuma mudança na
intenção e propósito original dos componentes isolados do livro.
Sua composição pode ser esboçada através da seguinte estrutura que
apresentaremos abaixo. Nela os compiladores dividiram todo o material agrupando-o
basicamente em cinco porções. Seguindo a ordem da Septuaginta encontramos o
seguinte padrão:52
1,1–25,14 Ameaças contra Judá e Jerusalém
25,15-38; 46–51 Ameaças contra as nações estrangeiras (Septuaginta: 25,14–32,38)
26–35 Promessas para Israel e Judá (Septuaginta: 33–42)
36–45 Porções maiores do documento de Baruque (Septuaginta: 43–51)
52 Apêndice
Na tradição textual do Texto Massorético essa ordem foi alterada pela
transposição dos oráculos contra as nações estrangeiras (46–51), ficando somente a
introdução desses oráculos em seu lugar (25,15-38):53
51 Philip S. Johnston, Now You See Me, Now You Don’t! Jeremiah and God, em John Day (ed.), Prophecy and Prophets in Ancient Israel, New York/London, T&T Clark, 2010, p. 291-292. Confira também R. K. Harrison, Jeremiah and Lamentations: An Introduction and Commentary, Nottingham, Inter-Varsity, vol. 21, 1973, p. 32. 52 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, p. 305. 53 Ernest Sellin; Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testamento, p. 565. Veja também outras sugestões de estrutura em S. Jonathan Murphy, The Quest For The Structure of the Book of Jeremiah, p. 317. Richard D. Patterson, Of Bookends, Hinges, and Hooks: Literary Clues to the Arrangement of Jeremiah’s Prophecies, em Westminster Theological Journal, Philadelphia, Westminster Theological Seminary, vol. 51, n. 1, 1989, p. 109-131. T. Raymond Hoobs, Some Remarks on the Composition and Structure of the Book of Jeremiah, em Catholic Biblical Quarterly, Washington, Catholic Biblical Association of America, vol. 34, n. 3, 1972, p. 267.
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1–25 Ameaças contra Judá e Jerusalém (incluindo 25,15-38)
26–35 Promessas para Israel e Judá
36–45 Porção maior do documento de Baruque
46–51 Ameaças contra as nações estrangeiras
52 Apêndice
1.2. DEMARCANDO OS LIMITES DA UNIDADE PESQUISADA
1.2.1. A palavra de Javé como marco introdutório
Definimos como alvo de nosso estudo exegético os caps. 7,1–8,3 de Jeremias.
Estes capítulos fazem parte dos caps. 1–25. E estes vinte cinco capítulos, por sua vez,
compõem um primeiro “livro” em nosso profeta.54 T. E. Fretheim segue esse ponto de
vista ao distinguir em sua obra a seção dos caps. 26–45 da seção que compreende os
caps. 1–25.55
No cap. 25 de Jeremias temos a conclusão formal do primeiro “livro”,
estabelecida por um sumário de advertência para Judá (25,1-14) e para as nações
(25,15-38). E no cap. 26 inicia uma nova grande unidade de nosso profeta. Esta ampla
unidade se estende até o cap. 45; seu principal tema são os eventos na vida de Jeremias
(26,1–45,5), começando no cap. 26 com conflito entre o profeta e as lideranças de
Jerusalém. Portanto, é recomendável fecharmos o primeiro “livro” no cap. 25.
A avaliação de aproximadamente 162 ocorrências do termo “palavra” em
Jeremias tem nos levado a inferir que a frase “a palavra que aconteceu para Jeremias de
Javé” ou sua versão ligeiramente modificada introduz novas seções no livro. Cada uma
delas utiliza o artigo definido “a” (palavra) e a frase “de Javé”. Partindo desse
pressuposto, parece que o texto final gravita ao redor do tema central “a palavra que
54 Louis Stulman, Order Amid Chaos: Jeremiah as Simbolic Tapestry, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1998, p. 17-19. Stulman admite que o arranjo de Jeremias “consiste de amplas unidades composicionais” (caps. 1–25 e 26–52). A primeira grande unidade em Jeremias 1–25 ou “primeiro rolo” “testifica o colapso da ordem criada” e a “demolição das redes de significados de Israel”. Para ele, a primeira unidade em 1–25 serve como prolegômeno para a segunda unidade nos caps. 26–52, que documenta o julgamento anunciado em 1–25, mas também oferece “estratégias de esperança e novos começos”. É provável que em algum ponto no desenvolvimento do texto amplos contornos de Jeremias 1–25 tenham desfrutado de uma existência independente de Jeremias 26–52. Veja Kathleen M. O’Connor, Do not Trim a Word: The Contributions of Chapter 26 to the Book of Jeremiah, em Catholic Biblical Quarterly, Washington, Catholic Biblical Association of America, vol. 51, n. 4, 1989, p. 617-630. Martin Kessler, Reading the Book of Jeremiah: A Search for Coherence, Winona Lake, Eisenbrauns, 2004, p. 1-13. 55 Terence E. Fretheim, Jeremiah, p. 364. Quanto ao estudo da estrutura e arranjo da unidade literária refletida em Jeremias 26–45, indico o artigo de Gary E. Yates, Narrative Parallelism and the “Jehoiakim Frame”: A Reading Strategy for Jeremiah 26–45, em Journal of the Evangelical Theological Society, Lynchburg/Wheaton, Evangelical Theological Society, vol. 48, n. 2, 2005, p. 263-281.
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aconteceu a Jeremias de Javé”. Embora tal abordagem abarque pequenas deficiências,
de modo geral fornece a estrutura apropriada para o livro de Jeremias.56
Os primeiros 25 capítulos são basicamente oráculos de julgamento profético,
estruturados com o objetivo de demonstrar o desmantelamento do universo simbólico de
Judá, ou seja, sua percepção da vida e da realidade.57 Louis Stulman estabelece que os
caps. 1–25 de Jeremias são acessíveis em sua forma final e não refletem desarranjo de
materiais. Sendo assim, ele propõe que os capítulos 1 e 25 estão dispostos como uma
estrutura editorial ou um invólucro para cinco grandes unidades dentro dos caps. 1–25.
O cap. 1 serve como uma introdução ao livro, apresentando seus grandes temas
em termos antecipatórios e enigmáticos. O ponto de partida do livro consiste de um
cabeçalho introdutório (v. 1-3) seguido pelo relato de ordenação ou chamado de
Jeremias (v. 4-19). Os temas apresentados neste primeiro capítulo foram sintetizados
por Louis Stulman da seguinte forma:
Emergem do capítulo introdutório, portanto, temas que não estão apenas
presentes nos caps. 1–25, mas são seus principais pontos de referência. Ou
seja, o cap. 1 é concebido como um microcosmo temático do primeiro rolo.
Ele inclui os seguintes temas: a proclamação da palavra de Javé por alguém
que é um “profeta como Moisés”, a confiabilidade dessa palavra e sua
afirmação do governo soberano de Deus sobre Judá e todas as nações (isto é,
a afirmação de que a geopolítica é governada por Deus e não pela
engenhosidade e poder humanos), a rejeição da mensagem profética e o
resultante desmantelamento de todos os apoios sociais e simbólicos por um
bárbaro do norte, a guerra interna travada contra Jeremias pelas camadas
superiores da hierarquia social, e a esperança enigmática de salvação em
meio à destruição e a destruição de todos os suportes sociais e simbólicos.
Todos esses temas prenunciam e encapsulam os temas literários dominantes
que estão localizados na primeira parte do livro.58
O cap. 25 encerra a coleção e a primeira fase da vida pública de Jeremias com o
anúncio do cumprimento da palavra de Javé e seus efeitos devastadores para Judá (25,1-
56 Roy Lee Honeycutt, Jeremiah, the Prophet and the Book, p. 305-307. 57 Veja W. Rudolph, Jeremia, Tübingen, J.C.B. Mohr, 1947, 325 p., que nomeia os caps. 1–25 como “ditos de julgamento contra Jerusalém e Judá”. Assim como Douglas Rawlinson Jones, Jeremiah: New Century Bible Commentary, Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Co., 1992, 557 p., que o descreve como “crítica profética e advertência contra Judá e Jerusalém”. 58 Louis Stulman, The Prose Sermons as Hermeneutical Guide to Jeremiah 1–25: The Desconstruction of Judah’s Symbolic World, em A. R. Pete Diamond; Kathleen M. O’Connor; Louis Stulman (eds.), Troubling Jeremiah, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1999, p. 46.
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14) e para todas as nações (25,15-38). Este capítulo anuncia a soberania de Javé sobre
todas as nações e coloca Jeremias nesse sistema simbólico como o “profeta para as
nações” (1,5), estabilizando e preenchendo as brechas ideológicas enigmáticas do cap.
1. Em sua análise estrutural, Stulman sugere a seguinte divisão das unidades
macroestruturais contidas em Jeremias 1-25:59
1–25 O desmantelamento dos “primeiros princípios” de Judá.
1,1-19 A introdução funcional: plano soberano de Deus a respeito do lugar original de Judá entre
as nações.
2,1–6,30 Macro-unidade 1. Judá abandona Javé: a base para a culpa e pena de morte.
7,1-10,25 Macro-unidade 2. Desmantelamento da ideologia do templo.
11,1-17,27 Macro-unidade 3. Desmantelamento da ideologia da Aliança.
18,1-20,18 Macro-unidade 4. Desmantelamento da compreensão de íntimo e estranho.
21,1-24,10 Macro-unidade 5. Desmantelamento da ideologia real.
25,1-38 O fechamento funcional: o cumprimento do plano soberano de Deus a respeito do lugar
original de Judá entre as nações.
Os caps. 7,1–8,3 de Jeremias, objeto de nosso estudo, estão situados no grande
bloco que engloba os caps. 7,1–10,25, o qual, por sua vez, encontra-se emoldurado por
duas outras grandes unidades: de um lado, temos os caps. 2,1–6,30 e, de outro, os caps.
11,1–17,27.60 Para nosso propósito, devido aos limites do trabalho aqui apresentado,
basta averiguarmos alguns detalhes acerca dessas três seções, uma vez que a unidade
analisada se encontra dentro da seção contígua às outras duas. Buscaremos, a seguir,
delimitar cada uma dessas grandes seções, bem como as unidades menores que fazem
parte desse universo literário, a fim de demarcarmos e definirmos com maior precisão a
unidade alvo de nossa pesquisa.61
59 Louis Stulman, The Prose Sermons as Hermeneutical Guide to Jeremiah 1–25: The Desconstruction of Judah’s Symbolic World, p. 34-63. As cinco unidades apresentam uma palavra introdutória de Javé, um imperativo dirigido ao profeta para agir e falar e o conteúdo da ação ou mensagem comunicada. 60 Veja sobre a relação de simetria entre os caps. 7,1–10,25 no artigo de Alicia Winters, Ouvi a palavra. Jeremias 7-10 + 34-38, em Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/Ribla, Vozes, São Leopoldo/Petrópolis, 2000, v. 35/36, p. 93-96. 61 Sobre a tarefa da delimitação veja Raymond de Hoop; Marjo Korpel; Stanley Porter (eds.), Method in Unit Delimitation (Pericope 6): Scripture as Written and Read in Antiquity, Leiden/Boston, Brill Academic, vol. 6, 2007, 231p. Também Raymond de Hoop; Marjo Korpel; Stanley Porter (eds.), The Impact of Unit Delimitation on Exegesis (Pericope 7): Scripture as Written and Read in Antiquity, Leiden/Boston, Brill Academic, vol. 7, 2009, 285p.
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1.2.2. A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 e seu entorno
A coletânea de Jeremias 7,1–10,25 registra um conflito social envolvendo o
profeta e seus contemporâneos. Seu assunto principal é o “desmantelamento da
ideologia do templo”. Ao analisá-la pelo prisma literário é possível primeiramente
constatar uma ruptura entre as profecias registradas nos caps. 2–6 e as encontradas nos
caps. 7–10. Se, por um lado, há continuidade e repetida ênfase no tema central da
violação da aliança de Javé e o iminente castigo caso não haja arrependimento, por
outro, há claros indícios de ruptura.
A seção dos caps. 2,1–6,30 engloba uma coleção de oráculos marcados por uma
progressão de pensamento cujo realce recai sobre culpa e punição de Judá. A primeira
subunidade é caracterizada pelo tema da “infidelidade do povo de Javé” (2,1-37).
Destaca-se nesse contexto um conjunto de quatro unidades menores, que descrevem
respectivamente “a infidelidade para com a aliança de Javé” (2,1-13); “as consequências
da apostasia de Israel” (2,14-19); “a natureza degenerativa do pecado de Judá” (2,20-
28); “a certeza do julgamento de Javé” (2,29-37).
Segue-se uma segunda subunidade que tem como lema “a natureza e a
necessidade do verdadeiro arrependimento” (3,1–4,4). Encontramos aí oráculos que
falam “da necessidade de mudança de vida” (3,1-5.19-20); “da apostasia de Israel e da
infidelidade de Judá” (3,6-11); “da súplica para o arrependimento e a promessa de
restauração” (3,12-18); e “da necessidade de arrependimento sincero” (3,1–4,4). A
seção é concluída com uma subunidade que descreve “a certeza do julgamento de Javé
por meio de um inimigo do norte”, caso não ocorra o arrependimento mencionado (4,5–
6,30). Três pequenas unidades fazem parte dessa subunidade: o “inimigo do norte” (4,5-
31); as “razões para a ruína de Jerusalém” (5,1-31); uma “recapitulação” (6,1-30).62
O último capítulo dessa seção (6,1-30) revela um sumário dos prévios
pronunciamentos de Jeremias contidos nos caps. 4,1–5,31, sendo que o clímax do
capítulo como também da seção é alcançado por meio de uma metáfora extraída do
processo de mineração (6,27-30). Além do mais, a evidência de marcadores de seção na
Bíblia Hebraica, ou seja, o petuhah63, no término dos caps. 1 e 6, o marco introdu