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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CAMPUS FREDERICO WESTPHALEN/RS Departamento de Linguística, Letras e Artes Mestrado em Letras - Área de concentração: Literatura Comparada Linha de pesquisa: Comparatismo e Processos Culturais UM ESTUDO DO RPG VAMPIRO: A MÁSCARA EM CONTATO COM A ANÁLISE DO DISCURSO REFLEXÕES SOBRE IDEOLOGIA Mestranda: Bibiane Trevisol Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso Frederico Westphalen, setembro de 2016.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CAMPUS FREDERICO WESTPHALEN/RS

Departamento de Linguística, Letras e Artes

Mestrado em Letras - Área de concentração: Literatura Comparada

Linha de pesquisa: Comparatismo e Processos Culturais

UM ESTUDO DO RPG VAMPIRO:

A MÁSCARA EM CONTATO COM A ANÁLISE DO DISCURSO

REFLEXÕES SOBRE IDEOLOGIA

Mestranda: Bibiane Trevisol

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso

Frederico Westphalen, setembro de 2016.

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BIBIANE TREVISOL

UM ESTUDO DO RPG VAMPIRO:

A MÁSCARA EM CONTATO COM A ANÁLISE DO DISCURSO

REFLEXÕES SOBRE IDEOLOGIA

Dissertação apresentada como requisito

parcial para obtenção do Título de Mestre em

Letras pela Universidade Regional Integrada

do Alto Uruguai e das Missões – URI, Câmpus

de Frederico Westphalen. Área de

concentração: Literatura Comparada.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Setembro de 2016

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

UM ESTUDO DO RPG VAMPIRO:

A MÁSCARA EM CONTATO COM A ANÁLISE DO DISCURSO

REFLEXÕES SOBRE IDEOLOGIA

Elaborada por

BIBIANE TREVISOL

Como requisito parcial e final para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA:

___________________________________________

Profa. Dra. Maria Thereza Veloso – URI

(Presidente/Orientadora)

__________________________________________

Profa. Dra. Vanessa Ribas Fialho - UFSM

(1ª arguidora)

_________________________________________

Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros – URI

(2ª arguidora)

Frederico Westphalen, setembro de 2016.

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Conheça todas as teorias...

Domine todas as técnicas...

Mas ao tocar uma alma humana...

Seja apenas outra alma humana...

(Carl Jung)

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AGRADECIMENTOS

Ao escrever este trabalho de Dissertação, muitos fatores contribuíram

para.que ele fosse concluído. Deles, o mais imprescindível foi a paciência que

necessitei buscar em mim mesma e também a que tiveram comigo, pelos grandes

momentos de ausência.

Primeiramente e acima de todos, agradecer a minha Mãe, Leda Trevisol, que

sendo eu ainda pequena me incentivou no caminho das Letras e me ensinou tudo

que pode para me tornar uma pessoa melhor. Cada sermão, aviso, carinho, abraço

me fizeram o que sou hoje. Quero fazer que cada sacrifício teu, mãe, para me dar o

melhor que um filho poderia ter, seja recompensado com alegrias e orgulho. Não

seria nada sem você, te amo infinitamente. <3

Também um agradecimento mais que especial para meu marido, Simão

Cireneu Milani, o mais prejudicado na questão da ausência, pois passei vários dias

e noites diante da tela deste computador. Ele esteve sempre ao meu lado e

acalmando meus ânimos quando queria jogar tudo para cima, trazendo xícaras de

café e um carinho de que eu necessitava muito. Também te amo infinitamente <3.

Minha orientadora, Professora Doutora Maria Thereza Veloso, agradeço por

todo conhecimento, auxílio e tempo despendido ao meu trabalho (desde a

Especialização, por sinal). Saiba que quero ter pelo menos um pouquinho desta

maneira de ensinar, que me cativa a cada dia, de ser uma professora melhor.

E agora aos meus grandes amigos que não me abandonaram por todo este

tempo:

- Cassiano Prado e Christian Kayser, vocês sabem que este trabalho é um

pouco de vocês também! Me ajudaram em infinitas partes, sem isso a conclusão

desta Dissertação não seria possível. Thanks my friends. <3

- Mateus Dagiós, meu amigo (quase) Doutor, que sempre me aguenta

surtando sobre os assuntos mais diversos. Obrigada por todos os conselhos e pela

paciência ao tratar comigo. <3

- Lieber Barberini, Douglas Martins Vieira, Maria Cristina Aita, apesar de

eu não estar com a mesma frequência na casa de vocês, como antes do Mestrado,

preparem-se, pois voltarei. <3 Obrigada por entenderem minha ausência.

- Sidinei Antonio Novelo e Vicente Camillo, os que sempre ouviram meus

gritos para me tirarem do tédio e solidão que envolveram neste processo de escrita,

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me acolhendo em suas residências para jantares e algumas garrafas de algo forte,

ou apenas para jogar conversa fora. <3 Obrigada por estarem presentes quando

precisei.

Não poderia deixar de lembrar as Professoras que desde a graduação em

Letras me auxiliaram nesta jornada:

- Professora Maria Eloisa Zanchet, que nunca me deixou desistir desta vida

acadêmica e que me fez ter a certeza de que estava no caminho certo.

- Professora Jubila Laforce, que mesmo não estando mais neste mundo,

deixou o maior legado que alguém poderia imaginar: o amor pela Literatura e o

respeito pelo ser humano. E, novamente, obrigada pelas melhores aulas de

Literatura que este mundo já viu...

- Professora Doutora Rosângela Fachel de Medeiros, Professora Doutora

Sílvia Helena Pinto Niederauer e Professora Doutora Ilse Maria da Rosa Vivian,

que foram mais que docentes, tornaram-se amigas e conselheiras em vários

momentos. Carregarei cada ensinamento para todo o meu sempre.

Agradecimentos formais à URI - Câmpus de Frederico Westphalen, por ter

me acolhido desde a Graduação até o Mestrado, vários anos de parceria e serviços

que foram de grande valia para a conclusão e êxito deste passo acadêmico. E, por

fim, à CAPES, que financiou a Bolsa de Pós-Graduação Integral, dando um auxilio

imensurável e necessário para a conclusão do Mestrado.

Para todos, a minha gratidão e agradecimento mais sinceros que eu

conseguir exprimir do meu coração. <3

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RESUMO

Esta Dissertação registra uma leitura de cunho comparatista tendo como base a obra Vampiro: A máscara, de Hagen (1998), as criações narrativas exclusivas de Prado (2016), Kayser (2016) e Trevisol (2016) e os áudios gravados durante uma sessão de RPG, narrada por Milani (2016). O enfoque do trabalho está no processo de criação discursiva e ideológica de cada personagem e, também, em como acontece a interação social perante um sistema econômico opressor em que o livro-base é ambientado. É da Análise do Discurso de linha francesa o aporte teórico básico para as reflexões. Na perspectiva de Pêcheux e Orlandi, a Ideologia é abordada principalmente pela perspectiva do materialismo histórico na releitura feita por Althusser. O corpus do trabalho apresenta os Recortes Discursivos, retirados das narrativas escritas para a criação dos personagens, e os Recortes Áudio-discursivos selecionados da gravação da ação dos personagens em contato e interação com o ‘Mundo Das Trevas’. As reflexões e análises apontam que o RPG é uma maneira de estabelecer uma crítica ao sistema capitalista que temos na realidade, pela paridade de discursos semelhantes aos do Mundo das Trevas, que é fictício. Cada um dos personagens, por ser de uma classe social diferente, mostra as diversas facetas de como é fragmentada a maneira com que o sistema atinge cada um deles, mostrando que a ideologia é algo que é imperceptível ao sujeito, pois age do exterior para o interior, afetando-o invisivelmente, possuindo uma força ideológica totalmente poderosa sobre a sociedade.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Recorte discursivo. Recorte Áudio-discursivo. Ideologia. Sujeito. Role Playing Game.

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ABSTRACT

This dissertation proposes a comparative reading of the work Vampire: The Masquerade Created by Hagen (1998), the exclusive narrative creation of Prado (2016), Kayser (2016) and Trevisol (2016) and the audio files recorded during an RPG session, narrated by Milani (2016). The aim of this paper is in the process of the discursive and ideological creation of each character as well as how the social interactions happen before the oppressive economic system in which the work is set. By using the French line of studies of Discourse Analysis as contribution for the pondering in this paper, in the perspective of Pêcheux and Orlandi and the Ideology will be addressed mainly through the perspective of historical materialism made on a rereading by Althusser. The corpus of the paper will present the Discursive Fragments withdrawn from written narratives for the creation of the characters and the Audiodiscursive Fragment selected from the recordings of the character's actions in interacting with the World of Darkness The thoughts and the analysis indicate that the RPG is a way of establishing criticism on the capitalist system that we have in reality because of the similarity with the discourses contained in World of Darkness, which is a fictional setting. Each of the characters with their various social backgrounds, show different facets of how fragmented the way with which the system reaches to each one of them, showing that the ideology is something imperceptible by the subject, for it acts from one's outside to one's inside, affecting them invisibly, but it has an ideological strength completely powerful in society. Keywords: Discourse Analysis. Audio discursive Fragments. Ideology. Subject. Role Playing Game.

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SUMÁRIO

PREMISSAS ANTERIORES À ANÁLISE ............................................................................. 11

1 PRIMEIROS APORTES PARA O ESTUDO DO RPG ................................................... 13

1.1 O RPG como objeto de pesquisa ........................................................................... 13

1.2 O estereótipo do vampiro na literatura e no cinema ............................................... 19

1.3 A preparação da sessão ........................................................................................ 21

1.3.1 A criação da ficha ........................................................................................... 22

1.4 Ambientação da crônica: Los Angeles, Califórnia, EUA – vivendo na maior potência

capitalista do planeta ........................................................................................................ 28

2 OS VAMPIROS ‘DIFERENTES’ PERMEADOS PELA IDEOLOGIA .............................. 34

2.1 Descobrindo o vampiro do RPG ............................................................................ 36

2.1.1 A transformação, alimentação e luta interior ................................................... 36

2.1.2 A ambientação do “Mundo das Trevas” e a “Máscara” ................................... 44

3 ANÁLISE DO DISCURSO EM CONTATO COM O VAMPIRO: DOS RECORTES

DISCURSIVOS E AUDIODISCURSIVOS ............................................................................ 50

3.1 A escolha dos clãs ................................................................................................. 52

3.1.1 O Gangrel ....................................................................................................... 53

3.1.2 O Nosferatu .................................................................................................... 57

3.1.3 O Ventrue ....................................................................................................... 62

3.1.4 Apresentação dos personagens: a criação de uma identidade ....................... 70

3.2 A milionária, o estrangeiro e o pobre: análise dos Recortes Discursivos ............... 75

3.3 A crônica “The Blood State”: análise dos Recortes Áudio-discursivos ................... 95

3.3.1 Recorte Audio-discursivo I – Ambientação antes da crônica ........................... 97

3.3.2 Recorte Áudio-discursivo II – Primeira interação entre os personagens ......... 97

3.3.3 Recorte Áudio-discursivo III – O encontro com o Príncipe .............................. 99

3.3.4 Recorte Áudio-discursivo IV – Início da missão ............................................ 101

3.3.5 Recorte Áudio-discursivo V – A busca pelo alvo ........................................... 103

3.3.6 Recorte Áudio-discursivo VI – O discurso do Príncipe .................................. 104

ANEXOS ............................................................................................................................ 113

ANEXO 1 ....................................................................................................................... 114

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ANEXO 2 ....................................................................................................................... 114

ANEXO 3 ....................................................................................................................... 123

ANEXO 4 ....................................................................................................................... 132

ANEXO 5 ....................................................................................................................... 136

ANEXO 6 ....................................................................................................................... 137

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PREMISSAS ANTERIORES À ANÁLISE

Observando os estudos desenvolvidos na área de Letras, percebe-se uma

grande repetição nos gêneros literários e não literários usados como corpus de

pesquisa. Visando a esta inovação, e dando prioridade ao contexto social que

necessita ser abordado na literatura para que assim possa ter relevância e

notoriedade para a sociedade, o RPG (role play game) foi escolhido para ser o

gênero específico desta pesquisa. Sendo parte integrante de um gênero mais

abrangente, especificamente a literatura gótica, ele é uma forma diferente de se

fazer literatura, pois não há um roteiro, apenas um livro base para que haja a

interação dos jogadores e algumas regras para que a interpretação seja feita de

acordo com o tema proposto, no caso deste trabalho, um mundo habitado por

vampiros.

A AD (Análise do Discurso) de linha francesa foi a teoria mais apropriada para

a análise desejada, pois abrange a linguística e as ciências sociais. Por levar em

conta a linguagem como sujeito e situação, não simplesmente agrupa o que está

separado entre estas duas áreas, mas também estabelece uma contradição entre

estes saberes, tendo como objeto de estudo o discurso em si. A ideologia é vista

como imaginário na AD, sendo a interpretação das relações da linguagem com a

história em seus mecanismos imaginários, dando um efeito de separação entre os

dois, em que a convergência se dá graças a essa teoria.

As premissas antes citadas encaixam o trabalho na Linha 2 do Mestrado em

Letras da URI: Comparatismo e Processos Culturais, pois faz inquirições a respeito

da maior potência capitalista do mundo. Com base nestas inquirições, é proposta

uma comparação através de Recortes Discursivos para encontrar as convergências

discursivas e ideológicas as histórias criadas por leigos em questão de escrita e

assim encontrar estes traços, em específico com os personagens apresentados

como base para a criação da ficha de jogo do RPG. Apresentam-se também

Recortes Audiodiscursivos que abarcam a interação dos personagens em relação ao

mundo que estão inseridos, suas ações e atitudes perante o sistema implantado pela

organização que rege os vampiros, item abordado no Capítulo 2.

Em relação ao corpo do trabalho, está dividido em três capítulos, que serão

apresentados de forma concatenada em relação à teoria e à análise, sem a divisão

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teórica, sem haver um capítulo específico para a retomada da teoria analítico-

discursiva e metodológica, porque na condição de suporte teórico, elas se diluem no

fazer analítico. No primeiro Capítulo constam as disposições sobre a importância do

RPG como objeto de estudo e a sua classificação, seguido por uma apresentação do

vampiro estereótipo, conhecido da literatura e obras cinematográficas, uma

desconstrução de uma ficha de RPG para que sejam sanadas as dúvidas sobre

como se constrói um personagem e como se joga efetivamente, e um breve aporte

sobre o país onde são alocados os cenários da obra e seu respectivo sistema

econômico, que neste caso será Los Angeles, no estado da Califórnia, Estados

Unidos.

O sistema econômico foi o tema escolhido para que a comparação se

tornasse possível, ficando evidente, na leitura do corpus literário Vampiro: a

máscara, a ambientação da narrativa no Ocidente, em um sistema capitalista em

que os vampiros necessitam utilizar a “Máscara” para poderem viver entre os seres

humanos, drenando sangue para sua sobrevivência. Esta comparação elucida a

metáfora presente nesta obra, que tem por definição, na AD, como um fenômeno

semântico que provoca um deslizamento de sentido através de uma substituição

contextual. O Capitalismo é o novo significado que foi deixado nos pontos de deriva

(no campo das análises de procedimentos, vê-se como interpretação, produzindo

uma intervenção real do sentido), trazendo uma nova significância para o seu uso

em relação ao jogo.

O terceiro Capítulo está composto pelas análises propriamente ditas, tanto

dos Recortes Discursivos quanto dos Recortes Áudio-discursivos, dos personagens,

estabelecendo um paralelo entre raças de vampiros que são semelhantes ou

diferentes, estereotipando certas classes sociais e modismos de cada sociedade,

como uma grande metáfora da realidade, tendo como suporte teórico a Análise do

Discurso.

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1 PRIMEIROS APORTES PARA O ESTUDO DO RPG

1.1 O RPG como objeto de pesquisa

Quando se fala em RPG, há muita confusão para se definir do que realmente

se trata. Muitos não sabem o que é ou de onde provém, chegando a ser confundido

com os tratamentos de RPG (Reeducação de Postura Global) utilizados na área da

Fisioterapia. Quem sabe do que se trata, não generalizando, não o consideram

como algo importante, pensando se tratar apenas de um jogo, uma diversão, sem

cunho educacional nem literário. Os estudos no campo da Educação chegaram

primeiro à conclusão de que o RPG teria utilidade para o ensino, pois trabalha a

criatividade, oratória e como lidar rapidamente com problemas que são propostos na

história. Duas perguntas foram cabíveis para esta pesquisa – uma delas, por que

não estudar o RPG na Literatura? A outra, para fins deste trabalho, por que não

associá-lo a uma teoria como a Análise do Discurso de linha francesa?

Dentre as várias concepções sobre o que é literatura, temos uma que se

fundamenta no princípio de ser uma arte de criar/recompor textos e isto foi levado a

sério pelos educadores que só viram uma faceta neste jogo: o da criatividade. Sob a

perspectiva do aspecto literário, tendo como princípio a tradição de contar histórias

como intrínseca na sociedade, podemos traduzir para o português a sigla RPG (que

em inglês é Role Playing Game), como ‘jogo de encenação’, que, de forma

superficial, resume-se em ouvir uma história contada por um narrador e agir de

acordo com o personagem para quem você mesmo criou uma biografia, com

características físicas e psicológicas. A partir do momento que a história começa,

assume-se um papel e não se sai dele até o final da narrativa.

Assim sendo, pode-se notar a presença da narrativa oral, tradicional e

presente na vida de todas as pessoas, pois não há quem, em algum momento, não

tenha parado para ouvir uma pessoa mais idosa ou até mesmo um amigo contar

uma história. O RPG tem características que fazem dele um gênero único e

incompreendido: é diferente de todos os outros que são conhecidos, pois a história

nunca estará completa. Nos livros, apenas estão elencadas a ambientação e

algumas diretrizes para que o jogo tenha boa fluidez para os jogadores.

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Situando a origem do RPG, pode-se dizer que é um dos primeiros gêneros

de jogos de interação e possivelmente um dos que têm a maior variedade de formas

ao redor do mundo, servindo de inspiração para a evolução dos jogos de

computador em relação à história e personagem. Primeiramente, a inspiração para a

forma moderna de RPG veio do pioneiro Dungeons & Dragons, na década de 70 e,

desde então, começaram a surgir, além de uma enorme variedade de estilos,

também publicações em outras mídias incluídas as digitais e não digitais, dando a

possibilidade de o jogo acontecer apenas entre conhecidos e fisicamente, ou com

centenas de pessoas de todo lugar ou distância geográfica. Essa interação com

pessoas diferentes cria a cada nova narrativa uma enormidade de experiências e de

percepções de mundo, pois cada pessoa irá reagir a algum fato, contado com base

em suas vivências, gostos pessoais, crenças e percepções, em que cada palavra

dita pode mudar toda situação do jogo.

O criador da versão do jogo pioneiro de RPG Dungeons & Dragons, em sua

versão 4.0, Heinsoo (2008), menciona ainda que, antes deste, haviam os wargames

- jogos de estratégia, jogados com bonecos de chumbo, em que eram recriadas

batalhas históricas de guerras e

conflitos. Logo depois, Gary

Gygax criou o Chainmail, que

incorporou criaturas mágicas e,

ao invés de ser do jogador

controlar um exército, controlava

apenas um personagem, não

havia mais combate com os

amigos, mas sim uma união para

cumprir um objetivo em comum

(p. 7).

O insight de criar o

Dungeons & Dragons aconteceu

quando, após a explosão de

histórias medievais fantásticas de

J. R. Tolkien (autor da saga

Senhor dos Anéis), Gygax e Capa da obra "Vampiro: A máscara" Fonte: Arquivo Pessoal

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Anerson resolveram associar as práticas do teatro e interpretação no contexto do

jogo, criando assim, em 1977, o primeiro volume do jogo de RPG mais conhecido do

planeta. O jogo Vampiro: a máscara teve sua criação associada com a

popularização de histórias de vampiro que estavam em circulação na década de 80

e 90 (como Anne Rice, L. J. Smith e a redescoberta de Bram Stoker). Por se tratar

de criaturas mágicas, foi possível que, com algumas modificações, o novo jogo fosse

criado, sendo a ambientação no mundo contemporâneo, com todas as suas

instâncias, o diferencial em relação ao anterior. Em relação ao jogo em si, a forma

mais comum de ser jogada é o RPG de mesa, que exige menos recursos e pode ser

jogado em qualquer lugar, a duração depende de um combinado entre o mestre e os

jogadores. O mestre, segundo Amaral (2008), é narrador, que tem a

responsabilidade de “preparar com antecedência o esboço de uma aventura, a partir

do universo escolhido pelo grupo e é responsável pelo bom andamento da mesma

apresentando desafios e surpresas a cada narração envolvendo os seus

participantes” (p. 24). O jogador é parte da narrativa do mestre; desde então, passa

a sua história previamente para que o narrador possa criar uma narrativa envolvendo

todos os jogadores e criando situações peculiares para cada um deles.

Para iniciar o jogo, é necessário ter uma cópia do livro. Tido como módulo

base, ele traz as regras básicas para jogar e entender o funcionamento primordial da

versão escolhida, que, neste caso, é Vampiro: a máscara. O sistema de regras

define a criação do personagem dentro do foco ficcional selecionado, delimitando as

características, futuras ações baseadas no estereótipo social que for escolhido.

A criação do personagem por parte do jogador acontece baseada nas

afinidades que o jogador tem com o temperamento de cada uma das classes de

vampiro que são apresentadas no livro base, o que torna o personagem

praticamente uma extensão psicológica do “dono” da ficha (local em que são

anotadas as características físicas, psicológicas e econômicas do personagem).

A construção da ficha será completamente desconstruída no decorrer da

pesquisa, separando-se cada bloco em específico, com suas particularidades e

utilizações para o personagem criado pelo jogador.

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Ficha de personagem – Vampiro: a Máscara

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

Não vendo por um ângulo ingênuo, o RPG é assim como muitos livros, que

contêm alguma crítica ou deixam nas entrelinhas alguma passagem que para

maioria seria imperceptível. Para embasar esse pensamento, foi levantada a

hipótese de que há uma semelhança entre o vampiro citado no livro tido como

corpus principal e o sistema econômico do país respectivo em que a história do livro

é ambientada, neste caso, os Estados Unidos, com o Capitalismo.

Também foi escolhido o RPG pela novidade na questão dos gêneros

discursivos, pelo fato de ser uma mistura de teatro, narração, interpretação, criação

literária tanto oral como escrita e, também, dependendo da criatividade do mestre,

podendo agregar inúmeras outras formas de aumentar a miscigenação de gêneros,

como a música, a arte, tecnologia. Desta maneira, torna-se indispensável citar que o

gênero RPG não é limitado, mas sim abrangente e modificável, tendo como limite a

imaginação dos jogadores.

Essa necessidade de interação sócio cultural é saciada pelo RPG, pois, no

momento em que se está jogando, pode-se interagir com inúmeras pessoas, tanto

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conhecidas como de outros países, que quase sempre agregam algum fato ou ação

para o personagem, incluindo-se a percepção sobre cada um dos estereótipos que

acontecem nessa mescla de gêneros e são colocados no livro base, trazendo que

assim características únicas para cada um.

Quando essas mudanças são mencionadas, Machado (2001) se posiciona a

respeito deste fato que busca “explicitar os modos pelos quais as mensagens se

organizam em meio à profusão de códigos, de linguagens e, consequentemente, de

mídias”, ressignificando assim novos gêneros, tornando-se cada vez mais

complexos e demandando uma nova abordagem e uma nova definição. Transforma-

se assim o RPG em um gênero híbrido, formado pela combinação de inúmeros

outros, chamados de híbridos por sua constituição e pela mescla de outros gêneros.

Para Santaella,

o termo hibrido é utilizado para caracterizar as instabilidades, interstícios, deslizamentos e reorganizações constantes dos cenários culturais, as interações e reintegrações dos níveis, gêneros e formas de cultura, o cruzamento de suas identidades, a transnacionalização da cultura, o crescimento acelerado das tecnologias e das mídias comunicacionais, a expansão dos mercados culturais e a emergência de novos hábitos de consumo. (SANTAELLA, 2008, p. 20)

Por esse hibridismo, na hora da classificação, o RPG - especificamente nas

obras escolhidas para a execução deste trabalho, em relação à sua temática

fantasiosa, com vampiros, morte, loucura, sexualidade aflorada, tortura física e

psicológica, obscuridade, paradoxos entre o divino e o satânico, seres sobrenaturais

- está situado fortemente na Literatura Gótica, gênero literário tido como uma

vertente do Romantismo, que procurou entrar no lado obscuro do sentimento e

começou a tratar de temas que iam em completo desencontro às tradições que

estavam enraizadas da sociedade daquela época. Teceu-se assim um paradoxo

extremamente binário entre estes assuntos: sonhos se tornavam pesadelos, amor

era convertido em solidão e ódio, o belo ficava tétrico e sem luz, a sanidade seria

sempre questionada.

Este tipo de literatura foi sempre considerado marginal, pois entrava em

conflito com o que era idealizado e reproduzia um retrato da sociedade e, em

consequência, da humanidade que, apesar de verdadeiro, era negado pelos autores

românticos, causando assim um estranhamento convexo com um choque de

realidade.

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O termo “gótico” tem sua origem em um povo da antiga região da

Escandinávia, os “godos”, que eram conhecidos pela sua barbárie e brutalidade,

dando assim origem à palavra, que passou a ser usada também como xingamento e

sinônimo de desprezo. Este povo foi o primeiro de origem germânica a ser

convertido para o Cristianismo e ao chegarem à Itália e começarem a exercer a

cultura arquitetônica em monumentos. Outra vez foi taxada pejorativamente toda a

arte de gótica, ampliando-se assim o uso da palavra. Ao contrário do que seria o

fluxo normal das ideias e conceitos, quando uma arte é taxada pejorativamente, ela

deveria ser esquecida, a obra gótica foi sendo cada vez mais reconhecida e

admirada pela ousadia, resistências de suas construções e principalmente pelo

tamanho colossal dessas edificações, que dava um ar de insignificância para quem

estivesse perto ou em contato com elas. Para Fonseca,

O nome gótico significou arquitetura antes de significar literatura (...). A arquitetura gótica objetivava um efeito emocional sobre as pessoas, evocando a sensação de estar a mercê de um poder superior, diante do qual o homem se sente vulnerável e insignificante. Em suma, um espaço do oculto e do não-explicável. (FONSECA, 2009, p. 43)

Estes castelos, igrejas, mansões e outras edificações que eram permeadas

de imensas torres, vitrais com temas tristes, gárgulas e não tinham muita passagem

de luz, tornando o ambiente frio e úmido, sendo o contrário do estilo romano que

imperava na Europa até então, teve sua reputação manchada ainda mais por ter

sido classificada como a arte que invadiu e profanou a arquitetura cristã tradicional.

Por estes motivos, estas construções começaram a atrair a atenção de escritores

que fizeram delas palco para histórias com o imaginário sobrenatural. Pela sua

estrutura obscura e triste, dão um tom verossímil às histórias, dando-se assim o

início da Literatura Gótica.

Quando se situa o corpus deste trabalho na Literatura Gótica, coloca-se o

leitor/jogador em contato com os vampiros e toda a fantasia obscura que permeia

este mito; coloca-se em voga as manifestações sentimentais contemporâneas, que

permanecem as mesmas da Antiguidade, que vêm desta atração pelo desconhecido,

pelo macabro; do medo que, ao mesmo tempo, repele e atrai os sentimentos do ser

humano, trazendo à tona o verdadeiro anseio da humanidade, que é exatamente

este: conviver com a perenidade da vida, a incerteza da existência e do que espera

depois da morte. Quando se trata de vampiros, este medo some e dá lugar ao medo

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da solidão, justamente sendo o contrário do medo humano, o de não saber até onde

a imortalidade o levará.

O gótico trabalha com a angústia, com o estranho. Sempre foi considerado de

mau gosto, bárbaro e sem rebuscamento, mas é a representação das

transformações ocorridas na sociedade que demandaram esta nova forma de

escrita, em que a busca pela identidade se tornou imprescindível ao invés de uma

procura pelo amor eterno. Pode-se dizer que a Literatura Gótica é a maneira que

uma sociedade em crise encontrou para elucidar o que tanto a atormenta e ao

mesmo tempo a fascina. A conjuntura de contradições do mundo moderno traz

novamente essa necessidade que foi suprida pelas obras contemporâneas, tais

como Vampiro: A Máscara e Vampiros do Oriente, partes integrantes da Literatura

Gótica.

Caracterizando com base nestes aportes teóricos, podemos classificar o RPG

como um gênero híbrido, assim designado por apresentar características

pertencentes à Literatura Gótica, por tratar de temas e anseios ancestrais e ao

mesmo tempo contemporâneos, fazendo deste um estudo necessário e novo na

área da Literatura. Juntamente com a Análise do Discurso, fez-se um paralelo entre

o livro base do jogo de RPG Vampiro, notando-se, assim, a presença da ideologia no

discurso dos personagens estereótipos que servem de base para a criação do

jogador.

1.2 O estereótipo do vampiro na literatura e no cinema

Quando se menciona o vampiro, não é fácil explicar a maneira com que este

mito se fez presente na consciência coletiva. Pelo fato da condição humana não ter

domínio sobre os poderes do vampiro, e muito menos poder alcançar algum dia a

imortalidade, pode ser que surja daí essa fascinação pelo poder e a vida eterna, que,

em teoria, jamais será alcançado por um ser humano. Meldon caracteriza o vampiro

como “um cadáver reavivado que levanta do túmulo para sugar sangue dos vivos e

assim reter a aparência da vida. Esta descrição certamente se adapta a Drácula, o

vampiro mais famoso, mas é apenas um ponto de partida (XV). ” (MELDON, 2008,

s/n.)

O vampiro que conhecemos nas obras de ficção tem sua origem no centro

Europa Oriental, nos países eslavos, de onde veio inclusive a palavra “vampiro”, que

20

na Transilvânia, país que tem uma cultura gótica forte, é chamado de vapir. Nesses

países, há uma grande cultura que envolve vampiros, chegando a acontecer

grandes surtos de vampirismo, levando até autoridades a investigarem se seria

possível assistência aos acometidos por este transtorno. Uma das comissões

chegou a exumar corpos para serem decapitados e terem uma estaca de madeira

cravada no coração, trazendo assim este fato como alternativa para se matar um

vampiro, ou acabar com a possibilidade desta existência. Lagarto (2008) elucida a

primeira vez em que a palavra vampiro foi utilizada:

Em 1732, é utilizada pela primeira vez a palavra “vampyre”, em França, na revista La Glaneur, incluída no relato do caso de Arnold Poole (ou Paul), um camponês que morreu em 1726, num acidente, e que foi considerado responsável pela morte de grande parte da população de uma aldeia sérvia. Tal como com Plogojowitz, foi levada a cabo uma investigação pelas autoridades e, exumado o cadáver, descobriram sangue no corpo e vestes, procedendo-se com a sua execução pela estaca de madeira no coração e posterior cremação. Poole foi, pois, classificado de vampiro. De acordo com Jean Marigny, é em 11 de Março de 1732 que o London Journal usa pela primeira vez a palavra “vampiro” na língua inglesa. (LAGARTO, 2008, p. 26)

A relação de vampiros da ficção que são mais lembrados inicia obviamente

pelo Conde Drácula, a obra de Bram Stoker que deu origem ao vampiro moderno.

Drácula tem seu figurino muito estereotipado entre os livros de vampiro. Apresenta

uma cor pálida, é alto, magro, possui lábios vermelhos e um olhar sedutor (não

somente de cunho sexual, mas também de dúvida), lembrando um perfeito

aristocrata de seu tempo. Logo após, surgem os vampiros de Anne Rice. Estes

reinventaram e trouxeram para a modernidade o mito do Vampiro. Lestat e Louis

eram, da mesma forma que Drácula, ricos, bonitos e poderosos, mantendo assim os

estereótipos do Vampiro.

Outro aspecto que sustenta a ficção vampírica e, por consequência, esse

fascínio do ser humano por eles, são os temas centrais a que a existência do

Vampiro está ligada, como a vida sem regras, a possibilidade de escapar da morte,

a sexualidade, que é envolvida sempre por sedução e luxúria, a violência para

resolver seus problemas simples, mas que, para esses seres, não acarreta nenhum

problema, o terror, a perdição e o prazer infinito, temas estes que não podem ser

plenamente vividos por um ser humano. O vampiro também possui em geral o

estereótipo de ser humano perfeito, fazendo com que nenhum dessa espécie seja

pobre, feio ou não possua um corpo espetacular.

21

Quando se entra no mundo do RPG e, por consequência, no livro base

Vampiro: A máscara, imediatamente há um choque por conta das informações que

são encontradas a respeito de vampiros, havendo assim uma quebra total de

paradigmas e estereótipos que estão arraigados na memória coletiva quando se

trata desta criatura, tema este dissertado no próximo Capítulo.

1.3 A preparação da sessão

Por ser um jogo que necessita de conhecimento prévio antes de se iniciar

uma sessão (nome dado a partida, o tempo decorrido entre o início de uma ação na

mesa de jogo até o término e a distribuição dos itens conquistados durante as

missões), a prática do RPG necessita de um certo tempo de conversas e resoluções

entre os jogadores para que todas as situações apresentem uma coerência.

Especificamente para a execução desta pesquisa, um grupo de jogadores,

incluindo a autora desta Dissertação, foi recrutado a fim de que um material concreto

fosse desenvolvido para integrar o corpus a ser analisado. Um documento de

autorização para a reprodução e utilização das criações foi entregue aos jogadores

para as demandas legais requeridas.

Quando se decide jogar RPG, a primeira ação a ser tomada será a decisão de

qual jogo será escolhido, neste caso, Vampiro: a Máscara. A leitura do livro base é

necessária a todos os integrantes do grupo, para que as regras e os conceitos

básicos sejam de conhecimento geral. Logo após é discutido em que parte do globo

terrestre será ambientado para que as informações a respeito do país, cidade

específica, costumes, sistema de governo, clima e particularidades deste lugar

possam ser estudadas por todos, proporcionando-se uma familiarização com os

aspectos gerais e, deste modo, ser possível avançar para o próximo passo.

Após ter o setting preparado, decide-se quem será o mestre narrador e os

jogadores, dando-se início à parte criativa e mais exigente, que é a escritura das

histórias específicas de cada personagem. Começa assim a interação do mestre

com os jogadores, pois será feita a escolha do clã de que cada um fará parte (exceto

o mestre, pois será ele quem criará a narrativa), levando em conta a personalidade,

gostos, sobre alguma característica do clã escolhido, enfim. Após a escolha, o

22

mestre elucida aos jogadores as restrições que serão impostas com base na história

que ele criará e assim libera os jogadores para também criarem suas histórias.

Normalmente as histórias desenvolvidas pelos jogadores são entregues em

vias impressas para o mestre, pois, no momento da sessão, essas histórias poderão

ser consultadas por algum motivo. A leitura atenta do mestre se faz muito

necessária, pois ele terá de interligar de alguma maneira os personagens para que a

interação entre eles ocorra naturalmente. O dia da sessão inicia com a preparação

da mesa e a entrega das fichas de atributos a ser preenchida com base na história

desenvolvida por cada jogador. Após a conclusão, o mestre inicia seus trabalhos,

quais sejam, narrar a história criada por ele e começar a distribuição das tarefas e

missões que devem ser cumpridas. Os materiais utilizados durante a sessão são as

fichas impressas, juntamente com a história, lápis, caneta, borracha e os dados

específicos para o jogo escolhido, neste caso, dados de 10 (dez) faces.

1.3.1 A criação da ficha

Antes de entrar definitivamente na narrativa composta pelo mestre, é

necessário fazer a distribuição dos atributos nas fichas dos respectivos jogadores. A

feitura da ficha é um processo lento, que exige muita atenção na distribuição dos

pontos que são delimitados pelo livro base. Cada jogador recebe uma ficha impressa

e ali irá colocar os dados necessários. Para facilitar a compreensão, será

desconstruído um exemplo de ficha e explanado sobre cada parte específica.

Para elaborar a ficha é necessário ter a história pronta para que os pontos

sejam coerentes com o que será escolhido como prioridade na respectiva ficha. A

primeira parte é tecnicamente a mais simples, pois apenas se completam os dados

com os que já estão definidos, como o jogador (nome civil, por exemplo, Bibiane

Trevisol), a crônica (que já inicia o processo de curiosidade dos jogadores, pelo fato

de que é o primeiro contato com a história que está sendo contada pelo mestre,

sendo como o título da aventura que será desenvolvida na sessão), a natureza (que

tem de ser escolhida com cuidado, pois é como a “verdadeira” personalidade do

personagem, aquela que não pode ser mudada de maneira alguma, uma

característica forte do vampiro, sendo cobrada constantemente pelo mestre); o

comportamento (trata-se da “máscara”, que ele veste para esconder a sua

verdadeira personalidade, principalmente no mundo dos vampiros, pelo fato de que

23

não podem ser descobertos, diferindo muitas vezes da natureza. É o que definirá a

maioria das ações e atitudes tomadas pelo jogador); o clã (que já está escolhido na

história escrita pelo jogador e pelo mestre, só dependendo da restrições de clã que o

mestre fizer), a geração (que é o quanto longe do pai vampiro Caim o personagem

criado está, normalmente sendo da 12ª geração, mas podendo ascender com a

compra através dos pontos cedidos pelo mestre); o senhor (o criador, o vampiro que

foi responsável pela transformação, nome que deve estar presente na história de

cada vampiro, exceto casos que propositalmente o jogador, na hora de escrevê-los,

deixa a dúvida de quem o transformou com propósito específico); e o conceito

(definido como a característica que perdura pela transformação de vampiro; é a

característica que deixa mais fácil a interação entre os vampiros e os humanos, sem

que sejam reconhecidos). A escolha destes aspectos está delimitada nas páginas do

livro base, que contém alguns exemplos de cada um; se nenhum dos citados

agradar ao jogador, podem-se criar novos, com a permissão e ajuda do mestre.

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

1.3.1.1 O nome do personagem: a dualidade do jogador

O nome (do personagem) não foi esquecido, só necessita de uma explanação

diferenciada a respeito pelo fato de que é a parte que mais dificulta a criação do

personagem. Criar uma nova identidade, um novo ser humano com uma vida que

necessita ser contada com detalhes para que a interação entre os jogadores seja

natural e que seja possível ao jogador interpretar e proporcionar emoções para esta

“nova pessoa”, faz da escolha do nome a parte mais difícil da criação da ficha.

24

Quando se menciona que a escolha de um nome é difícil, a quem não tem

contato com o RPG pode até parecer irônico, eis que “se escolhem nomes para tudo

o tempo todo”, fato que não pode ser negado. A ligação emocional que o jogador

tem com o seu personagem e a complexidade decorrente de que, ao iniciar da

sessão, o seu nome será o que ele mesmo escolheu para o personagem, e que,

durante este tempo todo, a vida real dele ficará em segundo plano, resultarão em

que as suas atitudes, pensamentos e convicções não serão mais as usuais. Uma

situação simples, que seria normalmente resolvida com facilidade, na criação do

personagem pode se tornar um dilema e o jogador, por ter escrito a história desta

maneira, terá de agir da forma com que foi criado o seu personagem.

A criação da nova identidade evoca uma percepção maior sobre o mundo em

que o personagem será colocado, existindo um paralelo entre a identidade do

jogador e a do personagem em conflito. Isso ocorre pelo fato de que a “identidade

nunca é dada, é sempre construída e a (re)construir, em uma incerteza maior ou

menor e mais ou menos durável” (DUBAR, 1997, p. 104). Batizar um personagem é

como se o jogador fosse dividido em duas pessoas diferentes; é o conflito do “eu”

com o Outro, que não deixa de ser o mesmo “eu”, mas permeado de novas

experiências, ideologias e gostos diferentes.

A identidade não é criada de uma maneira simples. É uma construção que

envolve inúmeros fatores, tanto sociais quanto psicológicos, sendo uma espécie de

resultado provisório da intersecção entre o que o jogador tem por história (real), seu

contexto histórico e social (real) e suas ambições, medos e projetos (reais),

construindo o que ele é. Acontece o mesmo com o personagem criado, que deve ter

história (criada), deve ser inserido em um contexto histórico e social (criado) e deve

ter ambições, medos e projetos (criados) para que essa interpretação feita pelo

jogador seja a mais fiel possível.

1.3.1.2. Os atributos, habilidades e vantagens

Esta parte da ficha deve ser preenchida de acordo com o que foi escrito na

história do personagem, tendo alguns itens que não podem ser preenchidos por

limitações do próprio clã. Logo após a identificação do personagem, há um campo

onde as características físicas, sociais e mentais serão colocadas:

25

Fonte: Arquivo pessoal

Dependendo do que o jogador necessitar para colocar em prática o que ele

criou, pode-se distribuir os pontos que são pré-definidos para cada grupo de

características. São disponibilizados os pontos de maneira 7/5/3, totalizando 15

(quinze) pontos. A ordem dos números não é restritiva, pois o jogador escolherá em

qual coluna colocará o maior número de pontos, pensando no que o seu

personagem terá de impactante no jogo: se for um vampiro que é mais voltado para

o combate, lutas, brigas, certamente o maior número (sete) será distribuído nos

atributos físicos, dividindo os 7 pontos entre força, destreza e vigor. Assim

acontecendo com os 5 e 3, deixando o menor número para os atributos que serão

menos necessários.

Quando um vampiro necessita mais de interação social ou envolve-se com

pessoas, o enfoque será no aspecto social, e logicamente o que for mais estratégico

e pensativo priorizará os atributos mentais, dando assim uma individualidade

gigantesca para o personagem, pois nenhum jogador distribui os pontos da mesma

maneira na ficha.

Em seguida está o bloco denominado habilidades, que contém as colunas

talentos, perícias e conhecimentos.

Os pontos que aqui são disponibilizados estão divididos entre 13/9/5,

novamente dando prioridade ao que o personagem necessita em maior número. Os

talentos são caracterizados por serem habilidades intuitivas, aprendidas com a

experiência de vida. As perícias são designadas como habilidades que necessitam

de treino e determinação para serem adquiridas; se não estiverem escritas na

história, não poderão ser preenchidas. Os conhecimentos são autoexplicativos: é o

que se adquire através do estudo, são caracterizados pela busca intelectual

individual.

26

Fonte: Arquivo pessoal

Cada grupo destas habilidades deve estar presente na história do

personagem, pelo simples fato de que, citando um exemplo de um vampiro que é

professor de língua portuguesa, não poderia ter pontos em armas de fogo ou armas

brancas, a não ser que tenha um motivo muito contundente na história. Para serem

aumentados, os jogadores têm de procurar os meios para esta implementação das

habilidades, que podem ser ou não aceitas pelo mestre.

O terceiro bloco se denomina vantagens, sendo muito importante, pois são

elas que tornam um vampiro ainda mais único. A diferença entre a distribuição dos

pontos é que cada uma das categorias tem um número fixo para ser gasto.

Fonte: Arquivo pessoal

Os antecedentes são as características que devem se ajustar à concepção do

personagem e se referem ao mundo que rodeia os personagens. São as

características que descrevem vantagens de nascença, circunstâncias e

oportunidades. São externas ao personagem e necessitam de uma reflexão sobre

como elas se apresentam e como foram adquiridas. Há uma linha para cada um dos

antecedentes. Estes não estão escritos na ficha, pois são muitos e o jogador terá de

escolher e distribuir os 5 (cinco) pontos que estão disponíveis. Alguns exemplos de

antecedentes são Recursos, que envolvem a quantidade de dinheiro que o

27

personagem tem como renda fixa mensal, contatos, aliados, fama, rebanho

(quantidade de mortais que são atrelados ao vampiro e por meio do poder não se

importam de servir como alimento), influência, lacaios, entre outros.

As disciplinas são praticamente pré-definidas, pois cada clã tem um certo

número restrito delas e também possui um número definido para ser gasto. Cada clã

tem três disciplinas que são apenas dele e são disponibilizados três pontos para se

gastar. Normalmente os jogadores colocam um ponto em cada disciplina, pois para

aprender uma nova, mesmo que seja inerente do clã, a dificuldade é muito grande.

As virtudes são as características que estabelecem a moral dos personagens

e determinam o quanto os vampiros são resistentes a tentações, às respostas

emocionais, à resistência ao frenesi e à maneira com que se lida com o remorso.

São elencadas três virtudes, a consciência que governa o senso do certo e errado, o

autocontrole que determina o quão prontamente o vampiro mantém a compostura e

controla a sua sede por sangue, e a coragem que mede o bom senso e a habilidade

do personagem de se manter próximo aos medos mortais dos vampiros: fogo, luz

solar e também como agirá em situações que exigem bravura. São disponibilizados

7 (sete) pontos para a distribuição.

Fonte: Arquivo pessoal

Os últimos toques antes da finalização da ficha se dão no último bloco de

características, que não possui um nome específico. Algumas partes exigirão um

pouco de matemática do jogador, pois a soma de alguns pontos anteriores será o

resultado de quantos pontos serão disponíveis para certas características deste

bloco.

As qualidades/defeitos são características opcionais que um jogador pode ou

não agregar em seu personagem. Como pode ser visto na imagem, não há os

28

tradicionais círculos que aparecem ao lado de todas as características, sendo

apenas um aparato que vai diferenciar ainda mais o vampiro. A “compra” destes

atributos funciona de uma maneira completamente diferente do resto da ficha.

Ao entrar nesta parte da ficha, o mestre narrador informa que o jogador terá

mais 15 (quinze) pontos para distribuir da maneira que desejar, sendo que cada

ponto custará um certo valor, de acordo com a dificuldade de ser conseguido pelo

vampiro. Cada qualidade vai gastar um certo número de pontos deste bônus e cada

defeito acrescentará mais pontos para serem gastos.

Ao atingir 04 (quatro) pontos em qualquer Atributo ou Habilidade é necessário

escolher uma especialização que dê ênfase para a qualidade do vampiro.

Exemplificando, ao atingir o nível quatro de manipulação, pode-se escolher a

especialização em sedução, bom argumentador, convincente, entre outros.

Por exemplo, uma qualidade comum, como “ingerir comida”, faz a vida social do

vampiro não ser tão difícil, podendo ir a jantares, efetuar negócios em restaurantes e

bares diminuindo 1 (um) ponto dos bônus e um defeito como vício, acrescenta

pontos para serem gastos, pois este problema acarreta problemas para o vampiro na

hora de se alimentar, pois o vício escolhido terá de ser ingerido através do sangue

da vítima.

1.4 Ambientação da crônica: Los Angeles, Califórnia, EUA – vivendo na maior

potência capitalista do planeta

Os Estados Unidos são a potência capitalista do mundo, em que qualquer

país que possui o mesmo regime se espelha e espera ter este mesmo poder, de

praticamente controlar grande parte do mundo, de ter a influência, causar temor e,

por conta disso, um respeito conquistado pelo medo. O Capitalismo é um sistema

que possui sua organização em um sistema de classes econômicas com economia

de mercado. É um sistema adotado pela maioria dos países do mundo onde a

propriedade privada, as riquezas, os meios de produção, a matéria prima, as

instalações são regradas pelo mercado, baseando-se nas leis da oferta e da

procura.

No Capitalismo, os proprietários praticamente compram a força de trabalho

para produzir e manufaturar os bens que foram adquiridos, transformados pela mão

de obra, para que posteriormente pudessem ser vendidos, retornando assim em

29

forma de lucro para os donos e apenas uma pequena parcela para o trabalhador.

Isto torna o Capitalismo um sistema que busca, está sempre à procura do seu

objetivo principal, que é o lucro e o acúmulo de bens que só servem para estar em

um círculo infinito de compra, transformação, venda ou retorno de dinheiro, fazendo

o capital crescer, aumentando então a sua propriedade e o valor dela.

Esse sistema tem como base a propriedade privada. Nele, o dono tem

vantagem em relação ao empregado, que é obrigado a trabalhar em troca de um

salário para poder sobreviver e também poder usufruir dos bens de consumo que

são produzidos em outras áreas empresariais. O dono compra a matéria-prima pelo

menor valor possível, manufatura e a transforma com ajuda do empregado, que faz

parte da mão de obra, e vende pelo maior preço possível para aumentar o seu lucro

e consequentemente o seu patrimônio.

É um sistema tão antigo que teve seu início juntamente com o fim e quebra do

sistema feudal, no final do século XV, surgindo primeiramente na Europa e depois se

espalhando pelo resto do mundo. A burguesia, naquele momento, tinha em mãos os

meios de produção, principalmente o controle da expansão marítima, dando contato

com novas fontes de compra, expandindo o comércio entre as cidades do centro da

Europa. As riquezas, medidas em forma de capital, que foram reunidas neste tempo

marítimo-mercantilista, foi o que deu início ao fortalecimento no comércio e assim à

origem do sistema capitalista de produção.

O grande impulso que o Capitalismo teve, foi a Revolução Industrial

desencadeada na Inglaterra, abrangendo primeiramente os países da Europa

Ocidental e, posteriormente, chegando aos Estados Unidos, que é o país que

interessa a este estudo. Braudel (1996) afirma que esta revolução foi “[...] uma

mutação do capital fixo, um capital desde então mais caro, porém muito mais

duradouro e aperfeiçoado, que mudará radicalmente as taxas de produtividade. ” (p.

215).

Essa revolução foi o marco do início da produção em massa para

consumidores compulsivos por produtos novos, gerando incansavelmente a

necessidade de produção e acúmulo de capital. A aristocracia, que é definida por

linhagem familiar, perde sua vez e força para o capital, onde quem tem mais

acúmulo é mais poderoso e manda mais. A liberdade econômica também foi

estabelecida, pois o poder de compra também aumentou, mas não o suficiente para

que todos os produtos fossem comercializados, pelo motivo de que o mercado

30

consumidor não crescia com a mesma intensidade com que a indústria de produção

massiva de itens de consumo aumentava, materializando e retirando o que não

pode ser produzido pela indústria para fora do sistema de vida do cidadão,

colocando à frente dele, como importante e imprescindível, apenas o que é

considerado bem de consumo, como afirma Braudel (1987, p.11): “Tudo o que ficar

fora do mercado só tem um valor de uso, tudo o que transpuser a porta estreita e

ingressar no mercado adquire um valor de troca.” Isto obrigou esses países a

procurarem o mercado externo, expandindo não somente a venda, mas também

buscando novos lugares para ampliar a produção e ter mais mão de obra barata em

lugares como a África e Novo Mundo (que consiste, neste caso, nos Estados

Unidos).

Os Estados Unidos passaram a dominar o mundo capitalista a partir da I

Guerra Mundial, transformando o que se tinha como Capitalismo competitivo para

adentrar no Capitalismo monopolista. Esta transição ocorreu pela falência de várias

empresas, algumas maiores se fundiram com menores para evitar a quebra (dando

origem à Sociedade Anônima, que tem por definição de Cesare Vivante (2003, p.99)

como

uma pessoa jurídica que exerce o comércio com um patrimônio unicamente constituído pelas subscrições dos sócios. O que constitui o seu caráter essencial, o que a distingue das precedentes formas de sociedade, está em que nenhum dos sócios é obrigado pessoalmente a responder pelas dívidas sociais: não oferece em garantia o patrimônio particular dos sócios ou de algum deles, mas simplesmente o próprio (VIVANTE, 2003, p. 99).

Isto faz com que estas agora grandes empresas controlem sozinhas um

específico ramo de produtos. Com a crise de 1929, a interferência do Estado sobre

as empresas foi de alto impacto, modificando assim o rumo economia, passando a

controlar os preços, os créditos, importações e exportações, recolhendo impostos,

mas sem deixar os interesses das grandes empresas serem esmaecidos, tendo a

consciência de que é o capital privado que mantém o país em ritmo de crescimento,

sem correr o risco de não ter o apoio de grandes empresários para situações

governamentais como eleições e plebiscitos.

O Capitalismo sofre de crises cíclicas que têm origem no desemprego, nas

altas taxas de transferência de produtos, nos balanços de pagamentos, na inflação,

na incerteza da estabilidade do sistema monetário internacional, em que as

conversões podem gerar perdas de lucros possíveis de levar à falência não só uma

31

empresa, mas também o Estado inteiro, dependendo da desvalorização da moeda

nacional.

Os Estados Unidos, por terem adotado o sistema capitalista para reger a

economia do país, tem certas características que o fazem ser o modelo mundial

desse sistema. Primeiramente, é um dos países mais industrializados do mundo,

possuindo uma grande variedade de empresas que comercializam praticamente todo

tipo de produto, necessitando apenas do comércio exterior para adquirir a matéria-

prima e contratar mão de obra barata; a indústria não se resume apenas a bens de

consumo, mas também a bens de capital. A tecnologia é avançada em todos os

setores não apenas nas indústrias de produção, mas também em outras áreas,

como a saúde, avanços tecnológicos (robótica, engenharia, arquitetura). A

população urbana é exponencialmente maior que a rural, não significando que

agropecuária não seja importante pelo motivo de que a agricultura tem produção

massiva com aparato tecnológico altamente avançado. As empresas denominadas

multinacionais têm sede no país e daí controlam as filiais menores em países

emergentes.

A sociedade, em um regime econômico capitalista, é denominada ‘de

consumo’, pois tudo que é produzido pela massa trabalhadora é altamente usado, é

comprado como bens e serviços que podem trazer vantagens no mundo moderno.

As pressões da mídia, que praticamente exclui quem não possui certos bens, e a

grande renovação dos produtos vendidos fazem com que as pessoas gastem

dinheiro comprando novos produtos, não necessários, apenas para satisfazer um

sentimento de pertencimento à sociedade, que impõe aos cidadãos a ideia de que

quem não consegue comprar não pode fazer parte de uma determinada classe

social.

Essa é sociedade representada nas páginas do livro Vampiro: a máscara, que

se passa no final do século XIX e segue até a contemporaneidade, o que não causa

estranhamento no jogador/leitor que está situado em um sistema capitalista ou que

tem contato através da Internet, entre outros meios de comunicação, com o meio de

vida estadunidense. Nada ali retratado, exceto as criaturas sobrenaturais, seus

poderes e consequências no mundo, são estranhas a alguém que também vive em

um país de regime capitalista.

Em específico, na conversa do grupo de RPG, foi escolhida a cidade de Los

Angeles na Califórnia, estado que possui a maior concentração de pessoas e o

32

terceiro maior em extensão territorial dos EUA, sendo o maior produtor industrial do

país, com liderança em produtos agropecuários. Já em Los Angeles, que é

comumente confundida com a capital do Estado (a cidade de Sacramento é a capital

oficial), esta cidade é densamente povoada, contando com mais de 10 milhões de

habitantes, perdendo apenas para Nova York.

Esta cidade, ao contrário do foco do Estado na agropecuária, investiu na

indústria cinematográfica, musical e fonográfica, possuindo a máquina do

entretenimento mundial Hollywood, e comporta um dos mais desejados estilos de

vida do planeta, passando pelos bairros ricos de Beverly Hills e a luxuosa avenida

permeada pela calçada da fama, onde a moda e a tecnologia transbordam pelos

outdoors.

Outro ponto comentado pelo grupo na discussão foi a de que seria necessário

um local em que fosse fácil a convivência, para que os personagens pudessem

trafegar sem problemas pelas ruas, ou conseguir interagir sem problemas com

comerciantes e pessoas em geral. A tamanha diversidade cultural que é

apresentada neste Estado, sendo povoado desde sempre por latinos, fez de Los

Angeles uma escolha certeira, pois assim o trânsito pela cidade seria mais interativo

e menos tenso para o grupo.

A crônica feita pelo mestre recebeu o nome de “The Blood State” (traduzido

livremente como “O estado do sangue”), fazendo uma referência ao cognome “The

Golden State” (traduzido livremente como “O estado dourado”) que o Estado da

Califórnia recebeu pela grande corrida do ouro, em meados de 1850, que trouxe a

maioria dos imigrantes para aquela região, acarretando a riqueza e a prosperidade e

escondendo as inúmeras mortes, a escravidão e a corrupção que vieram também. A

segunda história e a mais contada pelos estadunidenses é de que este cognome

deriva da relva nativa do Estado, que, na transição do verão para o outono, adquire

uma coloração dourada, dando uma imagem bem mais inocente e romantizada da

história do Estado.

O mestre narrador intitulou a crônica desta maneira fazendo uma analogia à

história mais crua e verdadeira, associando a corrida do ouro à corrida pelo sangue.

Assim como os humanos correm pela riqueza em forma de ouro, os vampiros correm

pela “vida” que está em forma de sangue dentro dos seres humanos. Através da

grande quantidade de pessoas, das ideologias permeadas nesta sociedade, seria

fácil tornar-se um vampiro em Los Angeles, onde a vida noturna, tanto para diversão

33

como para negócios e oportunidades de trabalho são inúmeras, torna a cidade a

escolha perfeita para esta ambientação.

34

2 OS VAMPIROS ‘DIFERENTES’ PERMEADOS PELA IDEOLOGIA

Antes de apresentar o vampiro presente nas páginas do corpus do trabalho, é

necessário delimitar o conceito de ideologia que será utilizado para estabelecer as

comparações e intersecções com o sistema capitalista de gerir. Iniciando, o termo

ideologia, segundo Chauí, foi cunhado

pelo filósofo Destutt de Tracy, em 1810, na obra Elements de Idéologie, nasceu como sinônimo da atividade científica que procurava analisar a faculdade de pensar, tratando as ideias como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. (1984, p. 19).

Já na Análise do Discurso, este termo deriva dos estudos de Althusser,

enfatizando que uma classe dominante irá criar meios de reprodução das condições

materiais, ideológicas e políticas para explorar a classe inferior. Michel Pêcheux

procura estabelecer que os conceitos sobre ideologia, se não forem interpretados de

maneira suficientemente clara, trariam problemas no entendimento de sua obra, pela

densidade do tema. Ele afirma que a ideologia não é um Zeitgeist (é um termo

alemão cuja tradução significa espírito de época, espírito do tempo ou sinal dos

tempos [PÊCHEUX, 1996, p. 144]), como pode parecer na primeira impressão, e

muito menos existe uma ideologia para cada classe social, acarretando um embate

entre diferentes classes que lutem entre si. Para Althusser, “O objeto da ideologia

não é o ‘mundo’, mas a relação do ‘sujeito’ com o mundo, ou mais precisamente,

com suas condições reais de existência” (1983, p. 39).

A Formação Discursiva é uma das questões de grande importância da Análise

do Discurso de linha francesa, pois está intrinsecamente relacionada com a ideologia

pensada por Althusser. Ela vem diretamente relacionada com o sujeito e a forma

com que este interage com o mundo. Foucault diz que a “unidade de uma formação

discursiva não é a manifestação majestosamente desenvolta de um sujeito que

pensa, que conhece o que diz: é, ao contrário, um conjunto onde se pode determinar

a dispersão do sujeito e sua descontinuidade consigo” (FOUCAULT, 1996, p. 74),

concebendo-a pela abordagem do saber/poder, sem passar pela questão das

classes sociais.

Pêcheux prioriza os seus estudos na ideologia enfatizando que ela vem da

luta de classes, possibilitando assim o surgimento da história, que devido a esses

35

combates promovem a revolução, causando uma fissura na estrutura social, tirando

assim a força da classe dominante. A autor ressalta que a ideologia harmoniza o

espaço para questões das fronteiras flexíveis da Formação Discursiva

Naquilo que concerne à ideologia, corresponde o fato de que os aparelhos ideológicos do Estado são por sua própria natureza plurais: eles não formam um bloco ou uma lista homogênea, mas existem dentro de relações de contradição-desigualdade-subordinação tais que suas propriedades regionais (sua especialização, nos domínios da religião, do conhecimento, da moral, do direito, da política, etc.) contribuem desigualmente para o desenvolvimento da luta ideológica entre as duas classes antagonistas, intervindo desigualmente na reprodução ou na transformação das condições de produção (PÊCHEUX, 1990, p. 54).

Estes discursos ideológicos não são homogêneos, deixando claro que as

regras que os determinam mostram-se como um sistema de relações entre objetos,

tipos enunciativos, conceitos e estratégias, deixando claro que as formações

discursivas não são idênticas. Assim, consideram que cada uma “só existe sob a

modalidade da divisão, e não se realiza a não ser na contradição que com ela

organiza a unidade e a luta dos contrários” (PÊCHEUX, 2009, p.57).

Orlandi salienta que a ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e

dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se

produza o dizer” (2003, p. 46), tendo como característica principal dissimular a

existência no interior do seu próprio funcionamento. Ainda pontua que a presença da

ideologia produz evidências consentindo que o sujeito possa confrontar-se e ao

mesmo tempo relacionar-se com o imaginário e principalmente com as suas

condições de existência (ORLANDI, 2003, p. 46).

Para Althusser, “a ideologia existe para sujeitos concretos, e esta destinação

da ideologia só é possível pelo sujeito: isto é, pela categoria de sujeito e de seu

funcionamento” (1983, p. 93), sendo assim a base do discurso o sujeito, constituído

ideologicamente e permeado pela língua. Complementando o pensamento de

Althusser, Orlandi acrescenta que a ideologia ““é a interpretação do sentido em certa

direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus

mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação

necessária entre a linguagem e o mundo” (1996, p. 31).

Deve-se lembrar que

36

todo texto é heterogêneo do ponto de vista de sua construção discursiva: ele é atravessado por diferentes formações discursivas, ele é afetado por diferentes posições do sujeito, em sua relação desigual e contraditória com os sentidos, com o político, com a ideologia (ORLANDI, 2003, p. 115).

Tendo como norte estes embasamentos teóricos, são aqui identificadas as

relações entre a língua e a ideologia dos sujeitos envolvidos na criação da obra

Vampiro: a Máscara, compreendendo-se, assim, a não inocência no uso da língua e

buscando-se sentidos envolvidos nos processos discursivos.

2.1 Descobrindo o vampiro do RPG

2.1.1 A transformação, alimentação e luta interior

Para iniciar a discussão e dar suporte à análise comparatista do próximo

capítulo, faz-se mister uma abordagem a respeito da maneira com que o vampiro é

mostrado na obra escolhida como corpus, para que se torne possível entender as

diferenças e paridades que estarão presentes na abordagem do vampiro que habita

o Ocidente. Abordagem essa permeada pelos conceitos e considerações sobre

ideologia, suporte teórico para as comparações (tendo como principal foco a teoria

de Althusser), além de uma abordagem partindo da análise semiótica de imagem,

utilizada para explicar com mais precisão as diferenças que são expostas também

em forma de ilustrações.

Elaborando um paralelo entre as características principais de um vampiro,

ocidental, notaram-se várias diferenças que possuem repercussões na maneira com

que é visto o vampiro. Em relação ao choque com que se defronta o leitor/jogador de

RPG que entra em contato com os livros base, o que mais o afeta é o fato de que

vampiros não são um estereótipo, como já mencionado no capítulo anterior, e não

são todos iguais. Ao tomar conhecimento de que, para iniciar o jogo, há que ser

escolhido um vampiro com peculiaridades que nenhum outro tem, iniciando-se pela

maneira como são chamados nos livros: os vampiros do Ocidente são denominados

Cainitas, por exemplo. Essas denominações têm motivos que vêm da origem

contada pela obra que caracteriza cada um desses “vampiros”: os ocidentais são

chamados Cainitas pelo fato de descenderem de Caim, pois

37

De acordo com as histórias mais largamente aceitas pelos Membros, a raça de vampiros nasceu do vampiro progenitor, Caim. Banido para a terra de Nod após ter matado seu irmão Abel, Caim foi amaldiçoado por Deus e então tornou-se o primeiro vampiro (HAGEN, 1998, p. 53).

, Esse nome foi dado tendo como base a Bíblia, sendo chamados assim todos

os vampiros, não importando sua localização. Apenas os vampiros do Oriente são

chamados de kuei-jin, pois são uma espécie totalmente diferente dos cainitas, Neste

pequeno fato já se nota a presença da ideologia, permeando cada discurso

apresentado para o surgimento do vampiro, denotando um grande acontecimento

que está enraizado na história e que vem sendo propagado até os dias de hoje:

presença da religião e das crenças. Para Althusser, essas concepções de ideologia

são ao mesmo tempo imaginárias e materiais, pois já são praticamente intrínsecas à

relação imaginária que os indivíduos trazem consigo. Sendo assim, é possível

afirmar que

[...] toda a ideologia representa, em sua deformação necessariamente imaginária, não as relações de produção existentes (e as outras relações delas derivadas) mas sobretudo a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e demais relações daí derivadas. (...) as “ideias” ou “representações” etc., que em conjunto compõem a ideologia, não tinham uma existência ideal, espiritual, mas material. (...). Ao falarmos dos aparelhos ideológicos do Estado e de suas práticas, dissemos que cada um deles era a realização de uma ideologia (a unidade destas diferentes ideologias regionais – religiosa, moral, jurídica, política, estética, etc. sendo assegurada por sua subordinação à ideologia dominante). Retomaremos esta tese: uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas. Esta existência é material (ALTHUSSER, 1983, p.88-89).

Quando se fala em crença ou religião, remete-se a um assunto que é muito

mais profundo do que se imagina. Pode-se notar que, para ser criada, a concepção

do vampiro, independente do hemisfério habitado, há uma circunstância mais mística

e outra histórica que precedem esse fato. Os cainitas são descendentes de Caim,

uma figura bíblica, que por consequência, faz a maioria do oeste do globo terrestre

ser monoteísta, acreditando em um único Deus e tendo a Bíblia como base para

essa crença.

Seguindo em relação à criação do vampiro, quando chega a hora da

transformação definitiva da condição de ser humano em criatura mística, os cainitas

recebem o “Abraço”. Este se dá de forma aleatória, ocorrendo quando um vampiro,

movido por suas preferências pessoais, valores, caráter ou qualquer coisa que

38

chame a atenção em um humano, tenha vontade de trazê-lo para encontrar a morte

e posterior vida eterna, definida por Hagen como

O Abraço é o termo corrente para o ato de transformar um mortal em vampiro. Quando um vampiro deseja gerar progénie, sua caça toma um novo rumo. O vampiro não está mais apenas à procura de alimento; ao invés disso, ele se torna mais consciente e exigente, procurando pela perfeita combinação de traços pessoais que justificam a imortalidade (1998, p. 32).

Acontece de maneira semelhante com a alimentação normal dos vampiros do

Ocidente, quando o sangue da presa é drenado, com a diferença de que o vampiro

criador dá um pouco do seu sangue para o humano, bastando a este apenas

algumas gotas para que adquira essa condição. É esperado que o vampiro criador

dê informações e ensine à nova criatura da noite, pois o que mais é temido pelos

cainitas é a descoberta da existência dos vampiros.

Utilizando a semiótica de imagens como contribuição teórica complementar

para abordar o momento do Abraço (cainita), pode-se inferir que cada imagem

possui dois domínios: um correspondendo às representações visuais que têm

existência material, como imagens, ilustrações, fotografias, pinturas; e também as

que pertencem ao domínio imaterial, que são as representações mentais que nos

são mostradas na forma de visões, fantasias e modelos. Esses domínios nunca

andam separados, completam-se na instância em que estão intimamente

interligados como conceitos unificadores do signo e da representação (SANTAELLA,

1999, p. 14). O conceito de representação se torna importante aqui, pois é tida como

a ideia central na área da Semiótica, tendo seu significado atrelado ao da palavra

signo, sendo uma função sígnica que se imbrica nos mecanismos visuais e mentais,

como a capacidade de interpretar e representar uma informação (TOUTAIN, 2007, p.

91).

O signo, ou a representação de cada imagem, funciona como um mediador

entre o objeto e o efeito que ela está produzindo em uma mente, já que, assim,

representa o objeto. O signo só pode representar o objeto quando é por ele

determinado, sendo uma corrente convergente de representações sígnicas, em que

um só existe e é lembrado pela existência do outro. Peirce explica esta reciprocidade

como “qualquer coisa que determina alguma outra (seu interpretante) para referir-se

a um objeto ao qual o mesmo se refere (seu objeto); desta maneira, o interpretante

39

se converte por sua vez em um signo ad infinitum” (1987, p. 274), produzindo assim

como um mediador entre o objeto e o efeito que esta imagem estará apta a produzir

na mente de quem se propõe a observá-la.

A representação imagética feita pelo ilustrador da obra Vampiro: A Máscara,

demonstra notoriamente esse ataque, o exato momento em que a imobilização é

feita na vítima, dando

uma grande

notoriedade para as

garras do vampiro

que a enlaçam pelo

pescoço, agarrando-

lhe os cabelos. A

imagem é feita em

preto e branco,

deixando a

binaridade vida/morte

mais explícita,

deixando a vítima

com a luz da vida

(cor branca) e o

vampiro com a

escuridão e a morte

(cor preta). Os traços

étnicos da mulher

denotam sua origem

ocidental. A

expressão que ela

faz quando atacada

não define

exatamente o que

ocorre, um

encantamento que

pode ter sido

40

aplicado nela, que a faz ter a ilusão de que deseja ser transformada ou mordida,

tendo uma sensação de prazer nisto, ou expressão de medo e dor, pelo ataque

inesperado do vampiro.

Isto caracteriza outra forma de ideologia, que Althusser designa como

transformadora do indivíduo em sujeito, dando assim uma nova definição para o

indivíduo, “[...] uma vez que toda ideologia tem por função (é o que a define)

“constituir” indivíduos concretos em sujeitos” (1983, p.93). A transformação do

vampiro, vista por um lado mais crítico, é a renovação do indivíduo, que assim terá

de aprender novamente como “viver” a sua morte, tendo valores e perspectivas

totalmente diferentes devido a sua nova condição, sendo uma reconstrução do

sujeito anterior e o nascimento de um outro. A ideologia, que antes regia o mundo

dos vivos, será revista, deixando alguns pontos da mesma maneira enquanto outros

serão completamente deturpados e mudados.

Esta prática da transformação no Ocidente é vista como aleatória, bastando

apenas a vontade do vampiro criador. Há um ataque, a que a vítima não pode

reagir, apenas se submeter a ele. Seguindo este raciocínio e o aplicando ao sistema

econômico, nota-se que no Ocidente, onde o Capitalismo impera, é praticamente

impossível “escolher” a hora em que se será “abraçado”. O indivíduo é apenas

jogado neste sistema e tem de aprender a sobreviver e aderir às regras por ele

impostas. Há uma relação de poder muito mais subjetiva do que aquela de que o

indivíduo se torna parte, sem poder desfazer-se deste elo, representado pelo

sistema econômico. No Capitalismo, essa relação ideológica rotula e define como

será a vida de cada indivíduo, agora transformado em sujeito integrante e

notoriamente inserido neste meio. Assim, a noção ideológica praticamente retira a

individualidade e motiva a transformação em um sujeito que não tem noção do

mecanismo em que é praticamente obrigado a estar presente. Cabe enfatizar que

Não há, para Althusser, indivíduo, noção ideológica constituída pela modernidade capitalista, mas sim sujeitos: o indivíduo é sempre um sujeito desde o seu nascimento quando lhe é conferido um significado (um nome), e não é dotado de uma consciência autônoma já que é sempre sujeitado a algo (um Sujeito) que o interpela cotidianamente, sem que perceba a existência desse mecanismo de sujeição que, em última instância, reproduz as relações de poder (MOTTA; AGUIAR, 2013, p. 132).

Cada vampiro, independentemente da raça para a qual foi trazido à

imortalidade, sofre com o controle de uma força maligna, movida a impulsos e

41

instinto, que tenta incessantemente torná-lo uma criatura incontrolável, somente em

busca de destruição e morte, sem escolher alvos, tratando todas as pessoas como

uma possível vítima. Os cainitas têm de lutar contra a “Besta”, que é denominada

como um impulso monstruoso contra o qual são necessárias muita força de vontade

e humanidade para resistir aos ataques incessantes. Este quadro é agravado,

quando se é vampiro; alguns atos obscenos e perversos são parte do cotidiano,

como matar e usar inocentes para certos propósitos. Além da alimentação baseada

em sangue humano, vão levando estes resquícios de humanidade, pouco a pouco.

Para Hagen, este momento chega depois de vários fatores, que incluem uma solidão

que não é remediável, sendo uma das maldições da imortalidade, ou seja, ver todos

aqueles com que se tem algum tipo de sentimento desaparecerem:

Quando o último resquício de humanidade no vampiro desaparece — e depois de ver muitos de seus amigos, amores e descendentes virarem pó ao longo dos anos, isso desaparece, fique certa — a besta toma conta de uma vez e para sempre. O vampiro torna-se um animal. Se você chegar a este estágio, a probabilidade é de que nem ao menos perceba quando começar a agir como um cachorro louco (HAGEN, 1998, p. 8, grifos do autor).

Também é associável ao sistema econômico este combate ao lado ruim, que

pode ser uma maneira intrínseca do indivíduo para não se render totalmente à

ideologia que, neste ponto, pode denegrir a sua força de vontade própria e seus

próprios pensamentos e incutir certos comportamentos não desejados. Quando se

trata do Capitalismo, o consumo toma violentamente a face das prioridades; nele só

é completo quem consegue ter capital suficiente para comprar tudo de que

necessita, tornando-se um escravo do consumo. Tudo que se vive está embasado

neste sistema econômico, que torna cada pessoa apenas como uma fonte de renda,

assim como os seres humanos são tratados pelos vampiros ocidentais, vistos

apenas como uma bolsa de sangue e vantagens. O vampiro ocidental representa

esta busca incessante por mais poder. Sua sede incontrolável de sangue representa

o capital, que nunca será suficiente e com o passar dos tempos se tornará a única

centelha de vontade que o vampiro terá.

Quando é mencionada esta luta contra o mal que assola os vampiros e que

não pode ser evitado, tem-se como base que isto se tornou uma prática social,

possível de ser caracterizada com duas associações básicas, de que “(i) toda prática

existe por meio de e sob uma ideologia e (ii) toda ideologia existe pelo sujeito e para

42

o sujeito” (ALTHUSSER, 1999, p. 209), enfatizando-se que nada é feito sem

propósito e no final do ciclo é o sujeito que recebe a ação e a põe em prática.

Complementando o pensamento de Althusser, lembre-se que Žižek afirma que esta

ilusão de conhecimento dos próprios atos, das condições em que se tem a falsa

certeza de temos escolhas e somos donos do nosso discurso, traduz-se em uma

ingenuidade de consciência e não se saberá quando estamos presos na realidade

social ou em uma representação não clara desse fato, em que

(...) o falso reconhecimento de seus próprios pressupostos, de suas próprias condições efetivas, uma distância, uma divergência entre a chamada realidade social e nossa representação distorcida, nossa falsa consciência e ela. Esta é a razão de que essa “consciência ingênua” pode se submeter a um procedimento crítico-ideológico. O objetivo deste procedimento é levar a consciência ideológica ingênua a um ponto em que poderá reconhecer suas próprias condições efetivas, a realidade social que está distorcendo, e mediante este mesmo ato de dissolvê-la (ŽIŽEK, 2003, p.55-56).

Se visto pelo viés da força de vontade e sobrevivência, outro ponto importante

acerca dos cainitas é a maneira com que se alimentam para manter as funções do

corpo material. Os cainitas são sustentados por sangue humano e, em emergências,

por sangue de animais. Este sangue, definido medicinalmente como um liquido

vermelho, tem consistência viscosa e circula pelo conjunto de veias e artérias devido

aos batimentos do coração e, em sua composição, além de água e plasma, carrega

gases, nutrientes e outros elementos necessários para a defesa da saúde do corpo e

funcionamento dos órgãos internos e, na definição mais metafórica, definido como o

líquido portador da vida, da força de existir. Sem ele, tanto pelo lado da ciência

quanto da figuração, o ser humano não consegue viver.

O vampiro ocidental necessita “roubar” o sangue de suas vítimas e isso

acontece de maneira agressiva ou a partir de uma enganação. Ele consegue o seu

alimento atacando alguma pessoa de seu interesse, levando-a à força para algum

lugar mais discreto e assim procede ao ato do “Beijo” (codinome dado para a

mordida) em algum local do corpo que possua um grande quantidade de veias e

suga até deixar a pessoa atordoada, lambe o local da ferida (pois a saliva do

vampiro tem poderes de cura e, assim, a vítima se vê em uma situação estranha e

não consegue descrever o que aconteceu com ela especificamente) e abandona a

pessoa para que siga a sua vida. Quando o Beijo não é violento, o vampiro usa de

suas artimanhas de conquista e dependendo do clã (é explicada mais adiante a

43

definição dos clãs de vampiros no ocidente) a que pertence, possui poderes

específicos para dominar seres com a mente mais fraca que a dele próprio e com

isso transmite o sentimento/pensamento de que a vítima quer e necessita ficar na

presença do vampiro e assim torna mais fácil a alimentação deste.

Relacionando a questão da alimentação dos vampiros cainitas novamente

com o sistema econômico do Ocidente, pode-se inferir que da mesma forma que o

Beijo pode ser violento ou de uma conivência ilusória, o Capitalismo é incutido nas

pessoas da mesma forma. Todo o movimento do Estado e, em consequência, das

mídias, que, seguindo a linha, são abastecidos pelas empresas que visam lucro e

não medem esforços para que isto aconteça, ocorre dessa forma mais violenta (só

que não fisicamente, mas de maneira mais psicológica) no momento em que os

cidadãos, sem escolha, são forçados a gastar e adquirir o produto que está em voga,

mesmo não sendo necessário, e, depois de consumada a compra, a pessoa não

sabe por qual motivo a efetuou e até se culpa pelo acontecido. A maneira ilusória de

implantar o Capitalismo ocorre praticamente da mesma maneira como a do vampiro

quando usa seus poderes para convencer.

Mas, no mundo real, esse poder é exercido pela mídia e seu controle de

massa, que de forma perigosa e invasiva convence o cidadão de que ele realmente

necessita do produto e assim o adquire e ainda fica com orgulho e satisfeito por “ter

feito a coisa certa”. Jamais verá que foi influenciado a cometer tais atos. Althusser

define que a ideologia dominante, que neste caso é a ideologia do Capitalismo,

jamais será um fato consumado, mas que é utilizada fortemente pelo Estado e é

resultado de uma intensa luta cruzada entre os grandes que querem dominar os

pequenos e, quando os pequenos tentam relutar para não serem dominados pelos

grandes, não há vencedores, apenas um grande combate a essas funções que

assolam a sociedade. Não há lado vencedor pelo fato de que sempre haverá alguém

mais poderoso, que tentará controlar um outro “poderoso” que oprime o fraco, que

por consequência, em algum momento, perante alguém mais suscetível, tornar-se-á

opressor em alguma circunstância, assim enfatizando que

a ideologia dominante nunca é um fato consumado da luta de classes que tivesse escapado à luta de classes. Efetivamente, a ideologia dominante, que existe no complexo sistema dos Aparelhos Ideológicos de Estado, é em si mesma o resultado de uma dura e muito longa luta de classes, através da qual a burguesia não chega a atingir seus objetivos a não ser com a dupla condição de lutar, simultaneamente, contra a antiga ideologia dominante que sobrevive nos antigos Aparelhos e contra a ideologia da nova classe

44

explorada que procura suas formas de organização e de luta. [...] a reprodução da ideologia dominante não é a simples repetição, não é uma simples reprodução, nem tampouco uma reprodução ampliada, automática, mecânica de determinadas instituições, definidas, de uma vez para sempre, por suas funções, mas o combate pela reunificação e a renovação de elementos ideológicos anteriores, desconexos e contraditórios, em uma unidade conquistada na e pela luta de classes, contra as formas anteriores e as novas tendências antagônicas. A luta pela reprodução da ideologia dominante é um combate inacabado que deve ser sempre retomado e está sempre submetido à lei da luta de classes (ALTHUSSER, 1999, p. 239-240).

Esta parte “selvagem” da dominação de classes é derivada de anos de

interpelação ideológica, completamente enraizada nas partes mais altas da cadeia

social, deixando suscetível o que está na parte inferior (a maioria dos cidadãos),

quase sem conseguir aguentar o peso das classes que estão acima deles, sempre

deixando uma lacuna, tanto no bem-estar social quanto psicológico da grande

massa populacional que não faz parte da dominância ideológica.

2.1.2 A ambientação do “Mundo das Trevas” e a “Máscara”

Fonte: Recorte do livro Vampiro: A máscara (HAGEN, 1998, p. 30)

Em relação ao mundo em que a obra é ambientada, há um cenário e uma

constituição da sociedade. Os cainitas vivem em um mundo onde a presença dos

45

imortais é grande e a manipulação da raça humana é constante. A mistura de estilos

e a tensão causada por grupos étnicos, classes sociais, torna o lugar um misto de

culturas e experiências e, ao mesmo tempo, perigoso. Hagen descreve da seguinte

maneira:

O aspecto gótico descreve a aparência do Mundo das Trevas. Construções monumentais assomam gigantescas, com suas pilastras decoradas e gárgulas sinistras. As pessoas parecem seres minúsculos diante da imponência da arquitetura, perdidos entre as colunas espiraladas que parecem tatear em direção ao céu num esforço para escapar do mundo físico. [...] As instituições que controlam a sociedade são ainda mais rígidas e conservadoras do que em nosso mundo, pois muitos dos que estão no poder preferem o mal do mundo que eles conhecem ao caos produzido pela mudança. É um mundo dividido em ter ou não ter, ricos e pobres, fartura e miséria (HAGEN, 1998, p. 28).

A dualidade que é estabelecida pelo Estado maior, que é dissolvido em

instituições de poder, faz das pessoas apenas massa de manobra, quando não do

governo, tornando-as presas dos seres imortais. A maneira como o autor caracteriza

este cenário deve-se à maneira com que uma pequena parcela da população

resolve que seguir as regras não é útil para eles, a música é alta e agressiva, as

roupas são escuras e desgastadas, a linguagem é grosseira, a arte é chocante e a

tecnologia é usada para aproximar as pessoas; é um lugar onde “O mundo é mais

corrupto, as pessoas são espiritualmente falidas e, com frequência, o escapismo

substitui a esperança” (HAGEN, 1998, p. 29). Esse mundo é definido como punk-

gótico, e se torna não apenas um cenário, mas um estado de espírito dos cidadãos

que vivem neste Mundo das Trevas.

Estes discursos segregam as pessoas, ideias permeadas de ideologia são

faladas a todo momento e, por consequência, tornam-se verdades e comandam a

sociedade, fazendo dela uma forte arma das instituições, que as incutem em suas

próprias práticas e, ao mesmo tempo, torna-se arma para combater estas

imposições. Tem-se, como consequência, que

A ideologia não existe nas ideias. A ideologia pode existir sob a forma de discursos escritos ou falados que, supostamente, veiculam "ideias". Mas justamente a "ideia" que se faz das "ideias" comanda o que se passa nesses discursos. As "ideias" não têm de modo algum uma existência ideal, mas uma existência material. A ideologia não existe no "mundo das ideias", concebido como "mundo espiritual", mas em instituições e nas práticas próprias dessas mesmas instituições (MOTTA; AGUIAR, 2013, p. 134).

46

No Ocidente, os vampiros não querem que os humanos saibam de sua

existência e têm uma certa aversão pela “raça inferior” e isso fica muito claro nos

deveres que o cainita precisa conhecer. Este cuidado com a sociedade vampírica é

chamada de “A Máscara”.

A tradição da Máscara tornou-se fundamental para a sociedade moderna

cainita, por ser o que esconde os vampiros dos olhos mortais. Pensando que a

revelação da existência dos vampiros seria desastrosa, tanto para os cainitas quanto

para os humanos, pois com a inclusão de, até então, uma criatura fantasiosa que

apenas vivia no imaginário das pessoas, iniciar-se-ia uma grande crise e tempos de

mais violência e caçadas, de ambos os lados: Vampiros caçando e matando

humanos e vice versa. A violação da Máscara é o crime imperdoável que o vampiro

pode cometer. Nas primeiras páginas do livro Vampiro: a Máscara, há um diálogo

entre um vampiro que está prestes a dar o Abraço em uma mulher, com quem ele

conversa, que faz a seguinte revelação:

Antes de prosseguir, permita-me dizer que você está tendo uma oportunidade única. Minha espécie não fala sobre si mesma para a sua – nem agora e na maior parte das vezes, nunca. Passamos os últimos cinco séculos preparando a cortina e a ribalta, que chamamos de “A máscara”, para esconder de vocês o verdadeiro espetáculo. Mas, no fim, tudo se resume a um simples e único fato: nós vampiros, não queremos que vocês, mortais, saibam que estamos aqui (HAGEN, 1998, p.3).

Os motivos apresentados pelos cainitas para a revelação ou não da espécie

vampiresca, aparecem de uma maneira muito tênue, assim como a imposição do

sistema econômico. Tanto os cainitas quanto o Capitalismo estão escondidos e

agem de maneira com que pareça que está tudo bem, que sempre a liberdade foi

uma das prioridades e não querem que a selvageria e a alienação sejam mostradas

para todos, pois causaria um caos no Mundo das Trevas e no mundo real.

Tendo como ponto de questionamento estas ideias, que falam sobre o direito

de cada cidadão, e as informações que são escondidas da população, mas que são

completamente explicitadas e interpretadas pelos “grandes” do sistema econômico,

tem-se que sejam transmitidos falsos conceitos, que pela usualidade do fator

“insistência” se tornam uma verdade e legitimam a ideologia nociva e errônea. A

propósito da questão de impor esta ideia, tanto pela alienação que dá a sensação de

escolha, ou a imposição violenta da doutrina, que acaba gerando uma calmaria que

subjaz ao medo, Žižek defende que a ideologia pode designar qualquer coisa:

47

[...]desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de parecer onde claramente se esperaria que existisse (ŽIŽEK,1996, p. 9).

Servindo de último, mas não menos importante, e como principal subsídio

para as análises do próximo Capítulo, há as divisões que os vampiros têm. Em

relação à sua raça, há agrupamentos e poderes especiais de cada um deles. Os

cainitas possuem as Seitas, que são grupos de vampiros que possuem a mesma

linha de raciocínio. A maioria dos vampiros faz parte de alguma seita; outros afirmam

que são independentes ou servem apenas ao próprio clã. As duas seitas mais

notórias do Mundo das Trevas são a Camarilla e o Sabá.

A Camarilla é a maior Seita de vampiros do Ocidente, e o principal interesse

dos Membros (participantes dessa seita) é defender a Máscara e, desse modo,

manter a segurança nas noites modernas. A Camarilla é uma Seita aberta, que

considera todos os vampiros como integrantes desta sociedade (queiram eles ou

não). Qualquer vampiro pode pedir proteção e filiação sem depender da linhagem

ou clã. A história da Camarilla “[...] foi criada no final da Revolta Anarquista do século

XV. [...] Com o reforço da Máscara, os Membros tiveram meios de despistar a

Inquisição, uma parte da Igreja empenhada em destruir criaturas sobrenaturais.”

(HAGEN, 1998, p. 43).

Apesar de ser a maior Seita, apenas um pouco mais da metade dos treze clãs

participam ativamente dos interesses. A Camarilla reúne um representante de cada

clã para que possam ser decididas democraticamente questões relevantes. Os

conclaves periódicos são abertos a qualquer Membro da Seita. Apenas os justicares,

oficiais eleitos pelo Círculo Interno para cuidar dos assuntos referentes às Tradições,

podem convocar os conclaves. Os justicares são sempre vampiros com muita idade

e são muito temidos.

Já o Sabá não tem uma fundação tão sólida quanto a Camarilla. Há apenas

rumores de que foi originado em um culto medieval à morte. É uma Seita muito

temida pelos Membros que não pertencem a essa fileira de ideias, é monstruosa e

violenta, não se prendendo à filosofia e moralidades humanas. Sendo o completo

oposto da Camarilla, eles têm um certo prazer sádico em ser vampiros. São

48

chamados de Mão Negra e procuram violar as tradições, destruir a Camarilla e

inferiorizar a raça humana.

Os Mão Negra são recrutados onde quer que estejam, e são infiltrados nas

instituições, pondo abaixo o funcionamento delas. O Sabá vê a Camarilla como

“peões dos Anciões” e expressam com um desprezo imensurável o que sentem

pelos Membros, pois são miseráveis covardes, que não aceitam a natureza

predatória do vampiro. Há muitas histórias violentas envolvendo esta Seita, que

incluem diablerie (crime de matar um vampiro mais velho para tomar o sangue e

ganhar mais poder), venerar demônios e caçar vampiros apenas por diversão. O

único boato condizente, que é comprovado a respeito do Sabá, é que eles possuem

uma paixão pelo fogo, pois queimam todos os lugares que atacam.

A divisão em clãs, antes mencionada, funciona apenas com os vampiros do

Ocidente. Quando se menciona “clã”, é necessário ter em mente que são todos

descendentes de Caim, que gerou os Antediluvianos (filhos diretos de Caim), que

foram os progenitores dos clãs modernos, sendo que todos os vampiros que

descendem deles compartilham certas características. Cada clã possui um grupo de

poderes que seus membros aprendem mais rápido que os outros. Esses poderes

são praticamente intrínsecos e transmitidos juntamente com o Abraço, possuindo

também fraquezas ou defeitos distintos, que tornam mais fácil a identificação de

cada clã.

A linhagem é importante para os Membros, pois eles dão muito valor para a

herança que o vampiro criador deixou, sendo a árvore genealógica do vampiro o

maior motivo de honra e prestígio. Há treze clãs conhecidos e sete deles fazem

parte da Camarilla, dois pertencem ao Sabá e os outros quatro abstêm-se de

participar dessas seitas.

Cada seita possui uma ideologia que permeia os ensinamentos e ações:

podem ser contadas milhões de histórias da criação, quem mandava mais ou quem

era o vampiro mais puro. Não passam de inferências que já estavam presas na

sociedade e no lugar em que foram vividas muitas vezes por outras pessoas e

vampiros. A conceituação de todo esse mundo místico é, no final, apenas uma

renomeação para algo que já existia, mas em outro contexto ou discurso diferente.

Quando se fala em ideologia, não há novidade. Ranciére pontua que

Ideologia é então tudo menos um nome novo para uma velha noção. Ao inventá-la, Marx inventa para um tempo que ainda dura um regime inaudito

49

do verdadeiro, e uma conexão inédita da verdade no político. Ideologia é o nome da distância indefinidamente denunciada das palavras e das coisas, o operador conceitual que organiza as junções e as disjunções entre os elementos do dispositivo político moderno. Alternativamente, permite reduzir a aparência política do povo a ilusão, recobrindo a realidade do conflito ou, ao contrário, denunciar os nomes do povo e as manifestações de seu litígio como velharias que retardam o advento dos interesses comuns. Ideologia é o nome que liga a produção do político à sua evacuação, que designa a distância das palavras às coisas como falsidade na política sempre transformável em falsidade da política. Mas é também o conceito pelo qual se declara que qualquer coisa pertence à política, à demonstração "política" de sua falsidade (RANCIÈRE,1996, p.92).

Encontrar estas ideologias que estão escondidas no RPG, um jogo que, para

a maioria das pessoas, não passa de diversão, encontrar as semelhanças e

diferenças entre os vampiros ocidentais e orientais, que aparentemente são tão

difusos e diferentes, com foco na análise comparatista, é o cerne do Capítulo

seguinte.

50

3 ANÁLISE DO DISCURSO EM CONTATO COM O VAMPIRO: DOS

RECORTES DISCURSIVOS E AUDIODISCURSIVOS

Antes de iniciar a comparação, é necessário localizar em qual linha da Análise

do Discurso este trabalho está enquadrado. Especificamente, de filiação francesa,

criada e elaborada por Michel Pêcheux, esta linha tenta elucidar a maneira com que

o ser humano age e se torna significante através de seus discursos.

Este discurso se constrói causando movimento, através da linguagem, ao

criar, perpetuar e desafiar os tabus sociais, construindo a identidade do sujeito

discursivo, produzindo sentidos e utilizando de seu poder como sujeito da

linguagem.

A intersecção entre o sujeito e o lugar histórico de onde surge a enunciação é

uma das questões norteadoras da Análise do Discurso, pelo fato de que, ao

materializar este discurso através do contato linguístico (sistema regido de

categorias) e não linguístico (aquisições psicológicas, históricas e sociais),

acarretando a interação em situações concretas, caracteriza-se o discurso como um

ponto de convergência dos aspectos sociológicos, ideológicos e da linguística.

Os três pilares que servem de estrutura básica para a Análise do Discurso de

origem francesa são a linguística de Ferdinand Saussure, o materialismo histórico de

Karl Marx, por meio da releitura de Althusser, e a psicanálise de Sigmund Freud,

pela visão de Lacan. Gregolin acrescenta que

Esse triplo assentamento traz consequências teóricas: a forma material do discurso é, ao mesmo tempo, linguístico-histórica, enraizada na História para produzir sentido; a forma sujeito do discurso é ideológica, assujeitada, não psicológica, não empírica; na ordem do discurso há o sujeito na língua e na História; o sujeito é descentrado, tem a ilusão de ser fonte, mas o sentido é um já-lá, um dito antes em outro lugar. Do mesmo modo, o enraizamento nesses três campos do conhecimento traz consequências metodológicas: a busca de um dispositivo de análise do processo discursivo; a busca dos vestígios – da história e da memória – no discurso, e a consequente inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do discurso (2001, p. 03-04).

Tendo como ponto importante a exposição da sociedade a diferentes tipos de

texto, desde os tradicionais, como livros, revistas e artigos, até os mais

contemporâneos e digitais, como a Internet, o cinema, acontecem estas interações

tanto escritas como orais, com ou sem aparatos audiovisuais transformando os

interlocutores (ouvintes e leitores) em discurso propriamente dito.

51

Precursora, no Brasil, nos estudos das teorias de Michel Pêcheux, Eni Orlandi

salienta que as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas

de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam

em nós e para nós (2013, p. 20), concretizando a tarefa da Análise do Discurso, de

compreender como o texto constrói os sentidos, de que maneira estão nele e como

podem ser interpretados, que se “apresenta como uma teoria da interpretação”

(ORLANDI, 2008, p. 21).

A Análise do Discurso torna possível a busca dos processos de produção do

sentido e as próprias determinações histórico-sociais, implicando que haja assim

uma historicidade que permeia a linguagem e que não permite pensar na existência

de um sentido literal, engessado, e nem mesmo que este sentido possa ser qualquer

um, reconhecendo que toda interpretação é conduzida por condições de produção.

Seguindo esta perspectiva, é determinante na constituição do sujeito

discursivo a posição que este sujeito ocupa no meio social, caracterizando a posição

ideológica e o instante histórico da enunciação, esta podendo ser entendida como

a relação sempre necessária presente no sujeito enunciador com o seu enunciado (...) uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o não-dito (PÊCHEUX, 1975, p. 174-176).

A Análise do Discurso foi escolhida para nortear teoricamente a pesquisa pelo

fato de ser uma disciplina que tem como propósito mostrar novas maneiras de ler,

ponderando sobre a opacidade como caraterística que constitui a linguagem. Ao

estabelecer um paralelo com o texto, ela possibilita que novas formas de significação

sejam encontradas, que uma simples leitura, sem os aparatos disponibilizados por

esta disciplina, seria apenas superficial.

Para ela, há muito mais sentidos do que fica “exposto” pela linguística, não

situando o discurso em algo fechado e estanque, deixando para o analista encontrar

o norte procurado, chegar ao sentido que não está evidente e calando os outros.

Maingueneau utiliza a diretriz vinda de Pêcheux para dizer que

A Análise de Discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando ‘o’ sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito [...] o desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico

52

estabilizado com pretensão universal (PÊCHEUX apud MAINGUENEAU, 1997, p. 11).

Faz-se necessário considerar que os sujeitos e sua materialidade histórica,

em conjunto com as condições de criação, tornam-se algo imprescindível para a

Análise do Discurso. Assim, por meio deste domínio de estudo, das relações

estabelecidas entre a língua e os sujeitos que a utilizam e a situação que é

desenvolvida ao dizer, imbricadas pelo contexto histórico e ideológico, torna-se

possível analisar discursivamente uma obra.

3.1 A escolha dos clãs

Após as decisões de qual livro-base seria utilizado e sobre o local específico

para a ambientação da história, é muito importante o estágio da criação da biografia

do personagem. Antes de apresentar os textos, é preciso elucidar quais clãs de

vampiro foram escolhidos pelos jogadores e suas principais características.

O mestre narrador, ao permitir a escolha, delimitou os clãs da Camarilla,

sendo escolhidos pelos jogadores, respectivamente, Ventrue, Nosferatu e Gangrel.

Aqui podemos notar que nenhum clã foi repetido, gerando-se assim uma grande

variedade de personagens, permitindo uma maior gama de histórias e missões.

Como dito anteriormente, a Camarilla é como se fosse o órgão máximo dos

vampiros que habitam o Ocidente, aquele que considera que todo o vampiro trazido

para o Mundo das Trevas seja considerado um Membro, ele querendo ou não,

estando presente. Novamente tem-se a ideia de ideologia que denota o discurso de

uma classe dominante tentando manipular e manobrar todos os que estão abaixo do

nível social dela. Os clãs escolhidos pelos jogadores estão postos dentro da

Camarilla em diferentes níveis e prestígio, tomando a ponta pelos Ventrue, vampiros

mais poderosos social e economicamente, seguidos pelos Nosferatu, que apesar da

terrível aparência são tidos como vampiros inteligentes e dominantes da estratégia

e, finalmente, os Gangrel, vampiros que não gostam de interação social e

comumente vivem na zona rural ou nas margens da cidade, chamados pela

Camarilla devido a sua grande força física.

De maneira mais específica, a descrição dos clãs é feita por meio de um

estereótipo geral no livro base. Cada clã possui sua descrição, juntamente com o

53

símbolo respectivo e uma figura que representaria a maioria dos “associados”,

contendo também um pequeno romance sobre a história e logo após, em tópicos, as

questões mais práticas como a relação com a Camarilla, aparência, refúgio,

fraquezas, organização, linhagem, entre outros. Uma gama de estereótipos que os

outros clãs criam sobre os outros são citados, incluindo os clãs da Camarilla, os

Independentes e o Sabá.

3.1.1 O Gangrel

O clã Gangrel é tido como

o vampiro que mais se aproxima

da natureza. São praticamente

nômades e desprezam a

repressão da sociedade,

preferindo ficar em meio a áreas

selvagens ao conforto das

cidades. O maior questionamento

sobre este estilo de vida adotado

por eles é a maneira com que

evitam a fúria dos lobisomens

(inimigos mortais dos vampiros),

deixando a única resposta mais

plausível de serem aceitos por

eles, por compartilharem a mesma

condição de metamorfos (seres

que se transformam totalmente ou

parcialmente em animais) e tem

como símbolo (coincidentemente

ou não) um lobo.

Vampiros desse clã são

guerreiros ferozes, que devem

sua ferocidade ao instinto animal

que é transmitido na hora do Abraço. Eles estão entre os Membros mais predadores,

Exemplo de estereótipo Gangrel Fonte: Arquivo pessoal

54

pois adoram estar em meio a uma caçada, ou luta. Contrariamente aos outros clãs,

os Gangrel se aproximam da Besta que tenta controlar o vampiro, tendo um

entendimento apurado sobre ela, conseguindo controlá-la e, ao mesmo tempo, não

ser dominado por ela.

O clã tem pouco ou quase nenhum respeito pela Camarilla, sendo estes

vistos como quietos, taciturnos e reclusos, mas no geral é apenas desinteresse

pelos assuntos políticos. São muito ligados aos gitanos (ciganos do Mundo das

Trevas), às vezes vivendo em meio deles sem ser notados e aderindo em muito ao

estilo de vida deles, também em relação ao comportamento, linguagem e padrões.

Por este motivo não apresentam ostentação financeira ou de qualquer outra espécie.

Em relação à política da Camarilla, eles apenas fazem parte dela e só vão às

reuniões para marcar presença e manter as relações sociais ativas, para evitar

problemas, tendo, inclusive, como pauta das junções, apenas de gangréis, a de sair

da Camarilla e ter uma política que englobaria apenas os vampiros deste clã e

simpatizantes.

A aparência, tanto física e psicológica como social, reflete o estilo de vida

adotado pelos membros do clã: a falta de interesse pela moda faz com que pareçam

ásperos e selvagens. A soma disso a uma face que transparece a alma selvagem,

faz destes vampiros assustadores para quem não é acostumado a ver uma pessoa

que não se importa com nada que a cidade/sociedade proporciona, vivendo por si

mesmo. Normalmente eles ficam em refúgios em qualquer lugar que possam se

abrigar do sol, não possuindo casa ou moradia fixa.

Os gangréis raramente passam a Maldição à frente, mas, quando o fazem,

preferem abraçar os solitários que têm poder de recuperação emocional e física para

poderem suportar a gigantesca mudança a que serão submetidos. Como o Senhor

(criador) é severo e astuto, deve deixar o recém-abraçado à própria sorte, pois

acreditam que um vampiro deste clã deve ser forte e independente, fazendo suas

próprias leis e aprendendo da pior maneira como é a “vida” de um clã baseado na

força física e reclusão social.

Como não possuem uma organização concreta que se possa elencar, apenas

são ensinados, com o tempo ou pelo mestre, a respeitarem os mais velhos do clã.

Normalmente se reconhecem pelo olfato e assim se agrupam em “encontros” para

dançar, festejar e contar histórias de suas viagens. Qualquer desavença entre

alguns membros do clã é resolvida através de um ritual de combate até o primeiro

55

ferimento ou rendição, raramente terminando com a Morte Final do perdedor.

Ocasionalmente se juntam em um bando para caçar ou manter relações afetivas.

A fraqueza do clã é completamente compreensível pelo fato de estarem muito

mais próximos da Besta interior do que os outros membros da Camarilla. Ao

sucumbir ao frenesi, parecem marcar em seus corpos, especificamente,

características animais, como orelhas, rabo, garras que não podem ser escondidas

na forma humana, tornando mais difícil a interação social a cada evolução neste

quadro.

Os estereótipos criados pelos outros clãs são praticamente os mesmos,

sempre remetendo à maneira de viver que eles adotam e a sua selvageria. Aqui

mencionaremos os estereótipos que os gangréis têm dos clãs que serão vistos nos

outros jogadores. Sobre o clã Ventrue, pensam de uma maneira excludente, dizendo

“Seus tolos, jogos de poder mantêm os outros preocupados, e portanto, nós os

toleramos por enquanto” (HAGEN, 1998, p.71). Mostram que sabem que só são

“aceitos” pela força física e pela maneira com que podem ser manipulados para

conquistar certas vantagens. Em relação ao clã Nosferatu, estes não são tão

excludentes, mas há algumas ressalvas sobre eles: “Observadores astutos e aliados

úteis. Mesmo assim, eu não escolheria viver em um buraco de pestilento” (HAGEN,

1998, p. 71); exaltam o poder do clã, mas de maneira irônica desdenham a maneira

com eles vivem. E, por fim, a Camarilla os vê como “Uma pequena ventania alimenta

o furacão próximo, talvez seja a hora de deixar o barracão antes que ele desabe ao

nosso redor” (HAGEN, 1998, p. 71), confirmando que estão prontos para se auto

excluírem, se algo der errado nos planos, pois são tidos apenas como uma fonte de

força bruta. O apelido mais utilizado para o clã Gangrel é “Ralé”.

As disciplinas de clã que os gangréis possuem são três: Animalismo, Fortitude

e Metamorfose. Explicando melhor cada uma delas, o Animalismo é a que permite

ao vampiro desenvolver uma conexão mais próxima e intensa com a natureza

primal. Ele não apenas se comunica empaticamente com as feras, mas também

projeta a sua força de vontade sobre elas, comandando animais ao seu próprio

desejo. À medida que o domínio sobre este poder cresce, é criada a capacidade de

controlar a Besta dentre os mortais e até seres sobrenaturais, pois ela está no

interior de todas as criaturas, desde “ratos infestados de pulgas até os poderosos

Anciões vampíricos” (HAGEN, 1998, p. 46). Os gangréis são reconhecidos como

56

mestres do Animalismo, apesar de outros clãs dominarem a mesma técnica, assim

como o Nosferatu, que aparecerá nesta campanha.

Os níveis de poder são divididos em cinco etapas, sendo a primeira

denominada “Sussurros selvagens”, que permite ao vampiro criar uma conexão

empática e dar ordens simples para o animal. Segue-se o “O Chamado”, que tem

nome autoexplicativo, que convoca animais para perto dele sem ser nocivo a eles,

pois vampiros causam desconforto neles. O nível “Acalmar a Besta” impõe a sua

vontade sobre qualquer ser vivo que possua a Besta interior, anulando certas

emoções como esperança, fúria, inspiração do alvo. O quarto nível é “Dominar o

Espírito”. Neste nível, apenas o olhar humano cruzando com o do animal, o vampiro

pode possuir o corpo, transferindo sua alma para dentro do “recipiente”, deixando o

corpo humano em um estado inerte enquanto tiver o controle sobre as ações do

animal até voltar para seu corpo verdadeiro. O último nível deste poder é o “Expulsar

a Besta”. Este acontece quando o vampiro alcança um profundo conhecimento da

Besta interior, conseguindo transferir o furor e ações impensadas para outro ser vivo,

deixando-o livre até este frenesi passar.

A Fortitude é a disciplina compartilhada com o clã Ventrue, que também

aparecerá na história narrada. Este poder é aquele que confere ao corpo vampírico,

que já possui uma constituição sobrenatural, níveis de resistência que ultrapassam

este nível de um vampiro normal. Os membros com esta disciplina podem ignorar os

mais dolorosos golpes e não sentem a dor de uma rajada de tiros. Inclusive, ajudam

a suportar um pouco mais as fontes de dano que podem matar vampiros, como a luz

do sol, fogo e quedas.

A metamorfose é a disciplina que apenas o clã Gangrel possui e pode ensinar

aos outros membros. Ela permite que o vampiro manipule a sua forma física. É vista

como um poder de conexão com o mundo natural. O primeiro nível são os “Olhos da

Besta”, que permitem ao vampiro enxergar na escuridão total, tendo como efeito

colateral uma coloração vermelha brilhante nos olhos que, sendo ativada,

necessitaria de cuidado redobrado, pois certamente atormentaria um mortal. O

segundo poder se chama “Garras da Besta”. Este desenvolve, no lugar das unhas,

garras longas e bestiais, maldosamente afiadas, capazes de retalhar a carne de um

vampiro causando-lhe dano agravado (mesmo efeito que o fogo e o sol causam),

tornando o Gangrel uma máquina de matar vampiros. Pode ser que o “respeito” e a

57

tolerância que a Camarilla tem por este clã se deva a este poder, pois há muitos

outros clãs exteriores a ela que lhe tentam destruir o poder soberano.

O terceiro nível é denominado “Fusão com a terra”, sendo o poder mais

estimado pelos vampiros deste clã, pois permite que ele se funda e se torne um com

a terra. Este poder permite que fique a salvo da luz do sol em qualquer lugar que

possua terra sem asfalto, grama ou alguma outra substância, assim tornando

qualquer lugar o santuário de descanso do vampiro durante o dia e, principalmente,

uma maneira de se esconder e refugiar de inimigos. O próximo nível é a “Forma da

Besta”, que demonstra a habilidade legendária do vampiro, de se transformar em

lobo ou morcego, e não apenas nestes dois. Ao se transformar, o vampiro mantém a

sua própria psique e temperamento e ainda pode utilizar as habilidades na forma

bestial além de ter os sentidos aguçados do animal em que se transformar. O último

nível é denominado “Forma de Névoa”, que é verdadeiramente perturbador, pois a

forma física se dispersa em uma nuvem brumosa, mas que continua completamente

sujeita à vontade do imortal. Ele pode se mover em algum ritmo que desejar e

passar por portas, telas, canos e outras aberturas pequenas. Alguns gangréis

sentem que esta é a expressão maior do controle do vampiro sobre o mundo

material.

3.1.2 O Nosferatu

Alguns chamam os filhos de Caim de “Os Amaldiçoados”, mas nenhum outro

clã ilustra este adjetivo tão bem quanto os “miseráveis” da linhagem dos Nosferatu.

Enquanto os outros vampiros mantêm a sua aparência humana e podem participar

da sociedade humana, os nosferatus se tornam completamente destorcidos e

deformados depois que recebem o Abraço. A maioria dos outros membros fala com

horror e asco sobre a marca de Caim sobre este clã, em razão de que seu

antecessor antediluviano ter feito com que a maioria dos outros vampiros só interaja

com eles por necessidade.

O Abraço acontece de uma maneira muito agonizante para os nosferatus,

sendo subsequentes as semanas de transformações, que retiram totalmente a

aparência humana anterior do vampiro. O terror da decomposição física é

frequentemente acompanhado por um grande trauma psicológico, pois os

58

impossibilita de andarem entre os mortais e, até certo ponto, da “vida” eles são

obrigados a viver - em catacumbas, cemitérios e até mesmo esgotos.

A escolha de quem será a

próxima vítima a ser abraçada vem da

preferência que os Senhores, em sua

maioria, têm por pessoas com alguma

“distorção” física ou mental, pois veem

essa transformação como algo que irá

conduzir para a redenção deste mortal.

Muitos Nosferatu são completamente

razoáveis e práticos, e evitam

obsessões, conveniências e acessos de

fúria, comportamento normal entre

todos os vampiros. Nem este

autocontrole extremo faz com que um

Nosferatu seja uma companhia

agradável, sua aparência é

extremamente perturbadora, inclusive

para vampiros, desenvolvendo nos

Nosferatu um estranho prazer ao ver o

choque e horror causado por eles nas

pessoas.

Ao escolherem a presa para

entregar a Maldição propriamente dita,

escolhem sua progénie entre os

rejeitados da sociedade:

desamparados, mentalmente doentes e

os desesperadamente antissociais. Os

mais sádicos e terríveis nosferatus

escolhem entregar o Abraço a mortais

belos e vaidosos para apenas ter o gosto da vingança e o prazer de observá-los,

desesperados, enquanto a maldição toma conta de seus corpos para sempre.

Exemplo de estereótipo de Nosferatu Fonte: Arquivo pessoal

59

Através destas inúmeras desvantagens, apresentam, em decorrência,

algumas vantagens em relação aos outros vampiros. Eles são sobreviventes por

excelência, pouquíssimas criaturas conhecem as vielas, esquinas e cantos sombrios

de uma cidade como um nosferatu, dominando as artes do furtivo e da espionagem,

mantendo-se a par de todos os assuntos e maledicências não por mero prazer, mas

para garantir a sobrevivência. São também negociantes inigualáveis, principalmente

em relação às informações colhidas. Se alguém necessitar de informações a

respeito de qualquer pessoa ou situação, um nosferatu deve ser a primeira opção na

lista.

Os integrantes desse clã, após milênios de abusos e deformidades,

construíram laços fortes entre eles. Eles estão além das brigas e disputas de poder

sempre presentes nos outros clãs, preferindo trabalhar em união. A cortesia com que

os nosferatus se tratam deveria ser invejada, pois é verdadeira e não apenas uma

questão política ou social. Também a troca de informações entre os membros do clã

é feita livremente, sem nada ser cobrado em troca. Apesar de não possuírem rígidos

protocolos de convivência, compartilhar de um mesmo problema, no caso a terrível

aparência, criou um sentido de união no clã. São desprezados e isolados por todas

as outras criaturas, unindo-se assim não apenas por necessidade, mas também para

evitar a solidão.

Este clã é pertencente à Camarilla, apesar das dificuldades óbvias de manter

a Máscara. Pode ser que os nosferatus deem valor à seita, mas a ideia que mais

perdura é de que querem ter informações e todos os outros clãs à vista. A aparência

Nosferatu é única, não falando como um todo, mas sim individualmente. Jamais

existirão dois vampiros deste clã com a mesma deformidade. Há semelhanças como

os caninos espaçados, pálidos, cheios de tumores, buracos ao invés de nariz,

orelhas pontudas como de morcegos, cabeças oblíquas e carecas, dedos

membranosos, garras, espinhas retorcidas, pele enrugada, feridas purulentas são

apenas algumas das terríveis características que podem aparecer no corpo destes

vampiros.

Normalmente, nos primeiros anos posteriores à sua transformação, os

nosferatus são obrigados a viver em lugares distantes dos olhos dos mortais, como

cemitérios, porões abandonados, depósitos. Quando são muitos, vivem em

comunidades em galerias de metrô ou esgotos. Esses lugares, que dão acesso a

60

todo lugar, fazem do mundo subterrâneo dos nosferatus um “reino” à parte do que se

pode ver, inclusive até príncipes têm uma certa resistência em neles adentrar.

A fraqueza do clã já deve estar bem clara, pois são repugnantes de se

encarar. A punição por isso é de que os personagens deste clã não possuem na sua

ficha a opção “Aparência”, que não pode ser adquirida nem com pontos de

experiência. Todas as situações sociais que forem exigidas, e o Nosferatu estiver

sua forma real, serão automaticamente consideradas falhas. Curiosamente, o

símbolo do clã é uma máscara teatral triste, fazendo referência ao vestir a Máscara

exigida pela Camarilla e, ao mesmo tempo, a feição de tristeza que transborda

inclusive o objeto que deveria esconder tudo.

Os estereótipos que são criados pelos nosferatus são os que ferem mais a

parte social e mental dos clãs. À respeito do clã Gangrel, é mais um elogio e um

alento para eles: “Eles entendem – mais que os outros entendem, de qualquer

forma. Nós não nos falamos muito, mas o silêncio fala por si só” (HAGEN, 1998, p.

75), há esta identificação de que o Gangrel entende o Nosferatu por também ter

certa deformação e uma maneira de viver semelhante, na exclusão e à margem da

sociedade. Estes clãs não se falam muito mais por questões geográficas que outra

opção, mas eles sabem que podem contar uns com os outros.

O clã Ventrue sim é bastante criticado pelos nosferatus, que colocam em

dúvida a vida de ostentação e oblação que os vampiros daquele clã possuem - “Em

seu belo trono, sentou o orgulhoso lordezinho, e ali no seu trono, ele morreu

sozinho” (HAGEN, 1998, p. 75) -, demonstrando um certo asco e deboche pelos

vampiros deste clã. Nosferatus vivem a vida toda na exclusão, mas conseguem

encontrar seus companheiros para algumas horas difíceis e criticam isso nos

ventrues, que aparentemente só têm aliados devido à posição social, que um dia

acabará e a solidão e o esquecimento assolarão o vampiro.

A Camarilla recebe uma crítica em relação ao seu poder: “Desce aqui e me dá

essa ordem de novo, Sr. Príncipe. É, eu não achei mesmo que você viesse”

(HAGEN, 1998, p. 75), mostrando que o Príncipe é apenas uma marionete de um

sistema muito maior, e que não chega perto de um nosferatu, pode ser por medo de

sua aparência ou mesmo por respeito. O apelido mais comum entre os outros clãs

para se referir aos Nosferatu é “rato de esgoto”.

As disciplinas que o clã dos nosferatus recebe junto com a transformação são

o Animalismo, a Ofuscação e a Potência. Como mencionado anteriormente, o

61

Animalismo já foi explicado quando foi apresentado o clã Gangrel, pois é uma

disciplina compartilhada.

A Ofuscação é um misterioso poder que permite aos membros ocultarem sua

presença da visão dos outros. Através do simples desejo de passar despercebido,

um vampiro com esta disciplina pode desaparecer, mesmo se ele estiver em pé, em

frente a uma multidão. Certamente ele não desaparece, ele simplesmente ilude os

observadores a pensarem que ele se tornou invisível, não apenas com seu corpo,

mas com outras criaturas, pessoas e objetos. Os níveis mais altos da disciplina

fazem o vampiro desaparecer da visão alheia tão sutilmente que os que estão ao

seu redor jamais se recordarão de que ele estava ali. Crianças e animais conseguem

sentir a presença do vampiro mesmo sem o estar vendo, fato que pode atrapalhar

alguma situação mais delicada.

Devido ao fato da Ofuscação afetar a mente do observador, os membros não

podem utilizar esta disciplina em aparelhos eletrônicos e mecânicos, como câmeras

de segurança e fotografias. Este poder também é dividido em cinco níveis e o

primeiro é denominado “Manto das Sombras”, que concede ao vampiro a

capacidade de ficar isolado da visão de outros seres apenas com a ajuda das

sombras. Ele necessita encontrar um local escuro e ficar em silêncio, parado ou sob

algum tipo de cobertura (cortina, armação, poste, ruela), sem iluminação direta no

momento em que se movimentar, atacar ou se colocar sob iluminação.

O segundo nível é a “Presença invisível”, praticamente uma evolução do

anterior, pois ao ser ativado o vampiro consegue se mover sem ser visto, só

necessitando entrar nas sombras para desaparecer, e depois disso pode andar

livremente. Mantendo sua consistência física ele precisa ser cuidadoso para não

esbarrar em objetos ou entrar em contato com algo que revele sua presença.

“A máscara das mil faces” é o terceiro nível. Este permite influenciar a

percepção dos outros, fazendo com que eles vejam outra pessoa que não é o

próprio imortal. Apesar da forma física do vampiro não mudar, qualquer observador

vê o ser que o vampiro quer que ele veja. Para executar isso, o vampiro necessita

ter o semblante da “cópia” firme em sua mente, importando a aparência e não os

maneirismos e a personalidade.

O quarto nível é o “Desaparecimento do olho da mente”, uma poderosa

manifestação da disciplina Ofuscação, que permite ao vampiro desaparecer do

campo de visão plano tão profundamente que pode sumir mesmo se estiver na

62

frente de alguém. Dependendo da força de vontade do indivíduo que está vendo, ele

pode se assustar e correr, mas se for fraca, ele não notará e muito menos lembrará

que o vampiro esteve ali. Até mesmo vampiros se espantam com o desaparecimento

súbito.

O último nível, denominado “Cobrindo o grupo”, é uma extensão de seus

poderes. Depois de tamanha compreensão da disciplina, o vampiro consegue

estender a habilidade de ocultação para cobrir uma área, podendo usar qualquer

nível anterior sobre pessoas próximas. Qualquer pessoa que comprometer a

integridade do disfarce será revelada, mas somente ela mesma o será.

A disciplina da Potência faz com que os vampiros dotados dela possuam uma

força (ainda mais) sobrenatural. Ela permite que os vampiros pulem distâncias

tremendas, ergam pesos volumosos e golpeiem oponentes com mais dano causado.

Até os níveis mais baixos deste poder conferem ao vampiro um poder físico, além

dos limites imortais. Ela não possui poderes específicos, é dividida em níveis que

aumentam a força e a destreza dos vampiros, que os fazem pular tão alto e longe

que parecem estar voando, jogando carros como se fossem latas de refrigerante e

golpearem concreto como se estivessem batendo em papelão.

3.1.3 O Ventrue

Com a reputação de serem honrados, gentis e de gosto impecável, os

membros do Clã Ventrue, desde os tempos remotos têm sido um clã de liderança,

reforçando as tradições antigas e procurando moldar os destinos dos Membros. Nas

noites ancestrais, eram escolhidos para ter a linhagem do clã pessoas influentes

como príncipes, mercantes ou outros controladores do poder. Nos tempos

modernos, o clã prefere membros de famílias ricas tradicionais, impiedosos

executivos e políticos. De qualquer lugar que seja a origem de um ventrue, eles

sempre preservam a estabilidade e mantêm a ordem na Camarilla, sendo

confundidos pelos outros membros, com arrogância e avareza, mas para o ventrue,

este papel é mais que uma responsabilidade, é uma honra.

63

Este clã apoia a Camarilla veementemente, sentindo que sob a liderança do

clã haverá uma melhor existência para todos os vampiros. Na concepção dos

ventrue, os outros clãs são imprudentes e

impetuosos, preocupam-se com o

conforto imediato, trocando a eternidade

por um pouco de sangue. Sem os

ventrues não existiria a Máscara e sem a

Máscara não existiriam vampiros.

Nenhum outro clã seria capaz de liderar

as crianças de Caim através das noites

com uma guerra iminente.

Os ventrues se consideram

nobres, no sentido clássico da palavra,

lutando para manter as posições

daqueles abaixo deles. São considerados

reis, cavaleiros e barões das noites

modernas. Apesar do campo de batalha

ter sido trocado por salas de

planejamento, os ventrues continuam os

duelos, dividindo o exército entre os

jovens que comandam seus lacaios e

carniçais pelos telefones celulares e

passeios de limusine, enquanto os

anciãos procuram ameaças que vêm de

longe e dos quais novos vampiros nem

suspeitariam. Muitas propriedades sobre

o controle da Camarilla estão

supervisionados pelo Clã Ventrue, sendo

relutantes em relação a deixar estes

trabalhos para outros clãs.

Reputação e determinação

levam um vampiro longe dentro do Clã

Ventrue, mas isso nada importará se ele não for capaz de manter a sua influência.

Exemplo de estereótipo de Ventrue Fonte: Arquivo pessoal

64

Os outros vampiros normalmente trocam insultos contra os ventrue, acusando-os de

serem tiranos, pomposos demais e arrogantes, mas quando algo dá errado

socialmente, é para este clã que correm a pedir auxílio. Os ventrues cultivam a

influência e, sempre que podem, o controle sobre a mídia, polícia, política, saúde e

medicina, crime organizado, indústria, finanças, transporte e até mesmo a Igreja dos

mortais. Quando um vampiro precisa de ajuda, os ventrue normalmente podem

fornecê-la por um bom preço, que não necessariamente precisa ser pago em

dinheiro.

Normalmente os vampiros deste clã gravitam nos mais altos níveis da

sociedade mortal, onde a sua sofisticação lhes serve bem. Os ventrues

orgulhosamente desfrutam do privilégio da liderança e calmamente carregam o seu

fardo.

Os ventrues normalmente se caracterizam como elegantes, aristocratas e

realistas, sendo os senhores da Camarilla. Foi este clã que forneceu a base para a

Camarilla e também a guia nos tempos sombrios, tendo sido deste clã, até a era

moderna, a maioria dos príncipes.

A grande maioria dos vampiros deste clã se abrigam em mansões, castelos e

propriedades valiosas. Ao contrário dos outros vampiros de outros clãs, os ventrues

fazem o uso do estilo de vida de quando eram humanos, estão sempre na moda,

quase sempre com roupas formais e desenhadas milimetricamente sob medida para

o corpo deles. Ao contrário do que todos pensam, são elegantes e requintados, pois

necessitam se destacar sem destoar. Qualquer evento ou fato que fira a honra de

um ventrue é tido como algo catastrófico.

A organização do clã Ventrue é uma das que mais agrupa e discute com os

membros, fazendo os vampiros de uma certa região se encontrarem com frequência.

Os Ventrues jovens costumam ser um problema para o clã, pelo motivo de que

quase nunca concordam com um discurso ponderado e elevam a voz entrando em

atrito com a rigidez das regras de convivência do clã. As posses quase sempre são

motivo dessas discussões, pois os mais anciãos não concordam em ter menos bens

e influência do que uma criança da noite, procurando até duelos de força para provar

quem é mais forte e poderoso.

Dentro do clã, a herança é muito valorizada. Os “filhos e netos” e assim

sucessivamente até os membros mais ilustres são tratados com mais estima ou

inveja pelos outros membros do clã. Os ventrue são tradicionalmente procedentes

65

de profissionais ou famílias de altíssimo nível social, podendo ser qualquer pessoa

notável, sendo um dos únicos clãs que não abraçam apenas por vontade ou instinto.

Escolhem e observam o futuro integrante por meses, e até anos, antes de conceder-

lhe o Abraço. Alguns membros de outros clãs acusam os ventrues de serem

incestuosos, o que não é verdade. O que mais importa a eles são o poder e o

domínio de qualquer situação em que estejam presentes.

A fraqueza do ventrue também é algo que não é surpresa. Pelo fato de ser

um vampiro requintado e seletivo em todas as coisas que faz, com a alimentação

não seria diferente. O paladar do ventrue é exigente ao ponto de só se alimentar de

um tipo de sangue de um tipo de mortal. Exemplificando, um vampiro desde clã terá

de se alimentar pelo resto da eternidade de homens loiros, ou mulheres ruivas,

apenas de sacerdotes e assim por diante, podendo se alimentar normalmente e fora

desta escolha apenas de sangue de outros vampiros, o que é considerado o maior

crime na Camarilla.

Os estereótipos criados pelos ventrues sobre os outros clãs também

continuam sem surpresa. Sobre o Clã Gangrel, seus membros são tratados como

animais e chacais, como algo que só é chamado quando um “vampiro mais nobre”

não quer sujar suas mãos com alguma coisa que ele acha que não merece seu

esforço.

Sobre os nosferatus, consideram que “Estas lamentáveis criaturas continuam

pagando a dívida contraída por seus senhores tantas noites atrás, mesmo não tendo

culpa alguma” (HAGEN, 1998, p. 81), demonstrando pena e, ao mesmo tempo, um

certo asco, chamando-os de lamentáveis, que também pode ser em relação à sua

aparência e não poder andar livremente perto dos humanos. Mas tem-se

consciência que os ventrues têm muito contado com eles pelo fato de terem

informações importantes sobre a sociedade de todas as classes e, claro, mesmo que

eles exijam um certo preço, ventrues não têm problemas financeiros quando o

assunto é a influência e a importância das notícias.

A Camarilla tem um estereótipo completamente esperado de um ventrue:

“Esta é tanto a nossa honra quanto a nossa penitência” (HAGEN, 1998, p. 81).

Sabendo que foram os ventrues que deram o suporte para a criação da Camarilla,

juntamente com a criação da Máscara, tem-se como conceito de que a penitência é

algo que eles julgam impróprio para o clã, que é ter de conviver com os outros clãs

que não seguem ou tentam deturpar as regras que eles mesmos criaram. A honra se

66

trata de ser o clã mais influente na sociedade dos mortais, o que é também

condenado por todos os outros clãs pelo fato de pensarem que mortais são apenas

“sacos de sangue” e de que os vampiros são semelhantes e não devem ser tratados

como inferiores. Ventrues pensam desta maneira, humanos são tratados como

alimento, fonte de informação e mão de obra; só interagem com eles por poder e

dominação. Os vampiros que não têm a mesma influência dentro da Camarilla são

tratados como inferiores, mesmo pensamento aplicado aos humanos, deixando

assim os membros com uma ressalva a respeito dos ventrues. O apelido dado a eles

pelos outros clãs é “Sangue azul”.

As disciplinas intrínsecas do Clã Ventrue também são três: Dominação,

Fortitude e Presença. A Fortitude já foi explanada na apresentação do Clã Gangrel,

sendo compartilhada entre estes dois clãs. As outras duas habilidades dizem muito

sobre a maneira com que os ventrues governam, conseguem toda a influência e

poder, tratando-se de disciplinas que envolvem o lado mais mental e psíquico dos

alvos.

A Dominação concede a manipulação dos pensamentos e ações de outros

através da força de vontade do vampiro. O uso desta habilidade requer que o

vampiro olhe nos olhos de sua vítima. Só pode ser usado em uma pessoa por vez.

A extensão deste controle depende do poder que está sendo aplicado. Apesar de

realmente poderoso, a sua execução exige muito, pois os comandos precisam ser

emitidos verbalmente de forma clara. Do contrário, o pedido não será atendido, não

importando o poder ou idade do vampiro. Esta disciplina é praticamente uma

extensão de uma característica mortal que o Senhor vampiro olha e aprecia, e

provavelmente por isso concede o Abraço.

Também dividida em cinco níveis, o primeiro tem como denominação “O

Comando”, exigindo que o vampiro fixe os olhos nos da vítima falando uma palavra

de ordem que precisa ser obedecida imediatamente. Se o comando não for claro,

confuso ou ambíguo, o alvo pode responder lentamente ou realizar mal a ação. Não

se pode ordenar ao alvo que faça algo que prejudique a si mesmo. Portanto, ações

como suicídio, automutilação e contar segredos particulares não são permitidas. O

comando pode ser escondido em meio a alguma sentença, facilitando a aplicação do

poder, mas um ouvinte mais atento irá notar a ênfase em alguma palavra e exigir um

teste de dados mais difícil.

67

“Hipnotizar” é o segundo nível que permite ao vampiro implantar verbalmente

um falso pensamento ou sugestão hipnótica na mente inconsciente do alvo. Tanto o

vampiro quanto a vítima precisam estar livres de distrações, exigindo palavras

corretas para ser efetiva. O vampiro pode ativar o pensamento para ser executado

imediatamente ou estabelecer um estímulo para ser disparado depois. A vítima

precisa ser capaz de entender o vampiro, apesar do contato visual somente ser

necessário durante a implantação do pensamento. Este poder funciona tanto com

ordens simples e diretas como com ordens mais complexas e bem elaboradas,

como, por exemplo, tomar nota dos hábitos de alguém e trazer essas informações

para o vampiro.

O terceiro nível é o “Ordenar esquecimentos”, que é executado depois de

conseguir o contato visual e pesquisar a memória da vítima, podendo então roubar,

recriminar e inserir conforme sua vontade. O vampiro opera como um hipnotizador,

fazendo perguntas diretas e sugando respostas do alvo. A capacidade de alterar a

memória depende da vontade do vampiro, podendo alterar levemente, como uma

maneira de proteger a Máscara, por um mortal tê-lo visto se alimentando, ou ter-lhe

servido de alimento, ou desfazer totalmente memórias de seu passado. O nível de

detalhes usado tem uma relação direta com a força que a memória pesquisada tem,

pois, o subconsciente tentará relutar contra as alterações impostas. A memória

imposta deve ter muitos detalhes para que não seja desfeita rapidamente. É

relativamente fácil entrar na mente de uma vítima e retirar lembranças do que

aconteceu na noite passada sem nem mesmo essa vítima saber o que realmente

ocorreu. No entanto, praticar tal ação pode ocasionar alguns problemas, como uma

lacuna nas lembranças capaz de causar problemas no decorrer do caminho pelo fato

de que os pensamentos impostos não tem a realidade das lembranças que

aconteceram verdadeiramente. Este poder também pode identificar algumas

memórias que já foram alteradas e assim trazê-las ao normal.

O “Condicionamento” é uma consequência dos outros três níveis, e só pode

ser utilizado depois que a vítima já estiver sob o efeito de algum outro anterior,

tornando-se mais flexível e vulnerável à vontade do vampiro e renegando a

influência de outros imortais. Ganhar o controle completo de uma mente é uma

atividade que pode demorar semanas, meses ou até anos para ser concluída. Os

membros normalmente enchem a mente dos seus lacaios, carniçais e pessoas em

geral, com sussurros sutis e desejos velados, garantindo desta forma a lealdade dos

68

mortais. O preço desta habilidade é que os dominados neste nível perdem a

individualidade, seguindo somente as ordens do vampiro, raramente tomando

iniciativa ou mostrando alguma imaginação, tornando-se praticamente zumbis.

O quinto nível é a “Possessão”. Este decorre da enormidade da força psíquica

do vampiro, que lhe dá o poder de colocar por completo a sua mente no lugar da do

alvo, não sendo necessárias nem palavras, apenas um contato visual que demora o

tempo da luta da força de vontade do alvo com a do vampiro, depois disto sendo

dispensável. Após suplantada a mente do alvo, o vampiro move sua consciência

para o interior do corpo da vítima e o controla facilmente, tal como controlaria o seu

próprio corpo. O alvo entra em uma espécie de delírio e fica ciente dos eventos de

forma distorcida, como se fosse em um sonho. Ao mesmo tempo, a mente do

vampiro está concentrada inteiramente no controle do corpo mortal, enquanto o

corpo imortal fica em um estágio de torpor, sem defesa contra quaisquer ações que

o envolvam. O vampiro não pode possuir outro membro, pois a mente do mais fraco

dos vampiros é forte o suficiente para resistir a esta dominação. Apenas através de

laços de sangue (quando um vampiro deixa o outro beber voluntariamente de seu

sangue) é possível ter este controle sobre outro membro.

A disciplina da Presença é a mais adorada pelos Ventrue, pois é como se

fosse uma afirmação sobrenatural do seu poder e majestade sobre os mortais. É a

habilidade da atração sobrenatural, que pode inspirar paixões devotas, entusiasmo,

medos tanto em mortais como em imortais, sendo assim um dos poderes mais úteis

que um vampiro pode possuir. É notável que, ao contrário de todas as outas

disciplinas apresentadas até agora, alguns dos seus poderes podem ser usados em

multidões inteiras, dando poder ao vampiro de submeter grandes grupos sob a sua

influência, contanto que seu rosto esteja visível àqueles que deseja afetar e, ao

contrário da Dominação, não exige nem ao menos contato visual.

Transcendendo raça, religião, gênero, classe e principalmente naturezas

sobrenaturais, esse poder tem a chance de afetar tanto um vampiro ancião quanto

um motorista de táxi, com a exceção de que se a vítima notar que está sendo

compelida pode tentar resistir, mas pode ser que dê errado. Toda vítima da

Presença pode tentar resistir e fazer testes até que toda a sua força de vontade seja

extinta e ceda à presença do vampiro. A maneira mais simples é virar o rosto e não

ter contato visual com o vampiro, sendo uma opção simples, mas de que os mortais,

69

por não saberem que estão sob o efeito de um poder sobrenatural, não têm

conhecimento.

Além dos usos premeditados, a Presença confere uma mística e inexplicável

ação sobre o vampiro, fazendo com que ele se distinga na multidão, chamando a

atenção (e frequentemente o desejo) daqueles que estão ao seu redor, mesmo

quando ele está apenas parado em algum lugar, aumentando a fascinação a cada

nível superior da habilidade. A maior desvantagem da presença é que ela apenas

controla as emoções, fazendo com que as pessoas tenham uma inclinação favorável

ao vampiro, mas não permite que ele as controle diretamente, mas facilita o uso das

outras disciplinas como a Dominação, causando uma combinação bastante efetiva.

O primeiro nível é o “Fascínio” é uma ampliação da ação passiva que esta

disciplina dá ao vampiro. As pessoas próximas a ele repentinamente sentem

vontade de se aproximar ainda mais do Imortal, sendo muito eficiente na

comunicação em massa, pouco importando o que é dito, pois o coração dos

afetados se volta à opinião do vampiro. Assim os mais fracos tendem a concordar

com ele e os que têm uma força de vontade maior podem resistir, mas são uma

minoria. Não importa a intensidade da atração. Até mesmo os menos afetados terão

uma reação ao lembrarem como se sentiram na presença do vampiro e ficarão mais

suscetíveis na próxima vez que for utilizada.

O segundo nível é o “Olhar aterrorizante”. É uma forma de intimidação, maior

do que o poder natural dos vampiros de aterrorizar as pessoas, ao revelar

fisicamente suas naturezas vampíricas, exibindo suas garras e dentes ou rosnando

alto e ameaçadoramente. Este poder concentra estes elementos em um nível quase

enlouquecedor. Gera um terror insuportável nas vítimas, causando várias reações,

como imobilidade ou fuga desesperada, afetando até os indivíduos mais robustos e

corajosos. É bastante utilizado na hora de interrogatórios ou ações não tão lícitas

para conseguir informações.

O “Transe” é o poder que influencia a emoção de outras pessoas, fazendo

delas uma espécie de servos. Dependendo da concepção do indivíduo sobre

verdade e devoção, eles podem atender a todos os desejos do vampiro, pelo

simples fato de que o desejo de obedecer será realizado através do amor

incondicional e da livre e espontânea vontade do alvo e não através do estupro da

vontade. Estes lacaios, carniçais ou pessoas em geral que são afetadas pela

presença são muito mais agradáveis do que os afetados pela Dominação, por terem

70

vontade e pensamentos próprios, não se tornando apenas um corpo que anda pela

vontade do vampiro.

O nível quatro é a “Convocação”, poder este de nível avançado que permite

ao vampiro convocar a presença de qualquer pessoa que ele já tenha conhecido. O

chamado pode ser dado a qualquer um, seja ele mortal ou imortal, sobrepondo

qualquer distância dentro do mundo físico. O alvo chamado vem o mais rápido

possível, e provavelmente sem ao menos saber o porquê. Intuitivamente saberá

como encontrar o convocador. O pensamento principal do alvo é chegar ao vampiro,

mas sem se esquecer do seu próprio bem-estar, mantendo o seu instinto de

sobrevivência, não se submetendo a ações suicidas. É um poder mais útil quando se

trata de alvos próximos, pois chamar alguém que está longe poderia tomar um

tempo precioso do vampiro, que pode estar em apuros. O chamado se dissipa ao

amanhecer, mas se o vampiro treinar muito bem esta habilidade conseguirá compelir

ao convocado, continuar a vir ao encontro durante o dia.

O quinto nível é a “Majestade”, que confere o poder supremo de aumentar o

seu aspecto sobrenatural em mil vezes. A atração se torna paralisante de tão linda, o

rude se torna horrivelmente demoníaco. A Majestade inspira um respeito universal,

devoção, medo (inclusive todas estas emoções ao mesmo tempo) sobre aqueles

que estão próximos ao vampiro. O fraco briga para obedecer a todos os caprichos

do vampiro e os fortes e corajosos descobrem que é praticamente impossível negar-

se. As pessoas afetadas acham o vampiro tão formidável que não se atreveriam a

deixá-lo desgostoso, levantar a voz contra ele é difícil, levantar a mão contra ele é

inconcebível. Os poucos que conseguem abalar a atração mística do vampiro são

calados pelos muitos que estão sob a influência dele, mesmo sem o imortal mandar.

Sob a influência da Majestade, corações desmoronam, poderes cambaleiam e a

audácia some, fazendo com que até os Membros mais sábios, pelo número de

pessoas que serão afetadas, utilizem este poder com cautela, pois um efeito

colateral é a perseguição que será gerada.

3.1.4 Apresentação dos personagens: a criação de uma identidade

Após a contextualização dos fatos principais sobre os Clãs escolhidos, a

história, ou narrativa, deve ser criada, incorporando traços que serão escolhidos por

cada autor. A parte fascinante do RPG, além da ludicidade e da interação entre

71

amigos, é a oportunidade de criação literária que ele disponibiliza. Pessoas leigas,

de todas as idades, formações e credos, têm a possibilidade de escrever uma

pequena obra, por mais simples que seja, criando-se assim uma nova identidade

para um personagem. Características psicológicas, físicas, classe social, problemas

familiares, conflitos internos, preferências, maneirismos, costumes, tudo será criado

e arquitetado para que, após a entrega da narrativa, o escritor se torne uma

personificação real e praticamente viva, no decorrer da sessão, com outro nome,

outra identidade, outras formas de pensar e sujeito a outras ideologias.

As narrativas que aqui serão apresentadas foram criadas especificamente

para a execução deste trabalho de Dissertação e têm a plena autorização dos

autores para a veiculação do texto integral, que se encontra nos Anexos, posteriores

às Referências Bibliográficas. Seguindo com as explanações, um breve resumo de

cada uma delas foi elencado, como se vê na sequência, para que as análises

pudessem ser realizadas sem lacunas, juntamente com a explanação das escolhas

dos jogadores na criação das fichas de atributos.

3.1.4.1 Sarah Fortune: A Ventrue de Bibiane Trevisol

Nesta biografia, contada em terceira pessoa, a autora inicia a história dando o

título de “Sarah Fortune, o poder tem nome” já elucidando que a personagem dela

será imponente e influente. Para dar um complemento na hora da leitura, há o aviso

de que a história deve ser lida ao som da música “Dead Lover’s Lane”, da banda

finlandesa HIM, que tem o tema de sentimentos, como o amor, que rastejam em

uma alameda de outros sentimentos que acarretam medo, desespero. A música teve

este papel pelo interlúdio em inglês:

Scream out love's name in vain

Erase the pain again

And lose yourself alone in the dark

Dead lover's lane

A estrofe, traduzida livremente para o português, “Grite o nome do amor em

vão/ Apague a dor novamente/ E se perca sozinho na escuridão/ Na alameda dos

72

amantes mortos”, elucida que a história de Sarah Fortune terá muito sentimento

envolvido e sofrimentos causados pelo sentir e agir.

A narrativa da vida de Sarah Fortune se inicia descrevendo o que é visto por

fora, o exterior da personalidade que ela é para aquela sociedade: apenas uma

mulher rica e que gosta de esbanjar poder e influência. A interrupção destas

informações traz o dia do nascimento dela, no qual os problemas começam a ser

evidenciados, como a superexposição, a negação do pai que é machista e preferia

um filho homem. Também conta todo o esforço que Sarah faz para tentar conquistar

o coração do pai, que nunca lhe deu o mínimo de amor necessário e, para piorar,

ainda coloca o filho de seu melhor amigo no lugar de privilégio que deveria ser da

única herdeira da família.

O desenrolar trágico da história envolvendo um assassinato, relata o Abraço

dado por seu mestre Irvine Crawford, que a transformou em um Ventrue e a

surpresa de que ao receber a notícia que se transformaria em um vampiro não

houve desespero ou negação, mas sim um olhar de recompensa e também uma

certa gratidão pelo poder que havia sido concedido a ela.

A criação da ficha seguiu exatamente a linha social, parte necessária e

importante, e um Ventrue. A natureza escolhida pela jogadora foi excêntrica, o

comportamento Diretor e o conceito Socialite. Nos Atributos, o foco ficou no carisma,

manipulação (com ênfase na sedução) e na aparência, deixando em segundo plano

a percepção, inteligência e raciocínio e, depois, os atributos físicos. As habilidades

foram focadas nos talentos empatia, intimidação (com ênfase em chantagem),

liderança e lábia; as perícias escolhidas foram condução, armas de fogo e brancas,

e performance (com ênfase em atuação); e os conhecimentos de finanças,

investigação e linguística (acrescentando-se a língua italiana).

Os antecedentes escolhidos foram Recursos com quatro pontos e Status com

dois pontos; as disciplinas padrão do clã (Presença, Dominação e Fortitude) foram

aprendidas e as qualidades e defeitos foram escolhidos com base no que o

personagem necessita para melhorar a interação social, sendo adquiridas, assim,

“Ingerir comida” e “Voz encantadora”. A fraqueza do Ventrue de ter Restrição de

Presa foi definida para Sarah Fortune como apenas moreno de olhos claros.

3.1.4.2 Viktor Reznov: O Nosferatu de Cassiano Prado

73

A biografia deste personagem, também em terceira pessoa, inicia em um ano

remoto, há praticamente mais de 60 anos, na Rússia, quando Reznov tinha treze

anos. Conta sobre o pai, que era músico e motivo de conforto e encorajamento para

os soldados, o que levou o exército alemão a ficar preocupado e em polvorosa para

que este “incentivo” fosse cessado, levando ao assassinato a sangue frio de seu pai

e sentenciando assim ao mote de vingança de Viktor.

A mudança para a Itália para evitar que mais fatos ruins acontecessem com a

família Reznov e a acolhida por parte de uma família ali residente até a estabilização

financeira foram parte da vida dele. A entrada no exército italiano e a força de

vontade com que ele evoluía no batalhão chamaram a atenção de um agente

especial de espionagem, denominado Alexander Dragovich.

Este homem, que futuramente seria o seu mestre vampiro e o transformaria

em um Nosferatu, em pleno ataque de alemães à base italiana, possibilitou-lhe o

horror de ver um vampiro pela primeira vez e saber o quanto degradante seria a sua

aparência e a dificuldade que a vida seria daquele momento à frente. Mas, como

não haveria opção para derrotar aqueles alemães que iriam dizimar seus amigos e

companheiros, ele aceitou o Abraço. Após anos de treino e explanações sobre o

Mundo das Trevas, Viktor volta à Rússia, entrando sem problemas no exército se

tornando General. A narrativa termina de uma maneira com que só saberemos o

final na continuidade da sessão: com a notícia que fez Reznov se mudar para a

Califórnia, nos EUA, para resolver algumas pendências.

A ficha deste personagem foi baseada na parte estratégica e observadora,

fazendo o jogador escolher uma natureza ranzinza, um comportamento

perfeccionista e o conceito de Soldado. Os Atributos foram focados na parte Mental,

em primeiro lugar o raciocínio (com ênfase em Mudança de Estratégia), percepção e

inteligência; logo após, os sociais - com carisma, manipulação (com ênfase em

Convincente) e nada de pontos em Aparência, pelo fato de ser a fraqueza do clã

Nosferatu. As habilidades foram focadas nas Perícias de condução, armas de fogo,

performance (ênfase em atuação) e práticas furtivas (com ênfase em silêncio); após

isso, os Talentos de prontidão, esquiva e intimidação e, por último, os

Conhecimentos de investigação e medicina.

Os Antecedentes escolhidos foram Recursos, Contatos e Rebanho (pela

dificuldade que o Nosferatu tem de encontrar presas, torna-se necessário) e as

74

Disciplinas básicas do clã foram adquiridas (Animalismo, Ofuscação e Potência).

Não foram acrescentados qualidades e defeitos.

3.1.4.3 Derek Chains: O Gangrel de Christian Kayser

A narrativa com mais indagações e a única escrita em primeira pessoa, inicia-

se com uma pergunta de várias respostas; o amor é recorrente. A demora para

revelar quem realmente está falando deixa a narrativa com um caráter de conversa,

dando apenas algumas características sobre a personalidade, como o medo de

perder algo, a vontade de morrer por amor e a dúvida do motivo da existência, o

desprezo pelos seres humanos é evidente. Nota-se que nesta história o enunciador

já é vampiro e está apenas contando o que lhe aconteceu e o que o está

perturbando.

A vida que levava antes de se tornar vampiro, aos seus olhos é algo indigno

para ele. Trabalhava de servente de pedreiro e sofreu um acidente por falta de

instrumentos de segurança e pela confiança de que nada aconteceria com ele.

Estando prestes a morrer, foi transformado por sua atual namorada, que não

imaginava ser uma vampira, deixando-o abandonado e sem ensinamentos. Ao fugir

para um lugar que parecia que o coração o mandava e mostrava o caminho,

encontra uma outra vampira que ficava próxima aos coiotes. Ela tinha o nome de

Rojanda e se propôs a dar ensinamentos a ele e a seguir os passos de sua criadora

Mariah.

Apenas no final da narrativa o nome e as características físicas do

personagem são revelados, deixando o mote da nova “vida”, que é encontrar a sua

antiga namorada e se vingar (ou não), pela situação em que ela o deixou, sem ter

pressa, pois, segundo o narrador, tempo a partir daquele momento não seria

problema.

A ficha deste personagem seguiu para o lado físico e da força bruta, tendo

como natureza escolhida o galante, o comportamento gozador e o conceito errante.

Os atributos físicos foram priorizados, como a força, a destreza (com ênfase na

velocidade) e o vigor. As Habilidades foram focadas nos talentos de prontidão,

esportes, briga, esquiva e empatia; as perícias de empatia com animais, o furtivo e

sobrevivência, e os conhecimentos de investigação e medicina.

75

Os antecedentes escolhidos foram os recursos e rebanho, com as Disciplinas

do clã Gangrel adquiridas (Animalismo, Fortitude e Metamorfose) e as qualidades

que foram selecionadas, como sentido aguçado e ambidestria, ajudando

completamente na natureza do vampiro, que tem mais contato com a natureza e

necessita destes atributos.

3.2 A milionária, o estrangeiro e o pobre: análise dos Recortes Discursivos

Partindo para a análise dos Recortes Discursivos1 - RDs, são consideradas as

obras literárias produzidas por pessoas leigas na questão da escrita, que jogam

RPG e assim são incentivadas pelo mestre a terem uma biografia sobre seu

personagem. Seguindo por esta linha, trabalhou-se com a Análise do Discurso de

linha francesa como suporte teórico, tendo como objeto de estudo os efeitos de

sentido materializados em textos diversos, não tornando exceção estes criados

especialmente para o desenrolar do jogo. Buscaram-se nos textos os modos com

que estes se inserem dentro da atividade discursiva e principalmente buscou-se

compreendê-los e não só interpretá-los de maneira superficial.

Esta exterioridade de que o discurso resulta, esta gama de enunciados que

no final constituirão a atividade discursiva, permite um certo “jogo” de interpretação,

afastando-se de sentidos fixos e procurando extrair os intrínsecos na hora da leitura.

Pelo fato de a literatura se caracterizar pela subjetividade e ficcionalidade e,

principalmente, sem o comprometimento com verdades absolutas, exprime-se em

diversos graus o engajamento de questões sociais, com o objetivo de contribuir para

transformar a percepção do indivíduo, como um efeito prático, modulando a sua

conduta e concepção de mundo, reiterando assim os valores sociais.

Consideraram-se as peculiaridades da produção literária, os aspectos

linguísticos, estilísticos e o motivo, os efeitos de sentido únicos dessas produções,

constituindo uma memória discursiva2 deixando sentidos decorrentes da inscrição do

sujeito e dos discursos que estão atrelados a lugares sócio-histórico-ideológicos,

1Recortes discursivos: excertos das obras que se assemelham/diferem selecionadas pelo contexto, lingüísticos ou históricos. Servem de objeto para tecer as reflexões discursivas sob a luz da Análise do Discurso de linha francesa. 2“Possibilidades de dizeres que se atualizam no momento da enunciação, como efeito de um esquecimento correspondente a um processo de deslocamento da memória como virtualidade de significações. A memória discursiva faz parte de um processo histórico resultante de uma disputa de interpretações para os acontecimentos presentes ou já ocorridos” (FERREIRA, 2013, p. 17, grifos da autora).

76

tornando essas criações um corpus com muitas possibilidades para uma

interpretação sob a luz da Análise do Discurso.

Os Recortes Discursivos são identificados como RDs, e foram selecionados

com base em tópicos essenciais da narrativa em que o personagem atuou durante o

desenrolar da história. Colocando em paralelo para uma melhor leitura, os três

personagens são como as pontas de um triângulo, em que cada um fica em um

extremo das três classes sociais possíveis: Sarah Fortune é de classe alta, Viktor

Reznov é um estrangeiro de classe média e Derek Chains é um trabalhador braçal

de classe baixa. O que eles têm em comum, até o momento da interação social

entre os personagens, é que moram nos EUA, são regidos pelo sistema econômico

capitalista e sofreram alguns traumas durante suas vidas. As análises serão feitas

também de acordo com o que já foi mencionado nos capítulos anteriores e nas

descrições da criação de ficha e narrativa que foram entregues ao mestre, contando

também com as escolhas dos jogadores nas fichas de atributos e habilidades,

pontos que contam muito sobre as ações que são tomadas em meio ao jogo.

O primeiro RD tem por título “Apresentação dos Personagens”. Foi

pesquisado e selecionado nas três narrativas, possuindo inúmeras convergências a

respeito do tema. No entanto, tais convergências possuem descrição e

posicionamento no texto completamente diferentes, elucidando a maneira de

escrever de cada jogador e a importância dada por ele à descrição física e mental do

seu personagem. O primeiro RD é colocado da seguinte maneira:

RECORTE DISCURSIVO I – Apresentação do personagem

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains “Quando se fala em Sarah Fortune, a cidade toda de Los Angeles lembra de uma mulher que tem uma das maiores fortunas, não apenas em dinheiro, mas também em prestigio e fama. Algumas pessoas falam sobre ela não ter a mesma exposição na mídia que uma Kardashian, ou algum ator de Hollywood; subcelebridades deixam claro o ódio que sentem por ela e soltam piadinhas, como “De que adianta ser famosa e não ter o nome na Calçada da Fama”. Essas e outras

“Apesar de ter um bom desempenho físico, o rapaz não era voltado pura e simplesmente ao combate. Viktor gostava mais de planejar, prever as ações do inimigo e só se movimentar depois de ter certeza de que todas as possibilidades tinham sido analisadas e ter escolhido somente aquela com certeza de sucesso. ” (PRADO, 2016.)

“Meu nome é Derek Chains, um homem alto, moreno escuro, forte e com olhos negros, força sobrenatural por ser vampiro, mas antes também por ser um trabalhador braçal. Tenho cabelos longos com dreads e procuro manter o máximo que puder a minha discrição em relação à sociedade urbana. ” (KAYSER, 2016.)

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inúmeras demonstrações de desgosto e desaprovação em relação a esta personalidade icônica que anda pelas ruas de Beverly Hills não afetam e muito menos alteram o fato de que o poder sobre muitas áreas de uma cidade está nas mãos dessa mulher. ” (TREVISOL, 2016.)

As apresentações se dão em tempos diferentes no decorrer da narrativa. É

possível perceber algumas peculiaridades na forma como o jogador/escritor delimita

o seu personagem. Trevisol, já no primeiro parágrafo, enfatiza o quanto Sarah

Fortune é influente e possuidora de capital, tendo uma vida cheia de holofotes e

inveja, que aparentemente são uma forma de prazer para esta mulher, pois como

está descrito “não afetam e muito menos alteram o fato de que o poder sobre muitas

áreas de uma cidade está nas mãos desta mulher” (TREVISOL, 2016). Ao descrever

apenas a maneira como o personagem é visto pela sociedade e não fisicamente ou

mentalmente, denota-se que o mais importante é o que ela tem e não o que ela seria

como pessoa. E, ainda mais tétrico, é ela apenas querer mostrar isto, pois o que

Sarah passa fora das luzes dos holofotes não tem nenhum glamour ou beleza. Esta

descrição está totalmente de acordo com a escolha do Conceito Excêntrico,

pendendo para o caminho da fama e da superexposição e também pela escolha do

Clã Ventrue, que tem como preceito básico para a entrada, a influência e o poder

que o ser humano possui antes do Abraço, fazendo de Sarah uma escolha perfeita.

Em nenhum momento da narrativa de Viktor Reznov, Prado reserva um

espaço específico para descrevê-lo, tudo a respeito dele é diluído em meio às ações

e atitudes que aparecem no decorrer da narrativa. Não se tem notícia de como

Reznov é fisicamente, como se parece, cor dos olhos, altura e informações. Assim,

sabe-se pelo que foi descrito que ele é fisicamente forte, pois o desempenho no

exército era bom, mas ele não se voltava para isto, queria ter a parte mental e

psicológica mais desenvolvida, tendo uma certa tensão em suas escolhas, pois

visava sempre “ter escolhido somente aquela com certeza de sucesso” (PRADO,

2016). Esta falta de importância à aparência física é uma característica que faz de

Reznov um nosferatu perfeito, pendendo sempre para a parte mais estratégica e

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psicológica, deixando a aparência no último plano das prioridades. O comportamento

perfeccionista reflete exponencialmente na narrativa.

Kayser é o único que descreve diretamente seu personagem fisicamente, pois

Gangrel é o vampiro que se utiliza mais da força física para resolver seus problemas.

Enaltecer sua força física faz dele um homem mais másculo e imponente, o que é o

contrário de seus sentimentos, aspecto em que é apenas um enganado pelo amor

não correspondido. Em sua cabeça, ele utiliza dreads (abreviação de

dreadlocks),uma maneira de ornar o cabelo como se fossem cordas, que são

estilizadas por meio de cera de abelha e parte da cultura rastafári, que prega a paz e

o orgulho da raça em que se nasceu (neste caso a raça negra) e, também, a vida

limpa (significando ter uma dieta sem produtos químicos, plantar o próprio alimento,

curar-se com a força e os medicamentos que a natureza proporciona e,

principalmente, de ter uma conexão maior com a Mãe-Terra). Estas conexões

apenas com o cabelo de Derek já o instauram no clã Gangrel, pelo fato do contato

com a natureza e os animais, fechando também com o Conceito errante escolhido

por Kayser.

O segundo RD tem o tema “Família”, pois, antes do Abraço, há várias

histórias envolvendo as pessoas com que os ainda humanos se relacionavam, tanto

com boas, ruins ou péssimas relações e recordações.

RECORTE DISCURSIVO II – Família

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains PAI – “Apenas dois dias depois do nascimento, o pai de Sarah chegou para conhecê-la pessoalmente. Ficou estampado no semblante do homem o desgosto ao ver que não teria o seu herdeiro, o homem que levaria o legado adiante e seria o próximo braço a comandar as inúmeras empresas da família. ” MÃE – “Havia um pequeno problema que a mãe tentou esconder, pois pressentia que uma grande decepção assolaria o seu futuro. Dizem que mulher tem um sexto sentido aguçado, e no momento em que se descobriu grávida e foi

PAI – “Seu pai, Dmitrii Reznov, era um músico conhecido em toda a região. Tocando em seu violino músicas feitas por compositores patriotas, tornou-se um símbolo de esperança aos seus compatriotas. Suas músicas confortavam aqueles que voltavam das batalhas, abatidos e desanimados, e encorajavam aqueles que estavam partindo rumo à luta. ” MÃE – “[...]Após este horrível incidente, a mãe decidiu proteger o filho, temendo que os assassinos de seu marido voltassem para tentar matar o restante da família” (PRADO, 2016.)

Não menciona ninguém com parentesco familiar na história.

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contar isso para o marido, ele já bradou com todas as forças, ecoando pelas paredes da mansão “Obrigado Senhor! Até que enfim terei o meu herdeiro! O homem que levará meu nome e meu legado!!!”. A mãe teve um sério pressentimento de que seria uma menina e então resolveu dizer que não queria saber o sexo do bebê até o momento de seu nascimento. ” (TREVISOL, 2016.)

Na biografia de Sarah Fortune, há dois familiares que aparecem e se

relacionam com ela, não necessariamente de uma forma boa. O pai dela é um

empresário, dono de uma empresa multinacional denominada Fortune Corporation.

Pode-se notar a indiferença dele pela filha pelo fato de que “Apenas dois dias depois

do nascimento, o pai de Sarah chegou para conhecê-la pessoalmente” (TREVISOL,

2016) e tem um choque ao ver que era uma menina e que não poderia ter o herdeiro

tão sonhado para dar seguimento ao seu legado. A mãe de Sarah aparece diluída na

narrativa, com mais ênfase no início, em que há o relato sobre o conturbado

nascimento da menina. Por um pressentimento, sabia que não estava grávida de um

menino, fazendo de tudo para esconder do pai essa verdade e evitar problemas.

Estas duas pessoas são importantes na vida de Sarah. Mas, a atitude da mãe, que

não tem ações muito presentes durante a narrativa, acentua ainda mais o machismo

patriarcal a que o pai submete as “mulheres que ele tem dentro de casa”. Ambos

não têm nome, mas a presença do pai, tentando sempre inferiorizar a filha, faz dele

um tirano que torna acessível o motivo pelo qual a mãe não aparece muito, ou seja,

ela é tão inferiorizada quanto a filha.

Viktor Reznov também tem como familiares o pai e a mãe, e possui uma

história um pouco trágica em relação à Sarah. O pai de Reznov recebe o nome de

Dmitrii, notadamente de descendência russa, e dedica uma descrição amorosa ao

narrador, deixando-o em uma posição nobre: era músico e “se tornou um símbolo de

esperança aos seus compatriotas. Suas músicas confortavam aqueles que voltavam

das batalhas, abatidos e desanimados, e encorajavam aqueles que estavam

partindo rumo à luta” (PRADO, 2016). Nota-se que o pai teve uma importante função

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na vida de Viktor, não apenas pela presença, mas também no decorrer da vida dele,

sendo o trágico acidente com o paio motivo de toda a evolução pessoal do filho.

Assim como a mãe de Sarah, a de Viktor é diluída dentro da narrativa, porém

aparecendo em situações que necessitam de decisões firmes e de amor

incondicional: a mãe tenta acalmar o filho no velório do pai, toma as decisões para

proteger o filho e o segue, dando-lhe apoio por onde ele for.

Derek Chains não menciona nenhum parentesco relacionado à família, sendo

seu único relacionamento o que mantém sua namorada Mariah, que logo depois o

abandona, deixando-o em um dilema cheio de questionamentos sobre o amor.

Relacionando os três personagens, pode-se notar que a presença da família é algo

individualista, não possuindo um molde, contrariando o tradicionalismo que se põe

em relação à família. A solidão de Derek pode explicitar que é necessário ter alguém

com o laço familiar, não importando se é consanguíneo. Isso pode ser notado

durante a história dele, em que são recorrentes os questionamentos sobre ter

alguém. As duas outras famílias apresentadas são consideradas “tradicionais”,

porém o problema da família de Sarah é o machismo patriarcal imposto às mulheres

da família. O pai não as deixa ter voz nem vez no mundo que, para ele, é direito

apenas de homens. Já na família de Reznov, não havia problemas em relação ao

relacionamento entre eles, mas um trágico assassinato termina com o núcleo

familiar, implicando mudanças trágicas na vida de todos.

Estes discursos são intrínsecos à sociedade desde sempre, pois as vozes

constituintes do sujeito que são manifestadas nos discursos resultam de dois tipos

de esquecimento, que segundo a teoria de Michel Pêcheux, denominam-se o

Esquecimento I e o Esquecimento II. O primeiro faz o sujeito crer que é o criador

absoluto do seu discurso, fazendo-o procurar apagar tudo que possa fazer saber que

o discurso não é dele exclusivamente, sendo um esquecimento de natureza

ideológica, inconsciente. O segundo esquecimento é pré-consciente e é por ele que

o sujeito acredita que tudo que está dizendo é compreensível e claro, sendo igual ao

que ele pensa, livre de ambiguidades, pensando que sempre o interlocutor terá o

mesmo entendimento que ele, sujeito, possui.

Pela ação destes dois esquecimentos, o sujeito não percebe que os demais

têm influência em seu discurso, tanto quanto não sabe e muito menos controla os

efeitos de sentido produzidos pelo seu dizer. Orlandi pontua que

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o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentidos por se inscreverem em formações discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas. Sujeito à falha, ao jogo, ao acaso, e também à regra, ao saber, à necessidade. Assim o homem (se) significa. Se o sentido e o sujeito poderiam ser os mesmos, no entanto, escorregam, derivam para outros sentidos, para outras posições. A deriva, o deslize é o efeito metafórico, a transferência, a palavra que fala com outras (ORLANDI, 2003, p. 53).

Assim, o sujeito ideológico e histórico sempre está inserido em algum

ambiente social, também no tempo histórico, ressalta Pêcheux, designando que “as

palavras, as expressões, as proposições, etc. mudam de sentido segundo as

posições sustentadas por aqueles que empregam” (1997a, p. 160). Esta definição

confirma que mesmo sem os autores destas obras terem passado por nada parecido

com o que foi criado e escrito, em algum momento o esquecimento e tudo que

permeia o discurso entrará em ação. Mesmo que por um segundo qualquer uma

destas tragédias ou desamores familiares e a solidão tenham passado pelo

inconsciente dos jogadores/escritores, foram aflorados para a materialização do

texto narrativo, explicitando um discurso já posto em outros acontecimentos

discursivos. Assim, podemos compreender que o sentido está fortemente

correlacionado com a posição que o sujeito ocupa na cena discursiva e a sua

convergência com as formações discursivas que o constituem, sendo que esta

posição-sujeito “determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1997, 190).

O terceiro RD trata mais especificamente da parte da vida mortal dos

personagens e da maneira com que eles eram colocados no interior desta

sociedade, mostrando suas classes sociais e o quanto isso os afetava.

RECORTE DISCURSIVO III – Ocupação mortal

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains

“[...]Pelo fato de ter guardado muitas economias, conseguiu abrir uma empresa de promoção de eventos, mas sem deixar seu nome à vista, apenas deixou algum de seus amigos trabalhando fisicamente, mas quem estava no comando era ela. Sarah fez isso mais para mostrar ao seu pai que seria capaz de administrar um negócio e fazer o dinheiro aumentar exponencialmente.

“O rapaz explicou ao padrinho que gostava muito da Itália, e queria defendê-la como se fosse sua terra natal, dentre outros motivos. O gentil senhor então encaminhou toda a papelada, e, com algum dinheiro colocado no bolso do oficial, conseguiu com que Viktor obtivesse cidadania italiana, podendo assim, dois anos mais tarde, alistar-se no exército

“[...] trabalhava como servente de pedreiro, nunca havia me imaginado naquela situação, estando em um trabalho honrado, porém pesado e que te destrói com o tempo. Algo que havia começado como temporário estava se tornando permanente aos poucos. De repente o medo que eu sentia de passar o resto da vida trancado em um escritório me parecia como

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Passou pelo menos dois anos trabalhando escondida e arrecadando milhões com eventos da sua produtora, chamada Shadow’s Glow, e sem que ninguém soubesse da identidade secreta do “dono” que tinha dinheiro para bancar as megaproduções. ” (TREVISOL, 2016.)

daquele país. ” (PRADO, 2016.)

um sonho distante e improvável de acontecer. Minha vida estava difícil e eu cada vez mais comprometido com o destino a que minhas escolhas haviam me levado. ” (KAYSER, 2016.)

Analisando friamente as ocupações dos três personagens, ficam extremamente

claras quais são as classes sociais que geram um certo orgulho e satisfação na hora do

trabalho. Também está evidente o quanto é desejado cada um dos trabalhos e também a

remuneração não só psicológica, mas monetária, que compensa mais.

Não é necessário dizer que o emprego de Sarah Fortune é o mais rentável e

prestigioso em questões sociais. Sarah não necessitava daquele trabalho, pois sua família já

era suficientemente rica para que ela não precisasse nem pensar em problemas financeiros,

mas a motivação, alcançar um sucesso trabalhista, vinha do fato do pai não acreditar no tino

comercial que ela teria: seria inábil para gerir a Fortune Corporation apenas por ser mulher e

indefesa. Para isso, montou uma empresa chamada Shadow’s Glow (traduzindo livremente

como “O brilho das sombras”) e contratou pessoas para que seu nome não aparecesse na

mídia. O nome da empresa tem um ar místico e ao mesmo tempo misterioso, pois se trata

de uma empresa de produção de eventos e campanhas de marketing, e tudo o que uma

empresa deste ramo quer é “sombra”, mas ao mesmo tempo vem a palavra “brilho”, que

compõe um paradoxo impossível em relações da física, pois sombras não possuem brilho.

Pode-se inferir que a empresa fará o impossível para que o sucesso do que foi contratado

seja completamente alcançado. Assim como Sarah sempre fez de tudo para tentar agradar

e impressionar o pai, com a empresa não seria diferente. A escolha do conceito Socialite se

torna extremamente pontual para que esta profissão seja completamente relevante para a

interpretação do personagem.

Viktor Reznov tem um emprego que em vários lugares do mundo é reconhecido

como prestigioso e honrado, pois ser militar de alto escalão é algo importante para o país

em que ele reside. Nos países em que Reznov morou, tanto na Rússia, na Itália e nos

Estados Unidos, o poder militar é muito ovacionado e importante, sendo que ele morou e

atualmente mora nos países com a maior estrutura bélica do planeta. Em questão social,

Reznov pertence à classe média e por ter o poder de seu cargo, ainda assim é alguém

importante socialmente, tendo acesso a informações preciosas em suas missões. O fato de

querer defender a Itália como sua terra natal deve-se ao motivo de que neste país ele foi

bem acolhido e nada de ruim aconteceu com ele e sua mãe, trazendo um sentimento de

segurança e apoio relacionado com o país. O sentido de justiça, a paixão pela estratégia e

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pelo lado mais mental do exército, que anda junto com a personalidade de Reznov,

justificam fielmente o Conceito de Soldado escolhido pelo jogador.

A vida de Derek é a mais difícil dos três personagens. Ele pertence à classe baixa e

para se sustentar necessita de um trabalho braçal extremo, como servente de pedreiro. Ele

entra em um paradigma entre o que ele é atualmente na vida e o que teria de passar para

chegar a um resultado melhor do que tinha. Ele não gostava de ser servente de pedreiro,

apesar de ter a noção de que era um trabalho honesto e honrado, sabia que era “pesado e

que te destrói com o tempo” (KAYSER, 2016), e no entendimento dele seria apenas uma

coisa temporária, mas o pior é que estava se tornando permanente. O cansaço físico que

atormentava Derek o fez até pensar que o pior pesadelo que tinha, ficar trancado em um

escritório trabalhando, já soava como um sonho distante e impossível de acontecer.

Também deixa uma lacuna sobre o que ele fez antes disto para ter de ser pedreiro, dizendo

que “Minha vida estava difícil e cada vez mais comprometido ao destino que minhas

escolhas haviam me levado” (KAYSER, 2016). Porém, em nenhum momento menciona

quais foram estas escolhas que o fizeram estar nesta situação, deplorável em parte, de

trabalhar muito e ganhar pouco.

Destes três personagens é possível notar as condições de produção que determinam

fundamentalmente os sujeitos discursivos e a posição que eles ocupam, mostrando as

relações de força, que se referem a intervenção do lugar social ocupado pelo sujeito, espaço

em que acontece a interação discursiva e se estabelecem as relações de sentido, que

demonstram o fato de que os processos discursivos estão correlacionados. Pelo mecanismo

de antecipação, todo discurso produzido sofre a ação de que o sujeito falante coloca-se no

lugar do interlocutor e antecipa os sentidos das palavras.

Para efeitos deste trabalho, mesmo que os jogadores/escritores não tivessem a

intenção de demonstrar o que se passa durante a vida dos personagens, o

entendimento estará de acordo com a recepção que o mestre terá da narrativa,

assim como de quem faz a análise destes textos. A vivência de cada um terá um

papel importantíssimo na produção do sentido e a maneira com que esta conexão

física ou psicológica será mantida entre o jogador e o mestre no seguir da sessão de

RPG, pois o Mestre terá de entender o que o jogador quis enunciar e assim

ambientar o que ele terá de ver e fazer no momento da interação com os outros

personagens. Algumas nuances que o jogador imaginou para seu personagem

ficarão de fora, ou serão interpretadas com mais ou menos intensidade do que ele

pretendia, justamente pelos sentidos que o discurso provoca no momento de

interação discursiva entre interlocutores.

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As classes sociais estão completamente explicitadas nestes RDs, colocadas

em uma forma que nos leva à percepção de que quanto mais alta a classe social,

mais dinheiro se possui e menos trabalho se tem. Vendo o emprego de Sarah e o

colocando em paralelo com o de Viktor e Derek, nota-se uma linha tênue que tem

como ligação apenas o trabalho, mas igualmente uma divergência infinita entre

como se efetuam estes afazeres. Sarah não precisa nem ir trabalhar na sua

empresa, pois tem pessoas trabalhando por ela e tem condições de pagar por isso e

depois receber muito mais do que investiu. Viktor necessita de seu pensamento

apurado para assim conseguir mandar seus comandados e, se obtiver sucesso,

recebe promoções e mais dinheiro para poder viver, enquanto Derek precisa de seu

corpo para trazer o seu próprio sustento, ganhando pouco e sendo infeliz no que faz.

Estabelecendo um comparativo mais tênue entre eles, é explícito o quanto as

classes mais baixas são oprimidas pelas mais altas. Mesmo que inconscientemente

da parte dos da classe alta, este movimento acontece graças a ideologia que

permeia a sociedade e assim faz seu papel. Sarah trabalha pouco e ganha muito,

Viktor trabalha bastante mentalmente e recebe o suficiente para ter uma vida de

classe média e Derek trabalha muito fisicamente e recebe muito pouco, fazendo-o

ficar frustrado e não ter mais ambições na vida.

O RD de número IV está selecionado de acordo com os locais que os

jogadores/escritores delimitaram como o paradeiro de seus personagens, implicando

o desenrolar da história que está sendo vivenciada por eles e tendo um significado

importante para a constituição mental e psicológica, abarcando uma gama de

sentimentos, novas privações, metas e maneiras de se ver o mundo.

RECORTE DISCURSIVO IV – Local (is) de moradia

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains “Quando a família resolveu sair do interior dos EUA e vir para a capital da Califórnia, Los Angeles, [...]para morar em um apartamentinho alugado em um bairro afastado. [...]As empresas começaram a dar certo e a cada vez crescer, fazendo com que cada vez mais o status social da família Fortune crescesse [...]O pai, sempre que mudava de residência ou trocava de

“Com apenas 13 anos, em sua cidade natal, Stalingrado, na URSS, teve uma experiência incomum, que o marcaria para o resto de sua vida. [...]Após este horrível incidente, a mãe decidiu proteger o filho, temendo que os assassinos de seu marido voltassem para tentar matar o restante da família, e, naquele fatídico ano de 1961, eles foram para a Itália. Vagando de cidade

Não coloca referências sobre

alguma espécie de moradia.

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carro [...]”. (TREVISOL, 2016.)

em cidade, chegaram a Treviso. [...]Alguns meses depois, após treinar muito com seu mestre e aprender tudo o que precisaria para poder se virar, [...] Viktor então decidiu retornar também para a Mãe Rússia, voltando para Stalingrado, que passou a se chamar Volgogrado logo depois que ele e sua mãe deixaram o país.”(PRADO, 2016.)

O lugar onde o ser humano se estabelece é conhecido como lar, um local

onde se pode descansar e assim ter um pouco de paz e conforto, algo muito raro na

contemporaneidade, em que o trabalho e as preocupações tomam a maior parte da

vida. Os três personagens têm algo em comum, não descrevem um local específico

para chamar de “casa”.

Sarah tem a descrição dos lugares por onde passou juntamente com sua

família antes de chegar a Los Angeles. O movimento feito por esta família é muito

comum em todos os lugares do mundo, a migração, que é a mudança de local

dentro de um mesmo país. Também se pode dizer que a família Fortune fez o êxodo

rural, que também é a migração das áreas rurais para centros urbanos em busca de

novas condições de vida. No caso desta família, o sucesso aconteceu

gradativamente, de uma mudança para um “apartamentinho alugado em um bairro

afastado” (TREVISOL, 2016) até a mudança para uma mansão que não é descrita

em momento algum da narrativa.

Reznov teve quase a mesma trajetória de mudanças, exceto pelo fato de que

a imigração foi feita, que, diferente de migração, é a troca de país. Os motivos que

fizeram este movimento, no caso de Viktor foram mais severos que os de Sarah,

pelo fato de que praticamente ele e sua mãe tiveram de fugir da Rússia pelo medo

causado pelo trágico falecimento de seu pai. Não há um motivo aparente para terem

ido para a Itália, mas pela frase “e vagando de cidade em cidade chegaram a

Treviso” (PRADO, 2016), deduz-se que não tinham um paradeiro certo, apenas

queriam se sentir seguros em algum lugar. Depois de se tornar vampiro, Reznov se

muda novamente para a Mãe Rússia (PRADO, 2016), como ele mesmo a chama,

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mostrando que mesmo amando a Itália por todas as coisas boas que lá

aconteceram, ele ainda tem uma certa ‘raiz’ no país em que nasceu.

Derek não menciona um lugar específico que possa ser entendido como o

refúgio dele na sociedade em que está inserido. Pelo fato de sempre questionar o

que está sentindo, o porquê das coisas que acontecem na sua vida e levando o

conceito de lar como base, infere-se que Derek não se sente bem em lugar algum

perto da cidade, do barulho, do concreto e principalmente do seu trabalho.

Os três personagens aparentam não ter um lugar de sossego e paz, pois não

é descrito especificamente em nenhum momento da narrativa. Sarah não descreve

seu quarto, ou algo semelhante, trata a casa apenas como “mansão”, podendo ser

assim pelo fato de que sempre foi excluída pelo pai e teve o sofrimento da rejeição o

tempo todo dentro daquela casa luxuosa em que moravam. Reznov também

descreve um pedaço de sua casa sutilmente. Pode-se notar que ele tem um quarto e

seus pais dormem em outro, mas nada mais que isso, não especifica nada além da

cidade de Stalingrado, local da sua residência. E, por fim, Derek, o solitário

trabalhador, que não encontra paz em lugar algum da cidade, sofrendo psicológica e

socialmente por ser apenas um cidadão comum.

O RD de número V, tem por finalidade mostrar o momento em que a história

dos personagens tem uma reviravolta e consequentemente provoca um trauma que

poderá desencadear um novo destino para todos eles.

RECORTE DISCURSIVO V – Trauma

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains “Após o expediente, Sarah passou em um pub para tomar um drink para se preparar para a entrada em casa, que sabia que não seria fácil. Ao adentrar os portões da mansão, Fortune viu que seu pai estava sentado em sua cadeira, na sala, com Thuomas ao seu lado. Uma taça de Bourbon na mão de cada um e um suspeito sorriso de contentamento estava estampado na face dos dois... Algo estava errado e precisava ser descoberto. Sarah pergunta qual o

“Enquanto Viktor estava em seu quarto com sua mãe, seu pai, que estava exausto, já havia pegado no sono novamente e dormia sozinho no quarto do casal. Os trovões não davam trégua, e aproveitando o barulho por eles produzido, um dos soldados alemães conseguiu destrancar a janela e entrar no quarto onde Dmitrii dormia. Silenciosamente o assassino brandiu uma lâmina reluzente e curta, com a qual fez uma carícia macabra na garganta do músico, antes de cortá-la e

“Meu último dia de trabalho como servente de pedreiro, foi como sempre, sem equipamento de proteção, um fato praticamente corriqueiro nas obras em que trabalhei. Estes itens de segurança são quentes e desconfortáveis, às vezes sendo apenas mais um peso para carregarmos, deixando o trabalho ainda mais difícil. No início cheguei a usá-los, mas com o passar do tempo, por nunca ter presenciado nenhum acidente, deixei de lado. Em um dia comum no trabalho subi nos andaimes

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motivo da comemoração e recebe a pior resposta de todas: Thuomas acabava de ser nomeado o CEO da Fortune Corporation, cargo que ela almejava.”(TREVISOL, 2016.)

deixar o pobre homem imóvel sobre a cama, com o sangue manchando os lençóis. No momento em que a mãe de Viktor entrava no quarto, ela conseguiu ver de relance um vulto que saía pela janela, de quem ela conseguiu identificar apenas a faixa vermelha no braço, fazendo com que ela tivesse um pressentimento horrível. Alguns segundos depois do susto, ainda paralisada em pé junto à porta, ela olhou em direção à cama e, ao ver aquela cena, soltou um grito de pavor. Dmitrii! Mas a única resposta que ela teve foram os gritos de Viktor perguntando: Mãe!? O que foi isso? Está tudo bem?” (PRADO, 2016.)

para rebocar as paredes com cimento. Eu e meu colega estávamos no segundo andar, terminando a empreitada daquele dia, e então um pequeno estalo, foi tudo abaixo. Não lembro com muita clareza o que aconteceu após o incidente, acho que foi chamado a ambulância e fomos para o hospital. Meu colega Arnaldo faleceu e eu estava em estado crítico, mesmo que sobrevivesse não voltaria ao normal, pois as sequelas seriam inevitáveis.(KAYSER, 2016.)

Quando se menciona um trauma, não vem outra coisa ao pensamento do que

algo que fez passar medo, pânico, repulsa, reclusão, exclusão ou dor. Pode ser

caracterizado como um trauma físico ou psicológico, e, nos piores casos, ambos. O

físico se define por injúrias no corpo que quebram partes duras, como ossos e

cartilagens; já o psicológico é um dano emocional que ocorre como resultado de

alguma situação, acarretando um comportamento que fará de tudo para não reviver

aquilo que o traumatizou, ou, em casos raros, procurar vingar, acabar ou tentar

reviver para “curar” este problema.

Os dois tipos de traumas são notados nestes três personagens, dois deles

tiveram traumas psicológicos e um teve ambos. O trauma acontece em momentos

diferentes na jornada de cada um, gerando um acontecimento discursivo3 que marca

a história do personagem, mesmo que ficcional. Deve-se levá-lo em conta, eis que,

segundo Foucault, há que se considerá-lo, por sua importância no processo

discursivo - “o enunciado em sua singularidade histórica, determinar suas condições

de existência, fixar limites, estabelecer correlações com outros enunciados a que

3 “Ponto em que um enunciado rompe com a estrutura vigente, instaurando um novo processo. O acontecimento inaugura uma nova forma de dizer, estabelecendo um marco inicial de onde uma nova rede de dizeres possíveis irá imergir” (FERREIRA, 2013, p.9, grifos da autora).

88

pode estar ligado, mostrar que outras formas de enunciados que exclui”

(FOUCAULT, 2008, p. 31).

Trazendo esta definição, Sarah Fortune teve seu trauma em um momento que

ela achou que ia resolver todos os problemas que tinha até então com o pai, já

sendo adulta, mantendo o acontecimento discursivo de uma maneira que apenas um

dos lados envolvidos teve uma ruptura brusca na história, no caso ela, pois o pai

manteve seu pensamento machista e patriarcal.

Ela havia conseguido fazer, através da sua empresa, uma campanha que

levou a Fortune Corporation a ter lucros jamais imaginados e, ao invés de ganhar

alguma felicitação ou, pelo menos, um gesto de gratidão, o pai surta e sai sem dizer

nada. Ao chegar à “mansão”, como ela mesmo chama, o pai se encontra com

Thuomas (o filho do assessor, melhor amigo do pai, que praticamente tomou o lugar

de Sarah na família por ser homem) brindando, pois tinha sido promovido a CEO da

Fortune Corporation. Neste momento Sarah encontra o gatilho para seu trauma,

perdendo a consciência e saindo sem rumo pela cidade. O interessante deste

trauma é que Sarah praticamente encontrará neste trauma uma maneira de fechar

ainda mais seus sentimentos e despertar uma certa doença psicológica, sociopata e

psicopata, que a faz não buscar mais nada a não ser poder e influência. Este

momento da vida dela será mais detalhado no próximo RD, que terá um “gancho”

para o Abraço que ela receberá do Mestre vampiro.

Reznov teve seu trauma de uma maneira muito violenta. Apesar de ele não

transparecer muito durante a narrativa, a lide de sua história deixa claras as marcas

que ele tem em seu âmago "Mesmo agora, sua música ainda me assombra..."

(PRADO, 2016), em referência à profissão de seu pai que era músico e foi

tragicamente assassinado. Esta tragédia marca o acontecimento discursivo histórico

que beira uma versão de ruptura histórica, pelo fato de que, depois deste dia, tudo

que ele tinha de conceito sobre a vida e como seria o futuro foi completamente

mudado. O pai dele, de nome Dmitrii, era músico e por tocar nas recepções e

despedidas dos soldados que rumavam para a guerra, os alemães encontraram nele

um problema para a vitória, mandando um assassino, no meio da noite, terminar

com a vida dele. A parte traumática acontece quando a mãe sai do quarto do filho

que tinha medo de tempestades e, ao entrar no quarto do casal, vê o marido morto e

coberto de sangue, soltando um grito de pavor, acordando a criança que ao chegar

também vê a cena deplorável e inimaginável no caso de se mensurar a dor.

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Deste dia em diante, após as mudanças bruscas que a vida o fez passar,

incluindo mudar de país onde nem a língua local ele compreendia, Reznov voltou

sua vida para vencer todos os alemães que faziam apologias ao nazismo e,

principalmente, descobrir quem tinha sido o assassino que cortou a garganta do seu

pai. O trauma de Viktor teve o gatilho de estar sempre alerta e terminar com tudo

que lembrasse a morte do pai, aqui denominada vingança ou retaliação.

Já Derek, o único dos três que teve traumas físicos severos que

posteriormente acarretaram os psicológicos, vem, como reflexo dos longos anos

traumáticos, trabalhando contra a sua vontade. Descreve que em seu último dia,

estava no andaime, construindo com seu colega Arnaldo, e por falha dos

equipamentos de segurança (não especificando qual das duas opções era a

derradeira neste momento, que poderia ser a falta deles que é relatada na narrativa,

ou a escolha de não usá-los pelo desconforto que provocavam) eles caíram e se

feriram gravemente. Arnaldo não suportou os ferimentos e pelo que se pode notar na

narrativa, Derek também não sobreviveria ou sobreviveria, mas com sequelas

graves. O trauma psicológico que acomete Derek vem pela maneira com que ele

recebeu o Abraço do Mestre vampiro, que será analisado no próximo RD.

A parte que é obrigatória de ser contida na história do RPG é a hora em que o

personagem recebe o Abraço e a procedência de seu Mestre, deixando a

criatividade do jogador/escritor livre para ter o tutor que desejar, dentro dos limites

propostos. O Abraço também deve ser descrito e contextualizado, para que a

história possa continuar posteriormente na parte mais interativa da sessão. Visando

estas comparações, o VI RD tem estes temas como foco.

RECORTE DISCURSIVO VI – O Abraço e o Mestre

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains ABRAÇO - “No momento em que ele terminou de falar, Sarah, sem pestanejar, quebra o pescoço de Thuomas, ouvindo apenas ele dar um grunhido antes da morte. A coisa mais estranha acontece neste momento, o cadáver some num piscar de olhos e Sarah sente uma presença muito intimidadora ao redor e ao olhar para os lados, vê um homem de terno preto vindo em sua

ABRAÇO - “Já fora do quartel, Viktor se encontra entre a vida e a morte, com os batimentos quase imperceptíveis e sem responder aos apelos de seus dois salvadores. Dragovich então, vendo que era a única maneira do rapaz sobreviver, decide que o abraço seria dado ali mesmo, ao lado de fora dos muros do quartel, enquanto lá dentro ainda se ouviam

ABRACO - “[...] Fui salvo não por médicos ou algum evento especial da natureza, mas por uma mulher que... [...]Ela é uma Gangrel, e naquele quarto do hospital ela me salvou, me tornando em vampiro e logo me abandonando...” MESTRE - “O nome dela é Mariah, provavelmente um palmo mais baixa que eu, com os olhos castanho-

90

direção. [...] Ao iniciar a transformação, que quase sempre é feita com receio, ou mesmo sem o conhecimento da vítima, Sarah estava serena, como nenhum outro visto nesta hora derradeira, ela que sempre era a que liderava as situações, apenas obedecia. Seu sangue foi sugado até a linha da morte e as gotas que deram a vida através do sangue mágico do vampiro foi depositado na sua garganta. A transformação que deveria causar pavor pelo medo de morrer, estampava um semblante de satisfação, tanto no vampiro como na nova criatura da noite. ” MESTRE –“O homem se chamava Irvine Crawford, era um vampiro do Clã Ventrue, o mais poderoso e influente de toda a Camarilla. Ao mencionar que Sarah seria a escolhida para manter a linhagem de poderosos que formam esse clã, ao invés de pavor, ela sorriu... Irvine começou a explicar os pontos negativos e mortais de ser um vampiro, Sarah apenas sorria e olhava fundo nos olhos do vampiro. Ao notar esta frieza no coração de Sarah, o vampiro apenas ficou orgulhoso com sua escolha, pois teve certeza que ela será uma Ventrue que honrará o clã. ” (TREVISOL, 2016.)

tiros. Foi ali, um pouco protegidos pelo sobretudo de Dragovich, que Viktor Reznov teve seu sangue praticamente todo sugado por Dragovich, que logo após cortou os próprios punhos com suas unhas pontiagudas e deixou que caíssem algumas gotas de seu próprio sangue na boca de Viktor. Este, por sua vez, permaneceu alguns segundos estático, para logo em seguida dar um longo suspiro, sinalizando que ali se iniciava sua nova vida. Vida? Não. Ali se iniciava a morte de Viktor Reznov como todos o conheciam, e nascia Viktor Reznov, o mais novo nosferatu. ” MESTRE - O pobre rapaz nem desconfiava, mas estava sendo observado por dois vampiros poderosos, o Ventrue Damon Hollopainen, um agente especial de espionagem, e Alexander Dragovich, um nosferatu veterano de guerra, capitão do exército vermelho da URSS na Segunda Guerra Mundial, responsável pela defesa de Stalingrado em 1943 e posteriormente fazendo os alemães retrocederem até Berlim, sendo o exército comandado por Dragovich o primeiro a entrar na capital alemã e hastear a bandeira soviética sobre o parlamento alemão marcando definitivamente a vitória sobre o nazismo.” (PRADO, 2016.)

claros e um cabelo vermelho sangue; ela gosta de filmes animados mesmo que eu, é uma mulher independente e sabe o que quer, não vai ser encontrada assim facilmente”.(KAYSER, 2016, grifos do autor.)

O Abraço é um momento que depende muito da personalidade do Mestre

vampiro que o jogador criará para ele. Também terão as peculiaridades do clã a que

eles pertencerão, pois cada um tem uma certa ideologia por trás, de passar a

Maldição adiante, que pode ser algo mais pensado, desejado e planejado até uma

transformação mais instintiva ou sem motivo algum.

91

Sarah Fortune teve o seu Abraço de uma maneira inesperada, mas ao

mesmo tempo premeditada pelo seu Mestre, pois não foi coincidentemente que ele

apareceu no momento em que ela estava surtada e tinha acabado de matar

Thuomas. O Ventrue Irvine Crawford provavelmente esteve observando-a por muito

tempo e assim soube a hora certa de transmitir a Maldição. Levando-a para um lugar

luxuoso e explicando calmamente o que aconteceria com ela, tendo como única

surpresa de, ao invés de pavor e medo, Sarah (após ter o seu trauma psicológico

deixado por seu pai) gostar e manifestar uma reação que é descrita da seguinte

maneira: “[...]Ao iniciar a transformação, que quase sempre é feita com receio, ou

mesmo sem o conhecimento da vítima, Sarah estava serena, como nenhum outro

visto nesta hora derradeira; ela, que sempre era quem liderava as situações, apenas

obedecia” (TREVISOL, 2016). Ela desenvolve uma personalidade sociopata e

psicopata, não se importando com mais nada além do poder, achando interessante

receber este poder imensurável que é parte do clã Ventrue.

O orgulho do Mestre vampiro é extremo pelo fato de que ela não se importará

de fazer o que for preciso para manter sua influência e certa majestade perante a

cidade de Los Angeles, e agora, com a ajuda dos poderes místicos que o Abraço

transmitiu a ela, isso não teria limites. O Mestre, como de praxe neste clã, dá todos

os ensinamentos necessários sobre leis, restrições e maneiras de sobreviver e a

acompanha, auxiliando-a em todas as necessidades que sejam da competência dele

ajudar.

Reznov recebe o Abraço também de maneira premeditada, pois seu Mestre

Alexander Dragovich já o observava na base militar italiana, apenas sendo o

momento um pouco inusitado e inesperado até para o vampiro. Durante um ataque

surpresa elaborado e posto em prática no meio da noite pelo exército alemão,

Reznov lutava com todas as forças para acabar com todos eles até levar uma

saraivada de balas e ficar entre a vida e a morte, forçando seu Mestre a transformá-

lo ali mesmo, como descrito de maneira sentimental: “Foi ali, um pouco protegidos

pelo sobretudo de Dragovich, que Viktor Reznov teve seu sangue praticamente todo

sugado por Dragovich, que logo após cortou os próprios punhos com suas unhas

pontiagudas e deixou que caíssem algumas gotas de seu próprio sangue na boca de

Viktor.”

A transformação é dolorosa e deixará marcas irreparáveis tanto na aparência

como na personalidade de Reznov. Ele aceita de certa maneira esta nova vida, pois

92

agora terá mais armas contra os alemães, armas que antes não possuía por ser um

mortal. A personalidade dele muda. Ele se torna mais retraído e ainda mais focado

no que teria de fazer para exterminar os alemães. A ligação com o Mestre Dragovich

vem pelo fato dele ser militar também e “[...]o primeiro a entrar na capital alemã e

hastear a bandeira soviética sobre o parlamento alemão, marcando definitivamente a

vitória sobre o nazismo. ” (PRADO, 2016), criando um laço mais forte entre eles. A

determinação de Reznov foi o que chamou a atenção do vampiro e fez com que

quisesse passar adiante seu legado de Nosferatu e assim fazendo-o treinar e se

transformar em um vampiro poderoso assim como o Mestre.

No caso de Derek, tudo é diferente na história, é completamente o oposto dos

outros dois personagens. Após o sério trauma físico e quase encontrar a morte

derradeira, a namorada de Derek, que sem ele saber era uma vampira, aparece no

quarto onde ele estava internado e o transforma para que ele não morresse e o

abandona sem deixar ensinamentos ou algum tipo de conforto para essa nova

jornada que ele estaria passando. O nome dela só é revelado no final da narrativa,

assim como a descrição física do personagem, pois a narrativa de Derek se

fundamenta mais no que ele está sentindo e nos conflitos que atormentam seus

pensamentos do que em descrições. A escolha pelo abandono do personagem no

momento do Abraço é uma decisão do jogador, que abre muitas portas para a

continuação que o Mestre Narrador dará durante a sessão.

O último RD analisado é o fechamento das histórias dos três, agora vampiros

transformados. Em comum há o fato de que todas elas deixam uma lacuna para que

o Mestre Narrador continue e possa colocar a intromissão possível para que tudo

ocorra bem durante a narrativa.

RECORTE DISCURSIVO VII – Mote da nova “vida”

Sarah Fortune Viktor Reznov Derek Chains “Não queria saber de fazer as pazes com o pai e muito menos de ser aceita, agora ela era mais poderosa que nunca. Foi ao velório de Thuomas, que por armação do Clã Ventrue e mais alguns mafiosos de Los Angeles, conseguiram forjar como se ele tivesse se atirado do mirante, cometendo suicídio, e lá chorou as lágrimas mais

“Lá chegando, Reznov tratou de entrar no exército soviético e, por recomendação de seu mestre, fora alocado no setor de inteligência, participando somente de operações noturnas, quando aprendeu muito. Conforme ia progredindo rapidamente, os oficiais superiores viram o crescente potencial daquele jovem e quando menos se

“Encontrarei um dia quem sabe, Mariah, a ordinária que me deixou nesta situação, não tenho pressa, pois tempo pra mim não é um problema atualmente...”(KAYSER, 2016)

93

doces que haviam guardadas no corpo. Agora Sarah Fortune, além de uma empresária de sucesso na produção de eventos e festas, possui um grupo de extorsão e “serviços ilícitos” como sequestros e assassinatos. O Clã Ventrue nunca esteve tão poderoso dentro de uma cidade quanto depois da entrada de Sarah... Assim é a vida da mulher que, depois de ser completamente anulada pela família, possui um império digno de uma rainha, que não veste uma coroa...” (TREVISOL, 2016.)

esperava, Viktor já estava à frente do Exército Vermelho como capitão, comandando seus homens tão bem que chegava a lembrar um maestro regendo uma orquestra. Participando de várias missões sigilosas, Reznov viajou pelo mundo todo. Posteriormente sendo promovido a General por seus atos de bravura, tornou-se chefe do Centro de Inteligência do Exército Soviético. Certo dia, Viktor recebe a informação de que, apesar de ser apenas um rumor, fez seu sangue borbulhar novamente... Tinha uma coisa em mente, embarcaria nesta mesma noite para os Estados Unidos, mais precisamente à cidade de Los Angeles, na Califórnia... “(PRADO, 2016.)

Após todos os traumas, a recepção do Abraço e o primeiro contato com

vampiros, a vida de todos eles muda completamente, não só por fatos físicos, mas

sociais e psicológicos. Todos os sentimentos que possuíam como humanos afloram

neles como vampiros, assim como os cinco sentidos, a nova alimentação, tudo que

precisam respeitar e obedecer perante a Camarilla deixa marcas no comportamento

deles.

Sarah Fortune continua em sua versão sem sentimentos. Pela primeira vez na

vida não está à procura de ser aceita ou de fazer as pazes com o pai. Durante o

velório de Thuomas, que ela mesma matou e por uma armação do clã Ventrue fez

parecer um suicídio, chora de alegria, evidenciando mais um comportamento

resultante de uma patologia social, que teve início no trauma desenvolvido. Depois

de sua primeira vítima, parece, pelo que se depreende da narrativa, que ela criou

uma certa empatia por matar, criando uma empresa fantasma que tinha como

fachada a sua outra empresa de eventos a Shadow’s Glow, que continuava a

funcionar a todo vapor. O final da narrativa mostra a volta por cima que Sarah deu

em seus sentimentos, prostra-se como uma “rainha, que não veste uma coroa”,

94

(TREVISOL, 2016), mas tem nas mãos o poder e a influência sobre uma das

maiores cidades dos Estados Unidos.

Reznov faz o que ele possui de melhor após o Abraço: treina suas habilidades

de vampiro juntamente com as do exército, tudo sob a supervisão de seu Mestre

vampiro. Quando este treinamento acaba, ele se muda para a Rússia novamente e

entra para o exército soviético, voltando às origens, inclusive para Stalingrado, agora

Volgogrado, a cidade em que nasceu e sofreu a sua abrupta mudança. A lacuna que

o jogador/escritor deixa para o Mestre narrador é de que o recebimento de uma

notícia faz Reznov ficar fora de si e apenas pensar em embarcar na mesma hora

para os EUA. O que ele estaria buscando apenas o Mestre Narrador poderia dizer.

Derek continua sem muitos objetivos na vida. Após ser transformado em

vampiro, sai sem rumo para o interior de uma cidade onde tivesse mais contato com

a natureza. Ele encontra uma outra Gangrel, que por solidariedade o ensina sobre o

clã e como ser um vampiro. Ela se apresenta como Rojanda e deixa claro que não

quer criar laços afetivos com Derek, se propondo apenas a procurar Mariah,

namorada de seu novo pupilo, que o transformou em vampiro sem consentimento,

ato que Rojanda considera desprezível.

Derek em sua finalização apenas diz que quer encontrar “a ordinária que me

deixou nesta situação, não tenho pressa, pois tempo pra mim não é um problema

atualmente...” (KAYSER, 2016), assim deixando a lacuna aberta para a continuação

da história posteriormente.

Após todos estes paralelos estabelecidos entre os três vampiros que farão

parte da sessão que tem a crônica denominada “The Blood State”, pode-se ter

noção de como funciona não apenas a sociedade vampírica, mas também como é a

visão de uma sociedade de outro país, neste caso os EUA, vista por

jogadores/escritores que se transportam para aquela realidade, pesquisando sobre

ela e tentando escrever uma biografia do seu personagem. Por coincidência, não

houve nenhum clã repetido e muito menos as histórias, enfatizando a individualidade

do discurso que cada um cria e enuncia. Também não houve nenhum vampiro da

mesma classe social, da mesma raça, da mesma cor, trazendo uma grande

diversidade cultural para as narrativas desenvolvidas. Cada um dos jogadores

colocou no seu discurso o desejo de que fosse único e que desse prazer na hora de

executar esta personificação na hora da sessão interpretativa.

95

3.3 A crônica “The Blood State”: análise dos Recortes Áudio-discursivos

Ao contrário da criação das narrativas e das fichas, que são completamente

premeditadas e pensadas, a partir da hora em que a crônica começa efetivamente,

nada mais é planejado. O Mestre narrador tem em sua mente alguns tópicos que

serão abordados de alguma maneira, sem premeditação ou algum diálogo forçado.

Cada jogador será chamado pelo nome do personagem que ele desenvolveu e terá

a consciência de não está mais no contexto que está acostumado a viver e, graças a

pesquisas prévias e conversas, saberão como agir.

Trazendo a Análise do Discurso para o início da sessão, pode-se fazer a

grande relação de que os enunciados são feitos de maneira consciente e precisa.

Neste caso, forma-se um circuito fechado de destinadores e destinatários, sendo

possível identificar as especificações dos elementos que constituem o discurso na

forma proposta por Pêcheux. Delimitando o significado do esquema, A seria o

“destinado” e B o “destinatário”, R seria o “referente”, (L) o código linguístico comum

entre A e B a seta → seria o contato estabelecido entre A e B e por fim o D com a

sequência verbal emitida de A na direção do B. Segue o esboço traçado por

Pêcheux:

Trazendo para o campo do RPG, o sujeito A seria o jogador/escritor que

direciona sua narrativa para B, sendo o narrador e os outros jogadores, que lê a

narrativa escrita e ouve as ações diretas na mesa de jogo e absorve através do (L),

que, neste caso, é a escrita e a fala em língua portuguesa, assim estabelecendo o

contato → através do D, sendo a sequência verbal emitida tanto graficamente e

foneticamente. Por fim, o R seria o que estaria sendo referido neste todo que

96

compõe o discurso, a crônica que será desenvolvida pelo narrador e os objetivos

que serão alcançados ao longo do tempo.

Para que estas novas interações entre os jogadores saiam do papel das

narrativas e tomem um caráter mais intimista entre eles, há a sessão de RPG, em

que o Mestre narrador conta e ambienta os personagens, atuando como um

narrador onisciente participante, que completa os diálogos e interage com os

jogadores.

Não haveria outra maneira de tornar mais evidente esta interação do que uma

gravação de áudio, pelo fato de que, apenas transcrevendo o que foi gravado, muito

se perderia na interpretação da personificação dos personagens e também sobre a

maneira com que cada um reage institivamente às situações em que são postos à

frente. Os cortes foram feitos para que apenas o objetivo fosse mostrado, mas estes

não retiraram a fluidez da conversa que há durante o jogo, como provocações e

brincadeiras. Pelo jogo estar sendo efetuado em um ambiente de diversão, trata-se

de algo informal, alguns “palavrões” e linguajares não cultos estarão à mostra.

Os Recortes Áudio-discursivos serão tratados pela abreviação de RAD e

foram gravados com a permissão dos jogadores, que formalmente assinaram uma

autorização de que estavam cientes da divulgação dos escritos e dos áudios

confeccionados, especialmente para o desenvolvimento deste trabalho, estando

disponíveis nos anexos desta Dissertação. As análises serão focadas na interação,

na maneira com que o discurso é enunciado por cada um dos jogadores e pelo

Mestre, como é a sociedade vampírica e como os vampiros (cidadãos) se

comportam em relação a ela.

Como mencionado anteriormente, a sessão de RPG não é planejada, e

apenas é guiada por alguns tópicos criados pelo Mestre narrador. Ele necessita

pensar em um lugar para a ambientação das cenas, os personagens que irá

necessitar e assim desenvolver uma personalidade para cada um desses no

momento em que que os jogadores forem interagir com os NPCs (do inglês non-

player character, traduzido livremente como personagem não-jogável) que são todos

os personagens que o Mestre narrador interpretará durante a sessão, pela razão de

ser um narrador onisciente. A planilha com que o mestre trabalhou durante a sessão

também está anexada neste trabalho.

97

3.3.1 Recorte Audio-discursivo I – Ambientação antes da crônica

Duração do áudio: 00:01:42

O primeiro RDA tem como foco principal o modo com que os personagens

irão se conhecer ou não, dependendo de uma conversa entre os jogadores, que

decidem por uma maneira simples que envolve os três personagens. Derek (Kayser)

dá a ideia de que por ele ser servente de pedreiro, estaria em uma construção de

que Reznov (Prado) e Sarah (Trevisol) estariam interessados em comprar alguns

apartamentos. Apesar das brincadeiras sobre a quantidade de posses de cada um,

já se evidencia a classe social que os personagens aparentam ter, nota-se o quanto

o personagem Sarah (Trevisol) gosta de ostentar, ficando claro que queria comprar a

cobertura do prédio e insinuando que os outros dois não teriam dinheiro para

comprar, o que Reznov (Prado) confirma, dizendo que foi olhar, mas não comprou

por falta de dinheiro. Brincam ainda sobre ele se candidatar a síndico para ter

desconto no aluguel. Ao falarem com Derek (Kayser), há uma brincadeira sobre ele

ser servente de pedreiro, que “nem pilota a betoneira” (TREVISOL, 2016),

inferiorizando o trabalho deste personagem.

A personificação dos personagens neste RDA I está muito focada nas

características que foram dadas pela narrativa criada pelos jogadores, Sarah

(Trevisol) é excêntrica e por isso age desta forma com os demais, Reznov (Prado) é

ranzinza e por isso não compra o apartamento, o único que ainda não mostrou sua

natureza foi Derek (Kayser), que é galante. Este conhecimento prévio que é

estabelecido entre os personagens faz do desenrolar da sessão algo mais natural,

pois não sendo assim demoraria muito tempo para que os vampiros interagissem ou

quisessem conversar um com os outros, ainda mais sendo eles de clãs tão

diferentes.

3.3.2 Recorte Áudio-discursivo II – Primeira interação entre os personagens

Duração do áudio: 00:14:25

A entrada na crônica propriamente dita se inicia com o Mestre (Milani)

ambientando a cena, descrevendo que Reznov (Prado) está em uma missão em que

98

o exército de qual ele fazia parte está investigando a ocorrência de um incidente com

de ataque de animais selvagens que membros do exército estavam tentando

encontrar nas redondezas da cidade, já na área rural. Voltando de uma festa, acima

da velocidade permitida, Sarah (Trevisol) é parada na barreira e tem um diálogo

acalorado com Reznov (Prado). Neste discurso pode-se notar a indiferença com que

Sarah (Trevisol) trata o oficial do exército, sempre respirando fundo ou emitindo sons

de descontentamento a cada pergunta ou requisição. Reznov (Prado) pergunta-lhe

para onde ela estava indo. Recebe uma resposta seca de Sarah, “Pra casa”. O

oficial insiste, perguntando “Mas está com muita pressa pra chegar em casa”. A

resposta que recebe é ainda mais ríspida: “Eu tô sempre com pressa”, resposta que

demostra o estilo de vida estadunidense, que tem como mote Time is Money, que

significa tempo é dinheiro. Sarah recebe uma multa e fica muito nervosa, ainda mais

quando sabe que irá ter de ficar parada na barragem.

Viktor (Prado) é avisado pelo Mestre Narrador (Milani) que terá de fazer um

teste de Prontidão para saber se será capaz de notar algo diferente ao redor de

onde estão. Obtendo o sucesso no jogo dos dados, Reznov ouve um barulho de

animal vindo do mato e manda todos os militares ficarem em alerta. O que ninguém

sabia era que Derek (Kayser) estava se comunicando com os coiotes e lobos para

que eles saíssem desta região para não serem pegos, pois ele vivia em meio a

esses animais para ter companhia. Viktor (Prado) toma as medidas adequadas para

manter a segurança de todos e pede a Sarah que fique dentro do carro. É

requisitado de Derek (Kayser) um teste de Percepção. Com as habilidades extras

que tem, o resultado é de possui pouca dificuldade de percepção, obtendo então

sucesso absoluto. Reconhecendo à distância Sarah e Reznov, começa a

aproximação.

Derek (Kayser) caminha em direção à estrada e recebe um aviso amigável

dos companheiros de jogo que ele pode ser alvejado por tiros. Ao comando de Viktor

(Prado), os militares apontam lanternas para a direção de Derek (Kayser), que se

identifica como o homem que apresentou o apartamento. Depois de ser revistado, é

interrogado sobre o que fazia em um lugar tão distante, respondendo que estava

caçando coiotes, para poder se esquivar de perguntas, mas o oficial não vê armas,

levando Derek (Kayser) a improvisar dizendo que caça com armadilhas manuais e

dá uma pequena aula sobre os coiotes.

99

Ao observar que estavam conversando, Sarah (Trevisol) interrompe a

conversa e pergunta debochadamente se pode ir embora. Neste mesmo momento é

reconhecida por Derek (Kayser), que tenta trocar algumas palavras com ela, agora

sim colocando em prática a sua natureza galante, mas recebe hostilidade em troca.

Sarah (Trevisol) continua tentando ir embora, agora sendo indelicada com o oficial e

tentando de qualquer maneira convencê-lo de que ela necessita sair dali, colocando

muito em evidência seu Comportamento Diretor, recebendo não como resposta pelo

fato de que o animal ainda não havida sido capturado.

Derek (Kayser) se intromete e diz que o coiote já tinha sido capturado e

comido, causando espanto em todos, mas Reznov (Prado) não está convencido,

pois ouviu barulhos vindos daquele lugar e não tinha confiança no que Derek

(Kayser) estava dizendo. Derek (Kayser) confunde Reznov (Prado), dizendo que era

ele fazendo o chamado aos coiotes.

Sarah (Trevisol) novamente desafia o oficial e sai do carro para fumar,

fazendo com que Derek (Kayser) tente novamente interagir, recebendo mais

respostas negativas. Viktor (Prado) se decide, convencido pelo que Derek (Kayser)

disse, e liga para os oficiais para efetuar a liberação da via, recebendo sinal positivo.

Neste recorte é possível notar o encontro dos três personagens agindo da

forma como foram descritos. Sarah não dá atenção a nada e pensa que pode burlar

a lei ou convencer qualquer pessoa a fazer o que ela quer. Reznov tenta a qualquer

custo que a lei seja cumprida e só age depois de ter certeza absoluta sobre aquilo

com que está prestes a concordar, e Derek (Kayser) tenta pela sua natureza e

comportamento interagir, na maioria das vezes ganha um não como resposta, às

vezes percebe até uma repulsa pela parte de Sarah, por ele ser pedreiro e ela

lembrar deste fato.

3.3.3 Recorte Áudio-discursivo III – O encontro com o Príncipe

Duração do áudio: 00:15:17

Este recorte já inicia com o Mestre narrador (Milani) pedindo para que todos

façam um teste de coragem. A dificuldade é a máxima possível nos dados, que é

dez. Sarah e Reznov fracassam no teste e Derek obtém um sucesso. Mestre

Narrador (Milani) descreve a cena em que todos os humanos caem no chão como se

100

estivessem em um sono profundo, e os vampiros Sarah e Viktor se curvam e Derek

fica em pé, sentindo-se pressionado a se ajoelhar.

Ao olharem para o lado de onde vinha a força, veem um vampiro poderoso

que diz “Me acompanhem” e, após um teste de autocontrole pedido pelo Mestre

Narrador (Milani), em que todos falham, faz com que acompanhem o vampiro de

carona em seu carro até um hotel velho por fora, mas completamente luxuoso por

dentro. O vampiro que os levou até lá chama a todos de palhaços e pergunta “o que

foi este espetáculo que eu vi na autoestrada? ” (Milani). Nesse momento, todos

ficam sem entender nada e ele explica que foi a exposição causada pela barreira, e

a caça aos animais poderia ter quebrado a Máscara. O Vampiro enfatiza que “Vocês

são vampiros, vocês não são da ralé! ”, denotando um certo desprezo pela raça

humana, e mesmo com todos os personagens tentando se justificar, o vampiro

apenas manda o silêncio imperar e não escuta ninguém.

O Mestre (Milani) revela que este vampiro é um justiçar, que já foi explanado

anteriormente o tamanho do poder destes escalões dentro da Camarilla. Antes dele

se retirar, com uma voz serena diz: - “O julgamento de vocês será em breve”,

causando um alvoroço entre os personagens que até então não entendiam o motivo

de estarem nesta posição. Quando o retorno do justiçar acontece, o Príncipe da

Camarilla vem junto e veste roupas antigas da época vitoriana, demonstrando que

tem muitos anos como vampiro, veste uma coroa e tem uma voz esganiçada. Ele se

dirige aos personagens perguntando “Vocês pensam que são donos do próprio

nariz? Vocês acham que estão nesta sociedade sem ninguém? ” e, para intimidar

todos da sala, utiliza um dos níveis do poder: - “Você não tem noção do meu

poder!”, inserindo memórias terríveis na mente das pessoas presentes. Ele repete,

enfatizando: - “Vocês estão agindo muito errado e eu não vou tolerar isso na minha

região. O que vai acontecer a partir de agora? Vocês terão de cumprir uma punição,

e como eu sou um príncipe benevolente e não vou decapitar vocês três, eu vou pedir

uma missão.” Este príncipe pede uma missão difícil e implanta em suas memórias a

imagem do alvo que será buscado pelo poder da Demência (o clã do príncipe é

denominado Malkavian), que ele acha que é um espião do Sabá (seita contrária a

Camarilla). Ele mostra com ênfase uma cicatriz do lado esquerdo do rosto do alvo e

requer que tragam-no morto ou vivo, ele está sendo caçado por tentar fazer os

vampiros da Camarilla se tornarem “rebeldes”.

101

Derek (Kayser) recebe uma lavagem cerebral com todas as informações

possíveis sobre a Camarilla e os deveres do vampiro. Após um teste de vigor, que

dura pouco tempo, o Príncipe instala essas doutrinas na mente sem o consentimento

de Derek. O Príncipe dispensa todos e a presença do justiçar se desfaz, os

personagens ganham carona para o lugar onde foram pegos. Sarah vai embora sem

pestanejar, Reznov retira a barreira e se preocupa com as pessoas que também

ficaram sob o efeito do vampiro e Derek (Kayser) pensa sobre o que viu e recebeu

de informação, chegando à conclusão de que “as regras dos seres da noite são

regras que beneficiam apenas o príncipe”.

Esta ação, em que o Príncipe injeta sem consentimento informações na

cabeça das pessoas, pode ser comparada tecnicamente ao que o capitalismo faz em

relação aos bens de consumo, que são praticamente colocados na vida das pessoas

como necessários e sem os quais não se pode viver, mesmo sem o aval de quem

está recebendo esta informação.

A saída da Camarilla também diz muito sobre o sistema econômico que está

regendo as ações das pessoas. Sarah apenas vai embora com raiva por ter perdido

tempo, Reznov está preocupado pois não estava cumprindo com o que se propôs e

também com as pessoas que lá ficaram sob o poder do justiçar, e Derek, agora que

está com as informações da Camarilla em sua mente, chega à conclusão de que

essas regras só beneficiam os grandes e poderosos, no caso do RPG, o Príncipe e

no mundo real, o Estado.

3.3.4 Recorte Áudio-discursivo IV – Início da missão

Duração do áudio: 00:17:12

No outro dia depois de recuperar a energia dormindo, o primeiro a fazer uma

ação é Reznov (Prado). Ele liga aos superiores para procurar informações sobre o

alvo dado pelo Príncipe. Dragovich, seu mestre, dá um alerta sobre que a missão

dada pelo chefe da Camarilla teria o principal objetivo de matar, mas para ser sem

suspeita, armaram-se estas definições. Ao perguntar sobre o alvo, não há nada de

registros a respeito em nenhum lugar, apenas confirma que é um vampiro muito

poderoso que deve ter sido mandado para investigar algo. Pela experiência,

Dragovich continua aconselhando sobre como agir e a cautela que deverá ser

102

tomada, enquanto Reznov (Prado), ao ser cobrado por avisar os outros parceiros,

diz que “isso vai ser um problema com aqueles dois”, referindo-se a Sarah e Derek.

Derek utiliza seus poderes de Gangrel para recrutar algumas corujas que

poderão procurar pelo alvo e Sarah sai para se alimentar e ao encontrar uma presa

que se adapte à fraqueza do clã Ventrue, leva para o banheiro do bar para efetuar o

ataque. Enquanto ela se alimenta, um teste de Percepção é solicitado obtendo

sucesso, ela vê um bilhete que cai do bolso da vítima de que ela está se

alimentando. Depois que ele sai desnorteado, sem saber o que aconteceu, Sarah

liga para a polícia perguntando por Reznov, que logo atende. Ela pergunta sobre

como irão proceder com a missão e sobre o nome Claire que está escrito no bilhete

e dá o número de telefone para obter informações. Novamente não há nenhum

registro.

Sarah liga para o número e tenta fazer uma encenação sobre algo que possa

ajudar, e nota que o homem que ela mordeu para se alimentar era algum tipo de

amigo da mulher do número do bilhete, pois ela usa palavras ofensivas quando

Sarah diz o nome dele, e desliga no rosto de Sarah. Imediatamente depois desta

ligação, ela liga novamente para Reznov que, depois de um teste de sorte exitoso, já

estava rastreando o sinal de telefone e conseguindo a localização exata de quem

chamara.

Eles saem juntos para procurar Derek, que necessita ir também, para

completar a missão. Encontram-no andando com as corujas, que também possuem

algumas informações sobre o alvo. Os animais falam a ele que avistaram o alvo,

mas ele se transformara em outra pessoa depois de entrar em um beco. Há uma

discussão para saber a qual ponto irão primeiro, se é onde Reznov conseguiu a

localização, ou onde as corujas avistaram o homem. Decidiram-se pelo local

sinalizado pelo rastreio.

É evidente, neste RDA, que nem Sarah e muito menos Reznov gostam de

trabalhar em equipe, e Derek prefere contar com a ajuda dos animais. Esta

individualidade egoísta também é reflexo do regime em que estes vampiros estão,

que novamente é semelhante ao do mundo real, pois cada um que possui alguma

informação tenta de todo modo não dividi-la com os outros, assim como agem com o

capital ou até mesmo com os sentimentos. Reznov quer acreditar mais na tecnologia

de rastreamento, enquanto Derek prefere crer nas corujas e Sarah não tem opinião,

103

apenas quer que tudo se resolva logo, evidenciando a diferença de pensamento

entre os três personagens.

3.3.5 Recorte Áudio-discursivo V – A busca pelo alvo

Duração do áudio: 00:11:23

Este áudio é sobre a luta para encontrar o alvo em meio à cidade, que agrava

a dificuldade a cada pouco pelo fato de que o alvo muda de forma e se esconde nas

sombras. Os três seguem para o centro da cidade. Derek, mesmo se sentindo mal

por estar em meio à cidade, tem a ideia de mandar uns ratos para pesquisar a

região, enquanto Reznov e Sarah observam atentamente ao redor. Derek tenta com

sua grande percepção encontrar alguém. Depois de um teste bem sucedido, ele vê

um homem completamente desnorteado, olhando para os lados, e vai ao encontro

dele.

Ele chama os dois companheiros para averiguarem enquanto ele chega perto

e segura o homem pelo braço. Sarah reconhece que é o moreno de que ela se

alimentou mais cedo, e começa a fazer perguntas, inclusive para Derek que o estava

segurando. O homem gagueja e, após utilizar a disciplina de Manipulação, Sarah

consegue arrancar do homem a informação de que é verdadeiramente amigo de

Claire, a mesma pessoa que desligou o telefone no rosto dela. O homem ainda diz

que ela arrancou o dedo dele, mas ninguém vê cicatriz ou alguma marca. O dedo

apenas sumiu e ele diz ainda que ela ajudaria a colocar os dedos de volta e era por

isso que ele a estava ajudando.

Reznov ignora a conversa e fica tentando encontrar algo suspeito enquanto

Derek novamente procura ajuda de animais. Como está no meio da cidade, apenas

ratos atendem ao seu chamado. Ele envia alguns, mas apenas um deles volta e todo

machucado, dizendo que foram descobertos pela mulher, informando apenas a

direção pela qual ela seguiu.

Derek por ser mais rápido, pelo seu porte físico, anda na frente e vê Claire

batendo no rosto do homem que eles tinham capturado e soltado antes. A mulher

praticamente some numa velocidade impressionante, porém Derek consegue

identificar o rosto dela, comunicando aos demais parceiros. Ao chegar perto do

homem, ele chora desesperado e se pode notar que mais um dedo sumiu da mão

104

dele. Reznov ignora novamente e vai na direção das ruas escuras em que a mulher

se embrenhou.

Neste RDA, o foco está no trabalho em equipe, necessário para que a missão

tenha êxito. Reznov, pela sua natureza ranzinza, não gosta de companheiros nas

suas missões, o que atrapalha um pouco no desenvolvimento das ações. Derek tem

atitudes impensadas, como segurar o homem na rua, que por sorte era alguém que

estava envolvido na narrativa. Sarah só vai junto, sem opinar muito, apenas

consertando os estragos mentais que a vítima sofre, fazendo somente a parte mais

social da busca. Também pode-se enfatizar que Claire é manipuladora e tira

informações importantes de quem ela necessita de ajuda, como, por exemplo, retirar

o dedo do homem apenas com a promessa de que ela o ajudaria a colocar de volta

em troca de obediência.

3.3.6 Recorte Áudio-discursivo VI – O discurso do Príncipe

Duração do áudio: 00:09:31

O RDA será sobre a luta final contra o vampiro espião e o discurso inflamado

do príncipe ao receber o que pediu aos personagens. A ação prosseguiu com os três

vampiros seguindo a mulher pelas ruas escuras. Somente Derek, por ter a visão no

escuro - parte de sua composição vampírica -, vê algo se movimentando e avisa

seus companheiros. Reznov também utiliza suas disciplinas de Clã para ficar

invisível nas sombras e Sarah saca sua arma diante de qualquer imprevisto.

Derek investe com todas as forças para cima do vulto, pois tem certeza de

que é a mulher que estava procurando. O ataque surpresa dá vantagem para Derek

que ativa suas garras de Gangrel e acerta o alvo. A vampira toca no rosto de Derek

e o desfigura como se as mãos dela tivessem o poder de modelar carne. Ao ver isso,

Sarah reconhece que é um Tzimisce (clã de vampiros que tem a habilidade de

moldar carne e ossos), mas não havia mais o que fazer por enquanto com Derek,

pois ele já estava ferido.

Reznov empunha sua pistola e atira assim como Sarah, provocam um dano

pequeno, pois vampiros são praticamente imunes a tiros. Derek acerta uma garra

em cheio nela, deixando-a quase impossibilitada de correr. A batalha continua com

mais tiros e pancadas até a incapacitação do inimigo. Ao não conseguir mais se

105

mover, o vampiro volta à forma original, revelando-se um ser deformado. Eles juntam

o corpo quase morto e o levam para a Camarilla.

Lá encontram o Príncipe, que permite a entrada com o corpo. Ele agradece

ironicamente a missão e os lacaios pegam o corpo quase morto e entram em uma

sala. Esta, ao ser aberta, mostra o horror que está escondido entre as paredes do

luxuoso prédio: há uma sala de tortura com muitas pessoas presas lá dentro.

O discurso do Príncipe já inicia dizendo que era apenas o início da missão

esta parte que eles cumpriram, sendo a próxima a infiltração no Sabá, que tinha uma

sede em Nova York. Ele debocha, perguntando se os personagens haviam pensado

que seria somente aquilo ali, e inicia um discurso opressor e ditatorial sobre poder

“Aqui nós é que mandamos, vocês vão fazer exatamente o que eu pedir, isto é

apenas o início... Assim que funciona e é assim que vai sempre funcionar... Vocês

acham que têm poder, que vocês têm dinheiro, mas o que NÓS temos em poder,

influência e dinheiro vai muito além da capacidade mental de vocês... Podem se

retirar...” (Milani).

Ao observar ou justificar por que ainda permanecia na sala, ele esboçava um

sorriso de canto com um ar de deboche. Sarah reclama que queria viver a vida dela

e não apenas ficar obedecendo ordens. O Mestre Narrador (Milani) completa

dizendo que “o que era para ser um sistema de justiça e onde cada um conquistaria

o seu próprio espaço na sociedade dos vampiros, acabou se tornando um lugar de

um maníaco por poder, um ser ensandecido, com mania de grandeza. ‘Só porque

tem mais poder que vocês ele abusa dos poderes para dominar outras pessoas e

fechar o cerco ao redor dos mais novos como vocês para que fizessem o que ele

quisesse’. ”

Esta decepção dos três personagens em relação à obrigação de sempre ter

algo ou alguém para obedecer e prazos a cumprir se torna uma realidade a cada dia

em que todos os seres humanos necessitam de dinheiro para realizarem

praticamente todas as funções que são necessárias para se viver, desde a

alimentação até os cuidados com a saúde. Este príncipe é a personificação do

Estado que é regido pelo capitalismo sem freio, fazendo com que o Príncipe apenas

fosse mais cínico e direto a respeito de suas reais vontades e objetivos com as

pessoas, o que não acontece no mundo real. O Estado real sempre tentará esconder

e mascarar o real motivo de tanta atenção sobre alguns fatos específicos, que com

um pouco de criticidade se notará ser a mesma ideologia do Príncipe louco.

106

CONCLUSÃO

Ao findar as análises, enfatizando novamente que este trabalho teve um

cunho pessoal na escolha final do corpus para a elaboração desta Dissertação,

reitera-se que se buscou, além de um fazer prazeroso, pesquisar algo que fosse ao

mesmo tempo pertinente e inovador no campo dos estudos da Literatura

Comparada. Escolheu-se o RPG pela infinidade de temas que poderiam ser

desenvolvidos e, como já é feito na área da Educação, pela possibilidade de

perscrutar estes novos horizontes comparatistas também em Letras.

Desde o princípio foi claro que a Análise do Discurso de linha francesa seria o

amparo teórico, mediante estudos da teoria de Michel Pêcheux e de reflexões sobre

ideologia baseadas nos estudos de Althusser, por entender-se que se constituiriam

em um embasamento adequado para tratar sobre um corpus que necessitava ser

abordado sob aspectos que remetem a várias áreas, desde a linguística e ideologia

até as nuances de subjetividade com que se constituíram os sujeitos-personagens

das narrativas.

Ao tratar sobre vampiros que não têm o estereótipo tradicional mostrado em

quase todas as obras desde Bram Stoker, o trabalho recebeu um “choque” quando

se analisou o livro base, Vampiro: A máscara, pois conduziu à percepção de que

tudo o que já se viu e estudou sobre este tema da literatura necessita ser “quebrado”

e revisto.

A inovação propriamente dita se fez presente mediante a adoção da

ideiaderradeira, de utilizar para a pesquisa material exclusivo, feito para uma sessão

de RPG, jogo que até há poucos meses não passava de diversão, adquirindo

importância a iniciativa não somente pela narrativa escrita, mas também pela

interação intelectual, mais que social, que o jogo proporciona. Ao se pensar sobre o

que seria trabalhado, surgiu notoriamente um tema que está intrínseco no cotidiano

de todos, qual seja uma crítica ácida à sociedade contemporânea que, no mesmo

estilo da sociedade dos vampiros retratados nesta obra, vive à sombra de um

sistema opressor que, através do medo velado que provoca nos cidadãos, de não

poderem satisfazer a inúmeras de suas necessidades primordiais para subsistência

própria e de suas famílias, transforma-se de algo somente ameaçador para algo vital

sem que as pessoas percebam.

107

Ao criarem os seus personagens, os jogadores entram em um mundo com o

qual não estão familiarizados, inserem discursos que não fazem parte de sua

experiência existencial, nem de suas convicções ideológicas e tentam viver por

algumas horas como outra pessoa. Esta criação da dupla identidade também foi

explorada neste trabalho pelo fato de ser um discurso completamente diferente do

usual a que o criador literário está acostumado.

A Análise do Discurso, com apoio suplementar nas teorias de Santaella sobre

os gêneros híbridos, permeou o trabalho inteiro com seus três pilares fundamentais,

a linguística, a psicanálise e o materialismo histórico, sustentando-se assim a

pesquisa que foi dividida em três capítulos. O primeiro, denominado “Primeiros

aportes para o estudo do RPG”, serviu de base para a contextualização do RPG

como corpus de pesquisa. Todas as informações necessárias para o entendimento

sobre como funciona este jogo, que é uma mistura de narração, interpretação,

escrita, teatro e muitas outras formas, encontram o limite na criatividade do grupo

que está jogando. A inserção do tema na Literatura Gótica também foi abordada,

juntamente com uma explanação sobre o estereótipo do vampiro que aparece nas

televisões e livros. A criação das fichas foi completamente desconstruída para que

fosse de entendimento geral como se edifica um personagem dotado de

complexidade psicológica. A ambientação do jogo e a escolha da cidade de Los

Angeles, na Califórnia, Estados Unidos, também foi descrita, juntamente com

informações básicas sobre o Capitalismo como sistema econômico vigente naquele

país, consultadas em apontamentos de Fernand Braudel (1987).

O Capítulo dois, chamado “Os vampiros ‘diferentes’ permeados pela

ideologia”, inicia-se com uma breve reflexão sobre as teorias sobre Ideologia

materialista de Althusser, a partir de sua obra sobre aparelhos ideológicos do

estado. Neste Capítulo, colocam-se especificamente as diferenças que são extremas

em relação aos outros vampiros conhecidos, desde a alimentação, aparência,

poderes, mundo que habitam, maneira como são transformados em crianças da

noite, todos eles itens abordados correlacionadamente com o sistema econômico

vigente no mundo contemporâneo.

O Capítulo terceiro e último – “Análise do discurso em contato com o vampiro:

dos recortes discursivos e Áudio-discursivos” - se vale das apresentações das

narrativas criadas pelos jogadores Bibiane Trevisol, que criou uma vampira Ventrue

chamada Sarah Fortune, Cassiano Prado, criador do Nosferatu Viktor Reznov, e

108

também Christian Kayser, autor do Gangrel Derek Chains. Cada peculiaridade

destes vampiros foi explicitada neste Capítulo, para que, ao se executarem as

análises dos Recortes Discursivos, nada fosse deixado com a sombra da dúvida. No

total, foram analisados 07 (sete) recortes retirados das narrativas originais dos

jogadores/escritores, buscando-se referências e divergências no discurso que era

apresentado, tanto na maneira como era escrito como da significância de cada um

deles.

Também no terceiro Capítulo foram analisados 06 (seis) Recortes Áudio-

discursivos que continham a sessão de RPG gravada, mostrando toda a ação e

interpretação dos personagens, deixando a análise com o foco na sociedade em que

foram inseridos e a maneira com que cada um trata o outro, tendo em mente que os

personagens são completamente diferentes não apenas na aparência, mas

ideologicamente.

Ao pensar e refletir sobre tudo que foi escrito, pode-se ter a certeza de que “o

discurso não é apenas transmissão de informação, mas efeito de sentido entre

interlocutores e a análise de discurso é a análise desses efeitos de sentido”

(ORLANDI, 2003, p. 115). Este trabalho, na sua totalidade, está servindo como

prova para isso, desde que uma pequena jogatina entre amigos teceu uma crítica

severa ao Capitalismo que manipula e veste a mesma “máscara” que a Camarilla

dos vampiros, para abusar e ter o que necessita para conquistar o poder e a

soberania sobre tudo e todos.

Sabe-se também que a ideologia, mesmo que se relute em aceitá-la, de todas

as formas sempre estará presente e atuante em qualquer sociedade. Independente

do que estiver sendo doutrinado ostensiva ou subliminarmente, será inferido que

“como todas as evidencias, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra

designe uma coisa, ou possua um significado, esta evidencia de que vocês e eu

somos sujeitos, e que isso não constitua um problema, é um efeito ideológico, o

efeito ideológico elementar” (ALTHUSSER, 1983, p. 48), que pode ser notado em

uma obra que provavelmente não teria este propósito se lida com olhos rasos e

inocentes.

Percebeu-se, finalmente, durante o andamento das análises, que os sentidos

que estão intrínsecos no texto são manifestados pela organização interna dos

discursos que são enunciados e materializados. A leitura, a interpretação e interação

com um texto, seja ele gráfico ou fonográfico, devem ser feitas considerando-se a

109

inclusão destes em uma ordem de funcionamento fechada, pois seus sentidos nunca

são evidentes. As primeiras noções que são vistas em um enunciado não são

suficientes para um analista do discurso que necessita de um aprofundamento

interpretativo que leve ao âmago deste mesmo discurso, indo buscar pistas

necessárias a um novo mote que já estava ali, mas que, com os esquecimentos e

reviravoltas históricas, foi “apagado”.

110

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112

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113

ANEXOS

114

ANEXO 1

Roteiro para sessão de Vampiro: a Máscara

Mestre narrador: Simão Cireneu Milani

- Quantidade de jogadores: 03

- Clãs envolvidos: Ventrue, Nosferatu e Gangrel

- Ambientação: Los Angeles, Califórnia, EUA.

- Crônica: The Bloddy State

Tópicos para a trama:

-Nesta sessão o foco da narrativa deverá ser o poder, corrupção e capitalismo

inserido na comunidade vampiresca de (cidade).

- Os jogadores precisam se conhecer de alguma maneira, mesmo que eles já

houvessem se encontrado antes ou acabaram se apresentando durante o jogo.

Algum tipo de desavença seria interessante para a trama. Já parentescos serão

descartados, pois isso torna a relação entre dois personagens muito pessoais e

exclui os demais.

- A primeira cena deverá incluir simultaneamente todos os personagens. Haverá

algum tipo de empecilho para eles. Um Justicar deverá aparecer e levar os

personagens para que sejam apresentados ao Príncipe da Camarilla da cidade. O

Príncipe pertencerá ao clã dos Malkavianos.

- O Príncipe diz que eles quebraram alguma regra e os manda para uma missão

suicida, como forma de pagar pelos seus crimes e para que eles não sejam mortos.

Favores a príncipes corruptos é uma espécie de moeda para que sempre

mantenham os vampiros vinculados à Camarilla de alguma forma. Quanto mais

favores, mais o vampiro está próximo a ter mais notoriedade na cidade onde vive.

- A missão consiste em capturar/matar um espião do Sabá, que está muito além dos

poderes dos três vampiros, sendo praticamente um missão suicida mandada pelo

príncipe, pois ele tem certeza que eles irão morrer sem sucesso no decorrer dos

fatos.

ANEXO 2

115

Sarah Fortune, o poder tem nome

Ler ao som de Dead Lover’s Lane - HIM

By Bibiane Trevisol

Quando se fala em Sarah Fortune, a cidade toda de Los Angeles lembra de

uma mulher que tem uma das maiores fortunas, não apenas em dinheiro, mas

também em prestigio e fama e, claro, dona dos cabelos e olhos escuros mais

marcantes que passam por aquelas ruas. Algumas pessoas falam sobre ela não ter

a mesma exposição na mídia que uma Kardashian ou algum ator de Hollywood;

subcelebridades deixam claro o ódio que sentem por ela e soltam piadinhas como

“De que adianta ser famosa e não ter o nome na Calçada da Fama”. Essas e outras

inúmeras demonstrações de desgosto e desaprovação em relação a esta

personalidade icônica que anda pelas ruas de Beverly Hills não afetam e muito

menos alteram o fato de que o poder sobre muitas áreas de uma cidade estão nas

mãos dessa mulher.

Quando nasceu, no dia 14 de novembro de 1985, seu pai não estava

presente, pelo fato de ser um empresário muito ocupado na direção de suas

inúmeras corporações, o hospital estava cheio de paparazzis para fotografar o

primogênito da Família Fortune, uma equipe descomunal de médicos estava de

plantão para que nada de mal acontecesse com o bebê... Um nascimento esperado

por todos, mas, ao mesmo tempo, conturbado, tirando o cunho particular e sublime

que deve ser primordial em um parto.

Quando a mãe foi indo para a sala de parto, ouvia gritos e confusão, pois o

alvoroço era grande para esta chegada esperada. Havia um pequeno problema que

a mãe tentou esconder, pois pressentia que uma grande decepção assolaria o seu

futuro. Dizem que mulher tem um sexto sentido aguçado. No momento em que se

descobriu grávida e foi contar ao marido, ele já bradou com todas as forças, ecoando

pelas paredes da mansão “Obrigado Senhor! Até que enfim terei o meu herdeiro! O

homem que levará meu nome e meu legado!!!”. A mãe teve um sério pressentimento

de que seria uma menina e então resolveu dizer que não queria saber o sexo do

bebê até o momento de seu nascimento.

Anestesia nas costas, luzes que cegam os olhos, profissionais da saúde

vestindo o verde da sala de cirurgia, as falas dos médicos pedindo bisturis,

116

espaçadores... Nada daquilo alabava o sentimento da mãe que estava ávida para

conhecer sua criança... O médico conta até 10 e pergunta se ela está sentindo algo;

com uma resposta negativa, inicia a operação. De lá tira um bebê, que chora como

se soubesse o que lhe espera na vida. Vem com a criatura ainda suja de sangue

para perto do rosto da mãe e diz as palavras que a mãe já esperava “É uma

menina!”. A assessora da mãe que estava junto, assistindo a tudo que acontecia,

interrompe o momento e pergunta “Já posso informar para a imprensa que é uma

menina? A senhora pode me dizer o nome que irão dar pra ela?”. A mãe respira

fundo, retira os olhos da filha e responde com toda a paciência “Sim, você pode

informar” e completa com um ar de orgulho “Informe que a herdeira da Família

Fortune será chamada de Sarah e está completamente saudável e forte”, voltando

os olhos para o rostinho pequeno da filha que acabara de conhecer pessoalmente.

Depois de todos os procedimentos, na volta para o quarto, há uma fila enorme

à porta. São repórteres e fotógrafos querendo entrar para disputar quem seria o

primeiro a publicar uma foto da pequena criança, que mesmo antes de nascer já

possuía uma fama enorme. A mãe teve um surto e espantou todos eles de lá. Não

estava preocupada com a privacidade ou com a intimidade... Só estava preocupada

com o que a filha teria de lidar quando o pai chegasse e tivesse a notícia de que era

uma menina.

Apenas dois dias depois do nascimento, o pai de Sarah chegou para

conhecê-la pessoalmente. Ficou estampado no semblante do homem o desgosto ao

ver que não teria o seu herdeiro, o homem que levaria seu legado adiante e seria o

próximo braço a comandar as inúmeras empresas da família.

Sarah cresceu com o pai desejando um menino. Ele, sempre que podia, fazia

questão de enfatizar que se pudesse ter outro filho, o faria sem pestanejar. Uma das

primeiras lembranças que Sarah tem na sua vida é a de uma briga muito tensa entre

os seus pais: uma discussão em que o problema seria dar o nome Fortune para uma

mulher. Para o pai seria uma vergonha deixar o legado para Sarah, pois na cabeça

do pai, ela jamais conseguiria ter um tino comercial para não levar à falência tudo o

que ele conseguiu com o passar dos anos.

Uma pessoa que cresce em meio à rejeição tem dois caminhos para

percorrer: ou se torna mais forte e hábil para comprovar que é digna de confiança ou

aceita e vive como se fosse ninguém. Obviamente ela escolheu a primeira opção!

Para cada reclamação ou desaprovação do pai, ela fazia alto para reverter e provar-

117

lhe que estava completamente errado. Tudo iniciou quando ele disse que ela não

seria capaz de se cuidar sozinha, pois era uma mulher e se algum dia se tornasse

empresária seria um alvo fácil para ladrões e sequestradores, acrescentando que

“não tinha nem porte físico para se impor perante as pessoas”. No mesmo dia iniciou

um treinamento digno de guerra, fazendo musculação e treinos de artes marciais e

armas brancas, conquistando um corpo invejado pela maioria das mulheres e

desejado por homens (e mulheres, claro). Logo depois, o pai disse que por ser

mulher, mesmo tendo todo o treino que ela possuía, jamais teria força para combater

verdadeiramente quem pudesse lhe fazer mal. Com muita raiva, iniciou um

treinamento intensivo de manejo de armas de fogo e conseguiu provar ao pai que

era boa em sua mira, ganhando o torneio americano de tiro ao alvo em movimento,

sendo até chamada para o time olímpico dos EUA.

As respostas eram sempre negativas e desanimadoras, ela não havia feito

nada de mal, apenas nascido mulher. Após 20 anos de treinos e estudos nas áreas

de contabilidade, marketing e administração de empresas, Sarah resolveu perguntar

se poderia participar dos negócios da família, pois sentia que era uma necessidade e

que por ser filha única, uma hora ou outra os negócios seriam dela. Uma coisa nada

humana foi feita pelo pai de Sarah, e isso terá que ser contado minuciosamente.

Quando a família resolveu sair do interior dos EUA e vir para a capital da

Califórnia, Los Angeles, os tempos eram completamente difíceis e para iniciar os

negócios que hoje em dia valem milhões foi necessário que tudo que a família

possuía em terras e bens fosse vendido, para morar em um pequeno apartamento,

alugado em um bairro afastado. Apenas um homem, que era assessor de negócios e

estava procurando emprego, aceitou ajudar o pai de Sarah a iniciar o emprego,

desde que, quando ele estivesse bem financeiramente, ajudasse a família dele a se

colocar novamente no mercado de trabalho.

As empresas começaram a dar certo e a cada vez crescer, fazendo com que

cada vez mais o status social da família Fortune crescesse, e por consequência o

assessor também. Aquele homem era muito mais do que um empregado do pai de

Sarah, já tinha passado a mais que amigo, era praticamente um membro da família.

O pai, sempre que mudava de residência ou trocava de carro, fazia questão de

financiar ou até mesmo presentear o grande amigo com um novo para ele também,

fazendo com que a relação se tornasse cada vez mais próxima, até o momento em

118

que começaram a se chamar de irmãos. O assessor dizia que o pai de Sarah era o

irmão mais novo dele, e o pai dizia que era o irmão que ele nunca teve.

Por infortúnio, destino, ou apenas mera coincidência, o assessor teve um filho

cinco anos antes do nascimento de Sarah, e por mais inocente que fosse esta

informação, era um menino, chamado Thuomas Smith. Quando Sarah nasceu, ele já

tinha cinco anos de idade e a tratava como uma irmã mais nova, cuidando,

acompanhando e ajudando quando possível. A inocência de duas crianças não

indicava o que aconteceria em um futuro distante.

Ao nascer, Sarah, sendo uma mulher, praticamente perdeu o posto de pessoa

querida do pai, e este posto, sem maldade, ou pela força com que ele queria um

herdeiro, passou para Thuomas. O pai levava o menino do assessor para todos os

lugares que seriam ditos como “coisa de homem”, como pescar, caçar, assistir

corridas automobilísticas, acampar e tudo mais que seria possível de se fazer com

os filhos. Sarah sempre pedia para ir junto, mas ganhava não como resposta, pois,

novamente a resposta não aos seus protestos por ficar em casa se justificava:

“Porque você é uma menina”.

A cartada final para a “troca de filhos” aconteceu quando houve a passagem

do furacão Katrina, em 2005, quando os pais de Thuomas estavam em férias, em

Nova Orleans, e sua mãe sumiu, pois o hotel que estavam foi arrasado pelas águas,

não deixando nem a possibilidade de um ato fúnebre digno. Houve um luto muito

grande na família Fortune e a permanência de Thuomas na vida cotidiana aumentou

vertiginosamente. O assessor, sem a ajuda da esposa, começou a passar por

dificuldades para sustentar a casa e manter o filho estudando. Em uma conversa

com o pai de Sarah, disse que teria de se mudar. Um protesto muito grande por

parte do patrão veio ao ar, fazendo com que o pai de Sarah dissesse que iria pagar

todos os estudos de Thuomas e que não iria deixar de auxiliar o amigo.

Thuomas começou a frequentar os melhores colégios da cidade e assim

estudar justamente o que Sarah estudava, fazendo uma concorrência até então

saudável com a quase-irmã. Tudo estava bem, exceto o carinho e atenção que o pai

dedicava ao filho do assessor.

Retomando a resposta que antes seria dada, mas que necessitou explicações

anteriores, ao pedir para participar dos negócios da família, Sarah recebeu o maior

não de sua vida. Resolveu então partir para uma vida solitária e tentar crescer na

vida por conta própria. Pelo fato de ter guardado muitas economias, conseguiu abrir

119

uma empresa de promoção de eventos, mas sem deixar seu nome à vista, apenas

deixou algum de seus amigos trabalhando nela presencialmente, mas quem estava

no comando era ela.

Sarah fez isso mais para mostrar a seu pai que seria capaz de administrar um

negócio e fazer o dinheiro aumentar exponencialmente. Passou pelo menos dois

anos trabalhando escondida e arrecadando milhões com eventos da sua produtora

chamada Shadow’sGlow, e sem que ninguém soubesse da identidade secreta do

“dono” que tinha dinheiro para bancar as mega produções.

Fora da empresa, Sarah era apenas uma socialite que frequentava as festas

mais desejadas da Califórnia, sempre frequentando os tapetes vermelhos, as áreas

VIPs, acompanhada tanto de homens e mulheres famosas (o que causava mais

furor na mídia, pois ela era bissexual completamente assumida) e estando sempre

em evidência nos lugares que frequentava. Estava sempre na capa dos tabloides de

fofocas sobre celebridades, mas ninguém jamais suspeitava da vida secreta de

proprietária da empresa que organizava e patrocinava quase todas as festas e

eventos que por ela frequentados.

A surpresa maior foi quando uma ligação vinda da Fortune Corporation

encomendava uma produção, que seria a mais cara de todas as produzidas até

aquele momento. Sarah fez questão de enfatizar que aquela seria a maior produção

da empresa e logicamente a que exigiria de todos o maior esforço, pelo simples

motivo de que ela queria mostrar para seu pai que ela conseguia ter sucesso no

mundo dos negócios. Não foi diferente do esperado: clientes de todo o mundo

vieram prestigiar a internacionalização da empresa, praticamente triplicando os

lucros e gerando milhões para a Fortune Corporation.

A recompensa veio quando o Sr. Fortune foi pessoalmente até a sede da

empresa para agradecer pelo maravilhoso trabalho, querendo fechar um contrato

vitalício da corporação com a Shadow’s Glow. Os funcionários encaminharam os

papéis e finalizaram o atendimento, mas surgiu um pedido inesperado: agradecer ao

dono da empresa frente à frente, para poder dizer o quão grato o agora cliente

vitalício estava com os serviços da empresa.

O secretário chamou o ramal da sala de Sarah, perguntando se poderia

passar o cliente para uma conversa pessoal, sendo-lhe concedido. Sr. Fortune, ao

entrar no luxuoso escritório, vendo a filha sentada na mesa extremamente

120

organizada, com uma cadeira imponente, diz uma frase que só comprovava o que

Sarah teve de passar todos esses anos

- Olá Sarah! Nem sabia que você tinha um namorado! Parou com aquelas

frescuras de indecisão, graças a Deus! Você pode chamar ele, pra eu poder

agradecer pelo belíssimo serviço que ele prestou pra mim? ...

Sarah enche seus pulmões de ar e responde com toda aquela vontade de

mostrar o seu valor:

- Pai, esta empresa é minha, fui eu, liderando meus funcionários, que fiz a

nossa empresa triplicar de tamanho e valor. Por meus méritos quis mostrar pro

senhor o quanto estou apta a estar ao teu lado na Fortune Corporation!

O pai apenas tenta dizer que é mentira e é completamente retrucado pelos

funcionários que dizem o que ele não queria ouvir “Sim, a empresa é dela...”. Após

essa descoberta desastrosa, ele apenas sai desabotoando o terno e entra no carro e

some em meio à cidade. Sarah não move um dedo para segurar o pai, pois ela sabia

que o choque seria grande e estava esperando por isso por longos anos, tinha

certeza que tinha conseguido a dolorosa prova para ser aceita como ela mesma era.

Após o expediente, Sarah passou em um pub para tomar um drink e se

preparar para a entrada em casa, que sabia que não seria fácil. Ao adentrar os

portões da mansão Fortune, viu que seu pai estava sentado em sua cadeira na sala,

com Thuomas ao seu lado. Uma taça de Bourbon na mão de cada um e um suspeito

sorriso de contentamento estava estampado na face dos dois... Algo estava errado e

precisava ser descoberto. Sarah pergunta qual o motivo da comemoração e recebe

a pior resposta de todas: Thuomas acabava de ser nomeado o CEO da Fortune

Corporation, cargo que ela almejava.

Neste momento Sarah sai de si e começa a quebrar tudo que vê pela frente,

em um frenesi que necessitou de cinco seguranças para conter a fúria da mulher

que era treinada em várias artes marciais. Após um tempo, para retornar ao centro

da calmaria, ela levanta e sai de casa, sem rumo, apenas com a negação de mais

de 25 anos apenas por ser uma mulher diferente dos padrões que a sociedade era

acostumada a ver.

Thuomas sai atrás de Sarah e avista o carro dela próximo à montanha que

possui o letreiro de Hollywood, em um mirante, apenas olhando a vista majestosa de

uma das cidades mais luxuosas do planeta. Sarah não consegue pensar em mais

nada, apenas em arrumar alguma maneira de acabar com a dor que sente em seu

121

peito. Quando Thuomas chega perto dela, sem um aviso prévio, é instantaneamente

jogado ao chão e imobilizado com um golpe marcial. Sarah pergunta infinitas vezes

o motivo pelo qual o pai dela não tem carinho pela própria filha, deixando Thuomas

cada vez mais nervoso e assim solta a verdade que ele guardava no interior de sua

alma:

- Eu sempre quis esse poder que você tem, e a maneira mais fácil que achei

foi indo ao encontro da fraqueza e da tristeza de seu pai de não ter um filho

homem... Fui o filho que ele não teve e assim hoje conquistei o auge de meu

objetivo! Tomei o seu lugar na vida dele e terei a minha fortuna!

No momento em que ele terminou de falar, Sarah, sem pestanejar, quebra o

pescoço de Thuomas, ouvindo dele apenas um grunhido antes da morte. O mais

estranho acontece neste momento. O cadáver some num piscar de olhos e Sarah

sente uma presença muito intimidadora ao redor de si e, ao olhar para os lados, vê

um homem de terno preto vindo em sua direção.

Ela acorda em um quarto extremamente luxuoso de uma casa, que

aparentemente era antiga, mas muito bem cuidada, com este homem misterioso

sentado olhando diretamente para ela, em pé ao lado da porta. Ela levanta e quer

sair deste lugar, o homem segura o braço dela e ao tentar aplicar o conhecimento

marcial, ela aparece novamente deitada na cama.

O homem começa a contar a história de um vampiro poderoso que conseguia

controlar a mente das pessoas, era amado por todos e possuía o dom da

imortalidade. Apesar da vontade de Sarah de levantar e correr daquele lugar, o seu

corpo a mantinha presa na cama, como se houvesse uma força que dominasse seu

corpo. A história seguia com inúmeros fatos sobre a quantidade de poder que este

vampiro possuía e como era fabulosa a “vida” que ele levava. Neste momento Sarah

percebe que esta ideia era interessante e sentiu a força que a mantinha na cama

desaparecer, e ao contrário do que desejava, não levantou, pediu para ouvir mais.

O homem se chamava Irvine Crawford, era um vampiro do Clã Ventrue, o

mais poderoso e influente de toda a Camarilla. Ao mencionar que Sarah seria a

escolhida para manter a linhagem de poderosos que formam esse clã, ao invés de

pavor, ela sorriu... Irvine começou a explicar os pontos negativos e mortais de ser

um vampiro. Sarah apenas sorria e olhava fundo nos olhos do vampiro. Ao notar

esta frieza no coração de Sarah, o vampiro apenas fica orgulhoso com sua escolha,

pois tem certeza que ela será uma Ventrue que honrará o clã.

122

Ao iniciar a transformação, que quase sempre é feita com receio, ou mesmo

sem o conhecimento da vítima, Sarah estava serena, como nenhum outro visto

nesta hora derradeira, ela que sempre era quem liderava as situações, apenas

obedecia. Seu sangue foi sugado até a linha da morte e as gotas que deram a vida

através do sangue mágico do vampiro foram depositadas na sua garganta. A

transformação que deveria causar-lhe pavor pelo medo de morrer, estampava um

semblante de satisfação, tanto no vampiro como na nova criatura da noite, que

atacou sem pensar duas vezes a mulher que o criador deixou esperando ao lado de

fora para ser a primeira alimentação de Sarah.

Ao olhar nos olhos de Sarah, Irvine viu que aquilo tinha sido a coisa mais

engrandecedora que havia feito em séculos. Havia encontrado um verdadeiro

vampiro, um que abraça o dom das trevas e se sente abençoado por tê-lo. Sarah se

acostumou rápido com a sua nova maneira de viver e assim despertou um lado

sombrio que estava escondido em seu subconsciente.

Não queria saber de fazer as pazes com o pai e muito menos de ser aceita,

agora ela era mais poderosa que nunca. Foi ao velório de Thuomas, que por

armação do Clã Ventrue e mais alguns mafiosos de Los Angeles, conseguiram forjar

como se ele tivesse se atirado do mirante, cometendo suicídio, e lá chorou as

lágrimas mais doces que existiam guardadas no corpo.

Agora Sarah Fortune, além de uma empresária de sucesso na produção de

eventos e festas, possui um grupo de extorsão e “serviços ilícitos” como sequestros

e assassinatos. O Clã Ventrue nunca esteve tão poderoso dentro de uma cidade

quanto depois da entrada de Sarah...

Assim é a vida da mulher que depois de ser completamente anulada pela

família, possui um império digno de uma rainha que não veste uma coroa...

123

ANEXO 3

Viktor Reznov

"Mesmo agora, sua música ainda me assombra..."

By Cassiano Prado

A história tem início quando nasceu, em 1952, o pequeno Viktor Reznov.

Com apenas 13 anos, em sua cidade natal,Stalingrado, na URSS, teve uma

experiência incomum, que o marcaria para o resto de sua vida.

Seu pai, DmitriiReznov, era um músico conhecido em toda a região.

Tocando em seu violino músicas feitas por compositores patriotas, tornou-se um

símbolo de esperança aos seus compatriotas. Suas músicas confortavam aqueles

que voltavam das batalhas, abatidos e desanimados, e encorajavam aqueles que

estavam partindo rumo à luta. Sabendo disso por meio de um espião, os alemães

viram a atitude de Dmitrii como um desafio, uma afronta ao ideal germânico.

Aquilo não poderia continuar! – pensaram os alemães, e tramaram um

plano para acabar com aquele empecilho, que podia parecer inofensivo para a

grande maioria, mas, aos olhos do grande escalão, qualquer forma de oposição

deveria ser reprimida de maneira exemplar, de forma a mostrar não só aos seus

inimigos, mas também aos aliados, que qualquer ato de discordância com os ideais

alemães seria exemplarmente punido.

Foi então que, em uma noite de tempestade, os alemães cercaram a casa

de Dmitrii, com instruções para serem o mais discretos possível. Devido à forte

tempestade, com seus raios incessantes, Viktor tivera pesadelos e fora até o quarto

dos pais para se reconfortar. Lá chegando, foi acalmado gentilmente por eles, e sua

mãe levou-o de volta a seu quarto, ficando lá por alguns instantes até que ele se

refizesse do susto.

Enquanto Viktor estava em seu quarto com sua mãe, seu pai, que estava

exausto, já havia pegado no sono novamente e dormia sozinho no quarto do casal.

Os trovões não davam trégua, e aproveitando o barulho por eles produzido, um dos

soldados alemães conseguiu destrancar a janela e entrar no quarto onde Dmitrii

dormia. Silenciosamente o assassino brandiu uma lâmina reluzente e curta, com a

124

qual fez uma carícia macabra na garganta do músico, antes de cortá-la e deixar o

pobre homem imóvel sobre a cama, com o sangue manchando os lençóis.

No momento em que a mãe de Viktor entrava no quarto, ela consegue ver

de relance um vulto que saía pela janela, de quem ela conseguiu identificar apenas a

faixa vermelha no braço, fazendo com que ela tivesse um pressentimento horrível.

Alguns segundos depois do susto, ainda paralisada em pé junto à porta, ela olhou

em direção à cama e, ao ver aquela cena, soltou um grito de pavor. Dmitrii! Mas a

única resposta que obteve foram os gritos de Viktor perguntando: Mãe!? O que foi

isso? Está tudo bem?

Como não obteve resposta, Viktor correu até o quarto dos pais para ver

se tudo estava bem. Pobre criança. Ao chegar no quarto, viu sua mãe estática junto

à porta, olhando fixamente para dentro do quarto sem dizer uma única palavra. Ele

ainda perguntou o que havia acontecido, mas como não obteve resposta, se

espremeu entre sua mãe e a soleira da porta para conseguir entrar. Quando

finalmente conseguiu, a criança teve a pior experiência da sua vida ao ver seu pai

morto em cima da cama do casal, envolto em lençóis avermelhados por seu próprio

sangue.

O pequeno correu para a cama e começou a chamar por seu pai,

sacudindo o corpo inerte que ali jazia. Neste momento, sua mãe pareceu despertar

do estado de choque em que se encontrava, e correu para junto da cama, tentando

em vão confortar o filho.

Horas mais tarde, depois de se recuperar um pouco e avisar a polícia, a

esposa do falecido Dmitrii estava fazendo os preparativos para o velório, sendo

ajudada por alguns familiares e amigos quando deu por falta de seu filho. Andou

pela casa procurando por ele, e como não teve sucesso, começou a ficar

preocupada. Foi então que ela teve a ideia de procurar no porão. Lá embaixo, em

um canto escuro e úmido estava o pobre Viktor, sentado no chão abraçando seus

joelhos e com a cabeça baixa.

– Não fique assim, meu filho. – disse ela, já chorosa, e acariciou a cabeça

dele. Viktor então levantou seu olhar buscando o rosto da mãe, e perguntou:

– Quem fez isso, mãe?

Ela já não continha as lágrimas, e só conseguiu balbuciar:

– A... le... mão...

125

Com a mãe em prantos a seu lado, Viktor gravou aquela palavra tão fundo

na memória que dificilmente algum dia ele iria esquecê-la. Abaixou novamente a

cabeça, sem deixar cair uma lágrima sequer.

Após este horrível incidente, a mãe decidiu proteger o filho temendo que

os assassinos de seu marido voltassem para tentar matar o restante da família.

Naquele fatídico ano de 1961, eles foram para a Itália, e vagando de cidade em

cidade chegaram a Treviso.

Sem falar praticamente nada da língua local, eles passaram por muitas

dificuldades. Quando o dinheiro que haviam levado consigo acabou, ficaram sem

lugar para morar, vivendo da ajuda de pessoas que passavam e se solidarizavam,

chegando até mesmo a procurar comida entre os restos que os restaurantes da

cidade jogavam no lixo.

Conforme o tempo passava, mãe e filho foram aprendendo a falar italiano

aos poucos. Mas, por mais que se esforçassem, não conseguiam trabalho. Foi então

que numa de suas andanças pela cidade encontraram um senhor que foi muito gentil

com eles, e mandou sua filha, Maharet, oferecer-lhes um pouco de comida. Aquele

senhor era dono de um estabelecimento de renome na cidade, o restaurante Mama

Mia, e era conhecido por seu bom coração.

Mesmo com dificuldades, a mãe de Viktor explicou ao senhor a situação

em que se encontravam e tudo que haviam passado para chegar até ali. O

comerciante se solidarizou com aquela pequena família que tanto sofrera na vida, e

ofereceu um quartinho nos fundos do estabelecimento, antes usado para estocar

alguns produtos, para que mãe e filho pudessem ter onde ficar até conseguirem se

reerguer.

O tempo passa, e a pequena família trabalha cada vez mais, tanto a mãe

lavando roupas para fora e limpando casas de pessoas com maior poder aquisitivo

que o deles, quanto Viktor, já com 16 anos, fazendo diversos pequenos serviços

para vizinhos, às vezes ajudando aquele senhor que tanto os auxiliara nos tempos

difíceis, que de tão feliz ao ver o crescimento do rapaz, acabou se tornando seu

padrinho.

Neste mesmo ano de 1968, mãe e filho finalmente conseguiram juntar

dinheiro suficiente para comprar sua própria casa. Não era a melhor coisa do

mundo, afinal, era uma casa minúscula aos fundos de um terreno, com apenas um

126

quarto e uma sala, com o banheiro na rua, mas estava bem longe daquele tempo em

que eles tiveram de viver nas ruas.

Por mais que estivessem vivendo momentos de paz, Viktor nunca

esqueceu o que aconteceu em Stalingrado, tampouco seu ódio para com os

alemães diminuiu, pelo contrário, ele só aumentava a cada segundo que passava.

Agora já mais velho, Viktor tinha um objetivo em mente: lutar o máximo

que pudesse contra todo e qualquer alemão que cruzasse seu caminho. Mas como

fazer isso sem se tornar um criminoso? Sim, o exército! Sendo um militar ele poderia

lutar contra quantos nazistas quisesse, sem se preocupar com motivos e aparências.

Mas como fazer isso, sendo que estava na Itália e não era um cidadão italiano? Foi

então que mais uma vez seu padrinho estava ali para ajudá-lo.

O rapaz explicou ao padrinho que gostava muito da Itália, e queria

defendê-la como se fosse sua terra natal, dentre outros motivos. O gentil senhor

então encaminhou toda a papelada, e com algum dinheiro colocado no bolso do

oficial, conseguiu com que Viktor obtivesse cidadania italiana, podendo assim, dois

anos mais tarde, alistar-se no exército daquele país.

Assim que completou 18 anos, Viktor se alistou e poucos dias depois

finalmente foi chamado para se apresentar ao quartel da cidade. Lá ele aprendeu

rapidamente como utilizar uma arma de fogo, destacando-se de seus companheiros.

Apesar de ter um bom desempenho físico, o rapaz não era voltado pura e

simplesmente ao combate. Viktor gostava mais de planejar, prever as ações do

inimigo e só se movimentar depois de ter certeza de que todas as possibilidades

tinham sido analisadas e ter escolhido somente aquela com certeza de sucesso.

Seus superiores notaram este dom e passaram a observar com

curiosidade qual seria a próxima façanha daquele jovem dedicado que, em três

meses de treinamento, já apresentava resultados melhores do que a maioria dos

soldados que estavam há dois anos no quartel.

Pouco tempo depois, Viktor começou a notar os olhares apreensivos de

seus superiores, até que, numa noite um pouco fria, ele percebeu uma

movimentação diferente no local onde os oficiais ficavam para observar os soldados

em seus treinamentos.

Havia duas figuras distintas observando-o. Uma delas, apesar de ter visto

poucas vezes, Viktor conseguiu perceber que era o oficial Damon Hollopainen, do

127

alto escalão. A outra pessoa ele não conseguiu reconhecer, mas aquele sobretudo e

aquele ushanka só poderiam ter vindo de um lugar do mundo...

O pobre rapaz nem desconfiava, mas estava sendo observado por dois

vampiros poderosos, o Ventrue Damon Hollopainen, um agente especial de

espionagem, e Alexander Dragovich, um nosferatu veterano de guerra, capitão do

exército vermelho da URSS na Segunda Guerra Mundial, responsável pela defesa

de Stalingrado em 1943 e, posteriormente, fazendo os alemães retrocederem até

Berlim, seno o exército comandado por Dragovich o primeiro a entrar na capital

alemã e hastear a bandeira soviética sobre o parlamento alemão, marcando

definitivamente a vitória sobre o nazismo.

Hollopainen e Dragovich ficaram algum tempo observando aquele rapaz

que se destacava dos outros soldados, fosse por segurar corretamente o fuzil ou

pela determinação e vontade com que ele desempenhava até mesmo a tarefa mais

simples, sem perder a calma e a concentração um momento sequer.

Dragovich estava ali à procura de alguém digno de se tornar seu

discípulo, que fosse capaz de suportar toda a dor e sofrimento que um nosferatu é

obrigado a arcar, e ainda assim continuasse focado em seus objetivos. E aquele

rapaz parecia se encaixar perfeitamente.

Foi então que Damon sugeriu que tivessem uma conversa em separado

com aquele jovem, para ter certeza de seus objetivos e testar sua força de vontade.

Assim sendo, chamaram o jovem com a desculpa que precisavam dele para uma

operação especial, mas que primeiro precisavam conversar em algum lugar fora do

quartel. Perguntaram então se ele conhecia algum lugar calmo nas redondezas que

se adequasse a isso, e o jovem prontamente levou os dois homens ao restaurante

de seu padrinho, que ficava a poucas quadras.

Depois de conversar um pouco, Dragovich disse que queria ir para fora do

restaurante para fumar sem importunar as outras pessoas, e convidou Viktor para

que fosse junto dele para conversarem mais. Já na rua, Dragovich procurou um

lugar mais reservado entre dois prédios ali perto, foi com o rapaz para lá, e começou

a revelar seus reais motivos de estar ali. O rapaz ficou branco, muito desnorteado e

incrédulo, sem saber se ria das palavras sem sentido daquele homem desconhecido

com sotaque familiar, ou se ficava horrorizado com tudo aquilo.

Percebendo que o rapaz estava a ponto de não acreditar em suas

palavras, Dragovich não viu alternativa senão revelar sua verdadeira face de

128

nosferatu. Viktor ficou paralisado ao ver aquele ser de pele esverdeada, sem pelo

algum, com dois buracos onde seriam as narinas, orelhas pontudas, corpo

desproporcional, braços longos, com mãos defeituosas e unhas compridas e afiadas,

com a pele que parecia solta da carne, enrugando por todo o corpo, com dentes

espaçados e quase negros.

Aquilo não podia ser verdade! O que era aquele ser na sua frente?

Quando finalmente Viktor recuperou o fôlego, começou a olhar para os lados,

procurando um jeito de fugir dali o mais rápido possível. Dragovich então perguntou:

– E então, acredita agora? – e junto com sua fala, Viktor sentiu o cheiro

dos dentes podres daquele ser horrível.

Eis que então Viktor se dá conta de que aquilo não era um sonho, mas

sim a realidade... Uma realidade horrível, sim, mas não poderia fugir dela... Ou

poderia? Sem ter outra opção em mente, ele resolve correr. Correr como nunca

havia feito na sua vida, ou melhor, correr pela sua vida.

Dragovich observou o rapaz se distanciando, ficando surpreso com a

atitude dele. Ora, qualquer humano que visse um nosferatu simplesmente caía sobre

os joelhos sem forças para fugir, ou começaria a gritar freneticamente, quase que

pedindo para ser morto. Mas aquele jovem era diferente. Ele conseguira encontrar a

única saída possível para um humano naquele momento. Finalmente Alexander

havia encontrado alguém digno de ser seu discípulo.

Viktor correu sem rumo por 200 metros. Então, recobrando a consciência,

resolveu ir para o lugar mais seguro que ele conhecia, o quartel. Lá chegando,

deparou com chamas, gritos de dor e disparos para todos os lados. O quartel estava

sendo atacado.

Um de seus companheiros passa correndo por ele e grita:

– Esconda-se! Os alemães estão atacando!

Ao ouvir aquela palavra, todo o passado de Viktor passou diante de seus

olhos. A casa em Stalingrado, a vida pacata que levava com sua família, seu pai

tocando músicas bonitas, sua mãe feliz... Então vieram à sua mente as imagens

daquela fatídica noite em que seu pai fora morto. Morto por alemães. Sim, aquele

era seu alvo. Sua vingança finalmente poderia se concretizar.

Então ele pegou a primeira arma que viu diante de si, um rifle que achou

junto ao corpo de um soldado morto, e correu para dentro do quartel, atirando em

toda e qualquer pessoa que não estivesse vestindo o mesmo uniforme que ele.

129

Alexander já havia voltado para dentro do restaurante, falado com Damon

e estavam ambos a caminho do quartel para evitar que o jovem falasse para outras

pessoas sobre o que havia visto ou sobre o que lhe havia sido contado.

Ao chegarem ao quartel, depararam-se com um caos. Pessoas correndo

pra todos os lados, explosões, tiros de todos os calibres e muitos gritos. Foi então

que em meio àquela confusão eles viram um soldado enfurecido, matando cada

alemão que estivesse no seu raio de visão. Era Viktor, sem demonstrar sequer

algum traço de medo diante das balas que passavam zunindo por ele.

Antes que algum dos dois pudesse chegar perto, Viktor foi atingido por

uma saraivada de balas, das quais duas atingiram seu peito em cheio. Vendo o

rapaz cair ao chão, e usando de uma velocidade sobre-humana, Damon consegue

chegar até ele e resgatá-lo ainda com vida e carregá-lo para fora do quartel,

enquanto Alexander dava cobertura.

Já fora do quartel, Viktor se encontra entre a vida e a morte, com os

batimentos quase imperceptíveis e sem responder aos apelos de seus dois

salvadores. Dragovich então, vendo que era a única maneira do rapaz sobreviver,

decide que o abraço seria dado ali mesmo, ao lado de fora dos muros do quartel,

enquanto lá dentro ainda se ouviam tiros.

Foi ali, um pouco protegidos pelo sobretudo de Dragovich, que Viktor

Reznov teve seu sangue praticamente todo sugado por Dragovich, que logo após

cortou os próprios punhos com suas unhas pontiagudas e deixou que caíssem

algumas gotas de seu próprio sangue na boca de Viktor. Este, por sua vez,

permaneceu alguns segundos estático, para logo em seguida dar um longo suspiro,

sinalizando que ali se iniciava sua nova vida. Vida? Não. Ali se iniciava a morte de

Viktor Reznov como todos o conheciam, e nascia Viktor Reznov, o mais novo

nosferatu.

Nem bem ele havia recobrado a consciência e começaram as

transformações em seu corpo, causando-lhe uma dor tão intensa que ninguém no

mundo poderia descrever tal agonia. Sua pele ficou cinza e totalmente enrugada,

sem nenhum tipo de pelo no corpo, com dois rasgos verticais no meio do rosto, onde

deveriam ser as narinas, com braços e dedos longos e ossudos, orelhas pontudas e

grandes, olhos amarelos, dentes separados e pontiagudos, unhas que mais

pareciam garras, corpo levemente curvado para frente e pés com membranas entre

os dedos. Um monstro completo.

130

Logo após essa transformação macabra, Reznov, ainda sem notar a

criatura em que havia se transformado, sentiu uma fome tão forte que parecia mover

seu corpo involuntariamente. Por sorte, Damon já havia previsto que isso

aconteceria, e tinha arrastado alguns corpos de soldados recém mortos para perto

de Viktor. Este ainda sem entender muito, ao ver os corpos manchados de sangue,

cedeu àquela vontade que o consumia, e cravou os dentes no pescoço do corpo

mais próximo.

Viktor só conseguiu parar depois do terceiro corpo, quando já estava

saciado e mais calmo. Então ele olhou para as próprias mãos levando um susto, e

quando olhou para os lados procurando por uma explicação, viu Dragovich em sua

forma original, igualmente monstruoso.

Foi então que a conversa do lado de fora do restaurante veio em sua

mente e ele começou a compreender o que estava acontecendo, mas seus olhos

ficaram embaçados e de repente ele desmaiou. Acordou dois dias depois, em um

quarto totalmente fechado, com um corpo recém morto a seu lado.

Reznov ouve um barulho de tranca, e eis que a porta se abre, revelando

um Alexander calmo e frio. Ele entra e senta-se em uma cadeira no outro lado do

quarto, e fala:

– Beba. Vai precisar estar bem alimentado para entender o que eu tenho

para explicar.

A essa altura, Reznov já estava quase terminando de saborear sua

refeição quando Dragovich começou a falar. Ele explicou sobre a Camarilla, sobre os

clãs, sobre como um Nosferatu deve fazer para manter a máscara, e tudo mais que

seu discípulo devia saber.

Alguns meses depois, após treinar muito com seu mestre e aprender tudo

o que precisaria para poder existir, Viktor finalmente estava pronto para seguir seu

caminho sozinho. Dragovich deu-lhe os últimos conselhos e partiu de volta para

Moscou, onde morava, e Viktor então decidiu retornar também para a Mãe Rússia,

voltando para Stalingrado, que passou a se chamar Volgogrado logo depois que ele

e sua mãe deixaram o país.

Lá chegando, Reznov tratou de entrar no exército soviético e, por

recomendação de seu mestre, fora alocado no setor de inteligência, participando

somente de operações noturnas, onde aprendeu muito. Conforme ia progredindo

rapidamente, os oficiais superiores viram o crescente potencial daquele jovem e

131

quando menos se esperava, Viktor já estava à frente do Exército Vermelho, como

capitão, comandando seus homens tão bem que chegava a lembrar um maestro

regendo uma orquestra.

Participando de várias missões sigilosas, Reznov viajou pelo mundo todo,

posteriormente sendo promovido a General por seus atos de bravura e se tornando

assim chefe do Centro de Inteligência do Exército Soviético.

Certo dia, Viktor recebe uma informação que, apesar de ser apenas um

rumor, fez seu sangue borbulhar novamente. Tinha uma coisa em mente,

embarcaria nesta mesma noite para os Estados Unidos, mais precisamente para

cidade de Los Angeles, na Califórnia...

132

ANEXO 4

Derek Chains, o bruto que teve o coração quebrado

By Christian Kayser

Qual seria o pior destino? Qual seria o seu maior medo? Ainda estou para

conhecer uma pessoa para quem a pergunta “estaria disposta a morrer por amor?”

seria feita. Quase sempre ocorre a mesma resposta - sim. Eu daria essa resposta há

pouco tempo. Inocência pode ser algo lindo e cruel ao mesmo tempo. Eu mesmo

pensava em como a vida é bela: ganhamos tudo ao nascer e temos um destino

inevitável, a morte. Mesmo assim, tentamos olhar por um lado bom, podemos viver

por alguém e ter bons momentos com aquela pessoa. Enquanto respiramos, às

vezes, sentimos um pouco de pânico, com a possibilidade de perder algo que nunca

nos pertenceu.

Mas quem sou eu para falar sobre o medo e pânico, sendo que sou uma boa

parte dos motivos para eles existirem. Alguns dizem que não posso ser considerado

um ser humano, mas gosto de pensar que sou. Só porque tenho de tirar a vida de

alguns para me alimentar, sou julgado como um animal sem controle. É engraçado,

não vejo ninguém chorando enquanto faz um churrasco com um monte de animais

mortos, ficam felizes pois irão comer a carne de um animal inocente. Esses sacos de

sangue “quentinhos” que andam por aí em grupos, achando que são especiais, não

passam de reserva de comida. Por isso não gosto da cidade, prefiro o campo ou o

deserto, não importando onde, apenas o mais longe possível da civilização.

Eu me sinto livre quando estou perto dos animais, sempre tive esse desejo de

ficar no meio da natureza, mesmo enquanto caminhava entre os mortais. Enquanto

eu era um deles, trabalhava como servente de pedreiro, nunca havia me imaginado

naquela situação, estando em um trabalho honrado, porém pesado e que te destrói

com o tempo. Algo que havia começado como temporário estava se tornando

permanente aos poucos. De repente o medo que eu sentia de passar o resto da vida

trancado em um escritório, me parecia como um sonho distante e improvável de

acontecer. Minha vida estava difícil e eu cada vez mais comprometido com o destino

a que minhas escolhas haviam me levado.

133

Meu último dia de trabalho como servente de pedreiro, foi como sempre, sem

equipamento de proteção, um fato praticamente corriqueiro nas obras em que

trabalhei. Estes itens de segurança são quentes e desconfortáveis, às vezes, sendo

apenas mais um peso para carregarmos deixando o trabalho ainda mais pesado. No

início, cheguei a usá-los, mas, com o passar do tempo, sem nunca ter presenciado

nenhum acidente, deixei-os de lado. Em um dia comum no trabalho. Subi nos

andaimes para rebocar as paredes com cimento. Eu e meu colega estávamos no

segundo andar, terminando a empreitada daquele dia, então, um pequeno estalo, e

foi tudo abaixo. Não lembro com muita clareza o que aconteceu após o incidente,

acho que foi chamada a ambulância e fomos para o hospital. Meu colega Arnaldo

faleceu e eu estava em estado crítico. Mesmo que sobrevivesse, não voltaria ao

normal, pois as sequelas seriam inevitáveis. Fui salvo não por médicos ou algum

evento especial da natureza, mas por uma mulher que...

Eu já amei e odeio ter que admitir, como se isso mostrasse o quão fraco e

vulnerável eu fui, ou talvez ainda seja. Na verdade, não sei o que devo sentir, falo a

todos que me perguntam que a odeio e meu objetivo é tirar a vida dela quando a

encontrar, mas eu faria isso? Ou quando a encontrasse cairia aos pés dela e falaria

o quanto eu senti a falta dela? Ela é uma Gangrel, e naquele quarto do hospital ela

me salvou, tornando-me um vampiro e logo me abandonando...

A primeira vez que senti o cheiro de sangue, era do paciente ao meu lado,

gravemente ferido e inconsciente. Foi como se algo houvesse tomado conta de mim,

eu simplesmente não conseguia me controlar. Aquele cheiro, que nunca havia

sentido antes, mas mesmo assim dominava meu corpo, preenchendo meus

pulmões. Eu não conseguia pensar em mais nada. Então ataquei com todas as

forças, não sabia o que estava fazendo, com certeza queria o sangue, mas a carne

não fazia parte do cardápio.

Quando terminei, poucas coisas estavam claras em minha mente, mas a uma

era certeza eu estava condenado, já tinha uma noção do que havia me tornado.

Olhei ao meu redor e a situação não melhorava, era como se um animal selvagem

houvesse entrado ali e destruído o lugar. Cheguei à conclusão de que o tempo

estava passando e eu não havia sido o mais silencioso enquanto me alimentava.

Mesmo sendo de madrugada, alguém estaria vindo e eu tinha duas opções, atacar

essa pessoa também ou fugir. Mas fugir para onde? Eu me tornaria a suspeito

número de um crime tão hediondo como esse. Pensando bem, parece que um

134

animal atacou este local. Então com certeza um animal atacou esse local, eu posso

fugir. E faz algum tempo que tem algo me chamando de dentro do mato, um som de

paz no meio desse inferno sem controle em que estou preso, não posso ter

dúvidas... É, estou indo, e se essa for minha última caminhada, saiba que eu não

lembro de como foi a primeira.

Então eu corri a noite inteira ao mais longe que eu consegui, da cidade. O dia

estava começando e eu ainda corria. Pelas lendas, eu sabia que não me restava

muito tempo. Ao longe avistei uma toca, parecia ser de lobos e com sorte ela estaria

abandonada. Não estava. Alguns coiotes dormiam ali dentro no momento em que

entrei. Fiquei em pânico, pensando em como eles podiam ser letais, mas não vi

nenhum movimento hostil vindo da parte deles, nem ao menos se moveram, como

se estivessem esperando por uma ordem. Ao fundo da caverna, avistei uma mulher

de cabelo castanho claro, quando olhei nos seus olhos azuis claros, no momento

pensei: ela era meu número.

Ela se levantou, olhou-me nos olhos e disse - Oi eu sou Rojanda, uma

Gangrel, assim como você... E como, poderia me responder o que você está

fazendo, invadindo meu território? Eu respondi que não sabia ao certo, apenas tinha

certeza de que havia virado um monstro e que tinha corrido nesta direção, o mais

longe possível da cidade. A decepção apareceu em seu rosto de não saber como

um vampiro havia transformado alguém assim, sem motivos. Ela me perguntou se

eu tinha uma noção de quem era a última pessoa que eu havia visto. Respondi que

sim, minha namorada. - Como alguém abandona sua cria sem nenhuma

conhecimento e controle..., ela falou. - Isso vai contra o próprio instinto, agora me

responda... Qual o nome dela, me passe tudo o que sabe sobre ela...

Respondi com toda a calma - O nome dela e Mariah, provavelmente um

palmo mais baixa que eu com os olhos castanho-claros e um cabelo vermelho

sangue, ela gosta de filmes animados mesmo que eu, é uma mulher independente e

sabe o que quer, não vai ser encontrada assim facilmente. Rojanda disse que já

estava bom de informações por enquanto, e seguiu dizendo - Vou te ensinar o

básico e algumas habilidades, sendo que somos da mesma raça e depois você

decide o que fazer, mas lembre-se que eu nunca serei sua mestra. Apenas uma

mentora. Agora apenas precisava aprender como me virar e para conseguir ir atrás

da Mariah que me colocou nessa situação e descobrir se ela queria me salvar ou me

condenar.

135

Meu nome é Derek Chains, um homem alto, moreno escuro, forte e com olhos

negros, força sobrenatural por ser vampiro, mas antes também por ser um

trabalhador braçal. Tenho cabelos longos com dreads e procuro manter o máximo

que puder a minha discrição em relação à sociedade urbana. Encontrarei um dia,

quem sabe, a ordinária que me deixou nesta situação. Não tenho pressa, pois tempo

pra mim não é um problema, atualmente...

136

ANEXO 5

PASTA NO GOOGLE DRIVE COM OS RECORTES AUDIODISCURSIVOS

https://drive.google.com/file/d/0B_uEJCIxc2B0UlRmQnhFQmJnVlE/view?usp=s

haring

Recorte Áudio-discursivo I – Ambientação antes da crônica

Recorte Áudio-discursivo II – Primeira interação entre os personagens

Recorte Áudio-discursivo III – O encontro com o Príncipe

Recorte Áudio-discursivo IV – Início da missão

Recorte Áudio-discursivo V – A busca pelo alvo

Recorte Áudio-discursivo VI – O discurso do Príncipe

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ANEXO 6

AUTORIZAÇÕES PARA REPRODUÇÃO DAS GRAVAÇÕES E TEXTOS