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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL: CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS FRANCIELE CASAGRANDA METZ Frederico Westphalen, fevereiro de 2013.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL:

CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS

FRANCIELE CASAGRANDA METZ

Frederico Westphalen, fevereiro de 2013.

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FRANCIELE CASAGRANDA METZ

PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL:

CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS

Dissertação apresentada ao curso de Pós-

Graduação em Letras – área de Literatura

Comparada, da Universidade Regional

Integrada do Alto Uruguai e das Missões –

URI, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras –

Literatura Comparada.

Orientadora: Profª Drª Maria Thereza

Veloso

Frederico Westphalen, fevereiro de 2013.

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RESUMO

Este trabalho apresenta algumas reflexões analítico-discursivas sobre o poder. A análise

teórica tem como pressuposto a Análise do Discurso (AD), de linha francesa, a(s) Posições-

Sujeito (PS) ocupadas pelo sujeito discursivo nos recortes discursivos representativos sobre a

polícia, a milícia e a política, enfim o sistema que engloba essas esferas do poder. A atenção

se volta para o discurso e não mais para o sujeito como dono de sua fala, pois os processos

discursivos não têm sua origem no sujeito, por mais que se realizem fundamentalmente nesse

sujeito.O corpus é composto por recortes discursivos fílmico-imagéticos (RDF-I), tomados do

filme Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), de José Padilha. A proposta é

relevante pela possibilidade de desnudar, pela análise de elementos imagéticos presentes no

discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que perpassam o tecido social,

oriundas de formações discursivas específicas.

Palavras-chave: Formação Discursiva. Posição-sujeito. Polícia. Milícia. Política.

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ABSTRACT

This paper presents some analytical and discursive reflections about power. Theoretical

analysis presupposes Discourse Analysis (DA), French line, the Subject Positions (SP)

occupied by the discursive subject in representative discursive excerpts of the police, militia

and politics, in short, the system that comprises these spheres of power. Attention turns to the

speech and no longer to the subject as the owner of his speech, because the discursive

processes do not have their origin in the subject, although it takes place fundamentally in that

subject. The corpus consists of discursive excerpts – filmic and imagistic (RDF-I), taken from

the film Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), by José Padilha. The proposal is

relevant due to the possibility of stripping by analyzing imagistic elements present in the

filmic discourse, some of the various forms of authoritarianism that pervade the social

context, originating from specific discursive formations.

Keywords: Discursive Formation. Position-subject. Police. Militia. Policy.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

A Banca Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL:

CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS

Elaborada por

FRANCIELE CASAGRANDA METZ

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profª. Drª. Maria Thereza Veloso – URI

(Presidente/Orientadora)

_____________________________________________

Membro Profª. Drª. Aracy Ernst - UCPEL

______________________________________________

Membro Profª. Drª. Denise Almeida Silva – URI

Frederico Westphalen, 07 de fevereiro de 2013

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Para meus pais,

Valdir e Terezinha.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Valdir e Terezinha, pelo amor, estímulo e o

apoio incondicional nos momentos difíceis. Você, meu querido pai, que me orgulha pela

pessoa que é pessoa de sábias palavras e atitudes. A você, minha inestimável mãe, você que

em qualquer momento, mesmo distante, sempre está presente. Muito disso é fruto seu, pois

você foi minha primeira professora, mergulhou na minha essência, despertou um precioso

talento. Vocês moldaram o meu destino. Esse trabalho só foi possível graças à compreensão e

à generosidade de vocês.

À minha irmã, Daiele, pelo carinho, paciência e preocupação comigo.

À minha querida orientadora, Maria Thereza Veloso, por acreditar neste projeto e pela

interlocução imprescindível na condução desta dissertação. Obrigada pela paciência, pelo

estímulo, pela inteligência e pela amizade compartilhada nesta caminhada.

E, finalmente, agradeço a você, Marcelo, pela paciência, perseverança e pelas palavras

de estímulo quando me deixei entristecer, com você tudo ficou melhor, mais fácil e mais leve.

Amo vocês!

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Não é da língua que está se tratando,

mas de discurso, quer dizer, de uma ordem própria,

distinta da materialidade da língua, no sentido que os linguístas dão a esse termo,

mas que se realiza na língua:

não na ordem do que constitui o sujeito falante em sujeito de seu discurso e ao qual

ele se assujeita em contrapartida.

(COURTINE, 1999)

Missão dada, parceiro, é missão cumprida.

(Tropa de elite 2)

Quem quer rir tem que fazer rir.

(Tropa de elite 1)

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LISTA DE ABREVIATURAS

AAD – Análise Automática do Discurso

AC – Análise do Conteúdo

AD – Análise do Discurso

ADP – Análise do Discurso Político

BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais

CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito

CPMF – Comissão de Policiais Militares Filhos da Puta

CTI – Centro de Tratamento Intensivo

DRACO – Delegacia de Repressão ao Crime Organizado

FLASHES – Imagens rápidas

FD – Formação Discursiva

FI – Formação Ideológica

Off – (fala em) – Que não pode ser dito e/ou ouvido em público, ou por terceiros

PA – Plano americano

PF – Plano Fixo

PG – Plano Geral

PLONGÉE – câmera alta, enquadrando o objeto de cima para baixo

PM – Polícia Militar

PP – Primeiro Plano

PPGLC – Programa de Pós-graduação em Letras - Literatura Comparada

PS – Posição-sujeito

RD – Recorte Discursivo

RDF-I – Recorte Discursivo Fílmico – Imagético

RJ – Rio de Janeiro

SD – Sequência Discursiva

SDR – Sequência Discursiva de Referência

SS – Secretaria de Segurança

SSP – Secretaria de Segurança Pública

TC – Tenente Coronel

UTI – Unidade de Tratamento Intensivo

TRAVELLING – Movimento da câmera pelo cenário

ZOOM – Movimento de aproximação e/ou distanciamento da cena, mediante ajuste no olho da câmera

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ÍNDICE DOS RECORTES DISCURSIVOS FÍLMICO–IMAGÉTICOS (RDF-I)

RDF-I 1 Matias pressiona o bandido sobre o roubo das armas.........................................44

RDF-I 2 Matias disfarça-se de miliciano para se infiltrar na favela..................................48

RDF-I 3 O discurso político em campanhas eleitorais......................................................56

RDF-I 4 Depoimento de Nascimento à CPI dos deputados..............................................61

RDF-I 5 Rocha pegando dinheiro de bandidos.................................................................66

RDF-I 6 O sistema de corrupção organizado por Rocha...................................................70

RDF-I 7 Câmera sobre alguém montando uma arma na UTI...........................................74

RDF-I 8 Diogo Fraga e seu discurso no 3º Congresso de direitos humanos.....................77

RDF-I 9 Nascimento pressionando o filho para ganhar a luta..........................................82

RDF-I 10 Nascimento descobre seus verdadeiros inimigos e percebe que sua família está

ameaçada............................................................................................................85

RDF-I 11 Nascimento procura os responsáveis pela Segurança Pública para

conversar............................................................................................................,90

RDF-I 12 Nascimento é transferido para a Subsecretaria de Inteligência..........................94

RDF-I 13 A reestruturação do sistema...............................................................................98

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 IDENTIFICANDO A BASE TEÓRICA ........................................................................... 14

1.1 Michel Pêcheux e os caminhos da Análise do Discurso ................................................. 16

1.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso ............................................................................. 18

1.1.2 Ideologia e Formação Discursiva .................................................................................... 21

1.1.3 Sujeito Discursivo e Posição-Sujeito ............................................................................... 25

1.2 Efeitos de sentido e tramas discursivas........................................................................... 27

1.2.1 Heterogeneidade discursiva – marcas visíveis versus marcas invisíveis ........................ 28

1.2.2 Elite da Tropa 2 e Tropa de Elite 2- O inimigo agora é outro: o Eu e o Outro na

Literatura e no Cinema ............................................................................................................. 31

1.2.2.1 Narrativa literária e narrativa fílmica – (des)aproximações ....................................... 33

1.2.3 Polícia e Milícia: definições suspeitas ............................................................................. 35

2 O DISCURSO DITO E O DISCURSO DO NÃO-DITO ................................................. 39

2.1 Política, Polícia, Poder, Sistema: pelo interior das tramas discursivas ....................... 41

2.1.1 O discurso da polícia ....................................................................................................... 43

2.1.2 O discurso da milícia ....................................................................................................... 48

2.1.3 O discurso da política ...................................................................................................... 53

2.1.4 O discurso do sistema ...................................................................................................... 59

2.2 Tramas discursivas ........................................................................................................... 65

2.2.1 Corrupção versus Cooptação: o discurso das conveniências na base do crime............... 66

2.2.2 Relações duvidosas: crime e poder nas tramas do sistema .............................................. 69

3 PELOS NÓS DO SISTEMA ............................................................................................... 73

3.1 Revisando os fios do tecido .............................................................................................. 75

3.1.1 Do discurso dos direitos humanos ................................................................................... 77

3.1.2 Do discurso do afeto ........................................................................................................ 81

3.1.3 Do discurso da consciência.............................................................................................. 83

3.2 Discurso da Resistência versus Discurso da Reincidência ............................................ 88

3.2.1 Desistir ou resistir: um problema à espera da melhor solução ........................................ 90

3.2.2 Decisão na banca: o recuo como estratégia ..................................................................... 95

3.2.3 Troca de pele: a serpente renasce .................................................................................... 98

CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 102

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 107

FILMOGRAFIA ................................................................................................................... 115

ANEXOS ............................................................................................................................... 116

ANEXO A – Cópia do CD do filme.......................................................................................117

ANEXO B – RDF-I: Recorte Discursivo Fílmico – Imagético..............................................118

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INTRODUÇÃO

Todo discurso sempre remete a outro discurso que lhe dá realidade

significativa.

ENI ORLANDI

Tendo como fundamento teórico a Análise do Discurso (AD) de linha francesa, a

presente pesquisa se justifica como uma possível contribuição aos estudos que vêm sendo

feitos para analisar a presença do discurso histórico em expressões ficcionais, tanto

pertencentes ao universo literário, quanto ao universo fílmico. É indispensável enfatizar, nos

estudos e discussões literárias, a importância da História como um dos componentes do

discurso. Neste estudo, particularmente, interessa vê-la como um testemunho discursivo do

caráter autoritário a que sociedade brasileira está submetida desde sua formação inicial. Sob

este enfoque, e com o intuito de compreender a violência como um dos fios constitutivos do

tecido social, a análise permeia o discurso policial em uma perspectiva histórica e sob dois

ângulos distintos, o dos policiais atentos à disciplina e à honestidade no desempenho de suas

obrigações funcionais, e o dos milicianos, assim entendidos como aqueles que ignoram as

normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios

estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação

Discursiva policial.

Para tanto, tomei como corpus o filme Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro,

entendendo que aponta para a existência de um estado permanente de execução da violência,

tanto no meio social em seu sentido amplo, como naquele partilhado pelos policiais no

exercício profissional.

Acrescento que a opção pelo corpus foi determinada por três fatores. Primeiro, por

permitir abordar a temática da violência brasileira nascida – possivelmente e em alguns casos

– do desconforto e da pobreza, analisando a realidade, em toda sua crueza, através da visão

policial, tanto das milícias, quanto do grupo de policiais que lutam contra a criminalidade (o

Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE). Um segundo fator foi a possibilidade de

analisar os discursos dos sujeitos mediante o referencial teórico da Análise do Discurso, de

linha francesa, considerando a importância de seus três elementos constitutivos – a linguística,

o materialismo histórico e a psicanálise –, ou seja, pela contribuição possível dessas três áreas

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para a compreensão das condições de produção discursiva nos ambientes e situações sob

análise; e um terceiro fator, a possibilidade de avaliar o discurso da violência.

Parece-me oportuno considerar que minha hipótese era a de que a violência entre as

milícias e as polícias constituía um fator preocupante e capaz de desestabilizar a sociedade,

além de transformar-se em eficiente instrumento de persuasão social em seu próprio favor,

levando esses grupos ao reconhecimento, pelas comunidades, como talvez os únicos em

eficiência para o controle e diminuição de uma outra espécie de violência, originada em

comportamentos antissociais, nascidos das camadas marginais da sociedade. Ao chegar à

conclusão do trabalho, percebi que minhas conjeturas estavam corretas. Assim, se esse embate

entre policiais e milicianos não é o responsável absoluto pela violência, ocupa isoladamente

grandes proporções desta mesma violência, proporções essas possíveis de excluir, refrear,

coibir ou reprimir por meio de ação punitiva.

Para efeitos da análise, considero, ainda, que o problema a ser discutido diz respeito à

possibilidade de compreender a violência como uma forma de ação política, capaz de afetar o

meio social em sentido amplo. Visando a atender aos objetivos desta pesquisa, um primeiro

olhar sobre o corpus sugere a existência de uma tensão, mediada pela violência e pela política

partidária, entre sociedade, milícias e polícia.

Entende-se pertinente o tema da presente pesquisa na medida em que visou a associar

a ficção com a realidade cotidiana. Assim, procurei evidenciar pistas discursivas que

justifiquem a crítica social presente em obras como as que constituem o corpus deste trabalho.

Por meio de expressões artísticas como o cinema, ainda que muitas vezes a alusão a fatos,

personagens e circunstâncias ali esteja de forma subentendida ou implícita, foi possível

resgatar ou evidenciar, sob diferentes pontos de vista, a importância de determinados

momentos históricos vividos pela sociedade. Por outro lado, o tema foi relevante pela

possibilidade de desnudar, pela análise de elementos linguísticos e imagéticos presentes

respectivamente no discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que

perpassam o tecido social, oriundas de formações discursivas específicas, como, no caso do

corpus sob a análise, a Formação Discursiva Policial (FDP).

Para viabilizar a pesquisa, o pressuposto inicial foi a necessidade de compreender e, ao

mesmo tempo, qualificar, ou seja, categorizar e contextualizar a violência urbana. Com este

objetivo, escolhi as obras já mencionadas, uma literária e outra cinematográfica, por

retratarem e, ao mesmo tempo, terem sido ambientadas em um espaço de violência e de

carência, um ambiente abandonado pelo Estado e dominado pelo tráfico, bandidos e milícias.

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Por outro viés, vale ressaltar que inicialmente o discurso fílmico me pareceu

extremamente interessante e cativante. Foi essa percepção, portanto, o ponto de partida para

este trabalho, considerando também que o tema relaciona-se com a minha vida particular,

razão pela qual por ele tomei gosto, e que me interessam, profissionalmente, o cinema, o

discurso policial e a Análise do Discurso.

Em um primeiro momento, imaginei que o tema pelo qual havia me interessado não se

adequaria a ser analisado sob a perspectiva teórica da Análise do Discurso. No entanto, ao

submetê-lo a minha orientadora, percebi que existia essa possibilidade e assim me dispus a

aceitar correr o risco. Sua aceitação foi de extrema importância. No entanto, inicialmente

encontrei dificuldade, pois jamais havia estudado sobre a AD e sobre obras cinematográficas

como discursos.

Ao iniciar o trabalho, de imediato percebi que a pesquisa não seria conclusiva, e nem

deveria sê-lo, pois o estudo aprofundado da teoria não é um ciclo fechado. Assim, conforme a

análise se concretizava nos capítulos escritos, a fundamentação teórica contribuía para uma

nova percepção sobre o corpus, na perspectiva de fundamentar e significar a pesquisa. Assim

desenvolvi a pesquisa, procurando subsídios para obter significados em fragmentos fílmicos,

considerando que, apesar de possíveis coincidências com a realidade, o filme sob análise é

uma obra de ficção, recriada cinematograficamente, possibilitando sentidos múltiplos, capazes

de responder às expectativas e perguntas surgidas inicialmente.

O presente trabalho está dividido em três capítulos. Primeiramente apresenta uma

reflexão teórica sobre os conceitos da Análise do Discurso de linha francesa, de Michel

Pêcheux. Nos segundo e terceiro capítulos consta a descrição interpretativa dos recortes

discursivos fílmico-imagéticos (RDF-I), sempre fundamentada na AD em diálogo com

conceitos tomados à cinematografia.

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1 IDENTIFICANDO A BASE TEÓRICA

A Análise do Discurso é a disciplina que vem

ocupar o lugar dessa necessidade teórica, trabalhando a

opacidade do texto e vendo nesta opacidade a presença

do político, do simbólico, do ideológico, o próprio fato

do funcionamento da linguagem: a inscrição da língua

na história para que ela signifique.

ENI ORLANDI

O ingresso de Michel Pêcheux na construção de seus estudos investigativos dá-se a

conhecer pelo título provocador de Análise Automática do Discurso, lançado em 1969.

Segundo Denise Maldidier, a “Análise Automática do Discurso é um livro original que

chocou lançando, a sua maneira, questões fundamentais sobre os textos, a leitura, o sentido”

(2003, p. 19)1.

Essa “máquina”, nascida da inquietude indagadora de Michel Pêcheux, teve como

base o questionamento sobre a epistemologia da Linguística, propondo uma análise sobre as

diversas possibilidades interpretativas de discurso. Pêcheux propõe um estudo que coloca o

linguístico em articulação com a História. Sob essa ótica, suas análises consideram as

condições de produção, a partir da hipótese de que o discurso é determinado pelo tecido

histórico-social que o constitui.

Três marcos foram fundamentais a Michel Pêcheux para embasar seus estudos: a

linguística, com Ferdinand de Saussure2, “centrando a análise na semântica, com a ideia de

não-transparência do sentido, da não-reflexividade entre signo/mundo/homem” (GREGOLIN,

2001, p. 03); o materialismo histórico, com Karl Heinrich Marx, por meio de uma releitura

althusseriana. Althusser é, para Pêcheux, “aquele que faz brotar a fagulha teórica, o que faz

nascer os projetos de longo curso (...) ele oferecia a possibilidade de ‘pensar o marxismo fora

de uma vulgata mecanicista’” (MALDIDIER, 2003, p. 18) com o pensamento voltado à “ideia

1 Grifos da autora.

2 A respeito de algumas diferenças significativas, que derivam de suas distintas condições de produção,

Benveniste e Pêcheux atribuem a Saussure a instalação dos “fundamentos” da Linguística e do “corte

epistemológico” efetivado em seu interior, apresentando uma versão endógena da história das ciências da

linguagem e usufruindo as prerrogativas dessa versão. Ambos reivindicam o legado de Saussure e situam-se

mais ou menos na ascendência de seu pensamento, mas advogam também a necessidade e a capacidade de

ultrapassá-lo. Por um lado, conferem a Saussure a emergência da autonomia de um objeto e o advento da

positividade científica de uma teoria e de um método; por outro, reclamam a necessidade de se focalizar aquilo

que supostamente teria sido excluído das considerações saussureanas, como a “subjetividade na linguagem” e a

“ordem do discurso” (PIOVEZANI, 2008 p. 02) .

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de que há um real da história que não é transparente para o sujeito, pois ele é assujeitado pela

ideologia” (GREGOLIN, 2001, p. 03) e, por fim, a psicanálise de Sigmund Freud, “por meio

da releitura lacaniana (...), com a ideia de sujeito na relação com o simbólico, pensando o

inconsciente estruturado como linguagem” (2001, p. 03). A mesma autora afirma que

Esse triplo assentamento traz consequências teóricas: a forma material do discurso

é, ao mesmo tempo, linguístico-histórica, enraizada na História para produzir

sentido; a forma sujeito do discurso é ideológica, assujeitada, não psicológica, não

empírica; na ordem do discurso há o sujeito na língua e na História; o sujeito é

descentrado, tem a ilusão de ser fonte, mas o sentido é um já-lá, um dito antes em

outro lugar. Do mesmo modo, o enraizamento nesses três campos do conhecimento

traz consequências metodológicas: a busca de um dispositivo de análise do processo

discursivo; a busca dos vestígios – da história e da memória – no discurso, e a

consequente inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do

discurso. (2001, p. 03-04)3.

Segundo a precursora brasileira nos estudos da teoria de Michel Pêcheux, Eni

Puccinelli Orlandi (1996), a Análise do Discurso (AD) é uma disciplina de entremeio,

interessada em desvelar não o que o texto4 quer dizer, mas sim como ele funciona. Assim, a

AD se “apresenta como uma teoria da interpretação” (ORLANDI, 2008, p. 21). Em outras

palavras, a Análise do Discurso se coloca a questão da interpretação, ou melhor, a

interpretação é posta em questão pela Análise do Discurso.

Em recente análise, Orlandi salienta que a AD trabalha “a opacidade do texto e vendo

nesta opacidade a presença do político, do simbólico, do ideológico, o próprio fato do

funcionamento da linguagem: a inscrição da língua na história para que ela signifique” (2008,

p. 21).

Por sua vez, Gregolin (2001, p. 13) argumenta que

[...] empreender a análise do discurso significa tentar entender e explicar como se

constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula com a história e a

sociedade que o produziu. O discurso é um objeto, ao mesmo tempo, linguístico e

histórico; entendê-lo requer a análise desses dois elementos simultaneamente.

A AD permite trabalhar em busca dos processos de produção do sentido e de suas

determinações histórico-sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historicidade

inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de um sentido literal, já posto,

3 Grifos da autora.

4 O texto é, em um sentido, a reescrita de todos os textos precedentes; ele traz marcas de retornos reflexivos, de

remanejamentos e de retificações, de atualizações ou de apreensões, os estigmas da inquietação (MALDIDIER,

2003, p. 38).

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e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é regida por

condições de produção.

Na perspectiva da Análise do Discurso o sujeito discursivo não é um sujeito clivado. É

determinante na sua constituição a posição que este sujeito ocupa no meio social, isto é, a

posição ideológica, bem como o instante histórico da enunciação, entendendo-se esta como “a

relação sempre necessária presente no sujeito enunciador com o seu enunciado (...) uma série

de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por

característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o não-dito” (PÊCHEUX, 1975, p.

174-176).

1.1 Michel Pêcheux e os caminhos da Análise do Discurso

A análise do discurso não pretende se instituir

em especialista da interpretação, dominando ‘o’ sentido

dos textos, mas somente construir procedimentos

expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica

de um sujeito... a questão crucial é construir

interpretações sem jamais internalizá-las nem no ‘não-

importa-o-quê’ de um discurso sobre o discurso, nem

em um espaço lógico estabilizado com pretensão

universal.

MICHEL PÊCHEUX

Sem ignorar a contribuição de Saussure aos estudos linguísticos, Michel Pêcheux

inverte a linha de raciocínio a respeito do processo de produção; a atenção se volta para o

discurso enquanto efeito de sentido entre interlocutores, considerando-se que o sujeito não é a

origem de sua fala, embora seja nele que os processos discursivos se realizem, tal como

salienta Orlandi: “os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, embora eles se

realizem necessariamente nesse sujeito” (1996b, p. 218).

A AD criada por Pêcheux passou por três fases durante seu percurso de consolidação

teórica. Cada uma dessas fases caracterizou-se por mudanças significativas. Esses processos

de evolução, segundo Grigoletto, passam pelo

abandono de uma posição ‘estruturalista’ que se traduzia, de um lado, numa rigidez

na seqüência das etapas da análise – que partia da análise sintática de enunciados

elementares para chegar à fase interpretativa de seqüências do corpus e, assim,

remontar à análise dos processos discursivos (...) e, de outro, numa concepção de

sujeito concebido apenas como efeito de assujeitamento à máquina estrutural. (1998,

p.17).

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A primeira fase das citadas acima diz respeito à exploração metodológica da noção de

maquinaria discursiva estrutural. Concebe o processo da produção discursivo como “uma

máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura

determina os sujeitos como produtores de seus discursos” (PÊCHEUX, 1997a, p. 311). Neste

estágio, acreditava-se que o sujeito era produtor de seu discurso. Já no segundo momento,

com a incorporação dos conceitos de Formação Discursiva e Interdiscurso5, há um

deslocamento teórico em relação ao primeiro momento, passando a serem focos de estudos as

relações entre os diferentes tipos de discursos.

Definida por Foucault6 como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre

determinadas no tempo e no espaço, que definiram uma época dada, e para uma área social,

econômica e geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa”

(1987, p. 43-4). A Formação Discursiva (FD), segundo Pêcheux (2009), é a matriz de sentido

que constitui o que o sujeito pode ou não pode dizer. Sob este viés, a linguagem para a AD é

opaca e “permanece como relação de sentido que informa o dizer de ‘x’” (ORLANDI, 2003,

p. 82). Por sua vez, a língua7 não é abstrata. Ela existe e é concreta, manifestando-se no

discurso do sujeito, discurso esse atravessado pela ideologia, pois “não há discurso sem

sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é

assim que a língua faz sentido” (Op.Cit., p. 17).

Essa nova teoria iniciada por Pêcheux não ignorava a pesquisa saussureana sobre a

linguagem. Ao contrário, foi a partir da reformulação dos estudos de Saussure que Michel

Pêcheux reestruturou o discurso, uma comprovação de que a dicotomia língua/fala da teoria

de Saussure era ilusória, pois, para ele, “tudo se passa como se a língua científica (tendo por

objeto a língua) liberasse um resíduo que é o conceito filosófico de sujeito livre, pensado

como o avesso indispensável, o correlato necessário do sistema” (MALDIDIER, 2003, p. 22).

5 A caracterização do interdiscurso de uma FD é, então, um ponto crucial da perspectiva desenvolvida por

Pêcheux: a partir do interdiscurso as modalidades do assujeitamento poderão ser analisadas. Com efeito, o

interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva

dominada por uma FD determinada, os objetos de que o sujeito enunciador se apropria para deles fazer

objetos de seu discurso, assim como as articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar

uma coerência à sua declaração (COURTINE, 2009, p. 74). 6 De Michel Foucault vem a problematização sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua dispersão, que

resultará na abertura do conceito de formação discursiva, na discussão das relações entre os saberes e os (micro)

poderes, na preocupação com a questão da leitura, da interpretação, da memória discursiva. (GREGOLIN, 2001,

p. 04) 7 A língua não é histórica precisamente na medida em que ela é um sistema (pode-se também dizer uma

“estrutura”); é na medida em que a língua é um sistema, uma estrutura, que ela constitui o objetivo teórico da

Linguística.[...] A “língua” como sistema se encontra contraditoriamente ligada, ao mesmo tempo, à “história” e

aos “sujeitos falantes” e essa contradição molda atualmente as pesquisas linguísticas sob diferentes formas, que

constituem precisamente o objeto do que se chama a “semântica” (PÊCHEUX, 2009, p. 20-21).

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18

Pêcheux indaga-se a respeito do conceito de sujeito filosófico livre. Influenciado por

Althusser, descreve que o sujeito é preso às condições ideológicas que o compõem e que o

fazem ser reconhecido como sujeito; não é, pois, um sujeito livre. O sujeito se constitui

através da linguagem8, na interação com os aspectos sócio-históricos e com a ideologia a que

se filia. Portanto, seu discurso é portador de vários outros, presentes em um já-lá, que o

constitui e sustenta sua identidade discursiva.

Já sob a perspectiva da psicanálise, a AD estuda o sujeito desejante, o sujeito

assujeitado que é construído pela linguagem9 e interpelado pela ideologia, pois, como afirma

P. Henry, “o sujeito é sempre e ao mesmo tempo sujeito da ideologia e sujeito do desejo

inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem

antes de qualquer cogitação” (1992, p. 188).

1.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso

Toda fala resulta assim de um efeito de

sustentação no já dito que, por sua vez, só funciona

quando vozes que se poderiam identificar em cada

formulação particular se apagam e trazem o sentido para

o regime do anonimato e da universalidade.

ENI ORLANDI

Conforme Pêcheux (1997a), o discurso é efeito de sentido entre locutores, o que

proporciona a percepção de que a linguagem não é somente um mecanismo de comunicação,

ou seja, é muito mais que estímulo e resposta para o envio de uma mensagem.

É fundamental salientar que a linguagem é constitutiva do sujeito, pois o discurso

proporciona o sentido entre os locutores e desta forma se concretiza na história da

humanidade. Enfatiza Orlandi, que não se trata “de trabalhar a historicidade do texto, isto é,

trata-se de compreender como a matéria textual produz sentido” (2006, p. 23).

8 A linguagem é “[...] um sistema de signos verbais que serve para formular pensamentos no processo de

reflexão da realidade objetiva pela cognição subjetiva e para comunicar socialmente esses pensamentos sobre a

realidade, bem como as experiências emocionais, estéticas, volitivas, etc., a esta relacionadas. (PÊCHEUX,

2009, p. 17) 9 É amplamente reconhecido: o caráter social da linguagem. Esta surge para possibilitar a comunicação humana.

A comunicação é uma necessidade dos seres humanos. O processo de humanização do mundo e a constituição da

sociedade só se tornam possíveis existindo esta comunicação através da linguagem. A origem da linguagem,

portanto, está ligada a necessidade dos seres humanos de realizarem uma associação. Esta necessidade de

associação é tanto afetiva, como coloca Rousseau, quanto “material”, negada por ele. Neste sentido, a linguagem

possui uma origem e um caráter sociais. Assim, a linguagem é um dos elementos constitutivos do processo

discursivo o qual se dá sob determinadas condições histórico-sociais e ideológicas.

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19

É relevante salientar que as Formações Ideológicas (FI)10

são as que determinam o

discurso, pois este sempre está direcionado ao âmbito social; como afirma Pêcheux (1975), as

palavras e as expressões mudam de sentido conforme o contexto em que são empregadas.

Esses sentidos são, portanto, determinados pelas Formações Ideológicas (FI).

Por outro lado, é importante frisar que o discurso, na perspectiva da AD, intervém

entre o homem e a realidade, pois é “o lugar em que se pode observar a relação entre língua e

ideologia, compreendendo-se como a Língua produz sentido por/para os sujeitos”

(ORLANDI, 2003, p. 15 e 17). É neste sentido que o sujeito do discurso interage em várias

formações discursivas que contribuem para sua formação enquanto sujeito social e assim se

reproduzem no seu discurso. Desta forma, as FD11

são ideológicas e se utilizam da língua para

materializar-se semanticamente.

Pêcheux percebe que a oposição entre fala/língua não tem relação com a problemática

do discurso, mas reflete sobre a língua estudada por Saussure. Diz que a língua “deixa de ser

compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma

ciência pode descrever o funcionamento” (1997b, p.62).

Pêcheux coloca o discurso “entre a linguagem (vista a partir da linguística, do conceito

saussureano de langue) e a ideologia” (HENRY, 1997, p. 35). Portanto, o discurso assume

uma leitura de mundo, porém de maneira diferente, conforme o momento histórico.

Por outro lado, a formulação do conceito de Formação Discursiva, em Michel

Foucault, está desenvolvida principalmente em A arqueologia do saber, obra de caráter

teórico-metodológico publicada em 1969. Nela o autor reflete sobre as condições de

possibilidade do discurso. Escreve ele que uma Formação Discursiva apresenta-se como um

sistema de relações entre objeto, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. Simplificando,

explicita o autor que a FD é vista como um conjunto de enunciados que não se resumem

simplesmente a objetos linguísticos, mas sim, são submetidos a uma mesma regularidade e

dispersão na forma de uma ideologia, ciência, teoria, etc. Assim, Foucault define o discurso

10

Uma Formação Ideológica (FI), definem Pêcheux e Fuchs em Gadet; Hak (1997b, p. 166), é um conjunto

complexo de representações que não são nem ‘individuais’ nem universais mas se relacionam mais ou menos

diretamente a posição de classes em conflito umas com as outras. 11

A noção de Formação Discursiva (FD), introduzida inicialmente por Foucault, foi reformulada depois, no fim

dos anos 70, no quadro da AD por Michel Pêcheux, para quem uma FD “é aquilo que, numa formação

ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pela luta de classes,

determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de

uma exposição, de um programa, etc.). Por sua vez, Pêcheux a entende, pois, como “espaço de reformulação-

paráfrase onde se constitui a ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade falante’ pela qual cada um sabe de

antemão o que o ‘outro’ vai pensar, vai dizer...” (2009, p. 172).

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20

como “[...] um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma

mesma formação discursiva” (1987, p. 250).

Para Pêcheux, todo discurso se constitui a partir de uma memória e do esquecimento

de outro discurso. Os sentidos vão se construindo no embate com outros sentidos. Assim,

quando não conseguimos recuperar a memória que sustenta aquele sentido, temos o nonsense.

Ainda que o falante não tome consciência desse movimento discursivo, ele flui naturalmente.

A memória discursiva, também enfatizada por Pêcheux como interdiscurso, de outro modo, é

um saber que possibilita que nossas palavras façam sentido. Esse saber corresponde a algo

falado anteriormente, em outro lugar, a algo “já dito” que, entretanto, continua alinhavando os

nossos discursos.

Nesta mesma perspectiva, Courtine (2009, p. 74), destaca que o Interdiscurso se

constitui no processo de reconfiguração constante, no qual a Formação Discursiva é

provocada a incorporar elementos pré-construídos, produzidos no exterior dela própria. Dessa

forma, a FD se apresenta a partir do Interdiscurso como um domínio aberto12

.

Por sua vez, Pêcheux denomina o Interdiscurso como o “todo complexo com

dominante13

das formações discursivas” (1975, p. 163). Neste sentido, o Interdiscurso está

entrelaçado no complexo das Formações Ideológicas (FI), que toda a Formação Discursiva

(FD) mascara na ilusão de proporcionar a transparência de sentido que nela se forma. O

Interdiscurso é o lugar onde se constituem os objetos do saber (os enunciados).

Acompanhando as ideias propostas por Pêcheux (2009, p. 153), pode-se dizer que o

Intradiscurso é o

funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com

relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos

fenômenos de “co-referência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do

discurso”, enquanto discurso de um sujeito14

-15

.

12

A caracterização do interdiscurso de uma FD é, então, um ponto crucial da perspectiva desenvolvida por

Pêcheux: a partir do interdiscurso as modalidades do assujeitamento poderão ser analisadas. Com efeito, o

interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva

dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para deles fazer

objetos de seu discurso, assim como as condições entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar

uma coerência à sua declaração (COURTINE, 2009, p. 74). 13

Conceito desenvolvido por Althusser através da leitura dos livros de Marx. Em seu texto da Defesa da tese de

Amiens: “(...) defendi que Marx tinha uma ideia distinta de Hegel sobre a natureza duma formação social; e

pensei poder manifestar essa diferença dizendo: Hegel pensa uma sociedade como uma totalidade, enquanto

Marx a pensa como um todo complexo, estruturado e com uma dominante (...) para marcar que na concepção

marxista duma formação social tudo se relaciona, a independência de um elemento não é mais do que a forma da

sua dependência, e o jogo das diferenças é regulado pela unidade de uma determinação em última instância: o

todo marxista é complexo e desigual” (PÊCHEUX, 2009, p. 146-148). 14

Grifos do autor. 15

Observamos a esse respeito que, se essa articulação funciona no nível consciente sob as diferentes formas da

coerência lógica (relação de “causa”, de “concessão”, de “ligação temporal” etc.), não se reduz a isso: a

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A noção de intradiscurso é considerada por Pêcheux (1975, p. 163) como “o fio do

discurso” do sujeito falante, ou seja, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo. “Nesse

sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a

rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente

determinada como tal ‘do exterior’” (PÊCHEUX, 2009, p. 154); assim, o intradiscurso se

caracteriza por possuir dois traços distintos: o (pré)construído, traço identificado em qualquer

formação discursiva e semelhante a, ou funcionando como, um (pré)conceito histórico que é

do conhecimento geral, e a articulação, aquilo que permite a um sujeito constituir-se como tal

em relação àquilo com que o próprio discurso se constrói.

Denise Maldidier, em A inquietação do discurso, (Re)ler Michel Pêcheux hoje (2003),

ressalta que o intradiscurso é definido como o

funcionamento do discurso em relação a ele mesmo (ao que eu digo agora, em

relação ao que disse antes e ao que direi depois), (...). O intradiscurso só pode ser

compreendido na relação com o interdiscurso. Ele não designa a realidade empírica

do encadeamento discursivo. Ele lhe fornece o conceito. O intradiscurso só pode ser

pensado como o lugar em que a forma-sujeito tende a “absorver-esquecer o

interdiscurso no intradiscurso”. (MALDIDIER, 2003, p. 54).

Maldidier assevera, ainda, que o interdiscurso não se simplifica apenas na designação

trivial dos discursos. Dessa forma, tomando como base os estudos de Althusser, define o

discurso como “‘o todo complexo a dominante’ das formações discursivas, intrincado no

complexo das formações ideológicas, e ‘submetido à lei de desigualdade-contradição-

subordinação’” (2003, p. 51). Acompanhando a ideia de interdiscurso, ainda, advoga que “o

interdiscurso, em sua intrincação com o complexo das formações ideológicas, ‘fornece a

‘cada sujeito’ sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidencias e de significações ‘percebidas-

aceitas-sofridas’” (2003, p. 53).

É em conformidade com essas ideias que analisarei, na obra literária Elite da tropa 2

(2010) e no filme Tropa de elite 2 - O inimigo agora é outro (2010), o discurso do

protagonista, Tenente Coronel Nascimento, em sua condição de sujeito discursivo.

1.1.2 Ideologia e Formação Discursiva

incidência de certas aposições ou incisas pode representar a irrupção, no fio discursivo, de um processo

inconsciente, como Freud o havia percebido a propósito da Verneinung. (PÊCHEUX, 2009, p. 153).

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Ideologia não se define como conjunto de

representações, nem muito menos como ocultação de

realidade. Ela é uma prática significativa; sendo

necessidade da interpretação, não é consciente – ela é

efeito da relação do sujeito com a língua e com a

história em sua relação necessária, para que se

signifique.

ENI ORLANDI

O termo ideologia, segundo afirma Chauí, foi

criado pelo filósofo Destutt de Tracy, em 1810, na obra Elements de Idéologie,

nasceu como sinônimo da atividade científica que procurava analisar a faculdade de

pensar, tratando as ideias como fenômenos naturais que exprimem a relação do

corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. (1984, p. 19).

Na AD, o conceito de ideologia deriva do trabalho de Althusser, em Aparelhos

Ideológicos do Estado (1983). Nessa obra, o autor afirma que, para perpetuar sua dominação,

a classe dominante cria meios de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas

de exploração.

Em seu texto O mecanismo do (des)conhecimento ideológico (1996, p. 143-152),

Michel Pêcheux procura esclarecer alguns conceitos sobre a ideologia que, se não bem

interpretados, poderiam obscurecer o entendimento total de sua obra e, também, para auxiliar

a leitura de Althusser em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Ele afirma que a

ideologia não é um Zeitgeist16

, como pode parecer de primeiro momento, e tampouco existe

uma ideologia para cada classe social, formando mundos diferentes que lutam entre si. Para

Althusser, “o objeto da ideologia não é o ‘mundo’, mas a relação do ‘sujeito’ com o mundo

ou, mais precisamente, com suas condições reais de existência” (1983, p. 39)17

.

Uma das questões mais relevantes da Análise do Discurso de linha francesa,

intimamente relacionada com a ideologia na forma como a entende Althusser, é a Formação

Discursiva (FD), pois tem a ver diretamente com o sujeito e a forma como esse mesmo sujeito

se relaciona e interage com o mundo. Para Michel Foucault “[a] unidade de uma formação

discursiva não é a manifestação majestosamente desenvolta de um sujeito que pensa, que

conhece o que diz: é, ao contrário, um conjunto onde se pode determinar a dispersão do

16

Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito de época, espírito do tempo ou sinal dos tempos,

conforme explica o mesmo Pêcheux. (1996, p. 144). 17

Em suma, a teoria de Althusser sobre ideologia não comporta a existência de uma ideologia una e que seja

dominante no sentido de determinar a unificação dos aparelhos ideológicos. A unidade da ideologia seria a

unidade de um processo de unificação, constantemente retomado nos aparelhos ideológicos e fora deles (já que

os aparelhos não ideológicos funcionam também “à base da ideologia”) e, por conseguinte, a dominância de uma

ideologia só poderia ser um momento de equilíbrio. (...) do sujeito. (ALTHUSSER, 1918, p. 37).

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sujeito e sua descontinuidade consigo” (FOUCAULT, 1996, p. 74). Assim Foucault concebe a

Formação Discursiva não em termos de ideologia, que ele não discute, preferindo abordar a

constituição do saber/poder, que, segundo diz, não passariam pela questão das classes sociais.

Michel Pêcheux afirma que muitos de seus conceitos sobre formação discursiva estão

relacionados com os estudos propostos por Michel Foucault. No entanto, os conceitos

formados por ambos bifurcam-se de forma harmoniosa, visto que Foucault estabelecia as

relações entre dizer e o fazer, sempre evidenciando a não autonomia das práticas discursivas.

Assim, calcado nos conceitos marxistas, e a partir da leitura de Althusser, Pêcheux

fundamenta seus estudos sobre discurso e ideologia. Ele prioriza seus estudos na ideologia

afirmando que esta é provinda das lutas de classes, as quais possibilitam o surgimento da

história, cujos embates contínuos podem promover uma revolução, o que geraria uma ruptura

na estrutura social, desaparecendo, assim, a classe dominante.

Ao fundamentar as formações discursivas na AD, Pêcheux possibilita uma

reestruturação dos conceitos de ideologia e de luta de classes, extraindo das pesquisas de

Foucault o que tinha de materialismo e revolucionário. Pêcheux publica Semântica e

Discurso - Uma crítica à afirmação do óbvio, na qual se contata que é retomada a definição

inicial, de que uma Formação Discursiva é “o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma

de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc)” em

uma formação ideológica definida, isto é, a partir de uma posição de classe no seio de uma

conjuntura dada (MALDIDIER, 2003, p. 52).

Pêcheux ressalta, portanto, que a ideologia proporciona o espaço para questões das

fronteiras flexíveis da formação discursiva:

Naquilo que concerne à ideologia, corresponde o fato de que os aparelhos

ideológicos do Estado são por sua própria natureza plurais: eles não formam um

bloco ou uma lista homogênea, mas existem dentro de relações de contradição-

desigualdade-subordinação tais que suas propriedades regionais (sua especialização,

nos domínios da religião, do conhecimento, da moral, do direito, da política, etc)

contribuem desigualmente para o desenvolvimento da luta ideológica entre as duas

classes antagonistas, intervindo desigualmente na reprodução ou na transformação

das condições de produção. (PÊCHEUX, 1990, p. 54).

Os discursos ideológicos não são homogêneos, o que significa que as regras que o

determinam apresentam-se como um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos,

conceitos e estratégias. É neste sentido que as Formações Discursivas não são idênticas,

considerando-se que cada uma “só existe sob a modalidade da divisão, e não se realiza a não

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ser na contradição que com ela organiza a unidade e a luta dos contrários” (PÊCHEUX, 2009,

p. 57).

A propósito, Orlandi salienta que a ideologia “é a condição para a constituição do

sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza

o dizer” (2003, p. 46). Embasada nos estudos de Michel Pêcheux, a autora afirma que a

característica primordial da ideologia é dissimular sua existência no interior de seu próprio

funcionamento.

Orlandi (2003) declara, ainda, que pela presença da ideologia, mesmo diante de

qualquer objeto simbólico, o homem é instado a desenvolver seu dizer. Dessa forma, a

ideologia produz evidências permitindo ao sujeito defrontar-se e relacionar-se com o

imaginário e com suas condições materiais de existência. Para Althusser “a ideologia existe

para sujeitos concretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo sujeito: isto é, pela

categoria de sujeito e de seu funcionamento” (1983, p. 93). Assim, a base do discurso é o

sujeito, uma vez que este se constitui ideologicamente, além de estar entrelaçado diretamente

com a língua. Orlandi também explicita que a ideologia “é a interpretação do sentido em certa

direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos

imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária entre a

linguagem e o mundo” (1996b, p. 31).

Lembre-se que todo sujeito está diretamente ligado à ideologia pela história. Com isso,

seu dizer assume uma forma subjetiva. Assim, ao relembrar Foucault (1987), Orlandi pondera

que o sujeito discursivo sustenta uma “posição, não como uma forma de subjetividade18

, mas

um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz” (2003, p. 49). Isso significa que esse sujeito

estará adquirindo uma identidade discursiva conforme o posicionamento que ocupe em sua

Formação Discursiva.

Ainda de acordo com Orlandi, é importante ressaltar que “todo texto é heterogêneo do

ponto de vista de sua construção discursiva: ele é atravessado por diferentes formações

discursivas, ele é afetado por diferentes posições do sujeito, em sua relação desigual e

contraditória com os sentidos, com o político, com a ideologia” (2003, p. 115). Com base

neste ponto de vista é que busco neste trabalho, a partir da análise do corpus, identificar a

relação entre língua e ideologia dos sujeitos envolvidos na construção do discurso. A

18

Enquanto na Teoria da Enunciação (TE) o Eu é considerado sujeito e centro de toda enunciação, na AD a

subjetividade se desloca do eu e passa a ser vista como inerente a toda linguagem, constituindo-se, portanto,

mesmo quando este eu não é enunciado. Para a teoria discursiva, o sujeito não é a fonte do sentido, nem o senhor

da língua. Despossuído de seu papel central, o sujeito é integrado ao funcionamento do discurso, determinando e

sendo determinado tanto pela língua quanto pela história (FERREIRA, 2001, p. 21).

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compreensão do funcionamento da ideologia é importante nesta pesquisa, uma vez que

possibilita o entendimento sobre a não transparência da língua, ou seja, mostra como a língua

produz sentidos por/para os envolvidos no processo discursivo de Tropa de Elite 2 – O

inimigo agora é outro, a narrativa fílmica.

1.1.3 Sujeito Discursivo e Posição-Sujeito

A Análise do Discurso iniciada por Michel Pêcheux (1969) compreende o sujeito

como uma posição do discurso. Isso possibilita deixar de lado a noção de indivíduo e

considerar o sujeito discursivo determinado no/pelo dizer, usufruindo palavras já ditas,

internalizadas e plenas de significados. Segundo Ferreira (2004), trata-se então de um sujeito

desejante, sujeito do inconsciente, materialmente constituído pela linguagem e interpelado

pela ideologia.

Para Orlandi, “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo

é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (1999, p. 17). Não

se trata, entretanto, de um sujeito falante. Ao contrário, trata-se de um sujeito inserido numa

conjuntura social, histórica e ideologicamente marcada, um sujeito que não é homogêneo e

sim heterogêneo, constituído por um conjunto de diferentes vozes.

As diferentes vozes constituintes do sujeito e que se manifestam no discurso são

objeto de dois tipos de esquecimento, segundo a teoria pecheutiana, isto é, o Esquecimento 1

e o Esquecimento 2. No primeiro esquecimento, o sujeito acredita ser criador absoluto do seu

discurso. Desta forma, este sujeito procura apagar, eliminar tudo o que faz acreditar que o

discurso não seja seu exclusivamente. Esse tipo de esquecimento tem natureza ideológica e

inconsciente; tem relação, portanto, com o Outro lacaniano (A), sendo ele o responsável pelo

apagamento, para o sujeito, do processo da constituição dos sentidos. Por outro lado, o

segundo esquecimento é pré-consciente ou semiconsciente, tem relação com o pequeno outro

lacaniano (a), e é por ele que o sujeito acredita que tudo que diz é claro, idêntico ao que ele

pensa, que é livre de ambiguidades porque tem apenas um significado, aquele que seu autor

pensa ter sido entendido por seu interlocutor. É pela ação desses dois esquecimentos que o

sujeito não percebe a influencia de outros discursos em sua fala, da mesma forma que não

consegue saber, muito menos controlar, os efeitos de sentido de seu dizer.

Segundo Orlandi,

o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e,

de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e

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também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em que os

fatos fazem sentidos por se inscreverem em formações discursivas que representam

no discurso as injunções ideológicas.

Sujeito à falha, ao jogo, ao acaso, e também à regra, ao saber, à necessidade. Assim

o homem (se) significa. Se o sentido e o sujeito poderiam ser os mesmos, no entanto

escorregam, derivam para outros sentidos, para outras posições. A deriva, o deslize é

o efeito metafórico, a transferência, a palavra que fala com outras (ORLANDI,

2003, p. 53).

Portanto, na AD de Michel Pêcheux o sujeito é ideológico e histórico, pois sempre está

inserido em um ambiente social, bem como no tempo histórico. Lembre-se que os estudos

abordados por Pêcheux na AD tiveram uma trajetória acidentada, com ratificações e

retificações, ajustes, desvios e retomadas. Através dos estudos entre linguística e as ciências

das formações sociais, Michel Pêcheux reflete sobre as relações de incoerência entre essas

disciplinas “caracterizando-se, não pelo aproveitamento de seus conceitos, mas por repensá-

los, questionando, na linguística, a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas

ciências das formações sociais, a noção de transparência da linguagem sobre a qual se

assentam as teorias produzidas nestas áreas” (PÊCHEUX, 2009, p. 11). Assim Pêcheux

propõe “um descolamento das noções de linguagem e sujeito que se dá a partir de um trabalho

com a da ideologia” (PÊCHEUX, 2009, p. 11). Em seus estudos, ele demonstra como as

ideologias se manifestam no funcionamento da linguagem. Neste sentido, a linguagem não

deve ser compreendida como um sistema fechado, mas sim, deve ser entendida conforme o

contexto histórico e ideológico de que o sujeito-discursivo faz parte.

Tomo outro texto de Pêcheux para ressaltar que, “as palavras, as expressões, as

proposições, etc. mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que

empregam” (1997a, p. 160). Neste aspecto, é possível compreender que o sentido19

também

está relacionado à posição que o sujeito ocupa no discurso, na sua relação constitutiva com as

formações discursivas que o constituem. Assim, a posição-sujeito “determina o que pode e

deve ser dito” (PÊCHEUX, 1997a, p. 190). Por outro lado, a posição-sujeito pode também

afetar o mecanismo de interpelação ou o sentido de outras formações discursivas, provocando

a mudança na posição-sujeito, de Formação Ideológica. Assim, devido às “condições

ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção” (PÊCHEUX, 1997a, p.

143) e das “relações de contradição-desigualdade-subordinação” (Idem, p. 145) a posição-

sujeito possui um caráter heterogêneo.

19

O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, só pode ser constituído em

referência às condições de produção de um determinado enunciado, uma vez que muda de acordo com a

formação ideológica de quem o (re)produz, bem como de quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não

existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas está sempre em curso, é

movente e se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a necessidade de se falar em efeitos de

sentido (FERREIRA, 2001, p. 21).

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27

Por outro lado, Orlandi ressalta que, “o sujeito é um lugar de significação

historicamente constituído, ou seja, uma posição” (1998b, p. 75), ou ainda, “o sujeito do

discurso é pensado como ‘posição’ entre outras” (ORLANDI, 2003, p. 49). Na perspectiva da

AD, é importante salientar que a posição-sujeito não corresponde à presença física, muito

menos aos lugares objetivos da estrutura social, mas sim à posição-sujeito, que “é um lugar

social representado no discurso” (ORLANDI, 1998b, p. 75).

Por fim, “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de

si mesmo, se deslocar discursivamente para derivar para um outro” (Pêcheux, 1975, p. 53),

Essa noção de enunciado é significativa para a AD, pois o sentido não é compreendido como

uma unidade fixa, já que é histórico e, por isso, pode deslizar para outro. Nesta perspectiva, é

possível destacar que, no corpus analisado, o discurso dos personagens não é transparente,

resulta da interpretação do dizer de outros sujeitos, que falam de suas respectivas posições-

sujeito, determinadas na maioria das vezes em dissonância com a prática socialmente aceita.

Isso comprova o dizer de Orlandi (2003), de que a constituição do sujeito se dá na dinâmica

social na qual ele está inserido, influenciado pelas instituições de sua sociedade e pela língua

que utiliza.

1.2 Efeitos de sentido e tramas discursivas

Há um funcionamento das línguas em relação a elas

mesmas.

MICHEL PÊCHEUX

Conforme Pêcheux (1997a), o discurso é o efeito de sentido20

entre locutores, o que

proporciona a percepção de que a linguagem não é somente um mecanismo de comunicação.

Por outro lado, é importante frisar que o discurso21

, na perspectiva da AD, intervém

entre o homem e a realidade, pois é “o lugar em que se pode observar a relação entre língua e

ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por/para os sujeitos” (ORLANDI,

2003, p. 15-16). É neste sentido que as formações discursivas enriquecem a formação do

sujeito enquanto sujeito social e assim se reproduzem no seu discurso. Desta forma, as FD são

ideológicas e se utilizam da língua para materializar-se semanticamente.

20

Para melhor compreensão, entende-se por efeitos de sentido, que ao invés de se prender a uma interpretação

legítima, entende-se o discurso como “efeito de sentido entre interlocutores” (PÊCHEUX, 2009, p. 40), ou seja,

há outros efeitos possíveis e muitas vozes ecoam no mesmo discurso, apesar do sujeito não se dar conta disso. 21

O discurso é implicitamente assimilado a uma prática específica, requerida pela relação de forças sociais e

sempre realizado através de aparelhos (MALDIDIER, 2003, p. 33).

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28

Segundo Cardoso (1999), Pêcheux percebe que a oposição entre fala/língua não tem

relação com a problemática do discurso, porém ele reflete sobre o conceito saussureano de

língua. Assim, segundo Pêcheux, a língua “deixa de ser compreendida como tendo a função

de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o

funcionamento” (PÊCHEUX, 1997b, p. 62).

Pêcheux coloca o discurso “entre a linguagem22

(vista a partir da linguística, do

conceito saussureano de langue) e a ideologia” (HENRY, 1997, p. 35). Por tanto, o discurso

assume uma leitura de mundo, porém de maneira diferente, conforme o momento histórico,

ou seja, o discurso é ideológico.

Contudo, interpretar um texto é procurar compreender os efeitos de sentido que este

mesmo texto produz. Significa dizer que, para encontrar o movimento do sentido, é preciso

partir do funcionamento do discurso para assim considerá-lo como espaço em que se pode

compreender a relação entre a língua e o sujeito, bem como o sentido por e para o sujeito.

O processo constitutivo do discurso está no domínio do saber, no já-dito, isto é, na

memória23

. Dessa forma, a Análise do Discurso contribui para a relação significativa entre o

dizer e o não-dizer, constituindo-se, assim, uma relação estabelecida com a memória, com o

que se chama de saber discursivo, indo à procura da significação do dito no não-dito, daquilo

que é silenciado e que constitui sentido.

A Análise do Discurso sustenta que o sentido não está atrelado ao significante, que um

texto pode ter muitos sentidos, e que o sentido é um produto, resultado de um processo. Na

Análise do Discurso, não se trata do sentido enquanto entendimento, enquanto tradução,

enquanto racionalização, e sim de sentido como efeito/produção de uma enunciação24

.

1.2.1 Heterogeneidade discursiva – marcas visíveis versus marcas invisíveis

22

Não são unicamente as diferentes condições de produção que determinam efeitos de sentido diferentes,

portanto, mudanças de sentido; são também as condições de circulação dos discursos, seus encontros (EBEL &

FIALA, 1997, p. 10). 23

Courtine aprofunda os estudos sobre a memória, concebida como uma categoria de memória que opera no

interior de uma FD; em outras palavras, a noção de memória discursiva concerne à existência histórica do

enunciado no âmago de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos. A memória discursiva pode ser

compreendida como uma forma de repetição e, considerando-se que o discurso se articula a partir dos dois eixos,

o horizontal e o vertical, também a memória se manifesta nestes dois níveis: no interdiscurso e no intradiscurso. 24

Processo de reformulação de um enunciado através do qual ele é posto em funcionamento, surgindo como

uma de suas possíveis formas de atualização. Os processos de enunciação consistem em uma série de

determinações sucessivas, pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm como característica

colocar o "dito" e, em consequência, rejeitar o não-dito (FERREIRA, 2001, p. 14).

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29

Esse modo de “jogo com o outro” no discurso opera no

espaço do não-explícito, do “semidesvelado”, do

“sugerido”, mais do que do mostrado e do dito:

é desse jogo que tiram sua eficácia retórica muitos

discursos irônicos, antífrases, discursos indiretos livres,

colocando a presença do outro em evidencia tanto mais

que é sem o auxilio do “dito” que ela se manifesta:

é desse jogo, “no limite”, que vêm o prazer – e os

fracassos – da decodificação dessas formas.

AUTHIER-REVUZ.

Destaco inicialmente Semântica e Discurso – Uma crítica à afirmação do óbvio

(2009), de Michel Pêcheux, em que o autor revisa algumas informações sobre a AD. Nesta

edição, ele apresenta alguns esboços da noção de heterogeneidade discursiva, embasados no

estudo de formações discursivas. Pêcheux analisa a FD não mais como “um lugar estrutural

fechado, pois é constitutivamente ‘invadida’ por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de

outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhes suas evidências discursivas fundamentais”

(1975, p. 314).

Quanto a Análise do Discurso, mais especificamente na terceira época, como ficou

conhecida, aprofundaram-se os estudos sobre o sujeito heterogêneo25

, um sujeito que é

marcado pela interferência de vários outros discursos.

A propósito da expressão “heterogeneidade”, esteve ela sempre latente no trabalho

teórico de Pêcheux, cuja preocupação central, independente das fases da AD, é o que definiu

o estudo da disciplina, o discurso. No entanto, foi somente a partir de década de 80, ou a partir

da terceira época ou AD3, assim como a definiu Michel Pêcheux, que o discurso é colocado

sob o signo da heterogeneidade, quando “o primado teórico do outro sobre o mesmo se

acentua” (PÊCHEUX, 1975, p. 315).

Em um de seus últimos textos, A análise do discurso: três épocas (1997b), Pêcheux

faz uma revisão das fases por que passou a AD e afirma que, na terceira fase, são tematizadas

as formas linguístico-discursivas do “discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou

discurso do sujeito se colocando em cena como um outro (...) mas também e sobretudo a

insistência de um ‘além’ interdiscursivo que vem (...) estruturar esta encenação ao mesmo

tempo em que a desestabiliza” (PÊCHEUX, 1997b, p. 316-317).

25

Termo utilizado pela AD para destacar que todo discurso é atravessado pelo discurso do outro ou por outros

discursos. Estes diferentes discursos mantêm entre si relações de contradição, de dominação, de confronto, de

aliança e/ou de complementação.

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30

Em suas observações, Pêcheux percebe que o discurso não é homogêneo, e sim,

heterogêneo. Essa heterogeneidade passa a caracterizar a FD. No entanto, algumas indicações

começam a pairar sobre esse novo conceito, da então AD3.

Se a análise de discurso se quer uma (nova) maneira de “ler” as materialidades

escritas e orais, que relação nova ela deve construir entre a leitura, a interlocução, a

memória e o pensamento? O que faz com que textos e sequências orais venham, em

tal momento preciso, entrecruzar-se, reunir-se ou dissociar-se? Como reconstruir,

através desses entrecruzamentos, conjunções e dissociações, o espaço de memória

de um corpo sócio-histórico de traços discursivos, atravessado de divisões

heterogêneas, de ruptura e de contradições? Como tal corpo interdiscursivo de

traços se inscreve através de uma língua, isto é, não somente por ela, mas também

nela? (PÊCHEUX, 1997b, p. 317)26

.

Jacqueline Authier-Revuz, uma das inspiradoras da reformulação feita por Pêcheux

com relação à maneira de analisar a materialidade discursiva, que se detém nas questões de

confrontamento entre Lingüística, História e Psicanálise, em suas análises, destaca dois tipos

de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada.

A heterogeneidade mostrada corresponde à presença localizável de um discurso

outro no fio do discurso. Distingue-se as formas não-marcadas (constitutiva) dessa

heterogeneidade e suas marcas (mostrada). O co-enunciado identifica as formas não-

marcadas combinando em proporções variáveis à seleção de índices textuais ou

para-textuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao

contrário, são assinaladas de maneira unívoca: pode tratar-se de discurso direto ou

indireto, de aspas, etc. (COURTINE, 1981, p. 54).

A heterogeneidade constitutiva acontece quando o discurso é dominado pelo

interdiscurso, ou seja, uma articulação de formações discursivas que se referem a formações

ideológicas antagônicas.

Assim, na heterogeneidade constitutiva há um atravessamento de discursos, ou seja,

um discurso cruza outros discursos, e, consequentemente, o próprio discurso se bifurca e

interage com outros discursos. Por sua vez, a heterogeneidade mostrada refere-se aos

“processos de representação, num discurso, de sua constituição” (AUTHIER-REVUZ, 1990,

p. 32). Assim, os casos de heterogeneidade mostrada são como “formas linguísticas de

representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade

constitutiva do seu discurso” (Idem, p. 26). Nesta perspectiva, divide-se a heterogeneidade em

duas formas, a marcada e a não-marcada. Como já foi dito, a primeira se estabelece por

marcas claras de outros sujeitos na fala do eu, ou seja, é possível detectar marcas de outras

vozes discursivas no texto, como, por exemplo, no discurso direto, citações, aspas, parênteses,

26

Grifos do autor.

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31

itálico. Já na heterogeneidade mostrada não-marcada não é visível a presença de outros

discursos, isto é, a presença de outros sujeitos no discurso é implícita. Pode-se tomar como

exemplo a imitação, a ironia, estereótipo, o clichê.

Conforme Authier-Revuz, o discurso nunca é homogêneo, pois “sempre sob as

palavras, ‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na

linearidade de uma cadeia (discurso), se faça escutar a polifonia não intencional de todo

discurso” (1990, p. 28).

Denise Maldidier, em A inquietação do Discurso, (Re)ler Michel Pêcheux hoje,

(2003, p. 73), conclui que “o procedimento de Jacqueline Authier colocava em evidência as

rupturas enunciativas no ‘fio do discurso’, o surgimento de um discurso outro no próprio

discurso. Jacqueline Authier-Revuz traz elementos decisivos à problemática da

heterogeneidade do discurso”.

Em suma, Authier-Revuz analisa a presença do Outro/outro27

na enunciação,

utilizando-se do reconhecimento da língua como sistema de diferenças e como espaço de

equívocos. Associada à temática da heterogeneidade, cujo pressuposto atribui ao sujeito seu

descentramento e ao Outro um papel primordial no discurso do Mesmo, a autora toma a

heterogeneidade como fundante – a linguagem é heterogênea em sua constituição –, buscando

colocar em evidência as rupturas enunciativas no “fio do discurso”, e apresenta os elementos

decisivos para o surgimento de um discurso outro no discurso do mesmo.

1.2.2 Tropa de Elite 2- O inimigo agora é outro: o Eu e o Outro

Há dois outros por distinguir, pelo menos dois –

um outro com maiúscula e um outro com minúscula,

que é o eu.

JACQUES LACAN

O diálogo entre Literatura e Cinema é possível porque ambos compartilham de uma

mesma vocação: contar histórias. Ambos possuem estruturas narrativas, umas delas

identificada como narrativa fílmica, a outra por narrativa literária. É a partir dessa

identificação que se torna possível a apreciação das analogias e das diferenças.

Uma das questões mais discutidas a respeito da relação entre Literatura e Cinema é a

adaptação de textos literários. Assim, esta pesquisa, valendo-se de narrativa fílmica,

27

Na perspectiva teórica assumida por Authier-Revuz, o Outro refere-se ao inconsciente da teoria lacaniana,

enquanto o outro corresponde ao interlocutor.

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32

concentra-se nos efeitos de sentido da violência no discurso que permeia as relações entre o

poder instituído e o poder marginal. Como referência para o presente estudo, a obra que

constitui o corpus - Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro (2010), proposta do diretor

José Padilha.

A aproximação dessas duas obras possibilita ao leitor/espectador (receptor) observar

recursos linguísticos e imagéticos utilizados para viabilizar a adaptação da narrativa literária à

narrativa fílmica.

Um filme, um livro, duas linguagens diferentes. É importante ressaltar que o filme

Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro é baseado em uma obra literária, Elite da tropa 2.

No entanto, quando o filme é baseado em um corpus literário, realiza-se a passagem de uma

linguagem a outra. Esse espaço entre as duas obras é o que chamamos de tradução. Assim, a

tradução é o trabalho de interpretação da obra original, a ânsia de recriar algo novo, na outra

linguagem.

Partindo da constatação de que Elite da Tropa 2 (2010) e Tropa de Elite 2 – O inimigo

agora é outro (2010) são duas estruturas narrativas distintas uma da outra, a possibilidade de

uma leitura intertextual, por um viés metalinguístico, concretiza-se mediante a adaptação de

uma linguagem para outra. Sobre a passagem de conteúdos, Balogh comenta que:

As estruturas narrativas fazem parte da forma do conteúdo do texto e constituem o

que Metz chamou de “códigos não-específicos” ao falar do cinema. Ora, é

precisamente por constituírem o “código” comum, tanto do texto literário quanto do

texto fílmico e televisual, que propiciam a passagem de conteúdos do literário ao

sincrético, e constituem o ponto incoativo ideal para o percurso metalinguístico.

(1996, p. 44)28

.

É a identificação conteudística de uma estrutura narrativa com diálogos e imagens

vistos na tela que possibilita ao espectador reconhecer um filme como adaptação e,

automaticamente, resgatar o texto-fonte. Por este viés, Balogh (1996, p. 43) assegura que “[o]

filme adaptado deve preservar a sua autonomia fílmica, ou seja, sustentar-se como obra

fílmica, antes mesmo de ser objeto de análise como adaptação. Caso contrário, a adaptação

corresponderá ao que se costuma chamar significativamente de ‘tradução servil’”.

É plausível destacar que, sob o pressuposto da relação entre literatura e cinema e com

base nos fundamentos teóricos da Análise do Discurso, torna-se condizente que se tome como

subsídio os conceitos de Outro/outro, ou ainda do Eu e o Outro no cinema e na literatura.

Neste sentido, quando tratamos da relação existente entre o Eu e o Outro se faz necessário

28

Grifos do autor.

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33

compreender que essa é de caráter binário, ou seja, para que um exista se faz necessária a

existência de outro, como afirma Stam, “o eu necessita da colaboração de outros para poder

definir-se ‘autor’ de si mesmo” (1992, p. 17). Assim, cada eu e cada outro só se constituem

juntos. É tratar o outro como algo integrante de si mesmo, pensar que sem esse contato não

existiria nenhum outro.

Partindo do pressuposto de que o sujeito se caracteriza pela linguagem, a psicanálise

procura formas de constituição do sujeito não como homogêneo, mas na diversidade de uma

fala heterogênea, consequência de um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente, ou

seja, entre o Eu e o Outro. Deste modo, a pesquisa concentra-se em analisar o discurso da

policia, da milícia e da política, calcados nas bases teóricas da AD e da psicanálise.

Neste aspecto, a análise sob perspectiva literária e cinematográfica fundamenta-se na

psicanálise, pois o sujeito analisado convive entre conflitos, os quais o dividem entre o Eu e o

Outro. Por esse motivo, os conceitos lacanianos agregam maior consistência à pesquisa, em

sua condição de um dos três suportes da proposta teórico-analítica de Michel Pêcheux.

É com base nesse confronto entre o Eu e o Outro que, nesta pesquisa, tomarei a

personagem TC Nascimento como sujeito discursivo objeto desta análise, pois, além de se

tratar de personagem protagonista, é um sujeito que vive atormentado entre o poder e o não

poder, entre o aceitar e não aceitar. Isso ocorre por conviver discursivamente ligado à FD

militar, meio este hierárquico29

, baseado nas relações de subordinação.

1.2.2.1 Narrativa literária e narrativa fílmica – (des)aproximações

Segundo Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985, p. 45), a narrativa literária está sendo

influenciada pela narrativa cinematográfica. Essa tendência é fruto do crescimento das obras

cinematográficas. Porém, mesmo possuindo características próprias, a narrativa literária e a

narrativa fílmica podem e devem ser estudadas possibilitando uma relação dialógica entre

ambas.

É sabido que, antes de revelado, em um filme há aquilo que Avellar (1994, p. 106) diz

ser a “fronteira entre o cinema e a literatura”: o roteiro. É a partir do roteiro que é feita a

transmutação da narrativa literária para a narrativa fílmica.

29

Do latim hierarchia. Para fim de compreensão hierarquia militar, significa ordem, graduação existente numa

corporação qualquer, estabelecendo relações de subordinação entre os seus membros e diferentes graus de

poderes e responsabilidades. A divisão de hierarquia da policia militar brasileira consiste em coronel, tenente-

coronel, major, capitão, primeiro-tenente, segundo-tenente, aspirante, subtenente, primeiro-sargento, segundo-

sargento, terceiro-sargento, cabo e soldado.

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O corpus é classificado como “best-seller”. O roteiro de Tropa de Elite 2- o inimigo

agora é outro foi escrito com base no best-seller Elite da Tropa, escrito em parceria por

Cláudio Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE, André Batista, major da Polícia, Cláudio

Ferraz, delegado, e pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares. Juntos, os quatro criaram uma

história baseada em fatos e acontecimentos – a CPI das Milícias na Assembleia do Rio de

Janeiro, os inquéritos, as ações criminosas, além de histórias colhidas ao longo das pesquisas

– e personagens reais – cujos nomes foram mudados a fim de evitar processos judiciais.

É importante destacar que no livro Elite da tropa 2 estão descritos várias casos que

envolvem a milícia. É somente a partir do capítulo XIX da obra que o diretor José Padilha

passa a basear-se para produzir as cenas do filme. Partindo desse capítulo, é possível perceber

as relações intertextuais e observar os pontos de contato do texto fílmico com o texto-fonte e

as diferenças ocorridas na transposição cinematográfica. Assim, é possível destacar que várias

passagens foram adaptadas ou até (re)criadas no texto fílmico, pois se sabe que essas

peculiaridades referem-se às características próprias da linguagem do cinema.

Em conformidade, Metz destaca que o cinema moderno é a ampliação das

possibilidades narrativas, ou seja, longe de ser a destruição da narratividade, ao contrário, o

cinema é o enriquecimento da narrativa, pois “o cinema é uma espécie de ‘terceiro estado da

criação’ e existe um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua

essencial abertura no tempo” (XAVIER, 2003, p. 47).

Como já frisei, o corpus tem relação com a linguística. É por esse motivo que, ao

tratar sobre cinema, Metz se reporta a Saussure, pois este contribuiu para o estudo da língua, e

principalmente contribuiu para os estudos da semiologia, “de que a linguística faria parte, em

tese, porque na verdade é da linguística que se constrói a semiologia” (2004, p. 78).

Segundo Genette (1971, p. 25), a narrativa é o ato produtor de histórias que expressam

o discurso do imaginário do enunciador com começo e fim – fim, aqui, como algo absoluto.

Nesta mesma perspectiva, Christian Metz (1972, p. 42) conceitua narrativa como “discurso

fechado que irrealiza uma sequência temporal de acontecimentos”. No entanto, vale enfatizar

que esse fechamento é referente ao ponto de vista do objeto em sua totalidade, não das

ressonâncias imaginárias que se proliferam no nosso consciente infinitamente.

Resumidamente esse fechamento significa a materialidade do objeto e não à leitura que é

apresentado. É por isso que no cinema, uma sequência de imagens tem como fim a última

imagem, que, no entanto, as projeções imagéticas repercutem. Assim, na narrativa tem-se um

fim, porém, na história, há uma contínua e infinita sequência.

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O cinema contém imagens que repercutem na percepção dos atos cotidianos. É sob a

perspectiva desse fator que o cinema tem grande repercussão em meio à sociedade de massa.

Por outro lado, o cinema permite em poucas horas o conhecimento resumido sobre uma obra

clássica de forma agradável através de um jogo de imagens e sons, pois, através da câmera e

seus recursos, a montagem pode provocar imersões, emersões, interrupções, isolamentos,

extensões, acelerações, ampliações, miniaturizações, abrindo, pela primeira vez, para o

espectador, a “experiência do inconsciente ótico” (BENJAMIN, 1996, p. 84).

Muitos trabalhos cinematográficos são baseados em obras literárias. É através dessa

adaptação que a Literatura permite estudar e estabelecer comparações entre os polissistemas30

literários, as traduções, a intertextualidade, entre outros aspectos presentes na área literária.

Assim, como garante Leyla Perrone-Moysés,

estudando relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras, a literatura

comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante

diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da

literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das

obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a

literatura anterior e com a contemporânea (1990, p. 94).

Tanto a literatura como o cinema são verdadeiras peças de mosaico, uma complementa

a outra. Desta forma, quando relacionada uma obra narrativa fílmica e outra narrativa literária,

mesmo que sejam adaptadas, cada qual possui linguagem que lhe é própria. Porém, quando

uma obra fílmica é baseada em uma literária, ocorre a passagem de uma linguagem a outra.

Surge assim a tradução, e isso é possível entre o dueto, pois provoca a recriação. Desta forma,

a aproximação dessas duas obras possibilita ao leitor/espectador (receptor) observar os níveis

de intertextualidade entre as duas obras, porque há a transferência de conteúdos, sendo

possível estabelecer inúmeras relações de significado.

1.2.3 Polícia e Milícia: definições suspeitas

30

Teórico que se destaca na teoria dos Polissistemas é Itamar Even Zohar, da Universidade de TelAviv. Em sua

introdução à “PolysystemsTheory”, lembra que, ”dentro do Formalismo Russo, a concepção de literatura sofreu

uma série de modificações, passando a integrar-se num arcabouço mais amplo de cultura. Como consequência, a

teoria do polissistema trabalha com complexos mais amplos que literatura, sem, no entanto, desconsiderá-la.

Assim, ela é concebida não como uma atividade isolada da sociedade, regulada por leis inteiramente diferentes

daquelas que regem o resto das atividades humanas, mas como um fator integrante, muitas vezes exercendo a

função dominante entre os outros” (NITRINI, 2010, p. 104-105).

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36

Desde os primórdios das relações de trabalho, a história registra a exploração do

homem pelo seu semelhante, em estruturas sociais de dominação que marcaram a rotina

ocupacional do ser humano. Em sucessivos momentos históricos, encontra-se o registro de

atividades profissionais que visavam a alcançar objetivos de otimizar lucros e gerar

rentabilidade, em detrimento do bem-estar do trabalhador. À medida que as condições de

trabalho se desdobraram em sociedades democráticas, as formas de dominação evoluíram

para mecanismos de exploração, mantendo-se a velha rotina de explorador e explorado,

característica das sociedades desiguais.

Vinculada a esta dominação, encontra-se a violência31

, que assoma

indiscriminadamente, como um fenômeno mundial contemporâneo. Essa violência não pode

ser dissociada das agressões cometidas pelo Estado contra populações civis, sobretudo

aquelas situadas em regiões de baixa renda ou dentro dos presídios. Trata-se de uma violência

que pode assumir diversas formas, desde a falta de assistência médica (a morte de qualquer

cidadão por demora no atendimento em hospital público é uma forma de violência do Estado,

por exemplo), passando pelos serviços precários no campo da educação, até a carência de

saneamento básico, entre outras.

Entre as diversas ramificações da violência, encontra-se a militar, mais

especificamente a violência praticada por policiais e milicianos contra a população civil. É

sob este enfoque, e com o intuito de compreender o discurso da e sobre a violência como um

dos fios constitutivos do tecido social, que o tema se torna motivo de análise neste trabalho. A

proposta deste trabalho, reitero, é também a de uma possível contribuição ao entendimento

dos mecanismos pelos quais essa violência se constitui no discurso policial e no discurso das

milícias. Com esse objetivo, a análise parte de uma perspectiva histórica e se desenvolve sob

dois ângulos distintos, o dos policiais atentos às suas obrigações e diretrizes funcionais, e o

dos policiais integrantes da milícia, entendidos como aqueles que ignoram as normas

disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios

estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação

Discursiva Policial (FDP).

Evidências dessas diferenças comportamental-funcionais entre policiais e milicianos,

tanto quanto indícios de que a corrupção policial se manifesta geralmente em lugares menos

favorecidos, exemplificada pelo chamado "arrego" – propina paga pelos bandidos aos

policiais milicianos que, em concordância com alguns políticos, apoderam-se de algumas

31

Do latim violentia. Significa “constrangimento físico ou moral” (FERREIRA, 1998).

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favelas para roubar – são, por exemplo, possíveis de observar no seguinte trecho do livro Elite

da tropa 2:

Quem não se lembra da frase de efeito do célebre ministro da Fazenda da ditadura,

que vários secretários de Segurança do período democrático, curiosamente, adoram

citar? “não se faz um omelete sem quebrar os ovos”. Tudo bem. Desde que não

sejam os deles. Desde que seus filhos estejam são e salvos em casa. Nós, policiais

honestos, e a população pobre que mora nas áreas de confronto, nós que nos

danemos. Fodam-se, eles pensam ao apagarem a luz da cabeceira e adormecer no

colchão macio. Desde que as manchetes destaquem o heroísmo governamental no

combate ao tráfico e desprezem os ovos quebrados, tudo bem. Eles saem no lucro,

tanto as autoridades políticas quanto os policiais vigaristas. Uns acumulam votos;

outros ficam com a grana, o espólio da guerra e o poder para elevar o valor do

acordo – que eles chamam “arrego” – no mercado da corrupção. Claro, porque

inimigos dos traficantes eles são à noite, nas incursões policiais. E há os milicianos,

que são muitos. O tráfico já era. Está em franco declínio. As milícias, as nossas

máfias, não param de crescer. São um sucesso. A tendência é que as máfias

substituam o tráfico ou se unam a ele. (SOARES, 2010, p. 103).

Esse desdobramento do suborno, da corrupção policial — termo aqui aplicado no

sentido da corrupção policial juntamente com a corrupção no âmbito da política

administrativa realizada por instâncias do poder público — resulta no surgimento das

chamadas milícias, termo que não contempla a verdadeira dimensão desse fenômeno.

Um dos grandes motivos da existência das milícias – assim afirmam os milicianos – é

o péssimo salário. Por esse motivo, muitas pessoas que fazem parte da segurança pública

acabam se envolvendo com a criminalidade para obter um ganho extra. No entanto, esses

sujeitos possuem poder público legalmente instituído, especialmente a fé pública, motivo pelo

qual muitas pessoas que vivem nas comunidades desfavorecidas acabam aceitando certas

regras. Na realidade, os milicianos não permitem que bandidos entrem nessas favelas para

extorquir os moradores, pois não querem dividir o lucro. Dessa forma, os milicianos afastam

os bandidos das comunidades. Por esse motivo, os moradores preferem pagar taxas aos

policiais que, em troca, forneceram segurança, do que pagar taxas – impostos – a bandidos

que, ao contrário, geram ainda mais violência, ou ainda sujeitam-se a essas condutas policiais

por falta de conhecimento para saber impor-se e reivindicar seus direitos.

Na realidade, essa segurança oferecida pelos milicianos não deveria ser cobrada, pois

são pagos pelo Estado para proteger a comunidade. No entanto, apoderam-se do poder e do

armamento do Estado para ditar regras. Assim, o interdiscurso se inscreve em lugares sociais

e neles alcança suas identidades. Dessa forma, relacionado à memória, o interdiscurso permite

dizeres que já foram ditos, o que contribui para que o discurso da repressão ganhe sentido

quando faz circular, portanto, formulações já enunciadas, o que contribui para que a

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população não enfrente os milicianos, pois sabem as consequências. Ou seja, aqueles que

discordam, ou não pagam seus impostos, são executados diante dos moradores, para que todos

saibam quem matou e por que matou.

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2 O DISCURSO DITO E O DISCURSO DO NÃO-DITO

Os dizeres não são (...) apenas mensagens a serem

decodificadas. São efeitos de sentidos que são

produzidos em condições determinadas e que estão de

alguma forma presentes no modo como se diz.

ENI ORLANDI

Eni Puccinelli Orlandi afirma que “as formações discursivas já apresentam recortes do

interdiscurso. São regiões de sentidos já dimensionados, situados no conjunto do dizível e que

representam as diferentes determinações do social, do político e do histórico” (2002, p. 165).

A propósito, a mesma autora complementa explicando que “o dizer – domínio do

interdiscurso – é o da globalidade do dizer que só adquire especificidade na determinação

histórica das diferentes formações discursivas” (2002, 164), isto é, a não-formulação expressa

com clareza, entretanto, está muito distante de indicar a falta da percepção ideológica.

Tratando-se de discurso, Pêcheux (1975, p. 77) menciona a ideia de que “[ele] é

sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”, fato que contribui para a

compreensão de que o discurso tanto policial quanto político aponta para outros discursos,

pois não provém unicamente de um discurso, mas de vários. Assim,

[o] sentido não nasce da vontade repentina de um sujeito enunciador. O discurso tem

uma memória, ou seja, ele nasce de um trabalho sobre outros discursos que ele

repete, ou modifica. Essa repetição ou modificação não é necessariamente

intencional, consciente, nem imediata (...). Ao contrário, pode ser oculta ao sujeito

enunciador. (MITTMANN, 1999, p. 271).

Em um discurso é possível considerar tanto o que está dito e o que não foi dito, ou

seja, está implícito, não é dito, mas é significado. Segundo Pêcheux, o imaginário linguístico

é, então, “tirar as consequências do fato de que o não dito precede e domina o dizer” (2009, p.

260). De acordo com o pesquisador francês, na palavra se inscreve o não-dito, o que não é

falado, no entanto, está ali entre meio o dito, e ganha sentido da forma que como a palavra é

empregada, ou seja, pelas Formações Discursivas nas quais as palavras são produzidas.

Em suma, Pêcheux afirma que por FD entende-se o lugar da construção do dito e do

não-dito, isto corresponde a que o interdiscurso encontra-se nas entrelinhas, codificado.

Assim, não é pertinente encontrar a verdade, mas compreender e explorar as diferentes formas

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do dizer e a relação com o simbólico, para, desta maneira, entender como o texto, objeto

linguístico-histórico, produz sentido.

O discurso pode ser inicialmente definido como uma bem sucedida, mas provisória,

fixação de sentidos. Daí que o conceito de discurso e a teoria do discurso partam do princípio

de que as verdades anteriores ao discurso não existem. Isso é observado de outra forma, e

coloca-se em oposição em relação a posturas essencialistas, que pensam em uma realidade

pré-datada, que deve ser descoberta através da mediação da teoria. Neste intuito, é pertinente

salientar que na teoria do discurso, a verdade é uma construção discursiva, afirmação que não

pode ser confundida com a simplista ideia de que a verdade não existe. Assim, surge uma

rachadura entre o conceito de discurso com o conceito de ideologia entendido como falsa

consciência, presente na teoria marxista.

O discurso existe porque ele é uma tentativa de dar sentido ao real, uma tentativa de

fixar sentidos, que pode ser duvidosa, mas também pode ser verdadeira. Desta forma, é

possível dizer que é duvidosa enquanto não essencial e, por isso, constantemente ameaçada de

ser desconstruída. Já por sua vez, tem muito êxito porque contém uma continuidade histórica.

Nesta perspectiva, quando o discurso é político, esta dinâmica torna-se simples de ser

observada, pois o que é um discurso político, se não uma repetida tentativa de fixar sentidos

em um cenário de disputas? Atualmente há uma disputa sobre os significados de noções como

“esquerda” e “direita”, os quais já tiveram sentidos muito mais fixos do que têm hoje. Desta

forma, a Análise do Discurso toma como estudo a política como uma tentativa de fixar

sentidos, que têm a urgência como condição. Durante as campanhas eleitorais, esta urgência é

ainda mais fácil de ser verificada.

É importante observar a interpelação do sujeito por múltiplos discursos, entre eles os

que considero pertinentes para este estudo, o discurso da milícia, o discurso do político e o

discurso da policial. É oportuno afirmar que, como o discurso político, o discurso policial

também tem locais da enunciação específicos. Porém, deve-se considerar que atualmente na

contemporaneidade existem outros espaços na construção desses discursos e muitos estão

agregados de violência, está não somente física32

, mas também psicológica33

ou até mesmo

através do discurso coercitivo34

. Assim, especificarei no decorrer da pesquisa como os

32

Para efeitos deste trabalho, violência física é o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não marcas

evidentes. 33

Aqui, violência psicológica é a agressão emocional, tão ou mais grave que a física, comportamento típico de

quem ameaça, rejeita, humilha, discrimina, configurando muitas vezes crime de ameaça. Há também a violência

moral, que é caracterizada, muitas vezes, pela calúnia, difamação, injúria. 34

O discurso coercitivo é aquele capaz de exercer coerção, ou seja, que coage e reprime, “faz isso ou me vingo”,

impõe pena.

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discursos se bifurcam e intercalam no corpus constituído por Elite da tropa 2 e Tropa de elite

2 – o inimigo agora é outro.

2.1 Política, Polícia, Poder, Sistema: pelo interior das tramas discursivas

A AD está restrita à interpretação. Assim, indaga limites e mecanismos da ideologia

do sujeito, como parte do processo de significação (Orlandi, 2003). Através da AD, é possível

perceber que de certa forma não existe uma única verdade, uma única interpretação. Há sim

inúmeras possibilidades de compreender e interpretar um discurso. De acordo com essa

premissa, pretendo identificar, através do corpus formado por Elite da tropa 2 e Tropa de

Elite 2 – o inimigo agora é outro, pistas dos diversos discursos35

pertencentes ao meio

policial, e se estes estão ou não agregados ao poder36

e à violência.

Para uma melhor compreensão sobre este trabalho, é necessário que se recuperem

informações sobre as origens da polícia. Na antiguidade, o termo polícia significava

constituição do estado ou da cidade, isto é, o ordenamento político do estado ou cidade. Com

o passar do tempo, o termo polícia passou por modificações quanto as suas funções. No

século XI, retira-se da noção de polícia o aspecto referente às relações internacionais. Nessa

época, já desenhava o exercício de poder de polícia, tal como atualmente é considerado, no

âmbito das comunas37

europeias, por seus administradores.

Acompanhando as ideias propostas por Medauar, pode-se dizer que

[...] Nessas comunas a atuação prática da polícia se caracterizava e se ajustava à

manutenção da ordem e tranquilidade públicas; por isso, aí estão os antecedentes da

concepção hodierna de poder de polícia e não nos sempre invocados regulamentos

policiais do código geral prussiano, de 1794. [...] nos séculos XII a XV, [...] em

muitas comunas francesas, existiu licença edificando, alinhamentos nas construções,

polícia das profissões como proteção dos consumidores e a polícia sanitária, saindo,

aos poucos, do âmbito da polícia, as matérias relativas à justiça e às finanças. (1995,

p. 53).

35

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo,

rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder (FOUCAULT, 1996, p. 10). 36

O poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir do e no próprio jogo dessa heterogeneidade entre

um direito público da soberania e uma mecânica poliforma da disciplina (FOUCAULT, 1999, p. 45). 37

Cidade medieval emancipada e capaz de governar-se por suas próprias leis.

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Nos primórdios do século XVIII, polícia designava o total da atividade pública

interna, sem a justiça e as finanças, consistente em regular tudo o que se encontrava no âmbito

do estado, sem exceção.

Com o fim do período absolutista, surge o período conhecido como o “Estado de

Polícia” que opressivamente vigiava a vida da população. A noção de polícia em sentido

amplo, a partir desse momento, começa a dar lugar à noção de Administração Pública.

Restringe-se o sentido de polícia sob a influência das ideias da Revolução Francesa, da

valorização dos direitos individuais e da concepção do Estado de Direito, liberal-democrático,

cujo substrato era dirigido ao princípio da legalidade, em seus dois aspectos: submissão do

próprio Estado à lei por ele posta e ação de acordo com o que esta determina.

A partir de então, a polícia passou a ser administrada e organizada da mesma forma

como hoje é conhecida. Porém, algumas pessoas que fazem parte desta corporação passaram a

ter discursos promíscuos, que envolvem comportamentos reprováveis, desonestos, imorais

diante do juramento que fizeram ao ingressarem na atividade policial.

A corrupção por parte das milícias é preocupante, pois estes têm poder de polícia,

possuem a fé-pública e conhecem a organização dos Estados e do Sistema38

. As ações contra

a corrupção policial normalmente são reativas, sobretudo, em face de divulgação pela mídia

de casos pontuais, demonstrando que a polícia aparenta como um apêndice da sociedade, e os

policias envolvidos, como exceção à regra de honestidade. O que se verifica, entretanto, é que

todo aquele envolvido na corrupção e apanhado pelo sistema, contribuiria para ajudar outros

da sociedade e das organizações a se livrarem de qualquer responsabilidade, vale dizer, os

corruptores.

Esses policiais corruptos acabam por geral violência, a qual contribui para que se

agrave cada vez mais a problemática situação em que se encontra a segurança pública no país.

Essa corrupção dos milicianos afeta todos os extremos da sociedade, desde a educação, a

saúde, o saneamento básico, enfim, toda a segurança pública.

38

A noção de “sistema” usada aqui é a qualificada por Guattari como “maquínica”, ou seja, trata-se de um

“sistema maquínico”, produtor de subjetividades. Entretanto, cabe explicitar o ponto de vista de Rodrigues

(2006), em artigo incluído numa coletânea que retoma Ernesto Laclau e Niklas Luhmann, publicada no mesmo

ano. Nesse artigo, Rodrigues recupera alguns conceitos relativos a sistema, tanto de Laclau e Luhmann, quanto

de Maturana e Varela. Estes agregam ao conceito ideias trazidas da biologia e que, por isso, permitem entender

sistema de maneira similar a um organismo vivo: possui uma forma de circularidade, auto-organiza-se

semanticamente a partir de suas próprias estruturas e nisto se aproxima do conceito de autopoiésis, “que requer

produção, transformação, adaptação do sistema em relação às transformações do seu meio (entorno)”.

Entretanto, Rodrigues lembra que por si mesmos o meio ambiente ou o entorno não podem reproduzir o sistema.

Essa é a razão da proximidade com o sistema autopoiético, porque “mesmo sendo este um sistema

operacionalmente fechado, responde às transformações do meio ambiente em que está acoplado, a partir de seus

próprios componentes operacionais, com vistas a sua permanência como sistema” (RODRIGUES, 2006, p. 60).

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2.1.1 O discurso da polícia

Direitos do homem deverão ser não mais apenas

proclamados,

ou apenas reconhecidos,

porém efetivamente protegidos,

até mesmo contra o próprio Estado que os tenha

violado.

NORBERTO BOBBIO

A linguagem contribui para determinação de significados. Diferentemente da

sequência estabelecida pela comunicação entre emissor, mensagem, referente, código e

receptor, o discurso é concebido de outra forma, caracterizando-se diferentemente da simples

transmissão de informação. Segundo Eni Puccinelli Orlandi (1999), não há separação entre

emissor e receptor. Eles realizam simultaneamente a significação. Ainda de acordo com a

autora, o discurso é considerado um efeito de sentido entre os locutores, assim

o funcionamento no discurso é um conjunto de lugares que são determinados por

uma topografia social nas quais os sujeitos se inscrevem e que funcionam

imaginariamente no discurso (em relação com a posição-sujeito). A cenografia

discursiva – constituída pelo eu/tu-agora-aqui do discurso em termos de locutor,

destinatário, cronografia e topografia – é compreendida pelo fato de que o que

funciona do discurso são relações que se produzem em um mecanismo de

substituição. (ORLANDI, 2008, p. 154).

A AD analisa o discurso do sujeito. Por esse viés, é que a AD contribui nesta pesquisa.

Assim, o objetivo deste trabalho é compreender o discurso policial, que está agregado de

poder. Como salienta Foucault (2006, p. 231), “o poder é um lugar estratégico onde se

encontra todas as relações de forças poder/saber”. É desta forma que o discurso policial –

aquele do profissional que procura ser honesto, e acima de tudo verdadeiro diante de sua

corporação e seu trabalho – está relacionado com o poder e o saber.

O discurso do policial, considerado em meio à corporação como correto, está

vinculado com o poder do Estado, isto é, com o governo e a administração, é instrumento do

poder executivo, além do legislativo, que contribui para que o discurso policial tenha

fundamento legal.

O sistema que engloba a polícia e o Estado é, antes de qualquer coisa, o que os

clássicos do marxismo chamaram de aparelhos repressivos de Estado. Atente-se, quanto a

estes, que

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Este termo compreende: não somente o aparelho especializado (no sentido estrito),

cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática jurídica, a

saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervém

diretamente como força repressiva de apoio em último instância (o proletariado

pagou com seu sangue esta experiência) quando a polícia e seus órgãos auxiliares

são “ultrapassados pelos acontecimentos”; e, acima deste conjunto, o Chefe de

Estado, o Governo e a Administração.

Apresentada desta forma, a “teoria marxista-leninista” do Estado toca o essencial, e

não se trata por nenhum momento de duvidar que está aí o essencial. O aparelho de

Estado que define o Estado como força de execução e de intervenção repressiva “a

serviço das classes dominantes”, na luta de classes da burguesia e seus aliados

contra o proletariado é o Estado, e define perfeitamente a sua “função” fundamental.

(ALTHUSSER, 1983, p. 62-63)

Em muitos momentos o discurso policial é julgado pelos discursos moralistas. É o

caso apresentado no corpus, especialmente quando o diretor põe em cena uma rebelião no

presídio Bangu 1, quando um professor, defensor dos direitos humanos, é chamado para

auxiliar na negociação entre policiais e amotinados. Após o término da confusão no presídio,

relata a imprensa: “polícia foi massificadora, promovendo um massacre”.

Vinculado com o Estado o discurso policial, está alicerçada a fé pública. Essa

ideologia que compreende o discurso policial em torno da honra e dos deveres morais, está

sustentada em uma ideologia, que é “um sistema de ideias, de representação que domina o

espírito do homem ou de um grupo social” (ALTHUSSER, 1983, p. 81). Esse discurso

policial é perceptível no corpus quando neste é mencionado o Batalhão de Operações

Policiais Especiais (BOPE). É o caso do RDF-I 139

, em que se vê o policial André Matias

procurando cumprir seus deveres profissionais.

Capitão Matias:

– Olha para mim, filho da puta, você vai me falá aonde é que tão as armas da

delegacia, agora, entendeu?

Bandido Fita:

– Não tão comigo.

Capitão Matias:

– Não tá contigo, não?! Tá contigo sim, me fala onde está essa porra agora, me fala

seu filho da puta.

Bandido Fita:

– Não tá comigo porra, não tão.

Capitão Matias:

– Você não qué cooperá, não vai cooperá não. Bota ele no saco de novo, Bocão.

39

Capitão Matias pressiona o bandido Fita, dono do morro, para revelar com quem estão as armas e chega o

coronel Fábio e o Major Rocha.

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Neste instante chega o Major Rocha e mata com dois tiros o bandido líder do morro

Tanque. Capitão Matias40

fica indignado, pois “não largava o osso até descobrir a verdade”.

Capitão Matias:

– Que porra é essa Rocha? Tá maluco, porra? O cara é dono do morro e ia me dar a

porra das armas, rapaz.

Major Rocha:

– Parabéns, excelente trabalho do BOPE, capitão, era em cima dele que a gente tava

atrás, não é não, Fábio?

Capitão Matias:

– O que tá acontecendo Fabio?

Coronel Fabio:

– Tá com pena de vagabundo, Matias?

Capitão Matias:

– Bocão, Tatuí, desce com o dono que eu vou ter uma conversinha com o coronel

Fabio.

O Capitão Matias percebe que há algo errado. Manda então seus dois colegas levar o

corpo do bandido e fica sozinho com os policiais corruptos. André Matias começa a

desconfiar de seus dois superiores. Então resolveu saber quem era a pessoa que, segundo

Coronel Fabio e o Major Rocha, era de confiança e lhes passava informações sobre os

bandidos do morro.

Logo que os dois policiais levaram o corpo de Fita, Capitão Matias se vira para o

Coronel Fabio e pergunta:

Capitão Matias:

– Que porra é essa, Coronel? O que, que tá acontecendo? Tô sentindo cheiro de

merda. Quem é o informante?

Coronel Fabio:

– Vou procurar saber.

Então, Matias se vira para o Major Rocha e pergunta:

Capitão Matias:

– Quem é o X-9? Você vai fazer o seguinte: você vai me ligar até mais tarde pra me

passá o nome e o número do X-9. E eu quero isso pra hoje. Entendido, Major?

Capitão Matias resolve sair do local. Major Rocha faz sinal com a cabeça para outro

policial e este mata André Matias. A realidade é que Matias é Capitão do BOPE, assumiu o

40

É importante destacar que no primeiro filme o Capitão era o Nascimento, que procurava alguém para ser seu

substituto. Já no segundo filme, tanto Nascimento quanto Matias sobem de posto hierárquico. Nascimento torna-

se Tenente Coronel Nascimento, e André Matias, que no primeiro filme era Aspirante Matias, recebe a promoção

a Capitão Matias (este fica no posto que era de Nascimento, Capitão do BOPE).

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lugar do Nascimento, que passou a Tenente Coronel Nascimento. Matias era um policial

honesto, que trabalhava dignamente, ao contrário do Coronel Fabio e do Major Rocha,

policiais corruptos que tinham sido responsáveis pelo roubo das armas da delegacia do morro

Tanque.

A câmera, que, enquanto o diálogo acontecia entre o Capitão e o bandido Fita, não se

movimenta entre um personagem e outro, mantém plano americano, mostrando a imagem dos

dois personagens em ângulo lateral, permitindo ao espectador observar a posição-sujeito-

policial autoritária de Matias sobre a posição-sujeito-bandido, o qual está na posição

discursiva de entrevistado.

Capitão Matias:

– Olha para mim, filho da puta, você vai me falá aonde é que tão as armas da

delegacia, agora, entendeu?

Antes de iniciar a fala, Capitão Matias desfere um tapa no rosto do bandido, gesto com

que a violência corporal é introduzida na cena. Na sequência, pressiona-o para revelar com

quem estava, as armas da delegacia e o desmoraliza chamando-o de “filho da puta”. Assim é

possível destacar duas formas de agressão, a física e a moral. Nessa perspectiva, quando o

policial diz: “olha pra mim, filho da puta”, encara o tempo todo o bandido, enquanto este olha

para o chão, não consegue fixar-se no olho do policial. Neste mesmo fragmento, é

indispensável mencionar que Matias está dando uma ordem, o que é próprio do discurso

policial. Dessa maneira, seu discurso contém um sentido, uma estrutura que o identifica como

em posição sujeito superior, personalizando-o no contexto discursivo dos demais.

O fato de bater no bandido é uma estratégia policial, usada como forma de pressão,

para fazer o sujeito falar a verdade. Entretanto o bandido continuava a afirmar:

Bandido Fita:

– Não tão comigo.

Fita nega o tempo todo ser o responsável pelo roubo das armas da delegacia. Tratando-

se de discurso, o uso de “tão” por “estão” remete estritamente à informalidade no português,

não mantendo o distanciamento entre os personagens. Esse discurso informal é mantido por

Matias, que ao continuar interrogando destaca:

Capitão Matias:

– Não tá contigo, não? Tá contigo, sim. Me fala onde está essa porra agora, me fala,

seu filho da puta.

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Percebendo que o bandido não estava cooperando e não iria revelar quem havia

roubado as armas da delegacia, dá a seguinte ordem a seu companheiro de trabalho:

Capitão Matias:

– Você não qué cooperá, não vai cooperá, não. Bota ele no saco de novo, Bocão.

Quando Matias diz: “bota ele no saco de novo”, está subentendido que anteriormente

já haviam colocado o saco no bandido. Esse saco é colocado na cabeça para deixar a pessoa

sem respirar, uma forma bruta de violência, embora colocar o saco na cabeça do bandido e

trancar sua respiração, para o policial não significa violência; ao contrário, é um meio para

fazer o bandido falar aonde se encontravam as armas.

Para o policial, violência é o que os bandidos fazem com a sociedade, os quais

roubam, matam, apoderam-se de armas que, em muitos casos, são maiores e mais poderosas

que a dos próprios policiais, simplesmente para ver o caos se propagar. Neste sentido, para o

policial, violência é quando o sujeito se apodera do poder para amedrontar e roubar outros

sujeitos, e não quando a força é utilizada para conter a violência criminosa.

Nesse mesmo recorte discursivo fílmico-imagético, Matias dá ordem ao seu colega,

afasta-se do bandido e a câmera faz um travelling à esquerda. Assim é possível ao espectador

ver outros três policiais chegando. Entre eles, vem Rocha, que, com uma pistola, atira no

bandido e o mata com dois tiros.

Matias surpreende-se com a atitude de seus colegas de profissão e o seu discurso passa

a ser exaltado. Nesse instante, a câmera, em plano americano, é direcionada de modo a

enquadrar Matias, Coronel Fabio e Major Rocha.

Capitão Matias:

– Que porra é essa, Rocha? Tá maluco, porra? O cara é dono do morro e ia me dar a

porra das armas, rapaz.

É conveniente destacar que Matias menciona muito a palavra “porra”, uso que se

justifica pelo fato de o discurso policial ser pontuado por várias gírias, formas de tratamento

específicas da corporação policial. O mesmo exemplo encontra-se na seguinte frase, quando o

mesmo Matias fala:

Capitão Matias:

– Que porra é essa, Coronel? Qué que tá acontecendo? Tô sentindo cheiro de merda.

Quem é o informante?

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Neste instante, Matias, que é integrante do BOPE, policial que trabalha sempre

procurando cumprir seu dever, percebe que algo errado está acontecendo, e pressiona o

Coronel Fabio e o Major Rocha para que digam quem é a pessoa que os informa sobre os

bandidos da favela, pessoa essa chamada de X-9.

Capitão Matias:

– Quem é o X-9? Você vai fazer o seguinte, você vai me ligar até mais tarde pra me

passá o nome e o número do X-9. E eu quero isso pra hoje. Entendido, Major?

Enquanto Matias discursa, Rocha fica parado somente olhando, sem nenhuma

expressão facial. Rocha, assim, está “exercitando” o discurso do silêncio que, segundo

Orlandi (2007, p. 47), “é assimétrico em relação ao dizer e a elipse é do domínio do silêncio”.

Por isso, o silêncio preenche o sentido e tem sua materialidade definida na relação com o

dizível e com o indizível. É nesse meio que o sujeito se insere no sentido, pois o silêncio,

como a linguagem, tem um caráter de incompletude. Por outro lado, ele também é o lugar do

equívoco e do deslocamento de sentidos. O silêncio é o lugar da polissemia, como afirma

Orlandi: “o silêncio, media as relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à

pressão de controle exercida pela urgência da linguagem e significa de outras e muitas

maneiras” (2008, p. 37).

2.1.2 O discurso da milícia

É perceptível, pela análise do corpus, que o diretor do filme apresenta as situações

discursivas entre milicianos e policiais sob um aspecto moralista, como um desvio de

conduta que, por isso, deveria ser solucionado mediante punição, penal e administrativa, ao

policial corrupto. No entanto, a corrupção das milícias engloba toda uma sociedade ou

organização, tornando-se sistemática, envolvendo cidadãos dos diferentes setores da

sociedade, das áreas públicas e privadas.

O desvio de caráter dos milicianos está relacionado com a política e a estabilidade que

o cargo proporciona. Assim sendo, há maior dificuldade para se desvendarem esquemas de

corrupção, realidade que só será modificada se houver envolvimento entre a burocracia e a

sociedade com esse objetivo.

Por sua vez, há os incentivos positivos para o desempenho íntegro do encarregado da

aplicação da lei, que são os benefícios materiais, a estabilidade, a estima social e a expectativa

de promoção. A opção pela aceitação do suborno pode ser avaliada como decisão racional, na

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49

qual o ator público compara estes benefícios morais e materiais do comportamento

considerado socialmente como honesto com os benefícios e os custos do comportamento

corrupto. A preocupação dos encarregados da aplicação da lei passa a ser sua avaliação,

interpretando a probabilidade de um ato ser descoberto e provado. É por meio desse raciocínio

que se pode controlar a corrupção de qualquer policial, ou seja, ele deverá estar

comprometido com a sua missão institucional, isto é, possuir o senso de profissionalismo,

tendo oportunidade de ver aumentar os incentivos positivos, tanto materiais como os

imateriais, a exemplo da remuneração e estabilidade (material), e a sua auto-estima e

reputação (imaterial).

Por outro lado, no discurso da milícia, existe uma falta de conduta, uma falta de

seriedade moral para com sua corporação. A propósito do termo conduta, Orlandi (2008)

enfatiza que a

“conduta” mostra que, sejam para Pessoas, Instituições ou Estados, esses elementos

só podem estar reunidos, porque não se trata de Lei, não se trata de Regras sequer,

trata-se de “Código” de conduta. É uma proposta “moral”. Pouco importa o aparato

que se desenvolva à sua volta, que não serão senão comentários. Às vezes até bem

substanciais, importantes, interessantes, mas apenas comentários em torno de uma

proposta moralizante. Seu uso não sendo inocente, em um “mundo” em que

dominam as relações de força, são essas que definirão sua tomada como argumento

do Poder. Ou, na melhor das hipóteses, funcionará como os Direitos Humanos: tanto

mais os reivindicamos porque uma vez declarados têm sido desrespeitados

sistematicamente. Em uma sociedade, uma cultura como a capitalista, falar de algo

não garante esse algo, ao contrário, muitas vezes o discurso sobre “x”, ao dar

visibilidade, coloca esse “x” na berlinda. Tanto mais falamos de “x” tanto mais “x” é

apagado. (ORLANDI, 2008, p. 171)

Talvez essa seja uma leitura impiedosa, mas é certamente uma leitura possível. Tão

possível que basta acompanhar os noticiários para sentir-se tomado pelo sentimento de

impotência diante da real situação brasileira. Para uma punição efetiva, no entanto, faz-se

necessário avaliar a forma como acontecem os casos de corrupção protagonizados pela

milícia. Podemos tomar como exemplo o RDF-I 241

, mostrando que na polícia há muita

corrupção e cooptação. Nesse recorte discursivo fílmico-imagético42

é possível observar a

polícia passando pelas ruas em meio a muitos bandidos, todos muito bem armados. Armas de

41

Capitão Matias se disfarça de policial corrupto para se infiltrar na favela e conhecer os bandidos, ver quais

eram seus armamentos e identificar os policiais corruptos. 42

Segundo Metz, “o cinema é a linguagem artística mais do que veículo específico. Nascido da união de várias

formas de expressões que não perdem inteiramente suas leis próprias (imagem, a palavra, a música, os ruídos até,

o cinema, de chofre está na obrigação do compor, em todos os sentidos da palavra. É de imediato uma arte, sob

pena de não ser nada. Sua força ou fraqueza consiste em englobar expressividades anteriores: algumas são

plenamente linguagens (o elemento verbal), outras apenas num sentido mais ou menos figurado (a música, a

imagem, os ruídos). No entanto, estas “linguagens” todas não estão no mesmo nível em relação ao cinema: o

filme se apoderou posteriormente da palavra, do ruído, da música; ao nascer, trouxe consigo o discurso

imagético. Assim é que uma verdadeira definição do ‘específico cinematográfico’ só pode se situar em dois

níveis: discurso fílmico e discurso imagético” (2004, p. 75).

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cano curto e cano longo, fuzis e pistolas. Enquanto a viatura passa pela rua, o discurso policial

do protagonista Tenente Coronel Nascimento é ouvido em off:

Narrador TC Nascimento:

– A polícia do bairro tanque era tão corrupta que nem eu tinha conseguido tirar os

vagabundos de lá. Pra toma o tanque só fazendo uma mega operação, mas isso o

governador não queria. Em ano de eleição não pode morrer inocente. Foi ai que o

Matias teve uma ideia genial, mas perigosa pra caralho.

Não escapa ao espectador perceber as provas, nas mãos dos bandidos, da corrupção

dos policias milicianos. Já na primeira imagem é visível o cenário de uma favela, com uma

aglomeração de pessoas. Enquanto a câmera faz um travelling horizontal à direita, mostra nas

mãos dos bandidos as armas que carregavam, com a maior tranquilidade, enquanto bebiam

cerveja, vendiam e fumavam drogas.

Ainda sobre o RDF-I 2, na sequência, surge a imagem de duas viaturas, o que não

causa nenhum constrangimento aos vagabundos43

. Enquanto a viatura passa, os policiais

cumprimentam os bandidos com sinal de V44

com as mãos.

Capitão Matias:

– E aí, rapaziada.

Imediatamente surge o discurso policial de Nascimento novamente em off:

Narrador TC Nascimento:

– Ele entrou no tanque em plena luz do dia e passou de vagarzinho na frente dos

vagabundos.

Policial motorista da viatura:

– Ô 01, olha o cara, aí.

É importante destacar que uma das evidências de que o policial Matias está disfarçado

é quando o chamam de 01. Esse fato ocorre porque somente grupos de operações especiais

têm um código de comunicação. Cada pessoa é chamada por um número, para dificultar ao

bandido descobrir o nome do policial. Isso evidencia que todos os policiais que estão na

viatura pertencem a um grupo de operações, no caso o BOPE, que estão disfarçados de

policial praça45

, no caso, representando os policiais corruptos.

43

Termo utilizado pelos policiais para homens corruptos, descumpridores dos seus deveres morais, bandidos. 44

O sinal feito com as mãos em forma de V significa vitória, se as mãos estiverem viradas para fora. Entretanto,

se for feito o sinal com as mãos em forma de V e a mão estiver virada para dentro, significa o equivalente – em

palavras sutis – ao “dane-se”. 45

São conhecidos como policiais praça aqueles que não são policiais oficiais.

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51

Por outro lado, é de suma importância esclarecer quanto ao significado da cor do

fardamento dos policiais. A cor da farda administrativa46

da polícia do Rio de Janeiro (RJ) é

camiseta branca, calça preta e gandola azul. Já nas imagens do recorte os policiais estão

vestidos de cinza, farda do policiamento convencional extensivo operacional47

da PM do RJ.

É por esse motivo que Matias e seu grupo estão vestindo cinza, pois estão disfarçados de

policiais convencionais, que por pertencerem a um grupo de Operações Especiais,48

o BOPE,

é diferente, seu fardamento é conhecido pela cor preta.

Outra evidência de seu disfarce é a divisa49

em sua gandola. Na imagem, a divisa é o

símbolo de 1º Sargento. O que comprova seu disfarce, pois na realidade Matias é Capitão,

cujo símbolo é três estrelas prata na lapela da gandola.

Capitão Matias:

– E aí, Fita?

Capitão Matias cumprimenta o líder do bairro Tanque com as mãos fazendo sinal de

positivo50

.

Narrador TC Nascimento:

– Era arma pra caralho. Se alguém desconfiasse de alguma coisa, Matias estava

fudido. Só que o Matias foi disfarçado de corrupto, e os vagabundos acharam que

tava tudo entre amigo.

46

São os policiais que trabalham internamente, somente no setor administrativo. 47

O policiamento ostensivo, como o próprio nome já designa, deve ser o mais visível possível. Ele se realiza

através da polícia ostensiva, por um conjunto de processos, de tipos e de modalidades. Policiamento ostensivo,

de competência da Polícia Militar, são todos os meios e formas de emprego da Polícia Militar, onde o policial é

facilmente identificado pela farda que ostenta, como principal aspecto, e de equipamentos, aprestos [petrechos de

trabalho], armamento e meio de locomoção, para a preservação da ordem pública, observando critérios técnicos,

táticos, variáveis e princípios próprios da atividade, visando a tranquilidade e bem estar da população.

Disponível em: <http://capnight.vilabol.uol.com.br/po.htm> Acesso em: 16 de set. 2012, às 17h49m. 48

São denominadas Forças de Operações Especiais as unidades militares que têm treinamento diferenciado das

tropas regulares que tem o dever de agir através da repreção após os delitos terem ocorrido. 49

Primeiramente em todos os postos da PM há duas garruchas cruzadas que representam a PM de todos os

estados brasileiros. Em cima das garruchas encontram-se as divisas, que são conhecidas da seguinte forma: uma

divisa, Soldado; duas divisas, Cabo; três divisas, 3º Sargento; quatro divisas, 2º Sargento e, cinco divisas, 1º

Sargento. É importante destacar que as divisas desses postos encontram-se na manga da gandola e que sempre

devem ser contadas de cima para baixo. Já as divisas dos oficiais encontram-se na lapela da gandola, enquanto o

BOPE usa as divisas dos oficiais na gola da gandola. As divisas dos oficiais são conhecidas da seguinte forma:

uma estrela prata, 2º Tenente; duas estrelas prata, 1º Tenente; três estrelas prata, Capitão; uma estrela dourada e

duas estrelas prata, Major; duas estrelas douradas e uma estrela prata, Tenente Coronel; três estrelas douradas,

Coronel. 50

Esse gesto que, para nós, é sinal de aprovação ou concordância, é um claro exemplo do quanto as barreiras

linguísticas podem nos confundir. Tente evitá-lo na Tailândia, visto que, lá, o sinal é sinônimo de desaprovação.

É um gesto típico das crianças tailandesas, mais ou menos equivalente ao mostrar a língua. Se você cometer o

deslize, os tailandeses ficarão mais confusos do que ofendidos; em todo caso, é bom evitar. Já em Bangladesh e

no Irã, o gesto é altamente ofensivo e tem o mesmo significado de “mostrar o dedo do meio” para nós. No Japão,

esse gesto informal significa “namorado”, e o seu uso não é recomendado para homens. Disponível em:

http://www.loucoporviagens.com.br/2011/10/26/10-gestos-comumente-mal-interpretados-no-exterior/. Acesso

em: 13 de setembro de 2012 às 11:55.

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52

Assim que a viatura chega à delegacia, muito próxima do local em que se encontravam

os bandidos, os policiais desembarcam da viatura e seguem em direção à porta onde outros

dois policiais estavam parados. Nota-se que Matias chega próximo, cumprimenta-os, mas não

os toca, mantém distância física enquanto que logo atrás outro policial corrupto cumprimenta-

os dando-lhes a mão. O fato de Matias não tocar nos policiais milicianos comprova o que

Freud constatou, isto é, na medida que o eu se desenvolve o corpo o acompanha. Segundo

Courtine, o corpo é associado à consciência e ao inconsciente e desta forma se torna uma

dimensão fundamental do sujeito sobre outro sujeito. Assim, o sujeito expõe-se através da

linguagem corporal, seus gestos não são meramente superficiais e inúteis, isto é, o

componente corporal está integrado ao processo pulsional, a seu inconsciente.

O ponto crucial deste recorte é o depoimento do narrador protagonista, Tenente

Coronel Nascimento, que relata a barbárie que os políticos são capazes de fazer em ano

eleitoral com a ajuda da milícia. É justamente por esse motivo que a criminalidade se agrava,

tomando conta da sociedade, tornando-se praticamente impossível algum controle sobre essa

mesma criminalidade após as eleições.

Isso permite compreender que as milícias se apoderam de seu fardamento e de seu

poder para interesses próprios. Acompanhando-se as ideias propostas por Speck para

combater a corrupção, conclui-se que são necessários

mais incentivos positivos para os encarregados da aplicação da lei, mais

probabilidade de desvendar comportamentos corruptos e punições mais severas têm

um peso reduzido se comparado com o volume de recursos que o outro lado, por

exemplo, o crime organizado, pode jogar na balança dos custos e benefícios do

comportamento do corrupto (1998, p. 57) .

Assim, parece nada adiantar combater a corrupção sob o ponto de vista individual-

moralista, como é o discurso dos polícias considerados em meio à corporação corretos, mas,

sobretudo, sob o ponto de vista organizacional ou sistêmico.

Um dos componentes do discurso da milícia é o discurso da violência, em grande parte

concentrado na criminalidade materializada em danos materiais e físicos, estes visíveis.

Porém, há aqueles discursos que acarretam outros problemas, são os que danificam as crenças

e os costumes morais e psicológicos.

A noção de violência que se perpetua no discurso policial e da milícia. Em especial a

violência verbal, acha-se intensificada quando vista em relação à representação que é feita

desse discurso na mídia. Portanto, a violência muda de fisionomia e de escala de acordo com

a maneira pela qual os mesmos fatos são apreendidos, julgados e divulgados.

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53

Este paradoxo existente entre a consolidação de uma relação entre a milícia e a polícia

considerada honesta por sua corporação, e entre a sociedade e o Estado, tem uma longa

tradição de desigualdade excludente, que caracteriza as relações entre os grupos sociais e deve

ser considerado, se o que está em causa é entender o fenômeno da violência da milícia.

Segundo o ponto de vista de Simmel (1983, p. 132), pensar

a violência como algo que, associado a outros elementos, contribui para a

compreensão do desenvolvimento das relações sociais, sobretudo se a violência é

abordada através da noção de conflito. Neste caso, o conflito vai aos poucos se

dissociando do aspecto que cerca o conceito de violência como ato extremo, como

forma de aniquilamento do outro. Os elementos unificadores nas relações de conflito

entre os grupos e indivíduos que podem impor limites à violência, isso até em

situações de guerra, em que as partes beligerantes, com o intuito de estabelecer um

certo grau de confiança, assumem acordos para um possível tratado de paz no pós-

guerra, o que demonstraria ainda haver algum tipo de fator socializante. Já a

ausência desse fator pode ter como exemplo o assassinato cometido por alguém.

Neste caso, os elementos unificadores do conflito são quase zero.

Outra situação problemática em meio à corporação policial é o desvio de conduta, o

desvio de finalidade, que “vai desde o uso indevido de meios materiais postos à disposição da

polícia, passa pelos efeitos retirados da atividade policial para atender interesses menores e

chega ao exercício deliberado de funções policiais que não são exatamente de competência do

respectivo órgão” (LAZZARINI, 1995, p. 63).

Estabeleceu-se, ainda, a concepção de ordem pública, que transcende o referencial

legal, legítimo e moral do grupo social. A partir daí, havendo interações individuais no espaço

público, ou seja, viabilizando a convivência pública, tem-se a segurança pública, que deve ser

entendida como atividade-meio para a garantia da ordem pública.

Por sua vez, em relação aos responsáveis pela segurança pública, soluções devem ser

procuradas para vencer os problemas de violência, de corrupção policial e o desvio de

finalidade, um verdadeiro desperdício de recursos que não resultam em melhoria para a busca

de excelência na prestação de seus serviços. E, por isso mesmo, há em parcelas da sociedade

certa dose de preconceito e até mesmo discriminação contra detentores de funções públicas na

área de segurança, justamente pelas condutas que praticam, condutas que violam, acima de

tudo, a dignidade da pessoa humana, notadamente, do mais fraco e menos favorecido pelas

políticas públicas.

2.1.3 O discurso da política

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54

O que o movimento dos discursos políticos reflete antes

de tudo são as contradições das lutas políticas e sociais,

e não diretamente os grupos em si.

J.-B. MARCELLESI

A AD francesa surge em meio ao movimento estruturalista, sob a forma de uma

síntese entre a linguística e a psicanálise. Assim, desde seu surgimento privilegia o estudo do

Discurso Político (DP). Desde então mudanças constantes são visíveis na contemporaneidade

com relação à Análise do Discurso Político51

(ADP), o qual é por excelência o lugar de um

jogo de máscaras, onde os conceitos construídos completam-se, ou se omitem, ou se excluem,

porque são marcados pela historicidade que se agrega a sua existência categorial.

Por sua vez, Chauí (1995, p. 367-377), questiona a política, indagando

(...) ela é uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne

a todos nós, por que vivemos em sociedade? (...) a política é uma profissão entre

outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o

poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha

como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado? (...) Afinal, o que é a

política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão

de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se

refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada?

Parece-nos que a sociedade moderna está configurada de tal modo que a política é uma

conduta que o sujeito tem para com o Estado, corresponde a ser um elemento determinante

das relações da convivência entre os sujeitos em sociedade.

Outrossim, é pertinente questionar o que se entende por discurso político. Ou então,

talvez mais importante ainda é indagar quais são os discursos produzidos pela política. Ou

ainda, se devemos analisar a política enquanto discurso. Mas, então, cabe perguntar se a

política seria apenas discurso. Outra pergunta cabível: a ação política seria secundária em

relação ao discurso ou constituiria, ao contrário, a base política na qual o discurso seria

implantado?

Obviamente as respostas não se apresentam de forma clara, muito menos devem ser

tomadas através de um ponto de vista particular. O discurso político, não diferentemente de

outros discursos, modifica-se conforme a época, o local em que acontece.

A partir do pensamento de Pêcheux, Jean-Jacques Courtine passa a observar as

mudanças do Discurso Político. Assim, em Análise do Discurso Político: o discurso

51

A Análise do discurso (político) mostra-se assim como veiculadora de uma política (da Análise do discurso),

mantendo uma relação fundamente ambígua com o que tomo a liberdade de chamar aqui de imbecilidade

(ALTHUSSER, 2009, p. 22)

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55

comunista endereçado aos cristãos (2009), Courtine postula a necessidade de alargar o estudo

sobre a AD. Courtine destaca que

a constituição, a formulação e a circulação da discursividade política contemporânea

implicavam a rápida obsolescência de sua filiações históricas e o reflexo de

princípios ideológicos, sua manifestação sincrética, rápida e fragmentada, na qual o

verbo não poderia mais ser dissociado do corpo, do rosto, dos gestos e das imagens e

sua transmissão em novas e mais velozes mídias (2009, p. 09).

Desta forma, Courtine destaca que o foco dos corpora na Análise do Discurso é

destacado a partir de textos predominantemente escritos sob uma visão ampla, englobando

pistas que auxiliem a compreender as mutações que ocorrem nos discursos políticos, fato que

impôs a ideia de se examinar a ligação entre o corpo e o discurso nas falas da política.

Courtine passa a estudar as transformações do atual discurso político, que a seu ver é

fruto do desenvolvimento do médium audiovisual, isto é, a relação entre o corpo e o discurso.

Desta forma, Courtine desenvolve uma pesquisa minuciosa sobre as práticas e representações

do rosto e passa então a compreender que “o rosto é capital nas percepções de si, nas

sensibilidades do outro, seja nos rituais da sociedade civil, seja nos protocolos políticos”

(COURTINE, 2009, p. 10).

É indispensável enfatizar que, em nosso país, há alguns escritos sobre discurso político

que não podem deixar de ser destacados. É preciso mencionar, entre esses estudos, as análises

de Haquira Osakabe, com Argumentação e Discurso Político (1979)52

; Eni Puccinelli Orlandi,

com A linguagem e seu funcionamento (1987)53

; José Luiz Fiorin, com O regime de 1964:

discurso e ideologia (1988); Freda Indursky, com A fala dos quartéis e outras vozes (1997)54

e de Mónica Zoppi-Fontana, em Cidadãos Modernos: Discurso e representação política

(1997)55

.

Segundo Garcia,

52

O autor alia noções de análise do discurso, de linguística e de retórica e analisa questões ligadas ao campo da

subjetividade, inscrevendo-a, quer no âmbito das categorias linguísticas, quer no das operações de progressão

discursiva. 53

Incorporando as noções de social e histórico, a autora busca distinguir o estabelecido do não-estabelecido e

questionar a consciência desta distinção no homem quando este produz linguagem. 54

Estabelece o referencial teórico sobre a constituição do sujeito político (nós), a representação desse sujeito em

suas diferentes configurações, bem como a construção do Outro e a representação de interlocutores e

destinatários. No universo destas representações, fortemente marcadas pelo trabalho discursivo que conduz da

determinação à indeterminação, simbólico e imaginário encontram-se estreitamente entrelaçados. 55

Explora os caminhos teóricos e analíticos abertos por questões como racionalidade política, modernização do

Estado, morte das ideologias, falsas esquerdas e direitas anacrônicas, estudando o caso do discurso alfonsinista

na Argentina.

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56

O discurso político foi profundamente repaginado sob os holofotes, com novas

formas de discursividade, novas práticas de leitura, com cores, sons, luzes, câmeras.

Não se pode mais separar discurso político da imagem, assim como não se separa

mais o homem político de sua imagem (2010, p.29).

O discurso político faz parte da interação humana. Não necessariamente precisa ser

um político ou um cientista político para compreender que há diferentes ambientes nos quais

o Discurso Político ocorre, como, por exemplo, no legislativo federal, estadual e municipal,

no executivo, nos governos, tanto federal, estaduais, municipais, além, é claro, na própria

polícia, tema deste corpus. É o lugar da governança56

.

Tratando-se de política, pode-se citar o Recorte Discursivo Fílmico-Imagético 3

(RDF-I 3), o qual revela o quanto o discurso da política é calcado no jogo do poder.

Primeiramente os políticos que estão sentados à mesa, almoçando, conversam e articulam a

campanha eleitoral prometendo benefícios à comunidade, se esta os apoiar a eleição.

O recorte discursivo fílmico imagético inicia apresentando ao espectador uma festa na

comunidade das Vilas das Rochas – nome dado ao local pelo próprio miliciano Rocha. Surge

o discurso do policial Tenente Coronel Nascimento em off.

Nascimento:

– O sistema estava mudando, evoluindo, antes os políticos usavam o sistema pra

ganhar dinheiro, agora eles dependiam do sistema pra se eleger.

Enquanto Nascimento fala, a câmera em zoom aproxima o espectador até as

personagens que estão sentadas à mesa. Logo atrás das pessoas há uma faixa pendurada, onde

se lê: “Ano de justiça e paz”. É uma frase própria do discurso político, pois nessas épocas as

promessas sempre giram em torno da igualdade, da justiça, da paz.

Enquanto a câmera se desloca, proporciona imagens de sujeitos festejando, sambando,

bebendo cerveja e fumando droga. Os homens, moradores da favela, vestem calção, camiseta

e chinelo, enquanto que as mulheres estão vestidas com calções curtos e blusas com decotes

ligeiramente ousados, o que sugere o desnível da mulher, a sua não valorização social. Já, por

sua vez, os políticos que estão sentados à mesa juntamente com alguns milicianos,

diferentemente dos demais personagens, estão vestindo camisa social.

Assim, inicia o discurso político:

Deputado Fortunato:

56

“Governança” é aqui definida em um sentido amplo: é tudo o que participa da gestão do poder em um grupo

social, qualquer que seja sua dimensão. Essa noção engloba, pois, aquela mais restrita de governo, que se refere

ao aparelho institucional de Estado.

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57

– Entenderam? A quadra de esporte já tá funcionando, as crianças praticando na

quadra.

Secretário de Segurança Iguaraçi:

– A praça pública, a reforma da praça pública já tá em andamento, a coleta do lixo

tem todo nosso apoio, o governador tá aqui pra não deixar mentir.

Governador:

– Tenha a certeza que faz parte de nossas prioridades o apoio à comunidade.

Rocha:

– Governador, sem palavras, sinceramente. Só um minutinho.

Rocha dirige-se até o microfone, dispara dois tiros para o alto, como forma de pedir

silêncio, e fala:

Rocha:

– Calma, gente! Hoje é numa boa, hoje é numa boa. Hoje é numa boa. Queria

agradecer a presença de todos aqui em nossa comunidade.

Rocha inicia seu discurso de agradecimento e apoio aos políticos. A posição-sujeito de

Rocha promove as relações de poder, pois ao atirar para cima estabelece uma relação de

autoritarismo entre policial e sociedade civil. Assim, o discurso é feito na posição-sujeito-civil

mas não se faz dissociado da posição-sujeito-policial. É o discurso daquele que deve ser

obedecido e que tem o poder de fé pública. Portanto, naquele momento e especialmente no

meio da favela, é ele o sujeito discursivo investido no poder de afirmar o que está certo ou

errado. Entretanto, o sentido do discurso feito desde uma posição-sujeito-policial é

opacificado pelo lugar discursivo de onde Rocha fala – a mesa de um bar e na presença de um

superior hierárquico, o governador, e de autoridades civis, os deputados –, identificando-se

com uma posição-sujeito-civil, de quem não tem poder de mandar e deve acatar as normas

estabelecidas. É um jogo imaginário que sustenta o autoritarismo.

Rocha agradece aos deputados. A câmera em plano americano desloca-se entre um

sujeito e outro.

Rocha:

– Ao nosso eterno padrinho do coração, Deputado Fortunato. Muito obrigado,

Deputado

Assim que o Deputado Fortunato é cumprimentado, levanta-se. A população começa

aplaudir. O discurso produzido pela imagem da posição-sujeito-político em contraponto com

o discurso da imagem da posição-sujeito-eleitores permite, de certa forma, um deslocamento:

a população é constituída somente por eleitores, necessários apenas durante as eleições. Já o

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discurso vazado da posição-sujeito-político exercida sobre o sujeito posição-sujeito-policial é

de interesse, pois o sujeito-discursivo-policial tem domínio sobre a favela e é através desse

sujeito-discursivo que o sujeito-discursivo-político conseguirá o apoio da comunidade para

conseguir votos. Por isso Fortunato diz:

Deputado Fortunato:

– Sou teu fã.

Rocha abre os braços em sinal de um abraço. Em seguida, com a mão direita, bate no

peito mostrando que Fortunato está no seu coração. Porém, ao mesmo tempo em que bate no

peito com a mão direita, com esta mesma mão segura uma pistola, gesto que possibilita

entender que Fortunato é e será seu amigo enquanto lhe convenha; caso contrário, a arma o

eliminará facilmente.

Rocha:

– Estamos juntos.

Neste momento o Deputado Fortunato puxa uma criança para perto de si e a beija na

cabeça, atitude própria do discurso político, que é cumprimentar amistosamente pessoas

idosas e crianças.

Rocha:

– Hoje é um dia de festa.

Esse recorte contribui para a compreensão de que a política é um jogo de interesses,

fato que se tornou mais visível após a expansão do acesso aos meios de comunicação, que

contribuem para ampliar o conhecimento da população sobre o universo da política, através

dos noticiários, especialmente quando esses geram polêmica.

Nas últimas décadas, a política passou a ocupar vários espaços nos meios de

comunicação, desde a mídia falada, escrita, televisão à internet. Assim, a mídia deixou de ser

um espaço pelo qual o discurso político se expressa e passou a ser um espaço de construção

de discurso.

A propósito das contradições evidenciadas no discurso político, J.-B. Marcellesi

(1975, p. 122) afirma que “o movimento dos discursos políticos antes de tudo são as

contradições das lutas políticas e sociais, e não diretamente os grupos em si”, ou ainda, apesar

de sua restrição

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59

está bem entendido que os contrastes na utilização da língua por grupos de diversas

ordens são os resultantes das contradições da sociedade, mas a determinação pode

ser complexa e passar por diversas mudanças e interações de modo que a

consciência social pode muito bem não ser idêntica à existência social.

(MARCELLESI, 1975, p. 4)

Em suma, todo discurso está relacionado ao discurso de poder, assim pretendem impor

verdades tanto morais, quanto éticas e comportamentais:

Isso alimenta o jogo desleal, a falta de ética, a corrupção, a mentira, a desonestidade

como meio, a prática da criminalidade, com seu sentido diluído. O discurso é o

neoliberal. A sociedade é uma sociedade individualista ao extremo e esta não é uma

questão moral, mas política. Deve-se aos modos de individualização dos sujeitos no

capitalismo mundialista e ao funcionamento das instituições que não são regidas por

um Estado de direito, mas apenas legalista. (INDURSKY, 2011, p. 40).

Entretanto, o discurso político se destaca entre todos os demais discursos neste

particular. Enquanto os demais tendem a descolar seus desejos de poder, tornando-se opacos,

o discurso político explicita sua luta pelo poder. Desta forma, é próprio do discurso político

utilizar o discurso como forma de poder.

2.1.4 O discurso do sistema

O Sistema – funcionamento do conjunto de elementos interligados e que funciona

como um todo estruturalmente constituído – entre a política, a milícia e a polícia no corpus

Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro é gerado em torno da violência que legitima o

discurso da paz.

Para compreender o sistema que engloba o discurso da política, da milícia e da polícia

é necessário compreender que em meio a esse emaranhado de discursos existam ainda o

discurso jurídico57

e o discurso judicial58

.

Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2004) a base do discurso jurídico é a retribuição e/ou

a ressocialização, enquanto o discurso policial seria marcado pelo teor de suas normas e

regras, as doutrinas morais.

O discurso judicial desenvolve sua própria cultura: pragmática, legalista,

regulamentadora, de mera análise da letra da lei, com clara tendência à

57

São as regras, os órgãos, as doutrinas, as leis, as normas, os costumes que descrevem, organizam, e modificam

nosso ordenamento jurídico. É um conjunto de normas que regem toda a organização de uma nação. 58

É o conjunto dos órgãos públicos, ao qual a Constituição Federal (1988) atribui o poder e as funções.

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burocratização. As expressões moralizantes policiais [...] não ocultam tampouco sua

tendência burocratizante. Em geral há uma manifesta separação de funções com

contradição de discursos e atitudes, o que dá por resultado uma

compartimentalização do sistema penal: a polícia atua ignorando o discurso judicial

e a atividade que o justifica [...] (ZAFFARONI & PIERANGELI, 2004, p. 71).

Conforme as palavras dos autores antes mencionados, é visível que a incongruência de

discurso acaba gerando fraturas no Sistema Penal, cujos segmentos terminam sendo

desestabilizados. Obviamente, ambos os poderes, Jurídico e Penal, deveriam, pela lógica do

sistema, ter uma interação não contraditória.

Por mais que se acredite em uma utopia, a realidade brasileira “é nua e crua”

(SOARES, 2010, p. 17), quanto ao Sistema Penal, surgindo dos sistemas já mencionados

vários tipos de discursos: o judicial, cuja morte foi declarada há muito, mas que insiste em ser

utilizado, que reafirma o caráter ressocializador da intervenção penal. A esse se agregam o

retributivo – este, sustentado pela ideologia da defesa social –, e o policial, especificamente

falando, o BOPE, que insiste no teor moralizante da atividade policial.

Devido ao crescimento das milícias e das denúncias, através da mídia, de corrupção

gerada pelos policiais, acabou surgindo uma descrença da população em relação à polícia.

Desta forma, o discurso moralista acabou por ser desacreditado, pois “casos sucessivos de

corrupção e brutalidade feriram de morte [...] a confiança da sociedade em suas polícias.”

(SOARES, 2006, p.10).

Devido a essa descrença popular para com a polícia, surge o filme Tropa de Elite e

Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro, no qual o BOPE recupera o discurso moralista da

polícia, em razão da antítese entre policiais corruptos – milícias – e os policiais honestos, os

“caveira”59

– BOPE – sendo que estes “recebiam o mesmo salário de seus colegas da polícia

convencional, mas eram incorruptíveis. Foram acusados de brutalidade desmedida, mas sua

honestidade foi amplamente reconhecida.” (SOARES, 2006, p. 7).

O discurso que o BOPE assume, discurso esse moralista, acabou fazendo com que a

rachadura provocada pela contradição dos discursos adotados pelos segmentos do Sistema

Penal se transformasse em efetiva ruptura. Com isso, os segmentos policiais e judiciais não só

atuam de maneira desarmonizada, como passam também a surgir constantemente problemas

de embate entre eles.

A situação que engloba o Sistema Penal e o Sistema Judicial com relação à polícia não

é diferente com a política. Desta forma, o BOPE entra em confronto com o Estado, isto é, em

59

Policiais que realizaram cursos de operações especiais, cujo símbolo de todos os cursos de operações especiais

é uma caveira.

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confronto com o Sistema Judicial, político e das milícias, desmascarando esses grupos, os

quais deveriam estar atuando de maneira concertada para a realização do controle social –

desestabilizando por completo o Sistema Penal brasileiro.

Segundo Althusser em Aparelhos Ideológicos do Estado (1983), o Estado não é

público muito menos privado, mas sim é “a condição de toda distinção entre o público e o

privado” (1983, p. 69), pois o que interessa de fato é o seu funcionamento, não são as

instituições que o constituem individualizadamente. Significa dizer que o que de fato interessa

é como esse Estado funciona como um todo estruturado com relação a determinado fim.

Diante dessa concepção dominante, qual o efeito da crítica de Althusser à teoria

descritiva do Estado e de sua contribuição com a noção de aparelho ideológico de

Estado? Em primeiro lugar, Althusser desloca a questão de seu funcionamento. O

caráter do aparelho de Estado e sua posição na luta de classes não estaria no lugar

jurídico que ele ocupa na estrutura da sociedade, mas no seu funcionamento,

repressivo ou ideológico. A burocracia, as Forças Armadas, o Judiciário, o governo,

não seriam repressivos porque se encontram em mãos de uma classe dominante ou

de seus representantes, mas porque seu funcionamento é coercitivo, porque é uma

máquina de guerra, cujo produto é uma relação de subordinação entre classes. A

mudança de mãos do aparelho repressivo de Estado não muda em nada o seu caráter.

Fica claro, com isso, que o funcionamento, tanto coercitivo quanto ideológico, do

aparelho de Estado não é o neutro ou instrumental – não é unidirecional – mas sim,

contraditório. (ALTHUSSER, 1983, p. 16)

Segundo Althusser (1983), o que diferencia o Aparelho Ideológico do Estado do

Aparelho (repressivo) do Estado é a violência e a ideologia. Neste tocante, Althusser destaca

que o “Aparelho repressivo de Estado ‘funciona através da violência’ ao passo que os

Aparelhos Ideológicos do Estado ‘funcionam através da ideología’” (1983, p. 69).

Todo Aparelho do Estado funciona através da ideologia e da violência, seja ele

repressivo ou ideológico. Porém, cabe argumentar que existe uma diferença importante que os

diferencia. Assim, o aparelho repressivo do Estado está vinculado à repressão (tanto física

como moral) e “secundariamente através da ideologia (não existe aparelho unicamente

repressivo). Exemplos: o Exército e a Polícia funcionam também através de ideologia, tanto

para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os ‘valores’ por eles

propostos” (ALTHUSSER, 1983, p. 70).

Tratando-se do poder do Estado, é preocupante a corrupção que engloba a polícia, a

milícia e a política, é um sistema intolerável, pois os políticos deveriam pensar a sociedade

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como um todo, criando leis para o bem estar social, assim os policiais deveriam ser os

primeiros guardiões da Lei e da ordem social60

.

Essa corrupção é possível ser vista no Recorte Discursivo Fílmico-Imagético 4 (RDF-

I 4)61

. Neste, Tenente Coronel Nascimento depõe sobre o sistema que engloba políticos e

milícias.

Tenente Coronel Nascimento:

- É que policial não puxa esse gatilho sozinho. Deputado Fraga, metade dos seus

colegas aqui dessa casa deveriam estar na cadeia.

O Recorte inicia em plano americano, com a imagem de Nascimento. Na sequência,

Nascimento olha para o deputado Fraga e com isso a câmera faz um corte mostrando, em

ângulo lateral traseiro, Nascimento, o qual olha para Fraga. Em seguida, a câmera faz um

travelling para a esquerda mostrando os deputados exaltados, uns em pé, outros sentados.

Deputado Fraga:

- Por favor, senhores! Eu peço silêncio para garantir a palavra do depoente, por

favor.

Imediatamente Fraga pede silêncio para o TC Nascimento prosseguir com seu

depoimento. Enquanto o deputado pede silêncio Nascimento diz:

Tenente Coronel Nascimento:

- Metade é pouco, senhor deputado.

Deputado Fraga:

- Vamos manter o silencio, por favor, por favor.

Fraga continua pedindo colaboração e silêncio. Assim, que diminui o barulho, TC

continua seu depoimento, enfatizando novamente a mesma frase:

Tenente Coronel Nascimento:

- Metade é pouco deputado. Aqui tem uns seis ou sete de ficha limpa.

60

Conceito tomado à Sociologia. Segundo Ogburn e Nimkoff, citados por Lakatos e Marconi, “a ordem social é

fundamentalmente baseada em grupos de pessoas e na disposição de seus comportamentos e teria dois aspectos

fundamentais – a estrutura e as funções por esta realizadas. A estrutura constitui-se na organização de grupo de

pessoas, através de organizações sociais, cada qual com identidade própria, como a família, a empresa e o

partido político, entre outras; já as funções, o que cada um desses grupos faz, com respeito ao respectivo

funcionamento, para alcançar os objetivos que lhes determinou se constituírem como tais (2009). 61

Depoimento de Nascimento em uma CPI organizada pelo Deputado Fraga.

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A câmera, enquanto o diálogo acontece, alterna seu olhar entre um personagem e

outro, deslocando sua imagem do TC para o Deputado Fraga e para os alterados políticos que

estavam presentes à sessão da CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito. O olhar do

espectador acompanha a câmera que ora mostra a imagem de Nascimento e o Deputado Fraga

e ora mostra os políticos através do olhar do TC.

A cena discursiva contribui para o espectador compreender o simbólico do silêncio, a

palavra não-dita. Isto é, através do olhar é possível visualizar os personagens presentes e seus

gestos, além de permitir compreender o cenário, os objetos contidos no espaço discursivo,

para dessa forma compreender e interpretar a materialidade linguística constitutiva do

discurso do Tenente Coronel Nascimento.

O discurso e a interpretação existem em qualquer manifestação de linguagem. Em

conformidade com Orlandi, “os sentidos não se fecham, não são evidentes, embora apareçam

ser. Além disso, eles jogam com a ausência, com os sentidos do não-sentido” (1996a, p. 9).

Esse ponto de vista, aplicado ao sentido do discurso fílmico, possibilita compreender o

conteúdo simbólico com que o cineasta José Padilha trabalha, possibilitando ao espectador

imagens que interpretam o cotidiano e que possibilitam novas possíveis interpretações.

Assim prossegue o depoimento de Nascimento:

Tenente Coronel Nascimento:

- Deputado Fortunato, o senhor é chefe de uma das maiores organizações criminosas

dessa cidade.

Todos os políticos novamente se alteram, ficam em pé e começam a discutir juntos. O

Deputado Fraga novamente precisa interromper para pedir silêncio.

Deputado Fraga:

- Por favor, vamos manter silêncio, por favor.

Imediatamente, em tom calmo, a personagem Tenente Coronel Nascimento retoma seu

discurso.

Tenente Coronel Nascimento:

- O senhor age em parceria com o comandante, ex-comandante da polícia militar do

estado Rio, ex-secretário de segurança, seu Guaraci Novais, um dos piores bandidos

que eu tive o desprazer de conhecer na minha vida como policial. E eu posso afirmar

aqui, deputado, que o governador do estado do Rio de Janeiro está diretamente

envolvido nos crimes investigados aqui, por esta casa. Deputado Fortunato, o senhor

é mandante de mais de 20 assassinatos na zona oeste da cidade, entre eles, o senhor

é mandante do assassinato do meu amigo, Capitão da Polícia Militar, André Matias.

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O discurso do TC Nascimento deixa claro o envolvimento da milícia com a política, o

que faz com que as pessoas presentes demonstrem estupefação diante de tamanhas barbáries

praticadas por poder e dinheiro.

Enquanto Nascimento faz seu depoimento, o Deputado Fortunato fica sentado, com

olhar fixo em Nascimento. Somente no final levanta-se e sai devagar da sala. Em

contrapartida, os demais políticos agitam-se.

Enquanto TC Nascimento depõe na CPI, o discurso do Deputado Fortunato é o do

silêncio. Esse discurso de silenciamento do Deputado não tem apenas “um” sentido, mas sim

múltiplos sentidos, e que não estão ligados apenas a um lugar pré-definido. Isto é, o sentido é

construído nas relações entre locutores, já que sentidos e sujeitos se constroem mutuamente,

no jogo das Formações Discursivas. Essas FDs “recortam o interdiscurso (o dizível, a

memória do dizer) e refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos

sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constitui sentidos diferentes” (ORLANDI,

2007, p. 20).

A câmera, em plano-americano lateral, mostra o Tenente Coronel e nos fundos da sala

o Deputado Fraga. Logo em seguida, enquanto o policial continua falando, a câmera faz um

plongée lateral para mostrar os deputados. Na sequência, a câmera, em plano médio, fixa-se

no rosto do Deputado Fortunato, que está paralisado, olhando fixamente para Nascimento.

Instantaneamente a câmera, em plano médio, como se fosse os olhos do espectador, mostra a

imagem do rosto do TC, e, em seguida, movimenta-se em zoom, lentamente aumentando a

lente até mostrar todo o ambiente.

Quanto ao silêncio do Deputado Fortunato, não é o da convicção e da certeza, mas o

da concordância de seus atos perante o depoimento do policial. O discurso de Nascimento

permite identificar uma das propostas da AD, isto é, a noção de que tanto o sentido quanto o

sujeito constituem-se no espaço discursivo. Assim, ao Deputado Fortunato pelas regras

socioideológicas que correspondem à posição-sujeito do TC Nascimento como depoente,

corresponde a posição-sujeito de ouvinte, a quem cabe apenas escutar, tomando conhecimento

do que está sendo dito.

Enfim, o depoimento de Nascimento comprova que ele possui uma concepção ética. A

população sempre espera um comportamento íntegro da polícia, e, naturalmente, de seus

policiais, não diferente da política, quando elege seu candidato. Porém, o que a população

vivencia é o alto nível de corrupção e cooptação de ambas as partes, possíveis de serem

vistas/ouvidas nos noticiários, pois, mudam-se as fotos dos políticos, mas o destino manifesto

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da corrupção dos governantes e seus mandatários da divisão do poder em escala decrescente

continua o mesmo.

2.2 Tramas discursivas

O sentido não existe em si, mas é determinado pelas

posições ideológicas colocadas em jogo no processo

sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As

palavras mudam de sentido segundo as posições

daqueles que as empregam.

ENI ORLANDI

São inquestionáveis os fluxos e refluxos da corrupção e da violência, que se ramificam

em meio às tramas do sistema que engloba política, polícia e milícia. Assim, é pertinente

destacar que, para compreender os andaimes desse sistema, é necessário um olhar preciso e

conciso sobre os conflitos sociais que envolvem as esferas do poder.

É importante destacar que a imagem de que o Direito Penal é capaz de solucionar

todas as questões e conflitos sociais não passa de um equívoco, como também o é querer

justificar o crescimento da criminalidade – diverso do tema violência – à falta de um sistema

penal mais rígido62

.

Toda proposta que pretenda alongar a ação punitiva estatal, sabidamente, ou não, parte

de uma análise ilógica e contrária às diversas constatações empíricas que apontam outros

motivos, sobretudo de ordem social e econômica, como grandes fomentadores diários da

violência e da criminalidade. Ao fazer isso, os desavisados acabam por incorporar a crença

em tais soluções, enquanto seus mentores (ou mal intencionados), em regra, continuam a

vender o pavor e ilusões com interesses nitidamente particulares, quer econômicos ou

políticos, cujo propósito é a preservação de um sistema social que seleciona indivíduos,

conforme critérios definidos por aqueles que sempre tiveram o poder de mando.

De fato, vive-se em uma sociedade que tudo manipula como num tablado maniqueísta,

entre o bem e o mal. Neste sentido, descrever estes sentimentos ou valores, especialmente por

62

As leis de natureza penal, hoje em dia, parecem veicular uma perigosa assertiva que tomou conta dos

ensandecidos que, equivocadamente, vêm no Direito Penal a solução para todas as mazelas, ou quase todas: é

preciso passar por cima das garantias constitucionais, ignorar a ética e os ditames da consciência jurídica

democrática no combate sem trégua ao crime, que atormenta a sociedade. Captando equivocada legitimidade

através da dramatização da violência – cujo conceito é conduzido ideologicamente a não parecer mais que a

criminalidade comum -, os grupos interessados em mais repressão se organizam em torno da ideia de que a paz e

a segurança do cidadão dependem de desprezar os direitos fundamentais garantidos, como se eles não fossem de

todos os homens, mas apenas, dos “bandidos” (AGUIAR, 1996, p. 52).

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serem antagônicos por natureza, bastaria a descrição de um para se ter a compreensão do

outro, com a correspondente inversão conceitual.

Na tentativa de melhor explicar, Bauman faz exatamente a indagação do que é o mal,

para, em seguida tentar construir uma resposta.

Essa é uma pergunta irremediavelmente viciada, embora teimosa e apresentada a

todo o momento, e estamos fadados a buscar em vão uma resposta a partir do

momento em que é feita. A pergunta “o que é o mal?” precisamente o tipo de

iniquidade que não podemos entender nem articular claramente, muito menos

explicar sua presença de modo totalmente satisfatório. Chamamos esse tipo de

iniquidade de “mal”, pelo próprio fato de ser ininteligível, inefável e inexplicável. O

“mal” é aquilo que desafia e explode essa inteligibilidade que torna o mundo

suportável... Podemos dizer o que é o “crime” porque temos um código jurídico que

o ato criminoso infringe. Sabemos o que é “pecado” porque temos uma lista de

mandamentos cuja violação torna os praticantes pecadores. Recorremos a ideia de

“mal” quando não podemos apontar que regra foi quebrada ou contornada pela

ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado. Todos os arcabouços

que possuímos e usamos para registrar e mapear histórias horripilantes a fim de

torná-las compreensíveis (e, portanto neutralizadas e desintoxicadas, domesticadas e

domadas – “tolerável”) se esfarelam e se desintegram quando tentamos esticá-los o

suficiente para acomodar o tipo de maldade que chamamos de “mal”, em razão de

nossa incapacidade de decifrar o conjunto de regras que essa maldade violou

(BAUMAN, 2008, p. 74-75)

Quanto a distinção entre o “bem” e o “mal”, é simplesmente impossível uma definição

única e concreta, isso porque, varia de acordo com a perspectiva do sujeito que a interpretar.

Vale ressaltar que sempre ao citarmos uma necessariamente comparamos com a outra, não

conseguimos nos desligar dessa dualidade, e isso, percorre toda a história da humanidade, e

não simplesmente agora na modernidade.

Com relação a organização social em muitos momentos torna-se uma trama discursiva

entre o poder policial e político, pois em muitos momentos o fator crime está relacionado ao

pecado, ao que é “bom” o que é “ruim”. Neste intuito, Bauman destaca que tanto o crime

quanto o pecado é o que o sujeito descreve ou realiza diariamente. Por outro lado

(FOUCAULT, 2004), destaca que o poder de julgar associa-se à ideia de juízo final. A

penitência à sanção penal. Por esse viés, é que a punição criminal é um castigo, que

normalmente corresponde a prisão. É indispensável destacar que muitas das aturais

repressões, isto é, tanto os castigos físicos, quanto os corporais, e até mesmo a condenação a

morte são oriundas dos nossos antepassados,

2.2.1 Corrupção versus Cooptação: o discurso das conveniências na base do crime

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A corrupção está ligada com a cultura ética da sociedade, pela qual as instituições

políticas estão formadas. Em nosso país, a corrupção se perpetua no meio social e tem poderes

de cooptar muitos indivíduos, especialmente quando está alicerçada ao poder e ao ter

(dinheiro).

O tema corrupção sempre está relacionado aos valores morais. Por outro lado, a

corrupção não deixa de ser um crime. Essa criminalidade torna-se muito mais grave quando

há a cooptação de outros indivíduos, que se apropriam do poder público para obter ganhos.

Quanto à corrupção e a cooptação da política e da polícia, é pertinente citar como

exemplo o RDF-I-5, que apresenta o miliciano Rocha comandando a corrupção e a cooptação

na favela, isto é, o bandido paga uma taxa aos milicianos para poderem continuar vendendo

droga na favela: assim “ambos lucram”.

O recorte discursivo fílmico imagético inicia com a câmera posicionada em plongée,

filmando as personagens de cima. Esse enquadramento produz um efeito de diminuir a

estatura das personagens, de inferiorizá-las, pois as situa em um plano inferior em relação a

algo maior do que elas, que as vê desde cima e relativiza sua dimensão com relação ao

conjunto da cena.

Bandido:

– Só tem quinhentos reais pra mim te dá.

Na sequência, a câmera filma o bandido, em plano americano, desde o ângulo traseiro.

O discurso do bandido deixa clara a corrupção dos milicianos – ele precisa “dar” dinheiro aos

milicianos para poder continuar vendendo droga.

Rocha:

– Da onde tá vindo esse dinheiro se tu não tá vendendo nada? Tá dando o cú agora?

Imediatamente a câmera muda de posição, filmando os milicianos de um ângulo

traseiro e o bandido de um ângulo frontal. E assim a câmera mostra em close ora o rosto do

bandido, ora o rosto do miliciano.

O discurso do policial corrupto contém um tom de superioridade, ao mesmo tempo

quando afirma “tu não ta vendendo nada” é possível perceber que os milicianos controlam a

venda das drogas na favela. Instantaneamente pede se estava se prostituindo para conseguir

dinheiro. A linguagem utilizada pelo miliciano o coloca no mesmo nível que o bandido, o

próprio acaba se rebaixando.

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Bandido:

– Que dando o cú, porra! Essa grana é do gato net, esse bagulho vem da boa.

Fica evidente, nessa cena, que o bandido deixa vazar um não-dito, isto é, a explicação

de como conseguiu dinheiro pelo gato net. Foi então que Rocha disse:

Rocha:

– Me dá um papo aí?

Rocha utiliza gírias para falar com o bandido, isto é, usa o discurso próprio dos

moradores das comunidades, isto é, das favelas. Quando ele diz: “dá um papo aí?”, está

ordenando que o bandido explique melhor como conseguiu o dinheiro. Seu tom de voz e sua

expressão corporal deixam claro o seu autoritarismo frente ao bandido, demonstrando que

possui poder e dominação.

Bandido:

– Esse bagulho aí, Rocha, morador tem que dá R$12,00 pra nóis, tá ligado, é

bagulho, mereça, é só para um morador ter uma televisão em casa, mésmo.

Neste discurso é perceptível um dos princípios da AD – a noção de que tanto o sentido

quanto o sujeito se constituem no espaço discursivo em que o sujeito está inserido; é o que

comprova a forma da linguagem do bandido, um sujeito provindo de um meio cultural sem

estudo, e com ideologias partidas da apropriação do poder e da corrupção, usando de

violência para cooptar os moradores das favelas. Sobre esse discurso podemos citar Pêcheux,

quando afirma que o sentido de uma palavra, expressão, proposição, etc., “não existe em si

mesmo (isto é, em sua relação transparente com a realidade do significante), mas, ao

contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão no jogo do processo sócio-

histórico no qual as palavras, expressões, e preposições são produzidas” (1997b, p. 160)

Neste instante ouve-se o discurso policial de Nascimento, em off.

Nascimento:

– É nada como uma crise econômica pra aguçar a criatividade. Foi só cortar o arrego

do tráfico que os corruptos perceberam o óbvio. Qualquer comunidade pobre do Rio

de Janeiro é muito mais que um ponto de venda de droga.

Enquanto se ouve em off o discurso policial do TC Nascimento, as imagens, em plano

americano, entrecruzam-se entre policial e bandido. O discurso de Nascimento permite ao

espectador perceber a cena com melhor clareza, pois após a comunidade ter sido dominada

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pelo BOPE, que bloqueou a entrada de drogas na favela, os bandidos precisaram arrumar

outra forma para extorquir a população. Foi então que o miliciano percebeu que eliminando o

bandido dono da favela poderia ficar em seu lugar e cobrar taxas – roubar – da população

utilizando o discurso da proteção.

Bandido:

- Qual é, Rocha, bagulho é o que tu come, essa é uma adiantada, dá uma aliviada na

minha comunidade, pô, sem neurose.

Rocha:

- Quem foi que disse que a comunidade é tua?

A cena se desloca na tomada seguinte, em que em primeiro plano é direcionado às

mãos do Rocha, o qual aponta uma arma e atira no bandido. As regras socioideológicas que

ditam a posição-sujeito de Rocha, isto é, corresponde a posição-sujeito de policial responsável

pela organização social. Com a morte do bandido, o cineasta oferece a possibilidade de duas

perspectivas, “ou o morto é igual a nada (...) ou trata-se de uma mudança” (PLATÃO, 1964,

p. 37). Neste caso, essa posição-sujeito é de corrupto e bandido, o qual mata para assumir o

lugar do outro.

2.2.2 Relações duvidosas: crime e poder nas tramas do sistema

O Brasil é um país democrático. Esse fato proporcionou aos brasileiros inúmeras

novidades para a operação do sistema político no país. A democracia contribuiu para o

aumento dos direitos da população, em especial aqueles relacionados à participação política,

tanto no que se refere à composição do eleitorado, quanto no que se refere à participação dos

cidadãos na democracia, isso graças à Constituição de 1988.

Tratando-se de poder, constata-se que a polícia – um aparelho institucional do Estado

– também está ligada com a corrupção. Alguns policiais utilizam-se do poder para agir

criminalmente. Assim, o político desonesto e a polícia miliciana fazem parte de um sistema

corrupto. Entretanto, não é errado afirmar que, o que resta para os dias atuais, como se pode

observar, é essa usurpação do poder, característica das sociedades pós-modernas, que acabou

abrindo precedentes para outras práticas de poder, por parte dos governantes.

Tratando-se de poder versus crime, é plausível questionar: todo poder gera o crime? O

crime existe somente porque existe o\poder? Todo político e todo policial fazem uso correto

do poder? Todo político e todo policial é corrupto?

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Em muitos momentos o poder e o crime não estão interligados, já em outros

momentos um apodera-se do outro. O poder político e policial, isto é, o poder do sistema, está

diretamente ligado à dominação e à violência. O Estado por si só impõe sua autoridade sob a

aparência da legalidade, impondo saberes ao sujeito dominado, portanto, a submissão.

O estado é uma relação de dominação exercida por homens sobre outros homens e

apoiada a violência legítima (...). para que ele exista é preciso, portanto, que os

homens dominados submetam-se à autoridade reivindicada por aqueles que se

encontram em posição de dominação em cada caso considerado (WEBER, 2003, p.

119)

Quanto ao poder de dominação que se apoderou do Estado, ele contribuiu para uma

devastadora aglomeração de crimes, tanto políticos como policiais. Os sujeitos que participam

desse sistema perceberam que se unindo poderiam tirar vantagens próprias. No entanto, não é

possível afirmar que todos os envolvidos nesse sistema concordam com a corrupção e a

criminalidade. Há uma relação duvidosa, porque nem sempre o poder gerará crime, ao mesmo

tempo em que nem sempre o crime está ligado com o poder. Tal processo, pode estar

representado no Recorte Discursivo Fílmico Imagético 6 (RDF-I 6), em que milicianos sob

comando de Rocha percebem que, além de tirar dinheiro dos traficantes, podem extorquir

dinheiro dos moradores. Desta forma, começam a cobrar taxas as mais variadas possíveis dos

moradores.

Nascimento:

– O Rocha descobriu que eliminando ex-presidiário o sistema faturava muito mais.

Tava na cara, era só fazer as contas.

Nesse pequeno recorte as cenas alteram-se rapidamente. Inicia a filmagem em plano

americano (PA) com o miliciano Rocha, o qual mata o bandido líder da favela. A câmara

registra o fato, faz um close-up63

na arma e na claridade que ela provoca com o tiro.

Instantaneamente Nascimento narra em off a história, mencionando alguns dos meios de

corrupção com que Rocha e seu grupo passam a se envolver na favela. As cenas são

acompanhadas por uma trilha musical64

de acentuado valor estético e simbólico, despertando

63

Primeiro Plano (close-up): a câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas um rosto ou outro detalhe

qualquer que ocupa a quase totalidade da tela (há uma variante chamada primeiríssima plano, que se refere a um

maior detalhamento – um olho ou uma boca ocupando toda a tela) (XAVIER, 1984, p. 19). 64

Marcel Martin (2003) afirma ser “a música a contribuição mais interessante do cinema falado, sendo o diretor

musical, juntamente com o diretor da fotografia, o principal criador da plástica cinematográfica”. Lembra,

também, “compositores como Maurice, Jaubert, Georges Auric, Joseph Kosma, Georges Delerue (franceses) e

Hanns Eisler, Kurt Weill, Nino Rota e Giovanni Fusco, entre outros, como responsáveis por fazer da música de

filme um gênero autônomo e perfeitamente válido no plano artístico. Martin cita, inclusive, o diretor russo

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o espectador para os movimentos das imagens. No início, em contra-plongée a câmara filma

um homem instalando gato net. Na sequência, a câmera desloca-se para cima e filma em

plongée o miliciano Rocha e seu grupo chegando para verificar se tudo estava certo.

Rocha:

– E aí, Irineu! Venderam muita assinatura aí?

Eletricista:

– Sim, patrão! Daqui a pouco vai ter que botá poste.

Rocha:

– Ah! Poste a gente arruma, segue aí.

Na sequência, as imagens acompanham o discurso em off do TC Nascimento

mostrando os corruptos cobrando uma porcentagem sobre a venda da água, do uso da Internet,

do gás, etc.

Nascimento:

– Favelado gosta de assistir TV a cabo.

Sacho:

– E aí, seu Valdir!

Enquanto é audível o discurso em off de Nascimento, ligeiramente a câmera mostra os

moradores da favela, donos dos estabelecimentos comerciais, pagando taxas aos milicianos

para poderem continuar comercializando.

Nascimento:

– Favelado bebe água. Favelado acesa a Internet.

Rocha:

– O pessoal tá conectando? Porra, tá todo mundo plugado, olha aí, Sacho!

Nascimento:

– Favelado usa gás para cozinhar.

Sacho, dirigindo-se a um morador e tirando-lhe das mãos um botijão de gás:

– Tio, isso aqui está confiscado. Pode deixar aí. O senhor vai descer a ladeira. Vai

pegar a primeira à esquerda. Lá no canil do Baiano, é lá que o senhor vai comprar o

gás.

A cena põe diante do olhar do espectador a favela situada em morros ou espalhada por

grandes ladeiras. Por outro lado, mostra a pobreza das pessoas, tanto na vestimenta quanto nas

Vsevolod Pudovkin: “assim como a imagem é uma percepção objetiva dos acontecimentos, a música exprime a

apreciação subjetiva dessa objetividade” (2003, p. 123).

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casas, pobreza até de conhecimento, além de aglomerações de pessoas, a sujeira e o comércio

em barracos.

Nascimento:

– O Rocha descobriu que era melhor arrecadar a favela inteira do que apenas de um

bando de traficantes fudidos. Era só o dinheiro trocar de mãos que o Rocha cobrava

a taxa CPMF de bandidos – Comissão de Policiais Militares Filhos da Puta. Pretexto

para defender a comunidade do tráfico, a realidade era bem diferente.

As milícias aliadas com a política aproveitam-se do poder para extorquir a população.

Fazem falsas promessas, como defender a comunidade do tráfico. Porém, a realidade é muito

diferente. Valem-se da corrupção e da cooptação para enriquecer, como é possível observar na

imagem: o miliciano tira das mãos do morador o botijão de gás, que fora comprado fora da

favela, e o manda comprar no ponto de venda existente na própria favela. Desta forma, tudo

que a população comprar fora da sua comunidade acaba sendo confiscado. Como ninguém

quer correr o risco de perder dinheiro, acabam todos se sujeitando a fazer as compras dentro

da favela e pagando mais caro por elas.

O discurso do poder gerador de crimes é visível no corpus. É discurso oriundo tanto da

polícia, quanto da política. A constituição do corpus discursivo permite levantar, por meio da

coleta dos recortes discursivos e fílmico-imagéticos, hipóteses relevantes para avaliar que o

poder está diretamente ligado à polícia e à política, ao mesmo tempo em que, em alguns

casos, está diretamente ligado à criminalidade e especialmente à violência.

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3 PELOS NÓS DO SISTEMA

O sistema de língua é, de fato, o mesmo para o

materialista e para o idealista, para o

revolucionário e para o reacionário, para

aquele que dispõe de um conhecimento.

Entretanto não se pode concluir, a partir disso,

que esses diversos personagens tenham o

mesmo discurso.

MICHEL PÊCHEUX

Muito embora o filme tenha sido produzido com base no livro Elite da tropa 2, a

história fílmica de José Padilha não reproduz fielmente a narrativa escrita, até porque esta

contém várias histórias paralelas, enquanto aquele se enreda em torno da história do Tenente

Coronel Nascimento, em sua saga para compreender o sistema. No entanto, é importante

mencionar que Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro traz diversos elementos e

informações contidas em Elite da tropa 2, em especial o que interessa ao trabalho aqui

proposto quanto às características de atuação do Batalhão de Operações Policiais Especiais

(BOPE) e da policia militar.

Por mais que se tente fazer um texto transposto parecer uma reprodução fiel da

sequência narrativa literária, instauram-se similaridades e diferenças por conta das

peculiaridades de cada narrativa. Geralmente, em um processo de transmutação fílmica de um

romance, o material linguístico-textual é rearranjado (há supressões, acréscimos,

substituições, deslocamentos, etc.), para que o texto passe de verbal a sincrético e obedeça às

características do meio de expressão, por exemplo, a duração.

Sob tal perspectiva, um resgate fiel do original torna-se quase impossível. Cada

produtor de cinema faz sua própria leitura do texto literário, o que favorece uma série de

adaptações, com focalizações diversificadas e, desse modo, no final da produção de um filme,

pode-se notar o grau de proximidade e fidelidade ao original.

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Tanto a obra cinematográfica, quanto a obra literária expõem as ações polêmicas do

BOPE e da Polícia Militar (PM) convencional, suscitando debates em torno do papel de

atuação da polícia e do Estado como um todo no combate ao crime organizado, às milícias.

O filme inicia com um fundo escuro (RDF-I 7). A música de suspense imediatamente

atrai a atenção do telespectador. Em meio ao fundo escuro ouve-se o som de alguém

montando uma arma. Surge a frase escrita em branco: “Apesar de possível coincidência com a

realidade, este filme é um obra de ficção”. Na sequência, em plano detalhe, surge a imagem

das mãos de alguém montando um fuzil 762. Logo em seguida, a personagem é vista por trás;

só então é possível reconhecê-lo, é o Tenente Coronel Nascimento. Essa cena acontece no

hospital, conclusão possível devido à ambientação da cena, no interior de uma UTI: em

primeiro plano, gotas de soro que se transmudam do interior de uma embalagem plástica,

além do aparelho que marca os batimentos cardíacos, mas em nenhum momento o espectador

consegue perceber quem está hospitalizado.

Logo em seguida, surge a imagem de Nascimento saindo do hospital. Compõe a cena a

trilha sonora de Pedro Bromfman, “Tropa de elite 2 - Nascimento sem saída”. Enquanto

Nascimento se desloca, homens disfarçados o seguem e se comunicam através de rádio HT.

TC Nascimento dirige-se até seu carro, um Honda Fit. A cena ocorre à noite. Nas imagens há

pouca claridade, as personagens vestem preto, o que acentua ainda mais o mistério.

Antes de entrar no carro, Nascimento olha ao seu redor, tira a arma da cintura, depois

entra no carro e coloca a arma sobre o banco do caroneiro. Sai do estacionamento do hospital.

As ruas estão escuras. Enquanto isso, dois carros o seguem. Em uma esquina, outros dois

carros o fazem parar bruscamente. Do interior desses carros começam a atirar contra o de

Tenente Coronel, deixando o Honda Fit totalmente destruído.

A história inicia pelo seu desfecho. Se o espectador não assiste a essa sequência

inicial, o efeito é diferente quando chega ao término do filme. Tal efeito está associado ao

sentido preciso das imagens, proporcionado pela técnica da montagem.

Em meio ao contexto fílmico, é a memória discursiva que se recupera, isto é, o filme

inicia com uma das cenas finais. Porém, mesmo o filme iniciando com o desfecho da história,

as sequências discursivas não são homogêneas, completas, muito menos temporais e

ideologicamente lineares; ao contrário, são calcadas, pois, na memória. As marcas histórico-

temporais estão diretamente ligadas às interlocuções. Assim, essas marcas se distinguem pelos

componentes tensionais e conflitantes que as constituem. Por outro lado, essas marcas se

alteram em significação e em alguns determinados momentos uma prepondera sobre a outra e

acaba predominando, concretizando-se na condição de “história da língua: a história dos

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sentidos cristalizados é a história do jogo de poder da/na linguagem” (ORLANDI, 1996, p.

162).

Cada sujeito possui sua história e esta fica marcada em sua memória. Essa história é,

pois, o jogo de poder que esse sujeito pratica, pelo uso da linguagem, a favor de fins em

determinados momentos específicos, conforme salienta Pêcheux (AAD-69, p. 82), desde um

determinado lugar por ele ocupado na estrutura da formação social.

Como o sentido sempre ocorre na interlocução, esse jogo de poder da/na linguagem é

permanentemente (re)construído, constituindo-se em processo dinâmico de construção de

sentidos e de linguagem, de alternância de jogos de dominância de uns sentidos sobre outros

sentidos possíveis. Esse processo dinâmico de construção dos sentidos necessita ser entendido

como um estado de “tensão entre o texto e o contexto social (social, histórico-social). Há

tensão entre interlocutores: tomar a palavra é um ato social com todas suas implicações. E se

há sentido em se falar em dois “eus” é no sentido de que há conflito na constituição dos

sujeitos” (ORLANDI, 1996, p. 151).

Ainda em conformidade com Orlandi,

[o]s dizeres (...) não são apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de

sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma

forma presentes no modo como se diz (...). Esses sentidos têm a ver com o que é dito

ali mas também em outros lugares, assim como o que não é dito, e como o que

poderia ser dito e não dito. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também

fazem parte dele (1999, p. 30).

Desta forma, o discurso de um sujeito pode ser interferido de vários discursos, que

podem ser percebidos através da memória presente na interlocução e podem se fragmentar em

significações variadas, quer seja no nível do intradiscurso, ou seja, no fio do discurso, ou no

nível do interdiscurso, isto é, as diversas formações discursivas, e assim uma se entrelaça com

a outra.

3.1 Revisando os fios do tecido

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma

proposição, etc., não existe “em si mesmo” [...]

mas, ao contrário, é determinado pelas posições

ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-

histórico no qual as palavras, expressões e proposições

são produzidas.

MICHEL PÊCHEUX

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Reitero que este trabalho consiste em analisar os fios discursivos que constituem o

“tecido do dizer” dos sujeitos-policiais e dos sujeitos-políticos a partir dos efeitos de sentidos

produzidos pela regularização no e do discurso da formação desses sujeitos, por acreditar que

nos permite revisar o papel do policial e do político, papel de (trans)formação desses sujeitos.

Assim, cabe salientar que “o sujeito é constituído pela ideologia, uma vez que toda ideologia

tem por função (é o que a define) “constituir” indivíduos concretos em sujeitos”

(ALTHUSSER, 1983, p. 93).

Diante dessa problematização, surge a necessidade de, em primeira instância, discutir

os valores semânticos na perspectiva da AD. É conveniente salientar que o texto “A semântica

e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso” escrito por em coautoria por Haroche e

Henry, em 1971, provoca reflexões teóricas acerca do pensamento de Saussure e de vários

estudiosos sobre fonologia, sintaxe, morfologia e semântica.

Vale ressaltar que é na semântica que Pêcheux passa a centrar sua atenção para assim

propor os estudos dos sentidos, pois “para os gramáticos e neo-gramáticos, a semântica estava

reduzida ao estudo da mudança de sentido das palavras” (PÊCHEUX, 2008, p. 02).

Tratando-se de semântica, Pêcheux afirma que uma palavra pode ter vários sentidos:

Ora, se considerarmos, por exemplo, o domínio da política e da produção cientifica,

constataremos que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições

determinadas por aqueles que as empregam. [...] com efeito, é um indício que mostra

que as coisas não são assim tão simples quanto faria supor a ideia de uma

diferenciação em subsistemas. Tudo se passa como se a correspondência entre teoria

geral e estudo particular de uma dada língua desaparecesse no nível semântico

(PÊCHEUX, 2008, p. 05)

Com essa afirmação podemos perceber que a semântica possibilita uma vasta

abordagem teórica na AD. Pêcheux assim descreveu que os sentidos, “objeto da semântica,

excede o âmbito da linguística, ciência da língua. A semântica não deriva de uma abordagem

linguística, ciência da língua. Era o que já pressupunha o livro em 1969” (ORLANDI, 2003,

p. 31).

No texto Curso de Linguística Geral (2004), Saussure não percebeu as contradições

que formulou, quando destacou que “tudo é gramática na analogia” (p. 193) afirmando que a

analogia é completamente gramatical e sincrônica, como se as particularidades das palavras

na linguagem desaparecessem no nível semântico.

Certamente, “Semânticas gerais” foram propostas, mas elas não fornecem quase

nada de princípio que permitam depreender as particularidades das línguas, etc,

como é o caso da fonologia, da morfologia ou da sintaxe. Existem, por outro lado,

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descrições semânticas de diversas línguas, mas de descrições que permanecem sem

ligação com as teorias. Se elas permanecem em grande parte desligadas de

descrições concretas das línguas, as semânticas gerais nem por isso se libertam de

todos “dados concretos”. (PÊCHEUX, 2008, p. 05-06).

Michel Pêcheux percebeu que “há um funcionamento das línguas em relação a elas

mesmas” (ORLANDI, 2008, p. 31). Portanto, é pela produção que é possível compreender o

contexto da enunciação, desde os aspectos históricos e ideológicos. Baseado nesses

elementos, Pêcheux afirmou que há a existência do sujeito discursivo. Assim,

rachou de alto a baixo, com suas elaborações sobre o discurso, tudo o que fazia

voltar ao sujeito, às práticas e as teorias que tomam o sujeito individual como moeda

sonante. Ele propôs, em seu dispositivo de análise automática do discurso, um

método de leitura que faz explodir a unidade de um sujeito escritor/leitor

(ORLANDI, 2003, p. 33)

Nesse processo, Pêcheux deteve o mérito de afirmar a existência própria de um nível

discursivo, diante daqueles que simplesmente só compreendiam que conhecer a língua

bastaria. Foi assim que possibilitou o reconhecimento de que as formações sociais estão

diretamente interligadas com as condições de produção, o que representa o contexto sócio-

histórico das FD que estão entrelaçadas constitutivamente com a linguagem.

Nas palavras do fundador da AD, vale

destacar a importância dos estudos linguísticos sobre a relação

enunciado/enunciação, pela qual “o sujeito falante” toma posição em relação às

representações de que ele é o suporte, desde que essas representações se encontrem

realizadas por um “pré-construído” linguisticamente analisável. É sem dúvida por

essa questão, ligada à da sintagmatização das substituições características de uma

formação discursiva, que a contribuição da teoria do discurso ao estudo das

formações ideológicas (e à teoria das ideologias) pode atualmente se desenvolver

mais proveitosamente (PÊCHEUX, 2008, p.15)

A linguística tem uma relação de aproximação e complementação com a AD, tanto

quanto a psicologia e o materialismo histórico. Com base nesses três contribuintes que deve-

se pensar a AD na sua relação com a história, a ideologia e o inconsciente, fatores esses que

constituem a linguagem em funcionamento.

3.1.1 Do discurso dos direitos humanos

... atesta indubitavelmente a existência daquilo que se

mostra.

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JEAN DUBOIS

Ouve-se muito falar sobre os direitos humanos. Em suas observações, Orlandi (2002)

percebe que o Estado capitalista individualiza o sujeito, responsabilizando-o quanto a seus

direitos e deveres. Surge assim o sistema ou regime que se baseia na ideia da soberania

popular e na distribuição equilibrada do poder, caracterizada pelo direito ao voto, pela divisão

dos poderes e pelo controle dos meios de decisão e execução, surge a democracia e a

submissão do sujeito ao preceito de que todos devem ser iguais perante a lei.

Nessa estrutura baseada no discurso dos direitos humanos é essencial que o sujeito

seja responsável e ético. Desta forma, há possibilidade do sujeito agir conforme a própria

vontade, mas dentro dos limites da lei e das normas racionais socialmente aceitas. Da mesma

forma ocorre a relação do sujeito com a língua: para dizer o que “quer”, ele precisa se

submeter a ela. Assim, Pêcheux advoga a ideia de que “em face das interpretações sem

margens nas quais o intérprete se coloca como um ponto absoluto, sem outro, nem real, trata-

se aí de uma questão ética e política: uma questão de responsabilidade” (1990, p. 57).

O espaço do sentido e do sujeito tem relação com a ética. Não é somente a respeito do

modo de alguém agir, proceder ou se portar, isto é a conduta do indivíduo. É, antes, a forma

como produz significado, ou seja, como sucede sobre a relação da língua – que pode ser

sujeita a equívocos – com a história na constituição dos sentidos do sujeito. Neste aspecto, a

concepção ética na política e na polícia pode tanto ser visível, como pode também ser pouco

percebida com facilidade na conduta do indivíduo.

Qual é a verdade que se impõe a respeito dos direitos humanos? Todo discurso é um

discurso do poder, na medida em que todos os discursos pretendem impor verdades a respeito

de um tema específico ou de uma área da ciência, da moral, da ética, do comportamento do

sujeito.

A propósito da linguagem dos direitos humanos, Pêcheux (1990) explicita que a

questão da ética e política são questões de responsabilidade. É por esse viés que o autor

compreende o sujeito capitalista, sujeito dividido, que trabalha no registro jurídico, que possui

direito e dever. Porém, mesmo que esse sujeito tenha voz, sua opinião é determinada pela

sociedade e pela história. Assim sendo, é um sujeito da significação, é um sujeito ética e

politicamente correto.

Tratando-se de discurso dos direitos humanos, pode-se tomar como exemplo o

discurso do professor Fraga (RDF-I 8). O diretor do filme, José Padilha, situa

cinematograficamente o discurso em um lugar estratégico, uma sala de aula, no 3º Congresso

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de Recursos Humanos – informação esta extraída do banner existente em uma parede da sala

onde se passa a cena. Primeiramente surge professor, de frente para a câmera. Ele está no

meio do corredor e é filmado em plano médio. Observa-se que veste uma camiseta branca,

contendo no peito a inscrição “Direitos humanos”, em inglês. Logo em seguida, a câmera

mostra o professor de costas, possibilitando ao espectador a imagem dos alunos, todos

interessados e atraídos pelo assunto. Enquanto a câmera possibilita ao espectador observar

essas informações, em off se ouve o discurso do TC Nascimento:

TC Nascimento:

– Só que tem muito intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo

vagabundo. E o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita gente.

Observando mais atentamente o discurso mencionado, vê-se que Tenente Coronel

Nascimento se utiliza da memória de outros discursos para afirmar o quanto os intelectuais de

esquerda conseguem fazer com que outros sujeitos acreditem em suas afirmações. Nesse

instante, a memória discursiva apresenta-se como um elemento crucial que proporciona o

deslocamento da posição-sujeito, no funcionamento do discurso, na produção do sentido, pois

as condições de produção são movimentadas através da memória discursiva.

Conforme Pêcheux, é através da formação discursiva que, influenciada através da

ideologia e da historicidade, regula-se e organiza-se o dizer das diferentes posições-sujeito.

Desta forma, o autor destaca que a ideologia trabalha como interpelação dos indivíduos em

sujeitos de seu discurso “através do interdiscurso e fornece a cada sujeito sua realidade

enquanto sistema de evidência e significações percebidas – aceitas – experimentadas”

(PÊCHEUX, 1998, p. 163).

Assim, para definir a posição-sujeito, importa, neste trabalho, destacar que é a partir

do instante em que o sujeito-fílmico assume a posição-sujeito que é própria da formação

discursiva que tal acontece. Considere-se que a constituição do discurso tanto dos de

Nascimento quanto de Diogo Fraga, está em total dependência do lugar social que este ocupa,

da sua posição-sujeito, pois é a partir dela que movimenta o interdiscurso.

Tratando-se de cinema, é próprio do sujeito-fílmico assumir a condição de objeto

significante que surge através da invenção de um diretor/autor. No entanto, esse sujeito passa

de objeto significante para a condição de sujeito com um discurso próprio, o que acontece

toda vez que assumir a posição-sujeito em uma nova situação discursiva.

Após o discurso de Nascimento, o professor de História começa o seu discurso:

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Professor Diogo Fraga:

– Mais insano que isso que a gente vem discutindo é que prisão hoje é um lugar

extremamente caro pra tornar as pessoas piores.

O professor, defensor dos direitos humanos, tem um discurso convincente, utiliza o

discurso de persuasão para convencer os alunos. Ao mesmo tempo, é pertinente observar a

linguagem corporal que utiliza, pois quando menciona a palavra “caro”, com a mão esquerda

faz o sinal de esfregar o dedo polegar com o dedo indicador, sinal este que se refere a

dinheiro, já quando fala “pra tornar as pessoas piores” faz sinal de positivo, mas virado para

baixo com a mão esquerda, simbolizando desaprovação.

Novamente em off surge a voz de Nascimento.

TC Nascimento:

– O Fraga vivia me chamando de fascista, só que não tinha coragem de dizer isso na

minha cara. Quando a gente batia de frente, ele fazia que me respeitava. E a merda é

que eu tinha que fazer a mesma coisa.

Enquanto Nascimento fala em off, o diretor expõe ao espectador todo o cenário da sala

em que se encontram as personagens. Em ambos os lados da sala, tanto à direita, quanto à

esquerda, são visíveis duas pinturas mostrando aglomerações de pessoas, símbolos, neste

ambiente, da busca pelo conhecimento. Ou então poderiam significar um discurso sobre a

união de todos, que estão juntos, caminhando na mesma direção. Por outro lado, a sala é bem

iluminada. Tanto à direita, quanto à esquerda, as paredes são de vidro. A luz do dia entra pela

janela, clareando o ambiente. Esse excesso de claridade pode ser interpretado como o discurso

da transparência. Assim, é possível fazer uma análise do discurso de Fraga, isto é, seu

discurso sobre direitos humanos contribui para um desvelamento da realidade. Por sua vez, as

vidraças, sem cortinas e todas escancaradas, representam a transparência do discurso:

Professor Diogo Fraga:

– Só pra vocês terem uma ideia, em 1996, a população carcerária brasileira era de

148 mil presos, hoje dez anos depois a população carcerária é de mais de 400 mil

presos, é mais que o dobro, é quase o triplo.

Enquanto o professor fala, a câmera o acompanha, filmando de ângulo lateral direito:

Professor Diogo Fraga:

- Eu fiz uma conta perversa, que evidentemente não serve, imagina professor de

História fazendo conta é um desastre, mas essa aqui eu faço questão de compartilhar

com vocês pelo seguinte: eu percebi que a população carcerária brasileira ela dobra

em média a cada 8 anos, enquanto que a população brasileira dobra a cada 50 anos.

Se continuarmos com isso aqui, em 2081 a população brasileira será de 570 milhões.

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Vão ser seus filhos, seus netos, seus bisnetos, enquanto que a população carcerária

brasileira será de 510 milhões, seus filhos, seus netos, seus bisnetos, ou seja, 90%

dos brasileiros vão estar na cadeia.

Já imaginaram, em julho era essa aposentadoria que você imaginava?

Oh, mas não se preocupem! Não se preocupem que essa situação aqui ainda

melhora. Em 2083 todos os brasileiros vão está morando aqui, num condomínio

fechado como esse aqui, Bangu 1.

Fraga utiliza o discurso dos direitos humanos através da mediação entre sujeito e a

realidade natural e social, ação transformadora enquanto mediação entre o sujeito e a

realidade. Ainda, tratando-se de Fraga, este usa uma camiseta que não passa despercebida aos

olhos humanos, isto é, a frase human rights air escrita em inglês. A expressão “direitos

humanos” assume diferentes sentidos cada vez que é usada, pois os discursos são produzidos

de acordo com certa formação discursiva que, por sua vez, está relacionada com sua

respectiva formação ideológica.

Fraga realiza seu discurso como professor. A posição-sujeito de Fraga promove

efeitos de persuasão, pois ao realizar a conta no quadro estabelece uma relação de

convencimento entre os alunos. Assim, o discurso é feito na posição-sujeito-professor, mas

não se faz dissociado da posição-sujeito-político. É o discurso daquele que tem voz sobre a

sociedade. Assim sendo, no instante em que Fraga está em sala de aula, é ele o sujeito

discursivo que tem autonomia de afirmar o que considera certo ou errado, quanto aos direitos

humanos. Portanto, o sentido do discurso realizado por Fraga desde sua posição-sujeito-

professor, é aclamada pelo lugar discursivo de onde se encontra, identificando-se como aquele

que é justo e defensor dos direitos humanos.

É neste intuito que a expressão direitos humanos pode tomar diversos sentidos – desde

os direitos a liberdade, assim sendo, também pode ser compreendida com a ideia de liberdade

de pensamento, de expressão, e a da igualdade perante a Lei – a cada vez que a frase na

camiseta de Fraga é pronunciada. Diferentes posições são tomadas, contra ou a favor. Assim,

professor Fraga, defensor dos direitos humanos, compreende que o aumento da criminalidade

e da sensação de insegurança na população é uma questão política, associando a criminalidade

às práticas democráticas, pois acredita ter aumentado o apoio dos órgãos responsáveis ao

combate e prevenção ao crime.

3.1.2 Do discurso do afeto

Michel Pêcheux defende a ideia de que não há sujeito indivíduo no discurso. Sobre a

não existência na AD da noção de sujeito individual, recupere-se o pensamento de Gregolin:

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O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz discursos com

liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono de seu discurso, mas é apenas um efeito do

ajustamento ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido, um pré-

construído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos conteúdos já colocados

para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a memória discursiva

(GREGOLIN, 2003, p. 27).

Ao produzir o discurso, o sujeito expressa aquilo que pensa em relação as suas

paixões, desejos e seus anseios, noções essas presentes em seu discurso. Contudo, a AD

permite estudar o discurso do afeto como manifestação do sujeito discursivo.

Tratando-se de afeto, pode-se tomar o exemplo contido no RDF-I 9, mostrando que a

relação entre pai e filho passa por um estágio que desperta angústia, aflição tanto no adulto

quanto para a criança.

O Tenente Coronel Nascimento torce por seu filho enquanto este luta durante uma

aula de artes marciais. Porém, Rafael, o filho, não luta com ânimo e acaba perdendo. Em

seguida, dirige-se ao pai, Roberto Nascimento. Enquanto Nascimento arruma a faixa do filho,

diz:

Pai Nascimento:

– Só não gostei sabe do quê? Do que que eu não gostei foi dessa sua mão solta. Pega

com ela aqui, com as duas mãos, assim. Não quero essa sua mão solta.

Instantaneamente, perturbado pelo fato de ter de lutar, Rafael responde:

Filho Rafael:

– Eu não queria lutar

Nascimento olha nos olhos do filho e revoltado pelo fato de durante o mês todo o filho

pedir para o pai ir junto com ele para lutar, responde:

Pai Nascimento:

– Se você não queria lutar, por que você encheu o saco o mês inteiro para vir lutar,

se não queria lutar, rapaz? Tamo aqui para ganhá, agora não vamo perde, não. Vamo

lutá pra ganhá.

Rafael, sem mostrar aprovação pelo que o pai fala, retruca:

Filho Rafael:

– Eu não sou igual a você, de bater nas pessoas, não.

Nascimento fica sem ação, paralisado com a resposta do filho. Encara-o e, sem dizer

uma palavra, volta-se para trás e escora-se na cadeira. Nesse momento, Nascimento entristece.

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83

Percebe que seu filho não o vê com orgulho, não o vê como um sujeito justo, defensor da

sociedade, mas sim como uma pessoa que se apodera de sua profissão para bater nas demais.

Aqui o discurso é o do silêncio, que preenche a ausência de diálogos, pois o simples

fato de encarar o filho, sem dizer palavra e comovido com a resposta que ouve, já se constitui

em um discurso. Assim, o discurso se altera do verbal para o não-verbal, o que sugere uma

análise das simbologias presentes nas produções de sentidos, na identificação discursiva das

personagens. Nascimento angustia-se pela imagem que o representa para o filho.

Nascimento vê-se dividido entre o Eu e o Outro, isto é, o inconsciente. De fato, a frase

pronunciada por Rafael o deixa perplexo. Enfim, qual realmente era a imagem que passava de

si para os outros? Se sua missão era tirar das ruas as máfias, por que seu filho não o respeitava

e não sentia orgulho dele? Seria de fato correto o que estava fazendo?

O sujeito na psicanálise não é compreendido individualmente, ou como antônimo do

outro, muito menos o sujeito que indica a consciência. Para Lacan o Eu é construído a partir

da imagem do outro, o sujeito decorre do Outro que é referência à linguagem enquanto efeito

da ordem simbólica. Por isso o sujeito é consequência do significante, e está calcado pelas leis

do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do sujeito é a estrutura do significante.

A propósito da noção de sujeito na psicanálise, o processo pelo qual tudo que é

informado pelos sentidos é alterado em uma experiência de consciência, não é uma categoria

normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade.

Portanto, compreender o afeto é difícil pelo fato de não haver um sujeito dos afetos.

Por esse motivo, o que é necessário compreender são os sentimentos, como, por exemplo, a

angústia, pela qual Lacan65

se interessa sobremodo. Em todo o seu desenvolvimento sobre a

angústia, a prática psicanalítica aparece como uma referência importante, o que não significa

dizer que o pesquisador deixe de pensar a angústia no nível teórico, no sentido meta-

psicológico, articulando-a aos registros do real, do simbólico e do imaginário, para assim

formular um objeto até então impensável, isto é, a relação essencial entre a angústia e o desejo

do Outro, mas que, não obstante, é essencial para todo o prosseguimento da sua teoria do

desejo e do afeto.

3.1.3 Do discurso da consciência

65

LACAN, J. Seminário VIII. A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

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As condições materiais de existência dos homens

determinam as formas de sua consciência, sem que as

duas jamais coincidam.

MICHEL PÊCHEUX

Em qualquer enunciado o discurso da consciência faz uso da ideologia, do interior da

qual o sujeito se apropria do discurso para assim se constituir de indivíduo concreto em

sujeito do discurso. Inspirado em Foucault, Brandão explicita que o discurso é

como um conjunto de anunciados que se remetem a uma mesma formação

discursiva (“um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de

regularidade em uma formação discursiva”), para Foucault, a análise de uma

formação discursiva constituirá, então, na descrição dos enunciados que a compõem.

E a noção de enunciado em Foucault é contraposta à noção de proposição e de frase

(...), concebendo-o como a unidade elementar, básica que forma o discurso. O

discurso seria concebido, dessa forma, como uma família de enunciados

pertencentes a uma mesma formação discursiva (BRANDÃO, 1986, p. 33).

Cabe, no entanto, considerar que a formação dos enunciados é baseada na ideologia. É

neste aspecto que se diferenciam os sujeitos discursivos. Reforçando essas argumentações

pode-se considerar que “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele

também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou

apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de

avaliação ideológica” (BAKHTIN, 1990, p. 32).

Tratando-se de sujeito e seus enunciados, Mussalim (2003, p. 107) toma a ideia de

que “a partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma

alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea passa a ser questionado diante

da concepção freudiana de sujeito clivado dividido entre o consciente e o inconsciente”. Tais

dados deixam entrever e, como consequência, compreender que o sujeito é heterogêneo.

Baseado nas ideias de Freud, Lacan reinterpretou e abordou com maior exatidão a

questão do inconsciente, recorrendo para isso ao estruturalismo de Saussure e Jakobson. Nesta

vertente, Lacan pontuou que o inconsciente se concretiza como a linguagem. Exemplificando,

seria como se sob a palavra existissem outras palavras que agem uma sobre a outra, ou então,

como se o discurso fosse atravessado pelo discurso do Outro, no inconsciente. Sob esta ótica,

Lacan compreende que o sujeito é representado pela linguagem, e que esta é a condição do

inconsciente.

Sob esse prisma,

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85

o sujeito Lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem,

fornecia para a AD uma teoria do sujeito condizente com um de seus interesses

contrais, o de conceber os textos como produtos de um trabalho ideológico não-

consciente. Calcada no materialismo histórico, a AD concebe o discurso como uma

manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do modo de organização

dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser

considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades

enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a

partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite

determinadas inserções e não outras. Em outras palavras, o sujeito não é livre para

dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso (...), a ocupar seu

lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do

lugar que ocupa (MUSSALIM, 2003, p.11).

Em leitura semelhante quanto ao discurso da consciência, é possível ressaltar que há a

presença do Outro no discurso do sujeito. Esse sujeito é atravessado pelos elementos da

consciência, que é a inscrição do sujeito do discurso, também cindido e suscetível de tornar-se

outro.

Tratando-se do discurso da consciência, pode-se tomar como exemplo o RDF-I 10,

que é dividido em três sequências. Na primeira sequência, após fazer uma intercepção

telefônica do celular de Fraga, para ouvir a conversa que ele teve com a jornalista Clara e, ao

mesmo tempo, à procura de provas para descobrir quem a havia matado, Nascimento toma

consciência sobre a corrupção que envolve a milícia e a política. Na gravação telefônica

percebe que a repórter Clara descobrira o comitê de campanha do governador, o qual ficava

sobre os cuidados da milícia.

Clara:

– E agora eu tenho certeza que foi a milícia.

Fraga:

– Clara me escuta, sai daí agora, Clara.

Clara:

– Não!

Fraga:

– Essas pessoas são muito perigosas.

Clara:

– Você não vai acreditar! Eu achei o comitê de campanha do governador. Tem

cartaz, tem banner, tem tudo. Não tá cheia de fotos do governador com o Fortunato e

com o Guaraci?...

Clara inicia seu discurso afirmando que a milícia está envolvida com a política. A

posição-sujeito de Clara é investigativa, de jornalista, que procura provas autênticas sobre a

criminalidade. Desta forma, o discurso é feito na posição-sujeito-jornalista que, ao mesmo

tempo, não é dissociada da posição-sujeito-eleitora. Em contrapartida, Fraga assume o

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discurso daquele que se preocupa não mais em descobrir e desvendar a criminalidade

provocada pelos políticos juntamente com a milícia, mas sim assume a posição-sujeito-

protetor, aquele que teme pelas consequências.

Durante a escuta telefônica, a câmera em travelling permite ao espectador observar a

indignação de Nascimento ao descobrir que suas teorias estavam erradas e que Fraga tinha

razão sobre o envolvimento das milícias com a política. Durante essa sequência, Nascimento

fica imóvel, respira fundo, perplexo. Por outro lado, a janela aberta, a claridade, refletindo-se

por trás de Nascimento, permite que se faça feito um contraponto discursivo, em que

Nascimento finalmente compreende o que estava acontecendo a sua volta, e assim, toma

consciência do quanto estava enganado.

Nascimento descobre que o mesmo grupo que matou Clara decide matar Fraga, pois

este sabia quem havia matado a jornalista. Nascimento grava a conversa e decide procurar

Fraga em seu apartamento para entregar-lhe a gravação. Porém, ao chegar não encontra

ninguém. Após algumas horas de espera e tentativas frustrantes de entrar em contato com a

ex-esposa, para comunicar-lhe que alguns milicianos e políticos pretendiam matar seu atual

marido, Fraga, Nascimento decide esperar em frente ao prédio em que morava. No entanto,

quando Fraga, Rosana e Rafael estavam chegando à casa, dois sujeitos perseguiam o carro

em uma moto e atiraram. Nascimento que estava sentado na escada em frente ao prédio

percebeu a movimentação e também atira contra os bandidos, acertando em um deles.

Em meio ao tumulto, o bandido não acertou o tiro no alvo que desejava, mas sim

acertou o tiro em Rafael, filho do TC. Desesperada Rosana, mãe do garoto, começa a chorar e

a chamar pelo filho. Fraga desembarca do carro, abre a porta de trás para verificar se o

menino estava vivo e pede à esposa que não desembarque do carro. Nascimento, que estava

alguns metros do veículo, corre e desesperadamente entra no carro gritando para Fraga:

TC Nascimento:

– Dirige, dirige, vai, vai, vai!

Chegando ao hospital Nascimento, conversa com os médicos enquanto Rosana e Fraga

esperam na recepção. Em seguida se dirige até Rosana. Ela pergunta:

Rosana:

– E aí? E aí, o que foi que o médico falou?

Nascimento olha nos olhos dela, respira fundo e abaixa a cabeça. Só então responde:

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Nascimento:

– A cirurgia vai demorar de sete a oito horas, porque o tiro pegou o rim dele.

A mãe desesperada, chorando, começa a falar:

Rosana:

– O médico acha que ele vai...

O pai, muito triste e ao mesmo tempo nervoso, não deixou a mãe completar a frase e

começou a dizer:

Nascimento:

– Falou que ele vai, que, que...

O Tenente Coronel, emocionado, não consegue completar a frase. Rosana exclama:

Rosana:

– Ai, Senhor!

E os dois se abraçam. Neste momento a câmera afasta a imagem permitindo ao

espectador ver Fraga logo atrás de Rosana. Emocionado, Fraga fica a olhar para os dois. Após

alguns segundos e ainda com a cabeça abaixada, Nascimento faz sinal para Fraga se

aproximar e abraça Rosana que chora. Nascimento, continuando com a cabeça abaixada, põe

a mão no bolso, pega um gravador e o entrega a Fraga, sem dizer uma palavra, e sai, deixando

os dois sozinhos.

Neste instante a posição-sujeito-policial de Nascimento é deixada de lado, e assume a

posição-sujeito-pai, portanto Lima Neto. Assim, a posição-sujeito de Nascimento promove as

relações de afetividade, pois ao chorar e abraçar Rosana faz com que as diferenças sejam

esquecidas, e assim, o que passa a importar é um único valor, a vida humana.

Por outro lado, a posição-sujeito-policial de Nascimento, é opacificada pelo lugar em

que se encontra. O mesmo ocorre com Fraga, que passa à posição-sujeito daquele que deveria

ser a vítima. Assim, quando Nascimento entrega o gravador a Fraga, assume a sua posição-

sujeito como aquele que percebe seus erros e se redime. A partir de então, tanto Fraga, quanto

Nascimento tomam consciência de que não deveriam tratar-se como inimigos. Assim, os

impasses tinham deixado de existir e os dois passam a lutar juntos contra a desonestidade dos

políticos e da milícia.

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3.2 Discurso da Resistência versus Discurso da Reincidência

O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da

ordem ideológica) bem que poderiam ter algumas coisas

de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí,

essa origem não-detectável da resistência e da revolta:

formas de aparição fugidias de alguma coisa “de outra

ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um

relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante

tirando partido de seu desequilíbrio.

MICHEL PÊCHEUX

Neste item, sob a perspectiva da personagem Tenente Coronel Nascimento, pretendo

analisar o discurso da resistência. No corpus, o discurso da resistência pode ser compreendido

como decorrente de estado de ânimo intermediário entre denunciar ou não denunciar as

barbaridades que envolvem o sistema, em especial o discurso político. Pretendo também ver o

discurso da reincidência, assim entendido como um delito ou crime praticado pela mesma

pessoa que já cometeu qualquer outro ato que se tenha constituído em uma transgressão da

moral vigente.

Diante do corpus formado Elite da tropa 2 – o inimigo agora é outro (2010) e Elite da

tropa 2 (2010), o que delimita a edificação o campo referencial da análise é o pensamento do

TC Nascimento, seguindo que assevera Courtine: “construir um corpus discursivo é fazer

entrar a multiplicação infinita e a dispersão fragmentada dos discursos no campo do olhar por

um conjunto de procedimentos escópicos” (2009, p. 21).

Conforme Michel Pêcheux, o discurso da resistência tem como fundamento o fato de

que “não há dominação sem resistência” (2009, p. 281). Isto significa que é preciso “ousar se

revoltar” (Idem, p. 281). Para que haja a dominação é necessário a existência de um povo ou

um sujeito que reivindique seus direitos, mesmo que em muitos momentos se saiba “que o

aparelho de Estado pode permanecer de pé (...) sob acontecimentos que afetem a posse do

poder de Estado” (ALTHUSSER, 1983, p. 65).

Por sua vez, Foucault salienta que não há relação de poder “sem recusa ou revolta em

potencial” (2003, p. 384). Foucault compreende que não há poder ser resistência, ao mesmo

tempo em que não é possível compreender poder sem pensar em liberdade. Ainda segundo

Michel Foucault, a relação de poder e resistência é uma combinação, pois o poder será maior

a cada momento que houver resistência. Essa resistência é vivida pelo Tenente Coronel

Nascimento quando chega à Secretaria de Segurança Pública (SSP), pois percebe que o

governo monitora a sociedade e divulga somente o que lhe convém. Por isso decide resistir ao

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sistema, porém o governo discursivamente endurece. Por sua vez, o sujeito contrário à

corrupção resiste discursivamente e, nesta relação de força discursiva, o poder se instaura,

tanto o poder exercido pelo governo e as milícias, quanto ao poder exercido pela resistência.

Nesta linha de pensamento encontra-se Althusser, que reflete sobre a relação de

dominação, o reconhecimento da soberania, que em muitos momentos tem-se com o Estado.

A compreensão dos mecanismos internos de dominação coercitiva e de sujeição

ideológica é colocada como questão fundamental para a luta política, inclusive no

que concerne às instituições da sociedade civil e, portanto, também aos sindicatos e

partidos políticos, soi-disant revolucionários ou não (ALTHUSSER, 1918, p. 17).

A compreensão dos discursos de resistência implica a compreensão sobre ideologia.

Assim o sujeito é ideológico, e a ideologia é o ponto crucial nas relações do discurso da

resistência e do discurso da reincidência, ou seja, “na percepção de uma multiplicidade de

resistência e revoltas heterogêneas que se estocam na ideologia dominante, ameaçando-a

constantemente” (ORLANDI, 2011, p. 96).

Nos inúmeros estudos de Pêcheux incluem-se também aqueles sobre a resistência.

Porém, a resistência sobre a qual escreve é a resistência frente à constituição da língua na

linguística. Essa resistência, por sua vez, contribuiu para o surgimento do “desafio”, pois este,

conforme Michel Pêcheux, compreende a existência do discurso no qual a “ambiguidade e o

equívoco constituem um fato estrutural inconfortável” (PÊCHEUX, 1975, p. 50).

É de grande relevância questionar os enunciados que constituem o discurso da

resistência, pois estes são também constitutivos do sujeito. Assim, é pertinente indagar sobre

o discurso do sujeito político, sujeito este que diz governar pensando no povo, e que,

conforme se depreende da análise do corpus, são sujeitos que praticam o discurso da

resistência ao cumprimento do que prometem ao eleitor.

O discurso da resistência possibilita ao sujeito uma contradição constitutiva,

contribuindo para que suceda o “não sentido”. Assim, como pondera Orlandi (2008), este tem

a ver com a falha porque aponta para o sentido que poderá vir a ser, isto é, o irrealizado. Esse

ainda não realizado pode ser compreendido quando Pêcheux (2009, p. 278), refere-se ao

“‘irrealizado do movimento popular’, permitindo pensar que a resistência se inscreve no

interior do movimento, e não fora dele. Tal resistência funcionando no interior mesmo da

dominação, por um sujeito dividido, inscrito no simbólico, e não como uma oposição

consciente direta, de um exterior para um interior”.

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Em Semântica e discurso, Pêcheux faz um parêntese ao pensamento de Foucault com

relação à resistência à individualização do sujeito pelo Estado:

Foucault traz uma contribuição importante para as lutas revolucionárias de nosso

tempo, mas, simultaneamente, ele a torna obscura, ficando inapreensíveis os pontos

de resistência e as bases da revolta de classe. Farei a hipótese de que esse

obscurecimento se dá pela impossibilidade, do ponto de vista estritamente

foucaultiano, de operar uma distinção coerente e conseqüente entre os processos de

assujeitamento material dos indivíduos humanos e os procedimentos de

domesticação animal. Esse biologismo larvado, que ele partilha, em todo o

desconhecimento de causa, com diversas correntes do funcionalismo tecnocrático,

torna, conseqüentemente, a revolta totalmente impensável, pois, assim como não

poderia haver "revolução dos bichos", também não poderia haver extorsão de sobre-

trabalho ou de linguagem no que se convencionou chamar reino animal (2009, p.

279).

Conforma Pêcheux, a individualização não existe fora da interpelação ideológica do

indivíduo em sujeito. Assim, deve-se compreender a resistência como constitutiva e não

simplesmente como confronto-oposição entre posições que se querem divergentes. Para isso,

Lagazzi (1998, p. 76) explica que "a resistência é normalmente tomada como luta por

mudanças, o que indica uma resistência para chegar a algo. E, na sociedade moderna, como

possibilidade de mudança nas relações marcadas pela individualização, apontando uma

resistência a algo”. Contudo, esclarece a autora, na prática discursiva os sentidos da

resistência imbricam-se: "na determinação material das forças a luta de resistência é por

mudança e contra a mudança". Entende ela que a resistência deve ser considerada na

contradição entre "a sujeição ao poder e a luta contra o poder". É nessa contradição que se

torna possível resistir, nesse movimento de estranhamento e mudança.

3.2.1 Desistir ou resistir: um problema à espera da melhor solução

Neste item, o foco persiste na reflexão sob a perspectiva de uma panorâmica entre

desistir e resistir. Em tal contexto, decidi fazê-lo sob o ponto de vista de um problema

enfrentado pelo Tenente Coronel Nascimento, questão de difícil solução, ao mesmo tempo em

que se espera por melhor solução.

Na primeira cena da sequência 166

(RDF-I 11), é emblemática a importância da

posição-sujeito do Tenente Coronel Nascimento, que, no papel de comandante, assume as

66

O Recorte Discursivo Fílmico Imagético 11 inclui cinco sequências. Na primeira sequência, o TC Nascimento

está conversando com Capitão Matias e decide procurar sair do batalhão para encontrar o secretário da

Segurança Pública; na segunda sequência, ambientada em um restaurante, o secretário da Segurança Pública está

discutindo sobre quem será o substituto de Nascimento; por sua vez, na terceira sequência, Nascimento entra no

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responsabilidades por todo pelotão. Neste momento, a câmera está posicionada no lado direito

de Nascimento o que proporciona ao espectador ver as bandeiras do Brasil, do estado do Rio

de Janeiro e do Batalhão de Operações Policiais Especiais, imagem que complementa o seu

discurso, pois a bandeira manifesta a honra – ser defensor da sociedade e trabalhar

dignamente pelo seu país, estado e no seu batalhão.

A sequência é filmada em plano americano e em ângulo horizontal lateral, sendo que

Matias conversa com Nascimento enquanto que a câmera movimenta-se de um lado para

outro, filmando as personagens enquanto falam.

Capitão Matias:

– Comandante, a decisão de entrar foi minha. Eu que matei o vagabundo, deixa eu

assumir a responsabilidade sozinho.

TC Nascimento:

– A responsabilidade é minha. A responsabilidade é minha. O comando é meu.

Analisar a naturalidade com que o ator Wagner Moura interpreta a personagem

Tenente Coronel Nascimento nesta sequência permite fazer uma ponte com a análise de

Constantin Stanislavski67

, quando este diz que “não há ações dissociadas de algum desejo, de

algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objeto, sem que sinta, interiormente, algo

que as justifique” (Apud NUNES, 2003, p. 123).

Nascimento se abaixa até o rádio e pergunta para seu secretário se ele conseguiu

encontrar o comandante geral.]

TC Nascimento:

– Nupso, você achô o comandante geral?

Nupso:

– Não, ele foi almoçar.

Seu secretário não consegue encontrá-lo. Nascimento fica revoltado pelo fato de não

estar conseguindo falar com o comandante, pois este estava fazendo de tudo para não

restaurante e é surpreendido com uma salva de palmas; já na quarta sequência, surge a imagem de um jornalista

pedindo ao governador que não exonere o TC Nascimento; e, por fim, na quinta sequência, no palácio do

governador, está reunido o governador com alguns secretários, os quais estão assistindo ao noticiário e

discutindo sobre o que fazer com TC Nascimento.

67 Diretor russo, um dos mais renomados diretores do século XX, autor do método das ações físicas, em que o

corpo do ator se dirige para a realização de algum objeto. Conforme explica Nunes (2003), para Stanislavski, o

movimento e a atividade são funcionais e somente se tornam ação quando se justificam cenicamente.

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encontrá-lo. Foi então que decidiu ir até o restaurante em que o comandante geral estaria

almoçando, para conversar.

TC Nascimento:

– Então descobre aonde ele foi almoçar e me avisa. Os caras tão com medo de falar

comigo, eu não tenho medo de falar com eles.

A posição-sujeito assumida por Nascimento sobre Nupso e o Capitão Matias é o

daquele que manda, tem poder hierárquico sobre os demais policiais. Assim, a posição-

sujeito-policial que assume é a de quem não se deixa influenciar pela política, muito menos se

deixa intimidar de falar com seu superior.

Na segunda sequência a câmera faz um close na televisão instalada no restaurante.

Naquele instante, estava no ar o Jornal do Almoço, em que a jornalista-apresentadora

afirmava que Nascimento seria afastado do BOPE, conforme a decisão do governador.

Jornalista da TV:

– Disse que vai afastar dos cargos os oficiais do BOPE envolvidos na ocupação do

presídio Bangu 1.

Enquanto na televisão os jornalistas comentavam sobre a exoneração de Nascimento,

no restaurante, o comandante Iguaraci e seus aliados discutiam quem ficaria no lugar de

Nascimento no BOPE.

Formoso, Secretário de Segurança Pública:

– É verdade! Mas se não colocar vai colocar quem, afinal.

Subsecretário:

– Quem vai ser, quem não vai ser, pouco importa o governador quer o filho da puta

do Nascimento exonerado amanhã.

Enquanto os políticos debatiam quem ficaria no lugar de Nascimento, este entra no

restaurante, o qual está repleto. Assim, inicia a terceira sequência. No instante em que as

pessoas o reconhecem, levantam em pé e começam a aplaudi-lo. Nessa sequência, a primeira

pessoa que aparece aplaudindo é o verdadeiro TC Nascimento, o que permite associar a

imagem do outro. Esse duplo está presente como uma decorrência da condição da narrativa

fílmica. Embora assimétrica, essa condição implica reciprocidade, isto é “aquele que diz ‘eu’

só o diz em função de um outro que, na sua alocução, um ‘tu’ (...), o ‘eu’ se torna ‘tu’ e o ‘tu’

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se torna ‘eu’ , o que não significa simetria”, conforme a acepção benvenisteana (1996)

lembrada por Ernst, em Corpo, Discurso e subjetividade (2005)68

.

Ao perceber que as pessoas começam a bater palmas, Nascimento inibe-se e começa a

agradecer com a cabeça. No entanto, os políticos que ali estavam discutindo a sua exoneração

percebem a aprovação dos eleitores e resolvem mudar de estratégia. Foi então que Iguaraci,

impulsionado por seus colegas, levanta-se, abre os braços e o abraça, cumprimentando-o:

Iguaraci:

– Coronel! Bem-vindo! Surpresa boa!

No instante que os políticos observam que a posição-sujeito-eleitor aplaude

Nascimento, mudam sua forma de agir, isto é, posição-sujeito-político passa a não mais evitar

o discurso de Nascimento, mas sim assumem uma nova posição-sujeito, a daqueles

interessados nos votos a fim de benefício próprio. Assim, neste momento a posição-sujeito-

policial que Nascimento exerce, passa a ser um benefício para a posição-sujeito-polítco

perante os eleitores ali presentes.

No momento em que Iguaraci abraça o TC, este fica imóvel permitindo que visualize o

discurso de desaprovação através do discurso corporal do sujeito. A sua atenção está toda

posta nas pessoas a sua volta. Assim, quando é cumprimentado, sua expressão facial não

muda, o que corresponde à análise de Courtine (2009, p. 10), quando afirma que a “face é no

corpo a ‘janela da alma’”.

Courtine e Haroche, na obra História do rosto, destacam as continuidades e as

descontinuidades presentes na história da expressividade do corpo, mais detalhadamente do

rosto. Desta forma, salientam que entre o sujeito, a linguagem e o rosto há uma ligação crucial

quanto à elucidação da personalidade, ao mesmo tempo em que “o indivíduo é, desde então,

indissociável da expressão singular de seu rosto, [que se torna a] tradução corporal de seu

‘eu’ mais íntimo” (COURTINE; HAROCHE, 1999, p. 10). Neste sentido é possível ressaltar

que através dos signos faciais, isto é, expressões e gestos, é que se pode perceber exatamente

quem o sujeito é realmente.

Assim, a expressividade se concretiza na exposição excessiva de um corpo que diz de

si a partir de seus movimentos. Neste sentido, “o paradigma da expressão designa esse

processo pelo qual a linguagem vai se tornar pouco a pouco a medida de todas as coisas, vai

dar sentido às condutas, vai penetrar profundamente a interioridade subjetiva e vai fazer do

68

Artigo completo disponível em:

<http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/2SEAD/SIMPOSIOS/AracyErnst.pdf>. Acesso em: 27 de

outubro de 2012, às 15h06min.

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corpo o lugar expressivo de uma voz interior” (COURTINE; HAROCHE, 1999, p. 32). É

nesse sentido que o corpo aparece como uma linguagem discursiva que não mente, pois pelos

lapsos de seus movimentos, a linguagem pode ser duvidosa, podendo ser ambígua a

interpretação, isto é, levando a interpretações equivocadas quanto à legibilidade da linguagem

verbal e da linguagem corporal.

Seguindo o recorte discursivo fílmico, na quarta sequência surge um jornalista que,

representando a voz dos eleitores, pede ao governador não exonerar o TC Nascimento.

Fortunato69

:

– Governador não exonere o Coronel Nascimento. Por que se o senhor fizer isso a

coisa vai feder.

Assim que o jornalista Fortunato, em seu jornal “Mira Geral”, inicia seu discurso, a

câmera em plano ¾ permite ao espectador observar o jornalista e o cenário onde é gravado o

jornal. Atrás de Fortunato é possível observar imagens da cidade do Rio de Janeiro, como o

Cristo Rei, o Pão-de-Açúcar e o estádio do Maracanã.

Na sequência, a câmera faz um corte e instantaneamente surge a imagem de três

políticos assistindo ao jornal “Mira Geral”. Eles estão na sala do governador, pedindo-lhe para

que mude de ideia e não exonere o Capitão Nascimento.

Deputado:

– O programa do cara tá marcando quase 30 pontos. Cheio de cartas do leitor. A

maré vai virar, governador.

Neste instante a câmera faz um travelling horizontal para a esquerda, permitindo ao

espectador visualizar o governador sentado à sua mesa. Ele diz:

Governador:

– Eu sei o que eu tô fazendo. Nascimento tá fora do BOPE.

O governador inicia seu discurso afirmando que Nascimento será desligado do BOPE.

A posição-sujeito de Governador promove as relações de poder, pois ao ordenar opõe uma

relação de autoridade, de autoritarismo. Por esse viés, o discurso é feito com base na posição-

sujeito-governador, e ao mesmo tempo na posição-sujeito-político. É o discurso daquele que

tem poder maior sobre o Estado. Por tanto, naquele momento assume o sujeito discursivo

69

Este mesmo jornalista, que tanto falava mal do governo e dos milicianos, mais tarde veio a ser deputado, e o

principal: um político corrupto envolvido com a milícia e o tráfico.

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investido no poder, esse como autoridade maior do Estado delegando os cargos de seus

subordinados. Desta forma, o governador sustenta um jogo de poder de autoritarismo sobre os

deputados e policiais, os quais assumem a posição-sujeito de obediência.

Essa heterogeneidade discursiva, feita de trechos e fragmentos, interessa na medida

em que nela podem ser determinadas as condições concretas da existência das contradições

pelas quais a história se produz. Por outro lado, tratando-se da convicção do discurso do

governador, este demonstra seu poder sobre os deputados presentes em sua sala, e, acima de

tudo, o poder que exerce sobre a sociedade, isto é, o exercício do poder em termos de controle

social. Neste sentido, não deve ser entendido como o poder de uma pessoa, mas sim o poder

atribuído por uma posição social, organizado como parte constituinte do poder de uma

organização.

Neste aspecto, o abuso do poder como manipulação significa a violação de normas e

valores éticos fundamentais no interesse daqueles que têm o poder e contra os interesses dos

outros. Contudo, a violação do poder contribui para surgimento do poder abusivo contra

direitos sociais e civis das pessoas. Como ressalta Althusser (1983, p. 19), o “Estado só tem

sentido em função do poder de Estado”. Portanto, este poder de Estado deve se articular sem

ser abusivo.

3.2.2 Decisão na banca: o recuo como estratégia

Missão dada parceiro, é missão cumprida.

EDUARDO LUIZ SOARES

Nos itens anteriores tornou-se visível que o Tenente Coronel Nascimento foi

destacado como o sujeito-fio do filme. Seguindo essa premissa, escolhi analisar o RDF-I 12,

que demonstra um problema enfrentado pelo Tenente, situação esta que, por estar diretamente

ligada ao sistema, imediatamente parece ser convidativa e ao mesmo tempo repulsiva e

instigadora.

Após a morte de alguns bandidos em uma rebelião no presídio Bangu 1, o governador

do Rio de Janeiro resolve exonerar o Tenente Coronel Nascimento do comando do BOPE.

Essa iniciativa do governador do RJ se completa ao nomear o exonerado como subsecretário

da Secretaria de Inteligência.

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O recorte discursivo é dividido em duas sequências. A primeira inicia com a imagem

de Nascimento entrando pela porta prédio onde fica localizada a Secretaria de Inteligência.

Enquanto Nascimento abre a porta e dirige-se até a secretária, seu discurso, em off , ressalta:

Nascimento:

– Só que eu não caí pra baixo, parceiro! Eu caí pra cima.

Por sua vez, na segunda sequência, a câmera em plano americano,70

apresenta aos

olhos do espectador a personagem Nascimento vista em ângulo traseiro, entrando em uma

sala. Ao chegar próximo a uma mesa de escritório, vira-se de frente para a câmera. A sala é

extremamente pequena. A parede onde se encontra a porta é de madeira, enquanto que as

outras divisórias são de vidro, e todas tem uma cortina de persianas que se abrem no sentido

horizontal. Essas paredes de vidro representam o discurso da transparência.

Durante esse percurso, em off , Nascimento reflete consigo mesmo:

Nascimento:

– Como é que eu podia ser subsecretário de Inteligência, como é que eu podia ser

responsável por todos os grampos do Rio de Janeiro...

Nascimento percebe que sua posição-sujeito muda. Deixa da posição-sujeito-policial

para exercer a posição-sujeito-subsecretário. No entanto, uma não está dissociada da outra.

Nascimento percebe que a sua nova posição-sujeito em meio aos departamentos

governamentais auxiliará na sua batalha constante em desvendar e desmascarar a milícia e o

sistema.

Nascimento vira-se para Volmir Magalhães – responsável por apresentar a Secretaria

de Inteligência a Nascimento. Este se apresenta apreensivo, sendo isso visível através da

linguagem corporal. Uma das mãos ele a coloca no bolso da calça, o que indica estar em

contato com o próprio corpo. Isso permite compreender que ter as mãos escondidas, no caso,

no bolso da calça, é reconfortador. Possibilita ao espectador compreender que é a busca de

equilíbrio frente a uma possível insegurança.

Imediatamente nesta segunda sequência Nascimento pergunta:

Nascimento:

– Isso aqui tudo é grampo?

70

Corresponde ao ponto de vista em que as figuras humanas são mostradas até a cintura aproximadamente, em

função da maior aproximação da câmera em relação a elas (XAVIER, 1984, p. 19).

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Assim que Nascimento faz a pergunta a Volmir, também coloca as mãos no bolso e

vira-se para a esquerda, apontando para a sala ao lado. A câmera acompanha os olhos de

Volmir, que diz:

Subsecretário:

– Aí é o monitoramento. É que a gente tem as câmeras aí, é que a gente tem acesso a

todas essas câmeras da cidade.

Assim que Volmir explica a Nascimento, a câmera, antes parada, gira para a direita,

novamente permitindo ao espectador ver a imagem de Volmir. Na sequência, a mesma

personagem se vira para a sala à sua direita. Neste momento a câmera acompanha novamente

o corpo de Volmir. Assim que se vira, ele cruza os braços – o que pode ser entendido como o

discurso corporal mostrando estar o sujeito na defensiva, como forma de se resguardar, de se

proteger ou até mesmo de mostrar medo, timidez, força ou poder. E então fala:

Subsecretário:

– Aqui é guardião. Aqui a gente faz intercepções, todas as telefônicas.

Imediatamente Volmir vira-se para Nascimento. A câmera em plano americano faz um

zoom em Nascimento. Este, em off, diz:

Nascimento:

– Ia ser difícil, mas eu tinha chegado aonde cavera nenhum chegou. Na Secretaria de

Segurança eu não iria lutar só contra o tráfico, eu ia poder enfrentar o sistema.

Conforme a câmera faz um zoom no protagonista, seu discurso em off acompanha seu

discurso corporal, isto é, o discurso imagético e o discurso linguístico se complementam na

constituição da cena fílmica, criando uma realidade que se materializa visualmente para o

espectador. É possível perceber que Nascimento começa a fazer sinal positivo com o rosto.

Essa afirmação, reafirmada pelo eu71

, expressa um desejo latente e fervoroso, assumindo

agora o outro Eu, o que ali está, como sempre, à frente dos outros, até mesmo das críticas.

O discurso em off próprio da personagem funde-se ao discurso imagético. A janela de

vidro proporciona o discurso da transparência, ao mesmo tempo em que a claridade do dia, ao

71

Ao referir este eu, faço-o em oposição ao Eu, que é diferente um do outro, como Lacan explicitou: “O Eu é o

pronome pessoal que indica a singularidade de um sujeito junto aos humanos; o sujeito se pensa único e afirma

isso com toda a naturalidade ao dizer: ‘Eu’. O eu é bem diferente; o eu é sentir-se a si mesmo instalado num

corpo, obedecendo a necessidades, atravessando por desejos e produto de uma história. (...) o primeiro é a

afirmação simbólica e social de nossa singularidade, enquanto o segundo é a afirmação imaginária e afetiva de

nosso ser” (1998b, p. 84-85)

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entrar pela sala, passando pelo vidro existente atrás da personagem, evidencia a luz da

resistência. Essa claridade serve para dar visibilidade ao novo serviço que foi ordenado a

Nascimento. Ele compreende que trabalhando como Subsecretário da Inteligência poderia

finalmente lutar insistentemente contra o sistema que repetidas vezes verbalizou, sistema que

costuma culpar inocentes para justificar falhas políticas e até mesmo policiais.

3.2.3 Troca de pele: a serpente renasce

Observou-se no item anterior que Nascimento perde o comando do BOPE e que o

governador o nomeia como Secretário de Inteligência. É em virtude dessa situação que

transita toda a história fílmica. Por outro lado, é esse acontecimento o determinante deste item

e o desfecho da narrativa fílmica.

Escolhi, como foco para esta análise, o renascimento do sistema, pela reiteração das

práticas delituosas por novos sujeitos. Neste recorte discursivo fílmico imagético (RDF-I 13),

escolhi analisar o ponto de vista do discurso policial da personagem Nascimento, sob a

perspectiva pela qual que o cineasta José Padilha apresenta a narrativa fílmica.

No recorte mencionado, a câmera do cineasta acompanha visualmente o discurso em

off de Nascimento. Desta forma, o discurso estrutural do “filme é como seguimento de planos

e de sequências, tal como o espectador atento pode perceber” (XAVIER, 2003, p. 71). Assim

surge o renascimento do sistema. Discurso da personagem-fio permite ao espectador

compreender o sistema em que estão envolvidos poder, política, milícia e polícia:

Nascimento:

– Botei muito político corrupto na cadeia. Por causa do meu discurso, teve filho da

puta que foi pra vala muito antes que eu esperava. Foi a maior queima de arquivo da

história do Rio de Janeiro. Mesmo assim o sistema continuava de pé.

O recorte discursivo inicia com Nascimento pronunciando seu discurso em off.

Enquanto isso, o cineasta possibilita ao espectador imagens correspondentes ao discurso de

Nascimento. Primeiramente, o diretor leva ao espectador, em uma única imagem, duas visões:

à esquerda, a imagem de um político entrando na cadeia e o carcereiro fechando a grade. Já à

direita vê-se a imagem desse mesmo político, mas de frente, entrando na cela e o carcereiro

atrás dele, fechando a grade. É importante destacar que o espectador não visualiza a imagem

através da câmera principal, a do cineasta, mas sim, através das imagens das câmeras de

segurança do presídio, que são reprojetadas nas televisões existentes na sala de

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monitoramento. Isso é possível detectar devido ao código numérico e alfabético que aparece

em baixo do vídeo, ao lado direito, código este que possibilita identificar qual é a câmera que

está filmando, como é próprio das salas de monitoramento.

Imediatamente a câmera faz um corte da imagem do político na penitenciaria – espaço

fechado, e escuro – para a imagem de duas pessoas jogando um sujeito morto em uma “vala”.

Na sequência, a câmera faz outro corte e em zoom mostra um carro, com as portas e o porta-

malas abertos, e dois policiais olhando o cadáver de uma pessoa dentro do porta-malas. Logo

em seguida, quando Nascimento diz “foi à maior queima de arquivo da história do Rio de

Janeiro”, a câmera, em travelling lateral para a esquerda, novamente possibilita ao espectador

visualizar várias pessoas mortas pelo chão, até que a câmera focar em uma pessoa que está

carbonizada. Ao fundo, é possível ver uma viatura com dois policiais.

A esse respeito, pode-se primeiramente dizer que matar alguém por interesse é

totalmente contrário aos direitos humanos. Por outro lado, é possível salientar que é a

manifestação do discurso das conveniências, que considera somente os interesses particulares

de cada sujeito, no caso do recorte, matar para eliminar provas, eliminar lideranças, e, desta

forma, como ressalta Ismael Xavier (2003, p. 24), “é um ato de manipulação”.

Tomando como base essas imagens, é possível perceber que não se pode prever o

futuro, muito menos as pessoas que conviverão próximo, o que impossibilita saber qual será o

destino de cada um. A morte dessas pessoas é bastante significativa no contexto discursivo da

história. A morte dessas pessoas é sintoma de barbárie, como salienta Žižek, quando faz um

contraposto com o Holocausto.

Em resumo, o sempre citado provérbio judeu sobre o Holocausto (“quando alguém

salva um homem da morte, está salvando toda a humanidade”) deve ser completado

por: “Quando alguém mata um único inimigo verdadeiro da humanidade, está

salvando toda a humanidade”. A verdadeira prova ética é não somente a disposição

de salvar vidas, mas também – talvez até mais – a dedicação implacável à

aniquilação dos que fizeram as vítimas. (ZIZEK, 2003, p. 87).

Tomado o simbolismo da morte de um inimigo como um exemplificador de um

discurso focado na morte de pessoas que prejudicam a sociedade é que se pode considerar,

como exemplo do que foi dito, a morte das várias personagens retratadas recorte discursivo

fílmico-imagético 13. No entanto, a morte aqui é um discurso do silenciamento, matar para

silenciar e, ao mesmo tempo, matar para poder se beneficiar. É o que acontece com Fábio em

relação a Rocha.

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Fabio:

– Tira o ouro e põe na âncora essa merda aí.

Nesta sequência, a câmera faz um corte e apresenta, aos olhos do espectador, Rocha,

um dos maiores milicianos do Rio de Janeiro, morto com três tiros, um na cabeça e dois no

peito. Posteriormente, a câmera em Plano Fixo (PF) gira 180 graus à direita permitindo ao

espectador saber quem é o culpado pela morte de Rocha.

A cena em questão possibilita ao espectador compreender que Fabio muda de posição

discursiva. Até então, a posição sujeito que exercia mesmo em escala hierárquica sendo

superior a Rocha era a de obediência e acatar as ideias, isso porque, Rocha é que possuía

contatos políticos. Assim que Fabio mata Rocha, sua posição-sujeito muda e passa então a ser

o novo comandante aliado a novas lideranças políticas. Assim sendo, a posição-sujeito-

coronel que exerce passa a estabelecer uma relação de autoritarismo não dissociada agora a

posição-sujeito-político.

Na sequência, Nascimento continua:

Nascimento:

– O sistema entrega a mão para pegar o braço. O sistema se reorganiza. Articula

novos interesses. Cria novas lideranças.

Novamente o diretor faz um corte na imagem e possibilita ao espectador ver os

políticos, no caso, alguns deputados e o governador comemorando com champanhe, na sala

deste, sua reeleição.

Governador:

– Senhores! Mais quatro anos, parabéns.

O que chama a atenção neste recorte é que sempre renascem novas lideranças. Essas

podem ser entendidas como lideranças negativas ou positivas. O que irá diferenciá-las é o

meio em que surgem e como são direcionadas. É nessa perspectiva que Vanoye e Goliot-Lété

chamam a atenção para a análise do filme que pode sim ser tomado como interpretação social-

histórica.

Em um filme, qualquer que seja seu projeto (descrever, distrair, criticar, denunciar,

militar), a sociedade não é propriamente mostrada, mas encenada. Em outras

palavras, o filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no

imaginário, constrói um mundo possível que mantém relação complexa com o

mundo real. (...) o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do

mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação da sociedade em

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espetáculo, em drama (no sentido geral do termo) e é essa estrutura que é objeto dos

cuidados do analista (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 2005, p. 56).

Em conformidade com Vanoye e Goliot-Lété, é possível compreender que o discurso

construído pelo filme é biopolítico por estar aliado ao discurso da milícia, da polícia e da

política inscrito “como uma evocação sobre a qual se apoia a tomada de posição do sujeito”

(PÊCHEUX, 1997b, p. 125). Neste sentido, pode-se destacar que as ações estão legitimando-

se discursivamente e reescrevendo-se como uma nova FD, a do político que se reelege e a do

miliciano que assume o poder sem se deixar submeter a novos ditames, inspirados na

honestidade pessoal e no cumprimento do que determina a Lei, atuando pelo benefício da

sociedade.

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CONCLUSÃO

A análise precedente, tratando do poder instituído versus poder marginal, com base em

recortes discursivos e fílmico-imagéticos tomados ao corpus constituído por uma narrativa

fílmica, Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro, fundamentou-se teoricamente na

perspectiva discursiva da Análise do Discurso. Essa teoria reconhece o discurso como objeto

da imbricação da língua, em sua autonomia relativa, e da história, compreendida a partir das

contradições das forças materiais.

Esta dissertação buscou compreender o sistema que envolve as esferas do poder, isto

é, a polícia, a milícia e a política, como um sintoma de problemas que permeiam a conjuntura

social do país. A pesquisa tomou como base reflexões de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli

Orlandi, Maria Cristina Leandro Ferreira, Jean-Jacques Courtine, Jacques-Marie Émile Lacan,

Michel Foucault, Christian Metz, Louis Althusser, Jaqueline Authier-Revuz, entre tantos

outros teóricos renomados.

Como na Introdução já frisei, esta pesquisa surgiu do pressuposto de analisar o sistema

governamental que atua sobre a sociedade. Concentrei a atenção especialmente no poder dos

políticos, das polícias e das milícias. Para efeitos de análise, concentrei maior atenção no

corpus cinematográfico, com o objetivo de observar e analisar uma obra autoral, que, embora

baseada na obra literária, possui características próprias.

A reflexão teórica, como já foi destacado na Introdução, fundamenta-se na Análise do

Discurso em seus três marcos fundamentais, a linguística, a psicanálise e o materialismo

histórico. Esse tripé teórico permitiu sustentar a pesquisa, que se dividiu em três partes.

As primeiras considerações constituíram o Capítulo inicial, Identificando o arsenal

teórico. Neste, salientei aspectos da AD que estavam diretamente ligados ao que havia me

determinado a analisar no corpus. Assim, realizei uma pequena reflexão sobre os caminhos

percorridos por Michel Pêcheux na Análise do Discurso, destacando o discurso como um

enunciado originado em certas condições de produção, e desta forma, possibilitando uma

significação, na perspectiva de que “o discurso não é apenas transmissão de informação, mas

efeito de sentido entre interlocutores e a análise de discurso é a análise desses efeitos de

sentido” (ORLANDI, 2003, p. 115).

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Por outro lado, enfatizei as formações discursivas, que podem ser entendidas como

integrantes do interdiscurso, ou então configurações específicas dos discursos em suas

relações. Assim, “o interdiscurso disponibiliza dizeres [...], pelo já-dito, aquilo que constitui

uma formação discursiva em relação à outra” (ORLANDI, 2003, p. 43-44), enquanto o

intradiscurso que é o espaço da formulação do que se está dizendo, ao contrário do

interdiscurso, que em algum dado momento já foi dito, porém fica silenciado na nossa

memória. Dessa forma, o intradiscurso é o eixo horizontal, é aquilo que estamos falando

naquele dado momento, mas ao mesmo tempo, é aliado ao interdiscurso para assim

representar o dizível do sujeito.

Tratando-se de sujeito, este é uma posição no discurso, o que implica deixar de lado a

noção de indivíduo e considerar o sujeito discursivo determinado no/pelo dizer, ancorando-se

em palavras já ditas e plenas de significados. Como explica Maria Cristina Leandro Ferreira

(2004), Pêcheux vai definir esse sujeito como descentrado, cindido, atravessado por palavras

que não são suas e distante do sujeito consciente que se pensa livre e dono de si. Segundo a

autora, “trata-se então de um sujeito desejante, sujeito do inconsciente, materialmente

constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia”. Pela ideologia, o sujeito constitui-

se como efeito de linguagem, como disse Pêcheux:

A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação

(do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é

constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do

sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma,

descrita mais acima, enquanto “pré-construído” e “processo de sustentação”) que

constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-

inscritos no discurso do próprio sujeito (2009, p.163)

A Análise do Discurso compreende o sujeito como um mecanismo de antecipação que

organiza as posições-sujeito no discurso. Dessa forma, o sujeito antecipa a imagem de seu

interlocutor, assim presume o efeito que possivelmente poderá despertar em seu interlocutor,

e acaba dizendo o que diz de uma determinada forma e não de outra. Neste intuito de

antecipação, o sujeito permite a construção da imagem do outro, do objeto discursivo e

principalmente de si mesmo. Assim, ocorre um jogo de imagens dos sujeitos entre si, dos

sujeitos com os lugares que ocupam na formação discursiva e dos discursos já-ditos com os

possíveis e imaginados.

O sujeito discursivo possui muitas vozes. Assim sendo, é heterogêneo, como salienta

Authier-Revuz, destacando duas ordens de heterogeneidade, a constitutiva e a mostrada:

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[n]o discurso indireto o locutor se dá como tradutor: fazendo uso de suas próprias

palavras ele envia a um outro como fonte do “sentido” das intenções que ele relata.

No discurso direto são as próprias palavras do outro que ocupam o tempo, ou o

espaço, claramente recortado na frase, na citação na qual o locutor se apresenta

como simples “porta-voz”. Sob essas duas modalidades diferentes, o locutor,

explicitamente, dá lugar no seu discurso ao discurso do outro (FERREIRA, 2000, p.

02).

Como destaquei, o sujeito é heterogêneo, porém o que isso de fato tem a ver com esta

pesquisa? De que maneira se apresenta no corpus? Esse sujeito é o objeto de estudo da minha

pesquisa, mais especificamente a personagem Tenente Coronel Nascimento, que luta para

defender sua corporação, e a sociedade, dos bandidos, dos políticos corruptos e da milícia,

policiais descumpridores de seus deveres.

Tomando os conceitos da Análise do Discurso, além de conceitos vindos da literatura

e do cinema, organizei a segunda consideração: O discurso dito e o discurso do não-dito. Essa

sequência corresponde ao segundo capítulo da pesquisa. Nela analisei primeiramente o

interior das tramas presentes no discurso da polícia, da política, do poder e o sistema. Neste

capítulo iniciei a análise teórica a partir de seis recortes discursivos fílmico-imagéticos, e

algumas conclusões importantes a esse respeito foram se definindo no decorrer da pesquisa.

Inicialmente, constatei que o discurso é ideológico. Isso se dá devido os fios

ideológicos que constituem a realidade do sujeito, tanto político, quanto policial, pois o

discurso a que adere está fortemente calcado no inconsciente originado da historicidade

linguística. Dessa forma, o interdiscurso do sujeito se manifesta pela ideologia e pelos efeitos

de sentido que provoca em meio ao grupo identificado com a mesma, ou com outras

formações discursivas. É como o interdiscurso se entrelaça com o intradiscurso e a forma

como o sujeito assume a sua posição-sujeito.

Além do mais, sobre os fundamentos do discurso a propósito do tema em questão, são

eles amparados nos andaimes do crime, da corrupção, da cooptação e do poder, existindo

relações incestuosas entre eles. Como, a propósito, considera Fernandes (2007, p. 24), ao

enfatizar que o “discurso não é a língua e nem a fala, mas, como exterioridade, implica-as

para a sua existência material; realiza-se, então, por meio de uma materialidade linguística,

cuja possibilidade firma-se em um ou vários sistemas (linguísticos e/ou semióticos)

estruturalmente elaborados”. Em conformidade com Fernandes, Gregolin afirma que

O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz discursos com

liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono de seu discurso, mas é apenas um efeito do

ajustamento ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido, um pré-

construído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos conteúdos já colocados

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para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a memória discursiva

(GREGOLIN, 2003, p. 27)

Ao produzir o discurso, o sujeito não expressa a sua consciência livre de inferências.

Assim, o discurso que emerge da polícia e da política em muitos momentos pode ser tomado

de forma ambígua. Por isso, é necessário que seja analisado conforme o dado momento

histórico a que é remetido, bem como as circunstâncias em que se presume tenha sido

constituído.

Nesta mesma linha, desenvolvi a terceira consideração, esta delimitada pelos nós do

sistema. Assim, procurei revisar os fios do tecido discursivo para melhor compreensão acerca

dos itens a pesquisar, levando em consideração a opinião de Authier-Revuz (1990, p. 97), de

que "[...] o texto oral, em que não se podem suprimir as reformulações, deixa,

mecanicamente, no fio do discurso, os traços do processo de produção". Sendo assim, no fio

do discurso, o intradiscurso, permite-nos buscar discursos outros pela memória discursiva

(interdiscurso). Amparada em Pêcheux (1975, 1990, 1996, 1997a, 1997b, 1999, 2009),

considero que tanto o intradiscurso quanto o interdiscurso são interligados e agem

discursivamente juntos.

Nesse último capítulo, procurei me deter na análise do corpus narrativo-

cinematográfico, formado por sete recortes discursivos fílmico-imagéticos. Nesses recortes

procurei destacar sequências discursivas marcadas especialmente pela presença de inúmeras

significações e de relações que interagem determinando o sujeito-discursivo. Desse modo,

destaquei recortes com relação à afetividade, à voz do sujeito-discursivo Nascimento, que por

ser conservador, raramente aceita mudanças, principalmente quando essas são relacionadas

aos direitos humanos. Esse sujeito é duplamente interpelado: pela ideologia e pelo

inconsciente; ele é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e do inconsciente, sendo

que isso "[...] tem a ver com o fato de os nossos corpos serem atravessados pela linguagem

antes de qualquer cogitação" (HENRY, 1992, p. 188). Parti, pois, de um aparato teórico

sustentado pela noção de um sujeito cindido, atravessado pelo inconsciente, cujo discurso

mantém sempre relação com outros dizeres.

O sujeito discursivo, neste capítulo, é um sujeito fragmentado entre o desejo de acabar

com o sistema de corrupção entre a política e a polícia e a dificuldade de aceitar as opiniões

convergentes. É por esse dilema que se justificam os itens arrolados no Sumário, com o

intuito de caracterizar o sujeito discursivo pelas relações estabelecidas no seu espaço

discursivo.

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A título de observação conclusiva sobre este trabalho, primeiramente é necessário

enfatizar que José Padilha, diretor do filme, não seguiu uma ordem linear tendo por base a

obra literária, mas sim, baseou-se em apenas alguns fragmentos isolados para a construção do

discurso fílmico-imagético. Considerando que, tratando-se de um assunto nunca estudado

anteriormente, encontrei dificuldades para relacionar a Análise do Discurso com a análise

fílmica. Por tanto, procurei perceber neste trabalho que discurso é produzido pelas imagens e

a que este filme está dando visibilidade. Percebi, ao término do trabalho analítico, que o

cinema político brasileiro, voltado para as questões de nossa realidade social, não poderia ser

diferente do que apontei nesta Dissertação, pois reflete a própria incapacidade contemporânea

de se pensar a política em sua dimensão normativa, reflete a absoluta impotência, a completa

falta de saída para nossos problemas mais crônicos.

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son., color (ficção).

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ANEXOS

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ANEXO A – Cópia do CD do filme

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ANEXO B – RDF-I: CD Recorte Discursivo Fílmico – Imagético