Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

11
A FORMAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES MORFOLÓGICAS DA ESTRUTURA GLOBAL COMO PONTO DE PARTIDA PARA A COMPREENSÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE CRATO/CE Autora: Ana Paula Campos Gurgel Arquiteta e Urbanista. Mestrando do Programa de Pós-graduação em arquitetura e Urbanismo – PPGAU da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN RESUMO: A cidade do Crato foi uma das primeiras povoações fundadas no Ceará, ainda no século XVII. Entretanto, verifica-se atualmente uma desvalorização e degradação do patrimônio edificado do centro. O questionamento norteador deste trabalho é entender como se deram e quais são os padrões das transformações do centro histórico do Crato, partindo-se das transformações verificadas na estrutura espacial global da cidade? Neste sentido, o objetivo do trabalho é entender as características urbanas morfológicas do centro histórico, em perspectiva sincrônica e diacrônica. Foram realizadas pesquisas acerca da formação histórica da cidade e, tomando-se como procedimento metodológico a análise sintática do espaço, confeccionou-se representações axiais para os diversos estágios da ocupação urbana. Percebeu-se que as vias mais acessíveis atraíram a construção de edifícios importantes, confirmando estudos sobre outras cidades brasileiras. O estudo se valeu também de inventário edilício do estágio atual do centro histórico, organizado em um banco de informações georeferenciadas. A pesquisa demonstrou ainda que as vias mais integradas na estrutura global da cidade tendem a atrair o uso comercial, que se mostrou mais deletério sobre o patrimônio edificado; e também a identificação dos usos residencial e institucional como promovedores de melhor conservação e preservação dos imóveis. Palavras-chave: patrimônio edilício; análise sintática do espaço; centro histórico.

Transcript of Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

Page 1: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

A FORMAÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES MORFOLÓGICAS DA

ESTRUTURA GLOBAL COMO PONTO DE PARTIDA PARA A

COMPREENSÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE CRATO/CE

Autora: Ana Paula Campos Gurgel

Arquiteta e Urbanista. Mestrando do Programa de Pós-graduação em arquitetura e

Urbanismo – PPGAU da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

RESUMO:

A cidade do Crato foi uma das primeiras povoações fundadas no Ceará, ainda no século XVII. Entretanto, verifica-se atualmente uma desvalorização e degradação do patrimônio edificado do centro. O questionamento norteador deste trabalho é entender como se deram e quais são os padrões das transformações do centro histórico do Crato, partindo-se das transformações verificadas na estrutura espacial global da cidade? Neste sentido, o objetivo do trabalho é entender as características urbanas morfológicas do centro histórico, em perspectiva sincrônica e diacrônica. Foram realizadas pesquisas acerca da formação histórica da cidade e, tomando-se como procedimento metodológico a análise sintática do espaço, confeccionou-se representações axiais para os diversos estágios da ocupação urbana. Percebeu-se que as vias mais acessíveis atraíram a construção de edifícios importantes, confirmando estudos sobre outras cidades brasileiras. O estudo se valeu também de inventário edilício do estágio atual do centro histórico, organizado em um banco de informações georeferenciadas. A pesquisa demonstrou ainda que as vias mais integradas na estrutura global da cidade tendem a atrair o uso comercial, que se mostrou mais deletério sobre o patrimônio edificado; e também a identificação dos usos residencial e institucional como promovedores de melhor conservação e preservação dos imóveis.

Palavras-chave: patrimônio edilício; análise sintática do espaço; centro histórico.

Page 2: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

1. Introdução

Em diversas áreas do conhecimento têm se atentado para a necessidade – cada vez mais urgente – da preservação do patrimônio cultural. Dentro destas discussões, ressalta-se a importância do estudo e preservação do patrimônio urbano-arquitetônico, pois se entende que este representa a dimensão física para a salvaguarda da memória de uma sociedade. Entretanto, com a urbanização e o crescimento das cidades, muitas vezes atrelado a transformações que geram danos e perdas ao patrimônio histórico edificado, é de fundamental importância a reflexão sobre este tema também sob a ótica da qualidade ambiental das cidades, atrelando-se a esta significações de identidade local.

O município do Crato localiza-se no Cariri, região sul do Ceará, ao sopé da Chapada do Araripe, a 516 quilômetros da capital Fortaleza. Do ponto de vista histórico, o Crato foi uma das primeiras povoações fundadas no estado, quando ainda no século XVII foram catequizados os índios que habitavam o vale de terras férteis onde hoje está sediada a cidade. Naquele momento, o Brasil assistia a uma expansão da pecuária, atividade complementar à economia açucareira, tendo como centros de irradiação as capitanias da Bahia, os chamados “sertões de dentro”, e a de Pernambuco, onde o gado ocupou os “sertões de fora”1. Com crescimento populacional e desenvolvimento, a povoação foi elevada à categoria de vila em 21 de junho de 1764, com a denominação de Vila Real do Crato e à categoria de Cidade pela Lei Provincial nº 628, de 17 de outubro de 1853. (HISTÓRIA do Crato... 2008; s.p)

O Crato fez-se presente em diversos episódios da história cearense e brasileira. Foi ali, ao sopé da Chapada do Araripe, onde se testemunhou movimentos de libertação, como a Insurreição de 1817, e demonstrações de fé representadas na figura do Padre Cícero. Cidade de muitas manifestações folclóricas, o Crato hoje reúne um acervo histórico dos mais ricos da região do Cariri.

Apesar desta importância histórica, com o passar dos anos e com as transformações inerentes ao desenvolvimento urbano sem controle rigoroso, o conjunto arquitetônico do centro histórico da cidade foi sendo gradualmente descaracterizado. Muitos prédios encontram-se em mau estado de preservação de suas características arquitetônicas originais. Principalmente nas ruas comerciais placas de dimensões exageradas encobrem ou até destroem platibandas de edificações de valor histórico. Esta poluição visual pode também ser percebida pela falta de conservação física dos edifícios. O descuido de alguns proprietários com relação à pintura de fachadas, como à conservação de esquadrias, telhados e manutenção em geral, acaba por gerar uma degradação visual do conjunto arquitetônico.

Em linhas gerais, no caso brasileiro a desvalorização do patrimônio histórico pode ser apontada, em parte, como fruto do descaso ou desconhecimento de uma parcela da população da importância sócio-cultural que o patrimônio edificado representa para uma cidade, seja em sua dimensão histórica ou simbólica. Acredita-se que a desvalorização do centro histórico do Crato siga a mesma lógica. Seja por parte dos proprietários e usuários dos imóveis, que não zelam pelos prédios (tanto no sentido físico quanto no sentido estético); seja pela falta de políticas públicas que visem a valorização do patrimônio, a cidade do Crato vem perdendo ao longo dos anos parcela significativa de sua herança cultural.

1 Tendo como base os documentos da época, muitos historiadores acreditam que os primeiros ocupantes

da região vieram da Casa da Torre, na Bahia. Entretanto, a influência da Capitania de Pernambuco sempre

se sobressaiu na região (FARIAS FILHO, 2007). A respeito dos aspectos históricos do município ver o

Capítulo 04.

Page 3: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

É dentro dessa conjuntura, onde o patrimônio da cidade encontra-se ameaçado, que surge o questionamento norteador deste trabalho: como se deram e quais são os padrões das transformações do centro histórico do Crato, partindo-se das transformações verificadas na estrutura espacial global da cidade? E, como o conhecimento destes padrões pode subsidiar diretrizes para o resguarde deste patrimônio? Neste sentido, o objetivo deste trabalho é entender as características urbanas morfológicas do Centro Histórico de Crato/Ceará, em perspectiva sincrônica e diacrônica, como fundamentação para propor diretrizes a sua preservação.

2. Revisão bibliográfica

2.1 Noções gerais acerca do patrimônio cultural

É relativamente recente o reconhecimento e a necessidade de preservação dos bens culturais. No contexto mundial, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura – UNESCO, reunida em Paris no período de 17 de outubro a 21 de novembro de 1972, em sua 17ª sessão, divide o patrimônio em cultural e natural, estabelecendo que:

Art. 1º Para fins da presente Convenção serão considerados como patrimônio cultural: Os monumentos – Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Os conjuntos – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem tem valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; Os locais de interesse – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. (UNESCO, 2005, p 6)

É interessante destacar que esta conceituação da UNESCO leva em consideração na escolha dos bens de interesse patrimonial o caráter de excepcionalidade. Esta posição é discutível, pois implica na preservação de apenas parcela da história, quando na realidade sabe-se que o ambiente construído é formado por uma diversidade étnica, social e cultural – materializando diversidades socioculturais expressivas e igualmente merecedoras de reconhecimento. Nesse sentido, “não apenas os edifícios expressivos e monumentais merecem ser preservados, mas também as edificações de todas as classes sociais que fazem parte da história, sem que essa concepção signifique um congelamento da cidade” (VARGAS & CASTILHO, 2006, p. 03)

Desta maneira, toma-se como premissa para este trabalho, a importância do patrimônio arquitetônico e urbanístico como “uma parte integrante da ação ‘cristalizada’ em determinado espaço e tempo, constituindo-se em uma evidência material, a partir do espaço construído pelo homem, que dá suporte a todas as suas atividades e a sua existência” (SCHNEIDER, 2005, p. 24). Desta forma, tal qual a arquitetura, a cidade representa a dimensão física numa escala ampliada, para a salvaguarda da memória de uma sociedade.

Page 4: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

Neste contexto, faz-se necessário esboçar aqui algumas conceituações recorrentes na temática patrimonial. Segundo o glossário do Seminário Internacional para Revitalização de Centros Históricos de América Latina – SIRCHAL, centro ou bairro histórico é o “núcleo de formação de uma cidade de caráter evolutivo” (GLOSSÁRIO..., 2008, s. p). Em certos casos, o centro histórico de uma cidade pode ser reduzido a alguns monumentos simbólicos, em outros, pode coincidir com quase toda a aglomeração urbana. Esta noção recente pode abranger realidades bem diversas. Entretanto, não necessariamente o centro histórico de uma cidade corresponde ao seu centro, quando se entende por centro um “importante lugar de encontro, ponto de convergência e irradiação, onde as atividades urbanas se produzem e alcançam sua maior intensidade, de onde elas emanam propagam e exercem sua influência” (GLOSSÁRIO..., 2008, s. p).

Neste mote, insere-se o que é definido por Hillier (1999) como centro ativo, aqui entendido como um ponto para onde convergem preferencialmente, em número e variedade, atividades urbanas múltiplas e que pode corresponder da escala metropolitana à escala do bairro/localidade em que se insere. Esta “centralidade ativa” faz-se determinante, por exemplo, para a localização de atividades que favorecem o movimento comércios, serviços, equipamentos de lazer, etc. A compreensão desta dinâmica é de fundamental importância para estratégias de atuação em centros históricos.

2.2 Abordagem metodológica: Análise Sintática do Espaço

Buscar-se-á neste estudo analisar a formação e transformação do Crato, dando-se enfoque ao seu centro histórico, mediante emprego de ferramentas analíticas de sintaxe espacial. Desenvolvida na década de 1970 por Hillier, Hanson e seus colaboradores da Universidade de Londres, a Teoria da Sintaxe Espacial busca estudar a relação entre forma do espaço e práticas socioculturais mediante a representação e quantificação da configuração espacial, entendida como um sistema de permeabilidades e barreiras. A metodologia contribui para a compreensão de aspectos importantes do sistema urbano na medida em que permite avaliar o potencial da estrutura espacial quanto à geração de movimento, visibilidade, acessibilidade, etc.

A metodologia de análise sintática do espaço se compõe de um conjunto de técnicas e procedimentos, que podem ser divididos em quatro etapas: (1) representação; (2) quantificação; (3) observação; e, (4) correlação. A representação linear “é obtida através da redesenho de cada via, ou segmento de via, pelo menor número das maiores linhas retas que podem ser inseridas no espaço da calha da rua.” (TRIGUEIRO, et al. 2002; p.6). A quantificação é desenvolvida com o auxilio de ferramentas de representação computacionais (neste estudo utilizou-se o software Depthmap® desenvolvido pela UCL). Estes softwares são capazes de calcular parâmetros grafo-numéricos que expressam diversas propriedades espaciais. A mais universalmente utilizada é o valor de integração, que traduz a acessibilidade potencial de uma via (ou segmentos de via) em relação às demais que compõe o sistema viário.

Estes valores de integração são calculados levando-se em consideração todos os caminhos possíveis, potencializando-se sua ligação com os demais “como se fossem medidos e hierarquizados os trajetos desenvolvidos por alguém que percorresse todas as vias da cidade, a partir de cada uma delas, sem jamais voltar sobre os seus passos.” (HILLER & HANSON, 1984 apud CARVALHO, 2007, p. 39).

Neste estudo, a elaboração dos mapas axiais permitirão avaliar os efeitos da configuração espacial sobre a acessibilidade e os padrões de movimento ao longo dos anos no centro histórico do Crato. Reflexões sobre implicações da relação entre a acessibilidade global e padrões de uso local e de como o surgimento e transformação

Page 5: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

nestes padrões afetam os edifícios, já estão presentes em diversos estudos. No caso brasileiro, diferentes trabalhos vêm demonstrando que as vias mais integradas tendem a atrair usos comercias que se mostram mais deletérios sobre o patrimônio edificado (TRIGUEIRO et al, 2002).

Desta forma, a utilização destes procedimentos metodológicos buscará representar os estágios sucessivos da ocupação urbana do Crato, com a finalidade de averiguar como se deu a evolução de sua estrutura espacial. Para tanto, serão conduzidos procedimentos de representação e quantificação da estrutura viária do espaço urbano em sucessivas escalas – ou seja, serão traçados diversos recortes considerando-se os limites urbanos da cidade e o centro histórico e seus bairros adjacentes – e em perspectiva diacrônica.

3. Revisão da formação urbana do Crato

A ocupação do interior do Ceará começou pelo Cariri e pelo sertão dos Inhamuns (FARIAS FILHO, 2007). O território que atualmente abriga a cidade do Crato foi colonizado pela corrente baiana, chegados entre 1660 e 1680, a serviço da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, seguidos de pernambucanos e sergipanos. Entretanto, cabe ressaltar que o Cariri sempre esteve sob a área de influência da Capitania de Pernambuco. A Missão do Miranda ou Aldeia do Brejo é o núcleo de formação da cidade do Crato, fundada às margens do Rio Granjeiro, no aclive entre os morros do Seminário e do Barro Vermelho. Por volta de 1740 foi erigida, em taipa, a primeira igreja onde, hoje, localiza-se a Matriz de Nossa Senhora da Penha e a partir daí, as habitações ocuparam o espaço correspondente à atual Praça da Matriz (Igreja e Praça da Sé).

Com estas informações, foi confeccionada a primeira representação axial (Mapa 01) com apenas quatro segmentos – um para cada lateral desta praça. Esta representação foi adotada por razões metodológicas, tendo em vista que neste momento não existiam ruas definidas – mas sim um grande largo, sendo possíveis deslocamentos em todas as direções, porém são estas quatro faces da Praça dos Índios que darão origem as vias da cidade. Desse modo, o mapa axial do Crato de meados de 1740 configura-se em um sistema simétrico – cada via se relaciona com outras duas, fechando-se o quadrilátero – não há via mais integrada, todas são iguais ente si (o potencial de integração é igual a um). A aparente falta de hierarquia verificada neste momento era, entretanto, constatada em escala maior: a oposição se dava entre o “sítio” e a “rua”, ou seja, a distinção do meio rural − local da produção agropecuária − do espaço urbano − local de funções administrativas, das trocas comerciais e de ainda parcas residências. A Aldeia do Brejo era um pequeno reduto com organização espacial diferenciada das terras de cultivo dos indígenas e dos produtores que começam a se instalar na região, uma vez que atendiam a funções díspares.

A Missão do Miranda foi elevada à categoria de vila segundo Carta Régia de 16 de dezembro de 1762, sendo instalada a 21 de junho de 1764, com a denominação de Vila Real do Crato. Entretanto, sua estruturação urbana ainda foi muito lenta. Funcionando como entreposto de comercialização da rapadura e do couro, a Vila do Crato era, juntamente com Icó e Aracati, uma das mais desenvolvidas do Ceará.

Interpretando-se um relato da época, dada à escassez de material gráfico deste momento histórico, foi construída uma segunda representação axial com doze segmentos (mapa 02). O sistema, anteriormente simétrico, apresenta-se agora estendido em direção ao norte, configurando-se assim a primeira direção de expansão

Page 6: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

da cidade. A escala cromática representa − de azul escuro (menos integrada) a vermelho (mais integrado) − o potencial de integração destes eixos no sistema. Configura-se neste momento como via mais integrada aquela, constituinte norte do quadrado da matriz, de onde partem as novas vias (Rua das Laranjeiras, Rua Grande, Rua do Fogo e Rua Missão Velha). É nesta via que mais tarde será instalada a Casa de Câmara e Cadeia. Hierarquicamente, a segunda via mais integrada do sistema é a Rua Grande (atual Rua Miguel Lima Verde/Dr. João Pessoa) que estabelecia a ligação entre a Casa do Júri (Senado da Câmara) e as igrejas Matriz e do Rosário.

Acima as representações axiais: mapa 01 de cerca de 1740 e o mapa 02 de 1817

Em 17 de outubro de 1853, a então Vila do Crato é elevada à categoria de Cidade pela Lei Provincial nº 628. A cidade existente neste momento foi representada em eixos axiais no Mapa de Evolução Urbana 04. Neste momento, estabelecem-se três eixos de crescimento da cidade: o primeiro é a ocupação em direção ao norte, já verificada anteriormente, e que neste momento tem como ponto de atração o Largo da Igreja do Rosário; um segundo eixo vai em direção ao alto do Seminário, atravessando-se o rio Granjeiro; e, por fim, o início de uma rota de expansão urbana em direção ao sul, onde se localizou a Casa de Caridade.

É interessante destacar a substituição do eixo mais integrado, que nesta representação é constituído pela Rua Grande. Ali se localizavam (e se encontram até hoje) a maioria dos estabelecimentos comerciais da cidade. Nesta interpretação, acredita-se que esta alteração foi dada principalmente pela construção da Casa de Câmara e Cadeia - transversalmente àquela via norte do quadrilátero da Matriz, dividindo-a em duas.

Hierarquicamente, à Rua Grande seguem-se a Travessa Califórnia (hoje Rua Bárbara de Alencar) e a via que fazia a ligação com o Seminário São José como eixos de forte integração no sistema. Esta última, hoje denominada Rua Araripe/ Beco do Padre Lauro, representa uma porção daquela via anteriormente mais integrada (face norte da praça – ver mapas 02 e 03) que torna-se o eixo de expansão para o oeste, tendo como ponto de atração o Seminário.

É no cruzamento entre as duas vias mais integradas, Rua Grande e Travessa Califónia, que foi situado o mercado das frutas “Arapuca”. A sua implantação neste local é coerente às questões de visibilidade que o comércio varejista necessita para sua localização e como resultado de uma atividade geradora de fluxos.

A partir da década de 1930, são realizadas melhorias urbanas como a canalização do Riacho da Matinha ao longo da Rua da Vala e a cidade se expande em novos bairros. Consolidam-se nesta época os bairros do Pimenta, Seminário e Barro

Page 7: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

Vermelho, com edificações em estilo Art Déco. As transformações verificadas a partir das décadas de 1940 e 1950 demonstram a substituição da arquitetura antiga pela “moderna”, “dando feição diferente ao aspecto arquitetônico da Princesa do Cariri.” (Revista Indústria e Comércio, n.03, 1966, p.73-74 apud FARIAS FILHO, 2007; p. 188).

O mapa axial construído para este recorte temporal baseou-se em mapa da cidade da década de 1950 (Arquivo de José Sarto Cabral apud FARIAS FILHO, 2007; p.174). Em relação à década de 1920, consolidou-se a expansão da malha em três sentidos: oeste – leste, dando-se início à ocupação da porção posterior à Estação Ferroviária, no denominado então bairro Barro Vermelho; norte – sul, consolidando o bairro Pimenta; e leste – oeste, no bairro do Seminário, superando as barreiras físicas e adequando-se o traçado em grelha do centro à topografia.

Quanto à integração das vias, o núcleo de integração é estendido para o cruzamento das Ruas Bárbara de Alencar (antiga Travessa Califórnia) e Mons. Esmeraldo (anteriormente denomina da Travessa do Rosário) com a rua Dr. João Pessoa (antes Rua Grande), nas proximidades da Praça 3 de maio (hoje São Vicente). Estas vias estabelecem a ligação entre o centro com os novos bairros em formação.

É interessante destacar a construção do novo mercado público (o Arapuca e o açougue foram demolidos em 1948) na esquina das ruas Mons. Esmeraldo com Nelson Alencar. Como dito anteriormente este tipo de equipamento necessita de visibilidade, aproveitando o alto potencial de acessibilidade da via, ao mesmo tempo em que contribui para realimentar o movimento na medida em que atrai grande fluxo de pessoas. No local onde antes se encontrava o mercado Arapuca (esquinas das ruas Dr. João Pessoa, ou Grande, e Senador Pompeu, ou do Fogo, com a Rua Bárbara de Alencar, antes Trav. Califórnia – ainda em 1950, núcleo de integração da cidade) foram instalados o Banco Cariri e posteriormente o Banco do Brasil.

Substituições como estas não apenas alteravam o uso do solo, mas muitas vezes implicavam na demolição dos antigos prédios para dar lugar as novas construções. Neste caso, a construção de características coloniais do Mercado Arapuca deu lugar ao belo exemplo de arquitetura protomodernista do Banco Cariri . As simulações axiais até o momento vem demonstrando a continuidade destas transformações. Entretanto, estas podem ocorrer (e assim foi feito, como será visto mais a frente) com a substituição de outros prédios de valor arquitetônico por novas construções de gosto estético muitas vezes questionável.

Page 8: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

Acima as representações axiais: mapa 03 de 1882 e o mapa 04 de 1950

4. O centro histórico de hoje

Os imóveis contidos no reconte espacial deste trabalho, foram inventariados por meio de coleta de dados em campo, realizada no período entre o final do mês de julho e início de agosto do corrente ano. Ainda nesta etapa, se buscou complementar as informações colhidas in loco com pesquisa na SEMAC e no Escritório Técnico do IPHAN no Crato, bem como na literatura já produzida sobre o patrimônio da cidade.

As informações especializáveis foram organizadas numa base de dados georreferenciada, confeccionada no software MapInfo®. A partir da integração entre os dados cartográficos e cadastrais em programas como este, torna-se possível consultar, recuperar, visualizar e manipular seu conteúdo rapidamente. Desta maneira, a utilização de bancos de informações georeferenciadas mostra-se uma ferramenta muito eficaz para as análises urbanas a serem desenvolvidas neste trabalho.

Dentre os dados catalogados destacam-se uso do solo, gabarito e os imóveis recomendados a conservação- cujo critério de escolha destacou aqueles imóveis que apresentam características estilísticas ainda reconhecíveis que pudessem se enquadrar no recorte temporal de meados do século XVII (edificações coloniais) a meados da década de 1960 (edificações modernistas). Esses foram por sua vez classificados em categorias: (1) imóveis já sob proteção institucional; (2) características originais preservadas em imóvel reconhecido como ponto de referência – os marcos do centro do Crato; (3) outros imóveis com mínimas modificações e razoável estado de conservação, que sejam representantes expressivos de estilos arquitetônicos; (4) raro exemplar de determinada época, em termos do acervo remanescente; e (5) conjuntos.

Dadas as especificidades deste estudo, selecionou-se para análise os seguintes cruzamento de dados: (1) Uso do solo versus potencial de integração das vias; (2) Uso do solo versus estado de preservação; (3) Uso do solo versus estado de conservação; (4) Uso do solo versus filiação estilística; e, (5) Filiação estilística versus estado de preservação. Para cada um destes cruzamentos foram construídos além

Page 9: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

dos mapas temáticos, gráficos e tabelas que facilitam a leitura dos dados em valores percentuais.

As análises demonstraram que os principais padrões de transformação do centro são: (1) a falta de uso e conservação dos imóveis e (2) a substituição das edificações. O estado lamentável em que são mantidas parcelas da arquitetura antiga da cidade foi a primeira preocupação que justificou este estudo, mas o que se verificou ao longo das análise é que este descuido é muitas vezes proveniente da subutilização ou falta de uso das edificações. Como visto, a existência de edificações fechadas e em péssimo estado de conservação pode ser uma das justificativas dadas para o acontecimento do segundo padrão de transformação.

5. Considerações finais

A substituição das construções ocorreu ao longo da evolução da cidade, inicialmente em razão da perenidade da arquitetura que foi edificada (casas de barro, telhado em palha de tosca construção). Transformações neste sentido ocorrem também depois por motivações que atrelam o incremento populacional da cidade e a justificativa de “modernização” – do traçado urbano e da arquitetura − para acompanhar o seu desenvolvimento. Verificaram-se experiências neste sentido na década de 1950 com a demolição do Mercado Arapuca para dar origem aos bancos do Brasil e Caixeiral; ou no alargamento das ruas do centro visando à adequação ao veículo, mas que destituiu parcelas de seu patrimônio edificado; e, tantas outras substituições que ocorrem até aos dias de hoje.

As perdas são irreparáveis e nos trazem à necessidade de refletir acerca de formas de controlar as transformações. Neste sentido, despontam dois questionamentos: o que esta se perdendo? Qual a qualidade da arquitetura que esta sendo produzida em seu lugar?

Neste mote, a proposição de diretrizes pode subsidiar instrumentos legislativos que atentem não apenas ao estado de conservação das edificações, pois como foi apurado nos estudos de referencias, experiências que se valem apenas de recuperação de fachadas não foram capazes de contribuir efetivamente para processos de revitalização. Mas é necessário que a legislação preservacionista aponte também incentivo ao uso dos imóveis, coibindo as ações deletérias e promovendo ações de educação patrimonial através do estímulo à noção de topofilia. Não se pode preservar o que não se conhece ou aquilo que não é distinguido pela população como parte relevante de sua história. Acredita-se que o reconhecimento do patrimônio do Centro pelos seus moradores e usuários, e a decorrente valorização do mesmo, é vetor para a manutenção da identidade local e de sua história narrada por seu acervo arquitetônico de distintas épocas.

A metodologia adotada foi de fundamental importância para o resultado das análises das variáveis trabalhadas. A oportunidade de se unir ferramentas de geoprocessamento ao monitoramento do patrimônio edificado, facilitou a percepção da relação entre forma, uso das edificações e espaços públicos, e de como esta relação pode interferir sobre a preservação e a conservação do acervo.

Mais uma vez, destaca-se que o principal objetivo deste trabalho foi promover uma primeira discussão teórica acerca do patrimônio urbano-arquitetônico do centro do Crato. Buscou-se aqui despertar o interesse para a importância de sua preservação, como memória viva da história da cidade, e para o valor que representa a manutenção do seu ambiente construído. Espera-se que este estudo venha

Page 10: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

estimular mais debates sobre o tema e futuros trabalhos na área e possa desta forma contribuir para a preservação do centro.

Referências

AQUINO, J. Lindemberg de. Roteiro biográfico das ruas do Crato. Crato: Instituto de Cultura do Cariri, 1969. 252 p. (Coleção Itaytera, 4) ARQUITETURA Histórica da Cidade. Disponível em: <http://www.crato.ce.gov.br/2007/?op=paginas&tipo=pagina&sessao=208&pagina=455>. Acesso em: 29 abr. 2008. BENS tombados no Crato. Disponível em: <http://www.secult.ce.gov.br/>. Acesso em: 25 abr. 2008. CARVALHO, Heliana Lima de. A nova Cidade Nova: Petrópolis e Tirol, bairros em constante transformação. 2007. Trabalho Final de Graduação (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. FARIAS FILHO, Waldemar Arraes de. Crato: Evolução Urbana e Arquitetura 1740-1960. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2007. 272p. GLOSSÁRIO do Seminário Internacional para Revitalização de Centros Históricos de América Latina. Disponível em:<http://www.archi.fr/SIRCHAL/glossair/glosindep.htm>. Acesso em: 31 maio 2008. HILLIER, Bill. Space is the machine. Londres: Cambridge University Press, 1996. Disponível em: <http://eprints.ucl.ac.uk/3881/1/SITM.pdf>. Acesso em: 07 maio 2008. ____________. Centrality as a process: accounting for attraction inequalities in deformed grids. In Urban Design International, 1999, 4 (3&4), p.107-127. Tradução livre do original: “Live centrality means the element of centrality which is led by retail, markets, catering and entertainment, and other activities which benefit unusually from movement. HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The Social Logic of Space. Londres: Cambridge University Press, 1984. HISTÓRIA do Crato. Disponível em: <http://www.crato.ce.gov.br/>. Acesso em: 29 abril 2008. LEMOS, Carlos. O que é Patrimônio? 5ª ed. de 1987. São Paulo: Brasiliense, 2004. (Coleção primeiros passos, 51). MEDEIROS, Valério Augusto Soares de. Da praça-forte seiscentista aos grandes eixos. Um estudo das relações entre preservação arquitetural e configuração da malha viária no centro antigo de Natal. Monografia (Trabalho Final de Graduação). Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2002. _____________. Urbis Brasiliae ou sobre cidade do Brasil. Inserindo assentamentos urbanos do pais em investigações configuracionais comparativas. 2006. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) Programa de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 10ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. 211 p. (Debates) SCHNEIDER, Luiz Carlos. Rio Prado: evolução urbana e patrimônio arquitetônico-urbanistico. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. 231 p. VARGAS, Heliana Comim; CASTILHO, Ana Luiza Howard de. Intervenções em centros urbanos: objetivos, estratégias e resultados. Barueri: Monole, 2006. 213p. TEIXEIRA, Rubenilson Brazão (coord). Casas de Câmara e Cadeia do Rio Grande do Norte. Projeto de Pesquisa. UFRN, 2005. TELES, Éloi. História do Crato (em versos) - o Aldeamento. Crato: Tipografia e Papelaria do Cariri, [s.d.]. v.1. 8p. TINOCO, Marcelo Bezerra de Melo; BENTES SOBRINHA, Maria Dulce Picanço; TRIGUEIRO, Edja Bezerra Faria (org.). Plano de reabilitação de áreas urbanas centrais – PRAC/Ribeira. Natal, RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2008. 200 p. TRIGUEIRO, Edja. CAVALCANTI, Alâni Fabíola. Inventário de uma herança ameaçada: registro e estudo de centros históricos do Seridó. Morfologia e Usos da Arquitetura (Base de Pesquisa). Departamento de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, [s.d]. Disponível em: <http://www.musa.ct.ufrn.br/bdc>. Acesso em: 08 out. 2008.

Page 11: Urbicentros_ Crato_ Ana Paula Gurgel

TRIGUEIRO, Edja. MEDEIROS, Valério. RUFINO, Iana Alexandra. Investigando conseqüências de projetos de intervenção na malha viária sobre o patrimônio remanescente no centro histórico de Natal. In: III SEMINÁRIO INTERNACIONAL PATRIMÔNIO E CIDADE CONTEMPORÂNEA, 2002, Salvador. CD Anais - III Seminário Internacional Patrimônio e Cidade Contemporânea. Salvador: FAU-UFBA, 2002. UNESCO. Textos fundamentais da Convenção do Patrimônio Mundial de 1972. Edição 2005. Disponível em: <http://whc.unesco.org/uploads/news/documents/news-239-1.pdf>. Acesso em: 31 maio 2008. ZANCHETTI, Silvio, MARINHO, Geraldo, MILLET, Vera (org.). Estratégias de intervenções em áreas históricas. Recife: MDU/UFPE, 1995. 219 p.