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URI UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA DANIELA BOMBARDELLI REFLEXÕES SOBRE OPRESSÃO FEMININA E SOCIEDADE CONSERVADORA EM CONTOS DE O FIO DAS MISSANGAS, DE MIA COUTO Orientação: Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto Frederico Westphalen, RS, Brasil Setembro de 2015

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URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

COMPARADA

DANIELA BOMBARDELLI

REFLEXÕES SOBRE OPRESSÃO FEMININA E SOCIEDADE CONSERVADORA

EM CONTOS DE O FIO DAS MISSANGAS, DE MIA COUTO

Orientação: Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Setembro de 2015

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DANIELA BOMBARDELLI REFLEXÕES SOBRE OPRESSÃO FEMININA E SOCIEDADE CONSERVADORA

EM CONTOS DE O FIO DAS MISSANGAS, DE MIA COUTO

Dossiê de dissertação apresentado como requisito parcial qualificação no curso de Mestrado em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de Frederico Westphalen. Área de concentração: Literatura Comparada.

Orientação: Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Setembro de 2015

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o dossiê do exame de qualificação da dissertação

REFLEXÕES SOBRE OPRESSÃO FEMININA E SOCIEDADE CONSERVADORA

EM CONTOS DE O FIO DAS MISSANGAS, DE MIA COUTO

Elaborada por

DANIELA BOMBARDELLI

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________ Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto – URI

(Orientadora)

_____________________________________________ Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach

(1ᵃ arguidora)

_____________________________________________ Profa. Dra. Denise Almeida Silva

(2ᵃ arguidora)

____________________________________________ Profa. Dra. Ilse Maria Vivian

(3ᵃ arguidora)

Frederico Westphalen, setembro de 2015

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AGRADECIMENTOS

A Deus, primordialmente, pois tudo posso nEle, “que me fortalece”;

À minha primeira professora orientadora, Prof. Dr. Sílvia Niederauer, pela

compreensão, preocupação e atenção a mim prestadas durante a trajetória da

pesquisa iniciada anteriormente;

À professora orientadora seguinte, prof. Dr. Ana Paula Porto, pela ousadia em

iniciar a pesquisa com uma nova ideia e um novo projeto de trabalho, pelo auxílio

atencioso, incentivo e disponibilidade com que me “abraçou” durante o decorrer e a

conclusão deste trabalho;

À Coordenadora do Curso de Mestrado em Letras, professora Dr. Maria

Thereza Veloso, pelas conversas amigas e carinho a mim prestados no decorrer dos

meus estudos, a fim de que eu conseguisse chegar ao título de Mestre em Letras,

bem como à professora Dr. Denise A. Silva, pela preocupação e carinho com que

me recebeu, leu e averiguou meu trabalho para as bancas de Qualificação e Defesa,

e acrescentou muitas considerações favoráveis para que ele ficasse mais rico.

Agradeço, também, à professora Ilse Maria Vivian, pela leitura e pelos apontamentos

prestados à minha Dissertação para a avaliação da banca de Qualificação e de

Defesa, bem como à prof. Rosani Úrsula Ketzer Umbach, da Universidade Federal

de Santa Maria, pela leitura da presente pesquisa e atenção prestada na Defesa da

Dissertação. E, por fim, a todas as professoras e secretárias do Mestrado em Letras,

pelas informações e carinho a mim dedicados: muito obrigada, de coração;

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À minha mãe, tão batalhadora e preocupada comigo, por tudo o que fez e faz

por mim, me ajudando e tendo orgulho de mim;

Ao meu irmão, que sempre me ajuda no que necessito, pelas inúmeras vezes

em que o incomodei, solicitando uma ajuda para realizar este trabalho com afinco;

Enfim, a todos que, de uma maneira ou de outra, deram aquela força e auxílio

para que o presente estudo fosse finalizado com pertinência.

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RESUMO

A presente pesquisa procura refletir sobre contos da antologia O fio das missangas, do escritor moçambicano Mia Couto, com o objetivo de discutir como se constrói a representação da opressão feminina, a da sociedade conservadora e da crítica social. Nesse sentido, o objetivo geral da pesquisa é investigar a relação entre a Literatura e a Sociedade, abordando reflexões sobre a opressão da mulher e a sociedade conservadora, tendo como corpus de trabalho contos de Mia Couto da referida obra. O estudo está amparado nos pressupostos da Literatura Comparada à medida que estabelece uma leitura comparativa entre contos publicados na antologia, tendo como suporte crítico estudos das áreas de Literatura, Teoria Literária, Sociologia e Estudos de gênero e tendo como linha de pesquisa o eixo Literatura, História e Memória do Mestrado em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, a partir de análises literárias e teóricas sobre Literatura e Sociedade. A análise sugere que os contos analisados de Mia Couto sejam estudados com base em comparações entre si e com teorias literárias que abordam os mesmos pressupostos do tema da pesquisa presente.

Palavras-chave: História. Sociedade. Opressão feminina. Mia Couto. O fio das missangas.

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ABSTRACT

This research tries to consider about tales of the anthology O fio das missangas, by Mozambiquean writer Mia Couto, with the objective of promoting discussion about how is built the representation of the female expression, the conservative society one and the social critical one. By the way the general objective of this research is to investigate the relation between Literature and Society, broaching reflections about the oppression of the woman and the conservative society, having as working corpus tales by Mia Couto, from the work O fio das missangas (2003). The study leans on presuppositions from the Comparative Literature while as establishes a comparative reading between tales published in the referred anthology, having as critical support studies in the areas of Literature, Literary Theory, Sociology and Gender Studies and having as research line the drive shaft Literature, History and Memory from Mestrado em Letras in Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, starting from literary analysis . The analysis suggests that the tales analyzed from Mia Couto are studied based on comparisons between one another and with literary theories that aboard the same presuppositions of the subject of this research.

Keywords: History. Society. Female oppression. Mia Couto. O fio das missangas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ____________________________________________________ 08

1 LITERATURA E SOCIEDADE _____________________________________ 11

1.1 Elos entre literatura e sociedade ________________________________ 11

1.2 Sociedade africana e literatura _________________________________ 24

2 MIA COUTO: OBRA E SOCIEDADE _______________________________ 36

2.1 Apresentação do autor ________________________________________ 36

2.2 Caracterização da escritura de Mia Couto _________________________ 42

3 O FIO DAS MISSANGAS: DIÁLOGO COM A SOCIEDADE _____________ 52

3.1 Opressão à mulher: “As três irmãs” e “A saia almarrotada” ____________ 55

3.2 Sociedade das aparências: “O nome gordo de Isidorangela” __________ 74

3.3 Desigualdade social: “O homem cadente” _________________________ 81

CONSIDERAÇÕES FINAIS __________________________________________ 91

REFERÊNCIAS ___________________________________________________ 96

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INTRODUÇÃO

Mia Couto, autor moçambicano que iniciou sua produção literária com Raiz

de orvalho (1983), é considerado um dos autores africanos que escreve em

português mais representativos da literatura contemporânea, tendo publicado mais

de trinta obras, entre prosa e poesia. Nas obras, destacam-se particularidades,

como a utilização de amálgamas, de neologismos e da questão da identidade, bem

como a predominância de prosa poética, além de sua obra apresentar um teor crítico

da contemporaneidade, sustentando os elementos da narrativa: narrador,

personagens, espaço e tempo – sustentáculos da narrativa. Com o intuito de ampliar

as discussões sobre contos do escritor, a presente dissertação investiga a questão

da relação decorrente entre Literatura e Sociedade, abordando reflexões a respeito

da opressão da mulher e a sociedade conservadora, marcada por relações de

aparência e a pobreza social, tendo como corpus de análise quatro contos,

publicados na antologia O fio das missangas, em 2003.

Toma-se como objetivo principal da pesquisa refletir sobre as conexões

existentes entre os contos de Mia Couto e a relação que há entre a Literatura e a

Sociedade. Quanto aos objetivos específicos, salientam-se: apresentar Mia Couto,

expondo quais as características que compõem sua obra crítica; exibir um contexto

da literatura africana originada após a independência de Moçambique,

demonstrando o enlace da sociedade africana com a literatura; fazer um elo entre

literatura e sociedade; estabelecer um diálogo entre obra O fio das missangas e a

sociedade, por meio dos contos: “Três irmãs”, “A saia almarrotada”, “O nome gordo

de Isidorangela”, “O homem cadente”, relatando a opressão sofrida pela mulher, a

sociedade das aparências e a questão, também, da pobreza social, em tais contos

supracitados.

Os objetivos propostos desta pesquisa estão atrelados à linha de pesquisa

Literatura, História e Memória do Programa de Pós-graduação em Letras da URI,

Curso de Mestrado em Letras – área de Literatura Comparada, pois analisa o texto

literário, correlacionando- a uma perspectiva histórica, dando privilégio à constituição

do gênero do conto, bem como aos marcos da ciência da história e sociedade

moçambicana. Para tanto, faz uso de teorias literárias e críticas a respeito do

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assunto principal do estudo que aqui se faz presente, fazendo uma comparação

entre diversos contos do autor Mia Couto, o que possibilita a perspectiva

comparatista inerente à área de concentração do curso de mestrado.

Nessa perspectiva, para desenvolvimento da investigação, tem-se o método

da literatura comparada, que consiste no exame comparativo entre textos literários,

fundamentando as reflexões a partir de pressupostos teóricos e críticos. Dentre

esses pressupostos, salientam-se as contribuições de estudos críticos sobre a

literatura de Mia Couto, concepções teóricas relacionadas à teoria da literatura e ao

conto, reflexões críticas sobre a sociologia da literatura e estudos científicos sobre

papel da mulher, sociedade contemporânea e sociedade conservadora.

O recorte de análise proposto surge por duas razões centrais. A primeira

refere-se ao fato de que, diante da vasta obra de Mia couto, escolheu-se O fio das

missangas como subsídio para análise por causa das múltiplas alternativas de

pesquisa e estudo que fornece e ainda pela averiguação da inexistência de

pesquisas exaustivas sobre essa obra e, especificamente, sobre os contos inseridos

nela: “A saia almarrotada”, “O nome gordo de Isidorangela”, “As três irmãs” e “O

homem cadente”.

A segunda motivação para a pesquisa está relacionada ao encadeamento

decorrente entre áreas diferenciadas do conhecimento, ou seja, entre a Literatura e

a História que o estudo favorece, no que tange à meta de linha de pesquisa em que

se insere, uma vez que esta linha visa averiguar o processo de comparação literário,

o que se faz no presente trabalho, através de contos coutianos acima citados.

Também se destaca que a seleção dos quatro contos informados está

pautada em dois fatores centrais: a temática de cada um deles e sua construção

estética; e a possibilidade que apresentam para a construção de um diálogo crítico

sobre relações entre literatura e história.

Considerando esse contexto, a presente dissertação está estruturada em

três capítulos. No primeiro, aborda-se a ligação que acontece entre a literatura e a

sociedade e o relato da sociedade africana, fazendo conexão com a literatura,

contemplando o assunto comparativo histórico e social desta pesquisa.

O segundo capítulo contempla o autor Mia Couto, apresentando sua vida e

obra, juntamente com os pontos característicos de sua escritura, realizando a junção

da sua obra com a sociedade.

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O último capítulo apresenta a análise da obra O fio das missangas, de Mia

Couto, dando ênfase ao diálogo com a sociedade, no que condiz aos aspectos/

temas que a escrita coutiana releva, como a opressão à mulher, que pode ser vista

nos contos “As três irmãs” e “A saia almarrotada”; a sociedade das aparências –

tema presente no outro conto denominado: “O nome gordo de Isidorangela”, e, por

fim, a desigualdade social, vista no conto “O homem cadente”, em cujas escritas

verificam-se a criticidade bem como a prosa poética que Mia cria e dá vida, através

de vários recursos estéticos por ele arquitetados.

Ao término deste trabalho, são expostas as considerações finais, nas quais

se apresenta uma análise comparativa entre os contos estudados, procurando

apresentar uma perspectiva geral de leitura dos contos, e as referências usadas no

decorrer do estudo.

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1. LITERATURA E SOCIEDADE

1.1 Elos entre literatura e sociedade

Elos entre literatura e sociedade são defendidos por vários pesquisadores,

como Antonio Candido, cujas contribuições serão destacadas na sequência deste

subcapítulo, e Valdeci Rezende Borges, no artigo intitulado “História e Literatura:

Algumas Considerações” (2010), em que fala a respeito das ideias alusivas a

Chartier, isto é, Borges cita Chartier, dizendo que a contextualização de um texto

com o qual se trabalha é essencial à elucidação do lugar no qual foi elaborado, à

sua linguagem, ao seu estilo, à sociedade que envolve e se introduz no autor e seu

texto, bem como à história do autor. Borges fala que, para Chartier (1990, p. 62-3),

todo documento, seja ele literário ou de qualquer outro tipo, é representação do real que se apreende e não se pode desligar de sua realidade de texto construído pautado em regras próprias de produção inerentes a cada gênero de escrita, de testemunho que cria ‘um real’ na própria ‘historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita’ (BORGES, 2010, p. 96).

Desse modo, qualquer modelo de texto tem uma linguagem especial, em

que foi criado, própria de um segmento específico de elaboração, “[...] e esta ocorre

considerando dadas regras peculiares ao meio intelectual de onde emerge, ao

veículo em que será veiculada e ao público a que se destina”, segundo Borges

(2010, p. 96). Essas considerações apontam para os elos que os textos constroem

com os contextos dos quais emanam.

Borges faz menção a Chartier, ainda, asseverando que as noções de leitura,

representação, prática, linguagem, apropriação, intertextualidade, dialogismo, dentre

outros pontos, são relevantes nesse processo de interação entre obra e contexto ou

entre obras com o campo do saber histórico. Este, consoante Chartier, “tem por

principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma

determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler.” (CHARTIER,

1990, p. 16-17, apud BORGES, 2010, p. 96). Tal saber histórico, através da

linguagem literária é representado na literatura.

Além disso, Borges, citando Chartier (1990, p. 16-17, 28), analisa que as

representações do universo social vistas “[...] como práticas intelectuais, dentre elas,

as ficcionais, como as literárias, são sempre marcadas por múltiplos, complexos e

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diferenciados interesses sociais, sobretudo, aqueles dos grupos sociais que as

forjam” (BORGES, 2010, p. 96). Ou seja, as criações literárias de alguma forma

remetem a contextos sociais, aos grupos sociais representados.

Também, ao mencionar os pressupostos de Chartier (1990, p. 16-17, 28),

Borges (2010, p. 96) salienta que é necessário fazer relação dos discursos

proferidos com a posição social das pessoas que os produzem e de quem os utiliza,

visto que as percepções do que é social não são neutras. Tais percepções

produzem e revelam métodos de tendência a impor uma autoridade, uma escolha,

um projeto, uma hierarquia. Logo, conclui-se que o discurso de narradores e

personagens de uma dada obra literária produzem leituras, sentidos, visões para

compreensão social.

Sendo a literatura uma maneira de ler, interpretar, falar e representar o

tempo e o mundo, a mesma tem normas específicas de produção e guarda modos

próprios de aproximar o real, de criar um mundo possível através da narração,

dialogando com a realidade a que se alude de formas variadas, confirmando o que

há ou propondo alguma coisa original, negando o real ou reafirmando-o,

ultrapassando o já existente ou, então, mantendo-o, de acordo com Borges (2010, p.

98-99). A literatura, para o estudioso,

registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado e conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere. Ela é constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste; é testemunha efetuada pelo filtro de um olhar, de uma percepção e leitura da realidade, sendo inscrição, instrumento e proposição de caminhos, de projetos, de valores, de regras, de atitudes, de formas de sentir... Enquanto tal é registro e leitura, interpretação, do que existe e proposição do que pode existir, e aponta a historicidade das experiências de invenção e construção de uma sociedade com todo seu aparato mental e simbólico (BORGES, 2010, p. 98).

A literatura é uma reflexão a respeito do que existe e projeção do que

poderá ocorrer, uma vez que registra e interpreta o momento atual, ou melhor, o

momento que a inspira; reconstrói o que passou e inventa o que há de vir, através

de uma narrativa calcada no critério de ser verossímil, da estética clássica ou nas

observações sobre a realidade a fim de construir uma ilusão de real, como salienta

Borges 2010, p. 99). “Como tal é uma prova, um registro, uma leitura das dimensões

da experiência social e da invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas

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sociais, de modo geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos, de forma

particular” (BORGES, 2010, p. 99).

Esses elos estabelecidos entre literatura, história e sociedade são

reconhecidos de maneira especial, e sua construção pode se dar em diferentes

níveis, como obras engajadas ou não engajadas, o que cabe, aqui, começar a

estudar com mais afinco um autor de textos que falam a respeito dessa conexão ou

ligação decorrente entre os três campos, analisando-os com maestria: Antonio

Candido.

Nos primeiros capítulos do livro Formação da literatura brasileira: momentos

decisivos (1963), de autoria de Antonio Candido, constata-se que há uma distinção

entre literatura engajada1 e a não engajada, e que essa distinção, em parte, está

atrelada ao papel que uma obra desempenha do seu diálogo com a sociedade.

Quanto à literatura engajada ou empenhada, Antonio Candido (1963) assevera que,

após a Independência, a tarefa literária se tornou parte da dedicação da construção

do país livre, cumprindo uma atividade que visava à diferenciação e particularização

dos assuntos e formas de exprimi-los. Isto denota a importância de “[...] ‘tomada de

consciência’ dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos

declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam.”

(CANDIDO, 1963, p. 28). Aponta-se assim certa encarnação de literatura do espírito

de nacionalidade, redundando nos escritores, geralmente, em prejuízo e

desestabilidade, sob a luz do caráter da estética.

A literatura empenhada ou engajada é aquela que se empenha em “vender

uma ideia”, um pressuposto, refletindo a respeito de uma sociedade e a respeito de

uma questão ou apontamento feito, mas para tanto a consciência estética tem que

haver. Candido explica que o neoclássico e o arcadismo valorizam a parte da

estética:

Como não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pela imaginação, os escritores se sentiram frequentemente tolhidos no voo,

1 O conceito de literatura engajada foi cunhado em 1947 por Sartre. Por literatura engajada, Sartre entende

somente a prosa, uma vez excluída a poesia, de acordo com o texto de autoria de Roberto Figurelli: “Sartre e a literatura engajada” (1987, p. 90). A noção de prosa, para Figurelli (1987), serve de base ao engajamento do escritor, uma vez que Sartre investe contra os estilistas defensores da palavra que corre sobre a superfície das coisas, mas não as altera. Falar seria agir, para ele, segundo Figurelli (1987, p. 92). “O escritor ‘engajado’ sabe que a palavra é ação: ele sabe que desvelar é mudar e que não se pode desvelar a não ser projetando mudar” (p. 73). Segundo Figurelli (1987, p. 93), Sartre visualiza sempre a literatura como arte e procura demonstrar aos seus oponentes que o engajamento não prejudica ao caráter de arte da literatura. O escritor engajado, ao contrário do crítico, se encontra vivo, e sua escrita sempre é um empreendimento.

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prejudicados no exercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral (CANDIDO, 1963, p. 28).

O nacionalismo infundido favoreceu a renúncia da imaginação ou a

incapacidade de aplicá-la devidamente ao representar o real, “resolvendo-se por

vezes na coexistência de realismo e fantasia, documento e devaneio, na obra de um

mesmo autor, como José de Alencar.” (CANDIDO, 1963, p. 29), e, por outro lado,

beneficiou a expressão de um embasamento humano, cheio de significância dos

estados de espírito de uma sociedade que em alicerces atuais se arquitetava.

Candido (1963) salienta que a universalidade da obra é fixada no pitoresco e

no material bruto da experiência, bem como a quer empenhada, com capacidade de

servir às regras do conjunto. Ele diz que a imaturidade provinciana forneceu à

literatura um significado histórico e um extraordinário poder de comunicação, “[...]

tornando-a língua geral duma sociedade à busca de autoconhecimento. [...]”

(CANDIDO, 1963, p. 29), adquirindo, para os leitores, a expressividade que favorece

comunicação entre esses e os autores, “[...] sem a qual a arte não passa de

experimentação dos recursos técnicos. [...]” (CANDIDO, 1963, p. 29).

Essa universalidade da obra está relacionada à capacidade desta em

dialogar, tanto na forma quanto no conteúdo, com o momento histórico e social do

qual faz parte, pois, nessa perspectiva, não há como ignorar elos entre a obra de

arte e a sociedade e a história. A esse respeito, Antonio Candido, em Literatura e

sociedade (2000), afirma que a compreensão de uma obra literária não é nem

puramente um exame sociológico ou nem crítico voltado apenas ao arranjo estético,

já que é preciso avalia melhor o “[...] vínculo entre a obra e o ambiente [...]”

(CANDIDO, 2000, p. 05), chegando-se à compreensão de que “[...] a análise estética

precede considerações de outra ordem.” (CANDIDO, 2000, p. 05).

De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão (CANDIDO, 2000, p. 05).

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Há os condicionamentos sociais, os condicionamentos externos, oriundos do

social com articulação interna no contexto de composição artística que interferem no

trabalho da crítica literária. Candido (2000, p. 06) salienta que a sociologia da

literatura não visa ao pressuposto do valor da obra e pode demonstrar interesse,

pelo que é condicionamento, cabendo-lhe, quem sabe, estudar a voga de uma obra,

o índice preferido por um gênero, a aptidão das classes, a origem social dos

escritores, a ligação entre as obras e os pensamentos, a influência da organização

da sociedade, da política e da economia, dentre outros aspectos.

Em Literatura e sociedade, especificamente no capítulo “A literatura e a vida

social”, Candido (2000) discorre sobre a tríade literária autor, obra e público,

relacionando os três pontos e focando aspectos sociais que estão presentes na vida

literária e artística em seus distintos instantes. Dessa forma, ao correlacionar esses

três elementos, o crítico ratifica o diálogo que a literatura estabelece com os

condicionamentos sociais. Nesse sentido, entendo que a sociologia é uma disciplina

que auxilia no trabalho de análise literária, não tem o objetivo de dar explicações a

respeito do fenômeno literário ou artístico e, sim, de trazer esclarecimentos sobre

alguns aspectos dele. Para isso, a análise sociológica é ineficiente e apenas criaria

desordem na interpretação, podendo ser até considerada útil para uns sendo que,

para outros, é indispensável, como defende Candido (2000).

Candido coloca a questão de qual o prestígio exercido pelo ambiente social

sobre a obra de arte, afirmando que a mesma deve ser completada por outra,

imediatamente: “[...] qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”

(CANDIDO, 2000, p. 18). Pode-se chegar mais próximo de um entendimento

dialético, concluindo-se que certas tendências bem vivas da estética moderna estão

empenhadas em analisar de que modo a obra de arte plasma o meio e origina o seu

público e os seus caminhos de penetração, agindo ao contrário das influências do

exterior, indagando quais as influências possíveis do meio sobre a obra.

Neste sentido, existem dois apontamentos, ainda polinizados, porém que

têm de ser afastados em uma investigação desse porte. O primeiro, averigua em

que medida, consoante Candido (2000), “[...] a arte é expressão da sociedade [...]”

(CANDIDO, 2000, p. 18); o segundo, em qual medida é referente ao social, ou seja,

“[...] interessada nos problemas sociais” (CANDIDO, 2000, p. 18).

Dizer que ela exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo; mas houve tempo em que foi novidade e representou algo historicamente

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considerável. No que toca mais particularmente à literatura, isto se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os povos. Talvez tenha sido Madame de Staël, na França, quem primeiro formulou e esboçou sistematicamente a verdade que a literatura é também um produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre (CANDIDO, 2000, p. 18-19).

Na realidade da prática, conseguiu-se chegar ao posicionamento

criticamente pouco fecundo de avaliação, de acordo com Candido, sobre qual

medida determinada forma de arte ou obra tem relação à realidade, o que mostra

que “[...] pulularam análises superficiais, que tentavam explicar a arte na medida em

que ela descreve os modos de vida e interesses de tal classe ou grupo, verdade

epidérmica, pouco satisfatória como interpretação.” (CANDIDO, 2000, p. 19). Um

exemplo é o livro a respeito de Martins Pena, no qual Sílvio Romero faz limitação na

descrição dos tipos criados pelo teatrólogo e ao apontar que espelham os da vida

real.

A outra inclinação, e segunda, condiz à constatação de que o conteúdo

social das obras, embasado em incentivos de ordem moral ou política, no qual há

redundância na afirmação ou na aceitação implícita que a arte deve ter conteúdo

com esse aspecto, e que ela é a medida do seu valor, geralmente, diz Candido

(2000, p. 19). Representa o retorno, em vestes de sociologia ou filosofia do século

XIX, da tendência antiga divisória. Poderá ser a elaboração com mais fama na

ordem de pensamentos e a mais coerente no seu radicalismo, “[...] seja o estudo em

que Tolstoi julga, sem apelo, as obras que não lhe parecem transmitir uma

mensagem moral adequada ao anarquismo místico da sua velhice” (CANDIDO,

2000, p. 19).

Essas duas tendências indicam que a “[...] arte é social [...]”, afirma Candido

(2000, p. 19), e é social em duas circunstâncias, dependendo da ação de fatores do

meio, expressos na obra em elevações variadas de sublimação e, também,

produzindo sobre as pessoas um efeito prático, o que transforma a sua conduta e

visão de mundo. O autor é, dessa forma, inconsciente, quer dizer, quem escreve

nem sempre tem consciência ao criar, uma vez que os valores sociais são

reforçados e isto demonstra que decorre da própria natureza da obra e não depende

do ponto de consciência o qual podem ter sobre os artistas e quem recebe a arte,

para o referido estudioso.

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A atividade primordial é, então, fazer uma averiguação sobre os efeitos de

sentido, positivos ou negativos, e as influências reais que os fatores socioculturais

exercem. Para isso, se juntam à estrutura social, à ideologia, aos métodos de

comunicação e aos valores, sendo que se manifestam na definição do

posicionamento social do artista ou na configuração dos conjuntos receptores; os

outros, na maneira e no conteúdo da obra e, os últimos, na sua fatura e expedição,

conforme Candido (2000), sublinhando os quatro momentos da produção: o artista,

os temas, as formas, juntamente com o meio em que se insere.

Sociologicamente falando, “[...] a arte é um sistema simbólico de

comunicação inter-humana, e como tal interessa ao sociólogo” (CANDIDO, 2000, p.

20), pois o processo comunicativo pressupõe alguém que o comunica, no caso o

artista; um comunicado, isto é, a obra; um comunicando, o qual é o público a que se

dirige; e o efeito gerado. “[...] Este caráter não deve obscurecer o fato de a arte ser,

eminentemente, comunicação expressiva, expressão de realidades profundamente

radicadas no artista, mais que transmissão de noções e conceitos” (CANDIDO,

2000, p. 20). É a intuição que fará com que a mesma se dará porque, seja na etapa

criadora, seja na receptiva, parecendo que exprime somente traços de

personalidade desvinculados de quaisquer externos condicionantes, como comenta

Candido.

Os elementos são condicionados socialmente e são os três instantes ligados

indissoluvelmente da produção, os quais se traduzem em autor, obra e público, no

que tange à comunicação artística, de acordo com Antonio Candido (2000). Quanto

à posição social, esta é um caráter da estrutura da sociedade, denotando como

ocorre a posição do artista diante de sua criação, isto é, como acontece a atribuição

de papéis específicos ao criador de arte, e de que modo sua posição social é

definida. Para o autor mencionado:

Devido a um e outro motivo, à medida que remontamos na história temos a impressão duma presença cada vez maior do coletivo nas obras; e é certo, como já sabemos, que forças sociais condicionantes guiam o artista em grau maior ou menor. Em primeiro lugar, determinando a ocasião da obra ser produzida; em segundo, julgando da necessidade dela ser produzida; em terceiro, se vai ou não se tornar um bem coletivo (CANDIDO, 2000, p. 23).

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Assim sendo, a obra depende de quem a cria e das condições sociais

determinantes de sua posição, estritamente, pois, fazendo alusão a isso, Candido

frisa:

Por motivo de clareza, todavia, preferi relacionar ao artista os aspectos estruturais propriamente ditos; quanto à obra, focalizemos o influxo exercido pelos valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação, que nela se transmudam em conteúdo e forma, discerníveis apenas logicamente, pois na realidade decorrem do impulso criador como unidade inseparável. Aceita, porém, a divisão, lembremos que os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma (CANDIDO, 2000, p. 27).

É sabido, portanto, que as influências sociais são bastante marcadas. À

medida, entretanto, que as sociedades se distinguem e evoluem em volume

demográfico, público e artista se diferenciam e isto é nítido. Fala-se, portanto, em

público distinto, no sentido moderno, “[...] – embora haja sempre, em qualquer

sociedade, o fenômeno básico de um segmento do grupo que participa da vida

artística como elemento receptivo, que o artista tem em mente ao criar, e que decide

do destino da obra, ao interessar-se por ela e nela fixar a atenção.” (CANDIDO,

2000, p. 31). Há a identificação com as obras, ao passo que há, também, muitas

pessoas informes, em uma sociedade atual, esparramadas por toda parte, como diz

Candido (2000), constituindo os múltiplos públicos das artes. “Elas aumentam e se

fragmentam à medida que cresce a complexidade da estrutura social, tendo como

denominador comum apenas o interesse estético. A sua ação é enorme sobre o

artista” (CANDIDO, 2000, p. 31).

Os critérios de valores, além do acima citado, são importantes, pois exercem

influência social, os quais se manifestam sob muitas designações, como a voga, o

gosto e a moda, sempre exprimindo os anseios da sociedade, que tendem a

estagnar-se em hábito rotineiro. Com isso e com efeito, a sociedade estabelece

princípios tirânicos para o amador de arte, e a cultura e os costumes muito influem

para que isso ocorra. Candido dá importância aos valores, destacando que embora

“[...] esta verificação fira a nossa vaidade, o certo é que muito poucos dentre nós

seriam capazes de manifestar um juízo livre de injunções diretas do meio em que

vivemos” (CANDIDO, 2000, p. 32).

Vai além: “[...] mesmo quando pensamos ser nós mesmos, somos público,

pertencemos a uma massa cujas reações obedecem a condicionantes do momento

e do meio.” (CANDIDO, 2000, p. 32). Candido alude ao fato de que existe a

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incorporação inconscientemente das regras da sociedade e a reação das pessoas é

sincera e dá a satisfação que equivale ao gosto pelas descobertas, sejam elas

positivas ou negativas.

Portanto, os fatores sociais agem, no concreto, no patamar das artes,

especificamente da literatura, conforme o anteriormente dissertado sobre as

palavras de Antonio Candido, destacando a importância da relação autor, obra e

público no campo literário e o elo entre este e a sociedade a qual pertence. Ele

salienta que “[...] muitos amadores resistem ao gosto geral; sem falar que os

impulsos pessoais predominam na verdadeira obra de arte sobre quaisquer

elementos sociais a que se combinem.” (CANDIDO, 2000, p. 33), encontrando o

meio fortemente presente.

A arte pressupõe, pois, um sistema de simbologia de comunicação entre os

homens, sugerindo o jogo frequente de relações entre autor, obra e público, “a tríade

indissolúvel”, como salienta Candido (2000, p. 33). A compreensão correta da

literatura só é feita com a ligação das três esferas.

Tendo como subsídio de estudos o texto de Candido intitulado “Estrutura

literária e função histórica”, do livro denominado Literatura e sociedade (2000), nota-

se que a relação autor, obra e público e a função histórica ou social de uma obra

está sujeita à sua estrutura literária, conforme os pressupostos de Candido (2000),

salientando que a estrutura literária descansa sobre a estruturação organizada e

formal de determinadas representações mentais, condicionadas pela sociedade na

qual se escreveu a obra, levando-se em conta um patamar de realidade e um de

elaboração da realidade, como também a diferenciação de perspectiva dos

contemporâneos da obra, inclusive o próprio autor, além da posteridade suscitada

por ela, estabelecendo alterações de função históricas em uma estrutura invariável.

Ao passo que a função social muda, Candido concorda que, iniciando por

um lugar comum, a literatura brasileira

adquire consciência da sua realidade – ou seja, da circunstância de ser algo diverso da portuguesa – depois da Independência; e isto decorreu, a princípio, mais de um desejo, ou mesmo de um ato consciente da vontade, que da verificação objetiva de um estado de coisas. Com efeito, pouco havia nas débeis letras de então que permitisse falar em literatura autônoma – seja pelas características das obras, seja pelo número reduzido de autores, seja, principalmente, pela falta de articulação palpável de obras, autores e leitores num sistema coerente. Não havia tradição orgânica própria, nem densidade espiritual do meio (CANDIDO, 2000, p. 154).

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As tendências historicistas, cuja marca era o relativismo, vendo a literatura

como conseqüência direta de fatores do meio e do tempo, chegaram à conclusão de

que cada país e de que cada povo tem a sua própria, necessariamente, com

aspectos particulares. O Brasil tem uma origem e um povo não igual a Portugal, e dá

a entender que possui organização política também diferente, sendo que a literatura

é relativa ao ambiente físico e ao humano. Logo, o país tem uma “[...] literatura

própria, diferente da de Portugal”, afirma, convicto, Candido (2000).

No Romantismo, os românticos erigiram a literatura como dogma, uma vez

que dela se originou muitas práticas e teorias do Romantismo brasileiro, “[...] seja no

terreno da criação, seja no da crítica” (CANDIDO, 2000, p. 154). Candido diz que era

necessário exibir que o país tinha uma literatura, exprimindo características

nacionais. Para validar isso, era preciso provar que o meio já a vinha destilando,

devido ao poder causal que os ideais românticos davam-na, já que, literariamente,

ser bom era o mesmo que ser brasileiro, e ser brasileiro significava colocar nas

obras o que era específico do país, ou seja, o indígena e a paisagem natural.

Candido, a respeito disso, fala que, por isso,

[...] o indianismo aparece como timbre supremo de brasilidade, e a tarefa crítica se orientou, desde logo, para a sua busca retrospectiva, procurando sondar o passado para nele localizar os verdadeiros predecessores, que segundo os românticos, teriam conseguido, graças principalmente ao pitoresco, romper a carapaça da convenção portuguesa (clássica) (CANDIDO, 2000, p. 154-155).

No afã de forjar tradições, em um país sem linhagens, é entendível que haja

desenvolvimento da ânsia de ter âncoras e de aprofundar no que passou a própria

realidade. Com o intuito de deixar transparecer a mesma dignidade da história dos

antigos povos, os românticos compuseram uma literatura para o passado brasileiro,

fazendo ligações de ramificações a que se pudessem filiar, sendo que pudessem,

juntamente, parecer herdeiros de uma respeitável tradição, embora mais nova

comparando-a à europeia, de acordo com Antonio Candido (2000, p. 155). Isso recai

sobre uma dicotomia: o orgulho de ser criador e a ânsia de ter uma prosápia velha.

Candido frisa que na construção genealógica, quer dizer, no esforço enorme

para estabelecer a continuação dos manifestos do que é próprio do Brasil na vida

espiritual, baseando-se nas especificidades do meio e do homem americano,

desenvolveu uma função grande o Caramuru, publicado em Lisboa, em 1781. Este

ano foi metade do século antes do movimento do Romantismo nacionalista, aqui no

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Brasil. “Isto foi possível graças às suas características, que permitiram submetê-lo a

um duplo aproveitamento, estético e ideológico, no sentido das tendências

nacionalistas e românticas” (CANDIDO, 2000, p. 155).

Haja vista que a literatura, então, condiz ao tratamento das realidades

nacionais, o século XVIII pode ser visto como decisivo para uma visão histórica e

literária do país.

As duas tendências se ligam estreitamente, pois a concepção de história não se separava do registro de feitos individuais, ou familiares. E numa sociedade de castas, em que os três Estados (clero, nobreza e povo) eram reconhecidos e mesmo requeridos para funcionamento das instituições, os feitos, ou eram praticados pelos membros da casta guerreira e administrativa, ou davam acesso a ela, quando praticados por outros, havendo uma corrente constante que conduzia da aventura à aristocracia. A existência de uma nobreza, decorrente do serviço das armas, da governança, da produção econômica, provaria a existência de uma história (concebida como registro de feitos); portanto, de uma dignidade através do tempo (CANDIDO, 2000, p. 156).

As questões observadas nos parágrafos anteriores permitem afirmar que

aconteceu mesmo um esforço genealógico no século XVIII, introduzindo

historicamente o poema de Durão, querendo dizer, no aspecto literário, a tentativa

épica de dar honradez à tradição, engrandecer os povoadores, dando justificativa à

política de colônia, consoante Candido (2000, p. 157).

Caramuru, o qual transmite uma certa ambiguidade por meio da qual se

encontra valor estético e arranjo formal com composição inteligente, confirma a

regra que a epopeia literária, em contrapartida ao popular, “[...] não medra no

fastígio das nações ou das causas, mas no seu declínio”, enfatiza o estudioso,

porque Durão celebra Caramuru quando o domínio de Portugal no Brasil iniciava os

primordiais sinais de declínio, e o sistema colonial se contradizia às realidades

sociais locais, como se pode ver através da construção de uma literatura nacional.

Houve uma construção na consciência da classe que regia, havendo

discernimento com clareza da existência de uma tradição histórica, no Brasil,

explicando a individualidade política brasileira. Este foi o momento em que houve a

passagem da consciência de uma tradição para a vantagem em sentido de nação

pela classe dominante, que nela acharia explicações plausíveis à Independência, diz

Candido (2000, p. 159).

O aspecto externo se incorporou no interno, no que tange à dimensão de

proporções da epopeia, pois a visão de que o Brasil é grandioso e eufórico em sua

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natureza funciona como espaço de muitos feitos e acrescenta uma dimensão a

essas proporções. Antonio Candido confirma esse apontamento.

A realidade social é relevante, mais uma vez, mostrando que o índio

significava pureza sem malícias, fornecendo, a mulher indígena, encantamento ao

europeu branco. A colonização, além do índio e da natureza, são os três itens

fundamentais da questão da construção geral constitutiva dos ativos e estruturais

princípios, chamando a atenção à ambiguidade, a qual se alude a um elemento

essencial na organização de Caramuru, fazendo menção à colonização dos

portugueses que representa a justificação do homem brasileiro, “[...] que começava

a ter consciência da sua individualidade” (CANDIDO, 2000, p. 161).

Logo, Candido (2000, p. 162) comenta que a literatura

[...] é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra (CANDIDO, 2000, p. 162).

Ainda falando a respeito de Caramuru, o personagem de Diogo é paradigma

da união das culturas as quais compuseram a sociedade do Brasil e dialogaram em

pé de iguais condições, muitas vezes, até que a do Ocidente ganhasse preferência

em todos os âmbitos, a partir de meados do século XVIII, ressaltando-se a

perspectiva da formação e função histórica brasileiras, à Candido (2000, p. 165).

Contudo, o poema mencionado acima e publicado em 1781 não foi destinado de

modo bem sucedido, pois não foi aceito com muita vontade, ou sequer simpatia.

Houve uma concentração de interesses na época do Romantismo, a qual foi notada

pelas manifestações pessoais dos autores, louvadores do poema e seu

nacionalismo que traz inspirações (CANDIDO, 2000, p. 170).

Pode-se chegar à conclusão de que “[...] o estudo da função histórico-

literária de uma obra só adquire pleno significado quando referido intimamente à sua

estrutura, superando-se deste modo o hiato frequentemente aberto entre a

investigação histórica e as orientações estéticas” (CANDIDO, 2000, p. 172),

enfatizando a ambiguidade presente em Caramuru e o valor estético do poema, com

seu arranjo formal e criação composta sábia.

André Mendes Capraro (s.d), em “História e literatura: proximidades na

fronteira”, destaca que a teoria de Candido pode ajudar ao contraponto do dualismo

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acadêmico entre reflexo social e autonomia artística, sendo que propõe, em

Literatura e Sociedade o uso da literatura como um recurso de saber crítico, com

uma abordagem semelhante à sociologia literária. Nesse sentido, destaca-se que:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; é que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinavam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se portanto, interno (CANDIDO, 2000, p. 04 apud CAPRARO, s.d, p. 03).

Para Capraro (s.d), esse diagnóstico do interno ocorre através do

entendimento do conjunto da produção do escritor, ou seja, as temáticas frequentes,

a forma de compreensão do tema, a facilidade ou dificuldade em mudar de opinião,

por fim, a “personalidade” literária. De acordo com os postulados de Candido, no

processo de análise na dimensão social em uma obra literária, deve-se promover

uma interpretação que leve em conta com afinco a estética, incorporando a

“dimensão social” como conteúdo da obra, o que denota que toda obra, nessa

perspectiva, tem uma dimensão social. Dessa forma, Candido (2000, p. 07) diz que

“o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica para ser apenas

crítica.”

Capraro (s.d) explana que a literatura deve ser compreendida analiticamente

como um objeto que estabelece diálogos com o contexto, sendo essa correlação

sempre construída nas obras:

[...] a interpretação do contexto social pelo autor e sua manifestação artística latente na obra. Esta exposição se dá em diferentes graus, dependendo de uma série de fatores extrínsecos e intrínsecos ao autor, como a corrente literária a qual pertence, o gênero literário de sua preferência, o “local” de onde se manifesta, seu círculo de relacionamentos intelectuais, afetivos e familiares, sua condição de vida – tanto no passado (a infância e a juventude), quanto no presente (exercendo o ofício de escritor) – entre outros fatores (CAPRARO, s.d, p. 04).

Enfim, essas proposições de Candido e Capraro, embora sejam

exemplificadas com a literatura brasileira, podem ser associadas a outras literaturas,

como a africana, que também dialoga com os condicionamentos sociais que a

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origina, na medida em que fazem essa ligação entre literatura e sociedade, uma vez

que as ideias desses autores podem ser usadas para análises de obras africanas.

1.2 Sociedade africana e literatura: o cenário em Moçambique

No texto denominado “Panorama das literaturas africanas de língua

portuguesa” (s.d), de autoria de Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha

Taborda Moreira, afirma-se que o surgimento das literaturas de língua portuguesa no

continente africano é resultado de uma caminhada histórica longa de,

aproximadamente, quinhentos anos de assimilação. Esta seria de parte a parte:

tanto dos africanos quanto dos portugueses, por um lado, e, por outro, de um

processo de conscientização iniciado nos anos 40 e 50 do século XIX. Há nesse

sentido uma relação com o grau de desenvolvimento cultural nas ex-colônias e com

o aparecimento de um jornalismo polêmico e ativo, o qual se calcava em uma crítica

dura à máquina colonial, destoando do espaçamento geral. Surgem assim os

primeiros registros da literatura africana na modalidade escrita.

Algumas dessas manifestações literárias dessa época podem ser

acompanhadas em algumas publicações, por exemplo, Almanach de lembranças e

nos números vários do Almanach de lembranças luso-brasileiro, segundo o que

explicam Fonseca e Moreira (s.d) ao destacarem que “[...] Gerald Moser pesquisou

esses livrinhos, na biblioteca da Pennsylvania State University, EUA, e publicou, em

1993, o Almanach de lembranças (1854-1932)” (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 01).

Nessa publicação, Moser dá destaque a características do material de pesquisa, que

constava de uma elaboração literária inspirada em moldes da Europa e continha,

também, relíquias amostras dos hábitos tradicionais de vários países africanos de

língua portuguesa. “Como bem acentua Moser (1993, p. 27), ‘os livrinhos do velho

Almanach de lembranças luso-brasileiro contêm, sob capa modesta, um arquivo

único [...] como referência à vida literária da África de expressão portuguesa, de

1854 para diante’” (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 01).

Até a Independência dos países africanos colonizados por Portugal, os quais

incluem Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, o

escritor africano vivia no meio de duas realidades às quais não devia estar alheio, ,

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ou seja, a sociedade africana e a sociedade colonial, conforme a pesquisa feita

pelas mencionadas autoras:

A escrita literária expressava a tensão existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma língua europeia, era um “homem-de-dois-mundos”, e a sua escrita, de forma mais intensa ou não, registrava a tensão nascida da utilização da língua portuguesa em realidades bastante complexas. Ao produzir literatura, os escritores forçosamente transitavam pelos dois espaços, pois assumiam as heranças oriundas de movimentos e correntes literárias da Europa e das Américas e as manifestações advindas do contato com as línguas locais. Esse embate que se realizou no campo da linguagem literária foi o impulso gerador de projetos literários característicos dos cinco países africanos que assumiram o português como língua oficial (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 02).

Fonseca e Moreira (s.d) sublinham que Manuel Ferreira (1989b) discute a

emergência literária, sobretudo da poesia, nos campos africanos de colonização

portuguesa, fazendo proposta de observação de quatro instantes. O primeiro retrata

o escritor em estado quase absoluto de alienação, no qual há a alienação cultural,

uma vez que seus textos poderiam ter sido produzidos em outro lugar qualquer do

mundo. O segundo corresponde à fase na qual o escritor manifesta a percepção da

realidade, e seu discurso mostra a influência exercida pelo meio juntamente com os

primeiros sinais de sentimento de nação: a dor de ser negro, o indigenismo e o

negrismo. O terceiro é no qual o escritor toma consciência de colonizado, consoante

Fonseca e Moreira (s.d, p. 02).

A literatura cria raiz em meio ao espaço geográfico e sociocultural, sendo o

momento em que há desalienação e discurso de rebeldia. O quarto momento é

correspondente à fase histórica da independência do país, época em que se dá a

reconstituição do individualismo pleno do escritor africano, pois é o momento da

produção textual em liberdade, em criatividade, em surgimento de outros assuntos

temáticos, como o do mestiço, o da identificação com o continente africano e o do

orgulho nacional conquistado, de acordo com Fonseca e Moreira (s.d, p. 02).

Segundo Manuel Ferreira (1989b apud FONSECA; MOREIRA, s.d), o

entendimento da literatura africana passa pela compreensão da perspectiva

dinâmica que orienta a produção literária, que faz com que esses momentos não

sejam rígidos nem inflexíveis e permite que um escritor, muitas vezes, atravesse

dois ou três deles: no espaço ontológico e de criatividade poética do escritor movem-

se valores do colonizador que são dados adquiridos, funcionam valores culturais de

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origem e há sempre a consciência de valores que se perderam e que é necessário

ressuscitar (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 02).

Segundo Pires Laranjeira, em Literaturas africanas de expressão portuguesa

(1995), os dois primeiros períodos literários moçambicanos podem ser considerados

de preparação, sendo que se caracterizam pela fase de Incipiência, “um quase

deserto secular, que se modifica com a introdução do prelo, no ano de 1854, mas

sem os resultados literários verificados em Angola.” (LARANJEIRA, 1995, p. 256).

A segunda fase é a de Prelúdio, em que Rui de Noronha, poeta, ultrapassa

os resquícios do terceiro romantismo, quando se apropria de temáticas e imagens

consoante um estratagema textual e ideológico que assumia os primórdios

contornos de uma moçambicanidade calcada na História bem como no manancial

étnico, conforme Laranjeira (1995, p. 258). Isso denota que, aproximadamente duas

décadas, a literatura moçambicana terá alcance de autonomia definitiva no seio da

língua portuguesa.

O terceiro período é o da Formação da literatura de Moçambique, no qual há

uma consciência grupal nos escritores, tocados pelo Neo-realismo e, a partir de

1950, pela Négritude, como salienta Laranjeira (1995, p. 260).

O quarto período é o momento em que ocorre o Desenvolvimento da

literatura, o qual se caracteriza pela coexistência de uma atividade cultural intensa e

também literária no ghetto, no hinterland, segundo frisa Laranjeira (1995, p. 261).

Além dessa divisão de momentos específicos que trazem tendências

literárias africanas, Ana Mafalda Leite, em Literaturas africanas e formulações pós-

coloniais (2003), comenta alguns traços que caracterizam essa produção:

“[...] as literaturas africanas, como resultado da combinatória com narrativas tradicionais orais, oferecem alternativas à maneira de conceber a estrutura narrativa; ao incluírem muitas formas de arte performativa, como o provérbio, o canto, a dramatização, criam uma discussão transcultural acerca da estrutura e das formas” (LEITE, 2003, p. 27).

Rita Chaves, em Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios

literários (2005), salienta que a literatura, com vínculos muito fortes com a História,

funciona como um espelho de dinamismo de convulsões vivenciadas pelos povos

respectivos (CHAVES, 2005, p. 250), uma vez que os africanos recorriam e

reincorporavam a língua portuguesa, realizando com ela a participação da

transformação, em um mecanismo no qual há percepção de atenção ao alerta de

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Frantz Fanon na abordagem da questão da expressão político-cultural dos africanos

compromissados com a Independência de seus países (CHAVES, 2005, p. 256).

Chaves (2005) ainda destaca que o pensamento de afro-latinidade “[...]

como uma resposta à massificação que os ventos da globalização vêm impondo, só

pode repercutir se, retomando a utopia que cercou a atmosfera das independências

africanas, apostarmos numa ideia de identidade plural, contrariando, inclusive, o

raciocínio, [...]” (CHAVES, 2005, p. 261).

Fonseca e Moreira (s.d) frisam que Patrick Chabal (1994), numa perspectiva

de cunho mais historicista, alude à relação do escritor africano com a oralidade e

sugere quatro fases abrangentes das literaturas africanas de língua portuguesa,

sendo que a primeira é chamada de assimilação. Nesta, são incluídos os escritores

africanos que fazem textos literários imitando, sobretudo, modelos de escrita

provenientes da Europa. A outra fase, e seguinte, é a da resistência, na qual o

escritor africano é responsável pela construção e defesa da cultura africana; na qual

há rompimento com os moldes da Europa e da conscientização definitiva do que o

homem africano tem. A fase, essa, coincide com a conscientização da africanidade,

sob o amparo da negritude de Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Senghor.

A terceira fase das literaturas africanas de língua portuguesa é coincidida

com o tempo da afirmação do escritor africano como tal; isto ocorre depois do

processo de Independência. Nessa etapa, o escritor “[...] procura marcar o seu lugar

na sociedade e definir a sua posição nas sociedades pós-coloniais em que vive”

(FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 03). Já a quarta fase, que é a atual, é a da

consolidação, segundo as autoras, dos afazeres que se fizeram em termos literários,

momento em que os escritores visam traçar os caminhos novos ao futuro da

literatura dentro das coordenadas de cada país, ao mesmo tempo em que fazem

esforços para garantir o espaço que lhes compete no quadro literário universal às

literaturas nacionais.

Em Moçambique, o processo de formação da literatura não é distinto do dos

demais países lusófonos da África, pois presenciou a construção de uma elite de

alguns negros, brancos e mestiços, nas cidades de Beira e Lourenço Marques (atual

Maputo); elite que se adonou, lentamente, dos canais e centros administrativos

poderosos. Os jornais, portanto, foram os alicerces iniciais, consoante Fonseca e

Moreira (s.d, p. 27). Eles desempenharam, como em Angola, um destacado papel na

divulgação das ideias adversas ao colonialismo; o jornal O Africano, fundado em

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1909, pelos irmãos João e José Albasini, com edição em português e ronga. Esses

irmãos, no ano de 1918, fundaram O Brado Africano, órgão oficial do Grêmio

Africano Associação Africana. Em 1932 o jornal, impedido de seu funcionamento, foi

substituído por Clamor Africano, o qual teve 12 números e foi produzido por José

Albasini, sendo que, em 1933, O Brado Africano circulou novamente, mas a partir de

1958 até o seu encerramento, em 1974, seu funcionamento esteve subordinado a

várias influências oficiais (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 27).

Ainda em relação a esse processo inicial da literatura em Moçambique, é

possível destacar que

No final da década de 40 e início da década de 50 Moçambique assistiu a um período de afirmação de um projeto literário, que está registrado em textos publicados em livros e em jornais. Destaca-se a importância, para a afirmação da literatura moçambicana, de projetos como o da revista Msaho (fundado em 1952), cujo nome se relaciona com um canto do povo, em língua chope, e o do jornal Paralelo 20 (1957 a 1961) (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 27).

O jornal Voz de Moçambique foi o meio de comunicação veiculado entre os

anos de 1959 e1975, sendo o mais importante para a publicação de textos literários.

Em muitos deles, há tendências que revelam o contato dos autores com a Europa e

o Brasil, destacando-se nomes ilustres como Adalgisa Nery, Cecília Meireles, Érico

Veríssimo, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego e Castro Alves, que

eram os escritores brasileiros que mais circulavam no meio literário, conforme

Fonseca e Moreira (s.d, p. 28).

Noémia de Souza, José Craveirinha (o maior poeta do país), Luís Bernardo

Honwana (que escreveu Nós matamos o cão tinhoso), Rui Knopfli, Virgílio de Lemos

e Rui Nogar são os principais escritores de Moçambique, direcionados a

movimentos que marcaram o panorama da literatura moçambicana dos anos 40 e

50, cuja repercussão pode ser vista na poesia do pós-independência, salientam as

autoras acima citadas (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 28).

Há, pelo menos, três fases no processo de construção da literatura de

Moçambique: a fase colonial, a nacional e a pós-colonial. Na primeira, Rui de

Noronha, Augusto Conrado, João Dias e Luís Bernardo Honwana se destacam como

precursores da literatura do país, merecendo destaque Rui de Noronha, com o livro

Sonetos, do ano 1943, publicado seis anos depois da sua morte.

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A sua poesia reveste-se de pioneirismo, não pela forma mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que constitui a primeira chamada de atenção para os problemas resultantes do domínio colonial. Rui de Noronha representa também uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos literários, o legado da tradição oral africana (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 28).

João Dias, com a coletânea de contos Godido e outros contos, de 1952, é

considerada a primeira obra de ficção, em Moçambique, devido à temática

explorada. Ele tenta desmascarar realidades concretas da sociedade, vinculadas ao

estatuto do africano tanto no contexto colonial quanto no espaço social português,

interessando a vertente do país, consubstanciada no conto mais longo e que dá

título à coletânea, destacando-se dos demais por causa de certos temas e modos de

representação, de acordo com Fonseca e Moreira (s.d, p. 28).

Desse modo, Godido conota a resistência do povo moçambicano ao invasor europeu, funcionando como símbolo das reivindicações sociais no espaço colonial português. A história incide no quotidiano de um negro, destacando-se o seu inconformismo num espaço rural marcado pela subserviência, humilhação e despersonalização e as suas frustrações num espaço urbano, lugar de sonhos e aspirações (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 28-29).

Questões sociais como de exploração, humilhação, racismo, humilhação

baseada na cor da pele, problemas de Moçambique, dentre outros, são ressaltados

nas histórias dos autores dessa fase literária africana, destacando-se os autores

Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Reinaldo Ferreira, Glória Sant’ Anna, António

Quadros, Sebastião Alba e Luís Carlos Patraquim. Dizem as autoras (s.d, p. 29) que

esses escritores “[...] contribuíram, de um modo decisivo, para a emergência da

literatura da ‘moçambicanidade.’” Ainda em relação ao que se denomina “literatura

colonial” de Moçambique, é preciso destacar as reflexões de Francisco Noa. Para o

autor,

Pensar a literatura colonial implica ter como pano de fundo um processo histórico (a colonização) e um sistema (o colonialismo). Inevitavelmente, a literatura colonial acaba por ser ou co-actuante ou consequência de um fenômeno que tem subjacentes motivos de ordem psicológica, social, cultural, ideológica, estética, ética, econômica, religiosa e política (NOA, 1999, p. 60).

Muitas têm sido as compreensões acerca da especificidade da literatura

colonial. Augusto dos Santos Abranches (1947) procura defini-la, destacando que

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Antes de mais nada, entenda-se que, por “literatura colonial”, nos referimos à que pretende contar as reacções do branco perante o meio-ambiente do negro, isto é: a toda essa espécie de descrição mais ou menos ficcionista que nos introduz perante as pessoas imaginariamente vindas de ambientes culturais desenvolvidos, civilizados, para meios-ambientes primitivos (ABRANCHES, 1947, p. 03, apud NOA, 1999, p. 61).

Noa menciona outro estudioso, Salvato Trigo (1987), quando este diz que

a literatura colonial caracteriza-se justamente pelo facto de os seus cultores não abdicarem da sua identidade, das referências culturais e civilizacionais dos seus países, embora tentem mostrar-se integrados no meio e na sociedade nova de que fazem parte (TRIGO, 1987, p. 144-145, apud NOA, 1999, p. 62).

Dessa forma, a literatura colonial quer ser, fundamentalmente, um hino de

exaltação à civilização colonizadora, ao país do colono e às cidades, cujas

atividades de heroicidade e de aventuras, de estoicismo e de humanidade se

classificam como, geralmente, encaixadas por uma visão maniqueísta da vida e do

mundo que as envolve, segundo Trigo (1987, p. 145, apud NOA, 1999, p. 62).

Edward Said (1994, p. 166 apud NOA, 1999, p. 62) afirma que esse tipo de

literatura “efectivamente silencia o Outro, reconstitui a diferença como identidade,

regula e representa espaços dominados por forças de ocupação, e não por

habitantes inactivos.” Noa (1999, p. 62-63) diz que essa literatura é toda a produção

fictícia processada em “situação colonial”, tradutora da visão do mundo do

colonizador sendo, assim, a visão do mundo dominante, em contrapartida a outras

visões do mundo latentes ou dificilmente mostradas, invariavelmente distorcidas ou

manipuladas e fazendo representação de tipos humanos que se degeneraram, não

sendo, então, por acaso que a fala colonial é autojustificativa, essencialmente. A

literatura colonial pode ser analisada, portanto, devido a modos inequivocamente

rudimentares, como enunciação praticamente transparente de motivações

ideológicas e políticas, não se avaliando de maneira geral nem minimalista, porque

ela irá tendo conhecimento de um processo evolutivo irrecusável, tanto na forma

quanto nos temas, uma vez que denunciará percepções e representações

extremamente reveladoras da sociedade bem como e da imaginação coloniais, para

Noa (1999, p. 63).

A fase nacionalista é a da produção de uma literatura de cunho político e de

combate, cultivada por escritores militantes da Frente de Libertação de Moçambique

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(FRELIMO). São destaques Rui Nogar, Marcelino dos Santos, juntamente com

Orlando Mendes. Trata-se de uma literatura de cunho político e, algumas vezes,

partidário. As obras Portagem (1965), de Orlando Mendes, e Silêncio escancarado

(1982), de Rui Nogar, são ressaltadas, quanto á estética, sendo que aquela é o

primeiro romance moçambicano devido à perspectiva crítica relacionando-se “[...] às

estruturas coloniais e da abordagem, sem subterfúgios, do drama de um mulato em

choque com a sociedade de brancos e de negros, minada pela presença do

europeu.” (FONSECA, MOREIRA, s.d, p. 30).

Tendo em conta o fator da nacionalidade surgem, em Moçambique,

escritores de número relevante, como nos demais países, sendo escritores que

forjam a consciência do que ser moçambicano é, no contexto primeiro da África e,

após, do mundo. Encontram-se, dentre os principais autores dessa literatura, José

Craveirinha, Noémia de Souza, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Ungulani Ba Ka

Khosa e Mia Couto, destacam as acima citadas autoras (s.d, p. 31).

José Craveirinha é a figura que mais se destaca na poesia da

moçambicanidade e é referência obrigatória em toda literatura africana, como se

pode averiguar neste trecho:

A poesia de Craveirinha engloba todas as fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até praticamente os nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social, política, uma poesia de prisão, uma poesia carregada de marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande pendor lírico e intimista (FONSECA, MOREIRA, s.d, p. 31).

A literatura da fase pós-independência ou pós-colonial desvia-se do viés do

coletivo, pois os autores assumem uma tonalidade individual e intimista a fim de

relatar sua experiência pós-colonial. São destaques, dentre os escritores desse

período: Ungulani Ba Ka Khosa, Mia Couto, Luís Carlos Patraquim, Paulina

Chiziane, Suleiman Cassamo e Lília Momplé, segundo as autoras(s.d, p. 31-32).

Mia Couto, para as autoras (s.d, p. 32), transfere a sua capacidade poética à

ficção. Seu nome completo é Antônio Emílio Leite Couto e é considerado um dos

escritores mais conhecidos e reconhecidos da África e da língua portuguesa.

Escreveu Cronicando (1988), Cada homem é uma raça (1990), Estórias

abensonhadas (1994), Contos do nascer da terra (1997), dentre tantos de suma

importância à literatura moçambicana, transitando entre variados gêneros literários.

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É destacado o insólito, acompanhado por episódios satíricos, a decadência

social, bem como a tradição oral africana.

Nas narrativas de Mia Couto chama a atenção o motivo comum que atravessa sua escrita: a profunda crise econômica e cultural que acompanha o quotidiano da sociedade moçambicana, durante e depois da guerra civil, ou seja, após a independência nacional. Suas obras problematizam a instabilidade na qual está mergulhado o povo moçambicano, a corrupção em todos os níveis do poder, as injustiças como consequência de um racismo étnico, a subserviência perante o estrangeirismo, a perplexidade face às rápidas mudanças sociais, o desrespeito pelos valores tradicionais, a despersonalização, a miséria (FONSECA; MOREIRA, s.d, p. 33).

Maria Geralda de Miranda, em “Literaturas Angolana e Moçambicana:

espelho da resistência e da disposição de construir um novo tempo” (2009), a

respeito da relação do romance Quem me dera ser onda, do angolano Manuel Rui

(1991), em se tratando da questão da crítica aos desvios do projeto original

socialista em Angola dada através da relação simbólica das crianças da história com

um animal, um porco, diz que

Assim também é o povo diante de suas bandeiras sociais e/ou políticas. Assim é o pendor revolucionário. A chama que aquece as ideias e que as leva ao plano das ações. Não há revolução sem utopia e sem emoção e, obviamente, sem tática e estratégia política e militar. O povo emocionalmente envolvido em uma luta é um mar com ondas altas e forte arrebentação (MIRANDA, 2009, p. 02).

A luta também foi pela exclusão do colonizador e pela implantação do

estado-nação que divulgasse a paz e que fizesse correção às desigualdades sociais

imensas promovidas pela administração da colonização no decorrer de séculos, em

se tratando dos países africanos de língua portuguesa, de acordo com Miranda

(2009, p. 02). Mas isso não aconteceu; a burocracia estatal e a corrupção não deram

espaço a isso. A luta das personagens da história, dos meninos, se refere à

resistência aos desmandos dos dirigentes do condomínio, porém, no patamar

alegórico, se trata da luta pela liberdade, pela sobrevivência, por distribuição de

renda, a qual as autoridades de Angola pós-revolucionárias não promoveram.

Miranda salienta que

O sonho de uma sociedade em que não imperasse a propriedade privada e a injusta divisão das classes sociais já fazia parte do imaginário do homem ocidental. Alguns autores dizem que o livro do inglês More inspirou Marx e também toda uma plêiade de socialistas utópicos e sempre foi considerado um texto básico para os estudiosos das ideias marxistas (MIRANDA, 2009, p. 03).

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Ainda quanto a essa literatura pós-colonial, vale ressaltar as reflexões de

Ana Mafalda Leite apresentadas no livro Literaturas Africanas e Formulações Pós-

Coloniais (2003), quando salienta que falar de lusofonia e de pós-colonialismo ou da

adequação das teorias pós-coloniais às literaturas africanas de língua portuguesa

não é campo muito “conceptualizado”, ainda, sublinhando que o pós-colonialismo se

trata de um “caminho crítico e teórico”:

Depois da segunda guerra mundial o termo “post-colonial state”, usado pelos historiadores, designa os países recém independentes, como um claro sentido cronológico. No entanto, “post-colonial”, a partir dos anos setenta, é termo usado pela crítica, em diversas áreas de estudo, para discutir os efeitos culturais da colonização. Terry Eagleton considera que somos pós-românticos, produtos dessa época, mais do que sucessores dela; considerado neste sentido, pós-colonial não designa um conceito histórico ou diacrónico, mas antes um conceito analítico que reenvia às literaturas que nasceram num contexto marcado pela colonização europeia (LEITE, 2003, p. 11).

A crítica do pós-colonialismo leva em consideração as maneiras e as

temáticas imperiais enfraquecidas, se esforça por combater e rebater, contestar as

suas categorias, propondo um novo modo de ver o mundo, caracterizado pela

coexistência e ajustes de línguas e de culturas, de acordo com Leite (2003, p. 11).

O termo Pós-colonialismo pode entender-se como incluindo todas as estratégias discursivas e performativas (criativas, críticas e teóricas) que frustram a visão colonial, incluindo, obviamente, a época colonial; o termo é passível de englobar além dos escritos provenientes das ex-colônias da Europa, o conjunto de práticas discursivas, em que predomina a resistência às ideologias colonialistas, implicando um alargamento do corpus, capaz de incluir outra textualidade que não apenas das literaturas emergentes, como o caso de textos literários da ex-metrópole, reveladores de sentidos críticos sobre o colonialismo (LEITE, 2003, p. 11).

O pós-colonialismo tem sua realidade fundadora no colonialismo britânico.

Na área das pesquisas em literatura inicia o seu desenvolvimento a partir dos anos

60, com a revisão das novas literaturas elaboradas pela “commonwealth”, sua

integração nos curricula, juntamente com a aparição de editoras promovedoras da

publicação de autores vindos da África, da Índia e de outros lugares ex-colônias

britânicas, consoante Leite (2003, p. 11).

As pesquisas teóricas do período pós-colonialismo tentam encaixar as

condições de produção e os contextos socioculturais nos quais se desenvolvem as

literaturas novas. “Evitam tratá-las como extensões da literatura europeia e avaliar a

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originalidade destas obras, de acordo com uma norma ocidental, despreocupada ou

desconhecendo o seu enraizamento” (LEITE, 2003, p. 12).

Moçambique adotou modelos político-administrativos e organizacionais

estatais acordando com os modelos da Europa, mas sem levar em conta a história e

as imbricações culturais heterogêneas de viver do seu povo, destaca Miranda (2009,

p. 05). Mia Couto (2005), no país, aborda diversificados temas atuais, “[...] sem

escamotear posturas político-ideológicas, o que nos leva a afirmar, a partir de tais

escritores, que a literatura africana continua apontando para uma nova humanidade.

[...].” (MIRANDA, 2009, p. 05). Mia Couto diz que “Passamos de um período em que

os nossos heróis acabam sempre mortos (...) para outro tempo em que os heróis já

nem sequer nascem.”, na cerimônia de atribuição do Prêmio Internacional dos 12

Melhores Romances de África, Cape Town, Julho de 2002, salientando, ainda, que

aguardam a renovação de um estado de paixão já experimentada, esperando pelo

reacender do amor entre a nação e a escrita durante casa feita para os sonhos.

A título de exemplificação dessa discussão, salienta-se a escrita de Mia

Couto no romance O último vôo do flamingo (COUTO, 2005). Nesse romance, há

um mapeamento literário dos tempos atuais, explana-se sobre a decadência do

socialismo real, com imagem relevante. O viés político na literatura de Mia Couto é

pontuado da seguinte forma:

Não há dúvidas de que a história de Mia Couto mostra que além dos poderes políticos e das classes sociais, da vontade de potência e da representação arbitrária das normas coletivas, existe toda uma vasta rede de capilaridade que, por um lado, confirmam as experiências de contra-poder e revolta que desmontam os poderosos. O discurso do escritor, que alguns críticos dizem ser realista-maravilhoso, constrói um novo referente, para que se possa reconstruir a história deixada de lado ou encoberta e que também permite recuperar marcas perdidas ou esquecidas (MIRANDA, 2009, p. 06).

Sobre isso, o livro de Mia não deixa de representar a não utopia e a

melancolia de uma época descansada, uma vez que é um tempo de ausências,

como diria o próprio autor e frisa Miranda (2009, p. 06). “Mas também o texto deixa

indicado que o flamingo precisa voltar para acabar com a noite se apoderou de

Tizangara, metáfora de Moçambique, e que fez a nação desaparecer.” (MIRANDA,

2009, p. 06). Mia Couto denuncia, além desses pontos, a corrupção, como se pode

ver em Cada homem é uma raça (1990), no qual o autor se baseia na deterioração

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do tecido administrativo de Moçambique, desmascarando o lado corrupto do país.

Conforme exposição de Miranda,

As literaturas de Angola e de Moçambique carregam desde o período colonial os tons da realidade destes países, as esperanças de seus povos, as angústias advindas dos conflitos de colonizador contra colonizado, de negro contra negro, buscam retratar a vida das tribos, as raízes de suas culturas ancestrais. Buscam mais ainda: retratar o novo rosto de seus povos. Rosto este construído em entrelaçamentos de negros com negros, negros com indianos, negros do norte da África com negros da África subsaariana, europeus e negros e de todos estes entre si. Tais literaturas procuram ainda, como uma espécie de compromisso ou missão, espelhar o político, sem escamoteá-lo, trabalhar o estético, sem separá-lo das questões mundanas, como diria Edward W. Said, em Cultura e imperialismo (MIRANDA, 2009, p. 06).

Em referência à obra de escritores moçambicanos e o diálogo que

estabelecem com o respectivo contexto de produção, Flavia Paiani (2013) frisa que

“[...] ainda que o autor acredite que a condição social não determine se um indivíduo

irá tornar-se escritor, o escritor em Moçambique provém de uma elite urbana letrada,

cuja condição social contrasta com a da maioria da população” (PAIANI, 2013, p.

26).

Essas literaturas refletem, ainda, acerca de pressupostos fundamentais do

povo africano, o que denota que, antigamente, focaram na denúncia do sistema

colonial e a fé e a esperança de elaboração do socialismo, a fé no percurso que

levaria à crendice de que os anos de batalha na guerrilha e as vidas humanas

perdidas no embate com os exércitos da colônia nasceriam hinos e bandeiras

representativas da autodeterminação popular, segundo Miranda (2009, p. 07).

Em um mundo globalizado, as literaturas transparecem os contrapontos e os

desafios vivenciados pelos povos africanos, criticando as elites que dirigem o país e

desmascarando os motivos desencadeadores dos projetos da utopia que

naufragaram, além de resgatar itens importantes e culturais, trazendo os desenhos e

nuances aos livros, de onde é ouvido o tambor africano, pois, para Miranda (2009, p.

07), lança o texto africano “[...] no caleidoscópio de culturas do mundo globalizado.

O mais importante, portanto, é que na tessitura de palavras e na exposição das

contradições, os germes de esperança ganham novos contornos e novas formas de

luta vão sendo evidenciadas.”

Ana Belén García Benito (2008) salienta que “Tanto a Literatura como a

História baseiam-se em interpretações, visto a sua escrita fazer-se a partir da leitura

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da realidade” (BENITO, 2008, p. 233), sendo que um livro será literário ou histórico

em função do estatuto que é atribuído a ele, diz a autora, uma vez que “[...] a difícil

distinção entre discurso histórico e discurso literário é ainda mais complexa no caso

da literatura africana em geral e na narrativa moçambicana em particular [...]”

(BENITO, 2008, p. 233). Considerando esses pressupostos, a literatura nacional

moçambicana constitui-se como uma literatura na qual há preparação da

independência e não o contrário disso.

No caso específico de textos literários de Mia Couto, acredita-se que há uma

fecubda exploração da História, pois, segundo Benito (2008, p. 237), há um

interesse em reconstruir a identidade do povo de Moçambique, a partir de fatos

históricos: a Revolução dos Cravos, que se deu em 25 de Abril de 1974, em

Portugal. A obra parece ser como a focalização da data de 25 de Abril com base nas

colônias africanas, mais precisamente de Moçambique. O escritor escreveu Vinte e

Zinco (1999), por exemplo, estabelecendo claras correlações com o 25 de abril.

Sobre esse aspecto comenta Benito (2008):

longe de escrever uma obra para comemorar o 25 de Abril, escreve-a para dizer que as comemorações ficam para os portugueses, pois aos moçambicanos resta-lhes apenas esperar pela chegada dum tempo novo, com menos miséria e mais desenvolvimento para o povo. Em Moçambique não faz sentido celebrar o 25 de Abril, pois após a independência, apenas mudou a cor da pele dos poderosos; a situação de miséria continua. No entanto, algum dia será possível falar numa verdadeira revolução. A intencionalidade é clara: dizer aos portugueses que comemorem eles as datas da “sua” História, e pedir aos moçambicanos para construírem a própria História [...] (BENITO, 2008, p. 240).

É na conjuntura social da época contemporânea que surge, em

Moçambique, o autor Mia Couto. Ele tem o propósito de “[...] reconstruir a identidade

dos moçambicanos [...]”, como comenta Ana Belén García Benito (2008). O autor vê

o passado com o intuito de originar um futuro, além de usar a “[...] ‘estória’ como

gênero que, no contexto africano, torna mais forte, e ao mesmo tempo mais

complexa, a relação História-Literatura” (BENITO, 2008, p. 251). Pensando nessas

questões de diálogo, cabe então refletir como eles se constroem em contos da

antologia O fio das missangas; no entanto, é preciso ainda contextualizar de forma

mais precisa o contexto de produção literária de Mia Couto, o que será objeto de

reflexão no próximo capítulo.

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2. MIA COUTO: OBRA E SOCIEDADE

2.1 Apresentação do autor

Antes de uma apresentação de Mia Couto, é preciso observar que o escritor é

proveniente do contexto africano, mais precisamente de Moçambique, país

localizado na África Austral, na costa do Oceano Índico, possuindo cerca de 20

milhões de habitantes. Foi colonizado por Portugal, que o fez colônia por diversas

décadas (até 1975 quando o país conquista sua independência depois de 10 anos

de guerra civil), impondo sua cultura e sua língua ao nativo. Moçambique, integrante

dos países africanos que têm a língua portuguesa como idioma oficial – PALOP-, é

cenário para muitas obras literárias escritas em língua portuguesa, como as de Mia

Couto, um dos mais prestigiados autores moçambicanos.

Em sua dissertação intitulada Literatura, história e memória em O último voo

do flamingo, de Mia Couto (2013), Vanessa Fritzen faz a apresentação do autor,

dizendo que seu nome de nascimento é António Emílio Leite Couto, contudo seu

nome popular é Mia Couto. Nasceu na cidade de Beira, em Moçambique, no dia 05

de julho do ano de 1955, sendo que desde pequeno gostava de escrita e leitura, fato

este que fez com que publicasse, aos quatorze anos de idade, seus primeiros

poemas em um jornal denominado Notícias da Beira.

Já em 1971, Mia Couto fez mudança para Maputo, começando a cursar

Medicina, porém não o concluiu. Na verdade, se tornou um dos membros da luta

anticolonialista chamada de Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO, em

Moçambique, consoante Fritzen (2013). A autora também salienta que a bibliografia

do autor é vasta, formada por poesias, contos, romances e crônicas

Vanessa Fritzen (2013), afirma que

Moçambique conquistou a independência no ano de 1975 e, a partir dessa data, Mia Couto passou a trabalhar como jornalista, período este que durou cerca de dez anos. Então, após deixar a carreira jornalística, Couto passou a cursar Biologia. Atualmente, além de professor universitário, também dedica tempo a pesquisas acerca de impactos ambientais de seu país. Cabe aqui ressaltar que apesar de seus diversificados estudos e trabalhos exercidos, o moçambicano, em momento algum, deixou de se dedicar à tarefa de escritor. Aliás, ele tem obtido muito sucesso em suas publicações,

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presentes em mais de vinte países e traduzidas para línguas como a inglesa, a francesa, a alemã, a italiana, entre várias outras. [...] (FRITZEN, 2013, p. 33).

Mia Couto tem sua obra traduzida - diz a autora supracitada, baseando-se em

Susan Aparecida de Oliveira (2009), para diversos idiomas e, além disso, é tradutor,

por si só, da história e da cultura moçambicanas para o mundo, pois em seus textos

há uma constante viagem pelas paisagens e lugares moçambicanos, percorrendo os

diversos tempos:

A viagem é uma metáfora rica e possível para captar e compor literariamente os nós dos encontros e desencontros desses espaços e tempos, bem como as insondáveis identidades moçambicanas que nesses nós vivem. Autor de muitas histórias abensonhadas, de várias brincriações com a língua portuguesa e outras interinvenções, Mia Couto modela a língua portuguesa expandindo-a em toda a sua plasticidade verbal. A escrita de Mia Couto forma imagens em tamanha profusão que reproduz a movência oral (OLIVEIRA, 2009, p. 01apud FRITZEN, 2013, p.33).

Ana Benito (2008, p. 237) salienta que Mia Couto utiliza a História ao compor

seus textos, com o objetivo de construir, novamente, a identidade dos

moçambicanos, revendo fatos históricos nacionais, para tanto, como é o caso de

Vinte e Zinco, no qual representa a Revolução dos Cravos acontecida na data de 25

de Abril de 1974, em Portugal. Benito (2008) diz que a obra de Mia “[...] centra-se

em factos que abrangem cronologicamente o período de 19 a 30 de Abril de 74, mas

é evidente que não se esgota neste objectivo, visto a obra oferecer a possibilidade

de várias leituras” (BENITO, 2008, p. 238).

Benito (2008) fala a respeito da obra de Mia Couto, frisando que ele, “[...]

através da paródia, dialoga criticamente relativizando os acontecimentos da

verdade, da História. Diálogo paródico que estabelece a ficção com a História,

desconstruindo uma história para construir outra” (BENITO, 2008, p. 239), uma vez

que a obra pode ser compreendida como uma mensagem do autor, “[...] no sentido

de a Revolução dos Cravos ter sido a revolução dos portugueses, não dos

moçambicanos” (BENITO, 2008, p. 239). “[...] O dia em que Moçambique comemore

a sua revolução ainda não chegou [...]” (BENITO, 2008, p. 240).

Flavia Paiani (2013) aponta que a habilidade de Mia Couto

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em relacionar na escrita literária a cultura eminentemente oral do país pode ser uma explicação de sua popularidade internacional. Para o autor, “a grande fronteira [em Moçambique] não é entre o analfabetismo e o alfabetismo” (COUTO, 2002), mas entre o universo da escrita e o universo da oralidade, da qual decorre sua maneira de escrever. Nas palavras de Couto (2002), “a maneira como eu escrevo nasce desta condição de que este é um país dominado pela oralidade” (PAIANI, 2013, p. 22).

Mas o que Mia Couto apresenta em suas obras? Começa pelo que é

considerado um dos doze melhores textos africanos do século XX (BACH, 2008, p.

01, apud FRITZEN, 2013, p. 34), ou seja, por Terra sonâmbula (1992), no qual se

narram dois enredos distintos. Muidinga é o personagem jovem desmemoriado

sobre a infância, não conhece seus pais, todavia o velho Tauhir o acolhe. À medida

que abandonam o campo de refugiados, passam a noite em um machibombo, que

são carros usados com o intuito de realizar transporte público. É ali em que Muidinga

acha os cadernos de Kindzu, denotando como há ênfase das superstições e da

tradição da África, “[...] cuja busca incessante pelo passado traz o sonho e a

realidade de mãos dadas” (FRITZEN, 2013, p. 34).

Em 1996, Mia Couto escreveu A varanda do Frangipani, em que há a

personagem Ermelindo Mucanga, um carpinteiro falecido às vésperas da

Independência de Portugal, na época em que trabalhava com a restauração da

Fortaleza de S. Nicolau. Mucanga é um “xipoco”, um fantasma que vive em uma

cova embaixo da árvore de frangipani, na varanda da fortaleza da colônia. Ele tem

pretensão de morrer e não se tornar herói nacional, como as autoridades gostariam

que fosse, entretanto, necessita “remorrer” e acata conselhos do tamanduá,

encarnando no inspetor de polícia Izidine Naíta. Esboçando uma escapada exótica

para uma nação em reconstrução, em que da varanda se nota a linha do horizonte,

a história do livro de Mia acontece vinte anos depois da Independência, após terem

selado a paz, em 1992. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002),

conforme resume Vanessa Fritzen (2013), reflete temas como cultura, religião,

política, entre outros, narrando itens que causam reflexão e segredos familiares que

circundam Marianinho, que volta ao seu lugar de origem por causa da morte de seu

avô, no qual ele não compartilha dos mesmos hábitos dos seus parentes e

conhecidos, notando, portanto, que angariou os hábitos dos brancos.

Outro romance de Mia Couto é Vinte e zinco, publicado em 1999, em que o

autor cria um elo entre o 25 de abril português, que é conhecido como a Revolução

dos Cravos, com a independência de Moçambique. Ele foi uma encomenda pela

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Editora Caminho, a fim de que fizesse referência à comemoração dos 25 anos da

Revolução dos Cravos (FRITZEN, 2013, p.34). Com a temática de abordar múltiplos

aspectos da condição feminina, tanto portuguesa quanto africana, no decorrer do

Estado Novo, bem como retratar o lado psicológico de um tempo em que havia

conflitos políticos marcantes, o livro é de suma importância no rol de obras do

escritor, pois faz menção a esses temas relevantes.

O último voo do flamingo (2000) aborda uma linguagem de certa maneira

irônica, denunciadora, que resgata os valores ancestrais, por vez se enquadrando

ao redor de acontecimentos estranhos (FRITZEN, 2013, p. 34). Já em O outro pé da

sereia, do ano de 2006, é observado o caráter crítico, de alegoria e de poesia com

que Mia Couto faz uso para o elaborar e realizar, também, o retrato da Moçambique

contemporânea, reverenciando duas situações históricas nas quais há questões

familiares, de etnias e religiões. O livro fala sobre a imagem de uma santa católica, a

Nossa Senhora, que encanta e causa perturbações a todos que chegam perto dela.

Moçambique, em 2002, é um país (dez anos após os acordos de paz entre forças

rebeldes e o governo), em recuperação, de acordo com o site Companhia das

Letras.

Um pastor e sua mulher, Mwadia Malunga, encontram uma imagem de Nossa Senhora nas margens de um rio da pequena localidade de Antigamente. O curandeiro do lugar diz que eles conspurcaram o espírito do rio e correm grande perigo. Mwadia decide então voltar a Vila Longe, onde deixara a família, para abrigar a estátua. Curiosamente, esta é a estátua que segue, 1560, com o jesuíta Gonçalo da Silveira, ao partir de Goa, na Índia, para converter ao cristianismo o imperador do Reino do Ouro, ou Monomotapa, situado na região fronteiriça entre os atuais Zimbábue e Moçambique. A imagem de Nossa Senhora é chamada pelos escravos da nau portuguesa de Kianda, uma divindade das águas (SITE COMPANHIA DAS LETRAS).

Em A chuva pasmada (2004), é vista a narrativa miacoutiana em terceira

pessoa, iniciada da seguinte forma: “De repente, numa aldeia africana, a chuva não

cai, fica suspensa, ‘pasmada’, diz um rapazinho da aldeia” (COUTO, 2004, p. 01

apud FRITZEN, 2013, p. 35). O acontecimento faz com que as personagens relatem

suas dificuldades, extrapolando-as, sendo que a temática da obra é o universo

mitológico no qual a história está inserida, na tentativa de preencher o espaçamento

no conhecimento dos saberes autóctones.

Quanto ao romance O beijo da palavrinha (2006), ressaltam-se os traços

infantil e juvenil de Mia Couto, uma vez que no livro recriam-se vários contos

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tradicionais africanos, sendo que a tradição não se contradiz ao moderno, pois

ambos se enredam no contexto social que representam. O texto fala de Maria

Poeirinha, moradora de uma aldeia cujo contexto social é medíocre. “Esse livro,

além de tratar de questões existenciais, também contribui para formação de leitores,

uma vez que apresenta um enredo simples, claro, e uma história instigante”

(FRITZEN, 2013, p. 36).

Já em A confissão da leoa (2012), que é o último livro que Mia publicou, vê-

se uma narração com base em acontecimentos verídicos. O referido autor foi

entrevistado por Eliana Silva, quando do lançamento de seu livro, na qual ela denota

que: “[d]urante as suas expedições enquanto biólogo ao norte de Moçambique, o

também escritor apercebeu-se de sucessivas mortes humanas provocadas por

ataques de leões” (SILVA, 2012, p.01 apud FRITZEN, 2013, p.36). Assim, veio à

tona a ideia de produzir este romance no qual, por meio da atividade da caça, Mia

Couto pretende metaforizar algo muito mais denso, utilizando os ataques de leões

para fazê-lo.

Em relação aos romances coutianos Antes de nascer o mundo (Jerusalém,

título original) (2009) e Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008). Obedecendo à

ordem cronológica, este tem caráter fantástico, pelo fato de que, como salienta

Vanessa Fritzen (2013), há uma estranha enfermidade que adoenta os moradores

de um pequeno lugarejo. Os temas mais pertinentes no livro são, além da AIDS, a

corrupção, o aborto, e a dicotomia modernidade/tradição. Referindo-se àquele, seu

enredo é envolvente: cinco homens se exilam por conta própria em uma vegetação

de Moçambique na qual não há habitação. Os poemas de Adélia Prado e de Hilda

Hist “embelezam” o enredo intrigante e fragmentado do autor, o qual mostra esses

homens velando a morte de uma mulher, num ontem que fora esquecido e num

amanhã duvidoso, sem esperança, consoante Vanessa Fritzen (2013, p. 36).

Sete livros o autor produziu com contos, que são importantes na literatura

moçambicana: Cada homem é uma raça (1990); Vozes anoitecidas (1986); Histórias

abensonhadas (1994); Na berma de nenhuma estrada (2001); Contos do nascer da

terra (1997); O fio das missangas (2003) e O gato e o escuro (2001). E produziu,

também, uma novela denominada Mar me quer (2000) e algumas crônicas, que são:

Cronicando: crônicas (1980); O país do queixa andar (2003); Pensatempos (2005); E

se Obama fosse africano?e Outras inter(in)venções (2009). Seus contos se norteiam

nas problemáticas marcantes da história moçambicana, as quais marcaram

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dramaticamente, como a questão do racismo bem como as minas terrestres, tão

temidas.

Mas, ainda assim, os contos refletem um sentimento por mudanças, em um período marcado por tanta brutalidade. Fato é que a violência e todos os males que se infligem a uma sociedade podem ser evidenciados de forma clara e direta, como também podem ser expostos entre o real e o fantástico, tornando os problemas sociais menos cruéis, mas, nem por isso, menos veementes; esta é a escrita coutiana (FRITZEN, 2013, p. 37).

Quanto à poesia, encontram-se as seguintes obras: Tradutor de chuvas

(2011), Raiz de orvalho (1983) e Raiz de orvalho e outros poemas (1999). A poesia

miacoutiana demonstra uma linguagem simplória, de significação profunda, devido à

harmonia que ocorre entre o conteúdo e a forma, sendo que, para cada pessoa que

o lê, o poema pode ser pessoal e universal, familiar e esquisito, “num universo em

que os afetos, o passado, o presente, e o futuro, são explorados de tal forma que da

sua aparente simplicidade é possível emergir em as mais diversas sensações e

emoções”, de acordo com Vanessa Fritzen (2013, p. 36-37). Mia Couto foi muito

premiado por causa de suas publicações. Obedecendo à ordem cronológica em que

recebeu as importantes premiações, tem-se: em 1991, o Prêmio Nacional Areosa

Pena, concedido pela Organização Nacional de Jornalistas; em 1995, o Prêmio

Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos; no ano seguinte,

1996, foi considerado um dos Melhores de 95, concedido pela Associação de

Críticos de Arte de São Paulo; o Prêmio Consagração, atribuído pela FUNDAC de

Maputo, se deu em 1999; também neste ano recebeu o Prêmio Vergílio Ferreira,

pelo conjunto da obra, conferido pela Universidade de Évora; ganhando pelo

romance mais bem escrito do Terceiro Mundo, na Dinamarca, o Prêmio Aloa, em

2000; o Prêmio Mário António, em 2001, referente ao livro O último voo do flamingo;

o Prêmio África Hoje, no ano de 2002; o Prêmio União Latina de Literaturas

Românticas, em 2007; o Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, na

Jornada Nacional de Literatura, neste mesmo ano e, por fim, o Prêmio Eduardo

Lourenço, em 2011, sendo que, em 1998, Mia Couto foi eleito sócio correspondente

da Academia Brasileira de letras, devido a suma importância de sua obra (FRITZEN,

2013, p. 37-38). Fritzen (2013) cita Manuel Halpern (2010), dizendo que o mesmo

comenta que a linguagem usada por Mia é muito criativa e com um léxico tão

peculiar, que se faz necessário usar pequenos dicionários nos textos literários

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(HALPERN, 2010, p.01apud FRITZEN, 2013, p.38); a autora, juntamente com esse

apontamento, denota que tendo como base João Guimarães Rosa, um criador de

palavras brasileiro,

Mia Couto não deixa de utilizar a língua do colonizador, porém a estiliza de modo a atribuir traços que a caracterizem de certa forma, como tendo peculiaridades que a distinguem como moçambicana. Em outras palavras, essa nova escrita não tem o objetivo de modificar a língua portuguesa, mas sim de criar novas estruturas linguísticas para melhor expressar a moçambicanidade (FRITZEN, 2013, p. 38).

Flavia Paiani (2013) aponta que “Mia Couto, ele próprio, transita entre as

linguagens: entre as variações da própria língua, entre a poesia e a prosa, entre a

escrita e a oralidade” (PAIANI, 2013, p. 28).

[...] O modo como Mia Couto conta histórias em Terra Sonâmbula pode ser sintomático de como ele se relaciona com a história e qual ele busca não reconstituir, mas sim recontar por meio da ficção. Interessa-nos, portanto, analisar que história é essa de Moçambique que ele (re)escreve – e projeta – a partir da posição que ele ocupa na realidade do país (PAIANI, 2008, p. 21).

Conhecido de forma breve o rol de obras do autor, cabe reconhecer algumas

particularidades que norteiam sua produção literária. Esse é o enfoque da próxima

seção.

2.2 Caracterização da escritura de Mia Couto

No texto intitulado “Palavra e identidade em Mia Couto”, publicado na

Revista África e Africanidades (2011) por Fernando Alberto Torres Moreira, nota-se

que Mia Couto adquire a palavra como sendo a possibilidade de se dar nome ao

mundo pela primordial vez, e a palavra escrita ou a leitura dá possibilidade para o

escritor intervir especificamente na construção da identidade de Moçambique. Essa

intervenção se dá ou através da importância atribuída à palavra, uma vez que é

elemento fundamental de uma cultura, ou pela construção de vocábulos novos,

originais, nomeadores de realidades culturais.

O uso de vocábulos originais é um fator que singulariza o texto literário de

Mia Couto. É comum o uso de neologismos derivacionais criados pelo autor, levando

em consideração as regras de formação de palavras (RFP) elaboradas por Rio-

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Torto (1998), uma vez que, consoante as mesmas, a derivação sugere a adjunção

de um afixo a uma base, podendo adquirir os moldes de prefixos, sufixos e

circunfixação. Alguns vocábulos com essa característica podem ser percebidos no

conto “A saia almarrotada”: o próprio almarrotada, estreiteza, desviçosa; no “O

homem cadente”, notam-se: zaranzeando, desabismado, supramencionado,

longilongo, descrucificado, ladainhando, destrapezista; já em “O nome gordo de

Isidorangela”, há os vocábulos novos criados por Mia: apoquentava, homosensuais,

atrapalhaço.

Quanto a este aspecto, Vanessa Fritzen (2013), em seu texto de dissertação

intitulado Literatura, história e memória em o último voo do flamingo, de Mia Couto,

frisa que o escritor brasileiro Guimarães Rosa inspirou Mia Couto nesse sentido,

pois este construiu seus textos tendo em vista a inclusão de palavras dos povos

nativos mescladas à Língua Portuguesa, sendo visto como o escritor mais popular

no universo literário africano (FRITZEN, 2013, p. 15).

Russel Hamilton (1998) afirma que Mia Couto tem na sua escrita o tom da

oralidade. Porém, não ocorre apenas essa dinâmica no papel, mas também no

espaço, propondo figuras de sons e visuais. E, conforme o próprio Mia diz: “Meu

desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da vida”

(COUTO, 2007, p.1). Fernando Alberto Torres Moreira (2011), quanto a isso, diz

que:

Esta construção de identidades por parte de Mia Couto é costurada particularmente, por uma simbiose entre a oralidade (tradição) e a escrita (modernidade) num balanço constante em que o intervalo entre ambas carece de ser cerzido em contínuo, sabendo que, na elaboração de um novo paradigma, a reinvenção da identidade cultural, por meio do resgate e das tradições, passa por saber que isso não conduz à recuperação da primeira, fundada, como estava, em formas de representação e significação imutáveis e estáveis [...] (MOREIRA, 2011).

“Querendo a preservação da memória moçambicana” (MOREIRA, 2011),

Mia Couto recria a palavra, a linguagem, tendo como ponto de partida a oralidade e

estabelecendo-se como um dos comunicadores relevantes no desenvolvimento de

construção da identidade cultural de Moçambique. Tal edificação se vale não

somente pela criação da sua palavra, como também por meio de estratagemas

usufruídos, cuja dialógica arquitetada entre as variadas identidades moçambicanas

(MOREIRA, 2011).

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Frases, provérbios, expressões idiomáticas, simples palavras do português europeu são por Mia Couto trabalhadas criativamente imprimindo-lhes uma grande expressividade conseguida por trocadilhos, trocas de palavras que, mesmo assim, convocam por oposição ou semelhança, a expressão da palavra primitiva, da frase primitiva. A isto se soma o efeito estilístico conferido a esse trabalho da palavra por uma dinâmica coloquial que se filia no discurso oral, na oralidade. O mesmo se diga dos neologismos que surgem isoladamente no texto, cuja principal característica é o seu carácter de verossimilhança, seja pelo processo de formação, seja pelo resultado semântico final, ao qual não é alheio o ambiente rítmico criado pelas novas combinações sonoras (MOREIRA, 2011).

O fazer de Mia como “alquimista da palavra”, como sublinha Moreira, pode

ser compreendido como a característica de produção escrita de texto do autor em

que se pode notar a magia com que o próprio utiliza para escrever, a arte com que

ele pretende obter novos vocábulos pela transmutação das palavras já existentes na

Língua Portuguesa e desvendar os caminhos da escrita literária. Este traço é bem

descrito por Luís Manana Sousa, de maneira suscita e transparente, neste trecho:

O autor escreve num estilo de carácter oral com frases curtas e aliterações, recorrendo a onomatopéias e a um uso criativo das palavras que só a oralidade permite. Não raro, surgem regras de formação e de enriquecimento lexical. Tais palavras são por isso verossímeis e, geralmente, surgem como um valor semântico acrescentado (SOUSA, p. 140).

Nos estudos de João Pedro Pinto da Costa, em “Análise de neologismos em

Mia Couto: a utilização da derivação e o caso particular da amálgama” (2010),o

pesquisador explica que Mia Couto reflete um grande conhecimento da gramática,

da morfologia e da semântica da língua, dando-lhe possibilidade de provocar o

paralelo conforto/desconforto em seus livros.

Naquele referido texto, Mia Couto utiliza, dá vida a neologismos

derivacionais, considerando as normas de formação de palavras elaboradas por Rio-

Torto (1998). A autora fala que a derivação consiste na associação de um afixo a

uma base, podendo adquirir os moldes de sufixação, prefixação e circunfixação (Rio-

Torto, 1998, p. 42). Rio-Torto fala, além, que os processos são não derivacionais e

sim semântico-derivacionais e oriundos dos processos de formação de palavras que

a língua já possui. João Pedro Pinto da Costa afirma que estas definições “tornam-

se capitais num estudo de formação de neologismos em Mia Couto, pois permitem

observar a existência de vários eixos de regularidade nas suas criações” (COSTA,

2010, p. 73).

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Quanto à amálgama, no patamar da morfologia, João Pedro Pinto da Costa

salienta que a mesma consiste em uma

formação mais ou menos arbitrária da qual não podemos prever exactamente a forma que a palavra vai adquirir (Mateus et al.: 1990: 414). Assim, estamos diante “uma sobreposição de sílabas homófonas” que “não são sufixos, nem prefixos, nem radicais, isto é, não são morfologicamente reconhecíveis” (GASPAR, 1994 apud NUNES, COIMBRA, 2007: 166).

Há processo concentrador de mistura cognitiva, resultante de uma criação

relacionada ao saber de quem fala:

É necessário realçar que quase todas as amálgamas são facilmente perceptíveis ( Nunes & Coimbra, 2007: 172), pondo em evidência uma característica do falante que está ligada à ideia de conhecimento lexical. Torna-se crucial, pois, dar informação regular, composta por regras morfológicas que ajudam a apreender e produzir novas palavras e regras semânticas que ajudam a associar novos significados. E ainda informação variável, que está relacionada com a memória e com as características do indivíduo (CORREIA; LEMOS, 2005, p. 17). (COSTA, 2010, p.74).

Quanto à semântica, há um processo de condensação, porque existe junção

de sentidos e construção de um novo conceito composto por sentidos

independentes das duas palavras que são base. Como sublinha João Pedro, citando

Nunes & Coimbra: “Neste nível, verifica-se ainda uma propriedade sistemática, a de

economia linguística, isto é, com estes vocábulos temos a possibilidade de dizer

muito numa palavra só” (COSTA, 2010, p. 75).

Já no patamar cognitivo, é presente um processo de intenção de formação

de palavras, no qual o autor objetiva expressar certa ideia (AUGUSTO, 2009, p. 19),

conforme destaca João Pedro Pinto da Costa (2010). Desse modo, Mia Couto inova

lexicalmente na formação de novas palavras, sendo que não modifica as normas de

funcionamento da Língua, mas recria-as, dando ênfase à prefixação. Ele coloca

prefixos em palavras que não são usuais nos vocábulos correntes da língua

portuguesa, como refaleceu e desressuscitado.

Entretanto, não é somente utilizando prefixos novos que o autor se destaca

na criatividade. Há o processo de formação de palavras por sufixação, isto é, por

sufixos, formando adjetivos, substantivos, verbos e advérbios novos. Exemplos

usados por ele: sufixos: -eta(s); -iço(s); -ança(s); -edo(s); -ícula; -inha(s); -mente.

Além dos dois casos acima citados, a obra miacoutiana usufrui de mais

processos linguísticos inovadores, como o de formação de palavras por

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parassíntese, que se trata de derivação parassintética criando verbos, advérbios,

substantivos e adjetivos. Como exemplos deste caso existem as palavras:

descuecar; descabeçada; precauteloso; irrepetidamente; retorturado.

Resta-se comentar a respeito dos últimos casos de exemplos de palavras

formadas por Mia Couto, que são as formadas pelo processo de composição e as

por amálgama. Aquele é sobre a obtenção de novas palavras, justapostas ou

unidas, a partir de um ou mais radicais, como se pode notar nestes exemplos:

mancha-prazeres; terceiro-idosos; beira-mágoa; paraviúva; semimesmo; semiviúvos,

dentre outros.

Quanto ao outro e último caso, o da amálgama, Mia Couto joga com as

palavras utilizando recursos estilísticos, os pleonasmos e as metáforas, dando

variados significados a cada palavra. Com base nisso, a amálgama é também

chamada contaminação, cruzamento ou blending. Como palavras exemplificativas,

tem-se: aldrabom; Agualberto, dentre outras presentes nos seus livros.

Além desses recursos linguísticos importantes em suas narrativas, Mia

Couto também é um escritor que dialoga com a sociedade em que se insere.

Segundo Fernando Alberto Torres Moreira, Mia Couto é ciente do papel importante

que os escritores moçambicanos têm “de, historicamente, poderem criar/encenar a

ficção de si mesmos enquanto agentes e depósitos da própria História e serem

‘fazedores de futuro’ e de, epicamente, criarem um espaço que seja

deles”(MOREIRA, 2011). Mia tem consciência de que “cada homem é uma nação

feita de diversas nações” (COUTO, 2009, p. 25), como ele mesmo diz, pois a nação

da tradição oral está escondida pela nação da escrita. Desta forma, “Mia Couto

objectiva a necessidade da sua novel nação construir um idioma que sedimente o

lugar e estruture a raiz identitária, mas que, por outro lado, ganhe asas para um voo

de pluralidade cultural que o mundo globalizado de hoje exige” (MOREIRA, 2011).

Sob essa perspectiva, Silva e Garcia (2014) observam que o texto literário

de escritores africanos de expressão portuguesa como Mia Couto – sendo de

Moçambique ou não – reflete a representação das vertentes literárias cuja

idealização de ficção esteja comprometida com a veiculação da imaginação do

“pós”-guerras ou do “pós”-colonial, favorecendo a observação dos processos muito

fundos de integração da cultura,

uma vez que, se inscrevendo nas ambiências espaçotemporais dos ‘pós’, mimetiza - em primeiro ou segundo planos da ‘representação’ -, com base

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nos discursos das personagens, viéses diversificados, ao pôr em contato figuras de origem variada, assimilando-as nas margens – da ficção, da história ou de ambas (SILVA; GARCIA, 2014, p. 79).

Luciana Morais da Silva e Flavio Garcia (2014) salientam que, no caso da

obra de escritores africanos que escrevem após a independência de seus países, é

possível constatar a existência de “[...] fronteiras híbridas, de identidades mestiças,

quando se fala da obra de Mia Couto e de tantos outros seus contemporâneos nas

literaturas africanas” (SILVA; GARCIA, 2014, p. 79), ou seja, não se pode vislumbrar

uma identidade única dos povos africanos colonizados, pois estes já sofreram

influências da cultura, da identidade, dos costumes do colonizador.

Porém há permissão por reivindicação, no que tange a escolha por tomar o

universo de Mia Couto como suscetível de (re) encantamento. Isto é próprio de uma

transposição de limites, de espaço, conforme destacam Fonseca e Cury: “contra o

esquecimento do mundo da oralidade, das histórias contadas pelos mais velhos”

(FONSECA; CURY. 2008, p. 81apud SILVA, GARCIA, 2014, p. 79).

Uma das imagens simbólicas desse diálogo da obra do escritor com o

momento pós-colonial está representada no romance O último voo do flamingo.

Nele, há um flamingo eterno que anuncia a esperança (MOREIRA, 2011), tem a

palavra como argamassa, como junção, construção da identidade moçambicana, em

relação à cultura, uma vez que Couto deu vida a um novo universo criativo

vocabular, objetivando ser ou alicerçar a identidade cultural daquele país,

multicultural.

Ao se referir às particularidades da obra do escritor moçambicano, Vanessa

Fritzen (2013) destaca que:

[...] E é isso o que torna emblemático o conjunto da obra de Mia Couto, o qual descreve o cotidiano dos moçambicanos, mostrando-se crítico, delatando a corrupção, os conflitos políticos entre os próprios africanos, os quais seguem o modelo de administração que mais convém, na maioria das vezes, a uma minoria, como também, trata da tradição moçambicana como forma de libertação de seu povo. Mia Couto, ao invés de uma forma panfletária, prefere tratar das questões sociais dentro de um lirismo narrativo, através de personagens e enredos repletos de ambigüidades, mergulhados em uma linguagem que ora causa riso, ora espanto (FRITZEN, 2013, p. 42-43).

A escrita coutiana, no que concerne à sua caracterização, é uma escrita

tecida por fios de prosa que evoca poesia, ao passo que seus textos são “tecidos”

por poesia, “entrelaçando” sonoridade, “brincriando” com as palavras – conforme faz

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Mia-, fazendo uso de metáforas, comparações e de uma certa “lábia” na

conversação das suas linhas, enredando, em seu conjunto, como sublinha Susan

Aparecida de Oliveira (2009):

[...] uma constante viagem pelas paisagens e lugares de Moçambique, atravessando também os múltiplos tempos de que eles são feitos. A viagem é uma metáfora rica e possível para captar e compor literariamente os nós dos encontros e desencontros desses espaços e tempos, bem como as insondáveis identidades moçambicanas que nesses nós vivem. Autor de muitas histórias abensonhadas, de várias brincriações com a língua portuguesa e outras interinvenções, Mia Couto modela a língua portuguesa expandindo-a em toda a sua plasticidade verbal. A escrita de Mia Couto forma imagens em tamanha profusão que reproduz a movência oral (OLIVEIRA, 2009, p. 01).

A prosa poética de que fala os parágrafos anteriores é um texto escrito com

características de prosa, porém funciona como poesia, transmitindo a mensagem e a

sensibilidade de um texto poético.

Vanessa Fritzen (2013), baseando-se no texto de Iolanda Cristina dos

Santos, cujo título é Brasil e Moçambique: histórias que se contam (2012), conclui

que Mia Couto possui uma escrita que se mostra “enraizada na história do seu povo

e na realidade concreta de Moçambique” (SANTOS, 2012, p. 08 apud FRITZEN,

2013, p.113), uma vez que é como uma “postura de resistência à dizimação da

cultura por parte do colonizador, bem como da Guerra Civil, posteriormente”

(SANTOS, 2012, p. 08 apud FRITZEN, 2013, p. 113).

Luciana Morais da Silva e Flavio Garcia em “Fronteiras de um mundo

insólito: olhares estrangeiros sobre uma varanda híbrida” (2014), frisam que

Em Moçambique, o processo de configuração de nação/nacionalidade não ocorre de modo diferente. Ali, tem-se, porém, um agravante denunciado por Mia Couto – tanto em sua ficção, quanto em seus textos de opinião -, que se refere a diversidades de origem, até mesmo àquelas de foro lingüístico – nesse caso, além da multiplicidade de línguas aborígenes, verifica-se, ainda, uma intravariedade na realização da língua portuguesa, que o escritor explora em suas “brincriações” (SILVA E GARCIA, 2014, p. 77).

A obra coutiana explora, portanto, uma escritura contra-hegemônica, em que

há caráter de hibridismo, trânsitos, bem como fronteiras–constituição do aspecto de

ruptura da obra, devido ao surgimento do insólito da ficção, na área limitativa

cultural. Outrora, Mia explora o jogo do olhar intercambiante, ou seja, no qualexistem

questões de relevância, tais que: quem, de onde, para onde, com qual finalidade,

com quais camadas de formação sociocultural se dá o olhar e o que é olhado.

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- Você quem é? - Sou seu tradutor. Eu posso falar e entender. Problema não é a língua. O que eu não entendo é este mundo daqui. (COUTO, 2005a. p. 40, apud SILVA; GARCIA, 2014, p. 77).

Os textos de Mia Couto estão definidos por um tempo que os situa, no que

se pode rotular de pós-guerra – no caso de África, indiferente de se referir aos

estados oriundos das colônias de Portugal ou não.

[...] pode-se, a despeito das divergências verificadas contemporaneamente, falar-se, ainda, nesse caso, em período pós-colonial -, e representa, via de regra, os momentos pós-libertação vividos pelo povo moçambicano – e, mesmo, em muitas vezes, angolano, como o próprio autor explicita em variados textos de opinião por ele já publicados [...] (SILVA E GARCIA, 2014, p. 78).

A obra coutiana é construída baseada em imagens administradas e oriundas

do passado, o qual é o lugar da recordação, das tradições, resgatadas ou (re)

inventadas, que estão no hoje, dando significado a um conceito histórico de ser,

mesmo que híbrido e mosaico, segundo Silva e Garcia (2014). Mia remete a esse

papel de mosaico, enquanto autor, por ter convivência com a diversidade ao criar

suas personagens e, também, por configurar, pessoalmente, formação e

ancestralidade.

Como sublinham os autores Silva e Garcia: “O autor – Mia Couto, em

particular, ou todo e qualquer autor, coletivamente – constitui-se, dessa maneira,

tradutor, ‘um viajante de identidades, um contrabandista de almas’” (COUTO, 2005,

p. 59, apud SILVA, GARCIA, 2014, p. 78).

Silva e Garcia (2014) afirmam que Stuart Hall (2003) delimita o

desenvolvimento de hibridismo, que é uma característica própria das nações pós-

independência, uma vez que este se junta a outros pós: o pós-guerras e o pós-

colonial; todos unindo-se ao pós-modernidade e causando polêmicas, não marcado

nem como referência à constituição racial miscigenada de uma população ou

somente com aspecto bioetnológico.

É na composição desse hibridismo, de que trata Hall, não marcado pelo caráter autoritário da assimilação que se impõe ao “outro”, com rigores e sofrimento, construído a partir de um processo fundamentado na fluidez, que se pode observar a edificação multifacetada da varanda dessa fortaleza colonial –A varanda do frangipani -, espaço em que os universos se imiscuem, e a razão se une aos mitos, às lendas, às crenças, aos ritos e

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aos rituais, amalgamando os realiaaos mirabilia, e viceversa (SILVA E GARCIA, 2014, p. 80).

No livro citado acima, Mia Couto destaca os limites que existem entre o

colonizador e o colonizado, todavia se mostra em constante desencontro. Isto se dá

devido ao hibridismo entre culturas, o qual representaria um fenômeno de amálgama

cultural, proporcionando o diálogo de heterogeneidade (AFONSO, 2007, p. 549,

apud SILVA, GARCIA, 2014, p. 82), “em que há a dissolução ou permeabilização

das fronteiras entre as partes envolvidas nas trocas. Percebe-se, portanto, que a

hibridação se compõe do contato entre universos distintos, constituindo culturas

multifacetadas, plurais, diversas” (SILVA, GARCIA, 2014, p. 82).

Os dois autores salientam, também, que o homem tem a opção entre ser

“negro” ou ser “branco”, ao passo que é “maculado” por um caminho de linguagem,

de raça, ou de valoração de cultura, sendo que a junção de traços desta lhe

favorece as mudanças de almas ou andar em todos os limites, conhecendo e se

reconhecendo em relacionamentos variados seus.

Jane Tutikian (2006) aponta a construção da identidade em países de

Língua Portuguesa, frisando que Mia Couto representa miticamente seus textos,

gerando a afirmação de uma identidade de culturas transgressora de uma identidade

racional, isto é, europeia, cuja imposição se deu através do colonialismo.

(TUTIKIAN, 2006, p. 60 apud SILVA E GARCIA, 2014, p. 84).

Mia Couto fez advertência quanto ao aspecto da identidade. Em seus

escritos de opinião, ele o destaca, dizendo que:

A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: ‘Eu sou os outros; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia rural africana. (COUTO, 2009, p. 108-109, apud SILVA E GARCIA, 2014, p. 84).

A construção da identidade, citada por meio do provérbio coutiano,

demonstra a reflexão do ser humano perante a ideia da felicidade achada na outra

pessoa e pela mesma, constituindo-se através do modelo de relação com outras

pessoas, no coletivo. Desta forma, os cultos anímicos, o animismo, consoante os

autores supracitados Silva e Garcia (2014, p. 84), convivem e vivem na cultura,

porque a alusão ao tempo, o homem envolvido com o meio ambiente ao cultuar seus

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falecidos, estariam, talvez, limitando as crenças que ultrapassam, passam ou

perpassam a descrença racional.

Portanto, para ambos os autores Silva e Garcia (2014, p. 85), as margens

fronteiriças do mundo oriundo por Mia Couto, no texto intitulado A varanda do

frangipani, são híbridas. Estas são marcadas por grandes modificações,

consolidadoras da irrupção do insólito da ficção, criado nas margens do texto

narrativo e característica da escrita criativa e original de Mia Couto.

A partir dessa contextualização sobre alguns fatores que singularizam a

escrita de Mia Couto, passa-se a uma etapa seguinte, a de pensar nos diálogos que

contos da antologia O fio das missangas estabelecem com o contexto do qual se

originam. Esse é, então, o enfoque proposto para o último capítulo desta

dissertação.

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3 O FIO DAS MISSANGAS: DIÁLOGO COM A SOCIEDADE

Na antologia O fio das missangas, Mia Couto oportuniza aos leitores a leitura

de contos que instigam a pensar sobre a sociedade, a mulher, os valores culturais

africanos de Moçambique, além de apresentar textos com acabamento formal típico

da escritura coutiana. Otavio Henrique Meloni (2010), na resenha cujo título é “Um

colar de experiências: o olhar cotidiano de Mia Couto em O fio das missangas”,

analisa o referido livro do escritor, relatando que no mesmo Mia Couto demonstra a

vertente de contista como a mais perspicaz, o que reflete as marcas dele enquanto

autor: a lapidação do vocabulário e a evolução nos temas dos seus livros.

Meloni salienta que o moçambicano tem a escrita “sempre lançada entre o

fantástico e o real, desde a construção morfológica do texto até seus sentidos

últimos e edificantes. Tal combinação fez com que o autor de Terra Sonâmbula

(1992) se tornasse recordista de vendas em todo o mundo e fosse traduzido para

diversas línguas” (MELONI, 2010, p. 297).

Em O fio das missangas, publicado em 2003 em Portugal em sua versão

original, porém que apenas chegou aos leitores brasileiros em 2009 através da

Editora Companhia das Letras, Mia volta-se à escrita criativa, que está presente em

Cada homem é uma raça (1990) e Estórias abenssonhadas (1994), os quais são

livros de contos mais conhecidos. Outrossim, no livro O fio das missangas (2009),

Mia Couto dá vida aos mais simples personagens, segundo Meloni, “[...] que, como

corriqueiro em sua escrita, acabam por transmitir as mensagens mais profundas e

as reflexões mais densas em seus textos”(MELONI, 2010, p. 298). No livro em

questão, há a dicotomia decorrente entre o sonho, que muitas vezes é o fantástico, e

a realidade, que geralmente representa a miséria humana.

Dessa maneira, a visão crítica e seus modos representativos são propostos,

uma vez que a realidade se torna o alicerce das histórias, trazendo temáticas do

cotidiano; praticamente são crônicas do dia - a - dia de pessoas comuns em uma

cidade qualquer do mundo. Pessoas, estas, que, consoante frisa Meloni: “[...] frente

aos seus conflitos, confrontam aspectos da modernidade e da tradição em situações

típicas do século XXI” (MELONI, 2010, p. 298). Passam a enredar essa realidade as

temáticas do irreal, do sonho e do fantástico como modo de tornar densas as

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características sociais e humanas que cada episódio narrado contém, dando um

toque específico a esse título coutiano, comparando-o aos demais.

De maneira estrutural, O fio das missangas, como o próprio título já aponta, é uma reunião de contos curtos, aparentemente esparsos, mas que conjugados se tornam em um imenso colar. Ao leitor passa a caber o papel de artesão que organiza as missangas narrativas deixadas pelo escritor, formando seu entendimento maior ao final do volume. E o resultado não poderia ser outro: um colar de emoções humanas que ultrapassam os limites do social com extrema sensibilidade poética (MELONI, 2010, p. 298).

É notório ressaltar que a poesia, em meio à prosa, está inserida neste livro

miacoutiano, desencadeando a inovação juntamente com a criatividade do

moçambicano. Os seus contos se concentram ao redor de um personagem central

que pode ser entendido como uma das missangas do colar da narração, norteadores

das reflexões políticas, filosóficas e, também, literárias de cada enredo, segundo

Meloni (2010). As mulheres adquirem um protagonismo essencial na maioria dos

textos, apresentando uma preferência importante ao conjunto geral da obra do autor,

que pode ter como exemplo o conto que nomeia a junção de contos, conforme

destaca Meloni (2010).

Ainda consoante Meloni (2010), no conto “O homem cadente”, há o

personagem masculino JMC, o qual fala em compor sua vida pelas mulheres as

quais “visita”, o que se pode observar através deste trecho do texto: “A vida é um

colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as

missangas...” (COUTO, 2009, p.66). As personagens, juntamente com suas vidas,

darão luz à força de gravidade dos pequenos textos narrativos, cuja característica

torna alguns praticamente crônicas, entrelaçados pelos assuntos e aspectos que se

fazem presentes de forma a serem possíveis vitais no transcorrer dos textos, farão

composição do místico-cotidiano colar.

Portanto, ou é por meio do emocional ou pelo mais social (como exemplos

do primeiro tem-se “As três irmãs” e “O adiado avô”; já do segundo lado tem-se “O

mendigo sexta-feira jogando no Mundial”), Mia Couto dá encaminhamento aos seus

leitores a um universo do dia a dia, em que insere o campo e a cidade, cheios de

perturbações pessoais características do século XXI, sob a luz da sensibilidade,

crenças e mitos:

A sensibilidade do autor, portanto, nos leva a estórias possíveis em qualquer parte do mundo, mas compreensíveis de maneira mais reflexiva

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apenas em seu universo. O leitor familiarizado com a obra de Mia Couto irá encontrar nesta reunião – proposital – de contos arestas dos principais motes do autor, mas se surpreenderá com a maneira como essas farpas de ilusão furam os seus olhos e demoram a sair, tamanha sua ligação com a realidade. Por outro lado, os leitores de primeira viagem no universo do moçambicano encontrarão, sem dúvidas, um prazeroso caminho de leitura em cada conto e uma unidade temática progressiva ao final do volume que os levará a buscar outros títulos do autor (MELONI, 2010, p. 300).

O livro O fio das missangas (2009) é revelador do olhar a respeito de

determinadas circunstâncias de conceitos humanos e sociais de modo flexível, além

de sensível, portanto. Outrossim, é leitura obrigatória ao clã de fãs de Mia Couto,

uma vez que é altamente sugerido aos leitores adeptos de uma boa literatura, assim

como destaca Meloni (2010): “[...] precisamos questionar nossas verdades e

certezas mais antigas para voltar a nos sensibilizar com as pequenas/grandes

mazelas humanas que nos assolam nestes novos tempos.” Tendo o fio e as

missangas nas mãos, o leitor somente precisa formar seu colar de vivências e

sensações entrelaçadas através dos vocábulos invisíveis esquecidos diária e

constantemente.

Em “Construção da representatividade feminina na obra O fio das missangas

de Mia Couto”, de Cristina Vasconcelos Machado, está descrito que o conjunto de

contos denominado O fio das missangas (2009) constitui-se em “vinte e nove

histórias que, em sua maioria, tem como fio condutor uma voz feminina”

(MACHADO, 2011, p. 05). Por meio da ficção, o universo feminino é apresentado

com aspecto sutil e delicado, oferecendo um veículo a fim de que as vozes

silenciadas, condenadas e no esquecimento venham a poder, de certa maneira, se

expressarem.

A sociedade ocidental foi construída sob um regime patriarcal e falocêntrico. Herdeira de uma tradição judaico-cristã, a cultura sempre relegou a mulher uma posição marginal na sociedade; nesse sentido a mulher foi oprimida, subjugada, negada e silenciada. No caso da mulher negra, observa-se um duplo movimento de exclusão: uma marginalização por etnia e outra por gênero. Na sociedade moçambicana o feminismo não será considerado de outra maneira, ainda mais que Moçambique, além dos resíduos culturais da sociedade ocidental, conjuga rastros da cultura islâmica, cujo papel da figura feminina é mais complexo ainda (MACHADO, 2011, p. 06).

Ocorre, assim, a possibilidade de que as protagonistas dos textos dêem

testemunho e denunciem a sua opressão, expondo-se em esquemas para se

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libertarem, conforme Machado (2011) E, ainda mencionando a respeito do título da

obra miacoutiana O fio das missangas (2009), pode-se notar que:

Percebe-se que o papel do autor na elaboração de sua obra é comparado ao fio de um colar. Todavia, a voz do poeta é silenciosa, ou seja, é na ausência, na falta, na ruptura, na crise que outras tramas vão-se construindo. Desse modo, Mia Couto deixa vestígios de que os contos dizem mais do que o que está na superfície das enunciações (MACHADO, 2011, p. 08).

Já no artigo intitulado “O espaço da interdição em O fio das missangas, de

Mia Couto”, de autoria de Pedro Fernandes Oliveira Neto (2011), vê-se que na

alusiva obra tem voz e lugar de destaque a leva de protagonistas das denominadas

margens da sociedade ou sujeitos, que são vítimas de processos de exclusão da

ordem normal. Para analisar tais processos de exclusão, este trabalho apresentará,

na próxima seção, a análise de dois contos que ilustram esse debate: “As três irmãs”

e “A saia almarrotada”.

3.1 Opressão à mulher: “As três irmãs” e “A saia almarrotada”

Os contos denominados “As três irmãs” e “A saia almarrotada”, ambos

inseridos na coletânea O fio das missangas, apresentam temáticas semelhantes: o

primeiro reflete a questão da submissão das personagens femininas Gilda, Flornela

e Evelina causada pelo pai delas, Rosaldo, um viúvo que as criara com o intuito de

satisfazerem suas necessidades: fome, saudade e frio. O segundo, “A saia

almarrotada”, mostra uma personagem nascida para, como no próprio conto diz:

“cozinha, pano e pranto”, quer dizer, uma mulher também submetida aos caprichos

machistas do pai e do tio, que a queriam casta e reservada para “[...] tratar deles,

segundo a inclinação das suas idades” (COUTO, 2009, p. 13).

Quanto ao conto “As três irmãs”, se nota que é uma narrativa breve, formada

por duas páginas nas quais se tem uma linguagem acessível, simples, clara, de fácil

compreensão, como se pode observar no trecho “Gilda, a mais velha, sabia rimar. O

pai deu contorno ao futuro: a moça seria poetisa. Mais ela versejava, menos a vida

nela versava.” (COUTO, 2009, p. 04). Ao mesmo tempo, essa linguagem traz o traço

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poético das narrativas coutianas quando se percebe que vários vocábulos ganham

novos significados nas frases, como o verbo “versava” do fragmento anterior. Assim,

Mia Couto também “brinca” com as palavras, dando novos sentidos a termos e

expressões.

O enredo do conto gira em torno das três protagonistas da história, cada

qual com seus dissabores da vida, como assinala o narrador logo no início da

narrativa: “[...] cada uma feita para um socorro: saudade, frio e fome.” (COUTO,

2009, p. 4). As três acatam as regras e suprem as necessidades do pai, Rosaldo,

“[...] que, desde que a mulher falecera, se isolara tanto e tão longe que as moças se

esqueceram até do sotaque de outros pensamentos.” (COUTO, 2009, p. 04).

Essa história é contada de forma linear, de modo que toda a sequência de

ações obedece a uma sequência cronológica, pois os fatos acontecem em

sucessão, com continuação, não “quebrando” a ordem cronológica (do tempo da

narrativa) dos acontecimentos da história. Esse caráter linear do referido conto é

notado no trecho que mostra a ordem cronológica dos fatos narrados com

expressões adverbiais que sinalizam as passagens de tempo: “Todas as tardes,

Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário.” (COUTO, 2009, p. 04); “De

quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos [...].” (COUTO, 2009, p.

04); “Logo-logo, as irmãs notaram o olhar toldado do pai. [...]” (COUTO, 2009, p. 04).

O conto se consolida pela presença de três personagens femininas, que são

centrais, e de duas masculinas. As personagens femininas são sem voz na história,

são apáticas, subalternas, oprimidas pelo pai super protetor, se assim pode-se dizer,

egoísta, além de machista, que apenas pensa na satisfação própria, não levando em

conta os sentimentos, amores e prazeres das suas filhas. Tal caracterização das

personagens pode ser vista na seguinte passagem do conto: “[...] Pois, as irmãs

nem deram conta do seu crescer: virgens, sem amores nem paixões.” (COUTO,

2009, p. 04).

No entanto, as personagens masculinas são, além do pai Rosaldo, que

exerce o papel determinante à adjetivação de cada uma das três filhas, as querendo

como “filhas exclusivas e definitivas” (idem, p. 04), um jovem belo que fez tremer a

agulha de Evelina, queimar o guisado de Flornela bem como desrimar o coração de

Gilda, como está narrado no texto miacoutiano. O formoso jovem visitante,

“encachoado, rosto a meia haste” (COUTO, 2009, p. 06), e o pai, ao término do

conto, revelam possiveis atitudes homoafetivas: “E ante o terror das filhas, o braço

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ríspido de Rosaldo puxou o corpo do jovem. Mas eis que o mundo desaba em visão.

E os dois homens se beijaram, terna e eternamente.” (COUTO, 2009, p. 06).

Cada personagem central do conto, ou seja, cada uma das três irmãs é

cuidada ou educada a fim de suprir as necessidades do pai enquanto idoso e, sendo

dessa forma, a primeira filha, Gilda, é a “rimeira”, a que faz versos; a “receitista” é a

Flornela, pois cuida da comida, e Evelina é a “bordadeira”, aquela que cuida do

vestuário e da ornamentação. Entretanto, elas vivem enclausuradas em seu

mundinho, que as reduz e reflete o modo de comportarem-se, já que o mesmo vai

lhes causando castração da existência conforme explica Neto em referência ao

conto: “[...] já que tudo aqui está associado a uma monotonia claustrofóbica mantida

numa rotina de atividades repetitivas a ponto de, no melhor estilo chapliniano, levar

estas personagens a fundirem-se aos objetos com os quais elas lidam [...]” (NETO,

2011, p. 07). Este apontamento crítico pode ser associado ao seguinte trecho de Mia

Couto:

Todas as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário. O gosto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado: só o vestido suspirava. Molhava o dedo sapudo para folhear o grande livro. Aquele dedo não requebrava, como se dela não recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com sexo. Em voz alta consoava as tônicas: Sol, bemol, anzol. (COUTO, 2009, p. 04).

Pedro Fernandes Oliveira Neto (2011) faz uma menção ao modo como as

personagens femininas são apresentadas pelo narrador, destacando que esse

formato de apresentar “didaticamente” uma personagem de cada vez, de forma

organizada e linear, é uma estratégia de acentuar a monotonia da vida dessas

meninas e o contexto de exclusão e restrição em que vivem:

[...] O olhar do narrador contempla as três irmãs como o olhar de quem contempla um quadro; estratégia elaborada pelo autor para passar à superfície da narrativa a monotonia com que se movimentam esses perfis femininos no seu espaço cotidiano, ou o silêncio e o estágio de submissão a que estão submetidos (NETO, 2011, p. 06)

Além disso, pode-se destacar que o olhar do narrador sob as personagens

faz tradução à movimentação do tempo e da própria existência dos personagens,

pois faz dilatar o pensamento de tempo cronológico em detrimento de um tempo

psicológico. É uma visão que divaga por meio das margens do quadro, contudo o

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intuito está na extração do silêncio da sua composição com vocábulos, segundo

Neto (2011).

As personagens masculinas limitam-se, portanto, ao pai das meninas –

Rosaldo – e um jovem loiro que aparece ao final sem ser nomeado, mas sem

manifestação verbal. O jovem surge como se fosse uma esperança, uma nova

possibilidade que, pensa-se no início, para as moças, mas que parece ser, ao final

da narrativa, um meio para o pai desvencilhar de certos dogmas, ou melhor, de

romper com certos padrões de relacionamento cultuados pela sociedade

conservadora. Isso fica evidente pelo beijo que Rosaldo dá no jovem ao final da

narrativa numa alusão a um possível gosto por relacionamento homoafetivo.

Para se conhecer essas personagens e suas histórias, o leitor conta com a

presença de um narrador observador em terceira pessoa, que observa e narra a

história do conto “As três irmãs” sem realizar participação efetiva nem crítica, uma

vez que relata o enredo sem apresentar apontamentos críticos nem comentários

pessoais e julgadores a respeito das ações das personagens ou do desenrolar dos

acontecimentos. Nestas frases, percebem-se as afirmações feitas: “As três irmãs

correram, furtivas, entre as penumbras e seguiram a cena a visível distância. E

viram e ouviram. Rosaldo se achegando ao visitante e lhe apertando os

engasganetes.” (COUTO, 2009, p. 06).

O narrador não se detém na caracterização do espaço onde as cenas

ocorrem, mas é possível perceber que o espaço ocupado pelas meninas e o pai é o

do lar, uma vez que os próprios afazeres delas condizem ou remetem à condição

espacial da família, isto é, uma é bordadeira, as outras são cozinheira e poetisa.

Todas as jovens exercem tarefas domésticas ficando em casa, sem saírem de lá,

como se pode ver nos trechos “Os fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos,

brumecido seu coração de moça.” (COUTO, 2009, p. 05); “Na varanda, ia bordando

Evelina, a mais nova.” (COUTO, 2009, p. 05); “Todas as tardes, Gilda trazia para o

jardim um volumoso dicionário.” (COUTO, 2009, p. 05).

Esse espaço restrito à casa sugere que as personagens estão submetidas

aos caprichos do pai, não estudaram, não alçaram voo diante das propostas ou

perspectivas de vida, não se opuseram aos propósitos de opressão feminina

ofertada pelo pai e não tinham outra maneira de levar a vida a não ser acatar essas

determinações, vivendo naquele mundinho caseiro.

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O espaço onde vivem as jovens ressalta o sentimento de opressão, bem

como de repressão sociais das mulheres – no conto, das três filhas de Rosaldo, o

qual as criava com o intuito de, ao envelhecer, ser amparado de diversas formas

pelas irmãs: “No tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais encontraram

espelho. Sucedeu foi um salto na casa, um assalto no peito. As jovens banharam-se,

pentearam-se, aromaram-se” (COUTO, 2009, p. 05).

Mesmo que o tempo também não seja especificado com clareza pelo

narrador, entende-se que as cenas narradas se reportam a uma época

contemporânea, pois o desencadeamento das ações, na história, ocorre em um

tempo não-longínquo, mais recente. Contudo, os quesitos de machismo ou

autoritarismo da personagem masculina de Rosaldo designam tempos antigos, nos

quais havia subordinação, opressão, humilhação e repressão femininas, o que nem

sempre é visto como algo negativo pelas mulheres africanas. As mulheres eram

“feitas” a fim de cuidar dos lares, realizando afazeres domésticos, não conseguindo

estudar e ter suas próprias profissões, sem poderem aflorar sua libido sexual, suas

paixões nem amores e, consequentemente, o namoro e o casamento eram

praticamente impossíveis de acontecer.

Na leitura do conto “As três irmãs”, se tem uma trajetória voltada à emoção,

encaminhando o leitor a um mundo cotidiano cheio de conflitos particulares

característicos do século XXI, que intercala a cidade e o campo, como salienta

Otavio Henrique Meloni (2010, p. 299-300). Esses conflitos particulares estão

relacionados à opressão feminina, pois as meninas são educadas pelo pai para lhe

obedecerem, sem ter direito a suas próprias escolhas e ainda para passarem o resto

de suas vidas para cuidar dele.

Como destaca Neto (2011, p. 07), a interdição à qual as personagens estão

submetidas chega perto do extremo de não existirem as barreiras convencionadas

pela sociedade entre os sexos e se destaca perante o elemento possível à sua

quebra. Essa opressão feminina retratada no conto pode ser percebida

especialmente pela trajetória das meninas e seu comportamento, como se ilustra

nestes fragmentos: “[...] o gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o

seu sentar-se era educado [...]” (COUTO, 2009, p. 04); “Enquanto bordava versos, a

mais velha das três irmãs não notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem

saber, Gilda estava cometendo suicídio.” (COUTO, 2009, p. 04); “Assim postas e

não expostas, as meninas dele seriam sempre e para sempre.” (COUTO, 2009, p.

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04). Essa repressão é apresentada sob forma de restrição ao casamento, conforme

anteriormente comentado.

Além disso, o texto de Mia Couto sugere uma ambiguidade, também, ao seu

término, no momento em que aparece a outra personagem masculina – o moço que

desperta a sensibilidade das jovens -, pois Rosaldo deixa transparecer sua

homoafetividade:

Seu passo firme fez estremecer as donzelas: não havia sombra na dúvida, o pai decidira pôr cobro à aparição. Cortar o mal e a raiz. As três irmãs correram, furtivas, entre as penumbras e seguiram a cena a visível distância. E viram e ouviram. Rosaldo se achegando ao visitante e lhe apertando os engasganetes. A voz rouca, afogada no borbulhar do sangue: - Você, não se meta com minhas filhas![...] Mas eis que o mundo desaba em visão. E os dois homens se beijaram, terna e eternamente. [...](COUTO, 2009, p. 06).

Mas também se vê que essa repressão está ligada à falta de possibilidades

de emancipação feminina, uma vez que as meninas não têm voz, a única voz que

prevalece para o comando é a do pai, como se pode averiguar neste trecho, em que

o narrador remete a ele, firme, fazendo suas imposições, referindo-se ao rapaz que

aparecera e que, supostamente, poderia lhe tirar as filhas: “Rosaldo não tirava

atenção do intruso. Não, ele não levaria as meninas!” (COUTO, 2009, p. 05).

Ao se analisar o conto “As três irmãs”, observa-se que as personagens que

sofrem essa opressão não têm consciência disso, o que induz a pensar que isso

seria taxado como normal para elas, uma vez que não têm noção sobre o que seja

viver de modo distinto ao que vivem, dar-se ao luxo de sentir diferente ao que

sentem, saborear situações não iguais as quais saboreiam, enfim ter uma vida talvez

melhor da que têm. Isso aponta que essa repressão pode ser algo natural e

legitimado naquele contexto, pois vivem nesse universo restrito e limitado do lar.

Este lar é o mundo para e delas; mundo, este, no qual não se encontram horizontes

de perspectivas melhores de vida nem de expansão dos seus sentimentos, a não

ser ganhar tarefas de submissão - cozinhar, escrever e bordar: ofícios que,

antigamente, eram considerados apenas para as mulheres e de caráter não

emancipatório, mas que, atualmente, são, também, masculinos.

A partir disso, entende-se que a sociedade representada no conto é

marcada por uma perspectiva conservadora, patriarcal, tradicional e de privilégio ao

masculino. Sociedade essa que dá importância ao material, à satisfação dos

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prazeres dos homens, apresentando a mulher considerada, de certa forma, como

um objeto para cozinha e cama apenas, sem considerar que é um ser humano

dotado de inteligência, que pode estudar e trabalhar e ter outras capacidades,

sentimentos e desejos, tanto sexuais quanto em outros âmbitos relacionais, culturais

e sociais.

Ao surgir o jovem rapaz, as irmãs tiveram a oportunidade de se sentirem

vivas, vivenciando uma situação em que puderam aflorar sua libido e suas vontades.

Tal cena se pode notar nesta passagem do conto: “Sucedeu foi um salto na casa,

um assalto no peito. As jovens banharam-se, pentearam-se, aromaram-se. Água,

pente, perfume: vinganças contra o tudo que não viveram.” (COUTO, 2009, p. 05).

Nota-se assim que as meninas tinham aspirações relacionadas ao cuidado estético,

aos sentimentos, a uma outra vida a que não tinham acesso, porque esse acesso

era proibido pelo pai.

Ao se realizar uma análise das personagens femininas, vê-se, dessa forma,

que a visão sobre a mulher representada no conto está relacionada a uma

perspectiva que registra a condição de inferioridade que a mulher encontra perante

as imposições sociais e patriarcais. Elas são colocadas à mercê dos objetivos dos

homens que as governam de maneira opressora e repressora, delimitando-as em

seu mundo pequeno e restrito.

Em contraposição à condição feminina, a visão sobre o homem

representado no conto é a de opressor, machista, tradicional, manipulador,

impositor, que se julga superior. Ou melhor, se tem a visão de uma família patriarcal,

na qual a mulher é um objeto de consumo, pois o pai vê as filhas como alguém que

estará sempre à sua disposição, como se fossem uma espécie de empregada sua,

lhe servindo a todo momento.

Ao mostrar essa oposição em relação à posição social do homem e da

mulher no conto, salienta-se uma visão crítica e com foco realista em relação à

sociedade moçambicana, uma vez que o conto retrata Moçambique contemporâneo.

Mia Couto faz alusão ao seu país, relatando o período pós-colonial, como o faz nos

outros contos também.

Ainda é possível refletir sobre essa reflexão social construída pelo conto ao

se observar o final do texto. Quando se pensa no desfecho da história, há pelo

menos duas possibilidades de leitura: continuidade da perspectiva patriarcal,

metaforizada pelo afastamento do jovem loiro do contato com as meninas; e a

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homoafetividade de Rosaldo, conforme supracitado. Isto gera ambiguidade na

compreensão do texto, porque não se sabe se a história de fato termina com o pai

agindo como sempre agiu no sentido de chefe da casa, controlador e conservador,

num ato que mostraria às meninas que o jovem não poderia se envolver com

nenhuma delas; ou se a vinda do rapaz causaria alguma transformação nesse

comportamento seu, desvendando suas preferências sexuais por pessoas do

mesmo sexo, nunca antes manifestadas às filhas e à sociedade dita patriarcal e

tradicional daquela época.

Essas duas possibilidades de leitura sugerem que o conto miacoutiano traz

riqueza e criatividade na leitura das entrelinhas, fornecendo a interpretação ambígua

do contexto em que está inserido, o que demanda o aspecto de apresentação da

realidade na qual, como diz o ditado popular: “Faz o que falo, mas não faz o que

faço.” O ditado refere-se ao fator de que, se há a possibilidade de que o pai seja

homossexual, o que ele faz, ou seja, suas ações não condizem ao que pensa e diz,

uma vez que quer que suas filhas vivam à sua maneira deprimente e solitária, sem

se darem ao desfrute de presenciar momentos agradáveis na companhia de alguém,

ao passo que ele, sim, se daria, beijando e estando na companhia de outro homem,

no caso do jovem moço, podendo estar afastando-o de suas filhas a fim de que

pudesse tê-lo somente para ele e pensando apenas nos seus desejos (aparece,

então, a questão do egoísmo também), além da outra interpretação de que estaria o

afastando das irmãs com o intuito de mantê-las à barra de sua “saia” como sempre o

fizera.

Para finalizar a análise desse conto, pode-se dizer que ele apresenta uma

leitura crítica da sociedade de Moçambique, pois demonstra uma Moçambique pós-

colonial, contemporânea repleta de valores, conceitos, temas sociais atuais,

preconceitos, opressões e submissões das mulheres, conservadorismo,

tradicionalismo e atitudes patriarcais dos homens, bem como práticas

homossexuais. As questões sociais e culturais estão muito bem relatadas no texto

desse conto, revelando a expressividade abrangente e contagiante de Mia Couto.

O conto “A saia almarrotada”, que é a quinta narrativa da antologia, também

é breve, com menos de quatro páginas, nas quais o enredo é referente à história

uma personagem feminina sem nome: “Que o meu nome tinha tombado nesse poço

escuro em que minha mãe se afundara” (COUTO, 2009, p.31). Trata-se de uma

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menina sem voz e vez, cuja existência se dá para fins de pranto, cozinha e pano,

como ela mesma se adjetiva no próprio conto.

Antes de iniciar a narração, há uma epígrafe, que diz que: “O estar morto é

uma mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo. Quando eu morrer, quero ficar

morta. (Confissão da mulher incendiada)” (COUTO, 2009, p.29). Esta epígrafe

salienta a questão da dicotomia e do dilema entre o viver e o morrer para a

personagem principal do conto miacoutiano, no qual se vê que a mesma sofre com a

sua existência para satisfazer os caprichos e apelos do seu tio e do seu pai (na

velhice), uma vez que, sob os desígnios dos dois e com esse destino, “inicia-se um

movimento de cerceamento e alijamento do corpo”, conforme Neto (2011, p. 08). Isto

se pode ver nesta passagem do texto: “Eu me guardava bordando, dobrando as

costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que meu

peito mirrasse na sombra.” (p. 31).

Analisando-se, portanto, o conto de Mia Couto em questão – “A saia

almarrotada”, entende-se que a epígrafe está relacionada com a narrativa curta de

Mia Couto, mas também com o contexto no qual está inserida, uma vez que remete

à questão de sofrimento emocional, de morte nos sentimentos e nas emoções das

personagens, das “mulheres” de uma forma geral.

Assim sendo, as ações da personagem vão desencadeando um

cerceamento e um alijamento da sua própria existência, pois, impedida de

“desenvolver-se atrativa, fêmea, essa personagem vai se desenvolvendo para a

morte, para a fantasmagoria, totalmente à parte de seu universo em que ‘as meninas

saltavam idades e destinavam as ancas para as danças’ (p. 31).” (NETO, 2011, p.

08).

A narrativa é constituída por uma linguagem simples, de compreensão fácil e

expressiva, na qual se pode notar a criatividade e a poética de Mia Couto ao dar

vida às personagens do conto alusivo, criando novos vocábulos juntamente com

uma linguagem popular que retrata o cotidiano africano: o modo de vida, as

ideologias (se as tiverem) das pessoas, seus costumes, o espaçamento no qual as

histórias acontecem, aproximando as suas personagens a essas pessoas reais.

A história relatada está relacionada à personagem central, que é uma mulher

africana, demarcada por uma herança colonial que a desqualifica, segundo Sandra

da Silva Paulino em “DO fio das missangas: a representação da voz feminina em

Mia Couto” (2011). A protagonista da história é uma mulher cuja vida e sociedade

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lhe negaram o direito à expressão, de ser respeitada e ouvida, conforme Paulino

(2011). É a personagem que não possui nome no conto: “Minha mãe nunca soletrou

meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro, tragada pelo silêncio.” (COUTO,

2009, p. 29). Nasceu, como ela mesma frisa, para o choro, a cozinha e o pano, ou

seja, sem ideais a não ser os afazeres do lar, pois era a única menina entre os

filhos, sendo criada pelo pai e pelo tio, os quais lhe “quiseram casta e guardada.

Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades.” (COUTO, 2009, p. 30).

A personagem central de “A saia almarrotada” é sem vaidade nem prazer,

contudo com vergonha, a tal ponto de sentir prazer em ter vergonha, como é

entendido neste trecho do texto: “Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer,

que acabei sentindo prazer em ter vergonha.” (COUTO, 2009, p. 29). Ela alega que

feminilidade e beleza eram para as outras mulheres, para as outras moças, que as

designa “de fora”, as quais “desencobriam as pernas para maravilhações.” (p. 29),

sendo que ela “tinha joelhos era para descansar as mãos.” (COUTO, 2009, p. 29).

Tal enredo, narrado em primeira pessoa, é apresentado de forma alinear,

sendo que no decorrer da história há feedbacks, ocorrem retrocessos no tempo,

através de passagens na memória da personagem feminina, cujas lembranças são

ressaltadas. Pode- se verificar essa retomada de recordações, bem como a quebra

no tempo linear do enredo nesta citação do conto:

E assim se fez: desde nascença, o pudor adiou o amor. Quando me deram uma vaidade, eu fui ao fundo. Como o barco do Tio Jonjoão que ele construiu de madeira verde. Todos teimaram que era desapropriado o material. Um arco nos ombros, foi sua resposta. Jonjoão convocou toda a vila para assistir à largada do barco. Dessa vez, até eu desci aos caminhos. Mal se barrigou nas águas do rio, a barcaça foi engolida nas funduras (COUTO, 2009, p. 30).

Ou, ainda, nestas outras: “A meu tio, certa vez, ousei inquirir: quando secar

o rio estarei onde? E ele me respondeu: o rio vive dentro de si, o barco é que

secará.” (COUTO, 2009, p. 14) ; ou, então, referindo-se ao pai, quando ordenou que

desse fogo no vestido ganho:

Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido (COUTO, 2009, p. 32).

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Ao narrar sua própria história de vida, a narradora faz uma analogia com um

barco de madeira verde que é posto ao rio depois de ser construído por Jonjoão,

entretanto todos duvidaram de sua propriedade, afirmando que o mesmo continha

material que não daria certo quando posto à navegação. Ao ser assistido pelo

povoado todo, inclusive pela personagem principal, Jonjoão teve convicção de que a

madeira verde era realmente desapropriada, pois mal “se barrigou nas águas do rio,

a barcaça foi engolida nas funduras.” (COUTO, 2009, p. 30). Essa metáfora sugere

que, ao lhe darem uma vaidade, ao lhe presentearem, ela foi ao fundo, igual ao

barco do seu tio, afundando nas águas, e ela nas mágoas e tristezas, nos

dissabores da vida, nas opressões a que era submetida, patriarcalmente, confirma e

destaca o fato de que, “[...] desde nascença, o pudor adiou o amor” (COUTO, 2009,

p. 30).

Pedro Fernandes Oliveira Neto (2011) salienta que a narradora do conto,

como as demais mulheres do livro, são almas destinadas à inexistência, ao

esquecimento. A personagem foi educada do mesmo jeito das três irmãs do outro

conto supracitado (“As três irmãs”), com o objetivo de ajudarem os homens da

família quando fossem velhos e, assim, com esse destino, ocorre um movimento de

restrição e de alijamento do corpo: “Eu me guardava bordando, dobrando as costas

para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que meu peito

mirrasse na sombra.” (COUTO, 2009, p.31), bem como de cerceamento e de

alijamento da própria existência, segundo Neto (2011). Dessa maneira e com

impedimentos de se desenvolver atrativa e fêmea, a personagem “vai se

desenvolvendo para a morte, para a fantasmagoria, totalmente à parte de seu

universo em que ‘as meninas saltavam idades e destinavam as ancas para as

danças’” (NETO, 2011, p.31). Neto (2011) diz que

E, aqui chegando, constatamos um fio que une as duas missangas, “As três irmãs” e “A saia almarrotada”: o nome materno “Maria” (nos outros contos leia-se as personagens femininas) está para a maternidade de África, mãe da humanidade, de pernas abertas no meio do mundo entre os fluxos dos movimentos de colonização e que, apesar de tudo, permanece virgem, [...] (NETO, 2011, p. 09-10).

A opção narrativa em primeira pessoa aponta para uma perspectiva que,

além de subjetiva, aproxima o leitor dos fatos narrados. Beth Brait, no livro A

personagem (2002), afirma que a personagem é a câmera, sendo que a “condução

da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua

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condição de personagem envolvida com os ‘acontecimentos’ que estão sendo

narrados.” (BRAIT, 2002, p. 60). Os recursos usados, assim, pelo autor para definir,

descrever, elaborar os seres da ficção os quais causam impressão de vida, atingem

diretamente quem lê por meio de uma personagem, dando maior “verossimilhança”

à cena.

“Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que, arcando com a

tarefa de ‘conhecer-se’ e expressar esse conhecimento, conduz os traços e os

atributos que a presentificam e presentificam as demais personagens” (BRAIT, 2002,

p. 61). Este dizer de Beth Brait dá a ideia de que a narrativa em primeira pessoa,

como no conto “A saia almarrotada”, denota uma caracterização bem como uma

criação de personagem baseada na complexidade do ser humano de se conhecer e

expressar para as outras pessoas esse conhecimento, gerando uma personagem

densa, complexa, que se aproxima de perplexidades humanas.

A personagem feminina sem nome do conto revela esse aspecto acima

descrito, uma vez que se encontra em “abismos insondáveis” de que fala Brait, de

existência humana, a qual é moldada pelo seu pai, consoante o que já fora

mencionado anteriormente nos parágrafos:

Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira. Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência, enxotando tentações que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo quando ele ordenou: - Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido! (COUTO, 2009, p. 31-32).

Este trecho do texto mostra que ela está sob a influência negativa e

dominadora do pai que, mesmo após morto, exerce grandes desvantagens no seu

modo de vida, na sua aparência – mandava-a ficar feia, sem beleza e vaidades -,

nas suas decisões futuras, seguindo os padrões e as normas por ele impostas como

as corretas e fieis, não deixando-a tomar atitudes que lhe conveniariam.

Cristina Vasconcelos Machado (2011) comenta que em “A saia almarrotada”

o discurso em primeira pessoa dá possibilidade de que as protagonistas deem

testemunho e denunciem o estado opressor em que se encontram e se arrisquem

em estratagemas libertadoras. Nesse sentido, é uma forma estética que realça a

condição de opressão da mulher na sociedade. Contando isso sob o viés da vítima,

a opressão parece aos olhos do leitor mais evidente e, por consequência, maior é o

impacto da leitura.

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Ainda sobre o ponto de vista narrativo do conto, é possível destacar que a

visão sobre a vida é negativa, sombria, deprimida, remetendo sempre à morte, ao

fim da vida ou, senão, à perspectiva de felicidade apenas na outra vida. Marlene

Mendes, no texto intitulado “Uma missanga: uma mulher – uma perspectiva literário-

jurídica” (2012), faz menção à personagem ao afirmar que, “Ciente do meio em que

vivia, a jovem ‘mais que o dia seguinte’ ‘esperava pela vida seguinte’” (p. 86) e,

ainda,

Esta moça, que não chegou a conhecer a mãe, cujo óbito ocorre com o parto, vê toda a sua vida marcada por esse acontecimento “desde nascença, o pudor adiou o amor” e “uma tristeza de nascença me separava do tempo. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi a própria fome”. A sua vida é retratada pelo modo como vai para a mesa à hora da refeição, sentando-se numa “estreiteza entre cotovelos em redor da mesa”, mesa e refeição essa em que “os braços se atropelavam, disputando as magras migalhas. Em casa de pobre ser o último é ser nenhum. Assim eu não me servia” (MENDES, 2012, p. 86).

Além da narradora-personagem, a narrativa faz referência ao tio, ao pai e à

mãe da protagonista. Quanto ao pai e ao tio, vê-se que ambos tiveram enorme

influência na vida dela, uma vez que todo o seu ser é moldado pelo pai, cuja voz

continua ouvindo até depois de falecido, segundo Mendes (2012). Este aspecto é

evidenciado nas frases: “Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele

estivesse vivo. Era essa voz que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse

feia, desviçosa a vida inteira”; “sempre ceguei em obediência, enxotando tentações

que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo quando ele ordenou: - Vá

lá fora e pegue fogo nesse vestido!” (COUTO, 2009, p. 14), insinuando para que ela

esquecesse a sua vida. Ela tem as memórias fortes sobre seu tio, o que denota a

enorme influência do mesmo em sua vida, caracterizando a submissão, não tão

ressaltada quanto a do pai, porém de relevância, também, quanto á comparação

metaforizada com o barco afundado. O pai, por sua vez “apagava” a sua existência:

“é essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou de comer. E

escuto a sua ordem para que a vida me ceda a vez”; “agora, estou sentada, olhando

a saia rodada, a saia amorfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a

minha própria vida” (MENDES, 2012, p. 87).

Quanto à influência exercida pela personagem da mãe da protagonista, se

percebe que, provavelmente, também sofreu o silêncio da opressão, da submissão e

da falta de abertura para se manifestar, exaltar suas ideias ou opiniões e seus

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desejos femininos: “Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu

primeiro choro, tragada pelo silêncio!” (COUTO, 2009, p. 29). Entende-se que a mãe

não se manifesta nem lhe é atribuída competência para que tome decisões ou

participe dos acontecimentos da história, sendo que não mais é citada,

relevantemente, no desenrolar das ações da história, ressaltando a sua não

importância aos fatos e aos anseios do pai e do tio, o que caracteriza a sociedade

patriarcal, tradicional e conservadora da época da história do conto de Mia, a qual

condiz que quem manda, quem ordena e quem decide é a figura masculina, no caso

o pai e o tio da protagonista. A passagem a seguir faz menção a esse aspecto: “Que

o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em que minha mãe se afundara”

(COUTO, 2009, p. 31). Aos irmãos, lhes é atribuído o papel de socorrerem-na

quando “dançava entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim” (COUTO,

2009, p. 32).

A história de “A saia almarrotada” é contada com referências ao tempo, que

é, conforme supracitado, mais psicológico do que cronológico, alinear e não linear,

uma vez que há fragmentação da sequência dos fatos da história, por meio de

relatos de recordações e memórias da protagonista quanto a acontecimentos com o

tio, além de situações relativas às outras moças e de momentos em que se

sentavam para fazer as refeições, que não diziam comer, mas sim sentar: “Filha,

venha sentar. Não diziam ‘comer’ que era palavra dispendiosa. Diziam ‘sentar’”

(COUTO, 2009, p. 30); “As outras moças esperavam pelo domingo para florescer.

Eu me guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios não

desabrochassem” (p. 31); “As meninas saltavam idades e destinavam as ancas para

as danças” (COUTO, 2009, p. 31).

Referindo-se ao trecho do conto no qual ela se compara às moças e recorda

situações, se compreende que a construção do espaço de interdição é uma

evidência de tom de elaboração da sua narrativa, como se aferisse a distância e a

intensidade das palavras, como sublinha com nitidez Neto (2011). O crítico explica

que há a concretização de uma espacialidade da linguagem na dupla de vocábulos

assento e acento, utilizada no texto de Mia Couto como forma de distinguir o espaço

subjetivo da personagem do espaço subjetivo das outras personagens marcantes do

ponto de alteridade do sujeito, pois se observa aqui: “Minhas nádegas enviúvam de

assento em assento, em acento circunflexo.” (NETO, 2011, p. 31). Neto explica que

os “assentos”:

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como metáfora espacial e temporal e símbolo do estágio de submissão, passividade e solidão a que está submetida ligam-se ao sentido figurativo do “acento circunflexo”, que pelo seu formato (^) atua como elemento para apresentação do declínio do viço da juventude da personagem (NETO, 2011, p. 08).

À medida que a personagem vai se desencantando com a sua vida diária e

monótona, as outras jovens da vila demonstravam o contrário:

As outras moças queriam viver muito diariamente. Eu envelhecendo, a ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam idades e destinavam as ancas para as danças. O meu rabo nunca foi louvado por olhar de macho. Minhas nádegas enviuvavam de assento em assento, em acento circunflexo (COUTO, 2009, p. 31).

Todas as ações relatadas pela narradora também ocorrem no espaço

restrito de sua casa, no convívio familiar com o pai e os irmãos, além do contato que

teve com o tio. Esse espaço sugere que a narradora é passiva, restrita a situações

que a levariam ao desempenho de suas capacidades intelectuais, psicológicas ou

profissionais, acarretando a passividade com que reage ou não às imposições do pai

e do tio. A ela são dadas ordens e ela as cumpre sem revelar atitudes contrárias a

isso, apesar de demonstrações de resignação, discordância e de que está

ressabiada com a condição imposta pelo pensamento masculino dos dois, todavia

não toma atitudes firmes quanto a essas circunstâncias, vivendo naquele mundinho

preestabelecido.

Considerando esses aspectos formais do conto, pode-se perceber a

opressão feminina vivenciada pela personagem narradora, uma vez que ela se

encontra vivendo em uma espécie de redoma de vidro e exílio: “Mais que fechada,

me apurei invisível, eternamente nocturna.” (COUTO, 2009, p. 13); na qual se afasta

e se enclausura vivenciando momentos de ressentimentos, subalternos, passivos,

opressores, de constrangimentos, ao mesmo tempo em que faz memorização e

recordação de outras situações vivenciadas por ela, parecendo que não existem

outros lugares ou espécie de tradução do que é ser feliz a ela: “Na minha vila, a

única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para

serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me

tranquei em casa.” (COUTO, 2009, p. 29).

Essa repressão, semelhante ao que se nota no conto “As três irmãs”, está

relacionada à questão de uma ideia de “sina feminina”, pois “nascida mulher, deve

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esta perecer aos auspícios do macho, deve levar a comenda até o fim dos dias”

(NETO, 2011, p. 08). Neto salienta que a tentativa possível de suicídio pode ter

evocado a sugestão dessa sina feminina, mesmo que os irmãos interviram e

interromperam-na, uma vez que é, além disso, um momento no qual ocorrem

apontamentos a fim de fugir da interdição, ou seja, uma libertação da estrutura física

corporal de mulher, uma comunhão criada pelo transbordamento físico “com aquele

ensaiado momento antes no transbordamento da palavra, e, agora, novamente

fixado na linguagem e seu tom bruto [...]”, diz Neto (idem) e se pode analisar nesta

passagem do conto: “Lancei, sim, fogo sobre mim mesma.” (COUTO, 2009, p. 32). E

nesta, em que se nota o caráter poético miacoutiano, fundindo o tom áspero com a

poesia: “Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas

quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que

veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido.” (COUTO, 2009, p.

32).

Quanto à análise da temática do conto “A saia almarrotada”, se averigua que

há uma mulher sem nome, subjugada, abandonada, de importância inferior, em

silêncio, sem voz nem vez, em meio à repressão, além da aniquilação a que é

submetida, de todos os modos, pelo pai, pelo tio e, também, pelos irmãos, desde a

sua infância:

Essa protagonista tem seu insight identitário quando o pai a manda queimar uma saia que, em sigilo, ganhou de seu tio. Ao invés de atear fogo na vestimenta, ela a enterra e lança-se à fogueira, mas, os irmãos a salvam. O conto termina com a protagonista levando o vestido para ser queimado, depois de desenterrá-lo e de o pai ter morrido (MACHADO, 2011, p. 07).

Contudo, a voz da opressão ressoa ainda nos ouvidos da personagem, ao

passo que a ausência física de quem a oprimia não concede uma vaidade ou uma

certa liberdade a essa mulher, deletando a caracterização da figura feminina como

alegoria da terra (MACHADO, 2011, p.11), uma vez que “Única menina entre a

filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me quiseram casta e guardada.

Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades” (p.30).

Reprimida e às margens da opressão do pai, a mulher do conto será sem

autonomia, havendo submissão ao aniquilamento de identidade, pois ela diz que

nasceu para cozinha, pano e prato e que as belezas seriam para mulheres de fora:

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“Elas descobriam as pernas para maravilhações. Eu tinha joelhos era para

descansar as mãos” (p.29).

Há duas vozes que fazem eco no conto, de acordo com Machado (2011): a

do colonizador e a da mulher que narra a história do conto, numa perspectiva de

leitura alegórica. A desta a impede de modificar o rumo de sua vida, transparecendo

a do colonizador, que ressoa no povo originário do país onde vive:

Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz que fazia Deus existir. Que me ordenava eu ficasse feia, desviçosa a vida inteira. Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência (...). É essa voz que ainda paira, ordenhando a minha vez de existir. Ou de comer. E escuto a sua ordem para que a vida me ceda a vez (p. 31-32).

Na leitura desse conto, constata-se que a personagem feminina tem

consciência de suas restrições, das ordens que teve de cumprir, da vida restrita a

que foi acostumada a ter, obedecendo aos padrões que lhe foram impostos: “Estava

tão habituada a não ter motivo, que me enrolei no velho sofá.” (COUTO, 2009, p.

29). Esta passagem refere-se à oferta do vestido, quando ela ficou dentro de casa,

em seu “ninho ensombrado” (COUTO, 2009, p. 29); “No dia seguinte, as outras

chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso matreiro. E nem

inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.” (COUTO,

2009, p. 29). Neste trecho, nota-se que a protagonista já estaria ciente do que lhe

aconteceria, já que estaria habituada a tais circunstâncias de opressão e reclusão

domésticas.

Já em “Mas eu sabia que não.” (COUTO, 2009, p. 30), remete ao fato de que

o barco do tio estava cru, feito com madeira crua e ela tinha ciência de que ele não

fizera “um barco para flutuar.” (COUTO, 2009, p. 30). E tal acontecimento ocorreu.

“Agora, a saia de roda era o barco na fundura das águas.” (COUTO, 2009, p. 30),

comparando, fazendo a metáfora do barco afundado com o presente ganhado do

próprio tio.

Ao se ter essa perspectiva de configuração da personagem feminina, pode-

se fazer uma alusão à sociedade retratada no conto, a qual se caracteriza, assim

como no conto “As três irmãs”, por ser uma sociedade enraizada em princípios

norteadores de valores nos quais o patriarcalismo, o autoritarismo, o tradicionalismo

e conservadorismo, ambos masculinos, reinam. Nesse contexto também COUTO,

2009, há a predominância de padrões considerados corretos pelo mundo machista,

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em que a mulher é vista e julgada como objeto de mesa, cama e solidão; como

alguém que não pode debater questões, questionar apontamentos, opinar, tomar

decisões relevantes ao seu ser ou à sua vida, sem ter o direito de buscar

conhecimentos, estudos ou adquirir uma profissão em pé de igualdade com os

homens da mesma sociedade opressora e repressora da voz feminina. “Meu

coração já me tinha expulso de mim. Estava desalojada das vontades.” (COUTO,

2009, p. 30) é uma conclusão da narradora que se alinha a essa perspectiva social.

Quanto à constituição feminina, é importante ressaltar que ela é construída

sempre em comparação com as “outras”, além de ser mostrada como distinta da

masculina: “Na minha vila, as mulheres cantavam. Eu pranteava.” (COUTO, 2009, p.

31). Dá a impressão de que as demais mulheres eram felizes e ela não, ou mais

felizes que ela ou, então, de que as outras se divertiam, saíam, dançavam, porém

para ela acontecia de forma contrária: “As outras moças esperavam pelo domingo

para florescer. Eu me guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios

não desabrochassem.” (COUTO, 2009, p. 31). A característica de comparação

ressalta que ela se sente inferior e recatada perante o estado comportamental das

outras moças, que “queriam viver muito diariamente.” (COUTO, 2009, p. 31), mas

com ela isto não acontecia, “[...] envelhecendo, a ruga em briga com a gordura.”

(COUTO, 2009, p. 31), denotando o estado psicológico e emocional a que está

submetida, consciente e cientemente.

Dessa forma, vê-se que a posição social do homem e da mulher no conto

não é a mesma, pois aquele tem voz, se impõe, ordena e condena, oprime, reprime,

conserva padrões e os segue, determina objetivos para a sua vida e para a de quem

convive com ele. No caso, a filha é o objeto de controle, como se destaca no texto:

É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou de comer. E escuto a sua ordem para que a vida me ceda vez. E pergunto: posso agora, meu pai, agora que eu já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de vaidades? (p. 32).

Ocorre um destaque à palavra “agora” / “posso” no fragmento acima, no qual

o autor as repete, sendo redundante e usando criativamente a linguagem,

denotando a condição de submissão da personagem, como se estivesse implorando

a seu pai. Por sua vez, a personagem frisa o fato de que antes não tinha direito de

se embelezar e de satisfazer suas vontades, interrogando-o se, depois de sua

morte, esse direito lhe cabe ou nunca o terá, mas, mesmo desse modo, diz: “Fico à

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espera de sua autorização, enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do baile que

não houve.” (COUTO, 2009, p. 31p. 32).

O final do conto, no qual a personagem dirige-se para uma fogueira, sugere

que a mulher prefere não mais viver a ser “sufocada” pelas determinações

existenciais a que é humilhada constantemente. Segundo o pensamento de Marlene

Mendes (2012), a ordem anterior para que queimasse o vestido é como quem diz

“esqueça sua vida” (MENDES, 2012, p. 87). Contudo, desobedeceu ao pai, não

queimando a saia e, sim, lançando fogo sobre ela mesma. Esse ato para a mesma

“[...] não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que veio tarde, [...].”

(COUTO, 2009, p. 31p. 32).

“Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa,

almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida.” (COUTO, 2009, p.

15). Aqui, vê-se o jogo criativo e original de neologismo utilizado por Mia Couto para

salientar o pressuposto de que a alma da personagem sem nome é amassada,

amarrotada no sentido de destruída, repleta de vincos, humilhada, triste:

“almarrotada” ao invés de amarrotada – junção de alma com amarrotada, portanto.

Sobre o desfecho da narrativa de “A saia almarrotada”, Pedro Fernandes

Oliveira Neto (2011) afirma que a provável “tentativa de suicídio, falhada pela

intervenção dos irmãos, parece querer evocar a ideia de uma ‘sina feminina’ nascida

mulher, deve esta perecer aos auspícios do macho, deve levar a comenda até o fim

dos dias. [...]” Essa tentativa de se matar é também outro momento que mostra uma

fuga da interdição, um livramento do corpo enquanto fêmea, uma um

compartilhamento dado pelo transbordamento físico com o que fora ensaiado

instante anterior no transbordamento vocabular e, depois, de novo fixado na

linguagem e seu tom bruto, segundo Neto (2011), tom grotesco que se funde ao

joguete de poesia, como se pode notar aqui: “Meus irmãos acorreram, já eu dançava

entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as

mãos escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já

haviam esmorecido.” (p.32).

Nos contos “A saia almarrotada” e “As três irmãs” predomina, também, a

questão da vigilância masculina, representada através da figura masculina em

ambos os contos e os mecanismos que delimitam a expressão do cercear da

liberdade.

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Aqui, a comunidade em que se insere a mulher, os valores educacionais e culturais que lhe são transmitidos provocam na mulher “vergonha de sentir”, a ponto de estas reprimirem o seu próprio viver, se silenciarem e viverem em função de outro, seja esse outro o seu marido ou o seu pai, mas em regra, uma figura masculina (MENDES, 2012, p. 89).

Mendes (2012) denota como as “mulheres inominadas” vivem em função de

outra pessoa e a quem incumbem desenrolar funções sociais aferidas sempre com

desempenho em prol das referidas pessoas, como acontece com a personagem

feminina do alusivo texto em análise.

Além desse diálogo com o contexto social referente ao papel social feminino,

M ia Couto também propõe, no conto “O nome gordo de Isidorangela”, uma reflexão

acerca da sociedade de aparências, como demonstrado na próxima seção.

3.2 Sociedade das aparências: “O nome gordo de Isidorangela”

O conto “O nome gordo de Isidorangela”, que é o décimo primeiro do livro O

fio das missangas, é considerado breve, com três páginas nas quais se observa o

tema central, que é a respeito da obesidade da personagem Isidorangela e as

questões relativas a seu peso perante a sociedade das aparências em que está

inserida, como se pode notar nestas passagens iniciais do texto de Mia Couto:

“Isidorangela era o nome da obesa moça. Nome gordo, ao travar da pena. Na rua,

na escola, ela era motivo de riso. [...]” (COUTO, 2009, p. 29). i

A linguagem do conto é, analisando-se formalmente, de razoável

compreensão, porém não é simples, devido à conotação da oralidade, que é um

traço recorrente na Literatura Africana de Língua Portuguesa. Essa oralidade

presente no conto africano se pode averiguar neste parágrafo de Sandra da Silva

Paulino, em “DO fio das missangas: a representação da voz feminina em Mia Couto”

(2011):

O conto africano engloba em sua narrativa marcas da oralidade (linguística, símbolos) que representam esse povo. Esses contos, segundo Daniel Lacerda (2005, p. 86), possuem “um processo de construção identitário, dialético e homogêneo, apresentando uma ruptura com o passado colonial e de reconstrução de uma nova identidade literária” (PAULINO, 2011, p. 28).

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A linguagem é complexa e não simples quanto menos considerada fácil,

portanto. Os trechos a seguir denotam esse apontamento: “[...] Como pedra no

charco, Isidorangela fazia espraiar uma onda de zombaria. Mas rir declarado e

aberto ninguém podia, a moça era filha do presidente da câmara, Dr. Osório Caldas.

[...]” (COUTO, 2009, p. 29).

A personagem principal, o protagonista do conto, é o narrador da história, o

filho do funcionário do Dr. Caldas, o qual é designado como “nosso chefe” por ele

mesmo no texto: “[...] Como meu pai dizia, o homem era a autoridade. ‘O nosso

chefe’, assim era mencionado lá em casa.” (COUTO, 2009, p. 29). A personagem é

um rapaz que convive no ambiente da sua família de mulatos, como ele mesmo cita

no texto: “[...] Nós, sendo mulatos, tínhamos sorte em receber as simpatias do

chefe.” (COUTO, 2009, p. 29); bem como no da família rica do presidente da

câmara, chefe de seu pai, tendo contato com Isidorangela e seus atributos

femininos, chamando-a de: “[...] O ‘Monumento’, assim lhe chamávamos, nós os

rapazes, em homenagem ao seu tamanho vasto e demorado. [...]” (COUTO, 2009, p.

29).

A personagem feminina e secundária do conto é Isidorangela, a filha do

presidente da câmara, Dr. Osório Caldas, a qual sofre chacota e risos com sua

aparência gorda onde quer que esteja, na rua ou na escola, pois

[...] havia razão para chacotear: a miúda sobrava de si mesma, pernas rasas arrastando-se em passitos redondos e estofados. Para mais, um sorriso tolo lhe circunfletia o rosto. Ela e o planeta: dois círculos concêntricos. O “Monumento”, assim lhe chamávamos, nós os rapazes, em homenagem ao seu tamanho vasto e demorado. (COUTO, 2009, p. 29).

Isidorangela não tem voz na história, uma vez que fazia com que todos

zombassem de seu aspecto físico, contudo essa zombaria não era em tom

declarado e sim sigilosa, conforme o trecho que segue: “[...] Mas rir declarado e

aberto ninguém podia, a moça era filha do presidente da câmara, Dr. Osório

Caldas.” (COUTO, 2009, p. 29), ou seja, filha do homem que representa a

autoridade e, assim sendo, exigia respeito de todos.

O enredo é narrado em primeira pessoa, apresentado de maneira linear,

com seguimento de uma ordem cronológica dos acontecimentos da história, sendo

que o aspecto de ser narrado em primeira pessoa é visto nas passagens seguintes

do conto: “[...] Naquela tarde, de inesperado, ele me deu ordem que me penteasse,

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podendo até usar a sua brilhantina. [...]” (idem, p. 29); “[...] Não obtive

esclarecimento. Meteu-me em roupa de estreia, escovou-me o casaco e me

conduziu por entre as magras ruelas de nossa pequena cidade. [...]” (idem, p. 29).

Beth Brait, em A personagem (2002), fala que a condução da narrativa

por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma personagem. Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse conhecimento, conduz os traços e os atributos que a presentificam e presentificam as demais personagens (BRAIT, 2002, p. 60-61).

Dessa forma e segundo a concepção de Brait, a personagem é a câmera

que capta as imagens e expressa a si mesma, apontando suas ideias, sua vida,

suas vivências, no caso da personagem masculina representada pelo filho do

empregado do Dr. Caldas.

Há a personagem da mãe do narrador, Marta, que “[...] muito se

apoquentava com tanta deferência, o presidente Osório isto, o chefe Osório aquilo.”

(COUTO, 2009, p. 29), dando a entender ao leitor que estaria desconfiando de um

suposto caso homossexual ou homosensual (palavra usada por Mia no conto) de

seu marido com o chefe dele.

Além das personagens mencionadas nos parágrafos anteriores, há, no conto

referido, a mãe de Isidorangela, Dona Angelina, a esposa nobre do Dr. Caldas, dona

de casa, cuja recepção deu ao narrador da história e seu pai quando estes foram

lhes visitar:

[...] Eis que, enfim, uma cortina se move lá dentro e Dona Angelina espreita à porta. Entramos, cheios de vênias, meu pai falando tão baixo que ninguém o conseguia entender. Angelina, a distinta esposa, nos fez entrar pelos salões recheados de mobílias e bugigangas. [...] (COUTO, 2009, p. 30).

O pai de Isidorangela, no entanto, demonstra ser reservado, sem dar muita

atenção aos visitantes, todavia concentrado no jogo de palavras cruzadas, o

passatempo predileto do excelentíssimo:

[...] Instalado numa poltrona, o presidente pouco nos anfitriou. Um displicente aceno para meu pai e, de novo, o olhar recaiu sobre um jornal. A dona de casa explicou: o Dr. Osório estava acabando umas palavras

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cruzadas, havia que terminar antes que a energia elétrica fosse. [...] (COUTO, 2009, p. 30).

Outra e última personagem do conto é o pai do narrador, quer dizer, o

funcionário do pai de Isidorangela, que havia “[...] desejo de agradar ao chefe.”

(COUTO, 2009, p. 29). Essa personagem tem papel relevante no desenrolar da

história do conto, pois é por meio de suas ações, juntamente com as do seu filho,

que a mesma se dá, desencadeando as possíveis ligações e desfechos da história.

O interesse em agradar ao seu chefe é tão ressaltado, que acaba se tornando

exagerado: “[...] No seguimento, tocou à campainha com respeitos tais que seu dedo

mal roçou o botão. [...]” (idem, p. 30); “[...] E explicou, pronunciando um português

que eu nunca escutara: aqui, nas residências finas, todo o mínimo é logo um

barulho. [...]” (idem, p. 30), alertando ao filho que fosse educado e polido “[...]

enquanto em visita aos Caldas.” (idem, p. 30) e que “[...] puxasse lustro [...]” (idem,

p. 30), fazendo alusão ao português correto que teria que falar.

Ocorre predominância de metáforas na história, uma vez que na passagem

próxima se vê a comparação da expressão do rosto do narrador do conto com a

tolice a que estava sendo submetido, quando seu pai o manda “voltear” pela casa

com Isidorangela, bem como a comparação desta com um monumento:

[...] A palavra soou-me como obscena: voltear? A minha cara devia ser o lastimoso retrato da parvoíce brilhantina escorrendo sobre a testa, sobrolho denunciando o aperto nos pés e uma constrição do lábio superior em cobiça do algodãozinho. Um mal disfarçado empurrão de meu velho me colocou no caminho da gorducha. Nos braços do “Monumento”, a melhor dizer. [...] (COUTO, 2009, p. 31).

Também se verifica a presença de metáfora nesta outra passagem do conto:

“Me deu uma raiva tal que, quando enlacei Isidorangela, ela até vacilou, em

desequilíbrio. Quase caiu sobre mim e o pauzinho de algodão ficou como bandeira

arriada entre os nossos rostos.” (idem, p. 31). Estas frases salientam como o

narrador faz analogia do algodão doce com um estandarte posto entre os rostos dele

e de Isidorangela.

A visão sobre a vida representada no conto de Mia Couto é uma visão chata,

um pouco negativa e sombria (no sentido de que ficam obscuros os pensamentos e

as falas dos personagens, dando ao leitor a incumbência de ler nas entrelinhas o

que está se passando), porque há a relevância ao aspecto de que a personagem

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Isidorangela é vista pela sua aparência de gorda, bem como essa relevância

também é destacada ao se estudar as outras personagens: o próprio Dr. Osório

Caldas, o qual se mantém discreto, entretanto com guardados pensamentos e

possíveis sentimentos os quais não são relevados, permanecendo em um sofá,

fazendo palavras-cruzadas, até o término da história do conto; o pai do narrador

que, sempre muito discreto, guarda segredos somente subentendidos no final da

história, mantendo as circunstâncias pelas aparências delas; e a mãe de

Isidorangela, que em momento algum demonstra ter algum tipo de relacionamento

afetivo com o empregado de seu próprio marido, deixando menos sombria a visão

disso apenas no término do conto, também.

O enredo do conto é contado com alusão ao tempo, que é linear, com

destaque a ações que obedecem a um desencadeamento cronológico do tempo,

básica e principalmente se dando em uma tarde, conforme se enxerga neste trecho

do texto coutiano: “Naquela tarde, de inesperado, ele me deu ordem que me

penteasse, podendo até usar a sua brilhantina.” (COUTO, 2009, p. 29). Contudo,

não é apenas naquela tarde que as ações do enredo ocorrem; há, além dela, um

feedback nas recordações bem como nos relatos citados pelo narrador, ao falar

sobre o presidente, seu pai e as honrarias que prestava ao seu chefe: “[...] Todo o

fim do mês, o presidente levava Isidorangela ao baile do Ferroviário, mas ninguém

nunca a convidara para dançar.” (idem, p. 29); “À medida do tempo, meu pai crescia

em seus submissos modos, todo manteigoso e sempre arquitetando cumprimentos e

favores.” (idem, p. 29).

As ações destacadas pelo narrador no conto se dão no espaço da casa, na

“residência” (como é ressaltada no texto, por ser de pessoas ricas) do Dr. Osório

Caldas, mais precisamente no salão dessa casa: “Passemos ao salão para

aproveitar o tempo – disse Dona Angelina. No salão estava o ‘Monumento’:

Isidorangela, envolta em seu vestido rosa.” (idem, p. 30). Esse espaço faz referência

ao ambiente espacial de certo luxo, “salões recheados de mobílias e bugigangas”

(idem, p. 30) e de aparências do presidente da câmara.

Enfatizando esses aspectos formais do conto, pode-se notar a questão da

sociedade das aparências a qual o mesmo faz menção representativa através da

personagem Isidorangela, já anteriormente citada, pela sua aparência gorda até no

nome, uma vez que essa sociedade, diante de recursos linguísticos de Mia Couto

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presentes no texto, é uma sociedade dos tempos antigos, onde a luz elétrica

moderna não existia:

[...] A dona de casa explicou: o Dr. Osório estava acabando umas palavras cruzadas, havia que terminar antes que a energia elétrica fosse. Sim, daí a pouco a tarde se adensaria e a luzinha fosca do petromax não seria suficiente para terminar o passatempo favorito do presidente (COUTO, 2009, p. 30).

O pressuposto de que a sociedade representada no conto aqui analisado se

trata de uma sociedade de aparências reflete o caráter social que o texto do autor

possui, sublinhando que existem mais estudos a respeito dessa observação, além

da questão alusiva à obesidade ou ao peso excessivo da personagem Isidorangela.

Estes apontamentos mostram questões sobre as personagens da mãe de

Isidorangela e do pai do narrador e o possível “caso” de amor que tiveram no

passado, dando abertura à interpretação de uma possível traição de ambos, na

história. Pode-se averiguar essas questões na passagem:

Num desses passos, reparei com surpresa que meu velhote e Angelina também dançavam. No cadeirão afastado, o presidente cabeceava ensonado. E, de repente, o que descobri? Coração apertando-me mais que os sapatos, vi as mãos de Angelina se entrelaçarem, em ternura esquiva, nos dedos de meu pai. [...] (COUTO, 2009, p. 31).

A sociedade das aparências está relacionada à discussão a respeito da

cultura ao corpo considerado socialmente bonito, isto é, o magro, sendo que quem

está acima do peso não é bonito, não tem beleza padrão ou, então, está sujeito a

encarar situações de chacota, zombaria, deboches sociais, como é o caso de

Isidorangela. Um corpo bonito, livre de gozações e perante o pensamento e

ideologia da sociedade, é aquele esbelte, que não é gordo, o que difere do corpo da

personagem estudada, sendo comparado à circunferência, círculo e monumento:

todos remetem à adjetivação do que é redondo, grande e gordo.

A sociedade das aparências em “O nome gordo de Isidorangela”– tema

desta seção, é frisada, também, pelo aspecto do caso de amor entre o pai do

narrador e a mãe de Isidorangela, Dona Angelina. A traição do casal e o possível

fruto dela: Isidorangela, só são entendidos, apesar de que pelas entrelinhas e sem

muitos indícios escritos, deixando ao leitor uma ambiguidade de compreensão da

história, ao final do conto.

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Mas existe uma certa ironia quando o pai do narrador conversa com sua

esposa, Marta, a qual questiona o porquê de tamanha deferência do mesmo ao

presidente Osório, no início da história:

[...] A minha mãe muito se apoquentava com tanta deferência, o presidente Osório isto, o chefe Osório aquilo. - Poça, homem, até parece devoção estranha, coisa de amores homosensuais... - Tenho pena dele, Marta. Pobre homem, deve sofrer com aquela filha (COUTO, 2009, p. 29).

No conto estudado, há “[...] o enfraquecimento do espaço de interdição

marcado seja pela presença do humor seja pela tomada de atitude por parte do

sujeito subjugado.”, consoante Pedro Fernandes Oliveira Neto (2011), em “O espaço

da interdição em O fio das missangas, de Mia Couto”. Nos trechos a seguir, dá para

se perceber esse humor a que Neto se refere: “E já não havia algodão-doce a não

ser no rosto de Isidorangela. Um impulso irresistível me fez linguar aquela réstia de

doce. A moça entendeu mal a lambidela. [...]” (COUTO, 2009, p. 31); “- Vou-lhe dar

uma dentada. – A mim? – a gorducha aflautou um riso nervoso.” (idem, p. 31), que é

o momento em que o narrador dança com Isidorangela com algodão doce nas mãos.

Lendo-se o conto, observa-se que a personagem é vítima do que é

considerado correto, belo, do que é considerado dentro dos padrões de beleza

socialmente impostos e melhor valorizados pela sociedade, porém ela não tem

consciência desse sofrimento, não tem voz na história, sua fala não é ressaltada

pelo autor tampouco pelo narrador da história, uma vez que fica calada, apenas ri, e

somente é observada e descrita pelo narrador, com quem dança uma valsa pelo

salão da casa dos pais dela, naquela tarde.

Ao se ter essa perspectiva de configuração da personagem Isidorangela,

pode-se fazer menção à sociedade retratada no conto, que se adjetiva por ser, de

certa maneira, tradicional, onde as aparências reinam, se camuflam e destacam o

caráter de uma sociedade cuja essência está no aparentemente correto, mesmo que

este não exista de fato, moralmente falando.

O término do conto reflete que o narrador ficou indignado com a

probabilidade de ser irmão de Isidorangela: “E olhando, quase a medo, revi sob o

seu redondo rosto a ruga de família, o sinal que eu acreditava ser obra exclusiva da

minha genética.” (idem, p. 31). O último parágrafo do texto condiz ao fato deles

serem irmãos, mas, também, a mais duas probabilidades que não deixam totalmente

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claras as hipóteses: uma, a da suposta relação amorosa entre seu pai e Dona

Angelina; e a outra é a possível tendência afetiva surgida entre ele próprio e

Isidorangela, como se pode entender abaixo:

Quis ofuscar-me do mundo, em desvalência. Mas já os dedos de Isidorangela entrançaram os meus, com igual volúpia com que sua mãe ia apertando meu velho pai. Num sofá obscurecido Osório Caldas ia descruzando palavra enquanto cabeceava, pesado, sobre um velho jornal (COUTO, 2009, p. 31).

O trecho “[...] enquanto cabeceava, pesado, sobre um velho jornal.” (idem, p.

31) é uma metáfora da situação de traído do Dr. Caldas, fazendo alusão a esse fato

“desvendado” e à atividade de concentração para a realização das palavras

cruzadas, deixando a cabeça depositada e pesada, cansada, em cima da tarefa.

Portanto, existe uma ambiguidade neste caso também, que encerra a história do

conto “O nome gordo de Isidorangela”.

Além disso, é possível pensar na representação da probreza social do país e

da sua população, como se percebe no próximo conto analisado, “O homem

cadente”. Sobre esse recorte de análise constrói-se a última parte deste capítulo.

3.3 Desigualdade social: “O homem cadente”

O conto intitulado “O homem cadente” é o segundo do livro O fio das

missangas (2009), o qual tem duas páginas e meia, sendo um conto breve, em que

a temática presente revela a questão da representação da pobreza social, seja

através do seu protagonista José Antunes Marques Neto, Zuzézinho, o Zuzé Neto,

como é chamado no conto, seja por meio de outras personagens ou ações que as

mesmas realizam.

O conto possui uma linguagem não tão fácil nem simples, todavia acessível

e baseada na oralidade do povo africano, pela qual se pode perceber a conotação

na linguagem criativa e inovadora do escritor Mia Couto, recheada de neologismos,

tais como “as gentes”, “se depressavam”, “zaranzeando”, “desabismado”,

“aranhava”, “zunzuns”, “destrapezista”, “bichanava”, “descrucificado”,

“desacontecimento”, dentre outros presentes no decorrer do texto coutiano.

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Essa linguagem complexa com que o autor trabalha para elaborar seus

contos, conforme salienta Rosana Gondim Rezende Oliveira em “Entre o real e o

onírico: o fantástico de Mia Couto em ‘O homem cadente’” (2012), suscita de uma

prosa poética na qual são conjugados o lirismo e a simplicidade, “[...] tornando essa

recriação de expressões populares da língua portuguesa uma recriação da própria

realidade.” (OLIVEIRA, 2012, p. 578). É o que denota a capacidade de Mia em

inventar, no que tange à recriação da linguagem, metaforizando o cotidiano da

sociedade africana moçambicana contemporânea.

De acordo com Oliveira (2012, p. 579), Mia Couto, em “O homem cadente”,

faz metáforas constantes e há acontecimentos insólitos na história, demonstrando

como a literatura trabalha na rotina diária das pessoas, gerando mudanças nas

relações bem como nos comportamentos das mesmas e na organização da

sociedade na qual elas estão inseridas, uma vez que o escritor, em meio a uma

prosa poética que se contrabalança entre o real e o onírico (sonhos), “[...] focaliza a

natureza humana, seus conflitos e seus anseios nas relações sociais, sobretudo, a

capacidade do homem de sonhar e, quem sabe, através dos sonhos, transformar a

realidade.” (OLIVEIRA, 2012, p. 579).

O personagem principal da narrativa curta coutiana, o protagonista, é um

homem cujo nome é José Antunes Marques Neto, o Zuzézinho ou Zuzé Neto, um

homem que “[...] Está caindo do prédio” (COUTO, 2009, p.06). É um “[...] velho

amigo estatelado na calçada.” (COUTO, 2009, p. 06). Velho amigo, esse, do

narrador da história, que “[...] lá estava, pairando como águia real, [...], em artes de

aero-anjo.” (idem, p. 06).

O protagonista seria um político, e aquilo “provinha de ele ter existência

limpa: lhe dava a requerida leveza.” (idem, p. 06) ou, então, “[...] com o peso da

consciência, desfechava logo de focinho.” (idem, p. 06); estaria Zuzézinho fugindo

“[...] era de suas dívidas.” (idem, p. 07), porém nenhuma pessoa “[...] cobra no ar.”

(idem, p. 07); seria, quem sabe, “[...] o novo Cristo.” (idem, p. 07) ou o “[...] Cristo

descrucificado.” (idem, p. 07).

A história tem um narrador em primeira pessoa, ou seja, é um narrador

homodiegético, conforme a terminologia de Genette, o qual conta uma história,

participando e se destacando nela, mas não é o seu protagonista (OLIVEIRA, 2012,

p. 579). O narrador já inicia a história do conto, fazendo alusão ao personagem

principal Zuzézinho, que estaria caindo do prédio, e aponta haver espanto com isso:

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“Quando me vieram chamar, nem acreditei: [...]” (COUTO, 2009, p. 06); “[...] Me

juntei às correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? [...]” (COUTO,

2009, p. 06). A passagem: “[...] Enquanto corria, meu coração se constringia. Antevia

meu velho amigo estatelado na calçada. [...]” (COUTO, 2009, p. 06) demonstra a

reflexão do narrador a respeito de tal episódio a que é chamado a presenciar na

história, indagando-se: “[...] Que sucedera para se suicidar, desabismado? Que

tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de hoje são lixívia,

descolorindo os encantos.” (COUTO, 2009, p. 06).

O narrador do conto é um homem que participa e se envolve nos

acontecimentos dos fatos, entretanto não é o personagem principal, de acordo com

o que fora dito; ele grita ao ver que Zuzézinho está lá “pendurado” ou “caindo” e

ninguém faz nada de concreto, ninguém que está presenciando tal cena se

manifesta para adquirir uma atitude, a não ser ele próprio:

Se nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas nuvens. A mim me abalava era a urgência de meter mãos na obra. Alguém devia fazer a certeira coisa. E gritei, entre os zunzuns: - Chamaram os bombeiros? (COUTO, 2009, p. 07).

O conto tem metáforas do cotidiano, “[...] suscitando uma prosa poética em

que se conjugam simplicidade e lirismo, tornando essa recriação de expressões

populares da língua portuguesa uma recriação da própria realidade” (OLIVEIRA,

2012, p. 583). O autor é capaz de inventar, quanto à recriação linguística, usufruindo

desses subsídios de metáforas ou analogias, através da utilização de novos

vocábulos da língua, de termos da cultura africana, de elaboração nova de palavras

ou expressões populares ao criar a narrativa questionadora dos valores humanos,

com poética e finura, alterando as leis da natureza. As frases são parecidas com

parágrafos e versos de estrofes, notando-se o ritmo e a sonoridade nelas: “[...]

Aquilo, meus senhores, é o Cristo descrucificado.[...]” (COUTO, 2009, p.07); “[...]E,

agora, pronto: ponho ponto.” (idem, p.08); “[...] Se sim, vinha mais lento que o planar

do planeta pelos céus.[...]”(idem, p. 06). Assim, o autor arquiteta um texto lírico

(OLIVEIRA, 2012, p. 583), a partir do fio de silêncio das missangas, o qual

emaranha o tempo, fazendo com que o leitor reflita sobre seu modo de viver em

sociedade bem como questione sobre suas certezas, “[...] fomentando uma das mais

belas funções da literatura: a catarse.”, sublinha Oliveira (2012, p. 583).

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Falando-se sob o aspecto formal e narrativo do conto, ainda se nota que há

uma visão negativa sobre a vida, pois o personagem central da narrativa curta

coutiana em questão mostra um universo sombrio, no qual “[...] A realidade é mais

rasteira, feita de peso e de pés na terra.” (COUTO, 2009, p. 08). Nesse discurso,

transparece uma referência à visão crítico-social do contexto a que se refere.

Ainda é possível apontar que esse universo negro ou nebuloso é

pertencente ao outro tipo de universo: o fantástico, o maravilhoso de Mia Couto, pois

tudo o que o narrador do enredo do conto narra se trata de um sonho, de uma

fantasia, como ele mesmo conta nestes trechos a seguir:

E, agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não esticar engano. Pois tudo o que vos contei, o voo de Zuzé e a multidão cá em baixo, tudo isso de um sonho se tratou. Suspirados fiquemos, de alívio. A realidade é mais rasteira, feita de peso e de pés na terra (COUTO, 2009, p. 08).

Os personagens do enredo são, além do principal, o narrador, que é esse

homem participativo das ações da história, envolvido com elas e consciente delas,

segundo se pode observar nestas frases sobre o sonho que ele tivera e a realidade

quando foi ao local em que, supostamente, haveria Zuzézinho “caindo”: “Mas eu, no

dia seguinte, não estava certo do meu sossego. E fui ao local para me certificar de

quanto eu devaneara. Encontrei tudo arrumado no regime da cidade. Lá estava o

céu, vazio de humanos voadores.” (COUTO, 2009, p. 08).

O tempo relatado na narrativa segue uma sequência lógica dos fatos, é um

tempo linear, em que os acontecimentos ocorrem como se fossem em uma linha

temporal e cronológica dos fatos, dando seguimento às ações decorrentes da

história. Isto pode ser analisado nestes trechos do próprio conto: “Quando me

vieram chamar, nem acreditei: [...]” (COUTO, 2009, p. 06); nestes, a seguir,

averigua-se que Zuzézinho havia se atirado na noite anterior, mas somente foi

observado pela multidão no dia seguinte: “Atirara-se quando? Já na noite anterior,

mas o povo só notara no sequente dia. [...]” (idem, p. 06); “[...] E os dias seguintes

prosseguiam como se o próprio ar tivesse parado. [...]” (idem, p. 07); “[...] Mas eu, no

dia seguinte, não estava certo do meu sossego. [...]” (idem, p. 08). Todas estas

passagens do conto revelam o caráter temporal descrito acima.

O espaço no qual acontecem as ações da história é o espaço da rua, na

calçada: “[...] Antevia meu velho amigo estatelado na calçada [...] “ (idem, p. 06);

juntamente com o prédio: “[...] É Zuzézinho! Está caindo do prédio. [...]” (idem, p.

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06); “[...] Me aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. [...]” (idem, p. 06).

Esse espaço demonstra que vai além do espaçamento físico do prédio, da rua com

a multidão de pessoas ou da calçada. Vai até as nuvens, até o céu, que é onde o

personagem principal do conto “se encontra”, conforme se vê nesta passagem: “[...]

Se nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas nuvens. [...]”

(idem, p. 07),. Essa passagem demonstra como a pobreza social é vigente na

realidade moçambicana, uma vez que não havia comida decente para população e

de acordo com o necessário à sobrevivência do povo. A alusão comparativa à

comida no “chão”, que remete diretamente ao contexto, e “lá no alto do céu, como se

encontra Zuzézinho” é uma referência para alertar para as dificuldades sociais

encontradas pela população. Ao comparar terra e céu, o narrador acentua a situação

de degradação social, confirmada quando ele salienta que as pessoas gritavam: “[...]

Vai é morrer de sede e fome. [...]” (COUTO, 2009, p. 07).

Levando-se em consideração os itens já apontados sobre o conto, observa-

se que a temática fala a respeito de certa denúncia social utilizada por Mia Couto a

fim de representá-la por meio da literatura que traz indícios do maravilhoso e

fantástico. Através disso, o conto enfatiza o aspecto da “[...] capacidade do homem

de sonhar e, quem sabe, através dos sonhos, transformar a realidade.” (OLIVEIRA,

2012, p. 579).

O sonho, que é o maravilhoso no conto do autor, faz com que a realidade

fique camuflada, escondida, amenizada. Quando se sonha, se está agindo no

subconsciente e, assim, não se está ciente dos acontecimentos no sonho narrados,

no sentido de que os fatos acontecem e a pessoa não age conscientemente; é a

mente trabalhando de modo inconsciente e isso faz com que haja uma determinada

fuga da realidade, pois esta, muitas vezes e por Mia denunciada, é cruel aos seres

humanos, sendo que estes querem escapar dela. Essa fuga pode ocorrer através

dos sonhos. No conto, o sonho do personagem narrador se trata dessa escapatória

à realidade, ao que é cru e cruel, às mazelas sociais, tentando cicatrizar as chagas e

é onde cabe interpelar pela literatura da fantasia e do maravilhoso através do sonho

do narrador do conto, pois neste é possível tentar transformar a realidade. E talvez

seja somente por meio do sonho mesmo que essa transformação poderá se dar,

infelizmente.

O título do conto “O homem cadente” recai sobre essa reflexão, que é o

sonho do homem que cai, que possui cadência, ritmo; é ritmado, cadenciado, no

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sentido de que isso tem uma simbologia: simboliza, metaforiza uma pessoa com

problemas sociais, cujas dificuldades são possivelmente escondidas através de um

sonho do narrador da história, que é seu amigo, em uma tentativa fantasmagórica ou

maravilhada de modificar a sua realidade com os problemas, angústias, anseios e

quesitos presentes na sociedade moçambicana contemporânea, contextualizada na

narrativa do autor ilustre.

Silva (2010) explica que o elemento fantástico ou o “protocolo do

maravilhoso” (SILVA, 2010, p. 23), está relacionado ao fato de o protagonista se

encontrar pendurado no céu, o que é contra as leis da física ou da natureza em

nosso mundo. Ninguém se encontra dessa forma mediante as leis regidas nesse

mundo dos homens reais. Sendo desse modo, “[...] o autor se serve de um artifício –

o do sonho – para justificar a ocorrência desses fatos e retornar ao âmbito da

realidade ficcional, sujeitando-se às leis conhecidas no mundo real.” (SILVA, 2010,

p. 23), originando uma estratégia de narração inovadora e original.

Ao se comentar sobre a questão do fantástico no texto do autor, há de se

frisar a presença reiterada de aves da mitologia e de metamorfoses que povoam a

imaginação popular da África, consoante Silva (2010, p. 24). No trecho abaixo, os

elementos fantásticos do texto são destacados e prezados, visionando

metaforicamente a personagem, com base em uma leitura nas entrelinhas: “[...]

Menti que sim. Afinal, mais valia um pássaro. Mesmo de fingir. Deixássemos Zuzé

voar, ele já não tinha onde tombar. Neste mundo, não há pouso para aves dessas.

Onde ele anda, é outro céu.” (COUTO, 2009, p. 08).

A respeito da questão do aspecto fantástico que tem o alusivo texto do autor,

ainda Oliveira (2012) destaca que:

[...] Deparamo-nos, portanto, com um acontecimento insólito e a atmosfera de mistério e suspense evidencia-se pela presença do fantástico, gênero responsável pelo estranhamento, pela hesitação do leitor em aceitar ou não os acontecimentos. [...] (OLIVEIRA, 2012, p. 580).

Ocorrem, consoante Oliveira (2012), explicações que se traduzem em

críticas da sociedade permeadas de humor, as quais são vistas aqui:

Que aquilo provinha de ele ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e, com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar. [...] Se nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas nuvens. A mim me abalava era

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a urgência de meter mãos na obra. Alguém devia fazer a certeira coisa. E gritei, entre os zunzuns: - Chamaram os bombeiros? Sim, mas estavam em greve. Estivessem no activo faria pouca diferença: eles não tinham carros, nem escada, nem vontade. Eram, na verdade, bombeiros bastante involuntários (COUTO, 2009, p. 07).

Essa temática da denúncia social está coerente com a realidade

contemporânea africana, mais precisamente de Moçambique, conforme se pode

perceber nos fragmentos acima, primeiramente, fazendo menção aos políticos do

país. Estes, “com o peso da consciência” (COUTO, 2009, p. 06), isto é, com a

consciência pesada, suja, como se diz, haveriam de dar um jeito na própria vida de

charlatões e corruptos com a qual seriam acostumados a ter na política africana. Ou,

então, Zuzé neto seria um devedor de contas públicas ou comerciais e, no

desespero de não poder pagar suas sofridas dívidas, daria um fim à sua existência,

todavia “[...] Ninguém cobra no ar. [...]” (idem, p. 07). Isto significa que a morte não é

o remédio nem as alturas são o refúgio para tal débito, mas ninguém se atreveria a

cobrar nelas, o que seria uma fuga para o mau-caratismo do personagem.

Também há a representação da pobreza social denotada nesta passagem

acima mencionada, uma vez que a pobreza e a fome são questões sociais

relevantes na sociedade contemporânea moçambicana. À medida que o continente

africano, ou melhor, parte dele não apresenta desenvolvimento social, econômico e

cultural promissor, pois, como destaca Eduardo de Freitas em “As principais causas

da fome na África” (...) “se caracterizam pela presença da fome, realidade que

aumenta a cada dia.” (FREITAS, s.d, p. 01), pode-se associar esse dado ao enredo

do conto. Países que mais sofrem com essa carência são, além de Moçambique,

Somália, Etiópia, Sudão, Malawi, Angola e Libéria, enfim uma realidade dura que

acaba sendo representada na literatura, como parece ser um caminho fecundo para

leitura de “O homem cadente”.

Essa possibilidade de leitura ganha maior vigor quando se consideram

outros dados sociais africanos. O continente africano revela um índice muito

acentuado de pessoas subnutridas, dando-lhe “a condição de pior do mundo nesse

aspecto.” (FREITAS, s.d, p. 01). Há uma perspectiva pessimista quanto aos

números elevadíssimos de subnutridos, uma vez que, conforme uma exposição de

dados do Instituto Internacional de Pesquisa em Política de Alimentação, “o número

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de crianças subnutridas subirá cerca de 18%, estimativa para o ano de 2020.”,

segundo Freitas (s.d). Ou seja, tem-se um cenário de pobreza confirmado.

Conforme um levantamento feito pela Organização das Nações Unidas

(ONU), aproximadamente 150 milhões de pessoas da África não têm acesso aos

valores diários mínimos de calorias necessárias. “E o pior, outros 23 milhões podem

literalmente morrer de fome ou por causas provenientes da mesma, como

insuficiência de determinados nutrientes no organismo: falta de potássio, proteína,

cálcio, entre outros” (FREITAS, s.d, p. 01). Os motivos que proporcionam essa

deplorável situação africana são vários, desencadeando a proliferação da fome no

continente, através dos fatores: redução de alimentos ofertados; ocupação de terras

para o plantio de culturas monocultoras à exportação; ocorrência elevada de

desertificação; diminuição das pastagens e terras férteis na África, bem como as

guerras civis resultantes dos conflitos de etnias, o que, em “suma, [...] é um quadro

socioeconômico bastante debilitado, e as perspectivas são negativas em relação a

esse continente.”, consoante Freitas (s.d).

Tomé Ferreira, no texto “925 milhões de pessoas passam fome no mundo”,

salienta que

Com a população mundial aumentando anualmente em cerca de 75 milhões [...], sendo que metade tem menos de 25 anos de idade, as estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU) prevêem para o ano de 2050 que a quantidade de idosos deve alcançar um total de dois bilhões de pessoas (grande problema para a aposentadoria e aposentados) fato que agrava e muito o problema devido à queda da população economicamente ativa (FERREIRA, s.d, p. 02).

Referindo-se a Moçambique, Tomé Ferreira afirma que as estatísticas da

miséria são desoladoras, uma vez que o país encontra-se dentre os vinte países

com IPH (Índice de Pobreza Humana) mais baixos do mundo, atingindo 50,6% do

percentual. Já quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Moçambique

atingiu 0,384, comparando-o com demais dezenove países com esses índices mais

baixos do mundo.

Tais dados da realidade de Moçambique são denunciados e discutidos por

Mia Couto, especialmente quando há referência a dados caracterizadores do espaço

onde habitam os seus personagens. Em seu país, as pessoas passam necessidades

existenciais de fome e sede e não seria indo ao céu e ficando longe da terra que as

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mesmas as sanariam, e de alguma forma isso é representado nas narrativas do

escritor, tal como se observa em “O homem cadente”.

Outro apontamento de denúncia social há nos fragmentos sobre o descaso

dos bombeiros ao serem chamados ao seu ofício. O conto demonstra que, a classe

funcional dos bombeiros estando em pleno exercício de suas funções ou em greve,

não traz diferença, pois materiais – carros e escada – não havia tampouco o mais

importante: a vontade de trabalhar. Eles não eram voluntários e dispostos às

necessidades da população, o que frisa uma denúncia ou crítica social ao país

africano ali também.

O protagonista, Zuzé Neto, sofre as ações da história e não participa

ativamente delas, porque tudo se trata de um sonho do narrador, seu amigo, porém

com ambiguidade ao final da narrativa, transparecendo que o fantástico no conto

tem duas ordens, como salienta Oliveira (2012):

A atmosfera de suspense e de mistério, que parecia ter findado mediante a revelação do narrador de que tudo não passara de um sonho, retorna agora com intensidade, estreitando as fronteiras entre o real e o onírico. Habitando os dois mundos, a moça é o elo entre o fantástico e a realidade e, talvez, mais do que isso, entre o mundo natural e o sobrenatural, entre o racional e o irracional, promovendo a coexistência dessas duas ordens, de onde

emerge a ambiguidade do fantástico (OLIVEIRA, 2012, p. 582).

A moça de quem fala o trecho acima é a do sonho que depois o narrador

encontra e dialoga com ela: “[...] De repente, vi a moça. A mesma do sonho. Ela,

sem tirar nem por. [...]” (COUTO, 2009, p. 08). Ela estava olhando para o céu e disse

que não mais enxergava Zuzé nas alturas, pedindo se o narrador o enxergava e ele

mentiu que sim, afinal “[...] mais valia um pássaro. [...]” (idem, p. 08), fazendo

referência ao ditado popular da Língua Portuguesa: “Mais vale um pássaro na mão

do que dois voando”.

Ao analisar-se o pressuposto da desigualdade social averiguado no conto

alusivo, vê-se que a sociedade representada nele é pobre econômica e moralmente

falando, por se tratar de uma carência não apenas no lado da economia

moçambicana como, também, no lado ético. A pobreza representada no conto “[...]

traz a realidade própria de Moçambique.” (SILVA, 2010, p. 27) e, ainda, Silva,

comentando sobre Mia Couto:

[...] É fortemente ligado às raízes e tradições de seu país, e as coloca sempre em confronto não apenas com a modernidade, mas com as

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identidades fluídas e permeáveis da pós-modernidade. Zuzé emerge como o absurdo de um passado que tenta sobreviver num mundo no qual não encontra mais espaço, um mundo da técnica, da lixívia, que “descoloriu os encantos”. Fica a esperança de se achar um lugar onde possam conviver ambos tempos e experiências (SILVA, 2010, p. 27-28).

O final do conto coutiano sugere que a moça do sonho do narrador surge

exatamente igual ao sonho e eles dialogam, mas esse diálogo deixa uma

ambiguidade de interpretação para o leitor decifrar, uma vez que o narrador mente

ao ser questionado se ainda via Zuzézinho pairando no ar, sendo que ela não mais o

podia ver. Mente para dar mais ênfase ao caráter maravilhoso, fantástico e

fantasioso de Mia Couto, afinal: “[...] mais valia um pássaro. [...]” (COUTO, 2009, p.

08). “[...] Neste mundo, não há pouso para aves dessas. Onde ele anda, é outro

céu.” (idem, p. 08), revelando que a imaginação de Mia vai além do terreno,

deixando-a fluir como o voo de Zuzé Neto, o personagem central do conto até aqui

analisado.

Tal recurso soma-se a possíveis leituras sobre o título da narrativa, que

acentua a ideia de um homem cadente. Este termo remete a algo, de acordo com o

Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986), que vai caindo, que tem

cadência; é cadenciado, ritmado; é um termo que se classifica, dentro das classes

gramaticais, como adjetivo. Associando esses significados ao conto, percebe-se a

ideia de “caída”, de algo que não está bem, de algo que não funciona bem, o que

pode ser entendido como leitura da sociedade a que remete o conto. Ainda em

relação ao título do conto, Avani Souza Silva, no artigo denominado “Guimarães

Rosa e Mia Couto: breves diálogos” (2010), comenta que ele remete à figura de uma

estrela cadente,

[...] sugerindo-nos similaridades entre ela e a personagem. Zuzé caiu do prédio numa noite e apenas no dia seguinte foi percebida a sua presença, tal como uma estrela cadente, cuja queda percebemos muito tempo depois com o advento de sua luz em vertiginoso declínio. Porém, Zuzé não caiu, ficou em estado de caimento. Encontraram-no suspenso no céu, livre e vivo, plainando como “uma águia real”. (SILVA, 2010, p. 23).

A estrela cadente é semelhante ao “estado de caimento” de Zuzé, que é

como se fosse uma ave voando, uma águia, como fala Silva (2010), ou, então, a

queda dele é comparada à estrela cadente, pois ficou suspenso no céu e somente

no dia seguinte deram-se por conta dele, como acontece com a estrela cadente, cuja

queda é notada após e através de sua luz caída.

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Analisando-se, portanto, a desigualdade social que há nas entrelinhas do

conto “O homem cadente”, vê-se que essa diferença social está presente nos dias

de hoje como esteve nos de antigamente, mas de modos distintos. Atualmente, a

desigualdade é verificada de maneira habitual e nítida, aos olhos de todos, não é

camuflada, ao passo que, nos tempos antigos, a mesma ocorria escondida, mais

discreta, mais camuflada, menos exposta aos olhos de quem a poderia ver.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se fazer um balanço das análises dos quatro contos estudados, é

possível fazer algumas relações entre os textos literários de Mia Couto e o contexto

de produção, ressaltando a proposta do objetivo geral desta dissertação. O primeiro

ponto a ser observado diz respeito à forma como o autor explora esse diálogo. Não

há reprodução direta, como se fosse um jornal, do contexto, pois o autor trabalha a

forma, o que se pode verificar em cada conto, nesta pesquisa estudado.

Em “As três irmãs”, Mia Couto explora a forma estética de modo que faz

uma representação da sociedade moçambicana ao criar as personagens lineares

Flornela, Gilda e Evelina. Estas personagens são mulheres sofridas com a

repressão social a que são submetidas, no contexto familiar e social em que se

encontram, o que parece ser justificados, em termos estéticos, pela linearidade

delas e pela semelhança em suas trajetórias. Sob forma de descrição das

personagens, a qual também é feita por um discurso simples e organizado, o autor

faz uma reflexão a respeito dessa questão social feminina alusiva à sociedade na

qual elas estão inseridas. Ou seja, ao caracterizar as personagens, o conto busca

representar o universo restrito do lar a que cada uma delas é submetida: cada uma

das filhas do personagem Rosaldo, sendo que Gilda faz rimas em poemas, Flornela

cozinha e Evelina borda. Todas estão ligadas a papeis tipicamente femininos.

A temática da opressão feminina é arquitetada por meio de informações

sobre a sociedade de Moçambique as quais não são diretamente expostas, mas

sim, através de prosa poética que cria uma narração recheada de neologismos e

jogos de linguagem que remetem àquele contexto. Além disso, a opção por enredo

linear e configuração similar das personagens induz à ideia de que tal representação

social é contínua: representaria assim uma visão coletiva, mais universal e não

particular. Ainda é possível destacar que esse formato narrativo reflete a realidade

da repressão sofrida pelas três irmãs perante o machismo do pai, o que denota a

representação da sociedade patriarcal e conservadora moçambicana, uma vez que

elas foram feitas e educadas para suprirem as suas necessidades em vida.

Já em “A saia almarrotada”, o autor faz uma exposição da pressão sofrida

pela personagem inominada, de modo que usa o recurso do feedback para retomar

recordações sobre o tio e para contextualizar a história do conto. Através de

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metáforas, Mia Couto tece a trama e faz analogias, utilizando um barco do tio para a

comparação. Nesse conto, ocorre um relato do contexto social através da forma

criativa e metaforizada da narrativa curta coutiana. A expressão “almarrotada” é um

indicativo dessa leitura, como já destacado no terceiro capítulo.

Quanto ao conto intitulado “O nome gordo de Isidorangela”, Mia Couto

usufrui da forma literária narrativa que delata a sociedade aparentemente correta,

mas que possui inúmeros apelos incorretos: preconceito à obesidade, culto à

magreza, ambiguidade em suposta traição, interesses do empregado diante de seu

chefe. A forma como o autor conduz essas aparências da sociedade é o que chama

a atenção na história do conto, uma vez que essas referências são ou dadas pela

voz do narrador ou reveladas pelo discurso dos personagens.

Em “O homem cadente”, há a verificação da forma criativa com a qual Mia

Couto o elaborou, de modo que a expõe utilizando-se do recurso literário do

maravilhoso ou fantástico no conto. Este recurso torna o texto narrativo curto

interessante, fazendo com que o personagem José Antunes Marques Neto, o Zuzé

Neto ou, então, Zuzézinho sonhe e, sonhando, saia (ou ao menos tente sair) da

realidade na qual se encontra. O narrador conta a história do personagem, que é

seu amigo, relatando as hipóteses pelas quais Zuzézinho teria se jogado e estaria

plainando nos altos, levantando questões sociais relevantes e modernas da

realidade moçambicana e, por que não, mundial, pois situações de pobreza social

tais como fome, miséria, sede e calamidade pública são frequentes em todo o

mundo, atualmente, apontando estatísticas e índices elevadíssimos.

Outro aspecto fundamentado no texto coutiano é sobre os bombeiros “[...]

bastante involuntários [...]” (COUTO, 2009, p.07), que não prestam o devido auxílio

necessário à população, quando esta aos mesmos pede socorro, o que não difere

da realidade brasileira, inclusive; o pressuposto sobre a política também é destacado

na narrativa, dando importância aos anseios políticos e do “[...] peso da consciência

[...]” (COUTO, 2009, p. 06) que supostamente o personagem teria e fosse o fator

que o levasse a se jogar; há, além, a questão religiosa no conto.

A questão religiosa, que também alude ao contexto africano, é ressaltada de

maneira que há discussões das pessoas na rua sobre quem seria o Zuzé lá nos

céus: seria “[...] o novo Cristo [...]” para eles ou “[...] o Cristo descrucificado. [...]”

(COUTO, 2009, p. 07); ou seria alguém fugindo de suas dívidas, mas “[...] Ninguém

cobra no ar.” (COUTO, 2009, p. 07); o marketing foi se instalando na cidade devido à

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atração: Zuzézinho pairando no ar, descrevendo e apontando essa denúncia social

de propaganda, comércio, turismo e lucratividade a partir de um acontecimento

público surreal e chamariz de dinheiro. Esse marketing não foge do que se vê muito

nas cidades aqui do Brasil mesmo, quando as pessoas se deparam com

acontecimentos acidentais ou incidentais, tentando tirar um certo proveito das

tragédias.

Por fim, no conto “O homem cadente”, é notório que a discussão do sonho,

do fantástico e maravilhoso é colocada no texto. Essa mescla de realidade e sonho

é um recurso que propicia ênfase ao imaginativo, ao surreal e à literatura com base

em ilusões, em confrontos de ideias e da dicotomia: o que é realmente fato real e o

que é apenas sonho do narrador do conto, momento em que retorna a mulher do

seu sonho.

Assim sendo, há bastante criatividade formal nos contos coutianos, pois,

como se pode perceber, o autor inova na maneira de utilizar-se da Língua

Portuguesa e, ao que parece, as formas de desenvolvimento das narrativas em

muito colaboram para desdobramento desse diálogo entre literatura e sociedade.

Essa inovação se dá por meio de neologismos inteligentes, juntamente com

criatividade na forma, como anteriormente foi relatada, bem como no aspecto de que

denuncia, critica, mostra, aponta, revela como é a sociedade de Moçambique, nos

dias de hoje, não a distanciando das sociedades de outros países como, por

exemplo, a brasileira. Faz essa denúncia criativamente, seja no jogo de palavras,

nos neologismos, na organização do enredo.

Ao fazer essas construções estéticas, os contos proporcionam uma

representação da sociedade moçambicana, destacando implicações que dizem

respeito à opressão social das mulheres, à sociedade das aparências e ao

pressuposto da pobreza social, deixando em evidências, como já foi falado

anteriormente, o contexto social moçambicano.

O segundo aspecto está relacionado à construção das personagens nos

contos de Mia Couto. As personagens do autor sofrem as consequências do

contexto em que estão inseridas, uma vez que o contexto não as favorece no

sentido de que vivem angariadas em um mundinho que as rebaixa, humilha,

subestima, não lhes dando liberdade nem as deixando trabalhar, estudar, namorar e

viver uma vida plena e realizada. Moram em lugar luxuoso, como é o caso de

Isidorangela, de “O nome gordo de Isidorangela” ou em mais simples, como é o de

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Gilda, Flornela e Evelina, de “As três irmãs” e o da sem nome de “A saia

almarrotada”. A personagem sem nome de “A saia almarrotada” mora em uma vila

“[...] a única vila do mundo [...]” (COUTO, 2009, p. 13) e o homem que cai, em “O

homem cadente”, não tem moradia fixa, já que paira no ar, na fantasia e no sonho

do amigo narrador.

As personagens femininas dos contos coutianos analisados, desenvolvem

variadas tarefas e sempre com o intuito de beneficiar alguém do sexo oposto, seu

suposto e possível manipulador, por assim se dizer, opressor, repressor ou a quem

elas devem obrigações do lar, sublinhando que sonhos pessoais, anseios elas

praticamente não têm ou, se os têm, eles são “engolidos” pelos de seus pais ou tios,

os quais possuem a preferência na hierarquia patriarcal social. Seus sonhos são de

casar, como ocorre com as três irmãs Gilda, Evelina e Flornela e com a personagem

inominada da “[...] saia de rodar [...]” (COUTO, 2009, p. 13). Esta esperava um “[...]

homem que viria [...]” (COUTO, 2009, p. 14), um “[...] aprincesado [...]” (COUTO,

2009, p. 14), o qual lhe daria, por fim, um nome.

Isidorangela sofre o preconceito, pelo narrador da história, com sua

aparência: é gorda e, sendo gorda, até seu nome o era, isto é, claro, no sentido

figurativo na história do conto, mas com ênfase de Mia quanto a isso:

ISIDORANGELA – nome grande, “gordo”, de pronúncia difícil. Isto demonstra o uso

da criatividade do autor com as palavras, tendo uma linguagem original e inteligente.

A sociedade das aparências mostrada no conto é bem uma sociedade

fundamentada nos moldes atuais, nos quais o que é belo é valorizado, o luxo e a

riqueza vingam, onde há o culto à beleza da magreza, sendo que obeso é feio e

ridicularizado geralmente onde, também, as aparências enganam, e muito, e a

traição está aflorada nas pessoas.

Na configuração dessas personagens femininas, percebe-se uma referência

a traços sociais particulares presentes no século XXI. Dentre esses traços,

salientam-se: o papel social da mulher ainda pouco valorizado, em dicotomia ao do

homem; o culto ao corpo bonito, malhado, magro; a submissão da mulher perante o

outro sexo; a diferença social ou desigualdade social.

Ainda se pode destacar que a linguagem do narrador e dos personagens

desses contos analisados de certa forma colabora para esse diálogo dos contos com

o contexto de Moçambique, pois as marcas da oralidade, juntamente com as

epígrafes usadas por Mia para enriquecer seus textos, são marcas importantes do

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caráter popular da sua linguagem. Condizem à linguagem popular e mostram o

contexto moçambicano representado com lucidez pelo autor. Em relação à oralidade

que ele utiliza para dar vida às personagens em seus textos, a mesma não é tão

fácil, porém acessível. Essa acessibilidade na linguagem do autor remonta ao

passado, no qual as tradições linguísticas eram feitas através do oral e transpondo-o

à linguagem escrita, o que não é uma tarefa muito simples e, portanto, complexa.

Todavia, o autor usufrui dessa linguagem enraizada na oralidade de maneira muito

curiosa e inovadora.

Os finais dos contos não são felizes nem prósperos, assim como a leitura

crítica acerca da realidade moçambicana, a qual é pessimista. Assim, pode-se

pressupor que a proposição dos contos não é positiva quanto ao futuro social de

Moçambique. Lendo os enredos e relacionando os finais dessas histórias, parece

não haver uma perspectiva de esperança: as mulheres continuariam em seus

contextos repressivos patriarcais e a sociedade, de uma forma geral, continuaria a

assistir aos jogos de aparência, à corrupção e à pobreza como singulares de

Moçambique contemporânea.

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