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  • DOSSI

    DOCUMENTOS JUDICIAIS E HISTRIA SOCIAL

  • A importncia dos arquivos do poder judicirio para a pesquisa histrica

    Paulo Afonso Zarth*

    Resumo

    O artigo trata da importncia do Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do

    Sul (APERS) para a pesquisa histrica. Com base na experincia pessoal como

    pesquisador, analiso a relevncia dos documentos do acervo para a inovao

    historiogrfica e para a formao dos historiadores. A documentao guardada

    no arquivo, utilizada para a elaborao da dissertao de mestrado e para a

    tese de doutorado, possibilitou colaborar na construo de novas interpretaes

    da histria do Rio Grande do Sul, no que se refere histria agrria e histria

    da escravido nas estncias pastoris. Os resultados das pesquisas atestam o

    enorme valor cultural do APERS.

    Palavras-chave: Historiografia; Arquivo judicirio; Inventrios Post-mortem;

    Escravido.

    Abstract:

    The paper discusses the importance of the Public Archives of the State of

    Rio Grande do Sul (APERS) for historical research. Based on a personal

    experience I analyze the relevance of the documents collection for

    historiographical innovation. The documentation retained in the archive,

    used for the elaboration of the doctoral thesis, contributed to new

    interpretations of the history of Southern Brazil, in relation to agrarian

    history and the history of slavery in the cattle ranch. Research results certify

    to the enormous cultural value of the APERS.

    Key words: Historiography; Judiciary Archive; Post-Mortem inventories;

    Slavery.

    * Doutor em histria pela Universidade Federal Fluminense. Professor VisitanteNacional Snior da CAPES na Universidade Federal da Fronteira Sul. UFFS/ CAPES.Fevereiro/ 2012.

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    Paulo Afonso Zarth

    Tomei a liberdade de escrever esse artigo com base na minha

    experincia pessoal em arquivos da justia nos tempos de estudante de

    ps-graduao em Histria, pois acredito que esta uma forma de

    contribuio para jovens pesquisadores. Ao ingressar no curso de mestrado

    em histria na Universidade Federal Fluminense, em 1984, passei a me

    interessar pelas fontes judiciais, atravs das boas recomendaes da

    professora Maria Yedda Linhares e do orientador da dissertao, professor

    Ciro Flamarion Santana Cardoso. Mais tarde, no curso de doutorado, iniciado

    em 1989, continuei minhas pesquisas nos arquivos do judicirio, agora sob

    orientao do professor Luiz Carlos Soares.

    Na poca, as fontes tradicionalmente utilizadas, chamadas de snteses

    globalizantes, eram criticadas pelo seu alto grau de generalizao. Tais fontes

    relativamente fceis de consultar, dizia-se ento, eram representadas pelos

    relatrios do presidente da provncia, relatos de viajantes, de cronistas e

    relatrios estatsticos, por exemplo. Tais escolhas ganham em facilidade de

    acesso s informaes, mas perdem em riqueza e fundamentalmente no

    permitem observar fatos relevantes que so omitidos naquele tipo de fonte.

    Sem desprezar aqueles documentos, entendia-se que era mais adequado

    construir uma totalidade do tema pesquisado a partir das prprias unidades

    produtivas e administrativas, embora isto implicasse em um trabalho muito

    maior, mas certamente mais rico e eficiente para trazer luz elementos pouco

    conhecidos nas fontes normalmente utilizadas, em se tratando de histria

    econmica e agrria.

    Reunir dados nos arquivos do poder judicirio fazia parte, na poca,

    das novas concepes de pesquisa em curso na historiografia brasileira

    tanto no que se refere aos temas como em relao s fontes. Assim, visitei

    o Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul1 e nele consultamos

    1 Segundo informaes do APERS disponveis na internet: o acervo documentalrecolhido das esferas Federal e Estadual constitui-se de processos judiciais, de1763 a 1980, totalizando 6.000.000 de documentos ou 1.726 metros lineares. O quadrode arranjo constitui-se de 103 fundos, considerando-se fundo a comarca de cadamunicpio. A codificao dos Fundos numrica crescente, sendo ordenados nas

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    inventrios Post-Mortem, processos judiciais e registros paroquiais de terra

    com a expectativa de ter uma viso mais prxima e detalhada da sociedade

    em estudo.

    Chegando ao Arquivo Pblico

    A visita causou uma certa surpresa nos funcionrios do Arquivo pois

    no era muito comum a presena de historiadores interessados em consultar

    um conjunto enorme de documentos. Eu era o nico pesquisador at chegar

    um jovem colega norte-americano, John Chasteen, que pesquisava a histria

    de chefes polticos do Rio Grande do Sul e do Uruguai. Logo se percebeu

    que solicitar a leitura de um mao de inventrio de cada vez seria invivel.

    O bom senso das arquivistas, considerando ainda a escassez de funcionrios,

    permitiu-me trabalhar no interior do arquivo com acesso direto aos

    documentos. Confesso que foi uma experincia fantstica me deparar de

    frente com milhes de documentos histricos naquelas prateleiras,

    totalmente a disposio para serem revelados histria.

    Antes de ir a campo, os colegas e professores da UFF me alertavam

    de que poderia ter dificuldades em localizar os inventrios, pois eram

    comuns os relatos de documentos encontrados nos locais mais escandalosos

    do ponto de vista da preservao. Alm disso, em alguns estados eles

    estavam espalhados em diversos municpios. Para sorte minha, os

    inventrios do Rio Grande do Sul estavam todos num mesmo arquivo, o

    APERS, bem preservados e guardados em prdio apropriado para armazenar

    documentos, construdo na dcada de 1910.2

    estantes pelo mtodo geogrfico. O acervo de carter permanente e constitui-seem fontes primrias e nicas para pesquisa. Em fase de reorganizao,acondicionamento, informatizao e elaborao de instrumentos de pesquisa.http://www.apers.rs.gov.br/portal/index.php?menu=notas.2 O Arquivo forma um conjunto arquitetnico composto por trs construes: umprdio para abrigar as atividades administrativas e tcnicas, e dois pavilhesconstrudos respectivamente em 1910 e 1920, com caractersticas especficas paraarmazenamento de documentos: possuem teto em forma de abbada, paredes com

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    Paulo Afonso Zarth

    A agricultura de subsistncia e as fontes judiciais

    O projeto de dissertao tratava da histria agrria do Planalto do Rio

    Grande do Sul dos anos 1800, num contexto historiogrfico no qual se

    criticava a hegemonia das pesquisas sobre as grandes lavouras para

    exportao, as plantations. O extremo Sul era um caso a parte. No existiam

    plantations e a principal atividade econmica, a pecuria, era destinada

    ao abastecimento do mercado interno. Porm, assim como as grandes

    lavouras de caf ou de cana-de-acar, o gado tambm era produzido em

    grandes estncias pastoris. A nova proposta era pesquisar a agricultura de

    subsistncia, a pequena lavoura, e os pequenos lavradores que por sculos

    ajudaram a abastecer a mesa dos brasileiros. Este interesse inclua tambm

    as roas dos escravos dos grandes estabelecimentos rurais que produziam

    alimentos na horas livres. O conceito de brecha camponesa passou a ser

    utilizado para investigar o lado campons da vida dos trabalhadores

    escravizados, indo um passo alm de seu papel reduzido ao trabalho nas

    tarefas principais das fazendas. (CARDOSO, 1987)

    Embora eu tenha utilizado diversas fontes em diversos arquivos e

    tratado de outros temas mais especficos da histria agrria, destaco dois

    temas para os quais as fontes judiciais foram de fundamental importncia:

    a escravido e a agricultura de subsistncia. Na poca da pesquisa, nas

    principais obras sobre o mundo agrrio regional do sculo XIX, a agricultura

    de subsistncia tinha pouco lugar e somente aparecia quando se tratava

    das colnias de imigrantes europeus, cujos administradores organizavam

    detalhados relatrios, facilmente acessveis nos arquivos riograndenses.

    Isto levou os historiadores a associar agricultura de subsistncia para

    espessura entre 0,90 e 1,5 metros, estantes de ferro revestido por cimento, piso deferro vazado sobre o qual deslizam escadas mveis de ferro e exaustores eltricos.Essas atribuies tcnicas asseguram o melhor controle da circulao de ar e datemperatura ambiental, alm contribuir para a preveno de incndios. Em 1991,este conjunto foi tombado pelo Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico de Estado IPHAE. http://www.apers.rs.gov.br/portal/index.php?menu=conjuntoarquitetonico.Acesso 20/02/2012.

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    abastecimento interno do pas com a imigrao de colonos europeus

    (alemes e italianos principalmente), com uma ressalva fracassada

    triticultura dos colonos aorianos do final do sculo XVIII e incio do XIX.

    Sem dvida, a produo agrcola para o abastecimento interno foi uma

    atribuio dos colonos alemes e italianos, os quais justamente deram um

    impulso ao desenvolvimento agrcola, mas no se pode desconsiderar a

    produo agrcola dos escravos e dos lavradores nacionais livres. de se

    destacar que as estncias pastoris, sedes da maior riqueza econmica do

    sculo XIX, procuravam se autossustentar de cereais e demais gneros de

    subsistncia, produzindo-os atravs dos escravos e dos lavradores nacionais.

    Neste sentido, Jean Roche, em seu minucioso estudo sobre agricultura

    alem, afirma que os colonos teutos encontravam dificuldades para vender

    seus produtos devido barreira da autossuficincia da estncia pastoril.

    (ROCHE, 1969).

    O fenmeno da invisibilidade da agricultura de subsistncia fora dos

    ncleos coloniais era decorrncia do fato de no aparecer nas fontes

    globalizantes, normalmente, consultadas pelos pesquisadores. Isto

    agravado quando se percebe nos relatrios de presidente de provncia, por

    exemplo, que a pequena agricultura era alvo de severa crtica e apresentada

    como praticamente inexistente. Com a chegada de novos e constantes

    contingentes de imigrantes, a partir de 1850, pde-se observar nos relatrios

    oficiais uma srie de informaes sobre a produo agrcola e muitos elogios

    aos colonos e seu trabalho. Por isso, era natural o raciocnio de que apenas

    os colonos se dedicavam agricultura de subsistncia, ao plantio de feijo,

    milho, batatas e trigo, por exemplo. Outra explicao para esse fenmeno

    era o vis apologtico da bibliografia tradicional que via nos colonos

    europeus os representantes do progresso e da civilizao.

    A bibliografia hegemnica naqueles anos em que iniciei a pesquisa

    ensinava aos rio-grandenses que sua histria teria sido construda por duas

    vias importantes: de um lado, pelos grandes criadores de gado e; de outro,

    pelos colonos imigrantes, pequenos agricultores de origem europeia

    (germnicos e italianos, principalmente). Negava-se ou minimizava-se a

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    Paulo Afonso Zarth

    presena de escravos nas estncias pastoris, as quais seriam local de trabalho

    livre, do conhecido e famoso gacho, personagem que representa os

    habitantes de todo o estado. Uma esttua na entrada da capital do Estado

    um dos monumentos mais lembrados e admirados pela populao daquela

    cidade.

    O descaso pela agricultura dos lavradores nacionais e dos escravos

    implica desconsiderar uma parcela significativa da populao camponesa

    nacional e que de extrema importncia para o entendimento de uma

    srie de aspectos relativos ao processo de ocupao da terra e da formao

    do mercado de trabalho livre em substituio aos escravos. Estudar a

    agricultura dos no imigrantes significava dar visibilidade ao campons

    nacional, to pouco conhecido e desprezado no Brasil, mais conhecido pelos

    seus fazendeiros, escravos e imigrantes europeus. Nesse sentido, foi muito

    oportuno a leitura do texto do professor Peter Eisenberg (UNICAMP), que

    denomina esse trabalhador de o homem esquecido. um ttulo perfeito

    se levarmos em conta que pouco se escrevia sobre ele numa perspectiva

    acadmica e comprometida com as mudanas sociais no campo. Ao mesmo

    tempo, Eisenberg afirmava que ele seria um elemento chave para analisar

    a questo do trabalho na agricultura durante o sculo XIX. (EISENBERG, 1978,

    p. 157)

    Diante destes problemas historiogrficos, a opo natural foi adotar

    uma metodologia de pesquisa que permitisse encontrar as respostas e

    desvendar um mundo relativamente desconhecido do Sul e do Brasil, de

    um modo geral. A primeira iniciativa foi mergulhar nas vilas do sculo XIX,

    atravs da viso das cmaras municipais, lendo as correspondncias dos

    vereadores. Nestes documentos, abundantes nos arquivos locais, encontrei

    desde as importantes posturas municipais at reclamaes sobre falta de

    lenha para o fogo dos moradores pobres, alm de queixas de toda ordem.

    A abundncia destas fontes me obrigou a selecion-las para certos perodos,

    pois eram milhares de documentos e seria quase impossvel l-los todos

    no tempo destinado para a elaborao da pesquisa. Tomei como critrios

    de seleo a importncia das vilas na regio de abrangncia.

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    As correspondncias oficiais das cmaras municipais foram muito

    teis por mostrar um quadro da conjuntura econmica e poltica de cada

    momento. Encontrei relatrios detalhados sobre a propriedade da terra,

    sobre terras devolutas, sobre poltica indgena, etc. Na cmara municipal

    do sculo XIX tambm eram debatidos muitos assuntos do cotidiano local.

    Parte desses assuntos iria parar nos relatrios de presidente da provncia.

    claro que eles so fontes importantes mas, de modo geral, repetem de

    forma resumida os relatrios das cmaras municipais. A partir da Repblica,

    os relatrios do Rio Grande do Sul passaram a ser escritos por secretarias.

    Interessou-me, de modo particular, os da Secretaria dos Negcios e Obras

    Pblicas, os quais so relatados assuntos concernentes colonizao e

    apropriao de terras.

    Nos documentos examinados referentes primeira metade do sculo

    de algumas vilas, possvel observar uma preocupao constante com o

    abastecimento, preocupao geral em todo Brasil da poca. So comuns,

    nas cmaras municipais, as leis contra o abate de matrizes bovinas, como

    forma de impedir a dizimao do rebanho. Outras leis puniam, com rigor, os

    atravessadores, e as autoridades locais procuravam colocar o consumidor e

    o produtor em contato direto atravs das feiras municipais. Fraudes e abusos

    de preo so encontrados com frequncia nessas fontes e o po chegou a

    ter seu preo tabelado por uma lei municipal de Santo Antnio da Patrulha,

    em 1811.

    Alm das posturas municipais que regulamentavam a vida cotidiana

    dos escravos, encontrei situaes preciosas onde fica expressa a

    preocupao dos senhores com as possveis rebelies escravas na primeira

    metade do sculo. Neste aspecto, uma nova bibliografia vinha dando conta

    de publicar importantes estudos sobre a rebeldia ou resistncia dos cativos,

    preenchendo uma lacuna na histria da escravido do Brasil, fato atribudo

    crescente organizao dos movimentos negros e por ocasio do centenrio

    da extino da terrvel instituio escravista em 1988. Naquele ano foram

    realizados grandes congressos sobre o tema em diversas universidades

    brasileiras.

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    Paulo Afonso Zarth

    Mesmo que no tenha ocorrido grandes rebelies de escravos no

    Sul, as fontes consultadas poderiam trazer novos elementos para a

    bibliografia existente. A possibilidade de tal situao vir a ocorrer era algo

    que causava medo entre os moradores. Paralelamente ao medo dos

    escravos, havia o medo dos indgenas nas reas prximas s florestas,

    infestadas de bugres, os quais resistiam muito invaso de seu espao,

    conflituando frequentemente com os moradores isolados nas proximidades

    da mata.

    Os relatrios de presidente de provncia fornecem uma viso geral

    sobre a provncia e as correspondncias das cmaras municipais possibilitam

    uma sntese dos acontecimentos ocorridos nos municpios. Porm, para

    entrar em contato com uma unidade ainda menor, necessrio o exame

    dos inventrios Post-Mortem, que mostram, com riqueza de detalhes,

    a propriedade individual dos sujeitos. Verificando os dados colhidos dos

    inventrios de vrios municpios, pode-se observar aspectos sobre a

    produo, tecnologia, estrutura fundiria e sobre as relaes de trabalho.

    Os inventrios do Rio Grande do Sul do sculo XIX so muito ricos em

    detalhes que permitem verificar com muita clareza o que se produzia no

    estabelecimento agrcola do falecido, bem como sua condio de vida.

    possvel, atravs destes documentos, avaliar tanto a riqueza de um grande

    estancieiro como o grau de pobreza de um pequeno posseiro. No se pode,

    infelizmente, dizer o mesmo dos inventrios do sculo XX; estes perdem

    sua riqueza de detalhes e os documentos no mais contemplam as heranas

    abaixo de valores determinados; somente as heranas que atingem certa

    importncia merecem a vistoria de uma comisso de avaliadores do rgo

    judicirio, que descreve em detalhe os bens do falecido. Mesmo as grandes

    heranas perdem em riqueza descritiva, pois desaparecem muitos itens

    referentes a detalhes como o dos utenslios domsticos. Os inventrios

    dos colonos do incio do sculo XX, por exemplo, limitam-se apenas a arrolar

    o lote colonial, sem mencionar os instrumentos agrcolas e utenslios

    domsticos e mesmo pequenas benfeitorias que constavam nos inventrios

    do perodo imperial.

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    Atravs do levantamento de dados dos inventrios Post-Mortem foi

    possvel organizar algumas sries estatsticas com informaes das prprias

    unidades produtivas, o que deu uma segurana maior do que a oferecida

    pelos relatos dos viajantes, por exemplo. Assim, consegui elaborar quadros

    com os preos das terras; produo pecuria e agrcola tanto com seu

    perfil como em sua evoluo ; o nmero, as condies e o preo dos

    escravos utilizados em uma estncia. Alm destes dados que permitiram

    organizar algumas sries, os inventrios forneceram informaes singulares

    como a de mecanismos de endividamento, comercializao e padro de

    consumo.

    Devido ao elevado nmero de inventrios, optei por recolher uma

    amostragem, selecionando o conjunto de documentos relativos a um ano

    em cada perodo de cinco. Alm destes, recolhi os dados de inventrios de

    personagens importantes (grandes proprietrios, chefes polticos,

    comerciantes), o que implicou examinar praticamente todos. Para tanto,

    elaborei algumas matrizes para facilitar a coleta dos dados e a organizao

    de sries estatsticas. As sries homogneas, organizadas a partir dos

    inventrios e outras fontes locais, permitiram montar um quadro alicerado

    nas prprias unidades produtivas, proporcionando detalhes que outras

    fontes generalizadas no permitem.

    Nesses inventrios Post-Mortem consta o tamanho aproximado das

    propriedades e seu valor, alm da distino entre reas de mata e de campo

    nativos, instrumentos de trabalho e equipamentos em geral (enxadas,

    arados, carretas, etc.), nmero, tipo e valor dos animais, nmero, idade e

    valor dos escravos. Confesso que o fato dos trabalhadores escravizados

    constarem como bens semoventes, na mesma rubrica dos animais causou-

    me espanto e indignao. So estes detalhes nos inventrios os mais

    interessante para a pesquisa. Alm disto, estes documentos trazem mais

    informaes como roupas e utenslios domsticos, que do uma ideia sobre

    o padro de consumo dos habitantes. Entretanto, h dificuldades no que se

    refere produo de cereais, cujos dados so praticamente ignorados pelos

    avaliadores, o que revela a pouca importncia da produo agrcola diante

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    Paulo Afonso Zarth

    da pecuria. Sabe-se que nas estncias havia produo de cereais para

    subsistncia do prprio estabelecimento, mas raramente so computadas

    roas de feijo, de milho ou de mandioca, por exemplo. Mesmo entre os

    colonos imigrantes, os inventrios pouco consideram as roas cultivadas.

    Para trabalhar com estes documentos elaborei fichas de coleta de

    dados especficas para este fim, as quais eram pacientemente preenchidas

    a mo. Contados e somados os escravos, os bens de raiz, os animais, os

    produtos agrcolas, etc, os dados eram processados manualmente em

    planilhas com o uso de calculadoras. Cabe lembrar a falta dos modernos

    computadores portteis, assim como a cmara fotogrfica digital que

    facilitam em muito a vida do historiador de hoje.

    Uma estratgia para enfrentar o grande volume de documentos foi

    elaborar uma seleo, ou melhor, os critrios de seleo dos inventrios

    como forma de viabilizar a consulta do material, pois so milhares de papis.

    Em primeiro lugar, li todos os inventrios de um ano, sorteados para cada

    perodo de cinco, de todos os municpios selecionados (Ex. 1821, 26, 31...).

    Em segundo, realizei uma seleo de municpios a partir de critrios

    econmicos, polticos e cronolgicos, delimitando as regies com certa

    hegemonia econmica. Assim, por exemplo, o municpio de Cruz Alta, criado

    em 1834, e que foi o primeiro de uma vasta regio no planalto, desde seu

    incio teve por base econmica a atividade pastoril, secundada pela

    erva-mate. Os seus distritos, que aos poucos foram emancipando-se,

    possuem as mesmas caractersticas (como o caso de Passo Fundo,

    emancipado em 1857). E mesmo no final do sculo, quando esta regio

    sofreu um processo de imigrao e fundao de colnias com caractersticas

    bastante diferentes, elas aparecem nos inventrios do prprio municpio

    de Cruz Alta, pois estas colnias somente alcanaram autonomia

    administrativa no sculo XX.

    Contemplam-se assim as diferenas ocorridas no decorrer do perodo

    numa mesma rea. Outra regio, com caractersticas semelhantes no sculo

    XIX, a compreendida pela depresso central onde corre o rio Jacu e alguns

    afluentes; escolhi, por ser sede desta rea, a vila de Rio Pardo, uma das

    primeiras da provncia, dedicada pecuria. Pelotas e Rio Grande, embora

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    muito prximas, merecem ateno pela condio de centro produtor de

    charque e porto martimo respectivamente, alm de compreenderem uma

    zona de pecuria tradicional. Na fronteira oeste e sudoeste, a zona da

    campanha, como a chamam, ou o pampa gacho, examinei os documentos

    de So Borja (1834) e Bag (1840); esta rea muito vasta e talvez a mais

    hegemonicamente pastoril da provncia.

    Para examinar o caso das colnias de imigrantes, selecionei o

    municpio de So Leopoldo, o mais antigo (1846), e o de Caxias do Sul,

    regio de imigrao italiana. Alm destes municpios tpicos de colonos

    europeus, muitos inventrios destes colonos encontram-se nas colees

    dos municpios pastoris (aorianos e luso-brasileiros), como Rio Pardo, que

    englobava a colnia alem de Santa Cruz, por exemplo. Alm destes

    inventrios selecionados, examinei outros de forma especfica quando, por

    exemplo, diziam respeito a personalidades relevantes (Bares, coronis,

    comerciantes, polticos, charqueadores).

    Consultei tambm os processos-crime de alguns perodos e em locais

    determinados, como no caso dos ervais do planalto, onde ocorreram vrios

    conflitos pela posse da terra. De um modo geral, os maiores conflitos e

    problemas relativos ao acesso terra so comentados nas correspondncias

    das cmaras municipais, atravs das quais os habitantes encaminhavam

    suas reivindicaes coletivas. As questes de terra tambm aparecem nas

    correspondncias dos juzes comissrios, encarregados da regulamentao

    da lei de terras de 1850.

    Os processos-crime so tambm de grande relevncia para a

    compreenso do cotidiano e principalmente das relaes sociais. Este tipo

    de documento um dos poucos em que aparecem os depoimentos da

    populao pobre. Nele, o povo pobre, ainda que mal, pode falar. O processo

    decorrente do crime ou da acusao inclui vrios depoimentos que so

    documentos de rara importncia, pois incluem tanto o discurso de um grande

    fazendeiro como o de pequenos lavradores pobres e mesmo de escravos.

    Enfim, nesta fonte que pode-se ler e sentir a presena das camadas pobres

    da populao, que dificilmente aparecem nos relatrios de viajantes

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    Paulo Afonso Zarth

    estrangeiros, que tanto tm servido de sustentao para a historiografia

    brasileira. nestes documentos que encontrei, por exemplo, a

    argumentao de um escravo por matar um cidado que se atreveu com sua

    mulher; ou de um escravo que havia matado seu proprietrio em outras

    terras e se refugiado na regio; ou ainda as reclamaes de um posseiro em

    processo de expulso de sua roa.

    Os resultados da pesquisa

    Um dos principais resultados da pesquisa no acervo do APERS se refere

    ao trabalho escravo nas estncias pastoris, que at ento era negado ou

    minimizado na bibliografia dominante. Embora fosse mencionada como

    algo eventual, a escravido nas estncias ficou evidente atravs dos

    inventrios. Na maioria dos inventrios que eu lia l estavam eles e elas,

    cativos e cativas, com nome, idade, origem, preo e, s vezes, a profisso.

    No dava mais para esconder: os pees gachos das estncias, livres,

    estavam acompanhados de trabalhadores escravizados nas lidas do campo,

    campereando o gado, domando cavalos xucros, marcando novilhos em

    rodeios. Outras pesquisas posteriores realizadas por historiadores nos

    centros de ps-graduao em histria confirmaram com mais detalhes a

    presena efetiva da escravatura das fazendas de gado de diversos municpios

    sul riograndenses.

    A contribuio historiogrfica dessas pesquisas sobre a escravido

    tem sido destacada por especialistas desse campo. Elas so mencionadas

    numa resenha publicada na Revista Brasileira de Histria da ANPUH pela

    professora Silvia Petersen, da UFRGS. Mereceram tambm comentrio da

    professora Regina Xavier no prefcio do livro Documentos da escravido

    no Rio Grande do Sul. Inventrios: o escravo deixado como herana,

    publicado pelo Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul.

    No recomendado fazer juzo de valor na pesquisa histrica, mas

    creio que ningum se importar, agora depois de cem anos, se fizer um

    elogio aos dirigentes estaduais que mandaram construir o prdio do Arquivo

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    A importncia dos arquivos do poder judicirio para...

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    Pblico. O informe publicado no relatrio do presidente do estado, de 1911,

    indica que eles sabiam muito bem o valor cultural dos documentos: com

    o fim de acautelar, quanto possvel, contra a ao destruidora do fogo, a

    importante papelada que constitui a garantia da riqueza de todos, foi

    resolvida a construo de um edifcio ad-hoc feito de pedra, tijollos, cimento

    e ferro, incombustvel, enfim (GONALVES, 1911, p. 15). Espero que os

    futuros dirigentes continuem com a mesma percepo, Clio agradece.

    Bibliografia

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