Uso Racional Medicamentos Temas Selecionados

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  • MINISTRIO DA SADE

    BRASLIA DF2012

    Uso Racional de Medicamentos

    temas selecionados

    Ouvidoria do SUS136

    Biblioteca Virtual em Sade do Ministrio da Sadewww.saude.gov.br/bvs

    Uso R

    acional de Medicam

    entos: temas selecionados

    ISBN 978-85-334-1897-4

  • MINISTRIO DA SADESecretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos

    Departamento de Assistncia Farmacutica e Insumos Estratgicos

    Srie A. Normas e Manuais Tcnicos

    BRASLIA DF2012

    Uso Rac iona l de Medicamentos

    temas selecionados

  • 2012 Ministrio da Sade.Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que no seja para venda ou qualquer fim comercial. A responsabilidade pelos direitos autorais de textos e imagens dessa obra da rea tcnica. A coleo institucional do Ministrio da Sade pode ser acessada, na ntegra, na Biblioteca Virtual em Sade do Ministrio da Sade: http://www.saude.gov.br/bvs. O contedo desta e de outras obras da Editora do Ministrio da Sade pode ser acessado na pgina: http://www.saude.gov.br/editora.

    Tiragem: 1 edio 2012 19.800 exemplares

    Elaborao, distribuio e informaes:MINISTRIO DA SADESecretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos Departamento de Assistncia Farmacutica e Insumos EstratgicosCoordenao Geral de Assistncia Farmacutica e Insumos EstratgicosEsplanada dos Ministrios, bloco G, Edifcio Sede, 8 andar, sala 834CEP: 70058-900, Braslia DFTel.: (61) 3315-3362 Fax: (61) 3315-3276E-mail: [email protected] Home page: www.saude.gov.br/horus

    Cooperao Tcnica:ORGANIZAO PAN-AMERICANA DE SADE

    Organizao:Christophe Rrat Jos Miguel do Nascimento JniorLenita Wannmacher

    Elaborao:Karen Sarmento Costa Lenita WannmacherLuiz Henrique CostaVera Lcia Tierling

    Ficha Catalogrfica

    Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos. Uso racional de medicamentos: temas selecionados / Ministrio da Sade, Secretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos Braslia: Ministrio da Sade, 2012. 156 p. : il. (Srie A. Normas e Manuais Tcnicos)

    ISBN 978-85-334-1897-4

    1. Uso racional de medicamentos. 2. Condutas baseadas em evidncias. 3. Ateno Primria Sade. I. Ttulo. II. Srie.

    CDU 354.53:005.21:5/6

    Catalogao na fonte Coordenao-Geral de Documentao e Informao Editora MS OS 2012/0062

    Ttulos para indexao:Em ingls: Rational use of medicines: selected subjectEm espanhol: Uso racional de los medicamentos: temas selecionados

    Colaborao:Amilton Barreto de SouzaKelli Engler DiasMarcela Amaral Pontes

    Projeto grfico:Gustavo Lins

    Normalizao e reviso:Editora MS

    Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    _______________________________________________________________________________________________

    _______________________________________________________________________________________________

  • Prefcio

    Apresentao

    Tema 01 - Condutas Baseadas em Evidncias sobre Medicamentos Utilizados em Ateno Primria Sade

    Tema 02 - Importncia dos Medicamentos Essenciais em Prescrio e Gesto Racionais

    Tema 03 - Uso Indiscriminado de Antimicrobianos e Resistncia Microbiana

    Tema 04 - Interaes de Medicamentos

    Tema 05 - Uso Racional de Anti-inflamatrios no esteroides

    Tema 06 - Tratamento de Enxaqueca: escolhas racionais

    Tema 07 - Uso Racional de Estatinas na Preveno de Cardiopatia Isqumica

    Tema 08 - Medicamentos de Uso Corrente no Manejo de Dor e Febre

    Tema 09 - Uso Racional de Antidepressivos

    Tema 10 - Uso Racional de Contraceptivos Hormonais Orais

    Tema 11 - Uso Racional de Anti-hipertensivos

    Tema 12 - Indicaes e Seleo de Inibidores da Bomba de Prtons

    Tema 13 - Uso Racional de Antidiabticos no mbito da Ateno Primria Sade

    Tema 14 - O Papel do Clcio e da Vitamina D na Preveno de Fraturas sseas

    Tema 15 - Uso de Antiasmticos em Adultos e Crianas: uma atualizao

    Tema 16 - cido Acetilsaliclico em Preveno Primria e Secundria de Eventos Cardio e Cerebrovasculares: uma atualizao

    9

    15

    21

    31

    41

    51

    63

    73

    83

    91

    103

    115

    123

    131

    137

    149

    5

    7

    Sumrio

  • 5Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    PrefcioA produo cientfica caracteriza-se por seu crescente volume e rpida acumulao, dificultando sua

    integrao na prtica profissional, tendo em vista a necessidade dos profissionais em analisar criticamente a confiabilidade das informaes em tempo hbil. Assim, preciso desenvolver capacidade para localizar e ter acesso a informaes com evidncia atualizada, de forma gil, concreta e confivel.

    Neste sentido, este livro traz uma coletnea de temas avaliados criticamente, que so resumos das produes cientficas relevantes para a Ateno Primria em Sade. Esses temas organizam, resumem, integram e transformam conhecimentos clnicos, com base em evidncias, os quais auxiliam os profissionais nas tomadas de decises de forma eficiente para a prtica assistencial, a fim de obter o mximo benefcio para a resolutividade em sade.

    Os temas possuem uma abordagem multidisciplinar e multiprofissional, fornecendo conhecimentos aos profissionais sobre questes relacionadas utilizao de medicamentos, com vistas a contribuir na resoluo de problemas em sade e a evitar gastos desnecessrios e exposio dos usurios a riscos sade.

    Secretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos EstratgicosMinistrio da Sade

  • 7Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    ApresentaoO sucesso teraputico no tratamento de doenas depende de bases que

    permitam a escolha do tratamento, medicamentoso e/ou no medicamentoso, a seleo do medicamento de forma cientfica e racional, considerando sua efetividade, segurana e custo, bem como a prescrio apropriada, a disponibilidade oportuna, a dispensao em condies adequadas e a utilizao pelo usurio de forma adequada. Dessa forma, as decises clnicas e as relaes estabelecidas entre os profissionais e usurios so determinantes para a efetividade teraputica.

    No intuito de contribuir para a tomada de deciso teraputica, este documento tcnico apresenta uma compilao das Condutas Baseadas em Evidncias sobre Medicamentos Utilizados em Ateno Primria Sade, constantes no Mdulo de Informaes do HRUS Sistema Nacional de Gesto da Assistncia Farmacutica, desenvolvido e disponibilizado pelo Ministrio da Sade aos municpios brasileiros com vista ao aperfeioamento da gesto da Assistncia Farmacutica e qualificao do atendimento prestado aos usurios.

    Esta publicao, destinada aos profissionais de sade, foi organizada em parceria com a Organizao Pan-Americana de Sade. Os textos constantes nesta obra foram elaborados no perodo de setembro de 2010 a maio de 2011, em continuidade aos Temas Selecionados publicados entre 2003 e 2007.

    As condutas aqui descritas foram elaboradas sob a ptica do paradigma da sade baseada em evidncia, abrangendo manifestaes clnicas frequentes e doenas prioritrias. Renem informaes sobre indicao, seleo, prescrio, monitoramento de benefcios e riscos, bem como potenciais interaes com medicamentos e alimentos, baseados em conhecimentos slidos, independentes e atualizados. Dessa forma, vislumbra-se que orientem as prticas a fim de contribuir para a racionalidade na utilizao dos medicamentos.

    Departamento de Assistncia Farmacutica e Insumos EstratgicosSecretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos

    Ministrio da Sade

  • 9Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    Segundo a Organizao Mundial da Sade (OMS),2 mais de 50% de todos os medicamentos so incorretamente prescritos, dispensados e vendidos; e mais de 50% dos pacientes os usam incorretamente. Mais de 50% de todos os pases no implementam polticas bsicas para promover uso racional de medicamentos. A situao pior em pases em desenvolvimento, com menos de 40% dos pacientes no setor pblico e menos de 30% no privado sendo tratados de acordo com diretrizes clnicas.

    Vrios fatores contribuem para isso: prescritores podem obter informao sobre tratamentos a partir das companhias farmacuticas em vez de reportar-se a fontes baseadas em evidncias; diagnsticos incompletos das doenas podem resultar em inadequada escolha dos tratamentos; pacientes buscam na internet verses de medicamentos caros com preos mais convidativos, mas de qualidade no assegurada.

    No Brasil, o uso incorreto de medicamentos deve-se comumente a: polifarmcia, uso indiscriminado de antibiticos, prescrio no orientada por diretrizes, automedicao inapropriada e desmedido armamentrio teraputico disponibilizado comercialmente.

    O uso abusivo, insuficiente ou inadequado de medicamentos lesa a populao e desperdia os recursos pblicos.

    O contrrio dessa realidade constitui o que se denominou de uso racional de medicamentos, referindo-se necessidade de o paciente receber o medicamento apropriado, na dose correta, por adequado perodo de tempo, a baixo custo para ele e a comunidade.3

    Medicamentos racionalmente selecionados e usados propiciam benefcios individuais, institucionais e nacionais.

    Para o usurio, a escolha racional proporciona mais garantia de benefcio teraputico (eficcia e segurana) a menor custo, contribuindo para a integralidade do cuidado sade. Institucionalmente, h melhoria do padro de atendimento, maior resolubilidade do sistema e significativa reduo de gastos. Em plano nacional, condutas racionais acarretam consequncias positivas sobre mortalidade, morbidade e qualidade de vida da populao, aumentando a confiana do usurio na ateno pblica sade.

    Para a OMS, a forma mais efetiva de melhorar o uso de medicamentos na ateno primria em pases em desenvolvimento a combinao de educao e superviso dos profissionais de sade, educao do consumidor e garantia de adequado acesso a medicamentos apropriados. Todavia qualquer uma dessas estratgias, isoladamente, logra impacto limitado.2

    No que se refere qualificao dos servios farmacuticos, o Ministrio da Sade disponibiliza aos gestores do SUS o HRUS Sistema Nacional de Gesto da Assistncia Farmacutica que objetiva aperfeioar o gerenciamento da Assistncia Farmacutica, permitindo melhorar as aes de planejamento, monitoramento e avaliao. Alm disso, o sistema HRUS tem a finalidade de contribuir de maneira efetiva na promoo do uso racional de medicamentos. No mdulo do Componente Bsico do HRUS foram disponibilizados os temas reunidos sob o ttulo de CONDUTAS BASEADAS EM EVIDNCIAS

    Condutas Baseadas em Evidncias sobre Medicamentos Utilizados em Ateno Primria Sade

    Tema

    1Se voc quiser comear amanh a mudar a prtica e implementar a evidncia, prepare-se bem: envolva o pblico pertinente; desenvolva uma proposta de mudana que seja baseada em evidncia, factvel e atraente; estude as principais dificuldades para o sucesso da mudana e selecione um conjunto de estratgias e medidas em diferentes nveis ligados ao problema; sem dvida, trabalhe dentro de seus recursos e possibilidades. Defina indicadores de medida de sucesso e monitorize o progresso continu-amente ou a intervalos regulares. Finalmente, satisfaa-se com um trabalho que leva a cuidado mais eficaz, eficiente, seguro e amistoso para seus pacientes.

    Grol R. e Grimshaw J.1

    Lenita Wannmacher

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    Ministrio da Sade

    SOBRE MEDICAMENTOS UTILIZADOS EM ATENO PRIMRIA SADE com informaes sobre o uso de medicamentos na ateno primria. Vinculadas aos processos de prescrio, dispensao, administrao e monitoramento, tais informaes podero ser acessadas pela equipe de sade para fundamentar indicao e seleo de medicamentos essenciais que atendam s prioridades da ateno primria em sade pblica.

    Para realizar uso racional de medicamentos, preciso selecionar informaes provenientes de conhecimentos slidos e independentes e, por isso, confiveis. Essa postura corresponde ao paradigma conceituado por David L. Sackett4 como o uso consciente, explcito e judicioso da melhor evidncia disponvel para a tomada de deciso em pacientes individuais.

    Esse constitui um processo sistemtico e contnuo de autoaprendizado e autoavaliao, sem o que as condutas se tornam rapidamente desatualizadas e no racionais.

    As decises em sade pblica tomadas por vrios atores gestores, financiadores, profissionais, pblico crescentemente se fundamentam em evidncias. Para isso, necessrio filtrar eficientemente a informao relevante para uma prtica em particular ou uma determinada poltica, por meio de anlise e sntese dos mltiplos esforos de pesquisa.5

    A ferramenta de ensino aqui proposta representa a opinio de quem capta a informao atualizada e disponvel em slidas e ticas pesquisas cientficas, analisa e interpreta criticamente seus resultados e determina sua aplicabilidade e relevncia clnica no contexto da ateno primria nacional. Tal reviso se guia pela hierarquia da evidncia, internacionalmente estabelecida e aceita. Tem por base a farmacologia clnica que objetiva caracterizar a eficcia e a segurana de frmacos no homem a partir da investigao farmacolgico-clnica que integra conceitos de epidemiologia e clnica e quantifica benefcios e riscos.

    Em sade, a avaliao de condutas racionais passa por um procedimento-chave: a comparao entre diferentes estratgias (tratar versus no tratar, novo procedimento teraputico versus procedimento usual, medicamento versus placebo, medicamento novo versus medicamento j existente). Estudos de interveno focados em comparaes e com alta validade metodolgica so os melhores instrumentos para orientar condutas. Mesmo assim, persiste a incerteza que permeia os melhores estudos cientficos. O grande desafio do paradigma das evidncias que fundamentam condutas a transio entre a pesquisa

    e a prtica do estudo ao problema clnico, do participante do estudo ao paciente, e vice-versa.6

    A qualidade e a fora das comparaes provm das fontes que as subsidiaram. Para tanto, a avaliao crtica da literatura disponvel imprescindvel. A qualidade da evidncia indica a extenso de sua confiabilidade e se a estimativa de efeito est correta. A fora da evidncia indica sua relevncia clnica e aplicabilidade, ou seja, a capacidade de se ajustar prtica clnica e a estimativa de que a recomendao por ela gerada tenha mais benefcio do que risco.7

    Deseja-se que a informao a ser repassada tenha linguagem simplificada, concisa e de fcil compreenso, sem deixar, todavia, de usar a terminologia da investigao cientfica que permite ao leitor ajuizar por si prprio sobre a fidedignidade do que est lendo. Assim, a seguir, coloca-se um glossrio de termos comumente empregados na investigao farmacolgico-clnica que constaro dos temas a serem elaborados. Tambm se definem a hierarquizao dos estudos como fontes de evidncia e os graus de recomendao por eles gerados.

    No entanto chama-se a ateno para a diferena entre significncia estatstica e significncia clnica. A primeira tem sido comumente usada para convencer os profissionais de sade sobre os benefcios clnicos de certa interveno. Entretanto ela s representa a probabilidade de estar certa ou errada a afirmativa de que determinada diferena entre tratamentos existe. A segunda refere-se utilidade dos resultados obtidos em pesquisa para a prtica clnica, sendo encarada como a relevncia clnica dos achados. A falha na nfase da importncia clnica tem levado a frequentes concepes errneas e discordncias a respeito da interpretao dos resultados de ensaios clnicos e tendncia de igualar significncia estatstica com significncia clnica.8

    Com a explicitao dos fundamentos que nortearo busca, triagem, interpretao e relato de informaes atualizadas sobre temas relevantes em ateno primria sade, espera-se que o leitor, com facilidade e satisfao, se aproprie desse conhecimento e o aplique nas condutas cotidianas da prtica clnica.

    A referncia a fontes atualizadas e confiveis como as revises sistemticas da Cochrane Library permitir que os que tomam decises em sade pblica (gestores, clnicos, profissionais da sade em geral e pesquisadores) avaliem a efetividade de diferentes intervenes quanto a razes ticas, sociais e econmicas, dentro de seu prprio cenrio, para no fugir ao contexto da aplicabilidade do conhecimento.5

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    Quadro 1 - Qualificao dos estudos que fundamentam os graus de recomendao10

    Glossrio9 Nveis de evidncia referem-se hierarquia

    dos desenhos dos estudos que so agrupados por sua suscetibilidade a vieses.

    Fora da evidncia corresponde combinao de desenho do estudo, qualidade do estudo e preciso estatstica (valor de P e intervalos de confiana).

    Magnitude da evidncia refere-se ao tamanho do efeito estimado, significncia estatstica e importncia (clnica ou social) de um achado quantitativo. A significncia estatstica um clculo numrico, mas o julgamento da importncia de um efeito medido relaciona-se ao contexto da deciso.

    Poder do estudo probabilidade de detectar diferena realmente significativa entre elementos em comparao.

    Validade interna diz-se do estudo em que as evidncias de associao (ou sua falta) tm mnima chance de dever-se ao acaso e no existem erros sistemticos.

    Validade externa diz-se do estudo em que os resultados podem ser generalizados para outras amostras ou populaes.

    Significncia farmacolgico-clnica e aplicabilidade correspondem aplicao pragmtica dos resultados de uma investigao com validades interna e externa. A magnitude do efeito observado e outros aspectos relacionados interveno justificam seu emprego em pacientes.

    Quadro 2 - Graus de recomendaes teraputicas10

    Nvel do Estudo Caracterizao

    I

    Ensaio clnico randomizado com desfecho e magnitude de efeito clinicamente relevantes, correspondentes hiptese principal em teste, com adequado poder e mnima possibilidade de erro alfaMeta-anlises de ensaios clnicos, comparveis e com validade interna, com adequado poder final e mnima possibilidade de erro alfa

    II Ensaio clnico randomizado que no preenche os critrios do nvel IAnlise de hipteses secundrias de estudos de nvel I

    IIIEstudo quase-experimental com controles contemporneos selecionados por mtodo sistemtico independente de julgamento clnicoAnlise de subgrupos de ensaios clnicos randomizados

    IV Estudo quase-experimental com controles histricosEstudos de coorte

    V Estudos de caso e controles

    VI Sries de casos

    Graus de Recomendao Caracterizao

    A Pelo menos um estudo de nvel I

    B Pelo menos um estudo de nvel II

    C Pelo menos um estudo de nvel III ou dois de Nvel IV ou V

    D Somente estudos de nvel VI Recomendaes de especialistas

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    Ministrio da Sade

    Desfechos clnicos avaliados em investigaes farmacolgico-clnicas10

    Desfecho Primordial evento de maior hierarquia na pesquisa clnica que corresponde, em termos prticos, condio percebida como relevante pelo prprio paciente e tem grande impacto clnico. Mortalidade, morbidade, des-conforto, disfuno, descontentamento e despesa (custo) so clssicos desfechos primordiais.

    Desfecho Intermedirio corresponde a parmetro fisiolgico, fisiopatolgico, comportamental ou de outra natureza que se associa de forma causal com o desfecho primordial (Ex. Nveis de presso arterial representam desfechos intermedirios para eventos primordiais cardiovasculares decorrentes de hipertenso arterial).

    Desfecho Substituto corresponde a desfecho mais facilmente afervel e passvel de espelhar o efeito da interveno sobre o desfecho primordial. Difere do desfecho intermedirio por no estar associado produo do desfecho primordial (Ex. Frequncia de internao hospitalar bom desfecho substituto para controle de sintomas de uma dada doena).

    Medidas de frequncia, propores, taxas e distribuio8

    A magnitude e a gravidade dos problemas de sade pblica so muitas vezes expressas como medidas de frequncia, propores e taxas.

    Prevalncia proporo de pessoas na populao que tem algum atributo ou condio em dado ponto no tempo ou durante especfico perodo de tempo.

    Incidncia (taxa de incidncia) nmero de novos eventos (por exemplo, novos casos de doena) em definida populao, ocorrendo em especfico perodo de tempo.

    Incidncia cumulativa proporo de pessoas que desenvolvem a condio num perodo fixo de tempo. Essa proporo sinnimo de risco.

    Frequncia refere-se contagem de dados qualitativos, em que se verifica o nmero absoluto (frequncia absoluta) ou relativo (frequncia relativa, em percentual) de eventos.

    Mdia a medida de localizao central, representada pela mdia aritmtica dos valores obtidos.

    Desvio-padro a medida de disperso ou variabilidade mais comumente usada.

    Intervalo de confiana corresponde ao intervalo de valores passveis de ocorrerem na populao, situados em torno da mdia calculada para a amostra, com um grau de confiana de 95% ou 99%. Quando se estabelece IC95%, pode-se

    afirmar que h 95% de confiana de que o intervalo obtido inclua o real valor da mdia da populao. O intervalo de confiana tambm pode ser calculado para dados apresentados como risco relativo (RR) ou razo de chances (RC ou OR). Nesse caso, se o intervalo engloba o valor 1, que representa ausncia de risco, infere-se que no h diferena estatisticamente significativa entre os grupos experimentais. Segue-se raciocnio similar para dados apresentados sob a forma de tamanho de efeito. Se o intervalo de confiana engloba o valor zero (ausncia de efeito), conclui-se pela aceitao da igualdade entre grupos.10

    Medidas de Associao

    Risco relativo (RR) corresponde ocorrncia do evento nos expostos comparada do grupo controle. Calcula-se pelo risco absoluto do evento nos expostos / risco absoluto nos no expostos. Se o risco de sofrer o evento for igual nos dois grupos, o RR 1 (sem diferena); se o RR for > 1 no grupo exposto, o fator de exposio lesivo; se RR < 1, protetor.

    Razo de Chances, Razo de Odds, Risco Relativo Estimado (OR) a medida de associao dos estudos de casos e controles. Avalia a chance de exposio entre os casos comparativamente chance de exposio entre os controles.

    Medidas de Impacto e Benefcio

    Risco Atribuvel (RA) permite identificar quanto do risco total de desenvolver uma doena em pessoas expostas deve-se exposio, ou seja, o impacto da exposio.

    Reduo Relativa de Risco (RRR) expressa, em termos relativos, quanto um tratamento superior a outro. Informa a percentagem de reduo de risco do evento determinada pelo tratamento.

    Reduo Absoluta de Risco (RRA) expressa, em termos absolutos, quanto um tratamento superior a outro, mediante clculo das diferenas entre eles. A RRA permite avaliar a reduo de risco atribuvel a uma exposio ou tratamento.

    Nmero de pacientes de que necessrio tratar (Number Needed to Treat = NNT, em ingls) corresponde ao nmero de pacientes que necessita ser tratado por determinado perodo de tempo para prevenir ou curar um evento. Quanto maior for o NNT de determinado medicamento, maior precauo ser necessria para decidir implement-lo, pois muitos pacientes precisaro ser tratados para que um se beneficie.

    Nmero de pacientes de que necessrio tratar para se detectar dano (NND; Number Needed To Harm = NNH, em ingls) parmetro

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    utilizado para avaliar o risco aumentado de um evento adverso associado a uma dada interveno. Calcula-se, em comparao ao tratamento controle, quantos pacientes precisam ser submetidos a tratamento para provocar um evento adverso. Quanto maior for o NND, mais conveniente ser a interveno com um dado medicamento, pois significa que muitos precisam ser expostos para que ocorra um dano.

    Erros Aleatrios8,10

    H duas possibilidades de acerto em teste estatstico: (a) os grupos estudados so realmente diferentes ou (b) os grupos realmente se comportam de forma semelhante. H tambm duas possibilidades de erro:

    Erro alfa (erro tipo I) ocorre quando o teste detecta diferena entre grupos que, na realidade, so similares, propiciando concluso falsamente positiva. Assim, erro alfa a probabilidade de ser apontada diferena entre grupos, inexistente na populao.

    Portanto, s deve ser considerado em estudos que concluem pela diferena entre grupos.

    Erro beta (erro tipo II) ocorre quando o teste estatstico conclui pela no diferena entre grupos que so, de fato, diferentes, levando concluso falsamente negativa. Erro beta a probabilidade de dizer que no h diferena entre os grupos, quando, na realidade, ela existe. S pode ser cogitado quando no h diferena estatisticamente significativa entre os grupos estudados, tendo maior risco de ocorrncia em experimentos com pequena amostragem. Os estudos devem ser planejados com poder suficiente para evitar erro beta, o qual usualmente superior a 80% (0,8). Isso conseguido com tamanho de amostra adequado magnitude da associao que se espera observar.

    Nvel de significncia do teste estatstico corresponde taxa de erro de tipo I ou alfa que o estudo se prope a tolerar. Usualmente estabelecido em 0,05 ou 0,01, ou seja, a probabilidade de afirmar que h diferena

    significativa entre os grupos, quando, na verdade, ela no existe, igual ou inferior a 5% ou 1%, respectivamente. Por conveno, so consideradas chances suficientemente pequenas de erro de tipo I, de modo que se aceita a afirmativa de que a diferena deva existir. No entanto, como so nveis arbitrrios, quando se estabelece, por exemplo, nvel de 0,05, prefere-se falar em tendncia, e no em significncia.

    Valor P estima quantitativamente a chance de os resultados observados deverem-se apenas a erros aleatrios e no influncia das variveis analisadas no estudo. Expressa, assim, a probabilidade de haver erros alfa (P) ou beta (P). No entanto a maior parte das publicaes expressa a probabilidade de P alfa ou simplesmente P. Aplicando o conceito de probabilidade a um P de 0,05, diz-se que o resultado (evento) obtido poder aparecer cinco vezes em 100 repeties do experimento (nmero de vezes que o evento pode ocorrer). Valores de P iguais ou inferiores a 0,05 so considerados estatisticamente significativos.

    Poder estatstico a probabilidade de um experimento detectar diferena significativa quando ela realmente existe. Quanto maior o poder do estudo, maior a probabilidade de detectar diferena realmente significativa. A probabilidade de cometer erro de tipo II decresce medida que o tamanho de amostra aumenta. Logo, o poder da prova aumenta com a realizao de maior nmero de observaes. Por isso, se explicita o nmero de pacientes da amostra estudada.

    Erros sistemticos10

    Consistem em desvios da verdade que distorcem os resultados de pesquisas. No acontecem pelo acaso, mas por erros em amostragem, aferio de exposio ou eventos, anlise e interpretao dos dados, entre outros. Apesar de haver mais de 70 vieses j catalogados, os trs principais so vieses de seleo, aferio e confuso.

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    Ministrio da Sade

    Referncias

    1 GROL, R.; GRIMSHAW, J. From best evidence to best practice: effective implementation of change in patients care. The Lancet, London, v. 362, n. 9391, p. 1225-1230, 2003.

    2 W O R L D H E A LT H O R G A N I Z AT I O N . Medicines: rational use of medicines. Fact sheet n 338. May 2010. Disponvel em: Acesso em: 02 set. 2010.

    3 CONFERENCIA DE EXPERTOS, 1985, Nairobi. Uso Racional de Medicamentos. Informe de La Conferencia de Expertos, Nairobi, 25-29 de noviembre de 1985. Ginebra: Organizacin Mundial de La Salud, 1986. 304 p.

    4 STRAUS, S. E. et al. Evidence-based medicine: How to practice and teach EBM. 3 ed. Edinburgh: Churchill Livingstone, 2005. 299 p.

    5 WATERS, E. et al. Evaluating the effectiveness of public health interventions: the role and activities of the Cochrane Collaboration. J. Epidemiol. Community Health, London, v. 60, n. 4, p. 285289, 2006.

    6 VAN, Weel C. Translating research into practicea three-paper series. The Lancet, London, v. 362, n. 9391, p. 1170, 2003.

    7 FOR THE GRADE Working Group. Grading quality of evidence and strength of recommendations. BMJ, London, v. 328, p. 1490, 2004.

    8 FERREIRA, M. B. C. Fundamentos de Bioestatstica: contribuio Leitura Crtica da Informao Cientfica. In: FUCHS, F. D.; WANNMACHER, L. (Eds.). Farmacologia Clnica: Fundamentos da Teraputica Racional. 4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010, p. 26-41.

    9 RYCHETNIK, L. et al. A glossary for evidence based public health. J. Epidemiol. Community Health, London, v. 58, p. 538545, 2004.

    10 FUCHS, S. C.; FUCHS, F. D. Mtodos de investigao farmacolgico-clnica. In: FUCHS, F. D.; WANNMACHER, L. (Eds.). Farmacologia Clnica: Fundamentos da Teraputica Racional. 4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p. 9-25.

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    Modernamente os medicamentos so parte importante da ateno sade. No s salvam vidas e promovem a sade, como previnem epidemias e doenas. Acesso a medicamentos direito humano fundamental. H aceitao mundial do conceito de medicamentos essenciais. Esses constituem poderosa ferramenta para promover sade equitativa, j que tm comprovado impacto em acesso, por serem um dos elementos mais custo-efetivos nos cuidados sade. Assim, construir lista de medicamentos essenciais pode ajudar os pases a racionalizar compra e distribuio de medicamentos, reduzindo custos e garantindo apropriada qualidade de atendimento.1

    No Brasil, a stima edio da Relao Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename)2 foi publicada em 2010, qual se seguir a nova verso do Formulrio Teraputico Nacional. O objetivo desses documentos servir de ferramenta que oriente o uso racional de medicamentos prioritrios sade pblica no Brasil, envolvendo aspectos relativos ateno sade, como prescrio, dispensao, administrao e emprego pelo usurio, bem como aqueles relacionados gesto, abrangendo seleo, suprimento e acesso a eles pela populao.

    Por isso, parece oportuno falar sobre a histria dos medicamentos essenciais e de sua importncia para a assistncia e a gesto pblica de sade.

    Trajetria dos medicamentos essenciais na Organizao Mundial da Sade (OMS)

    Em 1975, a Assembleia Mundial da Sade pediu OMS para assessorar os estados-membros a selecionar medicamentos essenciais com qualidade e custo razovel. Em 1977, publicou-se a primeira lista modelo de medicamentos essenciais

    com 205 itens (186 medicamentos). Desde ento, 16 revises foram publicadas, e a maioria dos 193 pases-membros adotaram listas de medicamentos essenciais. Isso faz com que a questo dos medicamentos essenciais continue como ponto-chave nas estratgias da OMS para 200820133, e que a diretora geral, Dra. Margaret Chan, assim se expresse: O conceito de medicamentos essenciais uma das maiores aquisies de sade pblica na histria da OMS. to relevante hoje como foi sua concepo h 30 anos.4

    A partir de 2002, a OMS modificou o conceito de medicamentos essenciais. Esses deixaram de ser direcionados somente a doenas prevalentes, passando a ser selecionados para situaes prioritrias em sade pblica. Isso se deveu necessidade de incorporar antirretrovirais lista. A OMS tambm adotou novos critrios para seleo dos medicamentos. As decises passaram a ser fortemente baseadas em evidncia, e os pareceres comearam a ser antecipadamente publicados na pgina eletrnica da instituio para que qualquer pessoa ou organizao pudesse opinar sobre o que se apresentaria para discusso e deciso na prxima reunio do comit. Dessa forma, a preocupao com a melhor evidncia cientfica e a transparncia intentou obter maior grau de credibilidade internacional s aes da entidade.

    Usadas como ferramentas para a tomada de deciso em sade pblica, as listas tm auxiliado gestores, profissionais da sade e o pblico em geral a lidar com medicamentos eficazes, seguros e de qualidade, a menor custo. O nus econmico desses produtos se faz sentir especialmente em pases pobres que tm limitados recursos. Por isso, particularmente importante para promoo da sade investir em estratgias globais e integradas que sejam eficazes. Quando se trata de tomar decises em sade, essas podem estar mais bem fundamentadas

    Importncia dos Medicamentos Essenciais em Prescrio e Gesto Racionais

    Tema

    2Construo de sentido nada mais do que o processo de fazer escolhas e colocar-se diante dos fatos de forma inteligente atuante e no passiva, informada e no arrastada pelo senso comum e pela fala sem substncia. Jornalista Cludia Laitano

    Zero Hora, 30 de setembro de 2006.

    Lenita Wannmacher

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    Ministrio da Sade

    pela anlise da evidncia proveniente de revises sistemticas de fontes primrias fidedignas.5

    A partir de 2007, criou-se na OMS um subcomit para selecionar medicamentos essenciais para crianas. Em 2009, foram publicadas duas novas listas de medicamentos essenciais: uma geral (a 16, contendo todos os medicamentos selecionados) e uma para crianas (a 2).

    As listas modelos so revisadas a cada dois anos. A 17 Lista Modelo de Medicamentos Essenciais da OMS foi elaborada pelo comit de especialistas reunido em 2011, em Accra, Gana.

    Os relatos das decises tomadas e suas justificativas se colocam na web (http://www.who.int/medicines) logo em seguida s reunies, sendo posteriormente impressas sob forma de relatos tcnicos que incluem as prprias listas.6

    A Lista Modelo da OMS tem sido incorporada a algumas polticas, como a adoo obrigatria desses medicamentos em doaes feitas por alguns organismos internacionais e o ressarcimento dos custos da prescrio por seguros-sade de alguns pases.

    Propsito e consequncias de seleo e uso de medicamentos essenciais

    Trabalhar com conceito e lista de medicamentos essenciais faz parte das dez recomendaes que melhoram o uso de medicamentos em pases em desenvolvimento.7

    Aquele conceito foi criado com a viso de que as pessoas, em qualquer lugar, tenham acesso aos medicamentos prioritrios para a sade pblica quando deles necessitarem, os quais devem ser eficazes, seguros e de qualidade assegurada, sendo prescritos e usados racionalmente.

    Os critrios de seleo, fortemente baseados em evidncias e em sequncia hierrquica, englobam:

    Eficcia Segurana Convenincia para o paciente Qualidade assegurada Custo comparativamente favorvel

    Cada pas utiliza a lista modelo da OMS de modo flexvel e adaptvel s suas condies. A deciso sobre quais medicamentos essenciais sero selecionados permanece uma responsabilidade nacional. Nessa perspectiva, a seleo leva em conta as doenas de relevncia para a populao, as condies organizacionais dos servios de sade, a capacitao e experincia dos profissionais, a qualidade dos medicamentos registrados e disponveis no pas e os recursos financeiros alocados para a sade.

    Na prtica clnica, trabalhar com nmero limitado de medicamentos essenciais favorece a qualidade de ateno sade, melhor gesto de medicamentos, mais fcil auditoria, mais fcil treinamento do prescritor e melhor informao ao paciente, o que foi verificado inclusive em pases ricos.8

    A lista de medicamentos essenciais deve orientar e racionalizar o suprimento de medicamentos no setor pblico, a produo local de medicamentos e as aes no mbito da assistncia farmacutica.

    A estratgia de emprego de medicamentos essenciais importante vertente para o uso racional de medicamentos.

    A lista de seleo de medicamentos essenciais deve ter extenses, como um formulrio teraputico e protocolos clnicos, tudo isso influenciando positi-vamente a preveno e o tratamento de doenas prevalentes e relevantes para o pas (Figura 1).

    Figura 1- Lista de Medicamentos Essenciais (ME): determinantes, extenses e consequncias

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    No Brasil, em 2010, sero publicadas novas verses do Formulrio Teraputico Nacional (FTN) e dos Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas que podero ser acessadas no site do Ministrio da Sade.

    Seleo de medicamentos essenciais

    Os medicamentos essenciais so selecionados a partir do elenco de medicamentos registrados no Pas. Mas nem todos os medicamentos registrados so essenciais. Na atualidade, cresce o nmero de medicamentos colocado para comercializao, sendo que apenas 1% representa reais inovaes com relevncia clnica. H, pois, um armamentrio excessivo e repetitivo, criando-se famlias de medicamentos, em que os mais novos so muito semelhantes em eficcia e segurana (me-toos) aos j existentes. As poucas diferenas encontradas dizem respeito a aspectos farmacocinticos que, por vezes, repercutem favoravelmente na teraputica. Em outras, no entanto, aquelas diferenas no so significativas para obteno de respostas teraputicas. Apesar dessa realidade, os rgos reguladores europeu (EMEA) e norte- americano (FDA) aprovaram mais medicamentos em 2008 do que em 2007.9

    O cerne da seleo racional o processo comparativo, em que representantes de mesma classe teraputica so cotejados entre si para determinar seu real e relevante benefcio clnico para o paciente. Assim, levando em conta os efeitos de classe, escolhe-se um representante com base em forte evidncia de eficcia e segurana, comprovada por amplos ensaios clnicos randomizados (ECRs), com robusta base metodolgica e desfechos de alta relevncia clnica, geradores de resultados generalizveis e aplicveis s condies usuais. Meta-anlises e revises sistemticas desses ECRs sintetizam os resultados das fontes primrias e constituem um dos pilares da evidncia, mesmo quando essa ainda no se construiu.

    Mostrar que existe incerteza quanto ao benefcio de determinada deciso constitui per se um benefcio, pois evita uso emprico ou fruto de propaganda dos produtores e aponta para a necessidade de pesquisa futura. De todas as revises sistemticas existentes, sobressaem-se as da Cochrane Collaboration, que se mostram mais relevantes e, principalmente, isentas.10

    H alguns anos, uma reviso Cochrane analisou os efeitos da reduo de osmolaridade da soluo de reidratao em crianas com diarreia. Seus resultados foram centrais para que OMS e Unicef recomendassem hidratao oral com sais de osmolaridade reduzida, que passaram a ser manufaturados e distribudos. Esse um exemplo da utilizao pragmtica de um desfecho clnico relevante para a ateno primria em sade.11

    Alm dos critrios maiores j mencionados, h outros condicionantes da seleo de medicamentos essenciais. Muitas vezes o representante escolhido por ser usado em mais de uma doena. Custo alto no exclui da lista um medicamento, se este representa a melhor escolha para uma condio especfica. Ao contrrio, se todos os critrios hierarquicamente mais importantes (eficcia, segurana e convenincia ao paciente) forem similares, a deciso pender em favor do que tiver preo mais justo, para tornar-se mais facilmente disponvel aos pacientes que dele necessitarem.

    Da lista de essenciais so excludos medicamentos de similar eficcia e segurana, de recente introduo no mercado, com insuficiente experincia de uso e eficcia ou segurana no definidamente comprovadas.

    Na lista, certos medicamentos tm indicaes muito especficas ou requerem alto grau de expertise para assegurar uso seguro e eficaz, sendo colocados na chamada lista complementar da Lista Modelo da OMS. Outros induzem rpida resistncia microbiana, so muito caros ou podem desenvolver dependncia fsica e psquica. Quaisquer dessas condies restringem o emprego a determinadas indicaes clnicas. Na Rename, e em outras listas elaboradas no Brasil, esses medicamentos so considerados de uso restrito, estando assinalados com a letra R seguida de um nmero que corresponde nota de rodap explanatria.

    Na lista, devem constar as designaes genricas dos medicamentos includos (no Brasil, segundo a Denominao Comum Brasileira DCB, 2010)12, sem usar nomes de marca ou fabricantes especficos, o que melhora a prtica de prescrio e dispensao, contribuindo para o uso racional e a informao independente, diminuindo o desperdcio e evitando erros de medicao.

    Para evitar monoplio e preos excessivos, escolhem-se, preferencialmente, medicamentos produzidos por mltiplos fabricantes. Preferem-se monofrmacos, aceitando as associaes em doses fixas somente quando aumentam a eficcia, retardam a resistncia microbiana ou melhoram a adeso dos pacientes a tratamento. A escolha pode ser influenciada por facilidades de estocagem, principalmente em locais midos e quentes.

    A lista de medicamentos essenciais deve ser instrumento educativo e orientador da prtica dos profissionais que a ela recorrem. Por isso, deve ser nica, organizada por grupos farmacolgicos utilizados para manejar manifestaes gerais de doena (dor, inflamao, alergia, infeco, neoplasia, intoxicao, distrbios carenciais) e tratar doenas de diferentes sistemas orgnicos. A repetio de medicamentos com mltiplas indicaes clnicas em diferentes grupos nos

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    Ministrio da Sade

    quais se inserem (ex.: cido acetilsaliclico como analgsico, anti-inflamatrio, antiplaquetrio etc.) d melhor ideia do armamentrio teraputico disponvel. As justificativas de incluso introduzidas nas prprias listas favorecem a explicitao da evidncia e reforam o aspecto educativo. Tambm so selecionadas formas farmacuticas cabveis para adultos e crianas, com as respectivas concentraes. Em princpio, escolhem-se as menores concentraes, pois mais fcil administrar mltiplos de uma forma farmacutica slida do que fracion-la. Para aqueles que atendem crianas, sugere-se a leitura da 2 Lista Modelo de Medicamentos Essenciais para Crianas (atualizada em maro de 2010) e do Formulrio Modelo de Medicamentos Essenciais para Crianas 2010, baseado na lista mencionada, ambos da OMS e disponibilizados em formato PDF na web: http:/ /www.who.int/medicines/publ icat ions/essentialmedicines/en/index.html e www.who.int/entity/selection_medicines/list/WMFc_2010.pdf, respectivamente.

    Frustraes, desafios e expectativas

    Grande proporo de profissionais da sade, em todos os nveis da gesto pblica, desconhece as listas de medicamentos essenciais existentes no Pas. Constitui um desafio a divulgao dessas listas, abrangendo o maior nmero possvel de prescritores, setores acadmicos, servios de sade e organismos profissionais.

    Outra dificuldade consiste na falta de adeso dos profissionais em prescrever medicamentos essenciais. Estudo indiano mostrou que a prescrio medicamentosa era irrestrita, e que os mdicos prescreviam muitas vezes as mais onerosas alternativas e que 510% das prescries continham o mesmo antibitico sob diferentes nomes comerciais.13

    A falta de adeso dos clnicos se deve a desconhecimento, preconceitos, arraigados hbitos de prescrio e influncia da propaganda de medicamentos. Profissionais que atendem em diferentes setores (pblico, seguro-sade, privado) tm diferentes comportamentos prescritivos numa mesma jornada de trabalho, como se coubesse diferena de tratamento da mesma doena em pacientes atendidos nesses diversos cenrios. Levantamento14 realizado em municpios de trs estados brasileiros (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul) avaliou a adeso de prescritores de unidades de sade a listas de medicamentos essenciais municipais (Remumes), nacional (Rename) e mundial (Lista Modelo da OMS) e a disponibilidade desses medicamentos nos

    servios de ateno primria e secundria no mbito do SUS. Foram encontrados 476 medicamentos diferentes nas receitas avaliadas, prescritos 5.222 vezes a 2.411 pacientes, correspondendo a 2,17 (1,49) medicamentos por prescrio. Observou-se 0,5% de medicamentos no identificados, em decorrncia de letras ilegveis ou ausncia de registro na Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (Anvisa). Do total de medicamentos prescritos nos locais estudados, 76,4% constavam nas Remunes, 76,8% na Rename e 63% na lista da OMS. A variao entre os locais investigados foi de 25,7% a 92,9% para a Remune, 45,4% a 88,2% para a Rename e 34,9% a 72,1% para a lista da OMS. Do total de medicamentos prescritos, 76,1% estavam disponveis nas farmcias dos locais pesquisados nos dias em que a coleta de dados foi realizada, variando de 51% a 93%. Quando analisados os medicamentos essenciais em separado, a disponibilidade aumentou em todos os locais, com mdia geral de 88,1%. A prescrio de aproximadamente 24% de medicamentos no constantes nas listas municipais pode ser resultado da no adeso ou do desconhecimento dos prescritores a essas listas.

    Os pacientes, por sua vez, desacreditam os medicamentos recebidos do setor pblico, sendo muitas vezes instigados por propaganda de medicamentos feita pela mdia ou presses de organizaes de pacientes. Falta-lhes adequada e completa informao sobre os tratamentos que lhes so prescritos. Da decorre o uso incorreto, responsvel por pobre resposta, reforando a descrena nos medicamentos fornecidos pelo setor pblico, e o emprego de representantes no listados. Estudo sulafricano15 mostrou que medicamentos genricos, bem como os distribudos gratuitamente pelo Estado, eram considerados de pobre qualidade e vistos com suspeita pelos pacientes. Os autores preconizam a necessidade de campanhas estratgicas sobre qualidade de medicamentos essenciais e genricos, tendo por alvo consumidores e prescritores.

    Os esclarecimentos e justificativas da seleo de medicamentos essenciais, suas extenses, como formulrio teraputico e diretrizes clnicas, e harmonizao entre listas de essenciais e programas nacionais de enfrentamento de determinadas doenas constituem estratgias de real implementao dos medicamentos essenciais.

    Cada vez mais, a gesto da sade pblica deve fundamentar escolhas clnicas e polticas em evidncia cientfica, proveniente da anlise isenta do que consegue melhorar a qualidade do atendimento sade da populao dentro dos recursos disponveis. A pesquisa clnica pode auxiliar nas decises sobre o que prioritrio em atendimento, desenvolvimento de infraestrutura e financiamento.16

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    As decises baseadas em evidncias devem ser adaptadas aos recursos financeiros diponveis, levando em conta as necessidades e os valores da populao.17

    O maior desafio generalizar e internalizar um novo paradigma o das condutas baseadas em evidncias em todos os profissionais da sade. Por ser forma de pensar com pouco mais de dez anos de existncia, alguns de seus precursores assim se expressam: A medicina baseada em evidncia percorreu um longo caminho, mas os desafios remanescentes sugerem que sua segunda dcada ser mais excitante que a primeira.18

    A expectativa atual de que a disseminao desses conceitos e paradigmas no Mdulo do Componente Bsico do HRUS logre modificar a tradio prescritiva, com consequente benefcio para os pacientes atendidos no mbito da ateno primria. Sem dvida, isso tambm se deve traduzir em melhoria da gesto com respeito a acesso aos

    medicamentos, como foi o intento da poltica canadense Canadas Access to Medicines Regime que planejou o incremento daquele acesso em pases em desenvolvimento. Para que haja efetiva adeso de profissionais e pblico em geral, importante a cobertura da mdia para facilitar o debate entre os diversos atores e valorizar aspectos relevantes para o uso de medicamentos essenciais, como direitos humanos, inovao farmacutica e competitividade econmica.19

    Na atualidade, aumentar o acesso a medicamentos essenciais tem-se tornado um dos mais visveis desafios globais na promoo sade.20

    Forte deciso poltica para assegurar abastecimento e favorecer acesso de medicamentos essenciais, aliada ampla divulgao de seu benefcio na sade dos indivduos, constitui estratgia para que se amplie o uso racional de medicamentos na ateno sade no Brasil.

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    Ministrio da Sade

    Referncias

    1. KAR, S. S.; PRADHAN, H. S.; MOHANTA, G. P. Concept of essential medicines and rational use in public health. Indian. J. Community. Med., [S.l.], v. 35, n. 1, p. 10-13, 2010.

    2. BRASIL. Ministrio da Sade. Secretaria de Cincia, Tecnologia e Insumos Estratgicos. Departamento de Assistncia Farmacutica e Insumos Estratgicos. Relao Nacional de Medicamentos Essenciais: Rename. 7. ed. Braslia, 2010. 250 p.

    3. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Continuity and change: Implementing the 3rd WHO Medicines Strategy (20082013). Geneva: WHO, 2008. Disponvel em: Acesso em: 08 set. 2010.

    4. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Essential Medicines Biennial Report: 20082009. Disponvel em: Acesso em: 08 set. 2010

    5. MCMICHAEL, C.; WATERS, E.; VOLMINK, J. Evidence-based public health: what does it offer developing countries? J.Public. Health (Oxf), [S.l.], v. 27, n. 2, p. 215-221, 2005.

    6. WORLD HEALTH ORGANIZATION. The Selection and Use of Essential Medicines. Report of the WHO Expert Committee, Mar. 2009. WHO Technical Report Series, Geneva, n. 958, 2009. 231 p.

    7. LAING, R.; HOGERZEIL, H. V.; ROSS-DEGNAN, D. Ten recommendations to improve use of medicines in developing countries. Health Policy and Planning, Oxford, Inglaterra, v. 16, p. 13-20, 2001.

    8. HOGERZEIL, H. V. The concept of essential medicines: lessons for rich countries. BMJ, London, v. 329, p. 1169-1172, 2004.

    9. NEW medicines in 2007: regulatory agencies and policy makers leave public health in the hands of the pharmaceutical industry. Prescrire International, [S.l.], v. 17, n. 94, p. 78-82, 2008.

    10. SWINGLER, G. H.; VOLMINK, J.; IOANNIDIS, J. P. A. Number of published systematic reviews and global burden of disease: database analysis. BMJ, London, v. 327, p. 1083-1084, 2003.

    11. GARNER, P. et al. Putting evidence into practice: how middle and low income countries get it together. BMJ, London, v. 329, p. 1036-1039, 2004.

    12. AGNCIA NACIONAL DE VIGILNCIA SANITRIA. Lista DCB - Denominao Comum Brasileira Consolidada, 2010. Disponvel em: Acesso em: 14 set. 2010.

    13. CHAUDHURY, R. R. et al. Quality medicines for the poor: experience of the Delhi programme on rational use of drugs. Health Policy and Planning, Oxford, Inglaterra, v. 20, n. 2, p. 124136, 2005.

    14. DAL PIZZOL, T. S. et al. Adeso a listas de medicamentos essenciais em municpios de trs estados brasileiros. Cad Sade Pblica, Belo Horizonte, v. 26, n. 4, p. 827-836, 2010.

    15. PATEL, A.; GAULD, R.; NORRIS, P.; RADES, T. This body does not want free medicines: South African consumer perceptions of drug quality. Health Policy Plan, Oxford, Inglaterra, v. 25, n. 1, p. 61-69, 2010.

    16. TUNIS, S. R.; STRYER, D. B.; CLANCY, C. M. Practical clinical trials: increasing the value of clinical research for decision making in clinical and health policy. JAMA, Chicago, Ill., US, v. 290, n. 12, p. 1624-1632, 2003.

    17. MUIR GRAY, J. A. Evidence based policy making. BMJ, London, v. 329, p. 988-989, 2004.

    18. GUYATT, G.; COOK, D.; HAYNES, B. Evidence based medicine has come a long way. BMJ, London, v. 329, p. 990-991, 2004.

    19. ESMAIL, L. C. et al. Framing access to medicines in developing countries: an analysis of media coverage of Canadas Access to Medicines Regime. BMC Int Health Hum Rights, [S.l.], v. 10, p. 1, 2010.

    20. GREENE, J. A. When did medicines become essential? Bull World Health Organ, [S.l.], v. 88, n. 7, p. 483, 2010.

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    Introduo

    A associao entre o uso de antimicrobianos e o desenvolvimento de resistncia bacteriana conhecida desde a introduo da penicilina, tendo sido, a partir de ento, sistematicamente confirmada aps o lanamento de diversos representantes de cada uma das diferentes classes farmacolgicas.1 O perodo necessrio para a ocorrncia desse fenmeno mostrou-se surpreendentemente curto para muitos frmacos, enfatizando a imensa capacidade de adaptao dos micro-organismos a ambientes hostis, artificialmente criados pelo homem.2

    Embora essas observaes devessem intuitivamente soar como um sinal de alerta para a necessidade de se promover emprego teraputico mais racional desses insumos, o que tem ocorrido, na verdade, exatamente o oposto. Em alguns pases, antimicrobianos so utilizados sem receita mdica em at dois teros das ocasies. Mesmo quando formalmente prescritos, sua indicao pode ser desnecessria em at 50% dos casos.3 No existem evidncias claras sobre as mais importantes causas implicadas nesse consumo desmedido, mas se acredita que diversos fatores contribuam de forma crucial, tais como a expectativa do paciente em receber tratamento eficaz, o tempo cada vez mais exguo das consultas mdicas (demanda elevada e baixa remunerao), o medo de litgio e as presses da indstria farmacutica e dos planos de sade (para reduo do nmero de reconsultas e de pedidos de exames diagnsticos).3,4 Alm disso, talvez por falta de informao, muitos profissionais encaram o risco de induo de resistncia como algo essencialmente terico ou pouco provvel.5 O atual texto versa sobre o emprego ambulatorial de antimicrobianos, onde se concentram 80% do consumo humano.6

    A promoo do uso racional de antimicrobianos neste contexto fundamental, j que infeces causadas por bactrias comunitrias resistentes so de mais difcil tratamento e se associam a maior morbidade.7 O crescimento no nmero de pacientes imunocomprometidos e com

    patologias complexas tratados em domiclio facilita a disseminao na comunidade de bactrias multirresistentes originrias dos hospitais, fazendo com que as outrora ntidas fronteiras que separa-vam o hospital da comunidade se tornem cada vez mais nebulosas. Nesse contexto, o uso abusivo de antimicrobianos mantm terreno frtil para abrig-las.

    H provas, cada vez mais irrefutveis, de que o mau uso de antimicrobianos o principal responsvel pela seleo de resistncia. Essa assertiva deve ser introjetada pelo prescritor que trabalha no setor de ateno primria sade, sobretudo porque lida com infeces de menor gravidade, nem sempre de etiologia bacteriana (por exemplo, infeces respiratrias altas de origem viral em crianas), que no necessitam de antimicrobianos ou que curam facilmente com antibiticos mais comuns e com menor potencial de induo de resistncia. A deciso teraputica sobre eventual prescrio de antibiticos deve fundamentar-se em real indicao, e a seleo dos mesmos deve levar em conta os malefcios do emprego inadequado desses frmacos.

    Algumas estratgias podem ser teis para minimizar a seleo de micro-organismos resistentes, aumentando a vida til dos antimicrobianos disponveis.

    O uso de antimicrobianos como fator de seleo de micro-organismos resistentes

    As evidncias de que o uso de antimicrobianos a principal fora motora para o desenvolvimento da resistncia bacteriana vm de diversas observaes. Por exemplo, as taxas de resistncia so maiores em contextos de consumo mais intenso desses frmacos. H frequente surgimento de resistncia durante o curso da terapia, com consequente falncia teraputica. Universalmente constata-se correlao temporal entre a comercializao de novos agentes e o posterior desenvolvimento

    Uso Indiscriminado de Antimicrobianos e Resistncia Microbiana

    Tema

    3 Ricardo Ariel Zimerman

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    Ministrio da Sade

    de resistncia microbiana aos mesmos, s vezes aps curto perodo de sua introduo no mercado.6,8

    Diversos estudos tm demonstrado que o advento de resistncia, embora mais dramtico no contexto hospitalar e particularmente entre pacientes gravemente enfermos, tambm se tem disseminado entre micro-organismos comunitrios causadores de infeces de alta prevalncia, como as urinrias, de trato respiratrio e de pele/partes moles. Mais do que isso, esse fenmeno parece estar intimamente associado a incremento no consumo de diversos antimicrobianos utilizados no manejo dessas sndromes. Na Dinamarca, por exemplo, demonstrou-se aumento importante no consumo de ciprofloxacino (representante da classe das fluorquinolonas), de 0,13 doses dirias definidas (DDD) por 1.000 habitantes/dia (DID) em 2002 para 0,33 DID em 2005. Como consequncia, durante o mesmo perodo, a frequncia de isolamento de Escherichia coli a elas resistentes, em amostras de urina, apresentou elevao de 200%.4

    No entanto um problema importante do trabalho supracitado e de outros estudos semelhantes a natureza ecolgica de sua concepo, onde a relao entre a prescrio e a resistncia avaliada somente em nvel populacional. Alm de apresentar limitao inerente na habilidade de demonstrar causalidade, as evidncias oriundas de estudos com esse desenho podem ter menor capacidade de sensibilizar o clnico que se encontra na linha de fogo, e cuja maior preocupao o bem-estar de seu paciente. Assim, o risco de eventual seleo de resistncia pode ser considerado secundrio ou mesmo menosprezado.5

    Por esse motivo, reviso sistemtica publicada em 2010 foi particularmente importante, j que confirmou a relao causa-efeito entre uso de antimicrobianos e desenvolvimento de resistncia no contexto comunitrio e em mbito individual. A meta-anlise5 de 24 estudos originais avaliou o impacto do risco de resistncia microbiana adquirida aps o tratamento antimicrobiano de pacientes com infeces respiratrias e urinrias e de seu uso em voluntrios assintomticos. Dentro de um ms de exposio a antimicrobiano por pacientes com infeco urinria, a estimativa de risco de nova infeco por E. coli resistentes (ao mesmo agente utilizado, a outro ou a mltiplos antimicrobianos, dependendo do estudo) foi cerca de quatro vezes maior em comparao observada nos no expostos (OR= 4,4; IC95%: 3,785,12). Como era de se esperar, houve reduo da magnitude da associao conforme se avaliavam os dados que incluam exposies mais remotas. Ainda assim, persistiu diferena estatisticamente significativa mesmo at 12 meses aps o uso de

    antimicrobianos (OR = 1,33; IC 95%: 1,151,53). Em relao s infeces respiratrias, o risco de aparecimento de micro-organismos resistentes foi duas vezes maior (OR= 2,37; IC 95%: 1,254,5) com a utilizao de antimicrobianos dentro de um perodo de at 12 meses. Embora a meta-anlise tenha vrias limitaes importantes, principalmente a possvel existncia de vis de publicao, conseguiu evidenciar que a prescrio de antimicrobianos causa resistncia e que o impacto no vagamente distribudo para a sociedade ou para o ecossistema como um todo. Ao contrrio, sentido diretamente pelo paciente que recebe o frmaco.

    Em alguns estudos, a relao causa-efeito fica mais evidente quando se observa a associao entre medidas de intensidade de exposio tempo de uso dos antimicrobianos (at sete dias de uso versus mais de sete dias) ou nmero de prescries anuais (uma versus trs ou mais) e magnitude dos efeitos observados.5

    Reduo no nmero de prescries

    Se o uso de antimicrobianos o principal fator causal no incremento das taxas de resistncia bacteriana, parece lgico assumir que a reduo se o uso de antimicrobianos o principal fator causal no incremento das taxas de resistncia bacteriana, parece lgico assumir que a reduo no consumo desses frmacos deveria trazer impacto positivo sobre a regresso do fenmeno. No entanto, em ambiente ambulatorial, a hiptese extremamente difcil de ser testada, pois requer grandes e prolongadas mudanas nos perfis de prescries. Alm disso, os poucos estudos assim gerados costumam estar condenados a terem desenho retrospectivo e ecolgico, o que dificulta bastante a confirmao de elo causal entre alteraes nos padres de uso e eventuais modificaes nas taxas de resistncia. Como consequncia, h poucas evidncias disponveis que sirvam como base slida de conhecimento. De qualquer forma, algumas experincias internacionais forneceram, indubitavelmente, interessantes insights sobre a questo e merecem ser brevemente revisadas.

    Na Finlndia, durante a dcada de 1980, observou-se triplicao no consumo de antimicrobianos da classe dos macroldeos. Como resultado, a frequncia de isolamento de Streptococcus pyogenes (Estreptococo do grupo A) resistentes eritromicina, empregada em casos de hipersensibilidade penicilina, passou de 5% no perodo de 19881989 para 13% em 1990.9 Ento, as autoridades sanitrias publicaram diretrizes de restrio de uso de eritromicina, resultando em diminuio no consumo do frmaco de 2,4 doses

    Estratgias para minimizar a resistncia

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    dirias definidas (DDD) por 1.000 habitantes/dia (DID) em 1991 para 1,28 DID em 1992. De forma semelhante, as taxas de resistncia, que eram de 16,5% em 1992, passaram a cair, de forma estatisticamente significativa, a partir de 1994, atingindo o patamar de 8,6% em 1996. Em 1995, graas introduo de novos representantes macroldeos (principalmente roxitromicina e azitromicina), o consumo voltou a subir, chegando a 1,74 DID. Vrios achados interessantes podem ser extrados desse estudo. Em primeiro lugar, ficou claro que possvel obter, ao menos em contexto de alto padro sociocultural, importantes mudanas nos perfis de uso comunitrio de antimicrobianos, a partir do desenvolvimento de protocolos clnicos e de treinamento adequado para sua implementao. Tambm a educao da populao sobre o problema, por meio de ampla publicidade nacional, foi fundamental para garantir a efetiva adeso s recomendaes. Em segundo lugar, evidenciou-se que, ao menos para o binmio macroldeo/S. pyogenes, possvel reduzir as taxas de resistncia com a adoo de uma estratgia de consumo mais moderado do antimicrobiano. No entanto a mudana no perfil de suscetibilidade no foi imediata. Foram necessrios mais de dois anos de ampla restrio de uso de eritromicina para que os efeitos comeassem a ser verificados. O novo incremento no uso de macroldeos em 1995 foi seguido de nova elevao nas taxas de resistncia, comprovando a relao causa-efeito da associao e demonstrando que os benefcios conquistados podem ser rapidamente perdidos, caso as polticas de uso racional sejam descontinuadas.

    Outra experincia com resultados positivos envolveu a reduo de consumo de ciprofloxacino. Em Israel, em virtude de possvel ataque bioterrorista com Bacillus anthracis, lanou-se, em outubro de 2001, uma estratgia de restrio nacional ao uso do frmaco, com intuito de se preservarem estoques para eventual necessidade de profilaxia ps-exposio em massa.1 Dessa forma, foi possvel a conduo de um estudo ecolgico retrospectivo e quase experimental que correlacionou a mudana na utilizao da ciprofloxacino frequncia de isolamento de Escherichia coli resistentes s fluorquinolonas em infeces urinrias comunitrias em trs momentos distintos: antes, durante e aps o perodo da interveno. Observou-se reduo estatisticamente significativa de mais de 40% no consumo do frmaco entre os perodos pr-interveno (mdia de 6.996 661 DDD/ms) e interveno (mdia de 5.067 755 DDD/ms) e entre este perodo e a ps-interveno (mdia de 6.895 640 DDD/ms). Como consequncia, verificou-se imediata reduo de 25% nas taxas de no suscetibilidade das E.coli s fluorquinolonas (de 12% para 9%). A relao inversa encontrada entre

    consumo de ciprofloxacino e suscetibilidade ao frmaco foi linear, com o ms de maior consumo (8.321 DDD/ms) tambm respondendo pela maior taxa de resistncia (14%) e o de menor (4.027 DDD/ms), pela menor taxa encontrada durante o estudo (9%).1 No houve perodo de latncia entre a interveno e os resultados. Isto , as alteraes nos padres de prescrio do antimicrobiano estudado se associaram a impacto imediato nos perfis de suscetibilidade no micro-organismo avaliado.

    Entretanto nem todos os estudos baseados em polticas de reduo de uso de antimicrobianos apresentaram resultados favorveis. O exemplo negativo mais chamativo ocorreu na Inglaterra, onde a preocupao com a toxicidade dos derivados sulfonamdicos levou reduo gradual em seu consumo, culminando com a restrio formal das indicaes aprovadas para uso de cotrimoxazol (sulfametoxazol/trimetoprima) em 1995. Como consequncia, no perodo compreendido entre 1991 e 1999, observou-se diminuio superior a 97% nas prescries do frmaco (de 320.000 para cerca de 7.000). No entanto a anlise de amostras clnicas de origem predominantemente ambulatorial de E. coli no demonstrou qualquer reduo de resistncia aos derivados sulfonamdicos (46% em 1999 versus 39,7% em 1991; diferena de 6,2%; IC 95%: - 0,9 a 13,3).10

    Por que motivo alguns experimentos teriam se associado a resultados favorveis e outros no? Existem algumas hipteses que parecem plausveis. Para que a reduo no consumo de determinado antimicrobiano seja seguida de reduo nas taxas de resistncia, ao menos dois requisitos devem ser preenchidos. Em primeiro lugar, importante que a presso seletiva imposta para manuteno dos determinantes genticos de resistncia seja verdadeiramente aliviada. Para isto, a exposio de todo o ecossistema a determinado antimicrobiano deve ser globalmente reduzida. Por exemplo, a despeito da diminuio de 97% no consumo ambulatorial de cotrimoxazol observada no estudo supracitado, mais de 80 toneladas do frmaco foram empregadas, apenas em 1998, como complemento nutricional animal.10 Esse fato abre a possibilidade de exposio humana sustentada via cadeia alimentar, apesar da reduo do nmero de prescries mdicas. Alm disso, o gene sul II de resistncia s sulfonamidas foi encontrado de forma progressivamente frequente em isolados de E.coli entre 1991 e 1999. Notavelmente, esse gene foi localizado em grandes plasmdeos conjugveis, portadores de mltiplos genes de resistncia a outros antimicrobianos (fenmeno de corresistncia). Assim, possvel que o aumento compensatrio no uso de outros frmacos (p. ex., trimetoprima em monoterapia) tenha forado a persistncia desses plasmdeos e, dessa forma, dos

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    Ministrio da Sade

    Quadro 1- Impacto da restrio de uso de antimicrobianos em relao reverso de resistncia

    H, pois, certo corpo de evidncias de que a reduo de uso de antimicrobianos pode associar-se recuperao de eficcia desses frmacos. Parece claro que deva existir um patamar de restrio, alm do qual poderia aumentar a morbidade. No entanto o uso excessivo no se associa a melhores desfechos em sade, como foi observado nos pases do sul da Europa, em que antibiticos so substancialmente mais utilizados do que no norte do continente europeu.11

    Mesmo que no suficientes para combater a resistncia bacteriana j estabelecida, as estratgias baseadas em menor uso de antimicrobianos podem ser fundamentais para prevenir o surgimento de mais resistncia. por isso que medidas nacionais destinadas a maior controle de uso desses frmacos deveriam ser desenvolvidas e amplamente implementadas. O ideal seria dispor de informaes fidedignas sobre as mudanas nos padres brasileiros de

    prescries de antimicrobianos e correlacion-las com a evoluo dos perfis de resistncia de micro-organismos oriundos de amostras ambulatoriais. Polticas poderiam, ento, ser construdas, levando em considerao os problemas particulares encontrados em diferentes locais do territrio nacional.

    Outras estratgias

    evidente que, em diversas ocasies, realmente persiste, aps reviso criteriosa da relao de risco (toxicidade, hipersensibilidade, resistncia e custo-benefcio), a indicao de uso de antimicrobianos em contexto ambulatorial. Mesmo nesses casos, no entanto, existe a possibilidade de se reduzir a presso seletiva mediante a adoo de esquemas mais curtos de tratamento, seguindo o princpio de prazo mnimo eficaz de uso. Cada vez mais se acumulam evidncias sobre a segurana dessa estratgia. Em ensaio clnico randomizado (ECR),

    elementos de resistncia s sulfonamidas, apesar do quase abandono de seu uso. Em segundo lugar, provvel que, mesmo sendo a presso seletiva efetivamente reduzida, as taxas de resistncia somente diminuam se houver algum preo a ser pago pelo micro-organismo pela manuteno de determinado mecanismo de resistncia. Isto , se houver reduo da capacidade replicativa (fitness) da bactria. Por exemplo, sabe-se que a perda da suscetibilidade s fluorquinolonas principalmente causada por mutaes cromossomiais que tendem a desestabilizar o genoma bacteriano. Como consequncia, a capacidade replicativa (fitness) das cepas resistentes pode ser 98% menor do que a das cepas suscetveis. Esse fenmeno pode

    explicar o rpido retorno suscetibilidade das E.coli a esta classe, observado assim que o consumo interrompido, e a presena de mutaes de resistncia passa a ser evolutivamente desinteressante para a bactria.1 Os resultados por vezes mistos encontrados nos estudos podem refletir, desta forma, impactos diferentes na eficcia de estratgias de reduo de consumo de antibiticos entre diferentes pares de antimicrobianos e micro-organismos, conforme o preenchimento ou no dos supracitados requisitos.

    No Quadro 1 resumem-se as diferentes correlaes (positivas ou negativas) entre reduo de consumo e restaurao de ao de antimicrobianos, encontradas na literatura.

    Antimicrobiano com uso restrito Micro-organismo avaliado

    Resultado da restrio da classe sobre a

    reduo da resistnciaComentrio

    EritromicinaS. pyogenes

    (estreptococo grupo A) PositivoDemora superior a dois anos para o efeito ser observado.

    Eritromicina S. pneumoniae (pneumococo) Negativo

    Sulfametoxazol E. coli NegativoMesmo aps reduo susten-tada de mais de 97% no uso.

    Ciprofloxacino E. coli Positivo

    Rpida queda nas taxas de resistncia aps reduo de uso. Retorno aos nveis basais aps novo incremento de uso, comprovando relao causa-efeito.

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    duplo-cego e controlado por placebo,12 pacientes adultos com pneumonia adquirida na comunidade (PAC), de leve a moderadamente grave, receberam 72 horas de amoxicilina intravenosa em hospital. Aps esse perodo, havendo melhora objetiva e tolerabilidade, foram randomizados para amoxicilina oral (750mg, a cada 8 horas) ou placebo por mais cinco dias. Pacientes com pneumonia severity index score > 110 (ndice de gravidade baseado em critrios clnicos, laboratoriais e radiolgicos que pode prever desfechos duros), imunodeficincias, empiema, histria de internao prvia recente ou alergia a betalactmicos, alm de gestantes, foram excludos. As taxas de cura no grupo que recebeu trs dias de antimicrobiano foram idnticas s do grupo que recebeu oito dias (93% para cada grupo na anlise por protocolo e 89% na anlise por inteno de tratar). Foi possvel, inclusive, demonstrar a no inferioridade do tratamento por trs dias no subgrupo de pacientes com infeco de corrente sangunea secundria causada por Streptococcus pneumoniae, complicao sabidamente associada maior gravidade. Apesar do excesso de pacientes com sintomas basais mais intensos e de fumantes no grupo dos trs dias de tratamento, o que pode ser interpretado como potencial vis conservador, houve mesma segurana de uso por prazo teraputico menor, ao menos em pacientes no muito graves e sem derrame pleural excessivo. Semelhantemente, dois outros ECRs13,14 realizados em populao peditrica confirmaram que trs dias de tratamento para PAC podem ser to eficazes quanto prazos mais prolongados, pelo menos para casos no graves. Esses achados so extremamente significativos, pois sndromes respiratrias infecciosas podem ser responsveis por at 75% das prescries de antimicrobianos no contexto ambulatorial.12

    Da mesma forma, para tratamento de infeces urinrias baixas no complicadas (cistites) em no gestantes, outra causa frequente de uso de antimicrobianos, mais de trs dias de tratamento so claramente desnecessrios.15 Essa sndrome principalmente causada por bacilos Gram negativos (especialmente E. coli) que apresentam particular tendncia a desenvolvimento de resistncia. Com frequncia ainda se utilizam perodos teraputicos de 7 a 14 dias, embora no tenham sido estabelecidos com base em evidncias slidas e, quase invariavelmente, no sejam endossados por mais recentes e mais bem conduzidos estudos de restrio de prazo.

    Outra estratgia consiste em empregar posologias modificadas de antimicrobianos na tentativa de otimizar o ndice farmacodinmico do regime teraputico. Sabe-se que a resistncia

    bacteriana pode advir da aquisio de novo material gentico, por exemplo, por conjugao e importao de um plasmdeo, ou mediante a chamada resistncia mutacional, correspondente ao surgimento de mutaes cromossomiais nos genes originalmente presentes em determinado micro-organismo. Ambos os mecanismos podem reduzir a suscetibilidade a certos antimicrobianos. Como exemplo do primeiro caso, cita-se a aquisio de genes produtores de betalactamases por parte dos bacilos Gram negativos, geralmente se associando a alto grau de resistncia, com elevadas concentraes inibitrias mnimas (CIMs) observadas em betalactmicos suscetveis ao dessas enzimas. Dessa forma, o estado de resistncia/suscetibilidade passa a ser claramente dicotmico. Por exemplo, a modificao posolgica de ampicilina (aumento de dose ou infuso lenta) no lograria resultado adequado no tratamento de infeces graves causadas por cepas de E. coli resistentes. No entanto os mecanismos de resistncia mutacional geralmente operam de forma progressiva, com mltiplas mutaes sequenciais que devem acumular-se para gerar estado de resistncia de alto nvel. Nesse caso, populaes bacterianas presentes em determinados stios infecciosos podem ser mistas e exibir diferentes CIMs. A CIM mais elevada denominada de concentrao de preveno de mutagnese (CPM), j que, pelo menos in vitro, a exposio a concentraes de antimicrobianos abaixo da CPM resultaria em seleo das bactrias com CIM mais elevado, redundando em perda progressiva de suscetibilidade. O mesmo, no entanto, no ocorreria com a obteno de concentraes acima da CPM, pois, neste caso, toda a populao bacteriana seria extinta por igual, abolindo-se a presso seletiva e a eventual possibilidade de emergncia de resistncia. Para arquitetar prescries que explorem este princpio, deve-se reconhecer o parmetro farmacocintico/armacodinmico (PK/PD) associado maior atividade bactericida para cada classe de antimicrobiano. Por exemplo, no caso dos betalactmicos, esta ao independe do pico de concentrao atingida, mas intimamente relacionada ao tempo ao longo do dia em que a concentrao de frmaco livre de ligao proteica (biologicamente ativo) no stio infeccioso mantm-se acima das CIMs dos micro-organismos (fT> CIM). Ao contrrio, para alguns antimicrobianos, como fluorquinolonas, a atividade antibacteriana depende da relao entre a rea sob a curva de concentrao/tempo (area under the curve), uma medida de exposio corporal, e a CIM (fAUC/CIM). A Figura 1 demonstra os diferentes parmetros PK/PD que mais bem predizem a ao bactericida de diversos antimicrobianos.

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    Ministrio da Sade

    Figura 1 - Diferentes parmetros PK/PD que melhor predizem ao bactericida

    Em estudo de coorte com controle histrico, pacientes internados com infeces causadas por Pseudomonas aeruginosa receberam infuses dirias de piperacilina/tazobactan, administradas lentamente ao longo de quatro horas.16 Em modelo de simulao de Monte Carlo, demonstrou-se que a probabilidade de atingir parmetro PK/PD preditivo de sucesso com o frmaco (fT > CIM por 50% do tempo) no era uniformemente mantida para todos os valores de CIM considerados como de suscetibilidade ao frmaco. De fato, para eventuais cepas com CIM de 16mg/L, menos de 30% dos pacientes atingiriam tal objetivo ao invs dos 100% observados caso a posologia modificada fosse preferida. O subgrupo de pacientes mais graves (com escore APACHE 17) apresentou reduo marcada na mortalidade em 14 dias de seguimento (de 31,6 % durante o perodo de utilizao de infuso convencional para 12,2% com a infuso lenta). No mbito comunitrio, um possvel cenrio para aplicao dos conceitos de PK/PD se relaciona ao uso de fluorquinolonas, j que a resistncia a essa classe mediada por mecanismos mutacionais. Em ECR, duplo-cego e multicntrico, conduzido em pacientes com PAC em todos os estratos de gravidade, compararam-se dois esquemas de levofloxacino: 750mg/dia durante 5 dias versus 500mg/dia durante 10 dias. Confirmou-se a no inferioridade do primeiro esquema

    em todos os desfechos de eficcia.17 A presso seletiva poderia ser duplamente aliviada com a utilizao preferencial do primeiro esquema que se associaria a maior probabilidade de manter a relao fAUC/CIM acima do necessrio para preveno de emergncia de mutantes, com a possibilidade de se utilizarem prazos menores de terapia. No entanto importante ressaltar que as posologias que tentam incrementar o ndice farmacodinmico ainda requerem maior comprovao clnica antes de serem universalmente adotadas.

    Outra estratgia importante seria restringir a utilizao de antibiticos com alta capacidade de induo de resistncia. Ento, a restrio preferencial na utilizao de determinados antibiticos passaria a ter lugar no emprego racional desses frmacos.6 O uso de cefalosporinas e de fluorquinolonas em infeco hospitalar demonstra efeito nocivo maior sobre a resistncia do que o de outros compostos. A primeira classe associa-se a risco de aquisio de enterobactrias (principalmente Klebsiella pneumoniae e E.coli) produtoras de betalactamases de espectro estendido (ESBL),18,19 Staphylococcus aureus meticilina-resistente (MRSA)20 e espcies de Enterococcus resistentes vancomicina.6 A relao entre uso de fluorquinolonas e multirresistncia pode ser ainda maior. Foram elas as principais responsveis por

    }zona de presso seletiva CPM

    CIM **

    Tempo (T) a atividade dos betalactmicos depende

    da relao * f T> CIM.

    Concentrao mxima (C. mx) a atividade dos

    aminoglicosdeos depende da relao * f C mx/CIM.

    rea sob a curva concentrao/tempo (ASC) a atividade das fluorquinolonas e dos glicopeptdeos depende da relao *f ASC/CIM.

    Concentrao

    Tempo

    * f (free): frao de frmaco livre de ligao proteica. ** Para preveno de emergncia de resistncia substituir o CIM dos diferentes parmetros pela CPM.

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    seleo de MRSA em meta-anlise recente20 e de Pseudomonas aeruginosa produtora de beta-metalo lactamases (enzimas capazes de induzir alto nvel de resistncia contra praticamente todos os beta-lactmicos) em estudo conduzido no Rio de Janeiro,21 alm de terem sido responsabilizadas por aquisio de Acinetobacter baumannii22,23 e enterobactrias multirresistentes em diversas outras publicaes.18,19,24 Nos estudos conduzidos em hospitais, frequentemente a substituio de uso dessas duas classes por penicilinas combinadas a inibidores de betalactamase (ampicilina/sulbactam ou piperacilina/tazobactam) se associa a melhorias nos perfis gerais de suscetibilidade microbiana.6 Porm as evidncias disponveis sobre eventuais diferenas entre os antimicrobianos no contexto comunitrio so escassas. RCT, duplo-cego e controlado por placebo avaliou a resistncia de estreptococos na flora oral de voluntrios sadios sob exposio de azitromicina (n=74) ou claritromicina (n=74) ou placebo (n=76). Ambos os antibiticos aumentaram significativamente a proporo de estreptococos resistentes a macroldeos em comparao ao placebo. A resistncia foi maior depois da exposio a azitromicina do que aps o uso de claritromicina, atingindo a maior diferena no dia 28 (17,4%; IC95%: 9,225,6; P

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    Ministrio da Sade

    Pelo exposto, fica claro que o principal fator associado seleo de resistncia bacteriana o emprego pouco racional de antimicrobianos. O profissional da sade que trabalha na assistncia deve manter esse fato em mente. S se prescrevem antimicrobianos aps cuidadosa reviso de relao custo-benefcio.

    A educao e a conscientizao da populao tm papel fundamental para evitar consumo exagerado, tanto por automedicao quanto por presses desnecessrias sobre os profissionais da sade. Entidades governamentais e mdia constituem pea-chave nesse processo educacional.

    Por ltimo, a indstria farmacutica deveria

    Quadro 2 - Diferentes estratgias para reduzir resistncia microbiana

    voltar a investir no desenvolvimento de novos agentes, de preferncia realmente inovadores, que trouxessem, por meio de mecanismos de ao originais, maior espectro de atividade para cobrir micro-organismos com perfis de resistncia cada vez mais complexos.

    Atualmente, importante utilizar as estratgias aqui discutidas que apresentam evidncia de benefcio, tais como prescries por prazos mnimos eficazes, manuteno de certa heterogeneidade de uso e eventual aplicao de conceitos farmacocinticos e farmacodinmicos. Isto fundamental para no se perder rapidamente a batalha contra as infeces.

    Antibioticoterapia apropriada significa no usar antimicrobianos na ausncia de indicao, nem em es-quema errado ou por tempo demasiado. Ao escolher um antibitico, os prescritores devem preocupar-se com os interesses presentes (cura da infeco) e futuros (reduo de resistncia adquirida) dos pacientes e das comunidades.3

    Estratgia para combater o fenmeno da resistncia Comentrio

    Reduo global no nmero de prescries de antimicrobianos

    Meta alcanvel com segurana na maioria dos contextos. Eficcia dependente do binmio bactria/antimicrobiano avaliado.

    Reduo no prazo de uso Meta alcanvel sem aparente comprometimento de eficcia mesmo em sndromes comunitrias mais graves, como pneumonia.

    Restrio preferencial de certas classes (p.ex., fluorquinolonas)

    A implicao de certas classes como agentes de maior potencial de seleo de resistncia foi confirmada, at o momento, principalmente em contexto hospitalar.

    Promoo de uso heterogneo Baseada em resultados desfavorveis com uso extenso e montono de mesmo antimicrobiano.

    Uso de antimicrobianos em combinaoEstratgia estudada principalmente no contexto hospitalar. Apesar de apresentar mritos tericos, os resultados tm sido sistematicamente negativos.

    Lanamento de novos antimicrobianos Garante eficcia, pelo menos temporria, no tratamento de infeces se o uso for comedido e racional.

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

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    Uso Racional de Medicamentos: temas selecionados

    A longevidade da populao mundial crescente. Com isso, observa-se aumento na incidncia de doenas crnicas degenerativas e consequente incremento no uso de medicamentos (polifarmcia). O emprego concomitante de mltiplos frmacos torna-se comum e traz consigo risco elevado de interaes entre medicamentos. Isso pode acarretar efeitos adversos, ou os efeitos teraputicos dos frmacos associados podem ser alterados, com consequncias graves para a sade do paciente.1 Por outro lado, as associaes de frmacos podem trazer benefcio teraputico em situaes especficas, quando h reforo da eficcia (analgsico no opioide + analgsico opioide), pre