Usos e Consumo a Religiao Na Antiguidade Testemunhada Nos Papiros Magicos Gregos

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   Domus on line: rev. Teor. pol. soc. Cidad., Salvador, v. 5, p. 75-86, jan./dez. 2008 75 “Usos” e “consumo”: a religião na antiguidade testemunhada nos papiros mágicos gregos Carlos Cesar Borges Nunes de Souza  Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Membro do grupo de pesquisa Arqueologia do Antigo Oriente. E-mail: [email protected] Kenner Roger Cazotto Terra Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Membro do grupo Oracula (www.oracula.com.br) e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). E-mail: [email protected] Resumo Analisa uma literatura ainda pouco conhecida e estudada nas academias brasileiras e latino- americanas: os Papiros Mágicos Gregos . Estes textos revelam relações interessantes da religiosidade do mundo mediterrâneo helenístico e o mundo judaico-cristão, e ainda, como os símbolos e imagens presentes nesses dois mundos eram utilizados na vida cotidiana dos cidadãos comuns. Para entender o “como” do consumo dos bens simbólicos na prática cotidiana é apropriado o conceito “usos e consumo,” de Michel de Certeau. Palavras-chave: Religião. Papiros Mágicos Gregos. Magia. Usos e consumo. "Uses" and "consumption": religion in antiquity witnessed the magic papyri  greeks  Abstract  It analyzes the literatur e still little known and studied at the academies brazilian and latin american: the Magic Papyri Greeks. These texts reveal interesting relations of the religiosity of the mediterranean world hellenistic and the judeo-christian world, and yet, as the symbols and images present in these two worlds were used in daily life of ordinary citizens. To understand the "how" in the consumption of symbolic goods in daily practice and appropriate the concept "uses and consumption," Michel de Certeau.  Keywords:  Religion. Magic Papyr i Greeks. Magic. Uses an d consumpti on. INTRODUÇÃO Ao estudarmos as religiões não podemos perder de vista suas convergências. Quase um dado é a ocorrência de encontros e desencontros, onde a imagem da troca possui valor

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  • Domus on line: rev. Teor. pol. soc. Cidad., Salvador, v. 5, p. 75-86, jan./dez. 2008 75

    Usos e consumo: a religio na antiguidade testemunhada nos papiros mgicos gregos Carlos Cesar Borges Nunes de Souza Mestrando pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Religio da Universidade Metodista de So Paulo (UMESP). Membro do grupo de pesquisa Arqueologia do Antigo Oriente. E-mail: [email protected]

    Kenner Roger Cazotto Terra Mestrando pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Religio da Universidade Metodista de So Paulo (UMESP). Membro do grupo Oracula (www.oracula.com.br) e da Associao Brasileira de Pesquisa Bblica (ABIB). E-mail: [email protected]

    Resumo

    Analisa uma literatura ainda pouco conhecida e estudada nas academias brasileiras e latino-americanas: os Papiros Mgicos Gregos. Estes textos revelam relaes interessantes da religiosidade do mundo mediterrneo helenstico e o mundo judaico-cristo, e ainda, como os smbolos e imagens presentes nesses dois mundos eram utilizados na vida cotidiana dos cidados comuns. Para entender o como do consumo dos bens simblicos na prtica cotidiana apropriado o conceito usos e consumo, de Michel de Certeau. Palavras-chave: Religio. Papiros Mgicos Gregos. Magia. Usos e consumo.

    "Uses" and "consumption": religion in antiquity witnessed the magic papyri greeks

    Abstract

    It analyzes the literature still little known and studied at the academies brazilian and latin american: the Magic Papyri Greeks. These texts reveal interesting relations of the religiosity of the mediterranean world hellenistic and the judeo-christian world, and yet, as the symbols and images present in these two worlds were used in daily life of ordinary citizens. To understand the "how" in the consumption of symbolic goods in daily practice and appropriate the concept "uses and consumption," Michel de Certeau. Keywords: Religion. Magic Papyri Greeks. Magic. Uses and consumption.

    INTRODUO

    Ao estudarmos as religies no podemos perder de vista suas convergncias. Quase um

    dado a ocorrncia de encontros e desencontros, onde a imagem da troca possui valor

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    indiscutvel para compreend-la. Gabriele Cornelli (2000, p. 186). observou muito bem essa

    relao ao afirmar que [...] a dependncia de um gnero do outro, especialmente no que diz

    respeito literatura, obriga o estudioso a tecer convergncias inditas frente classificao

    estanque de tanta manualstica.

    As novas reflexes sobre a construo da identidade demonstram a complexa e dinmica

    das relaes das culturas, que ficam bem ntidas em textos religiosos. Fredrik Barth, no seu

    texto introdutrio obra coletiva publicada sob sua direo em 1969, a respeito da

    organizao social da diferena de cultura, substitui a proposta esttica da identidade tnica

    por uma concepo dinmica (BARTH, 1969).

    Poutignat (1998, p. 11), interpretando Fredrik Barth, afirma que:

    Ele entendeu muito bem e faz entender que essa identidade, como qualquer outra identidade coletiva [e assim tambm a identidade pessoal de cada um], construda e transformada na interao de grupos sociais atravs de processos de excluso e incluso que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou no [...] os traos que levamos em conta no so a soma das diferenas objetivas mas unicamente aqueles que os prprios atores consideram como significativos.

    A interao situacional, mecanismo para fluidez da construo da identidade, tanto

    na arqueologia histrica como na construo da identidade tnica, dentro de interaes scio-

    culturais localizadas e histricas, serve como pea fundamental para moderna concepo da

    construo da identidade.

    Partindo dessas perspectivas, o trabalho analisa uma literatura ainda pouco conhecida

    e estudada nas academias brasileiras e latino-americanas: os Papiros Mgicos Gregos (PMG).

    Estes textos revelam relaes interessantes da religiosidade do mundo mediterrneo

    helenstico e o mundo judaico-cristo, e ainda como os smbolos e imagens presentes nesses

    dois mundos eram utilizados na vida cotidiana dos cidados comuns. Para entendermos o

    como do consumo dos bens simblicos na prtica cotidiana nos apropriaremos do conceito

    usos e consumo de Michel de Certeau. Traando as convergncias, encontros e

    desencontros dos nomes sagrados como Adonai, Apolo, Hermes, Jesus e outros personagens

    do locus religioso mediterrneo, poderemos perceber a dinmica da religiosidade antiga,

    como tambm a criatividade do ser religioso na vida cotidiana.

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    PAPIROS MGICOS GREGOS: uma histria recente...

    Papiros Mgicos Gregos (PMG) o nome dado pelos estudiosos a um corpo greco-

    romano e egpcio de papiros, achados em lngua grega, mas com origens egpcias (BETZ,

    1996, p. 41). Esses textos so frmulas, rituais e magias datados entre os sculos II a.E.C e V.

    E.C.,1 que mostram a religiosidade mgica helenista. Segundo Betz (1996, p. 41), na

    introduo traduo aos PMG, por certo esse corpus, de material, representa somente um

    pequeno nmero de todas as frmulas mgicas que existiam. Esses papiros chegaram at ns,

    como explica Luck (1997, v. 1, p. 24) pelo costume egpcio de se enterrar o mago falecido

    com seus livros de magia para que exercesse sua profisso no alm-tmulo.

    Uma das grandes conquistas acadmicas ao acharem esses papiros est no fato de que,

    mesmo que tardios, em muitos casos, eles se referem a tradies mais antigas, transmitidas em

    sua origem de maneira oral. E, ainda, as pesquisas avanaram porque foram relativizadas as

    concluses, a respeito do mundo religioso mediterrneo, alcanadas pelos dados da literatura

    da elite e do que sobrou arqueologicamente dos cultos oficiais dos estados e das cidades.

    Assim, com os PMG a vida religiosa mais popular e cotidiana se abre aos pesquisadores,

    mostrando as prticas de cidados comuns da Antiguidade. Como, tambm, nos ajuda

    entender o mundo religioso do Mediterrneo no perodo final do judasmo do Segundo

    Templo e dos cristianismos das origens, to importante para exegese.

    Os livros mgicos, na Antiguidade, sempre passaram por sistemticas supresses e

    destruies como vemos, por exemplo, no texto bblico de Atos dos Apstolos (19,19):

    [...] i`kanoi. de. tw/n ta. peri,erga praxa,ntwn sunene,gkantej ta.j bi,blouj kate,kaion evnw,pion pa,ntwn( kai. suneyh,fisan ta.j tima.j auvtw/n kai. eu-ron avrguri,ou muria,daj pe,nte . (BETZ, 1996, p. 41).2

    Com a sistemtica destruio da literatura mgica por um longo perodo de tempo, o

    desaparecimento de muitos textos originais no fim da Antiguidade foi inevitvel.

    Atualmente, a compilao de Betz a mais estimada. Depois de anos, ele reuniu um

    grande grupo de textos que foi editada pela Universidade de Chicago. Seus estudos revelaram

    a complexidade da religiosidade do Mediterrneo, e como a magia fazia parte do cotidiano da

    religiosidade popular. Por algum tempo, esses textos eram desvalorizados, na Amrica Latina,

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    por exemplo, quase no os encontramos entre os estudos das religies antigas do

    Mediterrneo. Contudo, Betz (1996, p. 42) chega dizer que a descoberta dos Papiros

    Mgicos Gregos importante para as religies greco-romanas como a descoberta dos

    textos de Qumran para o Judasmo [e para o Cristianismo] ou como a biblioteca de Nag

    Hammadi para o gnosticismo.

    A maior parte da coleo dos PMG foi achada por Jean dAnastasi ([1780?]-1857), um

    diplomata sueco, mas de origem armnia, residente em Alexandria. Grande parte dos papiros

    foi achada na cidade de Tebas, talvez pertencente tumba de algum mago.

    Sempre deixado de lado pelos estudiosos at o sculo XIX, somente na metade do

    sculo XX comearam dar alguma importncia a eles. Foi o grande estudioso da religio

    grega, Albrecht Dietrich (1866-1908), que ao oferecer em 1905 um seminrio em Heidelberg

    com o ttulo Trechos Escolhidos dos Papiros Egpcios, quando se iniciou os maiores

    interesses pelos PMG (BETZ, 1996, p. 43).

    Com sua morte, seus alunos comearam uma complexa obra de edio dos PMG, duas

    vezes interrompida por causa das Guerras Mundiais. Somente com Karl Preisendanz, e depois

    com Albert Heinrichs, o trabalho de edio foi levado ao fim em sua forma definitiva, em dois

    volumes, nos anos de 1973-1974. Depois dessa primeira edio, o estudioso da literatura

    religiosa antiga, Betz, sob a sugesto de Morton Smith, retoma a classificao de Preisendanz,

    acrescentando aos 81 desse ltimo, mais 49 novos pairos, incluindo, nessa lista, os Papiros

    Mgicos Demticos (PMD). O projeto comea em 1978 e termina com a publicao, em

    1986. Inclusive, a fonte dos PMG e PMD, que so utilizados neste trabalho, exatamente

    essa.

    digno de nota, que essa coleo no uma obra de corpo nico, com ordem e com

    comeo, meio e fim. Vrios temas surgem aleatoriamente dentro da coleo: divinao,

    encantamentos, simpatias, curas e exorcismos, hinos, frmulas mgicas, breves narrativas

    mitolgicas e rituais de todo o tipo. Os textos so jogados na obra como um grande

    aglomerado de anotaes de um mago. Por isso, uma sistematizao fica difcil, levando-nos a

    separar passagens que nos interessam e confirmem nossas intuies sobre como funcionava

    a religio testemunhada nos textos e sua lgica religiosa.

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    A QUESTO DA MAGIA NOS PMG

    Os PMG contm vrias espcies e frmulas mgicas. Muitos contm desenhos, que

    deveriam ser copiados na areia e no p. Outras vezes, as mesmas frmulas mgicas so

    transcritas com a inteno de formar figuras, gerando sons incompreensveis, chamados de

    voces magicae (CORNELLI, 2000, p. 189). Muitos dos encantamentos possuem uma espcie

    de introduo, dizendo para que servem, como fazer e de quem so. Um exemplo o PMG X

    36-50 que tem o ttulo de Simpatia de Apolo. Alm de informar que pertence a Apolo, ainda

    instrui pegar uma lmina de canga de mulas, para gravar nela os nomes mgicos que mais

    abaixo, no papiro, esto citados, e depois deveria ser colocado nela uma lngua de sapo. Logo

    depois, o papiro mostra uma frmula mgica; so ditos que deveriam ser pronunciados

    enquanto se colocava esse material acima da sandlia do beneficiado pela simpatia. Nos

    papiros, de maneira sincrtica [que trataremos mais abaixo], os rituais mais antigos e os mitos

    mais sagrados so utilizados para curar a febre, para resolver problemas de digesto ou para

    conquistar a moa desejada.

    Para entendermos o tipo de religio presente nesses papiros, antes necessria uma

    superficial discusso sobre a antiga questo da dicotomia frazeana entre magia e religio, que

    acaba, entre alguns estudiosos da religio, como bem identificou Graf (1991, p. 188-213),

    servindo implicitamente de pressuposto.

    Graf escolheu algumas preces presentes no PMG para perguntar se existe a diferena

    referente a no-mgicos. Isso porque, James Frazer (apud GRAF, 1991, p. 189) afirmava que

    a magia diferenciava-se da religio, e a primeira tem o teor de coero ou persuaso da(s)

    divindade(s), enquanto a segunda a soberania da(s) divindade(s) est acima dos desejos do

    religioso.

    Assim, Graf (1995, p. 188-189) observa que para os gregos o mgico no somente

    pronunciava feitios, mas ele tambm orava para os deuses. Utilizando o exemplo de Plato,

    ele mostra que o feitio e a prece do mgico, ambos servem como ajuda para pei,qein

    [persuadir] os deuses. Assim, no decorrer de seu artigo, ele mostra que dicotomia mgica-

    religio na prtica no era to ntida. Essa mesma dicotomia, segundo Betz, em outro artigo,

    acaba tomando a religio como algo intrinsecamente positivo, enquanto mgica de outra

    forma tratada com conotaes negativas (BETZ, 1996, p. 245). Superando esse pressuposto

    antropolgico antigo, no podemos definir a magia presente nos PMG como uma espcie de

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    degenerao ou corrupo da religio oficial. O prprio Betz (1996, p. 41) afirma que as

    crenas e prticas religiosas de muitas pessoas eram idnticas a algumas prticas mgicas, e a

    distino feita hoje entre aprovada e no aprovada forma de religio [onde a primeira

    religio e a segunda mgica ou culto] no existia na Antiguidade, exceto entre alguns

    intelectuais. Alan Segal, juntamente com Betz, afirma que os estudiosos esto sendo levados

    para o erro por causa de sua prpria cultura, pois fazem essa distino entre religio e magia

    no Mundo Helnico, e ainda que essa distino, em alguns lugares, dependia puramente do

    seu contexto social (BETZ, 1991, p. 246). Assim, Betz (1991, p. 248) acaba concluindo: [...]

    para os PMG magia e religio so uma nica entidade.

    Contudo, uma coisa tem que ser levada em considerao:

    Isto no quer dizer, no entanto, que para os magos, cujos escritos esto includos nos Papiros Mgicos Gregos, toda mgica simplesmente legtima e aceita. Os manuais mgicos que compem a maioria do material representam colees, ou melhor, selees daqueles textos que eram considerados pelos coletores como constituindo uma fidedigna tradio. Por implicao, outros materiais julgados como tradio no digna eram descartados. (BETZ, 1991, p. 248).

    Nos PMG, as vrias tradies religiosas, representadas por seus deuses e heris, servem

    para os interesses dos crentes. Deuses e deusas gregos e egpcios se encontram com o deus

    judeu, invocado como IAO, ADONAI ou SABAOTH. Nos tpicos de exorcismos as tradies

    judaico-crists so ainda mais marcantes. No uma simples mistura ou degradao das

    religies oficiais, mas uma espcie de nova religio, uma como popular e mgica

    (CORNELLI , 2000, p. 197). O material judaico presente nos PMG, no parece provir da

    tradio rabnica, nem da literatura judaica pseudepgrafa, ou das tradies herticas

    (CORNELLI, 2000, p. 198). Nos PMG a religio presente tem caractersticas prprias.

    Como bem entendeu Cornelli (2000, p. 197):

    O que para alguns degradao e infeco da religio, a magia helenstica do PMG, na verdade simplesmente uma forma de religio diferente, com traos populares extremamente marcados, e origens comprovadamente bem mais antigas.

    Essa religiosidade especfica, que no pode ser lida com a dualidade frazeana, utiliza-se

    das divindades comuns das religies que permeiam o imaginrio religioso antigo. No

    importando quem seja, o que importa o problema ser resolvido. Claro que cada uma tem

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    suas especialidades, mas a pessoa da divindade e seu culto ficam em segundo plano, pois o

    importante a soluo concreta.

    Um exemplo est no j citado PMG X. 36-50, onde o titulo destinado a Apolo

    [divindade grega], com palavras mgicas, e ao mesmo tempo aparecem os anjos da tradio

    judaica: Michael, Rafael e Gabriel:

    Outra maneira: Simpatia de Apolo para sujeio: pegue uma lmina de uma canga para mulas, grave nela os seguintes nomes e coloque nela uma lngua de sapo. Spell (formula mgica), enquanto pe a canga com a lngua de sapo na sua sandlia direita, diz: como estes nomes sagrados esto sendo pisados [esmagados], assim que ele, N.N., o que est criando problemas, seja pisado [esmagado]. ABRASAX

    AEIOYO MICHAEL EEIOYOA RAPHAEL EIOYOAE GABRIEL IOYOAEE SOURIEL AYOAEEI ZAZIEL YOAEEIO BADAKIEL OAEEIOY SYLIEI (BETZ, 1996).

    Percebe-se que nos PMG so utilizados de maneira muito pouco dogmtica ou sistemtica

    as imagens e divindades das religies oficiais. Os mitos e os desues das religies consagradas

    no servem para justificar o poder do rei ou do sacerdote oficial. Pelo contrrio, servem para

    utilizao prtica diante das dificuldades cotidianas. Exatamente nesse particular, que podemos

    utilizar Micheu de Certeau com seu conceito de usos e consumo, em especial na prtica

    cotidiana dessa religio sincrtica e ao mesmo tempo subversiva, presente nos PMG, que usa os

    smbolos das religies judaca, egpcia, grega e crist.

    MICHEL DE CERTEAU E A TEORIA SOBRE O USO E COSUMO

    Na realidade, diante de uma produo racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produo de tipo totalmente diverso, qualificada como cosumo, que tem como caracterstica suas astcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasies, sua piratarias, sua clandestinidade, seu mrmurio incansvel, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase no se faz notar por produtos prprios [onde teria o seu lugar?] mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe so impostos. (CERTEAU, 1994, p. 76).

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    Certeau (1994) em seu livro A Inveno do Cotidiano: artes de fazer, nos fornece uma

    teoria valiosa para uma aproximao aos PMG. Com ela podemos observar como a religio

    oficial fabricada pelos grupos dominantes era cosumida, ou melhor, utilizada pelos grupos

    marginais.

    No conformado com taxonomias que apenas mapeiam a distribuio dos bens culturais

    e a distribuio de seus cosumidores, Certeau (1994, p.76, 97, 100) se pergunta como esses

    ltimos usam3 esses bens culturais produzidos por aqueles que ele denominda de fortes, isto ,

    os que tm o poder a seu favor. Portanto, diante das analises das imagens distribudas pela TV e

    do tempo que o telespectador passa assistindo os seus programas, deve-se pergunatar o que o

    consumidor fabrica com as imagens e durante essas horas de consumo. No basta saber o

    nmero daqueles que assistem televiso, quais os programas que assistem, quantos horas

    utilizam assintindo e nem mesmo como esto distribudos scio-economicamente. preciso se

    perguntar o que eles fazem com isso. De acordo com Certeau (1994) os fracos no tm o poder

    de fabricar o que assistem, mas de fazer com, de fabricar a partir do que assistem, de consumir a

    partir de seu registro prprio.

    A essa fabricao a partir dos produtos de outros, Certeau (1994) d o nome de usos. Esses

    usos so aes, ou melhor, tticas empregadas pelos fracos para inscrever suas maneiras de

    utilizar nos espaos em que a vigilncia estratgica imposta pelo sistema panptico dos fortes

    deixa vazio. Sobre essas operaes de reemprego, Certeau (1994, p. 93) diz que: Sem sair do

    lugar onde tem que viver e que lhe impe uma lei [...] a instaura pluralidade e criatividade. Por

    uma arte de intermediao [...] tira da efeitos imprevistos. Ao utilizar os bens culturais

    frabicados pela cultura dominate o fraco modifica-lhe o registro, ele instaura a uma maneira

    de utilizar prpria de suas prticas e a servio de si e talvez de outros.

    Ainda sobre as tticas importante observar que em Certeau elas carregam um contedo

    polemolgico, ou seja, elas se inserem dentro de uma relao de foras, de combates ou jogos

    com as estratgias utilizadas pela cultura dominante. Segundo Certeau (1994, p. 99) as

    estratgias so

    [...] o clculo [ou manipulao] das relaes de foras que se torna possvel a partir do momento em que um sujeito de querer e poder [uma empresa, um exrcito, uma cidade, uma instituio cientfica] poder ser isoldos. A estratgia postula um lugar suscetvel de ser circunscrito como algo prprio e ser a base de onde se podem gerir as relaes com uma exterioridade de alvos ou ameaas [os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos ou objetos da pesquisa etc]. Como na administrao de

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    empresas, toda racionalizao `estratgica procura em primeiro lugar distinguir de uma ambiente um prprio, isto , o lugar do poder e do querer prprios.

    De acordo com Certeau (1994, p. 100) as tticas no possuem um lugar prprio. Elas

    postulam uma [...] ao calculada que determinada pela ausncia de um prprio. Quando

    joga ela

    [...] deve jogar com o terreno que lhe imposto tal como o organiza a lei de uma fora estranha. No tem meios para se manter em si mesma, distncia, numa posio recuada, de previso e de convoao prpria: a ttica movimento dentro do campo de viso do inimigo. (CERTEAU, 1994, p. 99).

    Como dito acima, as tticas contm procedimentos de consumo que so colocados em

    prtica naqueles espaos em que as estratgias panpticas dos fortes no alcaam, o seu olhar

    no vigia com perfeio.

    USO E CONSUMO: A RELIGIO SUBVERSIVA PRESENTE NOS PAPIROS MGICOS

    GREGOS

    Esto presentes nos Papiros Mgicos Grego a Astrologia, Demonologia e usos de ervas.

    Eles utilizam todas as prticas mgicas conhecidas no mundo antigo para realizao de seus

    objetivos. Contudo, nos tpicos de cura e das simpatias de amor que os PMG gastam mais

    tempo. Um exemplo do segundo PMG XV, 1, no qual o mito de sis e Osires recitado com

    finalidade mgica para obter o amor entre um homem e uma mulher. Uma explicao para o

    grande interesse por aes mgicas de cura talvez seja a excluso dos grupos populares da

    assietncia necessria, levando-os a criatividade religiosa. Onde no h acesso aos bens

    necesssrios, somente credulidade em agentes no humanos, pois esses os esqueceu, encontra-

    se- soluo aos problemas cotidianos. Neste sentido, os PMG revelam ainda os interesses de

    grupos subalternos e a forma como se utilizavam livremente da religio oficial, em busca de

    sanarem o vazio de direitos bsicos.

    Um dos PMG que mostra bem claramente a utilizao das figuram das dividades da

    religiosidade dominante para os problemas cotidianos o PMG XLIII, 1-27. Traduzido pelo

    John Scarboroung, no tem ttulo no seu original, mas Betz (1996) intitulou-o no seu indice

    como amuleto contra febre. A cura seria possivel com a fabricao do amuleto, como no

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    PMG xiv 1003-14. Ele est em forma decrescente, tipo um poema concretista, com suas voces

    magicae jogadas no decorrer da estrutura. Essas deveriam ser pronunciadas para realizao da

    cura desejada.

    Segundo Betz (1996):

    PMG XLIIII, 1-27:

    [ABLANA]THANALBA EMANOUEL [BLA]NATHANALBA ASOUEL LANATHANALBA MARMAREL ANATHANALBA MELCHIEL NATHANALBA OURIEL ATHANALBA THOURIEL THANALBA MARMARIOTH ANALBA ATHANAEL ALBA AOE LBA SABAOTH BA ADONAI A ELOAI

    ABO / SESENGEN SPHANGES MACHAEL SABAOTH LAPAPA/ GABRIEL SOURIEL RAPHAEL, protege Sofia / quem Theoneilla chateia de todo arrepio e febre, imediatamente, depressa.

    No amuleto acima, os nomes possuem poder mgico que deveriam ser pronunciados de

    maneira ritmada. A expresso ABLANATHANABLA no aprece apenas aqui, mas tambm em

    outros papiros, como o PMG XXXIII, 1-25. Talvez, seja uma expresso mgica comum, um

    voces magicae muito utilizado. Ao lado da diluio da expresso aparecem nomes comuns da

    religiosidade judaica: ADONAI, SABAOTH e ELOAI [que poderia se referir a Elohim]. Logo

    abaixo no papiro aparece novamente SABAOTH, e nomes comuns a angeologia judaica

    veterotestamentria e pseudepgrafa: GABRIEL, RAFAEL, MICHAEL [que seria Miguel]. O

    interessante, que juntamente com essas expresses judaicas aparece um pedido a Sofia, deusa

    grega, para a proteo de quem Theoneilla chateia [atinge] com febre.

    Dentro de um contexto mgico, o nome da divindade [ou divindades judaicas], e seres

    comuns do imaginrio religioso judaico, so usados de forma mgica ao lado de uma divindade

    helnica para cura da febre causada por Theoneilla. ntida a percepo do uso criativa de

    smbolos comuns da religiosidade da Antiguidade para resoluo de problemas interpretados

    como resultado de ataques de outros seres. Dentro da religiosidade oficial judaica, uma imagem

    como essa no seria adequada, mas para sanar um problema ela mostra-se natural na

    religiosidade no-oficial ou popular.

  • Domus on line: rev. Teor. pol. soc. Cidad., Salvador, v. 5, p. 75-86, jan./dez. 2008 85

    CONSIDERAES FINAIS

    Na anlise desses textos, percebemos coma as fronteiras culturais na Antiguidade so

    indiscutivelmente porosas, pois existe claramente uma circularidade cultural. Isso acabava

    refletindo nas prticas religiosas, como testemunham os papiros mgicos, nos quais

    encontramos divindades de pantees diversos utilizadas numa mesma experincia de f. Isso

    revela muito sobre o judasmo e cristianismo antigos, pois esses tambm faziam parte dessa teia

    de contatos culturais, e serviram-se de temas, motivos literrios, imaginrio e, por que no, das

    prticas mgicas das religies do Mundo Antigo.

    NOTAS 1 Adotamos as nomenclaturas antes da Era Comum = a.E.C. para tudo a.C. e Era Comum = E.C.

    para tudo d.C. 2 E muitos, porm, que praticavam artes mgicas, tendo coletado os livros queimam-nos totalmente

    vista de todos e computaram os preos deles de cinqenta mil [moedas de parta]. Existem tambm outros exemplos, como o narrado por Suetnio, operado por Augusto no ano 13 a.E.C, que fez uma campanha de queima de livros mgicos.

    3 Em Certeau, esse vocbulo tem sentido militar, ou seja, so aes. Para a possibilidade de em

    Certeau se perceber que o fraco agi de forma consciente e programada quando com suas tticas subverte a forma com a qual a cultura dominante espera que seus produtos sejam consumidos.

    REFERNCIAS

    BARTH, F. Ethnic Groups and Boundaries: the social organization of culture of difference. Olso: Universitetsforlaget, 1969. BETZ, Hans Dieter. The greek magical papyri in translation. Including The Demotic Spell. Chicago: University of Chicago Press, 1996. ______. Magic and mystery in the greek magical papyri. In: FARAONE, C.; OBBINK, D. (Ed.). Magika hiera: ancient greek magic and religion. New York: Oxford University Press, 1991, p.244-260. CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: artes de fazer. Petrpolis: Vozes, 1994. CORNELLI, Gabriele. Convergncias apocalpticas nas esquinas da magia: apocalptica e sincretismo religioso no mundo helenista. Estudos de Religio, So Paulo, v. 19, p. 186-203, 2000.

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