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V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC – Brasil 1 Paisagens Urbanas, Urbanização Incompleta e Gestão das Águas em Belo Horizonte 1 Tarcisio Tadeu Nunes Junior (UFMG) Geógrafo, Doutorando do Departamento de Geografia [email protected] Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG) Arquiteta e Urbanista, Professora Associada do Departamento de Geografia [email protected] Resumo O presente artigo pretende estimular a reflexão acerca da relação direta entre as sucessivas transformações nas paisagens urbanas, particularmente no Brasil, país caracterizado como de urbanização ainda incompleta, com a gestão das águas urbanas. Procura estabelecer conexões entre a forma hegemônica de apropriação e alteração das paisagens urbanas e suas conseqüências sobre as águas urbanas, notadamente em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ademais, aponta os principais projetos municipais voltados ao trato dos impactos da urbanização e a recente tentativa de gerir a água a partir do recorte espacial da bacia hidrográfica. Os resultados apontam que apesar dos inúmeros problemas e desafios apresentados em Belo Horizonte, os projetos em andamento e o esforço no fortalecimento das instituições participativas podem ser indutores de políticas e intervenções mais harmônicas na paisagem, que busquem minimizar os impactos sobre o sistema hídrico e população local, em especial de baixa renda. As marcas sobre as paisagens belorizontinas e as consequências sobre a qualidade de vida inspiram novas racionalidades voltadas à adequada gestão das águas urbanas na cidade. Palavras – chave Padrões de urbanização, paisagem urbana, desigualdades urbanas, drenagem urbana 1 Este artigo é parte integrante dos resultados obtidos em pesquisas realizadas pelo Projeto SWITCH - Sustainable Water Management Improves Tomorrow's Cities'Health (Gestão Sustentável das Águas para o Aprimoramento da Qualidade de Vida nas Cidades do Futuro). O Projeto é liderado pelo IHE - Institute for Water Education - da UNESCO, sediado em Delft, Holanda e compõe- se de uma rede de 32 instituições de 15 países, da qual fazem parte a Prefeitura de Belo horizonte e a UFMG.

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V Encontro Nacional da Anppas 4 a 7 de outubro de 2010 Florianópolis - SC – Brasil

1

Paisagens Urbanas, Urbanização Incompleta e Gestão

das Águas em Belo Horizonte1

Tarcisio Tadeu Nunes Junior (UFMG)

Geógrafo, Doutorando do Departamento de Geografia [email protected]

Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG) Arquiteta e Urbanista, Professora Associada do Departamento de Geografia

[email protected]

Resumo O presente artigo pretende estimular a reflexão acerca da relação direta entre as sucessivas transformações nas paisagens urbanas, particularmente no Brasil, país caracterizado como de urbanização ainda incompleta, com a gestão das águas urbanas. Procura estabelecer conexões entre a forma hegemônica de apropriação e alteração das paisagens urbanas e suas conseqüências sobre as águas urbanas, notadamente em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ademais, aponta os principais projetos municipais voltados ao trato dos impactos da urbanização e a recente tentativa de gerir a água a partir do recorte espacial da bacia hidrográfica. Os resultados apontam que apesar dos inúmeros problemas e desafios apresentados em Belo Horizonte, os projetos em andamento e o esforço no fortalecimento das instituições participativas podem ser indutores de políticas e intervenções mais harmônicas na paisagem, que busquem minimizar os impactos sobre o sistema hídrico e população local, em especial de baixa renda. As marcas sobre as paisagens belorizontinas e as consequências sobre a qualidade de vida inspiram novas racionalidades voltadas à adequada gestão das águas urbanas na cidade.

Palavras – chave

Padrões de urbanização, paisagem urbana, desigualdades urbanas, drenagem urbana

1 Este artigo é parte integrante dos resultados obtidos em pesquisas realizadas pelo Projeto SWITCH - Sustainable Water Management Improves Tomorrow's Cities'Health (Gestão Sustentável das Águas para o Aprimoramento da Qualidade de Vida nas Cidades do Futuro). O Projeto é liderado pelo IHE - Institute for Water Education - da UNESCO, sediado em Delft, Holanda e compõe-se de uma rede de 32 instituições de 15 países, da qual fazem parte a Prefeitura de Belo horizonte e a UFMG.

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1 Introdução

A água sempre foi um importante delineador da paisagem urbana e contribuiu para o surgimento e

formação de diversas cidades brasileiras. No período colonial brasileiro (séculos XVI a XIX), os

rios ofereciam para as cidades além da água, controle do território, alimentos, possibilidade de

circulação de bens e pessoas, energia hidráulica e lazer, o que gerou uma relação de

dependência e certa harmonia entre as cidades e os cursos d’água. No entanto, com o

crescimento cada vez maior das cidades no Brasil, principalmente a partir da segunda metade do

século XX, e as constantes transformações nas paisagens urbanas, situações de relativo

equilíbrio cederam lugar a problemas como poluição dos cursos d’água, falta de água potável,

enchentes urbanas e conflitos socioambientais (COSTA, 2006).

O presente artigo pretende estimular a reflexão acerca da relação direta entre as sucessivas

transformações nas paisagens urbanas, particularmente no Brasil, país caracterizado como de

urbanização ainda incompleta, com a gestão das águas urbanas. Procura estabelecer conexões

entre a forma hegemônica de apropriação e alteração das paisagens urbanas e suas

conseqüências sobre as águas urbanas, notadamente em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ademais,

aponta os principais projetos municipais voltados ao trato dos impactos da urbanização e a

recente tentativa de gerir a água a partir do recorte espacial da bacia hidrográfica.

2 A paisagem como categoria de análise geográfica

A noção de paisagem sempre esteve presente nas diversas civilizações, mesmo antes da

elaboração do seu conceito, associada à ideia de observação do meio. Registros de paisagens

podem ser encontrados em diversos ramos da ciência e das artes, permeando as mais diferentes

culturas.

A paisagem e o espaço resultam de movimentos da sociedade em uma realidade unitária

constituída por mosaicos de relações, formas, funções e sentidos. A paisagem é tudo o que

vemos, até onde o limite da visão alcança, ou seja, o domínio do visível, associado tanto à

dimensão da percepção e sentidos quando da localização do observador e sua formação pessoal.

Portanto, cada indivíduo perceberá a paisagem de modo diferenciado, a partir de seleções e

entendimentos próprios. Cabe, no entanto, ao pesquisador o desafio de ultrapassar a paisagem

como aspecto para chegar ao seu significado, pois a percepção não é ainda o conhecimento, pois

este depende da interpretação (SANTOS, 1988).

A produção do espaço é resultado da ação da sociedade sobre o próprio espaço através dos

objetos. Assim, cada tipo de paisagem está associado aos diferentes estágios de desenvolvimento

das forças produtivas, materiais e imateriais presentes em cada curso da história. Ademais, a

paisagem não se cria de uma só vez, mas por sucessivos acréscimos e substituições, segundo a

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lógica de cada período temporal. A paisagem é, portanto, uma escrita sobre a outra, um

palimpsesto, mas com funcionamento unitário, e que irá responder diferentemente às demandas

sociais. A paisagem urbana é essa heterogeneidade de formas. “As casas, ruas, rios canalizados,

etc, são resultados do trabalho corporificado em objetos culturais”, “[...] pedaços de tempos

históricos representativos das diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o espaço

(SANTOS, 1988, p.75)”. É assim, fruto não apenas da velocidade do movimento das

possibilidades técnicas, mas também das condições econômicas, políticas, culturais, etc., de cada

momento em cada local, inserida em uma dinâmica social própria. “A paisagem é a materialização

de um instante da sociedade (Id, p.79)”.

A importância do estudo das paisagens urbanas está em seu caráter integrador das

características físicas, biológicas e sócio-econômicas e culturais de determinado local. As cidades

e as paisagens urbanas são um contexto privilegiado em que se disputa o domínio dos sentidos

que elas podem oferecer. Diversos agentes atuam cotidianamente, às vezes em confronto, às

vezes em consenso, na (re) produção da paisagem urbana, a partir de distintas apropriações e

construções socioculturais e simbólicas. A paisagem é, de fato, um modo de ver o mundo:

Landscape is a way of seeing that has its own history, but a history that can be

understood only as part of a wider history of economy and society; that has its own

assumptions and consequences, but assumptions and consequences whose origins

and implications extend well beyond the use and perception of land; that has its own

techniques of expression, but techniques which it shares with other areas of cultural

practice. (COSGROVE, 1988, p. 1).

Ou seja, a paisagem é transformada a partir de um processo dialético entre a produção cultural e

as práticas sociais em determinado momento histórico, localizado em certo contexto espacial.

Ao nos depararmos com a paisagem urbana, as primeiras observações são feitas no âmbito das

formas espaciais, como casas, prédios, ruas, etc. No entanto, Santos (1988) propõe a observação

e reflexão também das funções, processos e estruturas que compõem a paisagem. Assim, é

possível buscar a superação do simples aspecto visual, na tentativa de compreender também, as

funcionalidades das formas, os processos que as constituíram e os movimentos da sociedade, e

como estão dispostas no espaço. A morfologia das paisagens urbanas é reflexo da necessidade

da sociedade em modificar seu ambiente para adaptá-lo às suas necessidades e readaptá-lo

sempre que se fizer necessário. Deste modo, as formas, funções, processos e estruturas urbanas

associam-se a relação homem-meio, vinculadas aos mais diversos aspectos socioculturais e

econômicos.

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2.1 Transformações da paisagem urbana e repercussões sobre a água

Nos processos de crescimento e urbanização das maiores cidades brasileiras, grande parte dos

cursos d’água se tornou poluído, assoreado ou foi escondido por canalizações que encobertam os

impactos antrópicos sofridos. Como conseqüências destas transformações sobre a paisagem e

interferência no sistema hídrico, há freqüentes enchentes, agravadas pela retirada da cobertura

vegetal das margens dos cursos d’água e topos de morro, retificações dos cursos d’água, e

impermeabilização do solo.

A crescente utilização da água, em toda a sua multiplicidade de usos, tem ocorrido como um

complexo processo sem controle adequado. Interesses individuais, setoriais e de coletividades

têm se sobreposto às necessidades de equilíbrio dos sistemas hídricos. A falta ou deficiências de

políticas públicas integradas no campo ambiental, envolvendo o planejamento territorial e o uso do

solo e das águas, além de seu monitoramento e fiscalização, têm facilitado os conhecidos

processos de superexploração de mananciais hídricos. O desperdício de água e o lançamento de

efluentes não tratados nos cursos d’água, por exemplo, modificam a paisagem das cidades e

anulam a possibilidade de outras funções, tais como o lazer e práticas de esportes aquáticos.

Todos estes impactos têm contribuído para o quadro de crescente escassez de água e redução

do seu acesso universal (NUNES JR, 2007).

O ordenamento territorial urbano, via de regra, é amparado pela legislação urbanística e pelo

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do município. Não obstante, a ocupação não ocorre em

consonância com estes, sendo muitas vezes contrária aos seus ditames, como no caso das

planícies naturais de inundação dos rios, que são transformadas em ruas e avenidas ou ocupadas

por moradias. Apesar de serem legalmente resguardadas, sofrem com a ocupação desordenada

de suas margens, principalmente por população de baixa renda que se dirige às grandes cidades

em busca de melhores condições de vida. Por serem áreas desvalorizadas do ponto de vista

imobiliário, associadas ao elevado déficit de habitação do país, estas áreas são exemplo da

fragilidade do aparato institucional e da falta de conexão entre as diversas políticas urbanas

municipais (MUÑOZ, 2000).

Assim, as formas e a racionalidade de intervenção sobre a paisagem urbana devem ser pautadas

pelos aspectos sociais apontandos, mas também considerar a adequada manutenção do ciclo

hidrológico o mais equilibradamente possível. Neste sentido, a recuperação dos fragmentos

verdes urbanos e aumento de áreas permeáveis são essenciais, pois permitem a infiltração da

água precipitada no solo, diminuindo o volume do escoamento superficial, melhorando o conforto

ambiental urbano, o controle da poluição difusa, a redução do risco de enchentes e, ainda,

tornando a paisagem urbana mais aprazível.

Embora os serviços de saneamento básico no Brasil tenham apresentado significativo avanço nas

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últimas três décadas, ainda se mostram deficitários. Essa condição está associada ao modelo

excludente das políticas públicas, pautadas por valores de mercado e, ainda, pela falta de

reconhecimento da necessidade de uso de metodologias e tecnologias compatíveis com a

realidade ambiental urbana, que em geral desconsideram os interesses das populações

atendidas. As intervenções nos cursos d’água ainda são pautadas por concepções ultrapassadas

em países que perceberam a importância da renaturalização do leito dos rios e suas margens

inundáveis, a partir de objetivos ambientais, conciliando o planejamento de zonas urbanas e vias

de transporte e favorecendo a qualidade de vida da população e dos moradores de áreas

adjacentes.

No Brasil, país designado como “em desenvolvimento”, esse desafio é particularmente intenso,

devido por um lado à natureza incompleta da urbanização, que se expressa espacialmente nas

inúmeras desigualdades e carências urbanas, entre as quais na dificuldade de acesso de todos os

cidadãos à infra-estrutura adequada e aos serviços urbanos, ou seja, o estado de vulnerabilidade

social; por outro lado, tal desafio encontra expressão face à emergência, nas últimas duas

décadas, de fortes movimentos sociais que gradualmente tornaram-se agentes sociais de

destaque na formulação de políticas públicas de natureza urbana e ambiental, em várias escalas

geográficas, do nível nacional ao local. Dessa forma, as políticas públicas e os processos de

regulação em torno da temática em pauta passam a buscar garantir as condições para que os

cidadãos tenham maior influência nos processos decisórios, o que no passado não muito distante

era uma prerrogativa exclusiva do Estado (WELTER et al, 2008).

Nos núcleos urbano-metropolitanos brasileiros, as deficiências quanto ao saneamento, geradas

pelo caráter incompleto da produção e organização do espaço social tem provocado diversos

problemas ambientais. A precariedade ou inexistência dos serviços sanitários (água, esgoto e lixo)

afetam consideravelmente a qualidade de vida das populações urbanas pobres. Soluções

tradicionais têm se mostrado ineficientes ou onerosas na tentativa de resolução destes problemas,

tendo em vista um Estado há muito falido em sua capacidade de promover o bem-estar coletivo.

Nesse sentido, é fundamental a busca por alternativas que garantam a maior permeabilidade e

integração entre o espaço natural e espaço social, de modo democrático e descentralizado

(MONTE-MÓR, 1994; SMOLKA, 1993).

A razão da persistência dos problemas relacionados à segregação sócio-espacial e espoliação

urbana no Brasil, com graves consequências sobre a paisagem urbano-ambiental, segundo Costa

(1991; 1997), deve-se ao não enfrentamento de seus determinantes estruturais. Ademais, o autor

adverte para a “Ausência de discussões de natureza teórico-metodológica, que tem levado à

conseqüente repetição de velhas fórmulas baseadas nos mencionados modelos de planejamento

urbano integrado com os mesmos vícios e contradições do passado, expressos numa análise

setorial e segmentada dos problemas urbanos (p.57)”. O autor (1997) nos leva ainda, a refletir

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acerca da necessidade imperiosa de se (re)pensar a participação do Estado na busca por

soluções voltadas à minimizar a exclusão de significativa parcela da população dos meios de

consumo coletivo e da apropriação de parte do excedente gerado pelo modelo econômico atual.

3 Gestão das águas urbanas em Belo Horizonte

Belo Horizonte foi planejada e teve o início de sua construção em 1898, para ser a capital do

estado. Atualmente possui uma população estimada entorno de 2.4 milhões de pessoas e

densidade populacional de 6.900 habitantes por km2. A Região Metropolitana de Belo Horizonte -

RMBH consiste em 34 municípios, compostos por cerca de cinco milhões de habitantes. A taxa de

crescimento anual de Belo Horizonte é de 1% ao ano, enquanto que da RMBH é superior, cerca

de 1,86%.

Figura 1: Paisagem do centro da cidade (www.minas-gerais.net)

A cidade é drenada por duas principais bacias: Arrudas e Onça, sendo que partes destas estão

localizadas em municípios vizinhos: Contagem, Sabará e Santa Luzia (Figura 2). Os rios Arrudas

e Onça são tributários do rio das Velhas, que por sua vez, é afluente do rio São Francisco, o mais

longo rio brasileiro, que apresenta área de aproximadamente 600.000 km2.

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Figura 2 – Bacias dos rios Arrudas e Onça no contexto de Belo Horizonte (NASCIMENTO et al, 2007)

O abastecimento de água e tratamento de esgoto são realizados pela Companhia de Saneamento

de Minas Gerais (COPASA), empresa de capital misto (público e privado), que atua em

significativa parcela dos municípios de Minas Gerais. Aproximadamente 99,7% da população de

Belo Horizonte estão conectados à rede de abastecimento, que apresenta elevado padrão de

qualidade, apesar de apresentar perdas físicas entorno de 30%. Em relação ao esgoto, cerca de

92% da população estão conectados ao sistema, que os direciona às duas Estações de

Tratamento de Esgoto – ETE: a ETE Onça e ETE Arrudas, que os tratam ainda somente nos

estágios primário e secundário.

Em Belo Horizonte e Região Metropolitana a rede está estrutura com a separação entre águas

pluviais e esgoto, no entanto, ainda há grande deficiência de redes interceptoras pela cidade, o

que gera sua indesejada combinação ou o lançamento direto de esgoto nos rios, em geral por

conexões ilícitas. Tal situação acarreta em alto índice de poluição dos corpos d’água pela cidade e

do próprio rio das Velhas, transformando a paisagem urbana e seus rios em depósitos de esgoto

(Figuras 3 e 4).

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Figuras 3 e 4 – Poluição de corpos d’água devido à falta de interceptores de esgoto e coleta de resíduos sólidos (NASCIMENTO et al, 2007)

Outro significativo impacto na paisagem belorizontina refere-se à canalização de grande parcela

de seus córregos, que estão escondidos sob as ruas e avenidas, ou ainda a linearização e

“encaixotamento” por concreto daqueles ainda sobre a superfície, como o próprio rio Arrudas, que

corta a região central da cidade (Figuras 5 e 6).

Figura 5 – Rio Arrudas (www.rioarrudas.com.br)

Figura 6 – Hidrografia de Belo Horizonte (NASCIMENTO et al, 2007)

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Estas opções técnicas, baseadas numa perspectiva simplificada, diante da complexidade da

paisagem urbana, não solucionaram o recorrente problema de enchentes na cidade, que atingem

não apenas os bairros centrais, mas também e de modo mais cruel, os habitantes das áreas

periféricas localizados à jusante das bacias, em geral de baixa renda e situados ilegalmente nas

várzeas dos rios. Ademais, estas alterações no sistema hídrico transformaram completamente a

paisagem urbana e a percepção que os habitantes da cidade apresentam em relação aos cursos

d’água. A linearidade dos córregos reflete o desejo da população urbana em ver de modo mais

rápido possível o transporte dos esgotos produzidos por ela para fora da cidade, talvez sem

perceber o impacto desta opção técnica sobre a paisagem e sobre os municípios localizados à

jusante, receptores dos dejetos da maior cidade da bacia.

O intenso crescimento urbano experimentado por Belo Horizonte durante a década de 1970

repercutiu diretamente sobre a queda da qualidade da água dos rios e sobre o aumento do risco

de enchentes. Essa expansão acarretou na canalização de rios e aumento considerável da área

impermeabilizada, o que gerou elevação do volume de águas pluviais em direção aos rios, e

ocupação de suas várzeas, por serem áreas de menor valorização econômica. Ademais, os

cursos d’água sofrem com o lançamento indiscriminado de resíduos sólidos e assoreamento

provocado pela retirada da cobertura vegetal, acarretando em redução da capacidade do canal

em reter a água, o que eleva ainda mais o risco de enchentes (Figuras 7, 8 e 9).

Figura 7: Evento de enchente no Arrudas em uma área plana próxima ao centro da cidade (NASCIMENTO et al, 2007)

Figura 8 – Ocupação de áreas propensas às inundações (NASCIMENTO et al, 2007)

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Figura 9 – Sedimentos e resíduos sólidos presos nos canais (NASCIMENTO et al, 2007)

Outra consequência das alterações provocadas pela urbanização é o desaparecimento de

nascentes, em virtude da ocupação de suas áreas e impermeabilização das zonas de recarga. Em

Belo Horizonte, grande parte das nascentes já estão descaracterizadas ou foram suprimidas,

tendo em vista que cerca de 80% da área do município encontra-se densamente povoada, o que

impede a infiltração da água pluvial e a exfiltração das águas subterrâneas. Apesar da legislação

vigente desde 1965 (Código Florestal), que visava proteger as nascentes e áreas de recarga, a

ausência de operacionalização, em geral associada a interesses especulativos e imobiliários,

ocasionou o quadro descrito. Não obstante, emerge nos últimos anos uma maior preocupação

quanto à preservação destas áreas, em virtude do reconhecimento da crescente escassez de

mananciais de água próximos às áreas urbanas.

Nesse sentido, ressalta-se a importância da existência e conservação dos parques naturais e

áreas ainda não ocupadas em Belo Horizonte. Estas áreas são praticamente os únicos espaços

capazes de apresentar nascentes em adequado estado de conservação. Portanto, estas precisam

ser identificadas, estudadas e suas Áreas de Preservação Permanente respeitadas, de modo a

garantir a manutenção do sistema hidrológico e a integridade das nascentes quanto à quantidade

e qualidade da água exfiltrada.

3.1 Recentes mudanças na gestão das águas urbanas

Belo Horizonte vem experimentando recentemente mudanças na política associada ao

saneamento e drenagem a partir da implementação do Plano Diretor de Drenagem Urbana

(PDDU) combinado com o Plano Municipal de Saneamento Ambiental (PMS). Um dos exemplos é

o Programa Drenurbs, que objetiva a manutenção e recuperação de córregos em leito natural nas

áreas urbanas. O Programa é parcialmente financiado pelo Banco Interamericano de

Desenvolvimento - BID. Além disso, o SWSP inclui a construção de 40 bacias de detenção,

voltadas ao controle de enchentes.

Parte das ações do PDDU já foi implementada, como o programa de pesquisa sobre as infra-

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estruturas voltadas às águas pluviais, avaliando as características físicas de todos os

componentes do sistema existentes; programa de manutenção da infra-estrutura associada à

drenagem; e implementação de um SIG – Sistema de Informação Geográfica sobre o sistema de

drenagem, que inclui dados sobre uso e ocupação do solo, sistema viário, construções públicas,

sistema de saúde, etc.

Atualmente, o PDDU e o PMS tem-se focado nos seguintes programas: no DRENURBS, com a

recuperação de córregos, redução dos riscos de enchentes e à saúde pública, e programa de

habitação, voltado à desapropriação e realocação de população que vive em áreas de risco de

enchentes; no programa de monitoramento da drenagem, que procura identificar os problemas e

as possíveis soluções, a partir de uma rede de medição, de modo a evoluir futuramente a

eficiência no trato desta questão; programa de modelagem hidráulica, a partir de uma base de

dados para monitorar a eficiências dos modelos associados às águas pluviais; programa de

desenvolvimento de pesquisa e tecnologia voltado à gestão das águas pluviais.

3.2 Belo Horizonte e a gestão por bacia hidrográfica

O avanço na percepção dos problemas relacionados ao saneamento ambiental e sua influência na

qualidade de vida urbana têm favorecido o desenvolvimento de instituições e políticas voltadas à

gestão integrada das águas. Da interação entre governo e sociedade civil organizada, surgem os

desafios que inevitavelmente conduzem à discussão sobre governança, tendo em vista a ênfase

na necessidade de compatibilização de interesses conflituosos, debate essencial para a

autenticidade da democracia.

Diversas experiências baseadas em estruturas institucionais tradicionais e centralizadoras, com

soluções muitas vezes inadequadas, vêm demonstrando fracassos, resultado em parte da

ausência de participação e cooperação dos demais entes da sociedade no processo de tomada

de decisão. Situação agravada pela lógica que em geral norteia as intervenções públicas nas

cidades, onde há o privilégio da técnica e do interesse das empreiteiras de obras em detrimento

de soluções ambientalmente mais sensíveis. Por outro lado, as tentativas de se instituir modelos

descentralizados e participativos têm evidenciado uma série de fragilidades e contradições.

Evidencia-se, portanto, a necessidade de se analisar as recentes estruturas institucionais

participativas à luz do debate em torno da governança.

Conforme mencionado, o município de Belo Horizonte está inserido na bacia do rio das Velhas,

que compreende uma área de 29.173 Km2, na qual estão localizados 51 municípios que abrigam

uma população de aproximadamente 4,8 milhões de habitantes. A bacia é dividida em três

trechos: alto, médio e baixo, estando a capital localizada no trecho alto da bacia, que apresenta o

maior contingente populacional, apesar de ter a menor área dentre os três. Esta porção apresenta

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uma expressiva atividade econômica, onde estão presentes os maiores focos de poluição de toda

a bacia, sendo os principais agentes poluidores, os esgotos domésticos e industriais não tratados

e os efluentes gerados por atividades minerárias (CAMARGOS, 2005).

O Comitê da bacia hidrográfica do rio das velhas - CBH-Velhas, fundado em 1998, foi um dos

primeiros comitês a se instalar no estado. O processo de gestão participativa neste comitê se

destaca no cenário ambiental mineiro, por se tratar de um dos CBH mais consolidados e

avançados, em termos de participação e aplicação dos instrumentos da Política Nacional de

Recursos Hídricos - PNRH. No entanto, Costa (2008) salienta que “grande parte destes

colegiados ainda não adquiriu o status previsto na PNRH, possuindo, por enquanto, um caráter

mais reivindicatório e de articulador dos interessados na discussão do que em um órgão

deliberativo do Estado propriamente dito”. Tal situação é decorrente da incapacidade técnica e

financeira do Estado em viabilizar a efetiva implementação dos instrumentos presentes na PNRH

e das inúmeras dificuldades e burocracias que atravancam a criação das agências de bacia. Com

isto, a falta de recursos financeiros para manutenção das atividades diárias do comitê se

apresenta como um dos principais empecilhos ao seu efetivo funcionamento.

As mudanças institucionais em curso têm produzido um duplo movimento: de um lado o Estado

concentra-se nas atividades de regulação da exploração e concessão dos serviços de água e

esgoto; do outro, verifica-se a reestruturação das várias organizações públicas e privadas, que

assumem novos objetivos e estratégias como resposta aos ajustes do novo ambiente regulatório.

Não obstante, este processo ocorre de modo conflituoso, onde questões como autonomia dos

agentes, interdependência, concorrência, dentre outros, estão em jogo. A partir deste ponto de

vista, é possível supor que a criação de uma nova institucionalidade transforma situações tidas

como estáveis em situações de incerteza. Esta operação de construção política implica em

constante processo de negociação entre as distintas formas de organização.

4 Considerações finais

Analisar os problemas socioambientais urbanos a partir da paisagem urbana nos permite avaliar

em que medida a sua (re)produção, a partir de racionalidades, lógicas, opções políticas e

técnicas, dentre outras orientações, tem implicações sobre a qualidade de vida na cidade. O

palimpsesto nos mostra a concretude e sobreposição destas distintas orientações em cada

momento histórico pelo qual a cidade passou e que, em momento seguinte teve que modificar

novamente sua paisagem para atender a outras funções e necessidades.

Nesse sentido, a paisagem de Belo Horizonte é reveladora da riqueza de elementos e formas, que

passaram por uma série de modificações para abrigar as necessidades socioeconômicas do

período e que, por conseguinte, deixaram suas marcas e impactos sobre a paisagem. Os

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problemas de drenagem, poluição dos cursos d’água, impermeabilização, desaparecimento de

nascentes, dentre outros apontados, demonstram a íntima relação entre a (re)produção da

paisagem e as consequências socioambientais decorrentes. As marcas sobre a paisagem

inspiram as políticas de intervenção presentes, seja para minimizar as inadequadas opções do

passado ou buscar a produção da paisagem a partir de racionalidades mais adequadas ao atual

paradigma socioambiental da sustentabilidade, em prol da qualidade de vida urbana.

Apesar dos inúmeros equívocos do passado, e ainda do presente, no trato das águas urbanas em

Belo Horizonte, os projetos em andamento e o esforço no fortalecimento das instituições

participativas podem ser indutores de políticas e intervenções mais harmônicas na paisagem, que

busquem minimizar os impactos sobre o sistema hídrico e população local, em especial de baixa

renda. Associado a isso, está em curso, conforme discutido, o surgimento e desenvolvimento de

instituições que buscam promover a participação da sociedade nas decisões concernentes aos

recursos hídricos e à produção da paisagem, apesar das fragilidades ainda a serem enfrentadas.

Ademais, a gestão das águas carece de maior integração entre as diversas secretarias municipais

e ainda, entre os municípios que compõem a bacia, em prol de uma política conjunta, que reflita e

realize intervenções na cidade a partir de uma visão abrangente dos problemas e respectivas

soluções.

Referências

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