v.1 nº3 janeiro > abril | 2007 - UFRJ · Professor Adjunto de Metodologia da Pesquisa em Ciên-...

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v.1 nº3 janeiro > abril | 2007 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional SINAIS SOCIAIS | RIO DE JANEIRO | v.1 nº3 | p. 1-180 | JANEIRO > ABRIL 2007 ISSN 1809-9815

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v.1 nº3janeiro > abril | 2007SESC | Serviço Social do ComércioAdministração Nacional

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 1-180 | JANEiRo > ABRiL 2007iSSN 1809-9815

CooRDENAÇÃoGerencia de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento

CoNSELHo EDiToRiALÁlvaro de Melo SalmitoLuis Fernando de Mello CostaMauricio BlancoMônica Pereira dos Santossecretário excutivo

Sebastião Henriques Chaves

Produção Gráfica - Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção Geralprojeto gráfico

Vinicius Borgesrevisão

Rosane Carneiro

SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional

PRESiDENTE Do CoNSELHo NACioNAL Do SESCAntonio oliveira SantosDiREToR GERAL Do DEPARTAMENTo NACioNAL Do SESCMaron Emile Abi-Abib

Sinais Sociais / Serviço Social do Comércio.

Departamento Nacional - vol.1, n.3 (janeiro/

abril. 2007) - Rio de Janeiro, 2006 -

v. ; 29,5x20,7 cm.

Quadrimestral

iSSN 1809-9815

1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil.

i. Serviço Social do Comércio. Departamento Nacional

As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores.

EDiToRiAL4

BioGRAFiAS6

o PRoBLEMA Do CoNTRoLE DA PoLÍCiA EM CoNTEXToS DE VioLÊNCiA EXTREMA8oS CASoS Do BRASiL, DA ÁFRiCA Do SUL E DA iRLANDA Do NoRTE

Cristina Buarque de Hollanda

UMA ANÁLiSE DA FREQÜÊNCiA E Do ATRASo ESCoLAR DAS CRiANÇAS BRASiLEiRAS36Danielle Carusi Machado

EMoÇÃo AGREGADoRA66

Elter Dias Maciel

DiSCRiMiNAÇÃo RACiAL E EDUCAÇÃo No BRASiL122Romero C. B. da RochaValéria Pero

TRAGÉDiA DA CULTURA E MoDELAGEM DA iDENTiDADE156UMA LEiTURA DE WEBER E SiMMEL

Valéria Paiva

SUMÁRio

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EDiToRiAL

Vive-se, hoje, no Brasil, uma época caracterizada por temas que reiteradamente são postos em evidência para discussão. Pode-se afirmar que os assuntos trazidos ao debate nacional não ocorrem como necessidade dos meios de comunicação em alavancarem suas vendas, embora isto naturalmente ocorra. Eles tornam-se as-suntos comuns a todos nós pelo fato de trazerem feridas que san-gram nossa sociedade e agridem nossa consciência cidadã. E, por isso, a todos inquietam e exigem soluções duradouras.

Três temas que são abordados no terceiro número da revista Si-nais Sociais tratam de questões que estão na ordem do dia dos de-bates na sociedade e no mundo acadêmico: violência, discrimina-ção social e educação.

Trazer argumentos sólidos baseados em estudos e pesquisas para a reflexão de todos é, ao nosso juízo, necessário para que a razão, e não a emoção, conduza a busca de respostas eficientes para as questões que nos comovem e, algumas vezes, ameaçam nossas in-tegridades física e moral.

Produzir respostas no calor dos acontecimentos tem demonstra-do não ser um bom caminho. Atender ao clamor das ruas pode ga-rantir aplausos momentâneos, não soluções permanentes.

Nesse sentido, o terceiro número da revista Sinais Sociais aborda o problema do controle da polícia em situações de violência extre-ma, o atraso escolar das crianças brasileiras e as questões da dis-criminação racial e da educação no Brasil.

Pela seriedade e substância dos estudos realizados, acreditamos que, com a divulgação destes artigos, a revista Sinais Sociais cum-pre seu papel de disseminador de análises sobre problemas nacio-nais que pedem urgência em seus equacionamentos.

A estes artigos somam-se mais dois que tratam, respectiva-mente, da importância da literatura como fonte de conhecimen-to e compreensão do mundo e outro sobre a importância ainda dos modelos de análise da sociologia clássica, através dos escri-

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tos de Weber e Simmel, para se ter uma melhor compreensão do processo de modelagem da identidade dos indivíduos na socie-dade contemporânea.

Os artigos estão dados. Agora, cabe lê-los e sobre eles refletir.

Antonio Oliveira SantosPresidente do Conselho Nacional do SESC

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BioGRAFiASCristina Buarque de Hollanda

Mestre e doutoranda em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pes-quisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Em 2004, a autora foi premiada por con-curso da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em convênio com a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (An-pocs) para desenvolver pesquisa sobre o tema do controle externo de po-lícia. Em 2005, recebeu premiação da Fundação Ford em parceria com o Iuperj para desenvolvimento de estudo comparado entre modelos de segu-rança pública no Brasil e na África do Sul. No mesmo ano, a autora publi-cou seu livro Polícia e Direitos Humanos: política de segurança pública no primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro, pela Editora Revan.

Danielle Carusi Machado Economista, com graduação e mestrado em Economia na Universida-de Federal do Rio de Janeiro, e doutorado no Departamento de Eco-nomia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). O título da sua tese de doutorado é Escolaridade das crianças no Brasil: três ensaios so-bre a defasagem idade-série. Especializou-se em Economia do Traba-lho e Bem-Estar Social e Economia do Setor Público. Atualmente traba-lha como técnica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, sendo professora colaboradora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas.

Elter Dias Maciel

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), em 1973, com concentração em Sociologia do Conhecimento e Sociologia da Religião. Di-retor-Presidente do Centro de Ciências do Estado do Rio de Janeiro - Cecierj, em 1991 e 1992. Professor Adjunto de Metodologia da Pesquisa em Ciên-cias Sociais no Curso de Pós-Graduação em Educação na Universidade Es-tadual do Rio de Janeiro (Uerj), no período de 1992 a 1996. Professor Ple-no da Fundação Getúlio Vargas no Curso de Pós-Graduação do Instituto de Estudos Avançados em Educação (Iesae), no período de 1978 a 1990. Autor do livro O drama da conversão: análise da ficção batista, e de ensaios e ar-tigos sobre Educação, Cultura, Literatura e Religião.

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Romero Cavalcanti Barreto Rocha Romero Cavalcanti Barreto Rocha concluiu graduação em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 2002 e mestrado pelo Ins-tituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2005. Atu-almente é estudante de Doutorado em Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Principais artigos de elaboração mais recente: “Econo-mic Efficiency Evaluation of Public Sector at Specific Countries”. In: Textos Econômicos, nº2, UFPE, 2002; “Is the Brazilian Fiscal Responsibility Law (LRF) Really Binding? Evidence from State-Level Government”. In: XXXII EN-CONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 2004, João Pessoa. ANAIS DO XXV ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA. JOÃO PESSOA: ANPEC, 2004.

Valéria da Silva de Paiva

Doutoranda em Sociologia e mestre em Sociologia pelo Instituto Universi-tário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Iuperj. Obteve a Graduação em Ciên-cias Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Publicação: Leibniz, Arnauld e Os decretos livres divinos em cadernos espinosanos. São Paulo: v.IX, 2002.

Valéria Pero

Concluiu doutorado em Economia pelo Instituto de Economia da Universi-dade Federal do Rio de Janeiro em 2002. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência com pesquisas na área de Mercado de Trabalho, Desigualdade de Renda e Pobreza, atuando principalmente nos seguintes temas: mercado de trabalho, mobilidade so-cial e de renda, favela, microcrédito e avaliação de políticas públicas. Entre seus artigos recentes, pode-se citar: “Mobilidade social no Rio de Janeiro”, Revista de Economia Mackenzie; “Duração do (des)emprego formal e mobi-lidade ocupacional”, in: GUIMARÃES, N. e HIRATA, H. (org) Desemprego: trajetórias, identidades e mobilizações. Editora Senac, São Paulo, 2006.“Mo-bilidade Intergeracional de Renda no Brasil”, com Dimitri Szerman. In: En-contro Nacional de Economia, 2005, Natal. XXXIII Encontro Nacional de Economia - Anpec, 2005.

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o PRoBLEMA Do CoNTRoLE DA PoLÍCiA EM CoNTEXToS DE VioLÊNCiA EXTREMA:oS CASoS Do BRASiL, DA ÁFRiCA Do SUL E DA iRLANDA Do NoRTE1*

Cristina Buarque de Hollanda

1* A pesquisa que utilizei para a redação deste artigo foi possível graças a finan-ciamentos da Secretaria Nacional de Segurança Pública e da Fundação Ford.

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O artigo trata do problema do controle externo da polícia no Brasil, África do Sul e Irlanda do Norte. Em perspectiva comparada, a autora investiga modos distintos de lidar com o problema da violência policial em expressão limite. Com base nas instituições sul-africana e norte-irlandesa, que consti-tuem experimentos de vanguarda no tratamento do tema, o artigo especula caminhos possíveis para o caso brasileiro.

This article focuses on the problem of external police control in Brazil, South Africa and Northern Ireland. Through a comparative perspective, the author investigates different ways of dealing with police violence. Based on South African and Northern Ireland institutions, which brought considerable inno-vations in treating the issue, the article speculates possible solutions for the Brazilian case.

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Não existe consenso sobre a idéia de Estado. Entretanto, parece haver razoável convergência em torno da expectativa de seguran-ça associada a ele. Na tradição contratualista iniciada por Hobbes (Hobbes, 1979), era o medo da morte violenta a principal motivação dos homens para voluntariamente constituírem um pacto que os or-ganizava em sociedade. E mesmo a migração do contratualismo para o campo liberal não significou alteração dessa premissa fundacio-nal. Mesmo na sua versão minimalista, a substância estatal é anima-da pelo tema da segurança. Ainda que os homens de Locke (Locje, 1973) tivessem apetite menos voraz que os atores do clássico cená-rio hobbesiano da “guerra de todos contra todos”, a melhor potência de suas ações estaria garantida num ambiente organizado pela uni-ficação dos juízos sobre o bem e o mal. A supressão do arbítrio ge-neralizado instituiria uma ordem segura, dotada da previsibilidade necessária ao livre empreendimento individual. A segurança consti-tuía, portanto, a própria condição de possibilidade do máximo aper-feiçoamento dos homens.

Já no século XX, também a clássica definição weberiana de Esta-do (Weber, 1991) conferia centralidade à expectativa de uma vida segura e infensa aos arroubos individuais. A idéia de um monopólio legítimo dos recursos de retaliação por parte do Estado deveria ate-nuar a angústia dos julgamentos difusos e cambiantes ao sabor dos desejos e caprichos de cada homem. Mais uma vez, o tema da segu-rança assumia lugar central na reflexão sobre a constituição da or-dem estatal.

O primado da segurança tem vínculo estreito com a organização do julgamento sobre os assuntos de natureza pública. Quando as agências de forças do Estado escapam à unidade moral de referência e recuperam sinais de dispersão do juízo, típicos do hipotético esta-do de natureza, a legitimidade de sua intervenção violenta está gra-vemente comprometida.

É nesta chave que deve ser compreendida a importância do tema do controle de polícia. Se a polícia escapa à sua designação formal, isso significa, no limite, o divórcio da legalidade que originalmen-te justifica sua existência. Se alguma margem de desvio do universo formal não compromete a normalidade da rotina de funcionamento do Estado, os contextos de grave disparidade entre desempenho ide-

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al e real das polícias podem alcançar efeitos devastadores na dinâ-mica de legitimação da ordem política.

Em última instância, o descontrole da polícia, isto é, seu livre funcionamento à revelia das normas destinadas a regular sua exis-tência, produz o abatimento da expectativa moral associada ao Es-tado. No contexto das democracias modernas, um dos desafios centrais da política é justamente o de limitar seu próprio uso da força, sobretudo da força letal. Se o problema clássico de como vi-giar os vigias está fadado a um impasse lógico, aprisionado pelo paradoxo de uma vigília soberana, tampouco o tema pode ser su-primido do repertório de preocupações de um Estado democráti-co sem prejuízo para o reconhecimento social deste. Sem controle de polícia, a democracia não poderia se diferenciar dos governos autoritários, que relegam a suas próprias agências de segurança a suposta investigação de seus crimes e não admitem interlocutor externo (Lemgruber, 2003). A legitimidade do Estado democrático tem vínculos estreitos, portanto, com o tipo de ação das suas agên-cias de força.

Tendo em vista a importância do tema do controle de polícia para a garantia do princípio de imparcialidade do Estado, este artigo se dedica ao mapeamento sucinto de três experimentos de vigília da polícia que, inscritos em contextos nacionais díspares, são igual-mente confrontados com expressões limite do problema da violên-cia policial. África do Sul, Irlanda do Norte e Brasil, por motivos pe-culiares às suas trajetórias de formação social, alcançaram graves níveis de antagonismo entre suas populações e polícias.

Embora a especificidade de cada uma das histórias nacionais em pauta inspire ajustes próprios, não significa obstáculo para a migra-ção de modelos de controle da polícia para contextos alheios ao da sua gestação. A premissa é de que o desafio das situações extremas, independente de suas particularidades, pode resultar em soluções inovadoras, descoladas da rotina das instituições. Este foi o caso da África do Sul e da Irlanda do Norte, que protagonizaram experiên-cias de vanguarda na resistência à violência policial.

Os governos desses dois países confeccionaram instituições estri-tamente orientadas para alterar o tipo de interação entre suas agên-cias de força e largos segmentos marginalizados de suas popula-

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ções. A criação de mecanismos externos de controle da polícia não resultou de meros ajustes formais na legislação, mas de processos políticos de grande porte, com repercussão em níveis diversos de organização da vida social. No caso da África do Sul, o Indepen-dent Complaints Directorate foi criado no contexto de democratiza-ção do país, que não esteve restrito à ampliação dos direitos políti-cos, mas se estendeu a setores diversos da vida social. Na Irlanda do Norte, a formulação do Police Ombudsman for Northern Ireland re-sultou de grave impasse político entre os segmentos católico e pro-testante da população. A origem da instituição esteve situada num movimento mais largo de conciliação política entre unionistas e ca-tólicos nacionalistas.

No Brasil, por contraste, a gravidade do tema da violência poli-cial, embora motive tímidos esboços de ação no campo do controle, não inspirou iniciativas com projeção similar a que tiveram as novas instituições sul-africana e norte-irlandesa. As organizações de con-trole brasileiras padecem de precários poderes e recursos e são cla-ramente incapazes de lidar com os níveis crescentes de insatisfação com a polícia.

o TEMA Do CoNTRoLE DE PoLÍCiA No BRASiL

Em 31 de março de 2005 aconteceu nos municípios de Nova Igua-çu e Queimados a maior chacina da história do estado do Rio de Janeiro, com sinais claros de autoria policial. Vinte e nove pesso-as foram aleatoriamente assassinadas nas calçadas e bares daqueles bairros. Os motivos especulados para o crime foram a disputa por influência política local e o conflito de procedimentos entre adep-tos do antigo comandante do Comando de Policiamento da Baixa-da (CPB) e o novo quadro dirigente que o sucedeu na região. Im-portante notar que 12 dos policiais militares presos por suspeita de envolvimento neste episódio já acumulavam acusações de outros 25 crimes, dentre homicídios e seqüestros, tendo um deles sido reco-nhecido por testemunhas como assassino de seis jovens em Belford Roxo, em 7 de setembro de 2001.

Dois inquéritos, um na Polícia Civil e outro na Polícia Federal, fo-ram instaurados para apurar o caso. Ambos foram privados de perí-

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cia adequada por terem sido as cenas do crime descaracterizadas antes da chegada dos profissionais especializados. Ao início das in-vestigações sucederam-se ainda crimes avulsos e igualmente arbitrá-rios, claramente vinculados aos autores da chacina, nas proximida-des da delegacia onde o caso foi registrado.

As instituições de controle externo da polícia, que por definição devem conduzir ou ao menos acompanhar a investigação de crimes policiais, tiveram atuação periférica neste caso. Os campos de com-petência das ouvidorias e do Ministério Público – que são, respec-tivamente, de monitoração e investigação dos procedimentos po-liciais faltosos – foram protagonizados por comissões externas da Câmara dos Deputados e da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e também por um serviço de inteligência da Secreta-ria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, especialmen-te recrutados para apuração deste crime. O imperativo da investiga-ção independente (ou da sua aparência) foi improvisado com vistas a dotar os inquéritos em andamento de alguma transparência e legi-timidade aos olhos da população, dado que a idéia de policiais in-vestigando policiais está fadada à descrença pública. A precarieda-de das organizações formais de controle da polícia se fez evidente neste episódio.

Se em todo o mundo as particularidades do trabalho policial – ex-posição permanente a risco de vida ou mutilação do corpo, perda de colegas de trabalho por motivos direta ou indiretamente ligados ao exercício da profissão, dentre outros – favorecem a formação de fortes laços de identidade profissional, no Brasil, o ethos policial não é destoante. A sobrevivência de um sistema paralelo de justiça mili-tar, que se reporta às polícias militares estaduais e, portanto, a 78% do contingente policial do país2, é a principal expressão institucio-nal desse corporativismo.

Nas cortes militares, são julgados todos os crimes policiais mi-litares, com exceção de homicídio intencional de civis cometido por profissional em serviço. Sendo, contudo, a intenção ou não do crime avaliada pela própria polícia, que se encarrega das investi-

2 Esta informação consta no artigo de Fiona Macaulay: Problems of Police Oversight in Brazil. Pg 9.

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gações preliminares de toda queixa criminal, esses tribunais são dotados de notável margem de manobra em favor dos interesses policiais. Nessas redes de proteção penal, não raro os homicídios são descritos como “morte por resistência da vítima à prisão” ou “em decorrência de legítima defesa do policial” e, assim, mantidos sob competência da Justiça Militar (Macaulay, 2002). Isto significa que, em casos de grave incursão criminal, o oficial militar acusa-do e devidamente protegido por subterfúgios de tipificação crimi-nal se mantém a salvo do processo criminal e pode sofrer apenas sanções internas, sendo a expulsão da corporação a pena máxima. Na prática, resulta em ex-policiais homicidas que se empregam em agências de segurança privada ou se reintegram à polícia de outro estado da federação.

Além da recriação usual da alegação criminal segundo jargões po-liciais eufemísticos, a destruição de provas é um procedimento usual que inviabiliza investigações consistentes, como foi o caso mencio-nado da chacina. Ou seja, ainda que um crime extrapole a jurisdi-ção da corte militar – em geral por sua exposição na mídia e pela pressão externa que deriva disso –, a intervenção policial em favor próprio já se inscreve no momento imediatamente posterior à defla-gração do crime, com alteração da cena e conseqüente comprome-timento das evidências para apuração. Nos casos de crimes policiais coletivos, as evidências do envolvimento de policiais individuais são facilmente suprimíveis, de modo que a culpa se despersonaliza e re-cai sobre a corporação policial como um todo. Em 2002, dos 153 policiais levados a julgamento pelo assassinato de 19 trabalhado-res sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 1996, apenas dois foram condenados. Os demais foram absolvidos por ausência de provas de responsabilidade individual (Macaulay, 2002).

Além desse padrão de desvio, o controle interno da polícia – com-posto pelas corregedorias e, no caso das polícias militares, incre-mentado pela própria justiça militar – tende a priorizar questões dis-ciplinares em detrimento das criminais. Não raro infrações menores (como um pequeno atraso ou uma farda malpassada) são punidas com excessiva severidade, revelando enorme apreço pelo tema da disciplina (Muniz, 1999). Destinadas ao controle interno da corpora-ção, as corregedorias são compostas pelos próprios policiais – à di-

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ferença das ouvidorias, que supõem alguma autonomia de seus qua-dros com relação à polícia – e costumam valorizar excessivamente os meios, que se tornam fins em si mesmos e apontam negligência dos fins originais da polícia. Formalmente designadas para a apura-ção das queixas de civis contra a polícia, as corregedorias na práti-ca se voltam para o controle do tipo de relacionamento do policial com a corporação. Desta maneira, contribuem para a precarização das relações da polícia com o público, corroborando a perspectiva da excessiva proteção interna.

É relevante notar que os policiais alocados nas corregedorias, e inclusive o próprio corregedor, não gozam de uma carreira espe-cial no interior da corporação, estando diretamente sujeitos à pres-são dos colegas sob investigação, ao lado dos quais poderão voltar a trabalhar num futuro próximo (Macaulay, 2002). Não há, portanto, um ethos diferenciado entre controlador e controlado, visto que to-dos se pautam no princípio de pertencimento ao mesmo corpo pro-fissional e não recebem estímulos diferenciados dentro da institui-ção. O corporativismo tende, enfim, a prevalecer sobre a suposição de neutralidade investigativa e impor apuração nitidamente desfavo-rável ao reclamante.

Como contraponto a tal pulsão corporativa, foram criadas estrutu-ras de controle semi-autônomo e autônomo com vistas à garantia de um olhar externo e isento para as queixas de crime policial. As ou-vidorias de polícia, implementadas a partir da segunda metade dos anos 90 em muitos estados do país, foram regulamentadas pelo Fó-rum Nacional dos Ouvidores de Polícia, criado em 1999, e devem cumprir o papel de controle semi-autônomo. Ainda atreladas ao mo-dus operandi policial, dado que não dispõem de poderes e recursos para investigação própria, as ouvidorias devem monitorar os inquéri-tos para garantir que seu andamento obedeça a critérios de isenção. Nas situações em que avaliar inadequação dos métodos policiais, estas organizações devem então se reportar ao Ministério Público e sugerir sua intervenção.

Em Quem vigia os vigias?, Julita Lemgruber, Leonarda Musume-ci e Ignacio Cano (Lemgruber, 2003) descrevem com rigor de de-talhes o cenário precário de cinco ouvidorias de polícia no Brasil. São elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do

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Sul e Pará. Em linhas gerais, o diagnóstico dos autores é de que o descompasso entre a existência formal e real dessas organizações está, em grande medida, fundado na falta de profissionalização de seus membros, na dependência orçamentária das secretarias esta-duais de Segurança e nas suas escassas possibilidades de ação e in-fluência sobre a polícia.

As ouvidorias constituem-se, portanto, em estruturas esvaziadas de poder cuja designação de controle está inteira e contraditoriamente atrelada aos próprios procedimentos policiais. As corregedorias de polícia são seus principais interlocutores e uma forte tensão caracte-riza esse diálogo compulsório que está na própria base de ação dos ouvidores. O problema da falta de transparência policial se impõe como obstáculo ao trabalho do ouvidor, que dispõe de tímidos e in-suficientes mecanismos para superar as estratégias de autoproteção policial. Não habilitadas a conduzir investigação independente, as ouvidorias são, enfim, reféns da distorção corporativa policial contra a qual se estabeleceram.

O princípio da autonomia, basilar na definição do controle exter-no, é ainda seriamente comprometido pela indistinção aparente en-tre a sede da ouvidoria e os batalhões de polícia. Das cinco organi-zações estudadas por Lemgruber, Musumeci e Cano, quatro estavam localizadas em prédios anexos a unidades policiais, comprometen-do inteiramente a imagem dessas instituições como organizações autônomas. A confiança que deveria derivar da independência for-mal das ouvidorias é inteiramente comprometida nesse ambiente de miscelânea geográfica com a polícia. Nesse contexto, é razoável que a população não tenha clareza ou simplesmente desconheça os objetivos das ouvidorias, muitas vezes confundidas com as correge-dorias ou simplesmente ignoradas de todo.

Ainda segundo o relato dos autores, o cotidiano dessas organiza-ções é marcado pelo improviso. Seus funcionários não são submeti-dos a qualquer treinamento para exercício da função, que implica ha-bilidade específica para lidar, dentre outros, com pessoas sob forte tensão emocional e sujeitas a risco de vida. O despreparo também é evidente no tratamento das informações confiadas às ouvidorias, que constituem documentos sigilosos e, como tal, deveriam estar protegi-das por controle rígido de acesso, o que não acontece na prática.

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À evidente precariedade legal e estrutural das ouvidorias os go-vernos estaduais costumam opor a nomeação de reconhecida fi-gura pública para o posto de ouvidor. A expectativa associada é de que o reconhecimento social dos ouvidores, combinado à sua dedicação e afinidade vocacional com os fins da ouvidoria, de-verão produzir alguma legitimidade para a instituição. E, de fato, as ouvidorias que alcançaram algum sucesso no desempenho de suas funções foram indubitavelmente marcadas pelo empenho pessoal de sua equipe, e apenas residualmente pelo suporte insti-tucional do governo.

Neste breve mapa do tema do controle de polícia no país, lugar de destaque ocupa ainda o Ministério Público, a partir da Consti-tuição de 1988 (Moraes Filho, 1996). Como “fiscal da lei”, tem a atribuição de exercer o controle externo das polícias (art. 129, in-ciso VII da Constituição Federal de 1988). À diferença das ouvi-dorias, dispõe de poderes de investigação independente, podendo simplesmente recusar as conclusões dos inquéritos policiais e opor a eles seus próprios resultados, produzindo desdobramentos judi-ciais inteiramente diversos daqueles que resultariam das apurações policiais. Além disso, o Ministério Público tem designação proati-va, o que supõe movimentos de antecipação ao evento criminal. Isto é, visto que a observação atenta dos desvios policiais pode re-velar rotinas de criminalidade, o Ministério Público estaria apto a elaborar estratégias de prevenção e controle dessas rotinas e impô-las à polícia. Dispondo, portanto, de maiores poderes que as ouvi-dorias, trata-se da mais importante instituição de controle externo de polícia do país.

Contudo, ainda que disponha de poderes muito superiores aos da ouvidoria, igualmente padece do profundo descompasso entre des-crição de competências e capacidade real de atendimento às quei-xas. Seu desempenho efetivo está definitivamente aquém do seu po-tencial legal.

Este cenário de profunda inadequação institucional ao volume e qualidade da demanda social por controle de polícia não significa necessário desajuste de todo tratamento formal do problema, mes-mo em situações extremas de conflito. As organizações sul-africana e norte-irlandesa, conforme descrição a seguir, ilustram a idéia de

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que o universo formal pode dispor de instrumentos razoáveis para alterar rotinas consagradas de uso da violência policial.

ÁFRiCA Do SUL E o Independent ComplaInts dIreCtorate

A menção traumática às forças de segurança do Estado sul-africa-no é central nos testemunhos para a Comissão de Verdade e Recon-ciliação, implementada em 1995 como estratégia para lidar com a memória do Apartheid (Karin, 2001). A democracia na África do Sul trouxe para a agenda política nacional o desafio de superar o grave trauma social do Estado segregador. Para boa parte da popu-lação sul-africana, esse período da história foi sinônimo de bana-lização da violência pelas forças de segurança do Estado. O uso desmedido e injustificado da força contra a população negra, o de-saparecimento inexplicado de presos, a rotinização da tortura nas delegacias e a descoberta posterior de inúmeros cemitérios poli-ciais clandestinos consolidaram a imagem de uma polícia extre-mamente violenta e arbitrária. A tarefa de lidar com a memória recente da violência de Estado não foi trivial para a transição de-mocrática iniciada na década de 90. Como seria possível transfor-mar o modus operandi largamente consolidado pelo cotidiano po-licial e simultaneamente superar o vazio de confiança entre polícia e população marginalizada? Dado o protagonismo recente da polí-cia na tarefa de repressão aos negros, que representavam cerca de 80% da população do país, o governo emergente precisava inven-tar uma nova identidade para aquela instituição, apesar de contar basicamente com o mesmo material humano, responsável pelas torturas e desaparecimentos.

Diante desse grave impasse, um oficial sênior da Scotland Yard em viagem de estudos à África do Sul em 1993 não escapou de uma recomendação tão intuitiva quanto improvável: “fire every officer from colonel to general and rebuild command and control from scratch” (Stenberg, 2003:14). A impossibilidade de fazer tábu-la rasa do passado e reinventar o presente sem vínculos com o mo-delo político esgotado significou a necessidade incontornável de uma reforma fundada na memória da segregação e da violência, e não na sua recusa.

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O desafio que se impunha ao governo da transição era, enfim, o de levar adiante uma reconfiguração institucional capaz de lidar com as marcas profundas do passado que se projetavam no presente e mol-davam as expectativas de futuro. A frieza e o formalismo das institui-ções deveriam ser capazes de abrigar e superar a marca do sofrimen-to e os rancores entre as raças. O objetivo era romper com o passado sem negar as suas marcas.

Numa conversa informal com um taxista negro que viveu infân-cia e adolescência em Soweto na época do Apartheid, ele me disse: “We forgive, but we don´t forget.” E este é justamente o ponto central da filosofia da nova democracia na África do Sul. Foi este princípio do perdão sem esquecimento que orientou o experimento institucio-nal no pós-Apartheid e que teve sua principal expressão na Comis-são de Verdade e Reconciliação, instrumento que teve centralidade na transição política pacífica no país.

Durante quase seis anos os voluntários envolvidos com as co-missões registraram, em todo o país, confissões de agressores e de-poimentos de vítimas de crimes cometidos por agentes oficiais. Os fóruns improvisados pretendiam uma solução alternativa ao cami-nho judicial e produziam espaços de catarse coletiva que eram o próprio avesso da idéia de esquecimento. A premissa que susten-tou o experimento é a de que a memória do sofrimento não pode-ria se limitar aos dramas pessoais de quem padeceu da exclusão social violenta. Era preciso compartilhá-la com a nação e invali-dar o tema do desconhecimento, não raro mobilizado pelos bran-cos (Gibson, 2004).

As outras novidades do repertório institucional inventado pelo novo governo para lidar com a marca social da violência de Estado estiveram também fundadas nesse princípio do reconhecimento. Ao instituir investigação autônoma das denúncias de desvio de condu-ta policial, o Independent Complaints Directorate (ICD), criado em abril de 1997, fundou formalmente a possibilidade de o governo re-conhecer e apurar as faltas policiais, procedimento que simplesmen-te inexistia na cena política anterior.

Para driblar o antigo monopólio militar de investigação dos crimes policiais, o ICD foi constituído como organização civil submetida ao Ministery for Safety and Security e inteiramente autônoma com rela-

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ção à polícia nacional sul-africana. A constituição de 1996 lhe con-cedeu plenos poderes de investigação dos crimes policiais, conferin-do-lhe, para isso, poderes de polícia para lidar com a polícia, além de acesso irrestrito a todo documento policial.

O ICD está estruturado em cada uma das províncias e em uma sede nacional. Seu diretor executivo é nomeado pelo ministro e submetido à aprovação dos parlamentares. A cada seis meses a instituição deve reportar ao Parlamento as denúncias que lhe fo-ram encaminhadas, as respectivas investigações e recomenda-ções associadas.

A principal atribuição da organização é, enfim, a de investigar ou monitorar a apuração policial de todas as denúncias de más condu-tas ou violências, seguidas ou não de morte, atribuídas a policiais no exercício ou não de sua função profissional3. A escolha por inves-tigação ou monitoramento é em função da gravidade de cada caso reportado. As queixas chegam ao escritório da instituição encami-nhadas diretamente pelos próprios reclamantes e/ou, em casos de homicídio ou grave lesão corporal, pela polícia, obrigada constitu-cionalmente a transmitir informações desse tipo. À diferença das ou-vidorias brasileiras, o ICD dispõe de estruturas próprias, inteiramen-te autônomas com relação à estrutura policial.

As definições e os modos de condução das investigações estão previstos no South African Police Service Act, de 1995, e se reúnem em um departamento específico da instituição, que se destina prio-ritariamente às denúncias de sérias violações de direitos e homicí-dios sob custódia policial ou em decorrência de ação da polícia. Nos eventos que envolvem, portanto, acusação criminal, e não ape-nas falta disciplinar, o principal interlocutor da organização é o Di-rector of Public Prosecution (DPP), instituição similar ao Ministério Público no Brasil. Isto significa que, ao final de cada investigação, o ICD encaminha ao DPP as provas reunidas e suas conclusões so-bre atribuições de culpa, além de recomendações de punição e/ou

3 A única exceção é feita para os servidores voluntários da polícia, que só são investigados se acusados de alguma irregularidade cometida durante exercício da atividade policial. Fora do seu período de trabalho, não são considerados policiais e por isso não deverão ser investigados pelo ICD, mas pela própria polícia.

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absolvição judicial para cada policial investigado. Embora os relató-rios para o DPP possam sugerir penas, o mandato da instituição está restrito ao relato das investigações e a instituição não dispõe de ne-nhum mecanismo formal para conduzir a decisão final do DPP. Em todas as circunstâncias, o ICD não extrapola, portanto, sua designa-ção investigativa.

Nesses casos de implicação criminal, o ICD também pode se re-portar à polícia. Isso significa que suas recomendações podem acu-mular exercícios de tipificação penal (e penas correspondentes), quando dirigidas ao DPP, e sugestões disciplinares, quando direcio-nadas à polícia. O fato de reportar-se ao DPP não anula, portanto, interface com a corporação do suposto agressor. Quando a investi-gação está em andamento, espera-se inclusive que o ICD recomen-de o tratamento que a polícia deve dispensar ao acusado ou grupo de acusados. Antes de qualquer deliberação judicial, o investigado deve ser deslocado, por exemplo, para serviços internos que não in-cluam contato com o público.

Um dos dilemas originários desse segmento da instituição foi o de recrutar profissionais com experiência em investigações policiais e, ao mesmo tempo, assegurar a independência de seus quadros com relação à polícia. A admissão de ex-policiais poderia comprometer o princípio da autonomia. Por outro lado, profissionais sem conheci-mento específico poderiam não estar devidamente qualificados para as investigações. A solução foi compor uma equipe mista, mesclan-do investigadores com e sem passado profissional na polícia. Dentre os ex-policiais, houve uma preocupação em recrutar investigadores com perfil diferenciado, envolvidos em atividades de policiamento comunitário, por exemplo, e de preferência não-residentes na pro-víncia onde serviram para a polícia. Desta maneira, os dirigentes do ICD acreditam ter sido possível contornar o problema da fidelidade corporativa aos antigos colegas policiais e ao mesmo tempo contar com profissionais experientes.

Quanto às denúncias que não acusam grave agressão física ou ameaça à vida, são encaminhadas para monitoramento, o que sig-nifica que a própria polícia é encarregada de investigar o caso e em seguida prestar contas ao ICD, que tem poderes de direcionar o processo e pedir esclarecimento de pontos eventualmente con-

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siderados obscuros. Caso haja insatisfação com o andamento e/ou resultado da investigação policial, a instituição pode assumir a in-vestigação para si e exigir da polícia todos os documentos e infor-mações para tornar viável tal mudança de competência. Na maio-ria das vezes, entretanto, é a polícia que conduz a apuração até o final e requisita ao ICD aprovação dos resultados da investigação.

As principais críticas à instituição incidem sobre esses casos de monitoramento, em que se supõe acatamento da polícia a seu reper-tório de recomendações sem que um mecanismo legal efetivo ga-ranta esse alinhamento. Na prática, os poderes de monitoramento e recomendação encontrariam, no final do processo, o obstáculo do corporativismo policial, e não raro sucumbiriam a ele.

Além das atividades de investigação e monitoração, que consti-tuem a própria atividade-fim da instituição, existe também uma se-gunda matriz de ação, que é de gerência de informação e pesquisa. Em linhas gerais, trata-se de assegurar que todas as queixas sejam de-vidamente recebidas, analisadas, processadas, registradas e compar-tilhadas por todos os profissionais do ICD em todas as províncias. O setor deve ainda observar com minúcia o universo de reclamações encaminhadas para a instituição, buscando identificar problemas sistêmicos nas polícias. Ao atentar para padrões de desvio no exercí-cio da profissão policial, o ICD produz recomendações mais gerais, e não apenas restritas a casos particulares de desvio criminal, como costuma fazer. A concentração da instituição nas ações a posteriori não exclui, portanto, a possibilidade da prevenção. Muito pelo con-trário, do agregado de queixas pode resultar um mapeamento valio-so do tipo e da freqüência das ocorrências criminais. E dessa maté-ria-prima pode também derivar planejamento de ações específicas para antecipação ao crime.

Embora o ICD não tenha alcançado a maturidade institucional compatível com as expectativas de mudança associadas a ele, sem dúvidas demonstrou avanços neste sentido. A capacidade de aten-der às demandas por investigação ainda está distante de suas metas regulamentares e o repertório de ações preventivas ainda é explora-tório. Também a estrutura, os recursos e os quadros profissionais são considerados muito aquém da demanda realmente existente. Contu-do, o benefício em relação à situação anterior é inestimável.

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polICe ombudsman for northern Ireland: o CASo NoRTE-iRLANDÊS

A violência também é marco incontornável da conturbada história política e social da Irlanda. A arqueologia do conflito na região re-vela a consolidação de antagonismos inconciliáveis, que assumiram contornos religiosos, políticos e sociais (Terence, 2004).

A disputa do território irlandês por católicos e protestantes tem his-tória longa, permeada pelo ódio recíproco. A consolidação das dife-renças aconteceu ao longo de séculos. Aos olhos irlandeses, os in-gleses significavam ameaça à sua soberania e seus costumes. Aos olhos ingleses, os irlandeses representavam o atraso e a ocupação indevida de terras que lhes eram caras. A dissidência resultou na di-visão do país em 1921, separando as 26 províncias do Sul das seis do Norte. A anexação da porção norte do país ao governo inglês não findou, contudo, o projeto católico da Irlanda unida.

As campanhas do IRA pela unificação nacional atravessaram o sé-culo, alternando épocas de recuo com tempos de maior recrudesci-mento no uso da força. A organização armada da militância católica era apenas um dos atores em disputa. Às forças do Estado inglês so-mavam-se informalmente os grupos armados protestantes partidários do arranjo político que garantia a supremacia inglesa.

Naquele ambiente rotineiramente abalado pela violência do Es-tado e dos chamados grupos paramilitares, floresceu, a partir de meados nos anos 60, um movimento pacífico de reivindicação dos direitos civis, de nítida inspiração norte-americana. A incapacida-de do governo em lidar com esta nova modalidade de resistência católica e o respectivo fracasso em corresponder minimamente à sua pauta de reivindicações acabou por estimular a rearticulação do movimento católico republicano em bases armadas. O alvo do IRA passou a ser o exército inglês nas províncias do Norte, confor-me denominação católica, ou na Irlanda do Norte, segundo desig-nação dos protestantes.

A instabilidade da cena social produziu mutações freqüentes nos arranjos locais de poder, que incluiu acordos e curtos períodos de gestão compartilhada com os católicos. Os principais atores políti-cos de atuação local, inseridos ou não na política formal, eram, e em grande medida ainda são: os unionistas, divididos no Ulster Unio-

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nist Party e no Democratic Unionist Party; os nacionalistas, divididos entre os partidários do Social Democratic and Labour Party e o Sinn Féin, que não condena as ações armadas do IRA na causa da inde-pendência irlandesa, o que lhe custou a exclusão das conversas ofi-ciais; as organizações paramilitares católicas e protestantes, pauta-das no princípio da força como instrumento de autonomia política; o governo inglês; e o governo irlandês.

Esta trajetória social tortuosa esteve, enfim, notavelmente marcada pelo uso da força, seja pelo próprio Estado inglês, seja pelos grupos paramilitares, adeptos da causa republicana ou unionista. Embora a população na Irlanda seja de maioria católica, a maior concentra-ção de protestantes na porção norte do país fez dos católicos uma minoria local.

Assim, a violência policial na Irlanda do Norte, protagonizada pela maioria de policiais protestantes, esteve seletivamente voltada para a minoria católica. Este segmento mais vulnerável aos desman-dos do poder estatal acumulou, ao longo dos anos de conflito, uma sensação de injustiça associada à polícia. Os rancores que ainda ri-valizam os principais grupos da sociedade local decerto não se re-sumem aos temores católicos diante da polícia protestante; estão em boa medida concentrados nessa tensão ainda presente na relação com as forças de Estado.

Como no caso sul-africano, é importante notar que a memória da opressão não é facilmente suprimível, sobretudo quando se refere a um acúmulo social de centenas de anos. O processo de pacificação de um ambiente com sinais tão profundos do conflito, embora tenha marcos claros na história, tende a ser lento, gradual e permeado pela descon-fiança. Além da disposição compartilhada para a conciliação, a transi-ção deve envolver soluções institucionais capazes de lidar com as ex-pectativas e repertórios emocionais dos diferentes grupos sociais.

A criação do Police Ombudsman for Northern Ireland buscou jus-tamente cumprir o desafio de produzir a confiança na polícia, apla-car o sentimento de injustiça do segmento católico e abolir a idéia de parcialidade associada ao Estado. Instituída em novembro de 1999, a instituição resultou do amadurecimento de outros experi-mentos de controle externo da polícia ensaiados desde fins dos anos 70 na Irlanda do Norte.

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Em 1977, o Police Complaints Board, pautado nos moldes das or-ganizações de oversight já vigentes na Inglaterra e em Wales, ape-nas revisava as investigações policiais e avaliava a imparcialidade de seus resultados. Em 1987, com a edição de um novo Police Act, o princípio da independência assumiu forma mais aperfeiçoada. A partir de então, o novo Independent Comission for Police Complaints (ICPC), adequava-se mais às necessidades específicas da Irlanda do Norte, devendo supervisionar e orientar a investigação policial dos casos mais graves de alegada má conduta policial, resultantes ou não do registro de queixas. A principal inovação da instituição com relação ao modelo anterior esteve na determinação de monitora-mento simultâneo ao processo investigativo. O momento de inter-venção da comissão deslocava-se, portanto, de depois para duran-te as investigações, o que significou uma inscrição profissional mais ativa e menos cerceada pela polícia. A tarefa de averiguar alegações contra a polícia deixara, portanto, de ser exclusiva da própria polí-cia. A possibilidade de direcionamento das investigações significou um salto qualitativo com relação à situação anterior, em que o con-trole incidia sobre investigações concluídas.

Em linhas gerais, a trajetória que culminou na criação de um Ombudsman incrementado por plenos poderes de polícia (para li-dar com a polícia) e investigação criminal consistiu, portanto, em movimentos sucessivos de consolidação da autonomia com rela-ção à estrutura investigada. Dentre outros motivos, a falta de legi-timidade da polícia aos olhos de boa parte da população residia no fato de os policiais, claramente identificados com um dos gru-pos sociais em conflito, investigarem a si próprios. A possibilidade do reconhecimento social positivo de uma estrutura de controle da polícia estava, portanto, fundamentalmente atrelada à capacidade deste órgão de desassociar sua imagem daquela da instituição in-vestigada. Os funcionários do Ombudsman são civis e inteiramen-te destituídos de laços com a polícia. A instituição dispõe de orça-mento próprio e está diretamente submetida à Secretaria de Estado da Irlanda do Norte (Secretary of State).

Com relação à extinta estrutura do ICPC, o Police Ombudsman for Northern Ireland consolidou avanços fundamentais no tratamento formal das alegações contra policiais. Diante do universo variado de

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demandas da população, a designação de definir quais são as quei-xas meritórias de investigação ou resolução informal migrou para a nova instituição de controle independente. Isso significa que todas as reclamações, tal qual na África do Sul, independente do nível de gravidade associado a elas, são em primeiro lugar comunicadas ao Ombudsman, que pode ser acessado diretamente pelo público atra-vés de telefone, e-mail, fax, correio convencional ou visita pessoal à sede da instituição, em Belfast, onde estão concentradas todas as ati-vidades da instituição.

No caso de o reclamante encaminhar sua queixa a algum distrito policial, este tem obrigação de reportá-la imediatamente à organiza-ção de controle externo. A nova instituição assumiu, portanto, a ta-refa de avaliar qual tratamento deve ser dispensado a cada queixa. Da triagem pode resultar a destinação de casos aos investigadores independentes ou, nos episódios de menor gravidade, à própria po-lícia, sempre sujeita, contudo, à monitoração dos controladores ex-ternos. Em circunstâncias de insatisfação com o tratamento policial das queixas, o Ombudsman tem autonomia para tomar para si inves-tigações originalmente destinadas à polícia.

A essa estrutura incrementada foi ainda acrescido o poder de ini-ciativa de investigação em situações consideradas desfavoráveis ao interesse público. Isto significa que nenhuma queixa precisa ser for-malmente registrada para que a organização se lance na investiga-ção de um caso que considera passível de investigação.

Além das designações de tipo reativo, a nova instituição, ain-da na linha de sua precursora sul-africana, também tem atribui-ções de antecipação ao crime e às causas mais gerais de insatisfa-ção da população com a polícia. A avaliação atenta dos registros de queixas permite a observação de padrões de descontentamen-to, que podem inspirar recomendações mais gerais sobre condu-ta policial e, assim, evitar episódios futuros de transgressão. Esse recurso é ainda associado a pesquisas quantitativas e qualitativas destinadas a investigar a opinião da população com relação à po-lícia e ao próprio Ombudsman. Embora não obedeçam a um mo-delo ou periodicidade fixos, essas pesquisas são importante instru-mento de complementação das recomendações de ordem geral da instituição. O novo formato do controle de polícia não se circuns-

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creve, portanto, ao princípio de reação, mas se lança também ao desafio de antecipar-se aos episódios mais ou menos graves de in-satisfação com a polícia.

Para conjugar reação e prevenção, o Ombudsman abriga duas ses-sões principais: a de investigações e monitoração e a de políticas e práticas, que acumula as funções de pesquisa, produção de estatísti-cas e controle de qualidade.

Do universo de reclamações registradas, cerca de 30% não che-gam a mobilizar os investigadores, sendo concluídas nesse setor de queixas e resoluções informais. Boa parte dos registros simplesmen-te não são considerados adequados ao mandato da instituição e são descartados de sua agenda de intervenções, com devidas explica-ções aos reclamantes. Um dos princípios de seu estatuto de fundação é o de que a insatisfação com a polícia não lhe pode ser apontada genericamente, como desgosto com alguma estratégia operacional da corporação. A queixa encaminhada deve se reportar a um poli-cial ou um grupo de policiais em específico. Se a identificação do suposto(s) policial(is) desviante(s) não foi feita no momento da infra-ção alegada, o Ombudsman se dedicará a localizá-lo(s) com maior detalhamento possível da queixa e recursos a documentos e registros policiais. O fundamental para o registro do caso é que membros in-dividuais sejam apontados.

Quanto à resolução informal, não prevê punições disciplinares ou notificações ao Director of Public Prosecution. Quando subme-tido a este método, o desfecho favorável de um caso significa sim-plesmente que o reclamante decidiu encerrar a contenda após ou-vir explicações do policial e eventuais pedidos de desculpas. As queixas submetidas a esse tipo de tratamento devem resultar em conciliação direta entre polícia e reclamante, com monitoração do Ombudsman.

A decisão de encaminhar uma queixa para a resolução informal depende da não-identificação de implicação criminal do caso e da concordância do reclamante com o procedimento. Apesar desse tipo de solução ser denominado informal, não está isento de formalida-des. Ao aceite do reclamante com o método seguem-se etapas bem definidas de tratamento do caso registrado, com controle estreito dos passos da polícia pelo Ombudsman.

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O relatório da instituição referente ao biênio 2004/2005 informa que 74% dos casos encaminhados para a resolução informal tive-ram sucesso, 25% não tiveram sucesso e 1% resultaram em desis-tência. O alto índice de satisfação com o método informa sobre o tipo de expectativa dos reclamantes ao registrarem uma queixa con-tra a polícia. Dificilmente esperam punições severas contra os ale-gados agressores e não são motivados por uma lógica dura de reci-procidade. Em geral, basta-lhes o reconhecimento do suposto erro e a retratação. Nos casos de menor gravidade, tal tipo de conciliação é reconhecido pelos profissionais do Ombudsman como o mais efi-ciente, do ponto de vista do tempo e qualidade da resolução.

Quanto às investigações, são iniciadas quando a gravidade da queixa não é considerada, pelo Ombudsman ou pelo reclaman-te, compatível com a resolução informal. Também a solicitação do Secretário de Estado, do Chefe de Polícia, da ouvidora ou de um reclamante insatisfeito com o resultado da resolução informal pode instaurar um processo investigativo. Este processo, que tem o mesmo status e poderes da investigação policial, inclui basica-mente dois recursos. O primeiro deles é a entrevista com o recla-mante, com a(s) testemunha(s), se existirem, e com o(s) policial(is) acusado(s), não podendo nenhuma das partes recusar-se à con-tribuição. O segundo instrumento é de natureza material: inclui toda sorte de documentos policiais disponíveis, além de informa-ções da perícia, que é plenamente autônoma com relação à po-lícia e goza de autonomia no orçamento e na definição de seus quadros profissionais.

Além das investigações referidas a casos recentes, a instituição se ocupa ainda da chamada investigação retrospectiva. Do troubled past irlandês muitas ainda são as mortes não explicadas. Dos incon-táveis crimes cometidos pela polícia e pelo exército nos anos mais duros de repressão, vários não foram apurados com o rigor espera-do pelas famílias. Muitas investigações foram arquivadas sem a de-vida acusação criminal do(s) culpado(s). Com a criação do Ombu-dsman, foi aberta a possibilidade de rever as investigações policiais alegadamente negligentes. Não se trata, portanto, de reinvestigar os casos, mas de investigar as investigações policiais conclusas e ava-liar suas possíveis falhas e omissões. A condição para o registro deste

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tipo de demanda é uma argumentação consistente dos motivos pe-los quais o reclamante considera a investigação policial insuficien-te ou então a indicação de alguma nova prova material ou testemu-nhal do caso.

Em outubro de 2005, quando foi feita esta pesquisa, a investigação de 40 casos de crimes cometidos por policiais há vinte ou trinta anos estava sob investigação. Não é surpresa o fato de que cerca de 80% dos registros deste tipo são de famílias católicas, especialmente vul-neráveis ao sentimento de injustiça policial.

Tendo em vista a demanda crescente deste tipo de investigação, desde janeiro de 2005 uma equipe de investigadores foi especial-mente designada para esta modalidade de solicitação. Segundo o diretor do setor recém-criado, uma série de dificuldades específi-cas corresponde a este tipo de investigação. Em primeiro lugar, são todos casos que envolvem um tempo enorme de apuração e tam-bém grande incerteza quanto às possibilidades efetivas de reso-lução. A escassez e/ou desorganização de documentos da época combinada ao fato de suspeitos e testemunhas já terem morrido, estarem muito idosos ou não se disporem a colaborar com a inves-tigação tornam a apuração muito árdua e dificilmente passível de resolução. Além disso, ao investigador retrospectivo cabe também um olhar relativo ao tempo ao qual se reporta. O desafio de pensar em todas as limitações policiais de métodos e estruturas da época em que a investigação foi empenhada deve ser preocupação per-manente de seu trabalho. Por todos esses motivos, o setor de inves-tigação retrospectiva é bastante diferenciado do tipo de trabalho mais corrente no Ombudsman. Seus métodos e tempos são essen-cialmente distintos.

A despeito do altíssimo custo material e temporal das investiga-ções e também das fortes possibilidades de frustração associada a elas, a escolha da ouvidora em não descartá-las tem clara orienta-ção política. Embora o Ombudsman não tenha nenhuma obrigação formal em responder a esse tipo de demanda, as chamadas inves-tigações retrospectivas foram consideradas muito importantes para o objetivo de produzir confiança da população na polícia, sobretu-do do segmento católico, e consolidar a imagem de imparcialida-de do Ombudsman.

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Se o pouco tempo de funcionamento da instituição inibe consi-derações mais acuradas sobre seu impacto social, as pesquisas de opinião com altos níveis de detalhamento apontam, entretanto, para aceitação crescente da instituição dentre policiais e comunidades. A monitoração permanente da imagem pública da instituição e da polí-cia orienta a adequação às expectativas mais difundidas com relação à polícia e ao próprio Ombudsman. Dispondo de melhores estrutura e recursos que sua similar sul-africana, seus resultados são mais próxi-mos das expectativas iniciais e suas projeções para o futuro próximo são de expansão das atividades. As resoluções informais, por exem-plo, deverão migrar da polícia para um novo setor de conciliação da instituição, que demandará razoável incremento de pessoal. O movi-mento geral da instituição, apesar de uma ou outra expressão de insa-tisfação, é, portanto, de maturação e crescente legitimidade social.

CoNSiDERAÇõES FiNAiS E SUGESTõES PARA o CASo BRASiLEiRo

Se as instituições brasileiras de controle claramente não são ca-pazes de lidar com a quantidade e gravidade dos crimes policiais, a novidade sul-africana e sua similar norte-irlandesa constituem im-portante subsídio para reflexão aplicada ao caso nacional. Naqueles países, a radicalidade dos experimentos esteve localizada em mo-mentos de inflexão de suas histórias políticas. Ao contrário das ou-vidorias brasileiras, o princípio de autonomia dos controladores foi combinado a dotações orçamentárias substantivas, além de signifi-cativa ampliação de poderes.

No elenco de vantagens comparadas das organizações estrangei-ras com relação às nossas estão as políticas de prevenção associa-das às suas rotinas de controle. Os experimentos internacionais es-tudados, embora não tenham ainda atingido o nível de maturação pretendido, têm tido êxito razoável na conciliação entre movimen-tos de reação e prevenção criminal. Embora sua designação formal esteja referida ao momento posterior à incidência do crime, o poten-cial de antecipação ao desvio tem merecido maior atenção por par-te dos gestores dessas organizações.

O tema vigília da polícia não significa, portanto, ruptura necessá-ria com os clamores generalizados por prevenção. Muito pelo con-

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trário: a consecução cuidadosa do controle produz, indiretamente, efeitos antecipatórios. E dois são os caminhos possíveis dessa reins-crição temporal. Um deles é a já mencionada interrupção de rotinas de criminalidade pela observação minuciosa dos padrões de desvio policial. O outro caminho é a contenção da violência policial por efeito do trabalho bem conduzido das instituições de controle. Isto é, o triunfo das estruturas de Ombudsman da polícia reside, no mé-dio ou longo termo, na sua capacidade de ressignificar a interação entre polícia e população, alterando a impunidade tradicionalmente associada aos crimes policiais e, deste modo, incrementando a con-fiança depositada na polícia.

No Brasil, a configuração ideal das estruturas de controle pode in-cluir soluções que contornem o caminho legal, embora dificilmen-te escapem à resistência corporativa. Este é o caso da disposição an-tecipatória já formalmente prevista para o Ministério Público. Maior benefício teria o mecanismo de controle da polícia se efetivamen-te configurado como diretamente reativo e indiretamente preventi-vo, tal qual seus similares sul-africano e norte-irlandês. Da incidên-cia do controle devem resultar registros minuciosos para um valioso banco de dados de onde podem ser inferidos padrões de crimina-lidade policial e estratégias associadas de antecipação ao crime. O refinamento desse instrumento deve permitir a detecção da dinâmi-ca criminal e suas ondas migratórias. O controle deve ser flexível o suficiente para acompanhar a capacidade incessante de metamorfo-se do seu objeto.

Quanto às medidas de remodelação das estruturas de vigília da polícia que dependem de alteração legal, são basicamente três. A primeira delas deve incluir um método de resolução de pequenos conflitos, como o norte-irlandês. A grave influência que os peque-nos desvios de conduta policial podem ter na degradação das re-lações da população com a polícia é, muitas vezes, passível de minimização por soluções simples que envolvem conciliação en-tre agressor e agredido. As comissões de Verdade e Conciliação, na África do Sul, e o recurso conciliatório norte-irlandês, apesar de reportarem-se a crimes de natureza e gravidade diversa, reve-lam que a expectativa das vítimas não é, necessariamente, de jus-tiça formal. O sucesso daqueles experimentos se funda na supo-

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sição de que a agressão não inspira necessariamente o desejo de retribuição exata da carga de sofrimento originalmente impingida. Não raro o clamor por justiça é suprido por retratações informais que revelem arrependimento do agressor. Isto provavelmente sig-nifica níveis razoáveis de satisfação por parte das vítimas, além de notável simplificação de procedimentos, se tomado como termo de comparação o cumprimento de longos, e muitas vezes infrutí-feros, processos investigativos.

A segunda medida importante de redesenho das estruturas de con-trole de polícia implica forte incremento da sua capacidade de ação por uma dupla concessão de poderes. São estes poderes os de po-lícia para o trato com a polícia e os de investigação criminal para acesso irrestrito a documentos policiais de toda sorte. Tais são as condições de possibilidade para um padrão de intervenção condi-zente com a expectativa de um controle independente da polícia. Na África do Sul e na Irlanda do Norte, foram essas alterações que deram o tom da radicalidade das reformas empenhadas.

Por fim, a criação de um sistema de perícia independente, confor-me o modelo norte-irlandês, é uma das condições basilares de au-tonomia do controle. Transformado numa autarquia ou numa funda-ção com autonomia funcional, administrativa e financeira, o novo formato faria os peritos independentes da esfera de influência poli-cial, tornando-os aptos a prestar serviços para dois clientes: a pró-pria polícia e o organismo independente de controle da polícia, seja este a ouvidoria ou o Ministério Público. A supressão do status mi-litar dos peritos sem dúvida suscitaria protestos, mas o benefício da medida certamente superaria o estorvo associado.

Considerando o mapa do controle já existente no país, o Ministé-rio Público, em razão do conjunto de poderes de que já dispõe e do razoável respaldo e prestígio públicos de que goza, parece ser um abrigo conveniente para medidas de fortalecimento e autonomiza-ção das estruturas de investigação criminal da polícia. Contudo, a especulação de uma cena radical de alteração do quadro do con-trole de polícia, como testemunhada na África do Sul e na Irlanda do Norte, poderia encontrar maior benefício no incremento das ou-vidorias de polícia, unicamente destinadas à tarefa do controle. Ao contrário do Ministério Público, que padece de grave dispersão in-

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vestigativa em razão das diversas e excessivas demandas que o mo-bilizam, as ouvidorias têm um claro foco de ação. A gravidade e a especificidade do problema da violência policial inspiram, afinal, tratamento exclusivo.

• • •

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UMA ANÁLiSE DA FREQÜÊNCiA E Do ATRASo ESCoLAR DAS CRiANÇAS BRASiLEiRAS1

Danielle Carusi Machado

1 Gostaria de agradecer Phillippe Leite e Alinne Veiga pela ajuda na formatação dos dados.

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Ao longo da década de 90, ocorreu uma melhora dos indicadores educa-cionais brasileiros. Apesar desses avanços, o maior problema com relação à escolaridade das crianças no Brasil relaciona-se ao seu progresso ao longo do sistema escolar. Três fenômenos interagem entre si para determinar o atra-so escolar: (i) a idade de entrada na escola, (ii) a repetência escolar e (iii) a saída precoce da escola.Destacamos dois principais aspectos ressaltados na literatura capazes de in-fluenciar o nível de escolaridade das crianças: a renda familiar e a educação da mãe. Como a entrada e a permanência na escola envolvem custos, o total de recursos familiares é chave para determinar o montante gasto no inves-timento do capital humano. A educação da mãe, por sua vez, tem efeitos indiretos e diretos sobre a educação dos filhos: pais mais educados possuem um nível de rendimentos mais alto, portanto, mais recursos direcionados ao investimento de capital humano dos filhos; e podem ajudar mais no pro-cesso de aprendizagem. Focando no grupo de crianças de 7 a menos de 9 anos de idade, pertencente à classe de renda mais baixa e cuja mãe tem o menor nível educacional, procuramos delimitar o impacto que as variáveis das mães e da renda têm sobre o ingresso escolar.

Throughout the nineties educational indicators in Brazil improved. Despite this, the main educational issue for children is related to their progression in school. Three phenomena interact to determine the age-grade lag: (i) age on onset of the education cycle; (ii) failure to progress due to underachieve-ment; and (iii) withdrawal.Two main aspects that affect level of schooling of children are highlighted in literature: family income and mother’s education. As entry and permanence in school involve costs, family financial resources determine investment in human capital. The mother’s education level impacts directly and indirec-tly her children’s education: higher educated parents have higher income, and, therefore, more resources to invest in their children’s human capital; and they are also better tooled to assist their learning process. Focusing on children from seven to under nine years of age, of lower income stratum, with low educated mothers, this work will delimitate income and mothers education variables on onset of schooling.

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i. iNTRoDUÇÃo

Ao longo da década de 90, ocorreu uma melhoria dos indicadores educacionais em todas regiões do Brasil. Conforme dados da Pesqui-sa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), a taxa de anal-fabetismo das crianças brasileiras de 7 a 14 anos de idade ficou em torno de 9,4% em 2003, 11 pontos percentuais abaixo da registrada em 1992. Houve também aumento significativo da freqüência esco-lar das crianças, inclusive nas áreas cuja carência educacional era mais expressiva, como no Norte e no Nordeste. Enquanto em 1992 cerca de 87% das crianças de 7 a 14 anos de idade freqüentavam a escola, em 2003 esta proporção subiu para mais de 97%, como pode ser visto no Gráfico 1 abaixo.

98,0

96,0

94,0

92,0

90,0

88,0

86,0

84,0

Gráfico 1Taxa de escolaridade das pessoas de 7 a 14 anos de idade%

1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003

fonte: pnad/IbGe, vários anos.

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Apesar desses avanços, o maior problema com relação à escola-ridade das crianças no Brasil relaciona-se ao progresso ao longo do sistema escolar. Se a criança está matriculada na escola, ela está no nível compatível com sua idade e formação?

O atraso escolar — calculado a partir da idade da criança e da sé-rie escolar considerada legalmente adequada para a sua faixa etária — é comum em diferentes países do mundo, sobretudo nos países menos desenvolvidos (Glewwe e Jacoby, 1995; Dureya, 1998; Ha-nushek, 1992). No Brasil, aproximadamente 20,5% das crianças en-tre 7 e 15 anos de idade, em 2003, tinham defasagem idade-série. Três fenômenos interagem entre si para determinar o acúmulo da de-fasagem idade-série de uma criança:

1. O ingresso na escola: se ela não entra no sistema escolar na idade considerada legalmente correta (7 anos);2

2. A repetência escolar: mesmo que ela ingresse na escola na idade correta, pode não conseguir progredir continuamente no sistema escolar, freqüentando um nível educacional abaixo do correto para a sua faixa etária;3

3. A saída precoce do sistema educacional: ela se ausenta da escola antes de completar o ciclo educacional básico obrigatório (evasão escolar).

Investigamos esses três pontos conjuntamente usando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2003 (Pnad/IBGE). Analisamos alguns dos principais fatores que influenciam a não-freqüência escolar das crianças em idade de estarem na escola e o acúmulo da defasagem idade-série. Restringimos a análise aos

2 Destacamos que, neste artigo, analisamos a evolução da escolaridade até o ano de 2003. Neste período, a idade de entrada obrigatória na escola era de 7 anos e a educação fundamental era constituída de oito anos. Logo, toda a análise feita neste artigo seguirá este arcabouço legal. Análises posteriores, que possam vir a ser feitas com dados mais recentes, deverão incorporar as mudanças legais ocorridas a partir de 2005. Conforme veremos na seção II, a obrigatoriedade e a idade de entrada foram modificadas.3 As diferenças entre o grau de escolaridade atingido pelas crianças no Nordeste e em São Paulo não são explicadas pelo atendimento escolar, mas principal-mente por suas taxas de repetência, segundo Barros e Lam (1993).

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fatores familiares, como a renda total, o nível de escolaridade dos pais e a inserção econômica da mãe no mercado de trabalho.

Calculamos a probabilidade de as crianças de 7 a 15 anos fre-qüentarem ou não a escola e identificamos as características in-dividuais e familiares que mais influenciam essa probabilidade. Os motivos da não-freqüência escolar diferem entre os grupos etários mais novos e mais velhos; por isso fizemos todas as esti-mativas separadamente.

Para as crianças mais novas, de 7 a 8 anos de idade, a não-fre-qüência escolar é geralmente influenciada pela entrada tardia no sistema educacional. Para as que têm entre 9 e 13 anos de ida-de, o atraso escolar associado à não-freqüência à escola pode es-tar ocorrendo principalmente devido a dois fenômenos: (i) a entra-da tardia na escola; (ii) a saída muito precoce da escola. Crianças de 14 a 15 anos de idade, por sua vez, podem ter saído da esco-la não de forma precoce como o grupo etário anterior, mas talvez devido aos desincentivos criados pela repetência ou insucesso es-colar.4 Essas crianças já ingressaram anteriormente no sistema es-colar; logo, a não-freqüência à escola está associada ao processo de abandono da vida de estudante.

Como o grupo de crianças de 14 a 15 anos é afetado pelas diver-sas óticas que determinam o atraso educacional — evasão, repetên-cia e ingresso tardio —, restringimos a análise da existência de defa-sagem idade-série a esse grupo.

No artigo, destacaremos alguns aspectos já abordados na literatu-ra5 que influenciam o nível de escolaridade das crianças: a renda fa-miliar, a educação e a inserção econômica da mãe.

Como a entrada e a permanência na escola envolvem custos, o

4 A taxa de evasão escolar sempre foi alta entre as crianças mais pobres, segun-do Ribeiro (1991). Esse autor mostra que a principal causa do abandono escolar é o histórico de repetências das crianças. Leon e Menezes (2002) também mos-tram que um dos fatores capazes de explicar a evasão escolar é a experiência de repetência que desestimula a permanência na escola. 5 Para citar alguns autores desta literatura: Marteleto (2004), Psacharopoulos e Arriagada (1989), Dureya (1998), Saha (2004), Barros e Lam (1993), Kas-souf (2001), Barros, Mendonça e Velazco (1996), Menezes-Filho et alii (2000), dentre outros.

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total de recursos familiares é chave para determinar o montante a ser gasto no investimento do capital humano.6 A educação dos pais, por sua vez, tem efeitos indiretos e diretos sobre a educação dos fi-lhos (Currie e Moretti, 2003; Wolfe, 1982). Os primeiros estão as-sociados ao fato de que pais mais educados possuem um nível de rendimentos mais alto e, portanto, mais recursos para serem dire-cionados ao investimento de capital humano dos seus filhos. Os se-gundos relacionam-se às preferências bem como às economias de escala no processo de aprendizagem. O apoio dos pais é sempre um insumo de grande importância na produção de escolaridade — quanto mais alta a escolaridade dos pais, menores tendem a ser as dificuldades e os custos de aprendizagem dos filhos.

A entrada da mãe no mercado de trabalho pode influenciar a fre-qüência da criança na escola positivamente. O efeito inverso tam-bém pode ocorrer, ou seja, com a criança na escola, a mãe pode ter uma atividade profissional, pois tem com quem deixar seu filho durante o dia. Destaca-se que analisamos também o impacto des-sas variáveis sobre o atraso escolar das crianças mais velhas, pois as mães que trabalham, por exemplo, não conseguem destinar par-te do seu tempo para monitorar o estudo dos filhos.

O artigo está organizado da seguinte forma: na seção seguinte, fazemos um breve resumo sobre o sistema educacional brasilei-ro; na seção 3, descrevemos alguns números gerais sobre a edu-cação; na seção 4, apresentamos a base de dados e os principais conceitos utilizados; na seção 5, descrevemos os fatores familia-res e individuais que influenciam a probabilidade de a criança não freqüentar a escola; na seção 6, focamos no atraso escolar das crianças de 14 a 15 anos de idade. Na seção 7, traçamos nos-sas considerações finais.

ii. o SiSTEMA EDUCACioNAL BRASiLEiRo

No início da década de 60, o sistema educacional brasileiro era dividido em duas etapas: o ensino primário e o médio. O primário

6 Existe uma grande discussão sobre os critérios de alocação desses recursos entre os membros da família e entre os diferentes tipos de despesas (alimentação, lazer, educação, etc.), conforme Thomas (1990).

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era composto por, no mínimo, quatro anos, sendo factível sua ex-tensão para seis anos. Todas as crianças a partir dos 7 anos de ida-de deveriam se matricular na escola primária.7

A educação média era destinada à formação dos adolescentes. Essa fase era constituída por dois ciclos: o ginasial e o colegial. A inscrição na Primeira Série do ciclo ginasial somente era feita após a conclusão do curso primário e a criança deveria ter ou fazer 11 anos ao longo do ano letivo. Para a matrícula na 1ª Série do ciclo colegial o pré-requisito era a conclusão do ciclo anterior. O gina-sial tinha quatro séries anuais e o colegial pelo menos três séries.

A partir da reforma do ensino de 19718, incorporou-se à escola pri-mária básica de quatro anos a antiga escola secundária de 1º ciclo (ginasial), ampliando, assim, de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória. Criou-se o ensino de 1º grau composto de oito anos leti-vos (da 1ª. a 8ª série) e o ensino de 2º. grau, formado por três ou qua-tro séries anuais, que correspondiam ao ensino médio colegial.

Com a reforma, o Estado teve que ampliar a capacidade de aten-dimento da sua rede escolar, incorporando estudantes que finali-zavam o primário. A expansão do sistema físico foi feita de forma desordenada e sem planejamento. Muitas crianças moravam afas-tadas das escolas que ofereciam as séries do ciclo ginasial de 5ª. a 8ª. Existiam vários problemas de infra-estrutura, como prédios não-finalizados, escassez de material didático etc. (Nunes, 1996). Além disso, a estrutura curricular do 1º ciclo ginasial não se adequou à nova clientela que ingressava nessa etapa da vida escolar. O perfil dos professores e a prática pedagógica adotada não eram integrados ao antigo ensino primário de quatro anos, dificultando a progres-são do aluno na nova etapa, e conseqüentemente, desestimulando a continuidade da escola. A extensão das matrículas na escola pública até a oitava série do ensino fundamental foi obtida mediante a ado-ção de soluções emergenciais, gerando diferentes problemas, sobre-tudo de evasão escolar e acúmulo de defasagem idade-série.9

7 Lei nº. 4,024, de 20-12-1961.8 Lei nº. 5.692 de 11-08-1971.9 É importante destacar que alguns destes problemas apresentados após a reforma de 1971 persistem nos dias de hoje, dificultando a progressão dos alu-nos no sistema educacional.

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O processo de mudança da legislação educacional a partir da década de 90 originou-se com a promulgação da Constituição de 1988. O ensino fundamental de oito anos foi confirmado como obrigatório e gratuito, mesmo para aqueles que não tinham finali-zado esta etapa escolar na idade considerada apropriada. O ensi-no médio, antigo ciclo colegial, destinado aos adolescentes de 15 a 17 anos, também passou a ser parte do ensino básico e obriga-ção do Estado. A Constituição de 1988, a Emenda Constitucional de 1996 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 previam a progressiva universalização e gratuidade dessa fase do ensino. Apesar de educação média não ser obrigatória para as pes-soas, passava a constituir a etapa final da educação básica, funda-mental para a consolidação e o aprofundamento dos conhecimen-tos gerais adquiridos no ensino fundamental.

O sistema educacional brasileiro passou a ser composto pela edu-cação básica — formada pela educação infantil (crianças de zero a 6 anos de idade), pelo ensino fundamental (duração mínima de 8 anos) e pelo ensino médio (duração mínima de 3 anos) — e pela educação superior.10

A educação infantil constituída do curso pré-escola e da creche (não obrigatória) representava o primeiro degrau da educação básica; sua finalidade era o desenvolvimento integral da criança até 6 anos de idade. O ensino fundamental tinha duração de oito anos, sendo obrigatório e gratuito na escola pública, atingindo, portanto, todas as crianças entre 7 e 14 anos completos de idade. Esta etapa escolar era formada pelo antigo ensino regular de 1º. grau: 1ª a 4ª e 5ª a 8ª sé-ries do primário e do ginásio, respectivamente. Adolescentes que não conseguiam seguir o curso regular também tinham a opção de se ma-tricularem nos cursos supletivos de ensino fundamental.

Enfatizamos que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 abordou a necessidade do ensino obrigatório de nove anos e

10 O ensino superior é constituído pela graduação ou pelos cursos univer-sitários no nível de pós-graduação. A duração desses cursos depende da carreira seguida por cada estudante bem como da faculdade na qual está matriculado. Em 2003, existiam aproximadamente 4,3 milhões de pessoas freqüentando curso superior e 300 mil inscritos em cursos de mestrado ou doutorado, a maioria na faixa etária de 18 a 31 anos.

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deste ser iniciado aos 6 anos de idade. Esta meta foi contemplada pela Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE), onde se estabeleceu a progressiva im-plantação do Ensino Fundamental de nove anos, com a inclusão das crianças de 6 anos.

Em 2005, a Lei nº 11,114/2005 tornou obrigatória a matrícu-la das crianças de 6 anos de idade no Ensino Fundamental11, al-terando os Arts. 6º, 32 e 87 da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional (Lei nº 9.394/1996). Contudo, apenas na Lei nº 11.274/2006 que o ensino fundamental obrigatório começa a ter duração de nove anos, iniciando-se aos 6 anos de idade. A par-tir desta data, o movimento de ampliação do ensino fundamental deve começar a generalizar-se.

iii. CARACTERÍSTiCAS GERAiS DA ESCoLARiDADE

Cerca de 1,4 milhão de crianças brasileiras freqüentavam creches em 2003, representando 11,7% do universo de crianças com menos de 3 anos de idade. A partir dos 4 até 6 anos, aproximadamente 6,5 milhões de crianças estavam inscritas no curso pré-escolar.

Apesar do ingresso na escola para todas crianças com idade entre 7 e 14 anos ser considerado obrigatório em 2003, exis-tiam algumas que não estavam inscritas no ensino fundamental, na creche ou no curso pré-escolar. Como podemos ver na Tabe-la 1 adiante, cerca de 4,3% e 2,1% das crianças de 7 e 8 anos de idade, respectivamente, não estavam no sistema escolar. Nes-se caso, o atraso educacional estaria associado principalmente à entrada tardia no sistema, ao invés da ocorrência de evasão ou de repetência.12

Existia também o grupo de crianças que entrava na escola, con-

11 “O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública a partir dos seis anos”, conforme Lei nº 11,114/2005.12 Destacamos também que o questionário da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios é aplicado no mês de setembro de cada ano; logo, uma criança que tem 7 anos em setembro pode não freqüentar a escola simplesmente porque fez aniversário no segundo semestre, e, no início do ano, ainda não tinha a idade adequada para freqüentar a escola.

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tudo não dava continuidade aos estudos, deixando o sistema edu-cacional antes do término do curso fundamental. De acordo com a quinta coluna da Tabela 1, a proporção de crianças matriculadas na escola por faixa etária crescia até os 11 anos de idade para posterior-mente declinar. Das crianças com 14 e 15 anos completos de ida-de, 6,0% e 10,3% não freqüentavam a escola no ano de 2003, cer-tamente devido à evasão escolar e não necessariamente ao ingresso tardio na escola, tendo em vista que muitas já tinham uma parte do ensino fundamental.

Tabela 1: Crianças de 7 a 15 anos de idade segundo a freqüência escolar, Brasil Freqüentam escola?

Valores absolutos Valores relativos

idade não sim Total não sim Total

7 144 804 3 236 087 3 380 891 4,3% 95,7% 100%

8 71 254 3 297 385 3 368 639 2,1% 97,9% 100%

9 57 203 3 281 495 3 338 698 1,7% 98,3% 100%

10 50 041 3 262 866 3 312 907 1,5% 98,5% 100%

11 48 651 3 193 969 3 242 620 1,5% 98,5% 100%

12 56 826 3 163 600 3 220 426 1,8% 98,2% 100%

13 111 762 3 193 316 3 305 078 3,4% 96,6% 100%

14 202 925 3 173 058 3 375 983 6,0% 94,0% 100%

15 366 940 3 196 932 3 563 872 10,3% 89,7% 100%

7 a 15 anos 1 110 406 28 998 708 30 109 114 3,7% 96,3% 100%

fonte: pnad/IbGe, 2003.

O ensino médio correspondia à etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos (1ª, 2ª e 3ª série). O público-alvo é forma-do pelas crianças que terminaram o ensino fundamental. Para os que não conseguiram prosseguir no curso regular, há também o curso su-pletivo de ensino médio. Segundo os dados da Pnad, em 2003 existiam 9,3 milhões de brasileiros freqüentando essa etapa escolar. A maioria matriculada no ensino regular (8,5 milhões), ao invés do supletivo.

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No Gráfico 2 abaixo, descrevemos a função densidade popula-cional segundo os grupos de idade para cada etapa ou curso escolar descritos acima. Podemos notar que o curso regular de ensino funda-mental é freqüentado principalmente por crianças entre 5 e 14 anos de idade (81,3%). Grande parte dos alunos do ensino médio tem entre 16 e 18 anos de idade. A idade média nos cursos supletivos é mais elevada, destinando-se principalmente aos estudantes que não conseguiram seguir o curso regular na idade adequada.

Gráfico 2Distribuição das pessoas por idade (segundo o curso que freqüentava)

.2

.15

.1

.05

0

5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30

idade

regular ensino médio

supletivo ensino fundamental supletivo ensino médio

regular ensino fundamental

fonte: pnad/IbGe, 2003.

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iV. BASE DE DADoS E CoNCEiToS

A base de dados utilizada para investigarmos os principais fato-res que influenciam a freqüência escolar e a defasagem idade-sé-rie é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE) de 2003. Essa pesquisa amostral abrange todas regiões brasileiras, com exceção da área rural do Norte.13 Contém informações so-bre diversas características sociais, econômicas e demográficas das pessoas residentes nos domicílios. A partir do uso dos microdados, podem ser cruzados os dados das pessoas da mesma família e do domicílio, permitindo a construção de indicadores sobre condi-ções de vida e bem-estar social, como renda familiar per capita ou composição familiar.

No tocante ao assunto de nosso interesse, conseguimos obter in-formações sobre as crianças que, em 2003: (i) freqüentavam a esco-la (grau e série); (ii) não freqüentavam a escola, mas que já tinham freqüentado anteriormente (o grau e a série que freqüentaram e con-cluíram); (iii) não freqüentavam a escola e nunca tinham freqüentan-do anteriormente.

Com esses dados, construímos dois indicadores que refletem o processo de escolarização das crianças:

• Freqüência escolar: igual a 1 se a criança está na escola e 0, caso contrário.• Defasagem idade-série: igual a 1 para todas as crianças da nos-sa amostra (7 a 15 anos) que: (i) evadiram da escola; (ii) freqüen-tavam a escola, mas não tinham os anos de estudos compatíveis com a sua idade e (iii) não freqüentavam a escola e não tinham os anos de estudos compatíveis com a sua idade. 14

Como pode ser visto no Gráfico 3, a proporção de crianças com defasagem escolar aumenta continuamente com a idade. Aproxi-madamente 56% das crianças com 15 anos de idade possuem de-

13 Tocantins é o único estado da Região Norte onde a área rural é investigada.14 Uma criança que segue um padrão de escolaridade normal em 2003 entra na escola com 7 anos de idade e termina a 8ª série do primeiro grau com 15 anos. Seguimos esse padrão para definir a defasagem idade-série.

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fasagem escolar. Para todas crianças de 7 a 15 anos (66,6 mil crian-ças),15 essa porcentagem é de 31%.

Além dos aspectos educacionais, construímos alguns indicadores sobre as condições de vida e as características individuais das crian-ças que influenciam o ingresso e o progresso na escola, como: sexo, cor, faixa etária, local de moradia (área metropolitana, região e se área rural), renda total familiar per capita16, escolaridade da mãe, se a mãe está economicamente ativa, se está ocupada e se tem um em-

15 Optamos por incluir no universo pesquisado crianças com 15 anos de idade. A idade reportada na Pnad é de setembro de cada ano e, como muitas cri-anças fazem aniversário no segundo semestre, elas não eram obrigadas a entrar no sistema educacional se tivessem 7 anos em setembro. 16 Todas as variáveis da mãe foram construídas a partir do número da ordem da mãe. Para as crianças que não tinham mãe presente no domicílio, imputamos os dados do chefe ou cônjuge da família do sexo feminino.

Gráfico 3Proporção de crianças com defasagem idade-série segundo a idade

.5

.4

.3

.2

.1

.0 7 8 9 10 11 12 13 14 15

mea

n of

rep

et

fonte: pnad/IbGe, 2003.

p. 36-65

49SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

prego formal17, total de irmãos e irmãs mais novos e mais velhos, to-tal de irmãs mais novas e mais velhas.

V. PRoBABiLiDADE DE FREQÜENTAR A ESCoLA

Neste artigo, queremos estudar aspectos que afetam a escolarida-de da criança, seja a freqüência ou a defasagem idade-série. São ba-sicamente duas perguntas: (i) se a criança freqüenta ou não a escola; e (ii) se a criança tem ou não defasagem idade-série. Para cada uma delas, existem apenas duas respostas: sim ou não.

Na análise econométrica, esses tipos de fenômenos devem ser es-tudados através da aplicação de modelos de variáveis dependentes binárias. Serão investigados os fatores que influenciam a probabili-dade (ou chances) de a criança estar na escola e de a criança ter de-fasagem idade-série. O modelo probit utilizado para estimar essa probabilidade mostra a relação entre as variáveis dependentes (fre-qüentar ou não a escola e ter ou não defasagem idade-série) e as va-riáveis explicativas (características educacionais dos pais etc..). O objetivo desta análise é identificar a existência ou não e, quando pertinentes, verificar o sentido das possíveis relações entre as variá-veis dependentes e as explicativas.

A vantagem em fazer esse procedimento econométrico é podermos identificar o efeito de cada uma das variáveis separadamente, sem a influência das demais. Por exemplo, quando focamos no impacto da escolaridade da mãe, estamos comparando crianças idênticas em to-dos os demais aspectos, com exceção dessa característica. Logo, as diferenças encontradas com relação à freqüência escolar dessas duas crianças seriam explicadas pelo grau de instrução da mãe.

Nesta seção, estimamos a probabilidade de a criança freqüentar ou não a escola para os três grupos etários (7 a 8 anos, 9 a 13 anos, 14 a 15 anos) e identificamos os principais fatores que influenciam as diversidades encontradas nestas probabilidades. O objetivo da análise por grupos etários é mostrar se existem grandes diferenças, no impacto dos fatores familiares sobre a freqüência escolar.

17 Definimos como ocupação formal as seguintes alternativas: emprego com carteira de trabalho assinada, militar, funcionário público estatutário, trabalhador doméstico com carteira assinada e empregador.

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A variável dependente é igual a 1 se a criança está na escola e 0, caso contrário. Incluímos como variáveis explicativas as caracterís-ticas descritas na seção anterior. A Tabela 2 apresenta os resultados encontrados nas estimações usando o modelo econométrico probit.

Tabela 2Estimação probit da probabilidade da criança estar na escola

7 a 8 anos de idade

Estar na escola coeficiente Dp robusto Efeito marginal X

ser menino -0,188 0,047 * -0,008 1

ser de cor não-branca -0,074 0,055 -0,004 0

domicílio localizado na:

área metropolitana -0,0207 0,055 * -0,009 1

área rural -0,135 0,062 ** -0,008 0

Região Nordeste 0,119 0,027 *** 0,005 0

Região Sudeste 0,343 0,081 * 0,025 1

Região Sul 0,360 0,101 * 0,013 0

Região Centro-oeste 0,058 0,090 0,003 0

idade da mãe 0,003 0,003 0,000 34,82

mãe está na PEA 0,042 0,091 0,002 1

mâe está ocupada 0,115 0,095 0,007 1

mãe tem uma ocupação forrmal 0,097 0,092 0,005 0

total de irmãs e irmãos mais novos -0,115 0,034 * -0,006 0,72

total de irmãs e irmãos mais velhos -0,068 0,025 ** -0,004 1,02

total de irmãs mais velhas 0,028 0,043 0,001 0,49

total de irmãs mais novas -0,015 0,047 -0,001 0,35

log da renda familiar per capita 0,056 0,020 * 0,003 4,64

anos de estudos completos da mãe 0,056 0,008 * 0,003 6,01

constante 1,351 0,167

observações: 14 482 Pr(dfreq) = 0,9785

Wald chi2(25) 305,31

p. 36-65

51SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

Prob>chi2 0,000

Pseudi R2 0,0987

fonte: pnad/IbGe, 2003nota: desvio padrão ajustado para existência de cluster (crianças dentro das mesmas famílias)*significativo a pelo menos 1%, **significativo a pelo menos 5%, ***significativo a pelo menos 10%efeito marginal foi calculado com referência aos valores da coluna X

Tabela 2Estimação probit da probabilidade de a criança estar na escola (continuação)

9 a 13 anos de idade

Estar na escola coeficiente Dp robusto Efeito marginal X

ser menino -0,088 0,035 * -0,002 1

ser de cor não-branca -0,004 0,044 0,000 0

domicílio localizado na:

área metropolitana -0,040 0,046 -0,001 1

área rural -0,074 0,049 -0,002 0

Região Nordeste 0,148 0,058 0,004 0

Região Sudeste 0,338 0,064 * 0,015 1

Região Sul 0,292 0,076 * 0,006 0

Região Centro-oeste 0,187 0,071 * 0,004 0

idade da mãe -0,002 0,002 0,000 38,58

mãe está na PEA -0,029 0,074 -0,001 1

mâe está ocupada 0,140 0,076 *** 0,005 1

mãe tem uma ocupação forrmal 0,083 0,071 0,002 0

total de irmãs e irmãos mais novos -0,053 0,024 ** -0,002 0,94

total de irmãs e irmãos mais velhos -0,008 0,022 0,000 0,87

total de irmãs mais velhas 0,013 0,036 0,000 0,40

total de irmãs mais novas 0,016 0,034 0,000 0,46

log da renda familiar per capita 0,057 0,018 * 0,002 4,77

anos de estudos completos da mãe 0,057 0,006 * 0,002 5,75

constante 1,490 0,145

observações: 35,071 Pr(dfreq) = 0,9887

Wald chi2(25) 282,69 0,9887

p. 36-65

SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 200752

Prob>chi2 0,000

Pseudi R2 0,0675

fonte: pnad/IbGe, 2003.nota: desvio padrão ajustado para existência de cluster (crianças dentro das mesmas famílias)*significativo a pelo menos 1%, **significativo a pelo menos 5%, ***significativo a pelo menos 10%efeito marginal foi calculado com referência aos valores da coluna X

Tabela 2Estimação probit da probabilidade de a criança estar na escola (continuação)

14 a 15 anos de idade

Estar na escola coeficiente Dp robusto Efeito marginal X

ser menino -0,008 0,034 -0,001 1

ser de cor não-branca -0,210 0,040 * -0,026 0

domicílio localizado na:

área metropolitana 0,022 0,042 0,002 1

área rural -0,065 0,048 -0,007 0

Região Nordeste 0,119 0,057 * 0,017 0

Região Sudeste 0,043 0,059 0,005 1

Região Sul -0,034 0,071 -0,004 0

Região Centro-oeste 0,052 0,070 0,003 0

idade da mãe 0,018 0,002 * 0,002 41,44

mãe está na PEA 0,051 0,077 0,055 1

mâe está ocupada 0,049 0,079 0,005 1

mãe tem uma ocupação forrmal 0,144 0,060 0,013 0

total de irmãs e irmãos mais novos 0,035 0,021 * 0,004 1,11

total de irmãs e irmãos mais velhos 0,015 0,028 ** 0,002 0,61

total de irmãs mais velhas 0,054 0,046 0,006 0,26

total de irmãs mais novas -0,008 0,031 -0,001 0,54

log da renda familiar per capita 0,097 0,017 * 0,010 4,90

anos de estudos completos da mãe 0,080 0,005 * 0,008 5,67

constante -0,235 0,142

observações: 14 633Pr(dfreq) = 0,09501

Wald chi2(25) 542,94

Prob>chi2 0,000

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53SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

Pseudi R2 0,0863

fonte: pnad/IbGe, 2003.nota: desvio padrão ajustado para existência de cluster (crianças dentro das mesmas famílias)*significativo a pelo menos 1%, **significativo a pelo menos 5%, ***significativo a pelo menos 10%efeito marginal foi calculado com referência aos valores da coluna X

De acordo com a Tabela 2, grande parte dos efeitos estimados se-gue a direção esperada. Os meninos têm uma probabilidade me-nor de freqüentar a escola do que as meninas. O coeficiente de “ser menino” é negativo e significativo para todos os três grupos etários. A probabilidade de as meninas abandonarem os estudos ou adia-rem a entrada na escola devido à inserção em atividades produti-vas seja diretamente no mercado de trabalho ou ajudando os fami-liares é menor que dos meninos. No grupo etário mais novo (de 7 a 8 anos de idade) esse efeito parece ser mais forte, sugerindo que para os meninos o ingresso tardio na escola é mais comum do que para as meninas.

Controlando pela renda familiar per capita e demais caracterís-ticas que influenciam o ambiente social no qual a criança está in-serida, observamos que o efeito de não ter cor branca não afeta significativamente a probabilidade de freqüência escolar dos dois grupos etários mais novos. Por outro lado, para as crianças mais ve-lhas, de 14 a 15 anos de idade, essa característica tem um forte im-pacto na probabilidade de sair da escola. Como pode ser visto na terceira coluna da Tabela 2, uma criança de 14 a 15 anos de cor não-branca reduz em 2,6 pontos sua probabilidade de freqüentar a escola quando comparada a uma criança de cor branca da mes-ma faixa de idade.

Com relação ao local de moradia das crianças, a probabilida-de de freqüentar a escola é maior nas regiões Sul e Sudeste e me-nor no Nordeste e no Norte. Se a residência for na área rural ou na metropolitana, a probabilidade de ingresso na escola das crianças mais novas é retraída. Crianças de 7 a 8 anos de idade que moram na área rural têm menor probabilidade de freqüentar a escola que outras crianças da mesma faixa etária. Esse impacto negativo pode refletir escassez de infra-estrutura escolar (escolas mais distantes)

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SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 200754

e, possivelmente, o fato de o trabalho infantil ser mais amplo nes-tas localidades.

Dado os controles de renda familiar e do nível educacional das mães, as características que descrevem a inserção profissional da mãe não são significativas. Apenas para o grupo de crianças de 9 a 13 anos de idade, o fato de a mãe estar ocupada aumenta sua probabilidade de estar na escola. Apesar de as mães alocarem menos tempo para as crianças, a escola é um lugar onde podem deixá-las enquanto estão no mercado de trabalho. Ou seja, a ida das crianças à escola influencia positivamente a participação da mulher no mercado de trabalho. As crianças ficam na escola du-rante a jornada de trabalho das mães, evitando que permaneçam em casa sozinhas.18

O coeficiente do grau de instrução da mãe é positivo e significati-vo para todos os grupos etários, resultado bem comum nesta litera-tura. Na verdade, parte da correlação entre a escolaridade dos pais e a dos filhos é explicada pelos aspectos permanentes da renda fa-miliar. O nível de instrução dos pais capta alguns desses aspectos, tendo em vista que a renda familiar calculada a partir da Pnad capta apenas os recursos familiares em um ponto no tempo.

O efeito da escolaridade da mãe parece ser mais forte para as crianças entre 14 e 15 anos de idade. Como pode ser visto na tercei-ra coluna da Tabela 2, um ano a mais de estudo completo da mãe aumenta em 0,8 ponto a probabilidade de a criança de 14 a 15 anos freqüentar a escola, enquanto para os outros grupos etários esse va-lor fica entre 0,2 e 0,3.

A escolaridade da mãe, além de agir indiretamente na probabili-dade da freqüência à escola, via renda permanente, também tem um efeito direto: mães mais educadas podem auxiliar mais as crianças, minimizando os custos de aprendizagem.

No tocante à renda familiar per capita, seu efeito é mais impor-tante para as crianças com idade entre 14 e 15 anos. O acréscimo de um ponto no logaritmo da renda familiar per capita eleva em um ponto a probabilidade de a criança de 14 a 15 anos freqüentar

18 As decisões da mãe quanto ao ingresso no mercado de trabalho e quanto à inserção de seus filhos na escola são tomadas de forma simultânea. O procedi-mento mais correto seria modelar conjuntamente essas duas decisões.

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55SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

a escola. Os acréscimos na renda familiar podem ter um papel não desprezível no acúmulo de capital humano, caso sejam usados na obtenção de bens facilitadores do aprendizado escolar (compra de livros, cadernos, etc.). Ter mais recursos afetaria, neste caso, positi-vamente o processo de aprendizagem das crianças. Por outro lado, crianças de famílias mais ricas estão usualmente inseridas em um contexto sócioeconômico e cultural favorável ao acúmulo de capi-tal humano (melhores escolas próximas ao local de moradia, maior contato com pessoas instruídas no ambiente familiar, etc.).

Outros fatores capazes de afetar a entrada da criança na escola bem como o investimento dos pais no capital humano dos filhos re-lacionam-se aos critérios de alocação intrafamiliar de recursos, con-forme Thomas (1990). O total de irmãos impacta negativamente a freqüência à escola, devido a uma concorrência maior pelo volume de recursos da família e pela disponibilidade de tempo dos pais. Em famílias maiores, normalmente mais pobres, os irmãos podem acu-mular tarefas de cuidar dos mais novos.

Os coeficientes negativos estimados indicam que quanto maior o número de irmãos, sobretudo os mais novos, menor a freqüência à escola. Quando desagregamos por grupos etários, o efeito do total de irmãos é negativo principalmente para as crianças com menos de 13 anos, possivelmente porque elas podem ser obrigadas a alocar uma parte do seu tempo para cuidar de seus irmãos mais novos.

No Gráfico 4, plotamos a probabilidade estimada da freqüência escolar para cada grupo etário, segundo uma população de referên-cia. A única diferença entre as duas curvas apresentadas é o total da renda familiar per capita. Na curva cinza, consideramos que todas as crianças tinham renda familiar igual à mediana da renda familiar per capita, enquanto, na curva preta, imputamos o valor da renda do quinto centésimo da renda familiar per capita. Algumas conclusões podem ser retiradas do gráfico:

(i) A probabilidade de freqüência escolar decresce com a idade.(ii) Crianças com renda familiar mais alta têm probabilidade mais elevada de freqüentar a escola do que crianças pertencen-tes às classes de renda mais pobres. A curva cinza sempre está acima da preta.

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(iii) O efeito da renda familiar parece ser mais forte para as crian-ças de 14 a 15 anos de idade do que para as mais novas. Com a retração da renda familiar, a probabilidade estimada de freqüen-tar a escola cai 3 pontos porcentuais para esse grupo etário. Essa redução é de apenas 0,7 e 0,4 ponto para as crianças de 7 a 8 e de 9 a 13 anos, respectivamente.

A não-freqüência à escola afeta principalmente o grupo etário de crianças mais velhas. Grande parte desse público já freqüentou a es-cola e não prosseguiu os estudos. Na próxima seção focaremos ex-clusivamente neste grupo etário e abordaremos a probabilidade de acumularem defasagem idade-série.

Vi. PRoBABiLiDADE DE TER DEFASAGEM iDADE-SÉRiE

Como o processo de acumulação de capital humano das crianças não está completo, a taxa de progressão pode ser uma boa medida para captar o aprendizado. A literatura educacional tem como esta-

fonte: pnad/IbGe, 2003.

100%

99%

98%

97%

96%

95%

94%

93%

92%

91%

90%7 a 8 9 a 13 14 a 15

log renda familiar per capita = mediana (4,78) log renda familiar per capita = 2,77

Gráfico 4Probabilidade estimada de freqüentar a escola segundo as faixas etárias

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57SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

belecido o fato de que quanto maior o atraso educacional menor o nível de escolaridade atingido.19

Logo, uma política que vise combater as desigualdades educacio-nais deveria também abordar as desigualdades no progresso ao lon-go do sistema escolar. Uma proxy para o atraso educacional é a defasagem idade-série das crianças, sobretudo daquelas que estão finalizando o ciclo fundamental (na faixa etária de 14 a 15 anos)20, pois todas as possíveis causas do atraso podem ser captadas: ingres-so tardio na escola, repetência e evasão.

Nesta seção, portanto, analisaremos os fatores que influenciam a defasagem escolar das crianças de 14 a 15 anos de idade. Do uni-verso de 15.327 crianças da nossa amostra nesta faixa etária, mais da metade têm defasagem idade-série (52,1%).

Os resultados (ver Tabela 3) para sexo e cor da criança são iguais aos encontrados para a probabilidade de freqüentar a escola. Ser menino e de cor não-branca aumenta a probabilidade de a crian-ça estar atrasada na escola. O local de moradia influencia de al-guma forma a probabilidade de a criança ter defasagem idade-série, possivelmente pelo lado da infra-estrutura escolar. Como pode ser visto na Tabela 3, a probabilidade de uma criança de 14 a 15 anos que mora na área rural ter defasagem idade-série au-menta 0,6 ponto comparativamente a outras crianças da mesma faixa etária que habitam em localidades urbanas. As que moram nas regiões Sudeste e Sul também possuem menor probabilidade de terem defasagem idade-série.

O logaritmo da renda familiar per capita e o nível educacional das

19 Leon e Menezes-Filho (2002) mostram que um dos fatores capazes de ex-plicar a evasão é a repetição. A proporção de alunos que interrompe os estudos após experiências de repetência é maior que daqueles que saem da escola sem terem repetido. Logo, esses jovens acabam por atingir um nível de escolaridade mais baixo. Existem outros autores, como Bonelli e Veiga (2004), que também descrevem a relação entre a evasão escolar de jovens e o atraso educacional.20 Segundo Horowitz e Souza (2004), apesar de a defasagem idade-série tam-bém captar aspectos relacionados à qualidade da escola, essas relações podem ser confusas tendo em vista que, no caso brasileiro, escolas de baixa qualidade e com poucos recursos podem adotar a promoção automática. Por outro lado, em escolas de melhor qualidade, as regras de promoção podem ser mais rígidas, sendo o atraso da criança não necessariamente condicionado à falta de recursos familiares ou escolares.

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mães contribuem positivamente para a progressão escolar das crian-ças. Quanto maior a renda familiar per capita da família e maior o nível educacional da mãe, menor a probabilidade de a criança es-tar atrasada, resultado similar ao encontrado para a probabilidade de freqüentar a escola.

Tabela 3Estimação probit da probabilidade de a criança ter defasagem idade-série

14 a 15 anos de idade

Estar na escola coeficiente Dp robusto Efeito marginal X

ser menino 0,39 0,026 * 0,146 1

ser de cor não-branca 0,18 0,028 * 0,070 0

domicílio localizado na:

área metropolitana 0,02 0,042 0,002

área rural 0,16 0,038 * 0,064 0

Região Nordeste -0,02 0,042 * -0,007 0

Região Sudeste -0,02 0,042 -0,007 0

Região Sul -0,62 0,043 * -0,240 1

Região Centro-oeste -0,48 0,050 * -0,175 0

idade da mãe -0,37 0,050 * -0,138 0

mãe está na PEA 0,00 0,001 ** -0,001 41,44

mâe está ocupada 0,08 0,062 0,031 1

mãe tem uma ocupação forrmal

-0,05 0,062 -0,019 1

total de irmãs e irmãos mais novos

-0,08 0,017 * 0,036 1,11

total de irmãs e irmãos mais velhos

0,12 0,022 * 0,045 0,61

total de irmãs mais velhas

-0,07 0,033 ** -0,026 0,26

total de irmãs mais novas

0,02 0,024 0,008 0,54

log da renda familiar per capita

-0,15 0,015 * -0,060 4,90

anos de estudos completos da mãe

-0,09 0,004 * -0,037 5,67

p. 36-65

59SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

constante 1,29 0,109

observações: 14 633Pr(dfreq) =

0,4387

Wald chi2(25) 2646,25

Prob>chi2 0,000

Pseudi R2 0,2189

fonte: pnad/IbGe, 2003.nota: desvio padrão ajustado para existência de cluster (crianças dentro das mesmas famílias)*significativo a pelo menos 1%, **significativo a pelo menos 5%, ***significativo a pelo menos 10%efeito marginal foi calculado com referência aos valores da coluna X

A principal diferença com relação às estimativas da probabilidade de freqüência escolar está no efeito da composição da família. O nú-mero de irmãos e irmãs não influenciava de forma significativa a pro-babilidade deste grupo etário de estar na escola. Com relação à de-fasagem idade-série, o efeito é positivo e significativo.

A probabilidade de uma criança de 14 ou 15 anos com irmãos, mais novos ou mais velhos, ter defasagem idade-série é de 0,3 a 0,4 ponto mais alta do que a de uma criança sem irmãos. Dois fatos podem ex-plicar o fenômeno. Primeiro, pais podem preferir que as crianças, mes-mo com diferenças de idade, entrem juntas na escola, de forma a fazer algumas economias de escala. Logo, o atraso escolar pode estar rela-cionado à entrada tardia para as crianças mais velhas. Segundo, quan-to maior o número de crianças no domicílio, talvez maior a dificuldade de concentração das crianças para o estudo. Além disso, a capacidade de monitoramento do estudo por parte dos pais é reduzida tendo em vista o maior número de crianças no domicílio. Neste caso, o atraso pode estar relacionado à ocorrência da repetência escolar.

Por outro lado, as crianças que possuem irmãs mais velhas têm uma menor probabilidade de estarem com defasagem escolar. Pos-sivelmente, as irmãs mais velhas assumem as tarefas domésticas na ausência dos pais, permitindo que as crianças mais novas se dedi-quem à escola.

No Gráfico 5, estimamos a probabilidade de a criança de 14 ou 15 anos de idade ter defasagem idade-série segundo o grau de escolari-dade das mães e diferenciamos pelo nível da renda familiar (confor-me Gráfico 4 anterior).

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SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 200760

Para as crianças de renda mais baixa, a probabilidade de acu-mularem defasagem idade-série é sempre superior, mesmo na pre-sença de uma mãe com pelo menos onze anos de estudo comple-to (37% versus 26,2%).

O nível educacional da mãe tem um papel fundamental no pro-gresso escolar da criança. À medida que o grau de instrução das mães aumenta, a probabilidade de seus filhos terem defasagem ida-de-série é reduzida. Como pode ser visto no Gráfico 5, para crian-ças com mães sem escolaridade, a probabilidade estimada de terem

100%

90%

80%

70%

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0% sem escolaridade 4 anos de estudo 8 anos de estudo 11 anos de estudo

log renda familiar per capita = mediana (4,78)

Gráfico 5Probabilidade estimada de as crianças de 14 e 15 anos de idade

terem defasagem idade-série segundo a escolaridade da mãe

log renda familiar per capita = 2,77

fonte: pnad/IbGe, 2003.

p. 36-65

61SiNAiS SoCiAiS | Rio DE JANEiRo | v.1 nº3 | p. 216-216 | JANEiRo > ABRiL 2007

defasagem idade-série é superior a 60% nos dois níveis de renda fa-miliar selecionados.

Vii. CoNSiDERAÇõES FiNAiS

No Brasil, há uma grande discussão sobre os determinantes da de-sigualdade de renda e pobreza, sendo consensual o papel da desi-gualdade nas oportunidades educacionais. Grande parte do deba-te político atual sobre a redução das desigualdades de renda foca na necessidade de diminuir as disparidades no acesso à educação (tan-to em termos de freqüência escolar quanto de progresso ao longo do sistema educacional), sobretudo entre as crianças e os adolescentes.

Logo, os resultados das seções 5 e 6 servem para traçar as princi-pais características dos grupos etários de crianças que estão mais su-jeitas a não-freqüência escolar e à defasagem idade-série.

Primeiramente, mostramos que as crianças entre 14 e 15 anos es-tão mais vulneráveis ao abandono da escola que as crianças dos grupos etários mais novos. Entre as crianças mais velhas, as que têm renda familiar per capita mais baixa têm uma probabilidade de fre-qüentar a escola muito menor do que as crianças das outras faixas etárias também com renda baixa. Ou seja, as restrições de recursos familiares impactam mais o prosseguimento dos estudos das crian-ças de 14 e 15 anos do que das crianças mais novas.

Resultado similar é encontrado para o grau de instrução das mães. Um ano a mais de estudo da mãe aumenta em 0,8 ponto a probabi-lidade de a criança entre 14 e 15 anos de idade freqüentar a escola, enquanto para os outros grupos etários, apenas em 0,3 (7 a 8 anos) e 0,2 (9 a 13 anos).

A cor somente foi importante para explicar diferenças na freqüên-cia escolar das crianças de 14 e 15 anos de idade. Uma criança de 14 a 15 anos de cor não-branca reduz em 2,6 pontos sua probabili-dade de freqüentar a escola quando comparada com uma criança de cor branca da mesma faixa etária. Nos outros dois grupos de idade, o efeito da cor não foi significativo quando se controla pelas condi-ções econômicas da família.

Outro ponto que merece ser ressaltado é que o problema de in-gresso na escola das crianças mais novas (entre 7 e 8 anos de ida-

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de) é mais grave para os meninos e para as crianças que moram na área rural.

Com relação à defasagem idade-série, notamos que afeta mais da metade das crianças entre 14 e 15 anos de idade. A renda familiar e a escolaridade das mães são características que explicam grande parte das diferenças encontradas na probabilidade das crianças des-sa faixa etária terem defasagem idade-série. Além disso, destacamos que as crianças que vivem em famílias numerosas parecem ser mais vulneráveis ao atraso educacional, sobretudo aquelas que não têm irmãs mais velhas. Ter irmãs mais velhas tem o efeito de reverter o aumento da probabilidade de a criança ter defasagem idade-série, provavelmente porque assumem o papel de “mães” na ausência dos responsáveis diretos.

Em termos de política educacional, as crianças mais vulneráveis a problemas no ingresso à vida escolar são as moradoras de áreas com maior carência de uma boa infra-estrutura e organização das escolas, como zonas rurais. Nestas regiões, a incidência do traba-lho infantil também é mais grave. Políticas de erradicação do tra-balho infantil e de ajuda às famílias mais pobres são fundamentais para garantir a presença das crianças na escola. Algumas dessas ações já vêm sendo efetivadas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e o Bolsa Escola, devendo ser continua-das e expandidas.

Destacamos que o grupo etário mais vulnerável à defasagem idade-série, e, portanto, à capacidade de dar continuidade aos seus estudos, foi o mais velho, formado pelas crianças no limite de terminar a escolaridade obrigatória (de 14 e 15 anos de ida-de). Seria interessante ter uma política educacional que incenti-vasse a continuidade dos estudos desse público, principalmen-te daqueles mais afetados pelo atraso educacional normalmente provenientes de famílias mais pobres e mais numerosas. Ou seja, devem ser dadas as condições para que as famílias mais pobres consigam manter seus filhos na escola. A política educacional muitas vezes deve ser vinculada a uma política de assistência so-cial mais ampla. Isso fica evidente quando observamos os dados com relação à composição da família. Em famílias mais numero-sas, a freqüência escolar das crianças mais velhas pode ser pre-

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judicada assim como a progressão no sistema educacional. Par-te desse efeito, conforme sugerimos, pode estar ocorrendo devido à inexistência de um sistema de creches que atenda à população mais pobre. Filhos mais velhos muitas vezes assumem o papel dos pais e tomam conta de seus irmãos mais novos, podendo preju-dicar seus estudos.

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EMoÇÃo AGREGADoRAElter Dias Maciel

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Embora seja às vezes mencionada, a utilização da literatura, tanto nos pro-gramas escolares como nos escritos que tratam do conhecimento específico, é feita de forma superficial que desfigura sua real contribuição. Mesmo nos tratados de filosofia (felizmente cada vez menos) há forte tendência no sen-tido de ignorar a contribuição da sociologia do conhecimento que insere o observador, seja qual for, como elemento a ser analisado, e não aceito como neutro. Isto significa que o ponto de vista do observador também se oferece ao leitor para ser incorporado em visão crítica.O que estamos tentando mostrar é que a contribuição da literatura ao longo dos tempos não tem sido incorporada como devia em função de sua real importância, ao mostrar o quanto se deve à imaginação na formulação do pensamento e o quanto se antecipou aos diversos ramos do conhecimento. Ao permitir a inclusão desses componentes que não utilizamos normalmente em nosso pensar “racional” e “lógico”, desvendamos enormes descobertas e avanços ao próprio desenvolvimento do ser humano como um todo.Isto, supomos, creio que ficou mais evidente através dos diferentes depoimen-tos que recolhi ao longo deste trabalho e da maneira com que os selecionei.Mas convém que se note ao longo do texto que é possível falar em sabe-doria, uma vez que o romancista fala de vida e da extensão maior daquilo que o homem recolhe ao longo de sua existência, o que faz que pensemos também naquilo que nos constitui de forma mais abrangente.

Although on occasion the use of literature is mentioned both in school pro-grams and texts dealing with specific knowledge, the subject is just barely grazed upon in a way that detracts from its actual contribution. Even philoso-phical treatises tend (fortunately, far less today) to ignore the contribution of knowledge sociology, which puts the observer in the picture as an element to be analyzed, not a neutral stakeholder. That means the reader is also offered the observer’s perspective to be incorporated into the critical view.That means the contribution of literature over the years has not been in-corporated on the basis of its actual importance as it shows how much we rely upon imagination in building our thoughts, while outrunning the various fields of knowledge. In allowing for the inclusion of those components we do not normally use in our “rational” and “logical” thinking we make huge discoveries and progress in terms of human development as a whole.I believe this was clear in the testimonies collected during this study and in the way they were selected.However, it is worth noting along the text that it is possible to talk about wisdom, since the novelist speaks of life and the extended meaning of what a man apprehends during his lifetime, thus leading us to comprehensively reflect on what we are made of.

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O prazer da beleza é resposta humana à riqueza sensorial do mundo exterior. Através do trabalho junto às coisas do

mundo, transformando-as para uso humano, o homem descobre não só a estrutura e utilidade dessas coisas, mas também suas qualidades sensitivas. O que percebe é real,

mas é necessário que desenvolva o poder da percepção; assim, o prazer da beleza é também a consciência de sua

evolução como ser humano. O mundo, então, “educa” o ser humano, à medida que um trabalha sobre o outro.

Reconhecer a beleza é, portanto, responder à nature-za “humanizada”. Vista como comodidade, entretanto,

a natureza torna-se alienada. (Finkelstein, 1969:135)

Os efeitos da “pressa” em alcançar maior justiça social, em elimi-nar a desumana distância entre ricos e pobres, em minorar a malda-de da cruel distribuição da riqueza nos últimos tempos podem ser detectados por diferentes aproximações, mas quero destacar duas: uma positiva e outra negativa.

A primeira se relaciona com o reconhecimento de que a sensa-ção de urgência se deu em função de um sentimento solidário para com o homem. Em face do crescente sofrimento de parcelas cada vez maiores da população mundial, que não têm acesso à educa-ção, alimentação, conforto mínimo (o que significa estruturalmen-te ausência de dignidade), os grupos de esquerda, em várias par-tes do mundo, optaram por formas de ação que lhes pareciam as mais adequadas para a transformação da sociedade. O tempo se encarregou de mostrar que tanto as formas quanto a pedagogia de alguns movimentos estavam equivocadas, bem como evidenciou que muito do que se pensou não era apropriado às várias facetas da realidade.

Mas, em tudo e por tudo, há que ressalvar como positivos os sen-timentos que deram origem à indignação com a injustiça e à busca de uma sociedade solidária.

Outra conseqüência, e esta negativa, se deu em função do esqueci-mento de importantes dimensões do pensamento (e da existência) na arquitetura da nova sociedade. Embora mencionada, a dimensão es-tética ficou relegada a um plano dogmático e castrador, quando não esquecida; o que evidencia, de certa maneira, que o instrumental uti-

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lizado para fundamentar a busca da transformação social era aquele que emanava das ciências (história, economia, política, etc..),eivadas, como se sabe, de forte carga de uma lógica positivista.

Não é de se estranhar que, até hoje, a dimensão cultural este-ja ausente da maior parte de nossas análises de conjuntura. Esta deficiência se dá exatamente porque a fundamentação buscada é aquela que expõe a falta de “lógica” das posições adversárias e não a procura da evidência clara das relações entre conhecimen-to e existência.

Essas relações não podem ser encaradas com leveza, ou como se pudessem esperar um tempo indefinido na expectativa de melho-res dias, ou de situações ideais para a sua formulação adequada, pois se encontram no cerne de nossas atitudes e vivências, mesmo em uma sociedade injusta. Não é mais possível pensar que a no-ção de totalidade possa excluir simplesmente o estético das formu-lações humanas.

Para superar o quadro seria preciso que os agentes que condu-zem a luta por uma sociedade fraterna desenvolvessem uma re-lação maior com a arte, uma vez que se trata de forjar um novo pensar que permita ao homem imaginar um novo mundo, uma nova sociedade.

A estética trata do corpo, ou das relações deste corpo com o meio ambiente: a natureza e a sociedade. As diferentes manifesta-ções destas relações que se expressam através da música, da pintu-ra, da literatura e da escultura são abordadas pela estética, que, de certa maneira, “sistematiza” o estudo e a compreensão dessas for-mas de expressão.

E o que há de peculiar no discurso estético, em oposição às linguagens artísticas em si é que, embora mantenha um pé na realidade cotidiana, também eleva a expressão supostamente natural e espontânea a um nível de elaborada disciplina inte-lectual. (Eagleton, 19--:8)

As abordagens que são feitas no âmbito da estética devem ser in-corporadas não para mais um debate de idéias, mas para que se per-ceba melhor o que se passa no campo de toda a produção que se dá

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no seio de uma organização social; seus inter-relacionamentos e os efeitos que exercem sobre determinada população.

Seria interessante tratar aqui dos rumos e das preocupações que se manifestam no mundo da atividade artística mas, no momento, o que mais interessa é o que a arte pode nos dar a conhecer, exa-tamente porque, aí sim, incidem as lacunas dessa visão “apressa-da” da realidade.

i. ARTE E CoNHECiMENTo

Para atingirmos à radicalidade desta conclusão teríamos que li-dar com a ficção, com a vida passada ao plano imaginário. Ne-nhuma obra de ciência, nenhuma pesquisa social nos poderia indicar, com veracidade, o último ponto atingido pela reificação do indivíduo. As palavras em um romance não são apenas signos que apontem para a realidade exterior. Elas sem dúvida que le-vam à realidade mas uma realidade cuja inteireza não pode ser confundida com a socialmente dada. Por assim dizer, a palavra ficcional viola a realidade para melhor alcançá-la e então dizê-la. Isto não se faz senão à custa de trocar-se a ação imediata pelo entendimento que prepara uma ação possível e futura. (Costa Lima, 1966:71)

Embora a preocupação seja com a arte, em geral, a centralidade das citações e dos exemplos se dará em torno do romance, que, de certa forma, agregará as considerações que serão feitas.

Penso, neste instante, em três exemplos de produção literária, bas-tante significativos, que lançam luzes sobre um período dramático de nossa história: Robert Musil, Hermann Broch e Thomas Mann. O primeiro escreveu um texto, O Jovem Tõrless (Musil, Robert - O Jo-vem Tõrless. Nova Fronteira, RJ, 1978), onde fala do clima que se formava na Europa, notadamente na Alemanha, no início do sécu-lo (o livro é de 1906). A trama se desenvolve num internato onde se expressam de forma larvar as manifestações totalitárias por meio das quais o sistema invade e estilhaça o ser humano.

As personagens são vítimas de uma engrenagem que as conso-me e avilta (mesmo os que aparentemente são mais fortes). As-

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sim, aos poucos, o clima de supressão, seguido de ilusões de superioridade, joga fora as responsabilidades básicas de solida-riedade e respeito.

É preciso se perguntar como, por quais processos Musil intui o que se manifestará mais tarde, através do nazismo. Para o momento fica-mos com a constatação de que o autor detectou aqui e ali, mesmo de forma incipiente, as configurações e os movimentos que se ex-pressarão com toda a nitidez, mais tarde.

Em Hermann Broch, O encantamento, vamos sentir aquilo que se passou, pelas formas sorrateiras de sedução utilizadas por um fo-rasteiro, desequilibrado, com uma população de camponeses. O indivíduo, vindo de fora, ridicularizado a princípio, vai, gradati-vamente, destruindo as formas de resistência que a cultura exis-tente (simbolizada por uma senhora idosa, Mãe-Gisson) oferece. Também o intelectual, o médico narrador, sucumbe, em êxtase ao delírio quando reconhece que “a colheita pertencia ao louco, tí-nhamos seguido a dança de um demente, tínhamos dançado ao re-dor dele, impelidos pela mais profunda escuridão de nossa vida, nós, o animal de muitas cabeças, sem mãe; do do qual era parte, do qual eu sou parte, do qual todos nós, que vivemos ou dançamos somos partes, homem ou mulher, líder ou liderado, sábios ou doi-das, parte do animal da noite”.

Obra sofrida, elaborada entre fugas da perseguição política e de doenças, O encantamento trata da psicologia de massas, mas ressalta o importante viés do romance para expressar a alma indi-vidual e de como ela se entrega ao comportamento coletivo. Em comentário feito em 1940 Broch fala da importância da obra li-terária para captar esses estados da alma, essas manifestações da existência.

Por último convém recordar Mário e o mágico, de Thomas Mann. Embora o próprio autor tenha protestado, de início, contra os que viam o conto como uma manifestação de engajamento político, ele mesmo, mais tarde, em Dezesseis anos, vai dizer: “uma história de fortes ramificações políticas, que se inclina em segredo sobre a psi-cologia do fascismo e também sobre a psicologia da liberdade”.

De certa maneira é importante pensar no que se passou em sua mente quando reagiu contra aquilo que parecia uma redução do al-

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cance de sua obra. Torna-se nítido, aqui e ali em seus trabalhos, que seu temor era fundamentado, uma vez que acontecem com certa fre-qüência as tentativas de “enquadrar” uma obra ligando-a a certa te-oria ou encaixando-a em determinada posição política.

A liberdade de criação se vê ameaçada toda vez que é reduzida a provar algo. Pela sua própria natureza a criação, quando libera a imaginação, não pode se sentir cerceada em nenhum dos seus as-pectos. A integridade de uma obra é conseguida através das ligações que o autor consegue realizar entre diferentes aspectos do mundo que o circunda. Mas essas ligações se dão através de sentimentos, emoções, paixões e intuições que estão, em sua maioria, no indiví-duo-autor e que nem sempre fazem parte do acervo de determinada prática científica, ou mesmo do conhecimento de senso comum cir-cundante. Mesmo em se tratando de Mann, que pesquisava intensa-mente antes de produzir suas obras.

De qualquer maneira é a história da manipulação de vários indi-víduos que aderem entusiasmados ao espetáculo e de um homem que passa a se comportar como um fantoche. Mesmo sem a for-mação de um intelectual, como o médico de O encantamento, há, nos dois textos, considerações importantes e pioneiras sobre o que se passa em uma sociedade quando, por diferentes razões, con-figurações sociais totalitárias ou sedutoras (manipuladoras), inva-dem o seu cotidiano.

Temos assim de pensar no significado intrínseco da criação de uma obra de arte. Quais os elementos que entram em sua composição e em que difere do trabalho científico ou da elaboração filosófica.

Creio que uma das maiores conquistas do pensamento estético moderno, do Romantismo até nossos dias, tenha sido descobrir nas grandes obras de arte a ação de um princípio formal básico, que Coleridge chamou de “imaginação construtiva”, pelo qual o trabalho do artista se desenvolve, ao mesmo tempo, no plano do conhecimento do mundo (ainda a mimesis) e no plano da cons-trução original de um outro mundo (a obra).O ver do artista é sempre um transformar, um combinar, um re-pensar os dados da experiência sensível. (Bosi, 1985:36.).

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Estão aí, de forma clara, os elementos fundamentais que se ma-nifestam no labor artístico. Enquanto vê, observa, o artista cria um novo dado da realidade e, assim, conhece. Lidando com os mesmos dados que o observador de senso comum, ou mesmo do trabalho sistematizado, ele combina e recombina, em composições originais, os elementos. É possível dizer, num primeiro momento, que o novo e o original se dão em função de novas agregações que o artista for-nece, dos dados que se encontram em determinado momento. Essa “liberdade” vem através da busca incessante de novas formas de ex-pressão e de uma procura — às vezes desesperada — que permita trazer para fora, suscitar formulações que estavam latentes na ação e no pensamento de determinados indivíduos.

De uma forma simplificada é preciso pensar que, muitas vezes, o que se confunde é informação com conhecimento. Os dados colhi-dos (a descrição, as estatísticas), sem dúvida, fazem parte da reali-dade, mas não são a realidade, que é socialmente construída. Isto significa que quando observo o mundo circundante não o faço sem trazer comigo elementos amplos, acumulados por todo o meu ser e não somente através de uma operação lógica proveniente de meu treinamento racional.

É certo também que o estado de espírito em que se encontra o ob-servador permite (ou não) que ele constate algo que não consegui-ra, anteriormente, vislumbrar. Trata-se, não obrigatoriamente, de um novo ângulo apenas (embora isto se dê com freqüência), mas do aguçamento da percepção através da imaginação criadora.

Curioso é que no afã de privilegiar as regras do que chamamos de racional vamos, aos poucos, eliminando as potencialidades da imaginação e da criatividade. Temos a experiência, entre os acadê-micos, de encontrar resistência toda vez que mencionamos a ne-cessidade de um desenvolvimento pleno do campo da afetividade. Quando não nos remetem, imediatamente, ao analista “que deve tratar destes assuntos”, insistem no perigo de atitudes ou piegas ou que embotam o raciocínio; única segurança que temos. No entanto, o encontro com um bom autor de ficção abre perspectivas até en-tão fechadas e, o que é mais importante, não somente no campo da afetividade, mas de dimensões fundamentais da experiência huma-na. Se ainda não conseguimos alcançar uma explicação satisfatória

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para determinadas manifestações de nosso ser interior, de nosso ser total, a pior atitude é aquela de negar ou ignorar suas manifestações. Neste ponto é necessário que se reconheçam as conquistas feitas pe-los romancistas que, em muitas ocasiões, antecederam os avanços da própria ciência.

Quando aceitamos pressupostos da psicanálise, geralmente o fa-zemos dentro da “lógica” aceitável das posições de Freud, por exem-plo. Quase sempre nos esquecemos de seu percurso, de suas dúvi-das e de sua poderosa imaginação. Não deixa de ser proveitosa uma incursão pelos meandros de seu pensamento e de encontrar alguns percalços em sua trajetória.

Um dos exemplos disto pode ser encontrado, se alguém se deti-ver cuidadosamente, na troca de idéias que teve com o amigo Ste-fan Zweig e com E.H. Carr e outros sobre Dostoievsky. De qualquer forma todos os outros trabalhos que surgiram sobre o romancista in-dicam que Freud não foi capaz de fazer justiça à sua obra, não so-mente porque não era um crítico literário, mas por tentar utilizar-se de dados biográficos (alguns discutíveis) para demonstrar aspectos de sua própria teoria. Assim, suas conclusões sobre o “perturbado russo” não deixam de simplificar em demasia uma obra que se con-suma ao longo dos anos como uma contribuição inequívoca à exis-tência como um todo, principalmente quando aborda a diversidade humana de maneira inteiramente original através do imenso painel que constrói por meio do que Bakhtin vai chamar de romance poli-fônico (Bakhtin, 1981).

Não é justo especularmos sobre o que se passou sem que incorra-mos no mesmo equívoco de simplificação e até de injustiça na apre-ciação de uma trajetória intelectual. Mas não deixa de ser curioso que Dostoievsky foi pioneiro, para muitos, exatamente nos mergu-lhos que deu no inconsciente dos homens. Há aqui dois elemen-tos a considerar: o primeiro relaciona-se com a constatação de que coincidem o trabalho de Freud sobre O futuro de uma ilusão, com a análise que fazia sobre Dostoievsky, que, no dizer de Fritz Schnidl, era o “grande defensor da necessidade da fé religiosa”. O segundo é a suspeita de alguns comentaristas de que a observação de Zweig, “não foram os psicólogos, posto que homens de ciência, que revela-ram os mais profundos recessos da alma contemporânea, mas, sim,

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os homens de gênio, que ultrapassaram todas as fronteiras” (citado por Frank, 1999:202-203), o tenha melindrado.

Difícil saber se foram realmente essas as causas, mas o que quero destacar é a peculiaridade e a extensão da elaboração romanesca.

Voltaremos à questão mais adiante, mas por enquanto basta ter-mos em mente que, na maioria das vezes, o exame científico de uma obra de arte normalmente a mutila, quando não se equivoca com-pletamente. Mas este não é um fato isolado, pois acontece todas as vezes que se utiliza a literatura como demonstração dos postulados da psicanálise (Iser, 1996.).1

Não só é uma atitude perigosa porque reduz a dimensão do pró-prio texto literário, como corre o risco de considerar como expres-são fatual as premissas da ficção.

Não posso evitar a reprodução de uma passagem de Proust, que, embora um pouco longa, reivindica uma percepção maior de algo que captou em suas reflexões sobre a existência.

Tudo o que conhecemos de grande nos vem dos nervosos. Foram eles e não outros que fundaram as religiões e compuseram obras-primas. Jamais o mundo saberá tudo quanto lhes deve e principal-mente o quanto eles sofreram para lhes dar o que deram. Aprecia-mos as finas músicas, os belos quadros, mil delicadezas, mas não sabemos o que isto custou aos que os inventaram, em insônias, em lágrimas, em risos espasmódicos, em asmas, em urticárias, em epilepsias, e numa angústia de morrer que é pior que tudo isso... Já lhe disse que sem enfermidade nervosa não há grande artista, pois lhe digo mais... não há grande sábio. (Proust, 1957:237).

E outro trecho, de Tchekhov:

É a mesma coisa por toda parte: em todas as carreiras os homens que têm idéias são nervosos e vítimas desse tipo de sensibilidade exacerbada. Acho que é assim mesmo. (Tchekhov, 1987).

1 “Ora, uma concepção antropológica da literatura não pode buscar os pa-drões de sua descrição noutra disciplina, pois nesse caso ela estaria fadada ao mesmo destino que a literatura já sofreu com a psicanálise: servir de ilustração às suas premissas.”

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A essa altura creio que devemos agradecer às “perturbações” do mencionado russo. Mais do que isso, creio que esta angústia de morrer tem se dado com muita freqüência entre os artistas. Parece-me que as expressões da normalidade pequeno-burguesa não são o ambiente propício para reflexões que questionem o mundo cir-cundante, além daquilo que se costuma pensar como neurose ou coisa que o valha. Entendo o que disse Proust como algo que vai além de certo desconforto ou de adaptações ao meio social, mas de uma sensação de que a vida como está sendo experimentada no comportamento acomodado não vale a pena. A imaginação cria-dora pode constatar que o que está à sua volta diminui as poten-cialidades humanas e sufoca o que existe de mais significativo ao ser do homem.

Wagner explica porque se utilizou das lendas na composição de suas obras:

A lenda, em qualquer época e a qualquer nação a que per-tença, tem a vantagem de compreender exclusivamente o que essa época e essa nação têm de puramente humano, e de apre-sentá-la de uma forma original muito pronunciada, e portanto inteligível à primeira vista (...). O caráter da cena e o tom da lenda contribuem juntos para lançar o espírito nesse estado de sonho que o transporta brevemente à plena clarividência, e o espírito descobre então um novo encadeamento dos fenômenos do mundo que os seus olhos não podiam perceber no estado de vigília ordinário. (Wagner, 1987:20).

Um escritor, com sua linguagem própria, retrata, independente-mente da época ou da situação em que produz, um enfrentamento com a “realidade”, o que quer que isto seja. Parece-me que a perma-nência ou relevância de algumas obras reside exatamente neste con-fronto, o que é muito mais do que reproduzir, minuciosamente, de-terminados aspectos cambiantes desta mesma realidade.

O que permanece é justamente a constatação de que a imagina-ção criadora não se submete à ditadura do que — sejam os gover-nos, sejam as interpretações oficiais da realidade, mesmo quando feitas pelas ciências — nos impõem. Esta necessidade permanente-

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mente crítica da estética e do romance, em particular, faz sempre novo o ato da criação.

Mesmo que o romancista aceitasse, e isso pode acontecer, a inter-pretação de determinada análise, seja sociológica, antropológica ou econômica, de determinado período, seu trabalho não se tornaria mais fácil ou desnecessário, mas apenas mais um desafio para que aprofundasse as questões fundamentais que envolvem o ser huma-no inserido neste contexto. Compete a ele desentranhar as relações sociais, os sonhos, os desejos, as frustrações e os anseios dos indiví-duos aí colocados.

Ainda se supondo que tenha existido uma ordem social e políti-ca próxima à perfeição, o trabalho do artista seria o de demonstrar os desacertos e as frustrações que, mesmo tão próximos de sua solu-ção, não foram alcançados.

Ainda nesta perspectiva, Alfredo Bosi:

Como o jogo, a obra de arte conhece um momento de inven-ção que libera as potencialidades da memória, da percepção, da fantasia: é a alegria pura da descoberta que pode suceder a buscas intensas ou sobrevir num repente de criação. Heureca! (Bosi, 1985:16).

É curioso, se não espantoso, constatar como nossa formação profis-sional e nosso comportamento familiar podem estar distanciados des-sas questões que são vitais para o ser humano. O distanciamento, no entanto, cobra um preço, demasiado caro, que compromete a forma-ção do próprio indivíduo. É como se abríssemos uma picada numa floresta, e nos víssemos de tal forma envolvidos em nosso trabalho, que não nos déssemos conta da própria floresta, deixando de lado toda a exuberância e as manifestações de vida e movimento que es-tão tão próximos. Não seria de se estranhar, e isto se dá com mais fre-qüência do que pensamos, que algumas pessoas de certa formação sucumbam aos chamamentos de uma religiosidade totalmente cria-da pela mídia. Certamente não foi pela argumentação apresentada e nem pelo tratamento exacerbado e limitador que se dá à emoção, mas porque o extenuado observador contemporâneo foi tocado em algum ponto de sua sensibilidade adormecida pelo cotidiano vulgar.

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A acuidade de Borges pode ser de extremo valor no reforço do que estamos tentando levantar:

A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos traba-lhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares, querem dizer-nos algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão por dizer algo; esta iminência de uma revelação, que não se produz, é, quiçá, o fato estético”. (Borges, 1986:177).

Às vezes, quando estamos sós, e nos relembramos da infância e da juventude, sentindo ora tristeza, ora alegria, mas sempre sauda-des, não nos damos conta de que, ao repetir a lembrança, ela nunca é a mesma. Ela é móvel porque móvel é o passado, à medida que as experiências do presente lançam novas luzes sobre aqueles mesmos dados — sem dúvida, já acontecidos, mas nunca cristalizados. O que cristaliza o passado é o dogmatismo do presente ou o esclerosa-mento. Uma das experiências mais cativantes do pensamento vaga-bundo é remexer o passado em busca de novas descobertas, de no-vos ângulos, de elaborações originais sobre o acontecido.

Além disso, ninguém pode imaginar que nos lembramos de tudo. A seletividade de nossas memórias se dá em função dos estímu-los que, quase sempre, sentimos no presente (deixo de lado para os especialistas, as obsessões da neurose). Kundera percebe com clareza tudo isso quando afirma que a lembrança é uma forma de esquecimento. Uma vez que não nos lembramos de tudo, houve seletividade e quando selecionamos, deixamos de lado um univer-so de dados e acontecimentos. Se colocamos a lembrança como uma forma de esquecimento como vimos acima, seria interessan-te comparar com o que disse Giordano Bruno: “os homens não são como as abelhas e as formigas; a memória, para o homem não é a repetição; é a aquisição do novo”. Poderíamos dizer que, no mun-do do romance, isto é mais fácil de detectar, pois o clima criado por ele nos enleva, nos inspira e nos conduz a constatações novas, mesmo sobre os mesmos fatos.

Também por aí podemos entender melhor o conhecimento que a arte nos oferece, através de dimensões que, de certa maneira, nossos vícios de pensamento não nos permitem sequer vislumbrar.

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O objetivo de todo artista é deter o movimento, que é vida, por meios artificiais e conservá-lo fixo, de modo que cem anos de-pois, quando um estranho o fitar, ele se mova novamente, já que é vida. Como o homem é mortal a única imortalidade possível para ele é deixar atrás de si algo que seja imortal, já que sempre se moverá. (Faulkner, 1968:55).

Pelo que diz acima, Faulkner deixa entrever a linha divisória, mui-tas vezes tênue, que separa a atividade artística das outras operações intelectuais. Assim, “o escritor não pretende analisar toda a estrutura de uma época: deve deixar-nos uma imagem dela, uma súmula pri-vilegiada e até insuperável (...) Pode talvez dizer-se que o papel do escritor é o de fazer ‘reviver’ a estrutura histórica pela narração que dela faz”. (Macherey, 1971:109).

O conhecimento adquirido através da arte é específico e, ao mesmo tempo, amplo, não somente por tratar de temas que a ciência muitas vezes evita, mas como os trata; e historicamente antecipa um reconhe-cimento que só recentemente as Ciências Sociais incorporaram, ainda assim com certa relutância: aquele da inevitabilidade (e necessidade) da inclusão dos elementos subjetivos na investigação, uma vez que fa-zem parte tanto do próprio sujeito como do campo a ser analisado.

Embora seja um capítulo interessantíssimo, essas conquistas, so-mente mencionadas aqui, representam um enorme esforço que in-telectuais, incluindo vários marxistas, como Goldmann, Lukács, e mais recentemente Jameson e Eagleton, entre outros, tiveram de empreender para desmistificar a tradicional posição positivista do sujeito cognoscente e do objeto a ser conhecido, como entidades separadas.

Hoje em dia, mesmo com um bom número de recalcitrantes (que de certa maneira ainda tentam esconder seus interesses profissionais ou de classe), já é incorporado o reconhecimento de que o sujeito investigador se oferece, juntamente com suas investigações, ao cri-vo de seus leitores e críticos. Não se fala tanto mais em “apresentar um objeto cientificamente descrito”, mas de uma realidade parcial-mente construída por mim.

Arrisco aqui uma observação: sempre pareceu mais fácil esse re-conhecimento por parte daqueles que escolheram as artes, princi-

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palmente a literatura, como campo de suas preocupações, como, por exemplo, os autores mencionados acima. Ainda na perspec-tiva marxista:

ocorre, porém, que sem interesses particulares não teríamos ne-nhum conhecimento, porque não veríamos qualquer utilidade em nos darmos ao trabalho de adquirir tal conhecimento. Os in-teresses são constitutivos de nosso conhecimento, e não precon-ceitos que o colocam em risco. A pretensão de que o conheci-mento deve ser “isento de valores” é, em si, um JUÍZO de valor”. (Eagleton, 1983:15).

Eagleton é um teórico da literatura e seu excepcional trabalho A ideologia da estética vem a ser um dos mais atualizados e penetran-tes estudos contemporâneos nesta área. Publicado em 1990, e tra-duzido para o português em 1993, traz enorme contribuição para que se entenda o papel e a necessidade dos estudos estéticos nos dias de hoje.

Mas o que disse acima deveria nos levar a uma configuração que se dá ainda em muitos setores de nosso mundo acadêmico, em-bora já seja possível divisar reações a isso. As escolhas realizadas por estudantes em cursos de pós-graduação para a elaboração de suas teses. Em função das pressões existentes ou da limitação ex-cessiva de campo de estudo são, de certa forma, condicionadas pelos especialistas que fazem parte do corpo docente, tornando difícil a possibilidade de um trabalho que incorpore algo “cons-titutivo do interesse” do investigador. Sendo fundamental para o campo artístico é, no entanto, distante de alguns setores de pes-quisa, o que leva o pesquisador iniciante a tratar de assuntos ou matérias que, embora importantes, não levem em conta seus inte-resses ou aspirações.

Assim, chegamos a um ponto em que se falar de “imaginação criadora” com Baudelaire; “teoria da formatividade” com Luigi Pa-reyson, ou ainda em “conhecimento estético” com Baumgarten não pode mais causar estranheza. Em tempo: no momento não es-tou nem um pouco preocupado com as diferentes escolas a que os autores imediatamente acima estejam filiados ou classificados;

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como também com a postura de todos os mencionados ao longo destas reflexões. Posso adiantar o quanto foram, para mim, impor-tantes, as reflexões de Baudelaire sobre o Salão de 1859. Poucas vezes um texto teve tanto significado ou despertou tanto prazer em minhas andanças.

O que estou buscando é o reconhecimento da importância do que se pode conhecer através das artes e do seu significado para a ação e para a reflexão. Desta maneira, se busco o depoimen-to, ora de Jameson, Williams, Lukács ou Goldmann, ora de Bor-ges, Kundera, Baudelaire, etc.. não estou deixando de lado o fato de que representam posições que, aqui e ali, se chocam (e isto re-almente acontece), mesmo porque, pela própria natureza da cria-ção artística, a qualidade e a relevância de sua produção não es-tão ligadas, imediatamente, a uma profissão de fé, ou a uma teoria específica, e sim às possibilidades da imaginação criadora. Talen-to e esforço não têm sido apanágio de nenhum partido político ou filiação ideológica.

Quando pensamos nas vicissitudes sofridas pelos livros de Dos-toievsky, na antiga URSS, e nos lembramos dos artistas e pensado-res perseguidos pelo nazismo, o que se pode constatar é que essas dimensões do pensamento que mencionei até agora não podem ser submetidas a nenhum poder e nem se deixar escravizar por qual-quer ideologia.

Na verdade isto não era necessário como argumentação, mas sim-plesmente para reafirmar que a arte desestrutura posições e que criar significa mais que reproduzir, ou seja, é uma atividade que ameaça verdades estabelecidas.

o pensamento experimental não deseja persuadir mas inspirar; inspirar um outro pensamento, pôr em movimento o pensar, é por isso que um romancista deve sistematicamente dessistemati-zar seu pensamento, dar um pontapé na barricada que ele mes-mo ergueu em torno de suas idéias.A poesia não tem a verdade como objeto, ela só tem a si mes-ma. Os modos de demonstração da verdade são outros e estão alhures. A verdade não tem nada a ver com as canções. Tudo o que faz o charme, a graça, o irresistível de uma canção, tiraria

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da verdade sua autoridade e seu poder. Frio, calmo, impassível, o humor demonstrativo repele os diamantes e as flores da Musa; ele é portanto, em absoluto, o inverso do humor poético. (Bau-delaire, op. cit:57).

Gradativamente se vai percebendo que, além do conhecimen-to que proporciona, a arte nos predispõe a uma maior flexibilida-de em relação às maneiras de pensar estabelecidas. Enquanto Kun-dera nos fala da inspiração, da possibilidade provocadora da arte na direção de novos pensamentos, de novas criações, Baudelaire se firma na aproximação sensível e sua importância para a forma-ção do indivíduo.

Chega o momento, então, de perguntar pela natureza da imagi-nação ou de como o termo vem se afirmando em nossa percepção. No entanto, já deve estar claro que se trata de estabelecer um clima, uma atmosfera através da qual seja possível acionar todas as confi-gurações da colocação do homem no mundo, do relacionamento do homem com o mundo; alguma força que acione este estar no mundo e torne possível o deslanchar da percepção e da criação. Algo que, como diz Wagner, permita que outros estados, além da vigília, per-mitam a clarividência.

As reflexões de Baudelaire sobre a imaginação influenciaram vá-rios críticos e ensaístas, tanto no tempo em que viveu, como em nossos dias.

A imaginação não é fantasia. A imaginação não é tampouco a sensibilidade, embora seja difícil conceber um homem de imagi-nação que não seja sensível. A imaginação é uma faculdade qua-se divina que percebe, antes de tudo e fora dos métodos filosófi-cos, as reações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e analogias. (Baudelaire, op. cit:53).

O trecho acima, retirado de Novas notas sobre Edgar Poe, de cer-ta forma sintetiza os comentários que tece no famoso texto O salão de 1859, publicado em junho e julho na Revue Française. Refere-se à imaginação como a rainha das faculdades, análise e síntese de todas as outras, com o condão de lançá-las todas em todas as di-

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reções na busca do conhecimento e da expressão. Considera-a in-dispensável a todas as facetas do pensar, para que fecunde as rela-ções humanas.

Pergunta o que seria da “virtude sem imaginação”. Seria uma ex-pressão fria, dura, sem alma que em alguns países se transformou em “beatices, e em outras no protestantismo”, no que mostrou, mais uma vez, aguda percepção, pois a diluição das intuições ori-ginais, tanto da fé católica como das crenças protestantes, substitu-íram o pensamento de seus precursores e pensadores por regras rí-gidas de comportamento.

Utiliza interessante figura quando menciona o uso que algu-mas pessoas fazem do dicionário, copiando-o por falta de imagi-nação; indivíduos que “de tanto contemplar, se esquecem de sen-tir e de pensar”.

Se podemos fazer justiça a seu pensamento, talvez se possa di-zer que na multidimensional existência do homem a tarefa de sele-cionar, harmonizar e conferir significados é uma atividade que só pode ser exercida plenamente pela imaginação, uma vez que o ra-ciocínio lógico, racional ou a manifestação mística, isoladamente, não conseguem agregar. Assim, “todas as faculdades da alma hu-mana devem ser subordinadas à imaginação, que as requisita to-das ao mesmo tempo”.

Talvez seja oportuno continuar com Pierre Macherey:

A ficção não deve ser confundida com ilusão, é o substituto ou mesmo o equivalente dum conhecimento. Uma teoria da pro-dução literária deve mostrar-nos aquilo que o livro “conhece” e “como conhece” (Macherey, op. cit.:66).

Todas estas questões, aqui levantadas, deverão encontrar respostas adequadas quando cessarmos de colocar razão e imaginação como opositores excludentes. Já se passaram anos, séculos em que esta po-sição de antagonismo dividia os pensadores, os artistas, etc.. Creio que hoje se vai tornando cada vez mais consensual a aceitação de que a existência inclui os dois momentos sempre. Mesmo se, para alguns, ainda seja difícil aceitá-los (e lamentavelmente isto ocorre), convinha que, pelo menos, os considerassem como antípodas, pois

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pertencem ao mesmo mundo. Pelo o que conhecemos dos resulta-dos desses famosos encontros de cientistas de diferentes formações, ainda é difícil para muitos a aceitação de uma constatação simples que resulta do reconhecimento de que, ao trabalhar, o cientista sele-ciona e isola elementos constitutivos da realidade para conseguir as condições necessárias às suas observações, ou seja, há uma inven-ção da realidade sobre a qual se trabalha (Octavio Paz).

No campo fértil do romance, que permite que se trate, sem receio, do sonho e da vigília (Broch), a vida aparece com mais nitidez, princi-palmente quando o autor consegue juntar, de maneira feliz, como se dá essa interação, permitindo que, aí sim, se fale em realidade.

O romancista (como o artista em geral) não vê o mundo de forma simplesmente fotográfica, mas o transforma através de novas pers-pectivas e novas combinações. Esta transformação faz avançar a per-cepção, permitindo que uma atitude utópica (suspensão dos limites tópicos) se instaure de maneira constante, dando possibilidade ao ho-mem de avanços que até então permaneciam bloqueados. O mundo da ficção, independentemente do que esta palavra tenha significado, é exatamente esse em que o escritor descortina, não somente novas combinações, mas possibilidades novas de pensamento e ação.

O drama da produção artística implica uma luta constante entre o desconforto dos desacertos da vida e do mundo e as possibilidades de uma realização mais plena e, portanto, nova.

Quando percebemos, com prazer, que a evolução no campo das ciências humanas, principalmente, no sentido de considerar que o sujeito investigador faz parte da pesquisa, e deve fazê-lo de manei-ra cada vez mais consciente, é possível pensar que hoje temos maior proximidade com o mundo artístico em geral, que inclui “o mundo externo ao artista e o próprio artista” (Baudelaire).

Gostaria aqui de citar um exemplo mencionado pelo próprio Bau-delaire, que considera que o sacerdote que oferece presas humanas que morrem porque querem morrer, honrosamente, num ritual reli-gioso é “doce e humano” em relação ao homem de finanças que sa-crifica populações inteiras em benefício próprio.

Fica mais claro o que isto representa quando vemos um filme, ou le-mos um relato antropológico em que estes sacrifícios aparecem. Nos-sa reação imediata é de repulsa e condenação, ao mesmo tempo em

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que aceitamos com certa naturalidade, diariamente, a situação de po-pulações, povos e até países onde a injustiça, a fome, a miséria e a de-gradação imperam exatamente por causa da especulação financeira.

O exemplo citado mostra a necessidade de uma atitude permanen-temente utópica que permita superar as limitações de nosso “ver” habitual. Não podemos esquecer que as reações diferentes perante as mesmas imagens se dão exatamente porque há posturas diversas atrás destes olhares. A realidade que construo inclui minhas experi-ências anteriores e pode ligar os mesmos fatos observados pelo meu vizinho de maneira diferente.

A ficção não nega o real mas é um modo diverso de sua apreensão pelo discurso (Coelho, 1979). Isto significa e exige que seja utiliza-da com mais freqüência nos processos educacionais e nas tentativas de uma visão mais ampla da própria existência. Neste campo se tor-na possível, com mais acerto, expressar tanto a diversidade da vida como dos próprios discursos.

Aos poucos, no convívio com os romances em particular e com as obras de arte em geral, o leitor vai se familiarizando com um univer-so de conhecimentos mais amplo e de certa maneira diverso daquele que normalmente é encontrado no trato lógico e racional. A imagi-nação “compõe” a realidade de maneira diferente, embora não ne-gando as conquistas da ciência e nem estando alheia a elas.

E aqui uma constatação que muitas vezes escapa ao observador não afeito ao mundo da ficção. Quais são as posições mais absurdas que nos alienam da “realidade” que nos circunda? Aquelas que nos apontam sempre os acertos de um sistema econômico que defende com unhas e dentes os méritos da globalização enquanto vemos o aumento assustador do desemprego e da miséria, quando nos depa-ramos todos os dias com a mendicância nas ruas, quando vemos que um poder paralelo se impõe a cada dia com mais nitidez (tráfico de drogas), quando a concentração de rendas é cada vez mais absurda e desumana; ou aquelas que (independentemente da filiação partidária mais comezinha) nos falam de uma sociedade cada dia mais huma-na e cruel? Quando me recordo de A Metamorfose, de Cem anos de Solidão, de A Ratazana, de 1984 fico mais próximo ao que realmen-te acontece à minha volta do que quando leio os entusiásticos relató-rios econômicos que defendem o atual sistema.

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Uma constatação precisa ser destacada: meus sentimentos, mi-nhas emoções e minha razão a partir desses textos (sonambulescos, se quiserem) mostram com muito mais acerto o mundo em que real-mente vivo e que rapidamente se deteriora, ao passo que os relató-rios que defendem o sistema apresentam-se para mim como fria ma-nipulação de dados que escondem o fato de que a economia pode ir bem, mas o homem vai mal.

ii. o CAMPo Do RoMANCE

A ciência moderna escolhe e isola parcelas da realidade e só re-aliza suas experiências após criar certas condições favoráveis à observação. De certo modo, a ciência inventa a realidade sobre a qual opera. Épica de uma sociedade que se funda na crítica, o romance é um juízo implícito sobre esta mesma sociedade. Em primeiro lugar, como se viu, é uma pergunta sobre a realidade da realidade. (Paz, 1982).

É certo que nosso espírito analítico se sinta tentado a definir, con-ceituar o romance, mas a esta altura já se pode ver que é uma ta-refa impossível e, de certa maneira, desnecessária. Creio que nos bastaria acompanhar o excepcional ensaio de Octavio Paz e perce-ber com ele que a ambigüidade do romance se dá exatamente por-que fala de uma sociedade que se inaugura como crítica de todas as suas conquistas e seus costumes. Afirma a liberdade, ao mes-mo tempo em que estabelece leis rígidas para que não a destru-am. Diz-se fortemente apoiada no homem e sua autonomia, nega os deuses, mas presencia eclosões intermitentes de volta às cren-ças (cada vez mais simplistas) em deidades caricatas e limitadas. Apóia-se no racional, mas subverte os elementos críticos quando se vê ameaçada por eles.

O romance, como preferimos considerar aqui, tem sua expressão maior no momento em que o homem assume a centralidade do uni-verso através de um discurso aparentemente inquestionável, mas que não expressa nem uma sociedade melhor ou vitoriosa e nem conse-gue a liberdade necessária ao existir mais pleno e realizado. As ne-cessidades crescem, os infortúnios e fracassos se acumulam (ao lado

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de prodigiosos avanços tecnológicos) e expressões cruéis de repres-são e privação têm sido constantes num mundo que insiste sempre na tecla da igualdade e da liberdade, mas não conseguiu que os con-flitos constantes permitissem o menor vislumbre de sua realização.

Paz mostra de maneira clara que, diferentemente da epopéia e do teatro grego, o romance não soluciona os problemas que levanta e nem é um canto ou uma ode. É a expressão de uma ambigüidade e, de certa maneira, uma irrealização. Mesmo se tentássemos uma defini-ção, apenas no campo teórico, sem procurar relacioná-lo com o con-texto, isto não resolveria o problema, uma vez que tangencia outras práticas e atividades: é prosa, é poesia, é história, é biografia, é análise crítica... Afinal o que queremos dizer quando falamos em ficção?

Teremos oportunidade, em outro capítulo, de verificar o que di-zem os próprios romancistas sobre o seu trabalho e as diferentes transformações pelas quais passa a cada inovação. Basta rememorar, no momento, quantas vezes foi declarado morto e quantas guinadas significativas sofreu a cada obra notável e inovadora.

Por isto mesmo estamos falando em um “campo”, em uma ativida-de que sofrendo as variações e oscilações de uma sociedade, sofre também mutações que, de certa maneira mostram, positiva ou nega-tivamente, os momentos em que esta se encontra.

Por ser um campo aberto e produzido com a liberdade necessá-ria à sua execução, expressa a visão crítica que, de certa forma, tra-duz a sua importância. Às vezes certas discussões são um tanto to-las quando tratam de sua contribuição. Apenas para citar exemplos, gostaria de trazer à tona algumas das considerações sobre Jorge Luis Borges, por exemplo, tachado de “reacionário” por alguns elemen-tos de esquerda, ou de alguns ateus sobre a importância de O idio-ta. Não são capazes de compreender que a própria expressão de uma impossibilidade (no caso do príncipe Michkin) traz em si a vi-são crítica de uma religiosidade que, ao se adaptar e organizar, tor-na distantes os princípios que diz defender. Ou seja, o romance não se submete apenas às estruturas dominantes, mas vê, criticamente, as “verdades” provisórias de determinada cultura, e nem se atrela às interpretações oficiais.

Mais que isso, por ser um campo onde operam as diferentes ma-nifestações do espírito, não é o repetir, ou o narrar simples de fatos

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passados, mas uma criação livre que aponta para a utopia. Por ser criação, não está preso a fatalidades e, por isso mesmo, não se sub-mete, mas subverte.

Concordando com a maior parte dos próprios romancistas e críticos, o romance é por sua natureza ambígua, revolucionário. E, aqui, algo importante: uma vez que não se submete aos ditames predominantes de certa cultura ou de alguma teoria da moda, os aspectos fortemente revolucionários que proporciona não se expressam (necessariamente) através de um discurso condenatório, mas através da forma.

Quero lembrar aqui exemplos de como isto se dá.Em A dialética da malandragem, Antonio Candido mostra que

numa sociedade autoritária, o romance Memórias de um sargento de Milícias descreve a situação em que se colocam as camadas médias da sociedade oscilando permanentemente entre ordem e desordem, ora quebrando as regras, ora recorrendo aos poderes estabelecidos para se beneficiar, resolvendo os próprios problemas. Esta “malan-dragem” se explica pela forma com que o texto é escrito, mostrando, com acuidade, uma situação existencial que se expressa numa cul-tura de flexibilidade entre dependência e desobediência.

A tomada de consciência dessa configuração, creio, não só expli-ca muitas de nossas manifestações culturais, como deveria servir de fundo aos estudos de nossas religiosidades, por exemplo. Não deixa de ser um desafio para que se retomem as análises do protestantismo pietista, não só no estudo de suas relações com a sociedade circun-dante, mas no interior das próprias regras de comportamento.

Candido chama também a atenção para o fato de as descrições não serem tão minuciosas quando se trata de caracterizar costumes e lugares. Não é uma severa descrição sociológica, diríamos, mas a vida humana, a existência é captada com nuances insuspeitadas numa síntese privilegiada.

Em São Bernardo, de Graciliano Ramos, é possível perceber como o indivíduo que se dedica à conquista de terras e poder não só acaba por não se realizar como destrói as relações à sua volta. O indivíduo “livre” para acumular e conquistar, perde, aos poucos, elementos vi-tais para uma vida que tenha significado até o ponto em que esta se esvazia de qualquer significação. Repito, não é um panfleto apaixo-nado e contundente contra o sistema vigente, mas uma constatação

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extremamente pertinente de uma situação em que tanto as conquis-tas, como as vitórias se voltam contra o próprio indivíduo. Mais ain-da, a louvação desabrida do individualismo mostra como este pró-prio leva a conseqüências tanto alienantes como desumanas.

Está, no texto, colocada a natureza das relações que se estabele-cem em uma ordem dada e o que isto pode representar para situa-ções existenciais concretas.

Finalmente, para tornar mais claro tanto o campo, como o que significa a forma da obra, no caso o romance, vejamos a retoma-da da obra de Machado de Assis, através da contribuição de Rober-to Shwarz em Um mestre na periferia do Capitalismo, onde comenta a “volubilidade” do narrador de Memórias póstumas de Brás Cuba, que não só determina o ritmo da narrativa como constitui a forma própria do livro. Toda a arbitrariedade de uma conduta de classe aparece, com maior penetração, neste romance da maturidade de Machado. As oscilações do narrador, a irresponsabilidade com que trata os menos favorecidos, vão mostrando através desse “inimigo” o que faziam as elites do país. Ou seja, o assunto dos textos anteriores vira forma, mostrando a “desfaçatez” das elites brasileiras. A estrutu-ra social está presente (e a forma, de certa maneira, a concretiza) e a intensidade com que as relações humanas é retratada torna palpável a maneira com que um romance maduro e original traz à tona co-nhecimentos indispensáveis à análise da realidade circundante.

Concluo aqui com Octavio Paz:

A revolução burguesa proclamou os direitos do homem; ao mes-mo tempo, porém, pisoteou-os em nome da propriedade privada e do livre comércio; declarou sacrossanta a liberdade, mas sub-meteu-a às conveniências do dinheiro; e afirmou a soberania dos povos e a igualdade dos homens, enquanto conquistava o planeta, reduzia à escravidão velhos impérios e estabelecia na Ásia, África, e América Latina os horrores do regime colonial. (Paz, op. cit.).

O que impressiona, ainda hoje, é o fato de que a utilização bana-lizada da literatura como mero entretenimento encobre a riqueza e a pertinência de um texto no que tem de mais penetrante e revela-dor. Não importa a constatação de que (à semelhança do narrador)

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as mesmas elites tenham em casa, em suas estantes-decoração, os mesmos romances de onde são tiradas, vez por outra, citações que abrilhantam suas festas e conversações.

Assim, o alcance da obra, sua dimensão crítica e o conhecimento que pode oferecer são domesticados para uso dos Brás Cubas con-temporâneos. Mais ainda, o papel desestabilizador do romance, em função de sua ambigüidade (Paz) e em função de suas possibilidades reveladoras, é totalmente sacrificado por essas atitudes que, no máxi-mo, se utilizam da arte como ilustração. Em nosso tempo os roman-ces bem realizados têm percebido com uma acuidade incomum a de-terioração das propostas proclamadas por um sistema que no fundo é castrador e fortemente impositivo. Estas obras tratam dos elementos transformadores fornecidos pela ambigüidade da própria sociedade.

Assim a leitura de um Kafka pode ser assimilada, naquilo que tem de essencial, como a verificação angustiada das remotas possibilidades do homem numa existência em que as forças sociais exteriores são tão exacerbadas que a vida interior é apenas um simulacro, ou o reconhe-cimento das próprias impossibilidades. Se pensarmos que os concer-tos de Brandemburgo serviam de fundo de conversação para as recep-ções das elites, isto entristece e preocupa, mas não adianta ficarmos imaginando as possíveis frustrações de Bach, quando hoje mesmo isto é feito com obras-primas da literatura por nossos “educadores” e por acadêmicos desinformados. Quando não são utilizados para “ilustrar” alguma palestra, servem de pura diversão para as horas vagas.

Então, ao falarmos do romance estamos trazendo à tona uma pro-dução que sofre mutações de recursos, formas e estilos que refle-tem sua própria ambigüidade, mas também sua enorme capacida-de de renovação e inovação. Como dissemos, seu fim é decretado com certa constância, mas o que acontece é o aparecimento de no-vas sínteses, novas formas.

Quando acompanhamos o Thomas Mann de A montanha mágica, a impressão que fica é a de que, a partir daquele momento, as elabo-radas análises psicológicas e as extensas digressões, farão do romance um porta-voz dos avanços minuciosos das ciências e da própria filo-sofia. Em A gênese do Doutor Fausto, ficamos ainda mais impressiona-dos com os estudos e levantamentos feitos para a sua execução (cor-respondência com teólogos, consultas feitas a especialistas e artistas

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de diferentes áreas, incluindo, é claro, estudos e participação em di-versos saraus musicais e concertos, além dos debates com músicos da época), mas tudo isso sem que se transforme em uma reflexão sistema-tizada que descaracterizasse o romance, como tal. São também níti-das suas digressões sobre a construção das personagens e as dificulda-des encontradas para que guardasse o que é essencial no texto. Musil, no O homem sem qualidades (romance-ensaio?), pode passar tam-bém essa impressão, mas um acompanhamento cuidadoso vai, grada-tivamente, fazendo perceber que é a tentativa genial de movimentar todos os recursos, tanto os da razão como aqueles da imaginação, de forma a realizar uma síntese privilegiada da existência do homem num momento de forte desintegração social. Os componentes tanto racio-nais como não-racionais da vida estão colocados de maneira a fazer do romance a “suprema síntese intelectual” (Kundera, 1986).

Todos os movimentos e as tentativas (não importa se para muitos elas não o consigam) mostram, mais uma vez, que esses trabalhos não examinam a realidade-mito, mas a existência, e mais, numa perspecti-va daquilo em que o homem pode se tornar. Não é a prisão do passa-do, mas o acionamento dos mecanismos potencialmente transforma-dores do homem, sendo assim um campo privilegiado que se propõe a abarcar “a vida humana como um todo” e uma atividade do espírito “que nunca dissociou o indissociável” (Sábato). Na perspectiva da sín-tese a obra bem-sucedida mostra as possibilidades de se participar de forma ativa da chamada realidade, sem por ela ser subjugado.

Uma vez que não se toma mais a existência como campo exclu-sivo do racional e do lógico, é possível uma perspectiva mais livre (embora não menos complexa, ao contrário) sobre a própria situa-ção do homem no mundo.

Susanne Langer, abordando o tema da importância cultural da arte nos Ensaios Filosóficos, diz:

A imaginação é provavelmente o mais antigo traço mental tipi-camente humano, mais antigo do que a razão-discursiva; é pro-vavelmente a fonte comum do sonho, da razão, da religião e de toda observação geral verdadeira. É esta primitiva força humana — a imaginação — que engendra as artes e é, por seu turno, di-retamente afetada por suas produções. (Langer, 19--:88)

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E Bachelard:

A imaginação não é como sugere a etimologia a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. (Bachelard, 1989:17)

Os depoimentos imediatamente acima vêm do campo da reflexão sistematizada, mas, por isso mesmo, são importantes porque mos-tram que a perspectiva atual difere muito, e de certa maneira encer-ra esta dicotomia que por longos anos emperrou uma série de refle-xões e impediu que nossos sistemas educacionais tenham deixado as artes em geral para o canto daquelas atividades relacionadas com “quando houver tempo”.

iii. PERCURSo

No mais, falta apenas ainda um ponto, que nas coisas de Marx e minhas não foi regularmente destacado de modo suficiente, em relação ao qual recai sobre todos nós a mesma culpa. Nós to-dos colocamos inicialmente — e tínhamos de fazê-lo — a ênfase principal, antes demais nada, em derivar dos fatos econômicos básicos as concepções políticas jurídicas e demais concepções ideológicas, bem como os atos mediados através delas. Com isto, negligenciamos o lado formal em função do conteúdo: o modo e a maneira como essas concepções, etc.., surgem.

Não deixa de ser apaixonante um passeio pelas considerações que Marx e Engels tecem no terreno da literatura. Sempre me impressio-nou a beleza literária do Dezoito Brumário e o quanto um relato his-tórico pode ser preciso e rigorosamente analítico sem perder a agi-lidade de uma narrativa de ficção. Quando o li pela primeira vez, ávido que estava por conhecer mais detalhadamente uma rigorosa análise de conjuntura, fui tomado pela agradável sensação de que estava lendo um romance.

Na verdade o que estava gravado em minha mente era a idéia da sisudez e densidade que deveriam caracterizar uma análise socio-lógica que, supostamente, teria de sacrificar qualquer preocupação

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com estilo ou estética para que o posicionamento científico não so-fresse “distorções” prejudiciais.

Mas parece que, ainda nos dias de hoje, significativa parte dos acadêmicos e cientistas sociais pensa assim. É realmente impressio-nante como o texto denso e (boa parte das vezes) truncado aparece como corolário de competência e erudição.

Dando uma olhada em anotações que todos fazemos ao longo de nossas trajetórias, podemos ver o quanto aspectos importantes da-quilo que lemos pode ser colocado em lugar secundário e permi-tir até o esquecimento.

No entanto um passeio pelas anotações específicas mencionadas acima pode exigir de nós um longo e pesado volume, pois em lu-gares que percorremos anteriormente encontramos, como se fossem novidades, assertivas e considerações que não poderíamos esquecer. Vou rememorar alguns desses elementos, não no sentido de “pro-var” alguma coisa, tão evidente por si, mas para recuperar certo cli-ma e trazer de volta algo que nunca deveria ser esquecido ou sim-plesmente deixado de lado.

Aos mais interessados num estudo mais demorado e minucioso sobre a matéria seria interessante consultar os trabalhos de Adol-fo Sánchez Vasquez, As idéias estéticas de Marx, Sobre literatura e arte, ou ainda o capítulo Introdução aos escritos estéticos de Marx e Engels, que se encontra nos Ensaios sobre literatura de Lukács. Este último, além de citar os “escritos”, acrescenta uma análise bre-ve e concisa dos desacertos que várias vezes os “pseudo-marxis-tas ou os marxistas vulgares” cometiam através de suas interpreta-ções mecanicistas.

Mas creio que uma especial atenção deve ser dedicada ao capí-tulo O sublime no Marxismo, que se encontra no já citado texto de Eagleton, A ideologia da estética. Pelo que posso observar, além de uma percepção um tanto ligeira de alguns textos de Marx, houve certo descaso em relação ao que se convencionou chamar de “escri-tos do jovem Marx”, quando, para alguns, ainda não alcançara a ple-nitude de sua produção. Daí a importância de Eagleton, que mostra com mais clareza o que foi realmente o envolvimento, tanto de Marx como de Engels com a literatura.

A respeito do próprio Dezoito Brumário ele destaca: “No início

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deste texto, certamente a principal obra semiótica de Marx, ele re-trata as grandes revoluções burguesas como vivendo exatamente esse hiato entre forma e conteúdo, entre significante e significa-do, que o esteta clássico em Marx considera insuportável.” (Eagle-ton,19--). E o capítulo todo é uma demonstração de como a litera-tura e a estética não eram preocupações passageiras e muito menos um pescar de citações que pudessem ilustrar passagens dos pró-prios escritos, mas uma relação intrínseca e constituinte de seu próprio modo de pensar. Mostra ainda, com citações abundantes, que a discussão um tanto gasta sobre literatura (se é engajada ou não) pode deixar de reconhecer o específico da contribuição que lhe é própria.

Convém recordar que Marx, não deixando de lado o reconheci-mento das limitações políticas de seu autor realista predileto, Bal-zac, realça o conhecimento que este trouxe a aspectos importantes da configuração social circundante.

Na verdade não é do escopo de nosso trabalho percorrer os mes-mos caminhos, uma vez que isto já foi feito, mas o de discutir e pro-por as ilações possíveis de semelhante percurso. Estou mais preocu-pado com o lado negativo da configuração que se torna hegemônica em nossos dias; o mundo do vídeo, com suas simplificações grossei-ras e os efeitos prejudiciais de uma falta geral de trato com a literatu-ra. (Perrone-Moisés, 1999)2.

Uma vez que a academia, hoje, tem até dificuldade de manter, na proporção desejada, a consulta permanente ao texto científico, não é desconhecida de ninguém a quase inexistente relação com aquele da ficção.

Quanto a demonstração ou prova, creio que não é realmente ne-cessária. O percurso desenvolvido por inúmeros pensadores no hori-zonte de reflexão do marxismo, como Luckács, Bakhtin, Goldmann, Benjamin e mais recentemente Eagleton e Jameson, mostra, com cla-reza, que as análises empreendidas nessa perspectiva reconhecem a

2 Adorno já apontara, no ensaio intitulado Leitura de Balzac, que a visão certeira desse escritor não é objetiva, mas apaixonada e épica, muito diversa do nacionalismo hegeliano ou comtiano. O realismo de Balzac é um realismo dos processos e não dos fatos imediatos. (Perrone-Moisés, 1999).

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contribuição inequívoca da literatura como conhecimento e como compreensão da realidade.

Por outro lado vemos, que com raras exceções, as discussões em tomo das produções literárias, se devem ou não ser “engajadas”; mostram que havia, de um lado, a pressuposição de que um roman-ce só deveria ser considerado como tal se trouxesse a exatidão de um documentário, e, do outro, que a ficção não pode e não deve se preocupar com a “verdade histórica”, trabalho que deve ser feito por historiadores e sociólogos.

Em estudo já mencionado, hoje um clássico, Dialética da malan-dragem, Antonio Candido comentando Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antonio de Almeida, mostra, com clareza, por-que o considera como fonte de conhecimento através exatamente da forma elaborada. A oscilação entre ordem e desordem criou e mol-dou um comportamento, que talvez explique de maneira mais ade-quada a própria brasilidade. Digo talvez, porque não se trata aqui de uma descrição pormenorizada da sociedade daquele tempo, mas a tentativa de descobrir, de captar um movimento que perpassa a so-ciedade, tornando-a mais compreensível e, em certa medida, mais acessível às nossas indagações. “Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. E so-bretudo porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária.” (Candido, 1970).

Percorrer os caminhos da polêmica em torno da qualidade e relevân-cia da obra já ajuda a compreender o porquê de muitas aproximações inadequadas. O romance é “menor” se for considerado como docu-mentário, ou “maior” se se limita “apenas” à ficção, mas o que real-mente acontece é que cresce de importância à medida que o crítico e o leitor são capazes de visualizar como a forma representa realmente movimentos constitutivos da realidade que se pretende enxergar.

Como o romance pode incluir elementos da realidade que não são possíveis em descrições chamadas científicas, o que se dá é uma abrangência maior do que aquelas que se podem alcançar através das limitações fornecidas pelo “rigor” com que falo de uma dada re-alidade e que não me permite incluir como estes indivíduos pensam a própria existência. Na verdade as posições mencionadas não são

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excludentes, mas complementares. Sobre esta complementaridade é que tentamos chamar a atenção.

Num romance, repito, é mais fácil perceber os elementos tanto ra-cionais como irracionais da vida. E, mais importante ainda, o quanto estão em interação constante e o quanto nós mesmos lidamos com eles, conscientemente ou não, não importa; ao tomar decisões, ao sofrermos com as próprias indecisões, ao fazer amigos, no convívio diário com os filhos, amantes, companheiros e em nossas atividades profissionais diárias.

O que preocupa, quando não estamos afeitos ou ligados de alguma maneira à literatura, é que o nosso próprio ser deixa de ser apreendi-do por nós mesmos e o quanto nos distanciamos da realidade que, aí sim, nos cerca. O campo da literatura inclui o intenso debate de crí-ticos entre si e, às vezes, com os próprios autores, o que ressalta, na maior parte das vezes, o que acontece na produção literária. “Não foi intencional”, “Não foi de todo consciente”, “A personagem acabou por crescer em direção não planejada”, etc.., e assim por diante, é o que encontramos muitas vezes em entrevistas com os autores. Essa liberação, em relação às regras costumeiras de raciocínio, permite a construção da realidade de maneira mais ampla.

Estamos informados de que na literatura o esclarecimento vem tanto pelas portas da fantasia como pela representação do real. Ou seja, Robert Musil entendeu e captou o mundo de Kafka por oca-sião do aparecimento de seus primeiros escritos, exatamente por-que percebeu que em textos sonambulescos este conseguiu falar do drama da incomunicabilidade humana em sentido mais amplo e do distanciamento entre os homens em seu tempo. Mesmo não tendo experimentado em sua literalidade o amanhecer em forma de um grande inseto, é possível perceber que A metamorfose nos fala, de maneira assustadora, da incomunicabilidade. Tanto mais impressionante porque nos faz sentir o isolamento, mais do que simplesmente entendê-lo.

A dificuldade que percebemos é que esta complementaridade de-veria ser em ambas as direções, ou seja, as duas formas de conheci-mento deveriam fertilizar-se mutuamente.

Marx percebeu, com a acuidade característica, vários elementos importantes em suas incursões no campo da literatura. Ressaltemos

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por enquanto dois deles: como fonte de conhecimento da realidade e como elaboração adequada do próprio conhecimento.

“Como Shakespeare descreve magistralmente a essência do di-nheiro!”, diz nos Manuscritos, reproduzindo longo trecho do Timão de Atenas. Cita também Goethe, Fausto, Ato I, Cena IV, para, em se-guida, analisar a percepção dos efeitos devastadores do dinheiro na vida dos indivíduos e da própria sociedade. São várias as citações que faz de Balzac e da contribuição que este dá para que se conheça melhor a sociedade em que viveu, mesmo reconhecendo o que con-sidera como limitações do posicionamento político do mesmo. Não só chama a atenção de Engels para determinados contos (O cura da aldeia - A obra prima desconhecida, Melmoth Reconcilia), em car-tas de 14 de dezembro de 1868 e 25 de fevereiro de 1867, como em nota do próprio O capital.

Aliás, seria interessante uma análise mais demorada de todos os autores mencionados por Marx ao longo de todos os seus escritos e também como ele e Engels liam textos novos que lhes eram enviados por diferentes escritores, para melhor entender o quanto se envolviam com a literatura e o quanto esta fazia parte de sua correspondência.

No que diz respeito à elaboração do próprio conhecimento, há tre-chos bastante esclarecedores. “A minha propriedade é a forma. Ela constitui a minha individualidade espiritual: Le style c’est l’homme. E de que maneira!” Notas Sobre as Recentes Instruções Prussianas Relativas à Censura, Oeuvres, T, 1, pág. 154. MECA, e ainda “sejam quais forem as insuficiências dos meus escritos, têm, pelo menos o mérito de constituírem um todo artístico completo” Carta a Engels, 31 de julho de 1865.

Mas, voltando à questão do que se conhece através da literatura, convinha, mais uma vez, lembrar São Bernardo, de Graciliano Ra-mos. Antes vamos recordar uma pequena passagem de Memórias do cárcere, quando ele diz que, em alguns encontros para debates e discussões realizados pelos prisioneiros políticos, ficava encabula-do perante os conhecimentos demonstrados por alguns deles, ao fa-lar sobre economia, conjuntura, etc. (Ramos, 1970).

Fica evidente que reconhecia as limitações de seus conhecimen-tos em relação ao quadro político de sua própria época. Seu cons-trangimento se deu em função de sua profunda honestidade intelec-

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tual e também de sua integridade ao registrar fatos de sua trajetória como ser humano. Mas quando lemos São Bernardo entramos em um mundo que só pode ser construído por alguém cuja imaginação era privilegiada (o termo é utilizado aqui no sentido que Spinoza e outros contemporâneos o faziam: como percepção e não como si-nônimo de sonho, delírio, etc..). Esta percepção, sim, é que é capaz de nos transmitir elementos que não são captados pela “sintaxe tri-vial da razão”, no dizer de Carlsen (Carlsen, 1998 )3, ou seja, o artis-ta percebe elementos constitutivos da realidade que as costumeiras análises científicas não conseguem. Ao mergulhar no texto (embora, no meu caso, somente como leitor apaixonado e não um crítico), o que se consegue ver, com surpreendente nitidez, é como Paulo Ho-nório não consegue realizar-se como ser humano, uma vez que é de-vorado por uma estrutura social que torna as pessoas, pelo menos, insensíveis a aspectos importantes do indivíduo como criatura so-cial, e que existe num mundo em que tem de abrir mão de elemen-tos importantes de sua própria realização como tal.

Pode-se ler o quanto a luta pelo aumento da propriedade e dos bens acaba por fazê-lo insensível e incapaz de comunicar-se com aqueles que o circundam. Madalena, a quem amava, vai aos poucos sendo afastada, e os freqüentadores de sua mesa aparecem como en-tes que não só lhe são submissos, como têm pouca importância em sua trajetória. O próprio pároco, também comensal, é de uma subser-viência que não deixa margens a dúvidas, mas, em certo sentido, re-presenta muito bem as atitudes do clero, em geral, em suas relações com os poderosos de algum lugar. Embora a figura seja encontrada em muitas de nossas observações, não a temos visto muito em nossos tratados da sociologia da religião ou textos de antropologia.

Isso, no entanto, pode ser visto também em obras de ficção feitas an-teriormente, o que apenas mostra como a observação da realidade, por meio da imaginação, pode ser extremamente fértil, e, especificamente,

3 A objetividade não prospera muito entre os vivos, e é ainda mais miserável em um meio cujo ponto alto é a condensação de destinos humanos em mo-mentos isolados de força poética. Por essa razão, a escolha entre ficção e docu-mentária é, para mim, puramente uma questão de estilo... Os fatos crus sobre uma pessoa não são necessariamente “as melhores cores com que pintar seu retrato” (Carlsen, 1988).

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como a forma de um trabalho de literatura expressa a real configuração de uma sociedade. Eagleton, em A ideologia da estética, recorre aos Manuscritos para tornar mais claro o processo de como isso se dá:

Mas se o capitalista rouba o trabalhador de seus sentidos, ele faz o mesmo consigo mesmo: “Quanto menos você comer, beber, comprar livros, for ao teatro, sair para dançar, ou para beber, pen-sar, amar, teorizar, cantar, pintar, esgrimir, etc.., mais você poupa e maior se tornará o tesouro que nem as traças ou os vermes podem consumir - o seu capital”.

Continua:

“Quanto mais o capitalista renuncia ao seu prazer, devotando seus esforços, em seu lugar, à modelação deste alter-ego zumbi, mais satisfações de segunda mão ele é capaz de colher. Tanto o capitalista quanto o capital são imagens de mortos-vivos, um animado, apesar de anestetizado; o outro inanimado, mas ativo”. (Eagleton, 19--:149).

Em Graciliano a economia de palavras e o texto curto e incisivo não só revelam o escritor rigoroso e possuidor de impressionante universo vocabular, mas “falam” de uma realidade que nos ensina, que nos instiga e que recupera elementos da vida social do tempo em que foi produzido, e que não podem, ou não deveriam estar fora de nossa erudição acadêmica.

Muito ainda pode ser dito sobre a importância da literatura em uma perspectiva que ultrapasse a mera ilustração ou diversão. Mas não deixa de ser redundância penosa a repetição destes truísmos. No entanto a discussão atual vem mostrando o quanto permanece-mos viciados em um tipo de raciocínio racionalista. Tomemos, por exemplo, mais dois textos da própria produção literária que mencio-nam, ao mesmo tempo, as posições que permanecem em conflito em nossos métodos de análise.

Em A montanha mágica, Thomas Mann coloca em debate dois in-terlocutores que, de certa maneira, representam o conflito. São eles Settembrini, o racionalista, fruto da confiança ilimitada (caracterís-tica de uma época) na razão, e o jesuíta Naphta, que representa

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como o mundo religioso se utiliza desta mesma razão, mas aqui su-bordinada aos aspectos mágicos da religião. Não há dúvida de que, de certa maneira, ambos encarnam posições existentes na socieda-de da época, representadas no Sanatório Berghoff. Também não há dúvidas de que o enredo reconstrói a sociedade, tornando claros os movimentos predominantes em seu bojo, ao mesmo tempo em que lança novos esclarecimentos sobre a mesma, colaborando com a “construção social da realidade”.

Em tempo: ao colocar em um sanatório seus personagens, Mann faz aquilo que uma grande parte dos escritores utiliza como recur-so literário — mostra que, de fato, os indivíduos estão inseridos num mundo de doenças e suas enfermidades representam o quanto o conjunto da sociedade vive em condições de limitações e falta de perspectiva existencial. A contingência, o isolamento e a incomu-nicabilidade estão presentes em nosso cotidiano. Simbolicamente, uma percuciente análise da sociedade de seu tempo nos é apresen-tada. Não cabe nem perguntar, neste caso, se os objetivos do texto foram alcançados e nem questionar se esta é a melhor maneira de apresentar a realidade. Repito que o que está em jogo é nossa capa-cidade de assimilar o texto.

Interessantíssima a controvérsia amistosa entre Ivan e Aliocha de Os irmãos Karamasoff. Quando o primeiro propõe a lenda do Gran-de Inquisidor, podemos assistir a um debate em que o pensamento iluminista europeu (encarnado pelo próprio Ivan), traz à mesa enig-mas para a perspectiva cristã ao mesmo tempo em que questiona a instituição religiosa. Em nenhum momento, no entanto, estamos pe-rante personagens que encarnem somente o pensamento a que se fi-liam. Bakhtin, em A poética de Dostoiévski avança vários pontos no que toca à compreensão do autor quando formula a aproximação do mesmo através da perspectiva do “romance polifônico”, que, em sua percepção, ultrapassa de muito o chamado romance de idéias, pois avança na direção da complexidade do próprio pensamento. A compreensão do homem em uma sociedade múltipla onde convive com a diversidade de formas interpretativas e que, como tal, convi-ve com e assimila, de certa maneira, o que elas representam. Em ne-nhum momento Aliocha é o salvo e Ivan o herege, mas ambos repre-sentam os movimentos controversos de uma existência.

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Mas neste ponto convém lembrar um pouco uma passagem da vida de Dostoievsky que pode lançar luzes sobre como chegou a construir sua gigantesca obra. Após ter “renascido” da farsa de sua execução, foi deportado para a Sibéria, onde conviveu com crimi-nosos e marginais de todos os matizes. E é nas Recordações da casa dos mortos que encontra aquilo que chama de “ouro sob o pó”, ou seja, muitos daqueles foras-da-lei apresentavam riquezas insuspeita-das, virtudes que comumente são atribuídas, com exclusividade, aos “homens de bem”. Pelo menos para ele, a dolorosa experiência mos-trou algo que talvez permanecesse oculto, sem esse convívio força-do. Assim, suas personagens não aparecem como representantes de determinadas idéias, simplesmente, mas como indivíduos que tra-zem em si as contradições da existência.

Voltamos aqui aos comentários de Antonio Candido, a propósito de Memórias de um sargento de milícias:

E uma das grandes funções da literatura satírica, do realismo des-mistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem, cada um a seu modo, que os referidos pares são reversíveis, não es-tanques e que fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco. (Candido, 1970:67-89).

iV. LiTERATURA E EDUCAÇÃo

Gerações sem conta souberam de cor, palavra por palavra, a his-tória de Abraão, mas quantos perderam o sono por sua causa? (Kierkegaard, 1964).

Estou trazendo de volta às nossas lembranças o inquietante tex-to do pensador dinamarquês em função de dois problemas que quero abordar: o primeiro se relaciona com as diferenças de inter-pretação no mesmo horizonte de reflexão, e o outro com a assi-milação precária, reduzida ou simplificada do ideário de uma re-ligiosidade por parte da maioria daqueles que dizem aceitar seus postulados. Creio que essas questões estão intimamente relaciona-das com as da literatura e, mais especificamente, com o uso que fazemos dela.

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As reflexões que levanta dificilmente seriam ou foram encaradas com leviandade por parte de seus leitores, tanto entre os cristãos, como no terreno daqueles que não compartilharam de suas crenças. No entanto, tenho a firme convicção de que não fazem parte das considerações da grande maioria dos cristãos e, seguramente, não dos nossos mestres de hoje.

Antes mesmo de colocar as próprias reflexões, Kierkegaard cita trechos de Descartes que ressaltam suas próprias dúvidas. “A mi-nha finalidade não está aqui em ensinar qual o método que cada qual deve seguir para dirigir bem a razão, porém sim somente mos-trar de que modo pude dirigir a minha.” (Descartes, 1957:13). Não é somente o fato de que. embora continuando crente, Descartes te-nha procurado refinar um método racional de análise; o que im-porta é que sobre vários aspectos da realidade ele tenha insistido na provisoriedade de suas próprias conquistas.

Gostaria de ir um pouco mais longe com algumas constatações so-bre o que normalmente se sucede no decorrer da existência de cada um: recebi há pouco o número 178 da revista Superinteressante (ju-lho, 2002), que traz entre suas matérias um artigo sobre descobertas recentes da arqueologia sobre a Bíblia. Dentre elas destaco a afirma-ção de que os patriarcas Abraão e Moisés jamais existiram. Lembrei-me imediatamente da frase que serve de epígrafe a este capitulo. Mais do que nunca o Credo quia absurdum parece saltar aos nossos olhos. No entanto, o que quero ressaltar é que, sendo ou não lenda, as reflexões contidas no texto de Kierkegaard permanecem atuais, e acrescento: não creio que alguém vá renunciar às próprias crenças por mais essa descoberta. Se isto acontecer será somente para um número reduzido de pessoas.

Uma das razões é que a literalidade de interpretação do texto bí-blico sempre foi contestada em boa parte dos textos teológicos e ou-tra é que aqueles que crêem não o fazem por constatar evidências. Mesmo sem nos prendermos às formas caricaturais que apresentam um bom número de manifestações religiosas, o fato é que “demons-trações e evidências” são criação das mentes dos próprios fiéis. Não é o aprendizado específico de um corpo de doutrinas ou de refle-xões teológicas, mas a maneira particular com que o crente organiza sua mente e aceita o que resultou desse arranjo que vai garantir sua

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fidelidade ao grupo e sua aceitação do que ali se passa. As exceções de praxe, estas sim, é que competem aos teólogos.

Embora tenda a considerar pessoalmente que no interior das orga-nizações religiosas o que se passa é um crescente muro de proteção (à semelhança de mecanismos de defesa) que impede que o desa-gradável, o incerto e o duvidoso possam se desenvolver, não se pode deixar de lado que esses mecanismos visualizados através de várias abordagens reconhecem também que existem razões e motivações existenciais profundas para que isso se dê.

Não se deve responsabilizar simplesmente um corpo de fiéis pelo fato de que seguem um líder despreparado ou desequilibrado. Como hoje o fato acontece com uma freqüência preocupante, não deixa de ser oportuno lembrarmos um pouco de Jung, quando falava de que tanto dogmas como crenças estão enraizados no substrato psíquico dos arquétipos, ou seja, o indivíduo traz em sua estrutura psíquica o suporte de seu ser que o impede de sair fora de si mesmo, mostrando que não há fórmulas verbais que resolvam tais questões.

O que temos em Temor e tremor são as possibilidades do que se passou pela cabeça de Abraão ao receber a ordem de sacrifi-car o próprio filho, e durante a trajetória que durou três dias até a montanha de Monja. Ao elaborar cuidadosamente algumas des-tas possibilidades, são apresentadas as reflexões sobre a vida que compõem o mundo interior do indivíduo inquieto perante as difi-culdades com que se defronta.

A pertinência com que Kierkegaard coloca os problemas do ho-mem não depende das considerações sobre se a história do patriar-ca realmente aconteceu ou se seria uma lenda. Para quem aceita o convite feito por estas reflexões, creio que não deixa de ser curio-so e fértil considerar que tenha sido uma lenda elaborada para que se colocassem em pauta problemas realmente existentes na vida do homem inquieto (ou nervoso, como queria Proust). As raízes do existencialismo estavam assim lançadas (não somente por esse tex-to), por trazerem as reflexões que duvidavam de quaisquer certezas, mencionavam a angústia da solidão e do sofrimento interior e o de-sespero de saber que a verdade quase sempre escapa ao homem.

Mas não deixa de ser curiosa a constatação de que, ao rejeitar o pensamento sistematizado, principalmente de Hegel, e ao recusar

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para si a denominação de filósofo, Kierkegaard tornou-se o precur-sor de significativa corrente de pensamento que inclui, ao longo de sua trajetória, cristãos e ateus e até pensadores que não se enqua-dram nestas perspectivas.

Finalmente, sinto a necessidade de fazer uma observação, a partir do que apontava Eagleton: como esta obra se aproxima do que normal-mente consideramos como literatura! Com isto não quero dizer que falta a ela a costumeira sistematização do filósofo; mas, pelo contrá-rio, como ficam evidentes as contribuições de uma reflexão que não se submete a regras rígidas e nem cerceia a imaginação. Ainda mais! As recentes descobertas da arqueologia não lhe tiram o valor, mas mos-tram as possibilidades do que, a partir de Bakhtin, chamamos polifonia. Pois estão aí colocadas não só as possibilidades diferentes a partir de um fato ou de um acontecimento como também as diversas posições que são aceitas como compondo a mesma existência. A personagem central não aparece como representante de pensamento único, mas como portadora de uma diversidade de pensamento que a tornam viva e possível. Essas mesmas configurações são encontradas no já mencio-nado texto de Dostoiévsky, e creio, no Absalão, Absalão de Faulkner.

O campo do romance tem sido mais fértil para que estas consta-tações apareçam. A imaginação encontra aí o terreno propício para que a infindável realidade seja captada de maneira mais adequada e as sínteses privilegiadas de uma obra bem realizada conseguem nos dizer mais um pouco do que alcançamos com nossa objetivi-dade costumeira. Em educação talvez devamos reservar espaços maiores para que esse campo nos ajude a perceber melhor o que nos cerca, sem sermos obrigados a nos mutilar, reduzindo o alcan-ce de nossas investigações.

Comentando a produção de Jerôme Bosch e referindo-se à sua época e à de seus contemporâneos, Costa Lima realça o fato de que, para o artista em geral, a arte era considerada como assente ou “natural” à própria historicidade. Para Bosch a arte existia, en-tão devia existir, e que (é o que quero destacar) o relacionava com seu mundo. (Costa Lima, 1966:12).

Embora sejam indiscutíveis os “momentos” da atividade artística destacados por Pareyson — o fazer, o conhecer e o exprimir —, e, de certa maneira, se reconheçam as tendências atuais de se prender,

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ora a um ou a outro destes itens, gostaria de realçar a questão do re-lacionamento com o mundo e de suas possibilidades educacionais.

Tenho observado ao longo dos anos de ensino que esta não é uma temática que tenha sido abordada com a freqüência e a constância que a arte e, especificamente, a literatura devem ocupar. Consigo entender que pode haver um receio (até certo ponto válido) de ver textos universalmente conhecidos e fundadores serem utilizados por algum mestre-escola despreparado, procurando nos romances frases e citações que pareçam propícias a reprimendas de caráter moralis-ta, ou mesmo de “máximas” utilizadas para o bom comportamento, na visão do próprio professor.

Como mencionamos acima o fato acontece com freqüência no protestantismo em relação à utilização da Bíblia, como fazem, em sua maioria, os pietistas, os puritanos e, mais recentemente, os pen-tecostais. Não deixa de ser patética e constrangedora (independen-temente do fato de como se considera a Bíblia) a forma caricatural e oportunista com que é, por estes, abordada. Creio que o mesmo ris-co se pode correr em relação aos textos literários, mas não é disto que estamos falando. Ao incorporar um texto que, em muitos senti-dos, foi a visão privilegiada de determinado autor, é impossível dei-xar de pensar em suas possibilidades educacionais e, uma vez que faz parte da cultura de uma época, trazer à tona seus elementos for-madores e transformadores.

Este relacionar-se com o mundo, embora inclua os momentos mencionados acima, tem sido o campo que talvez tenha gerado mais controvérsias no terreno dos debates sobre a arte em geral e so-bre a estética em particular. Percebe-se que tanto críticos como artis-tas têm posições diferentes, às vezes opostas, quando opinam sobre o seu trabalho e, em particular, sob o prisma de meu interesse espe-cífico: o romance.

Deixando de lado a história das controvérsias, no momento o que desejo realçar é o relacionamento do autor com o mundo que o cir-cunda e aquele com o leitor, o que tornaria mais claras as possibili-dades de influência e importância para o indivíduo que lê. Se tives-se, neste instante, de enumerar o quanto foi importante para mim, na adolescência, a leitura do Jean Christophe, de Romain Rolland, e se isto exigisse o elenco de reflexões feitas a partir do texto e aquelas que

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anotei, teria que produzir um volumoso texto. Posso pensar também no quanto os Karamasoff e Hamlet serviram de embasamento para sé-rias reflexões sobre meu próprio existir. Sei que poucas pessoas pode-riam, tendo-os lido, discordar do que estou dizendo; mas o que pre-ocupa é por que não debatemos estas peças em nossas digressões sobre a sociedade, sobre sua influência em nossas vidas, etc..

A pergunta que cabe aqui é: qual a importância disso tudo em nosso existir e que reflexos tiveram sobre nossa vida afetiva, nosso trabalho in-telectual e nossa maneira de ver e relacionar-nos com outras pessoas?

O que não tornamos claro para nós mesmos é o quanto estas pro-duções influenciaram nossos passos, nossas escolhas e nossa pró-pria maneira de fazer ciência (mesmo que tenha sido, na maioria das vezes, de forma não-consciente). De qualquer maneira, hoje é mais fácil dizer que parte da atitude de ignorar os textos literários revela muito mais o desconhecimento deles do que uma atitude de reflexão cuidadosa. Um de nossos objetivos é o de mostrar que está se tornando mais constante o entendimento de que há uma in-terpenetração fecunda, uma relação dialética entre os dois campos (ciência e literatura) e, quanto mais nos apercebemos disso, mais sentimos que vem sendo, cada vez mais, difundida também a ne-cessidade de integração.

O relacionamento que mantemos com o mundo circundante (natu-reza e sociedade) faz com que constatemos a importância da imagi-nação criadora, mesmo que ainda sofra percalços e resistências. Sa-bemos, no entanto, que esta é uma tendência que vem se impondo.

Assim, não se pode apenas indagar somente sobre o que é possí-vel conhecer através da literatura, sob pena de condicionar, limitan-do, a resposta. Vimos, anteriormente, que é indiscutível que ela traz conhecimento, produz saber e, não raro, antecipa as conquistas da filosofia e da ciência.

O romance conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx, ele pratica a fenomenologia (a busca da essência das situações humanas) antes dos fenomenólogos. Que soberbas descrições “fenomenológicas” em Proust, que não co-nheceu nenhum fenomenólogo. (Kundera, 1986:34).

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Na mesma perspectiva podemos acrescentar algumas observações complementares. Em primeiro lugar um fato: Os Buddenbrook, de Thomas Mann, foi publicado em 1901, e A ética protestante e o es-pírito do capitalismo, em 1904-1905. O texto de Mann não trata so-mente da “decadência de uma família alemã”, como é comumente comentado, mas das relações entre o protestantismo e capitalismo de modo original, tornando palpáveis as configurações descritas posteriormente por Max Weber.

As longas citações que Marx faz ao longo de vários textos mos-tram o quanto Shakespeare e Goethe anteciparam considerações im-portantes a respeito do dinheiro, trazendo elementos esclarecedores sobre relações humanas, transformações pessoais, isolamento, de-sumanização, etc.., ou seja, componentes necessários a qualquer abordagem numa configuração social, o que parece ter sido comple-tamente esquecido na maior parte dos pronunciamentos dos econo-mistas de hoje. Mas sabemos que as posições atuais são fruto de um pensamento único, imposto pelo domínio exercido sobre os meios de comunicação, somente possível numa conjuntura que nos apro-xima do pensar totalitário.

Talvez fosse mais indicado iniciarmos um passeio sobre a natureza mesma desse conhecimento, ou de sua peculiaridade e abrangência; e, aí sim, perguntar — o que podemos saber?

Comentando “O que é literatura?”, Eagleton mostra que não é possível separar os textos de ficção dos ensaios sobre eles produ-zidos. Ao mencionar estudos críticos, peças de teatro e os próprios ensaios, mostra que a distinção entre “fato” e “ficção” é, muitas ve-zes, questionável.

As considerações que pretendemos fazer nesta etapa se relacio-nam mais diretamente com as posições expostas por um escritor, Mi-lan Kundera, e com Terry Eagleton (em sua posição de crítico e pro-fundo analista da sociedade contemporânea, suas reflexões sobre estética e especificamente sobre literatura). Tomemos, inicialmente, duas declarações destes autores que me parecem complementares:

Na verdade, a teoria literária é, em si mesma, menos um objetivo de investigação intelectual do que uma perspectiva na qual ve-mos a história de nossa época. Tal fato não deveria provocar sur-

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presa, pois qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem, sentimento e experiência humanos, inevitavelmente envolverá crenças mais amplas e profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos, problemas de poder e sexualidade, interpretações da história passada, versões do presente e esperan-ças para o futuro. (Eagleton, 1983).

Vejamos agora Kundera:

É nesse sentido que compreendo e compartilho a obstinação com que Hermann Broch repetia: descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhe-cida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance. (Kundera, op. cit.).

E, mais adiante:

Em contrapartida, esses romancistas descobrem “o que somente um romance pode descobrir” mostram como, nas condições dos “paradoxos terminais”, todas as categorias existenciais mudam subitamente de sentido: que é a aventura se a liberdade de um K. é totalmente ilusória?...

Finalmente, com Ítalo Calvino:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. (Calvino, 1990).

Podemos sentir, de forma mais ampla, o porquê do clima de con-trovérsia que vimos mencionando em relação ao terreno da literatu-ra. Ao mesmo tempo em que mudam as condições de vida, altera-se significativamente a forma do romance, e o que o autor se propõe a fazer quando escreve. Ao lado de algum aspecto negativo, que exis-te, o debate intenso, a discordância sempre presente são uma de-monstração viva de que a existência humana (o que implica dizer,

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natureza, e a sociedade) exige necessariamente esse clima que, de certa maneira, pode ser extremamente fértil, pois reflete mais ade-quadamente a essência das relações entre os homens que compor-tam e incluem esta ambigüidade e que permite que se exprimam por diferentes formas que, ora se negam, ora se complementam.

Acredito que é muito mais fecundo considerar esse clima numa perspectiva dialética e complementar, possibilitando assim o apro-veitamento mais completo de uma produção que, além de extensa, é sempre mais aberta a novas posições.

Mas é preciso que se pense aqui a dialética como uma disposição inarredável para se receber e perceber o novo e a compreensão do manancial imenso das contradições do que chamamos real, e final-mente a disposição (pois esta é a essência do ser) favorável à mudan-ça e a eterna desconfiança em relação à estabilidade.

Sempre me pareceu que a percepção mais ampla desse clima (ou relação) era mais visível no campo da literatura. Concordando com o trecho de Eagleton, citado acima, trata-se de uma perspectiva mais fértil, e, repito, não excludente de outras. Quero trazer dois exem-plos que me parecem propícios: um deles diz respeito à relação do artista com a própria obra (Bocaccio) e outro ao método empregado na produção da obra (Mann).

Creio ser possível considerar o Decamerão como tendo seu princi-pal enfoque na percepção de que a natureza fornece elementos fun-dadores para a conduta humana e que sua ignorância ou negação desvirtua a própria vida. Seu estilo ousado e a originalidade de seu texto fazem com que entre em choque com o pensamento dominan-te de sua época, tanto a moralidade cristã quanto o cânone literário. A exaltação da beleza, a centralidade dos amores terrenos compõem e fornecem o húmus fertilizado da vida humana.

Fala-se de sua influência sobre o próprio Shakespeare e da riqueza e variedade de suas personagens. No entanto, antes da produção de sua obra maior, enfrentando crises tanto financeiras quanto sentimentais, pode-se sentir em Rimas um prenúncio de crise religiosa, que, no en-tanto, não o impede de produzir esse texto que vai se tornar tão impor-tante para outros autores e para a percepção da própria realidade.

Mas, em 1362, no auge de sua aceitação como escritor e como fi-gura de certa influência na sociedade, recebe a visita de um monge

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que lhe transmite a notícia de que um homem santo de Siena, recen-temente falecido, teve uma visão profética quanto à proximidade de sua morte, instando para que se dedicasse a estudos religiosos e à renúncia de suas obras anteriores. A crise que já se manifestara, em-bora mais tênue anteriormente, recrudesce e ele se sente tentado a entrar para um convento. Petrarca, de quem se tornara amigo anos antes, conseguiu dissuadi-lo.

Chamo a atenção para o incidente com o intuito de mostrar que vários autores, que viveram em épocas semelhantes ou inteiramen-te diferentes, enfrentaram crises de natureza parecida ou diversa que poderiam (e de fato algumas aconteceram) mudar o rumo de uma produção ou até a negação de sua inspiração fundamental, em fun-ção do desencanto, das pressões externas ou de perseguições. No entanto, e felizmente para o acervo da humanidade, um número significativo permaneceu com sua visão-de-mundo, trazendo mag-níficas obras nas quais podemos enxergar melhor o drama da vida humana. Se não há engano devemos a Petrarca a reafirmação da perspectiva com que Bocaccio construiu sua obra.

E é aí que se reveste de importância o que Baudelaire percebeu quando tratava do universo da arte e das dificuldades pelas quais passam os artistas em sua relação com as diferentes visões-de-mun-do à sua volta; ao mesmo tempo em que se destaca a perspectiva em que a literatura é produzida; a da imaginação.

Enfim ela representa um papel poderoso mesmo na moral, pois, permitam-me chegar a esse ponto, o que é a virtude sem imagi-nação? É como dizer virtude sem piedade, virtude sem céu, algo de duro, de cruel, de esterilizante, que, em certos países, tornou-se a beatice, e em outros o protestantismo. (Baudelaire, 1993).

Baudelaire se refere também a outros campos, mostrando o quanto a ausência da imaginação pode prejudicar toda e qualquer ativida-de humana. Mas o que nos interessa especialmente é o fato de que a multiplicidade, as diferenças de pontos de vista e de posições exis-tem no mundo em que todos vivemos (e o artista está apto para per-ceber tudo isso) e que a escolha não exclui necessariamente nenhu-ma delas, mas elege a que lhe parece mais adequada.

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Desta tomada de posição, ou através desta escolha, novos cami-nhos podem aparecer, aumentando o leque através do qual conhe-cemos e a multiplicidade do que podemos conhecer. Como existe uma dificuldade básica em definir literatura, não se pode prever nem classificar a priori o que se pode conhecer através dela, embora sa-bendo que muito se pode conhecer.

O outro exemplo que quero trazer vem de uma declaração de Tho-mas Mann, que, de certa maneira, reforça uma tendência atual: “Hoje em dia, um romance precisa ser mais que um romance”, e continua argumentando que, além de romance, precisa ser: ensaio, tratado científico, obra de história e reportagem, pois só assim o leitor pode-ria acreditar na “verdade da ficção” (Mann, 1975). Carpeaux enume-ra algumas das importantes obras que representaram esta posição: o Doutor Fausto do próprio Mann; o Jogo das pérolas de vidro, de Hes-se, e continua com Jules Romains, Dos Passos e Joyce. Mas dedica maior atenção às obras de Broch e Musil, principalmente A morte de Virgílio e O homem sem qualidades, onde aborda o conteúdo dessas obras, que seriam mais representativas desta visão.

Como se vê, a definição ou o alcance do próprio romance sofre alte-rações conforme as tendências de uma época ou as relações com a so-ciedade. Eagleton alerta para o fato de que o próprio objeto da literatu-ra é de difícil definição, mas, voltando a ele mesmo, lembremo-nos de que nos falou em uma perspectiva que incluiria significação, valor, lin-guagem, sentimentos, etc.., e também de sexualidade e esperanças.

Ou seja, cremos que vai ficando mais claro que a prática da litera-tura e, especificamente, o romance envolve relações totais do ser hu-mano sem excluir os elementos que (talvez) não possam fazer parte de certas práticas científicas.

O texto citado anteriormente de Kundera se refere a um leque razo-ável de escritores, embora se detenha especialmente em Kafka, Hazel, Musil e Broch, que são selecionados como representantes especiais do período abordado, além de serem também considerados como au-tores exemplares. Ressalta (o que me parece bem importante) que um autor dessa envergadura não trata do tempo de determinado indivíduo e não se limita à psicologia deste, mas de um movimento mais amplo que abarca outros indivíduos. É o tempo que transcende as limitações de uma data específica e aquelas peculiaridades de um indivíduo iso-

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lado. É o que quer dizer com “a busca da essência das situações hu-manas”. E é também isto que pode explicar, por exemplo, a perma-nência e a importância das tragédias, ou melhor, do teatro grego.

Ao comentar Kafka, argumenta que este não pergunta quais as mo-tivações interiores de determinado indivíduo e sim quais são, ainda, as possibilidades do homem num mundo em que os fatores exterio-res tornaram-se tão esmagadores que as causas interiores não pe-sam mais nada. E conclui: “Apreender um eu, quer dizer, em meus romances, apreender a essência de sua problemática existencial.” (Kundera, op. cit:11).

Assim, esta busca um campo que não pode se limitar à psicolo-gia do indivíduo, ou à análise sociológica de determinado período e nem se prender à uma análise de conjuntura que apenas ressaltasse as lutas pelo poder ou às situações totalitárias.

Mas, no fundo, é o que posso perceber, um romance bem-sucedi-do não é a soma desses elementos todos, mas a síntese privilegiada que permite visualizar os indivíduos em suas relações com a natureza e a sociedade circundantes. Creio que isso ficou claro também quan-do pensamos em São Bernardo, de Graciliano Ramos, e Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida, através das excelentes abordagens de Antonio Candido e Roberto Schwarz.

Estas reflexões conduzem, assim penso, na direção de uma “peda-gogia da imaginação”, como sugeriu Calvino, ou seja, um modo de exercitar o pensamento de forma inclusiva em relação à imaginação. O que se passa no interior de nosso pensamento pode ser racional-mente apreendido (não controlado) para que não se perca em situa-ções artificiosas, mas que floresça de forma produtiva e enriquecedo-ra. Assim, nossas intuições poderiam aflorar mais freqüentemente, o que possibilitaria o processo produtivo. Em tal postura o aprendizado deixa de ser simples memorização ou a apreensão de regras, mas fun-damentalmente uma atitude de ligar, relacionar e finalmente de criar.

A imaginação alimenta a utopia. Ao pensarmos nas limitações do mundo do presente é sempre possível imaginar um mundo melhor e recuperar as esperanças no futuro. Como as coisas se situam normal-mente o que se passa é que — mesmo com o fantástico desenvol-vimento da tecnologia — as configurações do cotidiano mostram o acentuado desenvolvimento da injustiça, da fome, da ignorância, etc..

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A esperança fertilizada pela imaginação possibilita encontrar e trazer à tona tanto os momentos do passado em que vozes libertadoras e mo-vimentos sociais trouxeram perspectivas mais ricas e promissoras à ex-periência humana, quanto o reencontro com vislumbres e inspiração para atitudes em direção ao futuro. Nunca é demais lembrar o quanto determinados romances (quase sempre produzidos por indivíduos in-satisfeitos e atentos para os estrangulamentos sociais, de qualquer na-tureza) prenunciaram, avisaram, mostraram por diferentes maneiras, exatamente em função da perspectiva em que foram produzidos, que era necessário recuperar o que a humanidade tende a esquecer: a ne-cessidade permanente de buscar um mundo melhor, a utopia.

A literatura vem a ser o terreno em que essas combinações de co-nhecimento enriquecem o aprendizado da vida em todas as dimen-sões possíveis.

Em Edgar Allan Poe, no Poe visto por Baudelaire e Mallarmé, Valéry vê o demônio da lucidez, o gênio da análise e o inventor das mais novas e sedutoras combinações da lógica com a imagi-nação, do misticismo com o cálculo, o psicólogo da exceção, o engenheiro literário que aprofunda e utiliza todos os recursos da arte. (Calvino, op cit:81).

Mas é preciso estar atento para o fato de que esta atitude produz diversidade, diferença de análise e de perspectivas e não a um resul-tado único. As diferentes combinações permitem um olhar variado e/ou matizado para os dados da experiência. Num processo de ensi-no esse aspecto é fundamental, como foi dito anteriormente.

Nas chamadas posturas pós-modernas as combinações ciência-imaginação têm sido enfatizadas, mas o curioso é que nas atitudes pedagógicas isto ainda não se expressa com clareza, porque fora o enunciado, tantas vezes repetido, ainda não conseguimos vislumbrar as mudanças de currículo, ou seja, fala-se muito sobre algo que não se concretiza; mesmo porque a posição atual do professor é seme-lhante (grosso modo) a um doméstico titulado, que executa mera-mente tarefas dentro de programas que lhe são entregues. E aí, ain-da, uma constatação importante: é preciso lembrar que um autor de romances, por exemplo, é (com caríssimas exceções) alguém que, in-

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satisfeito com o mundo à sua volta, retrata a sociedade, enfatizando seus estrangulamentos, suas distorções e empedrejamento. Ou seja, é um indivíduo que, insatisfeito, denuncia as formas opressoras do que acontece em suas relações com a sociedade. As atuais relações entre os professores e as entidades às quais pertencem não são de molde a possibilitar mudanças que impliquem alterações administrativas ou que alterem os lucros, conforme o caso.

A atitude de mergulhar em seu próprio interior representa, para o romancista em particular ou para o artista em geral, um mergulhar na própria sociedade, e a posição pode gerar atitudes criadoras. Tal-vez essa seja uma das dificuldades em se conduzir as atitudes peda-gógicas para uma valorização do romance. Enquanto leio os Kara-masoff para me ilustrar ou como entretenimento (se isto é possível), não ofereço perigo, mas quando o texto me tira o sono, como que-ria Kierkegaard em relação à história de Abraão, o mais provável é que eu me torne um potencial descontente, um insatisfeito que pas-se a incomodar os que me cercam, quando não ameaço diretamen-te um bom negócio.

Mesmo que não fosse por outros, somente este aspecto mostra a importância da literatura numa proposta pedagógica, pois o clima, as perspectivas criadas e as visões diferenciadas trariam, com maior eficácia, as mudanças de atitudes em relação aos atos de ensino e aprendizado, uma vez que passariam a pertencer tanto ao mundo de quem ensina como de quem aprende.

CoNCLUSÃo

O texto de Candido, além de trazer uma visão mais ampla do pró-prio romance (que não foi captada na extensão devida por Mário de Andrade, por exemplo), mostra o quanto os aspectos formais de um texto bem sucedido ampliam e, mesmo, produzem conhecimento.

Como já foi mencionado, Roberto Schwarz o examinou com cui-dado e o coloca em perspectiva de significativo avanço da crítica li-terária no país e o quanto nos fez compreender melhor o período em que foi escrito, como também trouxe um conhecimento maior de nossa própria cultura:

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No plano da literatura, pela natureza das coisas, a forma ainda a mais secreta, inconsciente ou intelectualizada, tem de ser apreen-sível pela imaginação, sem o que deixa de existir. Ao passo que no plano da realidade, a qual para quem escreve se compõe de vida prática, conhecimentos e bibliografia, ela pode não existir de modo literariamente disponível, embora esteja intuída. Nes-tes o crítico tem de construir o processo social em teoria, tendo em mente engendrar a generalidade capaz de unificar o universo estudado, generalidade que antes dele o romancista havia per-cebido e transformado em princípio de construção artística. Este trabalho, se responde à finura de seu objeto, produz um conheci-mento novo (grifo nosso). Trata-se, noutras palavras, de chegar a uma estrutura de estruturas, ou melhor, a uma estrutura composta de duas outras: a forma da obra, articulada ao processo social, que tem de estar construído de modo a viabilizar e tornar inteli-gível a coerência e a força organizadora da primeira, a qual é o ponto de partida da reflexão. (Schwarz, 1999).

Em outras palavras, o condão da literatura está em poder de avan-çar na direção da dialética da própria existência e não apenas no rumo de explicações que têm sido até agora limitadas pelas próprias regras. Convém recordar que grande parte das dificuldades encontradas por alguns marxistas ainda se relaciona com a interpretação distorcida de conceitos como infra-estrutura e superestrutura, ao considerar esta como reflexo mecânico daquela. Como a questão para Marx era con-siderar o trabalho como atividade humana fundamental, portanto ge-radora do pensamento, o que importa é conhecer as relações que daí derivam, e o quanto as influências recíprocas se complementam.

Gostaria de concluir estas considerações através daquelas que faz um crítico de arte ao comentar o cinema contemporâneo. Trata-se de Boris Groys, professor de filosofia da Universidade Karlsruhe: co-mentando alguns filmes atuais em Deuses escravizados, na revista alemã Lettre, faz avançar algumas considerações importantes na di-reção do que devemos tomar como significativos avanços das aca-demias de todo o mundo no sentido de incorporar com maior perti-nência as contribuições da arte.

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Diz ele:

Ora, perguntará alguém: por que o espectador levará a sério este tipo de auto-reflexão? Afinal, esses monstros, vampiros, alieníge-nas e máquinas pensantes parecem mais produtos de uma imagi-nação totalmente pueril, que não cabe tomar a sério. Esses pro-dutos da fantasia não fornecem, à primeira vista, uma explicação de como a indústria cinematográfica é e funciona “na realidade”. Para sabê-lo, muito mais úteis parecem ser a sociologia, a análise econômica, a análise do poder, etc.. Sem prejuízo do que todas estas veneráveis ciências são capazes, incorrem num erro funda-mental. Não consideram a possibilidade de que a própria realida-de, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido. (Groys, 2001).

Ainda:

Isso porque, de seu lado, toda teoria é sobretudo um texto — e portanto uma fração da literatura. Ao mesmo tempo todo texto, como já constatara Platão, é também imagem — isso foi muito bem evidenciado em nossa época pela arte conceitual. Assim o teórico, seja lá sobre o que escreva, jamais pode esquecer que a alta reflexão da escrita por meio da arte, sendo incontornável, implica também o seu próprio ato de escrever. Quando, portanto, o teórico se declara em condições de adotar uma posição externa em relação à arte, apenas manifesta com isto sua incapacidade de refletir a dimensão da própria produção do seu texto.

Aprendemos, ao longo de nossa própria experiência, que o passa-do é móvel e que depende de nossa movimentação vê-lo sob ângu-los diferentes. Fatos que pareciam desimportantes ou até mesmo sem significado aparecem sob novas luzes à medida que nos movemos. Sabemos também o quanto a repetição de determinadas passagens de nossa existência, se narradas do mesmo jeito, com as mesmas ên-fases, apenas significa esclerose prematura ou mesmo definitiva.4

4 “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será cor-

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Creio que é preciso refletir sobre as lacunas de nossa formação acadêmica e começar a pensar que, às vezes, estamos apenas repe-tindo um jogo cujas regras compreendemos com certo esforço e nos causa medo quebrá-las. Roland Barthes pode causar-nos certa in-quietação quando nos fala que o texto só nos é prazeroso quando fala ao nosso corpo porque este tem idéias diferentes das que usu-almente expressamos. Ficamos um pouco intranqüilos quando pen-samos em poesia (afinal a existência dos trabalhos artísticos acaba nos convencendo disto), mas convém recordar que Barthes falava de todo e qualquer texto (Barthes, 1970).

Ainda no horizonte de reflexão do marxismo não se pode esque-cer do oportuno ensaio de Octávio Ianni Sociologia e literatura, no volume Sociedade e literatura no Brasil. (Ianni, 1998).

Suas observações sobre a coincidência de interesses e da fecunda interpenetração das abordagens de cada uma, sociedade e literatura, representam significativo avanço na percepção tanto do universo so-cial como da contribuição individual no campo da cultura em geral e do conhecimento em particular.

Menciona o fato de que é um diálogo ou controvérsia que se re-nova sempre, mostrando como se dá uma troca bastante frutífera entre ambas.

“O que poderia ser a realidade em geral é delimitado, taquigrafa-do, compreendido, interpretado e exorcizado”, é realizado por am-bas as atividades, na busca da explicação.

Creio que se vai tornando mais comum a aceitação de que as de-limitações de área e de campo são, embora uma necessidade, provi-sórias em face da imensidão e da complexidade do que se considera como realidade. Percebe-se também que a invenção não é um apa-nágio das letras, mas também da ciência, que, a esta altura das refle-xões, reconhece o quanto deve à imaginação.

Mas o avanço significativo se dá, a meu ver, quando reconhece que uma vez que “a realidade é complexa, intrincada, opaca e infi-nita (grifo nosso), a reflexão é levada a taquigrafar e selecionar, para compreender e explicar, ou esclarecer” (p.13).

rigida também até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.” Machado de Assis - Memórias Póstumas de Brás Cubas. Edigraf, S. Paulo (11).

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Dentro da perspectiva em que tento trabalhar, duas constatações são essenciais:

Em primeiro lugar essa compreensão sempre foi mais aceita no campo da produção artística. Ao exigir maior liberdade para suas ati-vidades, o artista se coloca em certa oposição, com raras exceções, ao positivismo e outros ismos provenientes do iluminismo, ou me-lhor, mesmo sendo também lógico e racional, não vê por que repri-mir o mundo dos sonhos e o clima da imaginação. Não a teme, mas a deseja e deseja ardentemente porque percebe o quanto é necessá-ria à composição de sua própria vida.

Em segundo: sendo a realidade infinita, todas as construções são provisórias e todos os discursos incompletos. Assim, quando ofere-cem os resultados de seu trabalho aos outros, todos (artista e cientis-ta) estão também se oferecendo, com suas limitações, ao exame per-manente não só dos leitores imediatos como das gerações futuras. Isto nos leva à constatação, cada vez mais firme, de que não só as te-orias não abarcam a realidade como são intrinsecamente insuficien-tes para dar conta da existência humana, por um lado, e da própria natureza, por outro. Não se trata de discutir sua relevância, pois são altamente necessárias e até imprescindíveis, mas devem ser sempre aceitas com as reservas de quem reconhece sua provisoriedade.

Além do mais, convém ressaltar que o que pode despertar a imagina-ção é determinado “clima”, criado talvez por se estar ouvindo a aber-tura do Tanhauser, ou por súbita paixão. Inicia-se assim um processo mental de associações que despertam constatações reveladoras sobre a existência, sobre a vida. Não importa (e é até desejável) que depois o indivíduo faça encadeamentos lógicos e racionais que permitam a con-tinuidade das explicações, mas a percepção desencadeada pela imagi-nação traz a possibilidade de saltos insuspeitados e essenciais.

Na verdade isto se dá também com o mais empedernido dos cien-tistas, filho do racionalismo. O problema existe apenas quando ele não o reconhece.

Voltando a Ianni, convém percorrer os caminhos desenvolvidos em seu ensaio, quando continua mostrando como são importantes “os contrapontos” nação e narração, religião e capitalismo e racio-nalização e alienação.

Concluindo, talvez seja necessário dizer o porquê desse percurso

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pelo manancial marxista: em primeiro lugar, porque é muito mais fér-til do que as tendências atuais que o pensamento único quer impor. A ideologia da globalização não deseja apenas ser hegemônica, mas úni-ca e absoluta. Pelo domínio dos centros de decisão, pelo monopólio da mídia, o que podemos ver são seus arautos, principalmente os eco-nomistas de plantão, a tentar demonstrar que o que está aí foi determi-nado pelas imutáveis forças cósmicas (parece que já estão dando um descanso a Deus). Este domínio tem sido, de certa maneira, bem su-cedido em mascarar o que chamam de realidade, pois a pauperização crescente, o desemprego, a fome, a miséria e a ignorância estão alcan-çando índices assustadores. A violência, relatada até por órgãos de in-formação semi-oficiais, atinge, no país, o nível de uma guerra civil.

Dessa forma, por que não recorrer a uma perspectiva que se tem caracterizado pela defesa dos mais fracos e o oferecimento de um mundo melhor? Os erros do passado, tanto os da ação política, como os teóricos, não podem ser comparados aos que tem efetuado o sis-tema, que, desde que foi denunciado, tanto pela teoria como pelos literatos, apenas aperfeiçoa seus mecanismos totalitários.

Esta trajetória me pareceu oportuna para que se reconheça que houve sempre, nesta perspectiva, clareza quanto à importância da li-teratura em geral e do romance em particular, tanto por parte de En-gels como por Marx. Já mencionamos aqueles que se dedicaram à crítica e ao estudo da literatura, no terreno de marxismo, mas o que se tem, sem dúvida, a lamentar é sua pouca utilização nos dias de hoje. Quando a discussão não é um tanto canhestra sobre se tal ro-mance é “engajado” ou não, temos presenciado menções isoladas quando o texto nos fala diretamente de algum conflito ou mesmo de atitudes diretamente revolucionárias.

Guardando as devidas ressalvas, vamos deixar que o próprio Marx conclua:

Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda um prazer estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de modelo inacessíveis. (Marx, 1979).

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DiSCRiMiNAÇÃo RACiAL E EDUCAÇÃo No BRASiLRomero C. B. da Rocha Valéria Pero

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Este artigo analisa fatores explicativos para menor escolaridade dos negros no Brasil comparada a dos brancos com características pessoais e familia-res semelhantes. A hipótese levantada pelo trabalho é que a diferença de retornos salariais esperados com aumento da escolaridade entre brancos e negros explica, em alguma medida, a menor média de anos de estudo dos negros. Para isto, utiliza-se o embasamento teórico dos modelos de discri-minação estatística, em que o empregador utiliza raça como proxy para características não-observáveis como qualidade educacional e, por isso, remunera menos os negros com escolaridade semelhante à dos brancos. Como conseqüência, os negros possuem menos incentivos que os brancos para adquirir mais anos de estudo. Os resultados alcançados são que a diferença de retornos escolares entre brancos e negros é significativa e negativa para os negros e que, mesmo controlando por qualidade escolar, há discriminação no Brasil.

This work investigates the reasons for the low level of schooling for the blacks when compared to the whites in Brazil, even after controlling for family’s background and income. The hypothesis is that the smaller wage rate return from increasing schooling for blacks than for whites has impact on blacks’ school attainment. To assess this hypothesis, the theory of statis-tical discrimination is applied, according to which the employer uses race as a proxy for non-observable characteristics such as quality of education. This may explain the less payment for blacks with the same level of scho-oling than whites. Therefore, black people have less incentive to acquire more education. The results show that the difference of the rate of return from education between blacks and whites has a negative (and significant) impact on blacks’ school attainment.

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iNTRoDUÇÃo

A elevada desigualdade de renda no Brasil tem sido um dos te-mas mais estudados pela literatura especializada em economia no país. Dentre os aspectos que preocupam os pesquisadores está a discriminação racial. O diferencial de rendimentos entre raças no mercado de trabalho brasileiro é visível. Exemplos de atos discrimi-natórios podem ser encontrados sem nenhuma ajuda de testes em-píricos no nosso dia-a-dia, desde gritos de torcida em nossos está-dios de futebol até impedimento de casamentos inter-raciais pelos pais. No entanto, é no mercado de trabalho que está o foco desse estudo. Como se conceituaria discriminação racial no mercado de trabalho? Será que ela realmente existe? Quais são as explicações para a sua existência? Por que os negros e os pardos têm, em mé-dia, remuneração mais baixa que os brancos em nosso país? Como diminuir essa desigualdade?

Sob o ponto de vista do mercado de trabalho, um indivíduo é dis-criminado se o contratante levar em consideração na escolha do em-prego e do salário não apenas aspectos objetivos, como sua produ-tividade, mas também aspectos subjetivos, como raça ou sexo. Num mundo de concorrência perfeita, se agentes têm mesmas caracte-rísticas econômicas (produtividade) e uns ganham menores salários que outros, as firmas poderiam obter lucro contratando os agentes de menor salário até o ponto em que os salários se igualariam. Por que, então, existe esse diferencial salarial?

O trabalho seminal na literatura econômica sobre a questão é o li-vro de Becker (1957), onde é apresentada uma teoria em que a dis-criminação no mercado de trabalho se dá através de preferências por discriminação tanto do empregador quanto do empregado, ou até mesmo do consumidor ou do governo. Isto geraria um custo não-monetário para a pessoa que possui essas preferências, que resulta-ria na discriminação do mercado de trabalho.

Posteriormente, outras explicações foram dadas para a existência de discriminação no mercado de trabalho. Stiglitz (1973) criticou o modelo de preferências por discriminação com o argumento de que a discriminação no mercado de trabalho advinda das preferências por discriminação só é sustentável se existirem falhas de mercado

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ou barreiras institucionais, tais como salário mínimo, sindicatos, en-tre outros. Para Arrow (1972, 1973) e Phelps (1972) existe o que eles chamam de discriminação estatística. Como na média os negros, por exemplo, são menos produtivos por causa de variáveis não-ob-serváveis, então, a variável observável raça é utilizada como proxy para produtividade e alocam os negros para atividades que exigem menores habilidades e remuneram menos. Arrow (1998) apresenta ainda uma outra explicação em que inclui a importância das intera-ções sociais através das redes de influência (conhecimentos, cartas de referendo etc..), que poderiam gerar algum tipo de segregação.

Entretanto, não é só do ponto de vista teórico que o conceito de discriminação é polêmico. Do ponto de vista empírico, a dificulda-de é ainda maior. O desafio do pesquisador empírico se traduz em identificar trabalhadores igualmente produtivos, em que uns rece-bem rendas menores no mesmo trabalho, ou são alocados em postos de trabalho inferiores, ou ainda, têm mais dificuldade de conseguir emprego por causa do grupo a que pertencem (racial, sexual etc..). A principal dificuldade está em inferir através dos dados a produtivida-de dos trabalhadores, conforme argumenta Heckman (1998). A gran-de questão é que, se existem grupos que têm uma maior probabili-dade de possuir características não-observáveis que têm correlação com produtividade num nível que diminui a última, então, a literatu-ra empírica estaria sobreestimando a importância da discriminação. Além disto, há ainda o problema nos erros de medida para a identifi-cação da renda exata que os trabalhadores recebem através dos da-dos de pesquisas por amostragem em domicílio que, muitas vezes, se mistura aos efeitos atribuídos à discriminação.

A minoração do problema de inferir a produtividade com êxi-to pode ser a melhoria dos dados utilizados para a estimação. Nos EUA, por exemplo, diversos artigos utilizam o teste das For-ças Armadas (AFQT) como proxy para qualidade escolar e cruzam com os dados longitudinais da pesquisa de domicílios. Assim, é possível inferir uma proxy para qualidade escolar diretamente li-gada à pessoa que recebeu aquela qualidade escolar. No Brasil, não existe esta possibilidade, gerando dificuldades para mensura-ção da discriminação. Entretanto, este trabalho é o primeiro sobre discriminação do país a utilizar uma proxy de qualidade escolar,

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qual seja, a média das provas do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb) de matemática aplicadas ao terceiro ano do ensino médio por raça e por estado. Assim, não é possível associar dire-tamente o indivíduo à sua qualidade escolar, mas à média da qua-lidade escolar de seu estado e de sua raça.

A hipótese deste trabalho é que a discriminação salarial esperada contra os negros tem influência na decisão de obter escolaridade for-mal. Em outras palavras, na medida em que o mercado de trabalho adota não somente critérios de produtividade para a contratação e a remuneração dos trabalhadores – como, por exemplo, escolaridade formal – mas também aspectos subjetivos ligados à raça, tem-se um sistema em que os negros têm menos incentivos a estudar. Então, um dos principais objetivos deste trabalho é medir a influência da dife-rença de retornos à escolaridade entre brancos e negros na escolari-dade dos últimos. Para tanto, é necessário estimar, primeiramente, se existe de fato discriminação salarial contra os negros e, em seguida, se essa discriminação tem efeito sobre a escolaridade dos negros.

Assim sendo, a primeira seção do artigo apresenta uma análise da literatura sobre discriminação racial e educação no Brasil, assim como algumas estatísticas descritivas. A segunda analisa a literatu-ra teórica que utiliza o modelo de discriminação estatística. A seção seguinte mostra a metodologia aplicada para estimar a influência da discriminação salarial esperada sobre escolaridade dos trabalhado-res, aqui entendida com a influência da diferença dos retornos de es-colaridade entre brancos e negros sobre a escolaridade dos negros. A quarta seção apresenta os principais resultados.

SEÇÃo 1. DiSCRiMiNAÇÃo RACiAL E NÍVEL DE ESCoLARiDADE No BRASiL

EViDÊNCiAS DA LiTERATURA

A idéia deste trabalho surgiu a partir do trabalho de Silva (1992), no qual ele constata que, mesmo controlando para todas as variáveis de histórico familiar, ainda existia uma diferença no nível de escola-ridade entre brancos e negros. Ou seja, os negros têm menos eficiên-cia em converter histórico familiar em vantagens para anos de estu-do. E a pergunta que veio à tona foi: por que isto acontecia?

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A hipótese deste trabalho para responder a essa pergunta é que as diferenças de retornos de escolaridade entre raças estão influencian-do na decisão de estudar dos negros. No entanto, para que tal este-ja ocorrendo, em primeiro lugar, tem que haver evidências de que os retornos à escolaridade são diferentes para negros e brancos. O próprio Silva (1992) constatou que, considerando o histórico fami-liar na regressão de salários, não se verificam significativas diferen-ças no retorno à escolaridade no salário dos negros e dos brancos. Entretanto, existia uma forte diferença entre retornos de escolarida-de no que ele chamou de status ocupacional. Ou seja, apesar da dis-criminação intra-ocupacional não ser significativa, a interocupacio-nal é significativa.

Soares (2000) chegou a um resultado semelhante com a Pnad de 1998, a partir da decomposição do diferencial de renda entre raças em três componentes: i) diferença na qualificação, ii) discriminação na inserção e iii) discriminação no salário. A discriminação na in-serção é definida pela diferença da taxa ajustada pelo método Oa-xaca-Blinder, nas regressões sem controle de ocupação, para a taxa ajustada com controle para ocupação. Os resultados desse artigo mostram que há discriminação tanto na inserção, quanto depois do controle por ocupação. Os homens negros ganhariam 10% a mais se não houvesse discriminação na inserção e 27% a mais se não hou-vesse discriminação nenhuma.

Henriques (2001) mostra que as diferenças entre as médias de es-colaridade entre brancos e negros são grandes, sendo de 2,3 anos de estudo em 1999. A taxa de analfabetismo entre os brancos com mais de 15 anos era de 8,3%, enquanto que para os negros era de 19,8%. A percentagem de negros com menos de quatro anos de estudo caiu de 55,5% em 1992 para 48,2% em 1999. Já a parcela de negros com mais de onze anos de estudo subiu de 2,7% em 1992 para 3,3% em 1999. Entre os brancos, 11,1% tinham mais de onze anos de estudo em 1992 e 12,8% em 1999. Em compensação 32,5% tinham menos de quatro anos em 1992 e 26,4% em 1999.

Estes dados mostram uma melhoria na escolaridade da população brasileira na década de 1990, tanto para brancos quanto para negros. Para Silva e Hasenbalg (2000), a melhoria da educação nesta déca-da é explicada, principalmente, pela melhoria em três tipos de deter-

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minantes. O primeiro tipo refere-se a determinantes econômicos, tal como melhorias nas condições de renda, de moradia e de recursos físicos que facilitam os estudos. Nesse sentido, destaca-se o proces-so de urbanização ocorrido nas últimas décadas, que transferiu a de-manda educacional para locais com melhor acesso às escolas. O se-gundo tipo está relacionado aos recursos educacionais ou ao capital cultural representado pelo nível de escolaridade dos pais, que tem melhorado ao longo do tempo. O último tipo de determinante refere-se ao componente demográfico sobre a estrutura familiar. Neste pon-to, é importante verificar que a diminuição da taxa de fecundidade e da população em idade escolar relativamente à população idosa tem influenciado também na estrutura das famílias. As famílias atualmen-te têm, em média, menos crianças com idade escolar, o que influen-cia na melhoria dos anos de estudo das crianças existentes.

Para se ter a precisa idéia da importância da educação para a de-sigualdade salarial brasileira, Barros, Henriques e Mendonça (2000) conseguem, com suas estimações, explicar a origem de quase 60% do total da desigualdade de renda brasileira observada. E, com a eli-minação das diferenças educacionais, ter-se-ia uma redução de 40% da desigualdade de renda. Isto significa que a educação é a respon-sável por 66% de todas as causas possíveis de serem identificadas estatisticamente como responsáveis pela desigualdade salarial. Os autores argumentam ainda que a desigualdade salarial entre traba-lhadores brasileiros com a mesma instrução é bastante parecida com a dos EUA, mas a do Brasil ainda é um pouco maior (a variância dos logaritmos é de 0,59 no Brasil e de 0,55 nos EUA). No entanto, a de-sigualdade salarial entre trabalhadores com níveis educacionais di-ferentes é muito maior no Brasil que nos EUA (a variância dos loga-ritmos é de 0,52 no Brasil e de 0,09 nos EUA).

Este artigo explora a hipótese de que os ganhos salariais com au-mento de escolaridade menores para os negros podem explicar, em alguma medida, as diferenças educacionais por raça que contri-buem para as desigualdades educacionais no Brasil e, por conse-guinte, para a elevada desigualdade de renda. Para retratar a situação brasileira, apresenta-se uma análise descritiva sobre as diferenças de escolaridade entre brancos e negros no Brasil e, em seguida, a meto-dologia aplicada para testar a hipótese do trabalho.

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UMA ANÁLiSE DESCRiTiVA SoBRE RENDA E ESCoLARiDADE PoR RAÇA E REGiÃo

A fonte de dados utilizada neste trabalho é a Pesquisa Nacio-nal por Amostra de Domicílio (Pnad) do IBGE para o ano de 2003. Com base nesta pesquisa, o universo de análise será dividido em dois grupos: (1) pessoas de 26 a 70 anos de idade, ocupadas na se-mana de referência da pesquisa e que responderam às perguntas sobre renda, escolaridade e posição na ocupação e (2) pessoas de 11 a 25 anos de idade que responderam a pergunta sobre escolari-dade e cujos pais responderam as perguntas sobre renda e escola-ridade. Esta divisão de coortes se deve à metodologia aplicada nes-te trabalho para estimar a discriminação racial, como ficará mais claro na próxima seção, em que os retornos salariais à escolarida-de dos ocupados com idade entre 26 e 70 anos podem influenciar o nível de escolaridade dos jovens de 11 a 25 anos. Nesta seção, serão utilizadas apenas as médias urbanas, uma vez que a Pnad não cobre a zona rural da Região Norte e as médias desta região fi-cariam enviesadas para cima1. Sendo assim, essa seção apresenta uma análise descritiva do perfil educacional e de renda dos grupos geracionais por raça e região.

No Brasil, conforme pode ser visto na Tabela 1,1, as diferenças en-tre raças no que diz respeito à renda e à escolaridade são grandes. A média da escolaridade dos negros no Brasil é de 7,5 e a dos brancos de 9. Verifica-se que entre os negros, a região mais escolarizada é a Região Centro-Oeste com média de 7,9. A segunda é a Região Nor-te com média de 7,7. Em compensação, entre os brancos, a Região Norte é a de pior escolarização (9,.2).

1 Na próxima seção, no entanto, quando serão introduzidas as variáveis de controle para explicar os ganhos salariais, serão consideradas também as pes-soas que vivem na zona rural.

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Tabela 1,1 - Escolaridade e renda per capita médias por região e por raça entre as pessoas de 26 a 70 anos em áreas urbanas

Região Renda mensal média Escolaridade média por região

Negros e pardos Brancos e amarelos Negros e pardos Brancos e amarelos

Brasil 593 1161 7.5 9.7

Norte 604 962 7.7 9.2

Nordeste 506 912 7.3 9.3

Sudeste 625 1244 7.6 9.9

Sul 596 1130 7.3 9.5

Centro-oeste 772 1439 7.9 10,0

fonte: pnad 2003

A diferença de escolaridade entre brancos e negros na Região Norte é a menor quando comprada com as outras regiões. Entre os brancos, a região mais escolarizada também é a Centro-Oeste, com 10,0, seguida pela Sudeste, com 9,9.

A renda mensal média brasileira dos negros com idade entre 26 e 70 anos é de R$ 593, enquanto a dos brancos é de R$ 1.161. Ob-serva-se também na Tabela 1.1 as diferenças de renda entre raças para as pessoas de 26 a 70 anos por região. Como era de se espe-rar, em termos de renda mensal média, o Nordeste é a região mais pobre, tanto entre os negros, com R$ 506, quanto entre os brancos, com R$ 912. Isso evidencia, então, um elo entre pobreza e baixa escolaridade, já que o Nordeste também é a região menos escolari-zada entre os negros e a segunda menos escolarizada entre os bran-cos. As regiões mais ricas são a Centro-Oeste, com renda média de R$ 772 para os negros e de R$ 1.439 para os brancos, e a Região Sudeste, com R$ 625 para os negros e R$ 1.244 para os brancos. São elas também as de maior escolaridade entre os brancos e duas das três de maior escolaridade entre os negros.

A Tabela 1.2 revela que a escolaridade média das pessoas com 11 a 25 anos é maior do que a das pessoas de 26 a 70 anos. Isto re-presenta uma melhoria nas condições da educação no país, pelo menos em termos de anos de estudo completos. Pode-se verificar que a média de escolaridade nesta coorte de idade para os negros é de 8,7, enquanto para os brancos é de 10,4. Nota-se também que

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a diferença de médias entre raças cai de 2,14 para 1,73. Isto sig-nifica que não só as pessoas estão estudando mais, como também essa melhoria tem sido levemente maior para os negros que para os brancos, diminuindo a disparidade entre os dois.

A Tabela 1.2 apresenta também a média da renda domiciliar per ca-pita destas pessoas de 11 a 25 anos por estado e por raça. A renda do-miciliar per capita dos negros é pouco mais da metade da média dos brancos, com R$ 254 para os primeiros e R$ 486 para os últimos.

Uma análise por região é também feita na mesma tabela. Note que entre pessoas de 11 a 25 anos de idade, os negros da Região Norte têm melhor média de escolaridade apenas que os da Região Nordeste, ao contrário do que se via entre as pessoas de 26 a 70 anos de idade, entre as quais os negros da Região Norte só perdiam para os do Centro-Oeste em média de escolaridade. Isto está refle-tindo uma melhoria maior na educação das regiões Sul e Sudeste, quando comparada à melhoria na educação da Região Norte. Entre os brancos, o Sudeste é a região mais escolarizada e o Nordeste e o Norte as que apresentam os menores níveis de escolaridade média.

Tabela 1.2 - Escolaridade e renda domiciliar per capita médias por região e por raça entre as pessoas de 11 a 25 anos em áreas urbanas

Região Renda domiciliar per capita média Escolaridade média por região

Negros e pardos Brancos e amarelos Negros e pardos Brancos e amarelos

Brasil 254 486 8.7 10.4

Norte 237 378 8.6 9.8

Nordeste 205 356 8.2 9.5

Sudeste 289 524 9.3 10.8

Sul 275 510 9.1 10.6

Centro-oeste 331 546 9,0 10.5fonte: pnad 2003

A tabela mostra também a renda domiciliar per capita média das regiões por raça. Observa-se que a região mais rica para os brancos é a Sudeste e para os negros é a Centro-Oeste. Isto pode estar refle-tindo o fato de que o Distrito Federal tem uma grande quantidade de funcionários públicos, o que pode diminuir a importância da discri-

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minação. O Nordeste é a região mais pobre tanto entre os brancos, quanto entre os negros.

Por último, é apresentada na Tabela 1.3 a diferença de rendimen-tos entre brancos e negros por anos de estudo. Verifica-se que, na ausência de controles, os brancos ganham mais que os negros para todas as faixas de escolaridade. Os negros com um ano de estudo ganham em média R$ 274, enquanto os brancos com a mesma es-colaridade ganham R$ 361. Já os negros com dezesseis anos de es-tudo ganham em média R$ 2.042, enquanto os brancos com mesma escolaridade ganham em média R$ 2.885. Além disso, podemos ver que a percentagem de brancos que completam dezesseis anos de es-tudo é de 15%, enquanto a de negros é 4,4%. Percebe-se ainda que a percentagem de brancos com apenas um ano de estudo completo é de 6,2%, enquanto a de negros é de 16,7%.

Tabela 1.3 – Salário médio em R$ e % de trabalhadores por anos de estudo com-pletos e por raças entre as pessoas de 26 a 70 anos

Anos de estudo % de trabalhadores por anos de estudo Salário médio em R$ por anos de estudo

Negros e pardos Brancos e amarelos Negros e pardos Brancos e amarelos

1 16.71 6.26 274 361

2 3.35 1.59 304 423

3 5.24 3,04 327 452

4 6.92 4.98 355 499

5 12.84 12.23 412 573

6 7.73 7,07 412 586

7 4,01 3.36 421 604

8 4.26 3.71 470 659

9 8.92 10.11 516 730

10 2.15 1.89 535 758

11 2.38 2.54 581 838

12 18.27 22.41 736 1058

13 1,16 1.93 1024 1330

14 0.81 1.90 1128 1642

15 0.78 1.91 1232 1658

16 4.48 15,07 2042 2885

fonte: pnad 2003

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Um fato que chama bastante a atenção é que mais de 50% dos ne-gros têm escolaridade menor ou igual a seis anos de estudos. Ou seja, mais de 50% dos negros não completaram sequer o primeiro grau. En-quanto isso, mais de 60% dos brancos completaram o primeiro grau.

Chama a atenção também a curva de evolução da renda em rela-ção aos anos de estudo. Como pode ser visto no Gráfico 1.1, a dife-rença da renda média entre brancos e negros vai aumentando com o número de anos de estudo. Isto pode ser observado pelas tendências lineares para as rendas médias por escolaridade e raça mostradas no gráfico. Esse comportamento sustenta, a princípio, a hipótese de que os retornos salariais com aumento da escolaridade são maiores para os brancos que para os negros.

Gráfico 1.1 – Renda média em reais por anos de estudo e por raça

fonte: pnad 2003.

2000

1800

1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0 1

linear (renda média brancos)

2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16Escolaridade

Rend

a m

édia

por

raç

a

renda média brancos

linear (renda média negros)renda média negros

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Observa-se, assim, que os negros com mesmo número de anos de estudo ganham, em média, menos que os brancos. Além disso, esta diferença cresce à medida que aumentam os anos de estudo, o que pode desestimular os negros a investirem em capital humano. Es-sas relações das diferenças de retornos escolares entre raças e as de-cisões de escolaridade dos negros serão objetos de investigação do próximo capítulo.

Tabela 1.4 – Exame de matemática do Saeb 3º ano por estado e por raça

Estados e Brasil Saeb 3º ano Estados Saeb 3º ano

Negros Brancos Negros Brancos

Brasil 283.34 310.33 Alagoas 273.11 283,05

Rondônia 280.75 293.88 Sergipe 269.94 285.40

Acre 270,03 290.59 Bahia 293.62 322.58

Amazonas 261.83 276.65 Minas Gerais 315.70 335.75

Roraima 264.82 261.06 Espírito Santo 291.29 315.15

Pará 268.42 277.40 Rio de Janeiro 286.97 317,07

Amapá 267.45 270.13 São Paulo 286.56 317.35

Tocantins 245.69 258.68 Paraná 300.57 325.61

Maranhão 268.72 287.93 Santa Catarina 314.76 340.52

Piauí 289.30 299.37 Rio Grande do Sul

296.59 323.65

Ceará 276,01 284.11 Mato Grosso do Sul

291.86 309.30

Rio Grande do Norte

270.80 275.51 Mato Grosso 275.51 297.29

Paraíba 281.45 287.79 Goiás 284.41 296.19

Pernambuco 284.50 301.55 Distrito Federal 310.50 332.47

fonte: saeb 2003

Por fim, a Tabela 1.4 apresenta os dados do Sistema de Avalia-ção do Ensino Básico (Saeb) de 2003 sobre as provas de matemática aplicadas ao terceiro ano do segundo grau para mostrar as diferen-

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ças de qualidade escolar por estado entre as raças. A média brasi-leira dos negros é de 283,3, enquanto para os brancos é de 310,3. Verifica-se ainda que essas médias são menores para os negros em todos os estados brasileiros, indicando que a qualidade da educação dos negros é menor que a dos brancos. Note também que os resul-tados do Saeb das regiões Sul e Sudeste são mais elevados. Na pró-xima seção será discutido de que forma poderemos utilizar os dados do Saeb como proxy de qualidade escolar, no controle das regres-sões que serão feitas.

SEÇÃo 2. TEoRiA DA DiSCRiMiNAÇÃo ESTATÍSTiCA E METoDoLoGiA EMPÍRiCA

O grande desafio da teoria econômica sobre discriminação no iní-cio da segunda metade do século XX foi conseguir explicar a dis-criminação sob o ponto de vista racional, à luz da teoria microe-conômica que estava em vigor na época e ainda está até hoje. A dificuldade da explicação era que se os agentes têm características econômicas semelhantes (tais quais as que afetam produtividade), e um grupo é discriminado ganhando salários menores, então, as fir-mas poderiam obter lucro contratando os agentes de menor salário até o ponto em que os salários se igualariam.

O primeiro a encontrar uma explicação racional para a existên-cia da discriminação foi Becker (1957), estendida por Arrow (1972, 1973), através de preferências por discriminação, seja por parte do empregador, do empregado e até mesmo do consumidor. Perceben-do que esta explicação não se sustentava num mundo competitivo em certas situações, Stiglitz (1973) tentou mostrar como as falhas de mercado poderiam resultar na discriminação descrita por Becker. Uma outra corrente iniciada por Phelps (1972) e pelo próprio Ar-row (1972) explica a discriminação pela crença de empregadores na existência de diferenças na média da produtividade entre grupos. É neste modelo que este artigo irá se concentrar e, portanto, será apre-sentado a seguir de forma mais detalhada. Por último, vale mencio-nar os trabalhos de Cornell e Welch (1996) e de Arrow (1998), que tentam explicar a discriminação através de questões culturais, de in-terações sociais e redes.

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TEoRiA DA DiSCRiMiNAÇÃo ESTATÍSTiCA

Em lugares onde há uma miscigenação tão grande, como no Bra-sil, e onde, por conseqüência, preferências por discriminação pa-recem ser menos razoáveis para racionalizar a discriminação, a ex-plicação mais aceita é a que utiliza diferenças nas características produtivas para elucidar diferenciais de salário. Podem-se encontrar explicações deste tipo em Phelps (1972), Arrow (1972 e 1973), Sti-glitz (1973), Rothschild e Stiglitz (1982) e Spence (1973). Bons resu-mos estão também em Arrow (1998) e Cain (1986).

A idéia é que o empregador tem informação imperfeita a respei-to dos candidatos ao emprego. Suponha que exista uma caracterís-tica observável, como, por exemplo, anos de estudo. O empregador quer inferir sobre a qualificação dos trabalhadores que estão bus-cando o emprego a partir desta observação, mas consegue isto ape-nas com um erro:

y = q + u,com E (u) = Cov (q,u) = 0, E (y) = E (q) = α, V (u) = σ2

u, e onde y é a característica observável, q a qualificação do trabalhador e u o erro.

Assumindo que q e u têm distribuição conjunta normal e não são correlacionados, pode-se especificar a regressão reversa:

q = α (1 - γ) + γy + eonde "e" é o distúrbio e 0 ≤ γ ≤ 1 é o coeficiente de determinação

(r2) entre q e y e pode ser interpretado como a medida de confiança de y como preditor de q.

Assumindo que os empregadores pagam os trabalhadores de acor-do com sua produtividade, temos:

w = E (q | y) = α (1 - γ) + γyDesta equação segue que se dois grupos possuem médias, α, dife-

rentes, então, eles vão ser pagos de maneira diferente para uma mes-ma medida de y. Entretanto, isto só explicaria discriminação indivi-

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dual e não entre grupos, já que, na média, os empregadores estariam pagando a média dos grupos, ou seja, ao mesmo tempo que esta-riam pagando menos que a produtividade para alguns negros, esta-riam pagando mais que esta para outros. Então, por mais que a mé-dia dos rendimentos fosse menor para os negros, isto seria reflexo da menor produtividade média desse grupo.

Existem duas maneiras de tornar racional a discriminação entre grupos. Uma desenvolvida por Aigner e Cain (1977) estipula aver-são ao risco na função utilidade (ou lucro) dos empregadores. Ou-tra, mais convincente, foi sugerida por Rothschild e Stiglitz (1982), que especificam uma função produção que depende diretamente de alocar os trabalhadores de qualificação “q” nos trabalhos corretos. Portanto, subestimar ou sobreestimar a qualificação de trabalhado-res são atitudes ineficientes, o que faz com que o salário esperado, e não apenas sua variância, dependa dessa alocação.

O modelo, então, funciona da seguinte forma. Suponha que, por al-guma razão não-observável, tal qual qualidade da educação ou fato-res culturais, os negros com mesma educação formal que os brancos sejam, em média, menos produtivos que os últimos. Os empregado-res usariam, então, a variável raça como proxy dessas características não-observáveis. Isto pode fazer com que os empregadores contra-tem os negros para ocupar postos de trabalho que requerem menos qualificação e têm menores salários também. Nesse caso, trabalha-dores negros com mesmo nível de escolaridade e de qualificação (qualidade escolar e histórico familiar equivalentes) dos brancos se-riam julgados pela raça e, por conseguinte, alocados em postos de trabalho inferiores.

A idéia central deste trabalho está baseada nesta teoria. Sabendo que vão ser julgados pela raça, os negros podem estar subinvestindo tanto nas características não-observáveis – tais como esforço na es-cola, busca por melhores escolas, entre outros – como também nas características observáveis, em particular, no nível de escolaridade. Assim, existiria uma racionalidade para o menor nível de escolari-dade média dos negros relativamente aos brancos, já que receberão menores salários do que os brancos com a mesma escolaridade ou serão empregados em postos de trabalho de menores qualidade e re-muneração do que os brancos com mesmo número de anos de estu-

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do. Em outras palavras, os negros teriam menos incentivos a se esfor-çar na escola e a adquirir escolaridade, uma vez que terão menores retornos a esses investimentos. Logo, a magnitude do investimento em educação dos negros é menor, a média de qualificação continua sendo mais baixa e o julgamento estatístico acaba se confirmando, tornando-se um ciclo vicioso.

Arrow (1998) argumenta que, em estatística Bayesiana, a posteriori é suficientemente rica para contribuir para a priori. Ou seja, com o tem-po os empregadores seriam levados a perceber que cometeram erros e equalizariam os salários das pessoas igualmente qualificadas. No en-tanto, como o principal aspecto que assume atitudes discriminatórias é a segregação, os empregadores não têm essa possibilidade.

METoDoLoGiA EMPÍRiCA: ESTiMANDo A iNFLUÊNCiA DA DiFERENÇA DE REToRNoS à ESCoLARiDADE ENTRE BRANCoS

E NEGRoS SoBRE A ESCoLARiDADE DoS NEGRoS

Nesta seção, será apresentada a metodologia empírica realizada para tentar estimar como a diferença esperada de retornos à escola-ridade entre brancos e negros influencia na determinação do nível de escolaridade dos negros. A idéia surgiu a partir do artigo de Silva (1992) que verifica um gap em termos de anos de estudo entre bran-cos e negros, mesmo considerando pessoas com as mesmas carac-terísticas familiares, como, por exemplo, renda e escolaridade dos pais. Então, se não é a restrição de riqueza e crédito e nem o históri-co familiar, qual seria o motivo dos negros estudarem menos do que os brancos? Algumas razões podem existir. Pode ser que os negros tenham preferências distintas determinadas pelas diferenças de ba-ckground familiar ou por questões culturais. Pode ser que exista um peer effect (efeito grupo), ou seja, dado que a média de anos de es-tudo dos negros é menor, isto pode estar influenciando as decisões pessoais de cada um. A hipótese deste trabalho é que a discrimina-ção esperada, mais precisamente, a diferença dos retornos de anos de estudos entre brancos e negros pode ser um dos motivos que in-fluenciam a menor escolaridade dos negros.

Os dados usados para testar esta hipótese serão extraídos da Pnad 2003. A dificuldade empírica encontrada foi como inferir a variável

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discriminação esperada. A solução encontrada foi usar as diferen-ças de retornos escolares entre brancos e negros como proxy para a discriminação esperada. Assim, foi estimada uma regressão de ren-da por estado para as pessoas ocupadas de 26 a 70 anos com intuito de verificar se essas diferenças de retornos à escolaridade realmente existiam e se eram significativas. Em seguida, na regressão de deter-minação do nível de escolaridade para pessoas de 11 a 25 anos fo-ram introduzidas essas diferenças nos retornos escolares para verifi-car sua influência na escolaridade dos negros. Esta metodologia está calcada na idéia geral de que as crianças e os jovens desta última co-orte (ou seus pais) utilizam as diferenças de retornos à escolaridade existentes no mercado de trabalho atualmente para inferir como se-rão tratadas no mercado de trabalho no futuro que, por conseguinte, tem influência na determinação do nível de escolaridade.

Para tanto, a metodologia pode ser dividida em duas etapas. A pri-meira consiste na estimação dos retornos à escolaridade das pesso-as ocupadas no mercado de trabalho com idade entre 26 e 70 anos. Isso será feito a partir do modelo de regressão de renda por escola-ridade por estado e para brancos e negros. A segunda etapa consis-te em analisar se essas diferenças de retorno à escolaridade influen-ciam o nível de escolaridade dos negros. Nesse ponto, utilizou-se o modelo de regressão do nível de escolaridade dos negros conside-rando como variável explicativa as diferenças de retorno à escolari-dade por raça e por estado. A seguir, apresentam-se os passos para aplicar a metodologia descrita.

O primeiro passo consiste em estimar os retornos salariais à esco-laridade, o que será realizado a partir das seguintes equações do mo-delo de regressões:

(1) inek

ineknekineneine XSW εαβ ++= ∑ln

(2) ibek

ibekbekibebeibe XSW εαβ ++= ∑ln

onde W é o salário, S é a variável de anos de estudo e X um vetor de variáveis de controle. O subscrito i representa o indivíduo, o subscrito n representa as variáveis para os negros, o subscrito b re-

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presenta as variáveis para os brancos e o subscrito e representa o es-tado de residência do indivíduo. Foi realizada uma regressão des-ta para cada estado e para cada raça incluindo as pessoas de 26 a 70 anos de idade. No grupo dos negros foram incluídos os negros e os pardos e, no grupo dos brancos, os brancos e os amarelos. Segue abaixo a lista de variáveis X usadas como controle:

• idade • idade2 • sexo • urbano metropolitano • urbano não-metropolitano • funcionário público • empregado com carteira assinada • empregador • doméstico• trabalhador para uso próprio • trabalhador conta – própria

Assim sendo, foram retiradas as variáveis empregado sem cartei-ra assinada (a título de comparação com as demais ocupações) e trabalhador rural (a título de comparação com as categorias urba-nas). Apesar das regressões considerarem as variáveis de posição na ocupação do trabalho principal, a intenção deste trabalho, de acordo com literatura descrita na primeira seção, é comparar os re-tornos de anos de estudo sem controlar por ocupação. A justifica-tiva é que grande parte da segregação é causada por questões dis-criminatórias e não existiriam motivos para, por exemplo, negros com mesmo número de anos de estudos que brancos estarem ocu-pando, na sua maioria, posições que remuneram menos. Então, apesar de manter também as variáveis de ocupação para compa-rar os resultados, estaremos interessados apenas na diferença dos coeficientes de retornos de anos de estudos entre brancos e negros das regressões sem esses controles. No entanto, será mantida uma dummy para funcionários públicos, sob a hipótese de que a inser-ção nesta categoria estabelece critérios que não podem ser discri-minatórios.

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O passo seguinte do trabalho é verificar para quais estados as di-ferenças dos retornos de anos de estudos são significativas. Para tan-to, serão calculadas as estatísticas t dessas diferenças com intuito de avaliar o nível de significância a 5%.

O terceiro passo da metodologia é verificar se essas diferenças de retornos à escolaridade entre negros e brancos podem explicar o ní-vel de escolaridade das pessoas com 11 a 25 anos. Assim, as equa-ções (3) e (4) foram estimadas somente para as pessoas residentes nos estados em que as diferenças de retorno à escolaridade são sig-nificativas, conforme as equações que seguem:

(3) ink

inknnebenine VS φδββγ ++−= ∑∧∧

)(

(4) ibk

ibkbnebebibe VS φδββγ ++−= ∑∧∧

)(

onde S é número de anos de estudo, )( nebe

∧∧− ββ é a variável es-

tadual de diferença de retornos salariais à escolaridade estimada a partir dos modelos (1) e (2) e V é um vetor de variáveis de controle listadas abaixo:

• idade • (idade/10)2 • renda domiciliar per capita • escolaridade do pai • escolaridade da mãe • sexo • urbano não-metropolitano • urbano metropolitano• Número de crianças na família• Saeb• Beneficiário de programa social de educação

O resultado esperado é que a diferença de retornos de anos de estudo tenha coeficiente negativo para os negros e positivo, ou muito próximo de zero, para os brancos. A idéia é que a discri-

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minação esperada pelos negros não gera incentivos para os bran-cos estudarem mais porque tem duas forças agindo: uma incenti-vando os estudos, dado que o preço (retorno) que se paga por ele é maior, e outra puxando para baixo, levando-se em conta os re-sultados dos modelos de discriminação que mostram que os luga-res com maior discriminação têm uma menor renda tanto para ne-gros quanto para os brancos (só que a diminuição das rendas dos brancos é bem pequena) [ver Becker (1957)]. Espera-se também que todas as variáveis de controle acima tenham efeito positivo so-bre a escolaridade das pessoas, com exceção da variável número de crianças na família.

Por fim, o quarto passo é estimar o efeito dos retornos salariais à escolaridade sobre o nível de escolaridade por raça. Observe que no passo anterior foi estimado o efeito da diferença dos retornos à escolaridade entre brancos e negros e agora é o efeito dos retornos absolutos estimados pelos modelos (1) e (2). Por exemplo, se o in-divíduo é negro residente no Rio de Janeiro foi colocado para ele o coeficiente de anos de estudo do modelo (1) dos negros do Rio de Janeiro e se o indivíduo é branco de São Paulo foi colocado para ele o coeficiente de anos de estudo dos brancos de São Paulo, ge-rando o seguinte modelo:

(5) ik

ikreire VS ϕλβµ ++= ∑∧

,

onde re

∧β é o retorno estimado nos modelos (1) ou (2) do estado

e para a raça r, e V é um vetor com as mesmas variáveis de contro-le utilizadas nos modelos (3) e (4). A equação é rodada para todas as

pessoas de 11 a 25 anos da Pnad 2003. Espera-se que a variável re

∧β

tenha coeficiente positivo, indicando que retornos de renda maiores estão associados a níveis de escolaridade maiores.

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SEÇÃo 3. RESULTADoS

A Tabela 3.1 apresenta os resultados dos diferentes modelos de de-terminação de renda e revela que, considerando as mesmas carac-terísticas relativas à escolaridade, idade, sexo e residência em área urbana da pessoa, os negros ganham 28% menos que os brancos. Quando se introduz a variável sobre qualidade escolar, esta diferen-ça diminuiu para 16%, mostrando a importância dessa variável para explicação do diferencial de renda por raça. Já no modelo com as variáveis de posição na ocupação e uma dummy para o Nordeste, cai para 15%, ou seja, fica praticamente no mesmo nível. Por último, no modelo completo com acréscimo das variáveis sobre caracterís-ticas da família, verifica-se que os negros ganham, em média, 10% menos que os brancos. Assim como nos trabalhos de Darity, Guilkey e Winfrey (1996), Rodgers e Spriggs (1996) e Gottschalk (1997) para os EUA, esses resultados sugerem a existência de discriminação sa-larial no mercado de trabalho brasileiro.

Tabela 3.1 - Regressão da renda para pessoas de 26 a 70 anos

(i) (ii) (iii) (iV)

Anos de estudo 0.125*** 0.125*** 0.103*** 0,072***

(224,05) (224.31) (180.84) (107.47)

idade 0,030*** 0,029*** 0,013*** 0,001

(18.26) (17.82) (8.62) (0.80)

idade2 -0,0001*** -0,0001*** 0,00006*** 0,0001***

(6.11) (5.74) (3.78) (9.55)

Sexo 0.531*** 0.531*** 0.452*** 0.484***

(113.67) (114.19) (94.59) (107.75)

Urbano metropolitano 0.304*** 0.296*** 0.221*** 0.207***

(39.22) (38.27) (29.60) (31.41)

Urbano não metropolitano 0.239*** 0.250*** 0.125*** 0.134***

(32.61) (34.15) (17.69) (21.49)

Cor 0.279*** 0.161*** 0.149*** 0.105***

(59.32) (26.20) (25.73) (20.49)

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Saeb 0,004*** 0,001*** 0,001***

(29.65) (9.90) (7.22)

Nordeste -0.298*** -0.273***

(57.31) (59.50)

Funcionário público 0.453*** 0.405***

(48.99) (49.67)

Empregado com carteira 0.268*** 0.280***

(39.59) (46.99)

Empregador 0.898*** 0.582***

(82.65) (59.68)

Doméstico -0,057*** -0,037***

(5.85) (4.27)

Uso próprio -0.410*** -0.378***

(25.44) (26.54)

Conta própria 0,016** 0,014**

(2.28) (2.28)

Escolaridade do pai -0,011***

(20.91)

Escolaridade da mãe 0,010***

(18.70)

Renda do pai 0,000***

(123.11)

Renda da mãe 0,000***

(90.59)

Constante 3.416*** 2.268*** 3.662*** 4.200***

(96.22) (43.26) (70.15) (91.00)

observações 114606 114606 114606 114606

R-quadrado 0.43 0.44 0.50 0.61fonte: pnad 2003. Valor absoluto da estatística t em parênteses

* significante a 10%; ** significante a 5%; *** significante a 1%

No entanto, diferentemente da maioria dos artigos em relação aos EUA2, verifica-se no Brasil que as diferenças nos retornos salariais

2 Ver, por exemplo, Heckman (1998) e Maxwell (1994).

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à escolaridade entre negros e brancos são significativas. De fato, conforme pode ser visto na Tabela 3.2, em apenas seis dos 27 es-tados brasileiros a diferença de retornos escolares não é significati-va. São eles: Piauí, Santa Catarina, Acre, Sergipe, Amazonas e Rorai-ma. Nota-se que metade destes estados fica na Região Norte, onde a base de dados é mais precária e o número de observações é me-nor3. Em todos os outros estados, a diferença de retornos escolares foi significativa.

Tabela 3.2 - Diferenças de retornos escolares entre brancos e negros

Estados Coeficiente de Educação Diferença de retornos

Estatística t

Negros e pardos Brancos e amarelos

Rondônia 0,079 0,112 0,032 3.18

Acre 0,114 0,125 0,011 0.78

Amazonas 0,096 0,108 0,012 1.42

Roraima 0,104 0,121 0,016 0.90

Pará 0,096 0,129 0,033 4.83

Amapá 0,078 0,160 0,081 3.90

Tocantins 0,106 0,140 0,034 3,01

Maranhão 0,100 0,141 0,041 4,01

Piauí 0,122 0,145 0,023 1.57

Ceará 0,099 0,128 0,028 5.56

Rio Grande do Norte 0,102 0,149 0,047 4.79

Paraíba 0,097 0,124 0,026 3,09

Pernambuco 0,097 0,136 0,038 7.64

Alagoas 0,087 0,142 0,055 5.50

Sergipe 0,095 0,116 0,020 1.93

Bahia 0,100 0,159 0,058 11.41

Minas Gerais 0,105 0,135 0,030 7.95

Espírito Santo 0,098 0,140 0,041 4.97

Rio de Janeiro 0,080 0,133 0,052 12.76

3 Para ver os resultados das regressões por estados entrar em contato com os autores através do e-mail [email protected]

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São Paulo 0,082 0,127 0,044 13.87

Paraná 0,088 0,121 0,032 5.68

Santa Catarina 0,090 0,103 0,013 1.44

Rio Grande do Sul 0,092 0,131 0,038 7,00

Mato Grosso do Sul 0,096 0,121 0,024 3.11

Mato grosso 0,085 0,124 0,038 5.19

Goiás 0,090 0,126 0,035 6.97

Distrito Federal 0,117 0,168 0,051 8,09

fonte: pnad 2003

A Tabela 3.3 apresenta os resultados dos modelos (3) e (4), em que a diferença de retornos salariais à escolaridade é uma variável ex-plicativa na regressão de determinação do nível de escolaridade das pessoas de 11 a 25 anos4. Verifica-se que a diferença de retornos es-colares tem coeficiente negativo e significativo para explicar núme-ro de anos de estudo. Este resultado confirma a hipótese do trabalho, qual seja, de que os retornos salariais à escolaridade relativamente menores dos negros são significativos para explicar a menor esco-laridade dos negros em relação aos brancos. Nota-se também que, mesmo quando controlado pela média de qualidade escolar dos ne-gros de cada estado, o coeficiente permanece significativo e nega-tivo. Além disso, percebe-se que para os brancos a diferença de re-tornos escolares entre brancos e negros não é significativa, como também era esperado.

O coeficiente da variável diferença de retornos escolares entre raças é -5,930 e é significativo a 1%. Isto significa, por exemplo, que uma mudança na diferença de retornos de 0,03 para 0,02 aumentaria em 0,06 a média de anos de estudo dos negros. O coeficiente muda para -6,262 quando controlado pela variável de qualidade da educação e continua significativo a 1%. O coeficiente desta mesma variável é não-significativo para os brancos, controlando ou não por qualidade.

Podemos ver também que idade é significativa a 1% em todos os modelos. O mesmo acontece para renda domiciliar per capita. As duas variáveis têm coeficiente positivo para explicar anos de estudo, ou seja, quanto maior a idade e a renda domiciliar per capita maior

4 Foram incluídos somente os estados em que essa diferença é significativa.

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tende a ser a escolaridade. As variáveis escolaridade do pai e esco-laridade da mãe também têm o mesmo comportamento. Note que a escolaridade da mãe tem o coeficiente maior que escolaridade do pai para explicar anos de estudo das crianças e jovens.

Pode-se notar também que as variáveis número de crianças na fa-mília e sexo têm coeficiente negativo e são ambas significativas a 1%. Isto significa que, em média, as mulheres estudam mais que os homens e que o número de crianças na família influencia de forma negativa na escolaridade das crianças. Uma possível explicação é que, em famílias maiores, as crianças são colocadas para trabalhar mais cedo, para ajudar no sustento da casa. Percebe-se também que a qualidade escolar é significativa a 1% e positiva para explicar anos de estudo. Por último, ser beneficiário de programas sociais para educação e morar em centros urbanos influenciam de forma positi-va para a escolaridade, significativamente.

Tabela 3.3 - Regressão de anos de estudo para as pessoas de 11 a 25 anos

Negros e pardos Brancos e amarelos

Diferença de retor-nos escolares

-5.930*** -6.262*** 0.582 -0,064

(3.39) (3.10) (0.25) (0,03)

idade 1.720*** 1.721*** 1.850*** 1.847***

(27.73) (26.49) (22,00) (25.79)

(idade/10)2 -4.131*** -4.132*** -4.245*** -4.229***

(25.18) (24.83) (20.41) (23.80)

Renda domiciliar per capita X 100

0,000*** 0,000*** 0,000*** 0,000***

(15.94) (16.77) (11.54) (11.21)

Escolaridade do pai 0.128*** 0.127*** 0,088*** 0,086***

(23.69) (24.17) (17.68) (18.63)

Escolaridade da mãe 0.153*** 0.155*** 0.158*** 0.159***

(21.42) (26,02) (27.42) (25.75)

Sexo -1.250*** -1.249*** -0.906*** -0.902***

(29,05) (26.96) (23,00) (22.59)

Urbano não-metro-politano

1.423*** 1.432*** 1.449*** 1.470***

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(20.49) (24.82) (16.22) (17,08)

Urbano metropoli-tano

1.862*** 1.818*** 1.669*** 1.632***

(25.89) (28,00) (17.69) (18.85)

Nº de crianças na família

-0,085*** -0,082*** -0.231*** -0.221***

(4.18) (4.59) (8.87) (9.21)

Beneficiário de pro-grama educacional

0.446*** 0.480*** 0.498*** 0.566***

(5.35) (5.16) (3.54) (4.45)

Saeb 3º 0,011*** 0,013***

(8.35) (9.91)

Constante -11.464*** -14.742*** -12.593*** -16.643***

(19.35) (19.33) (14.92) (19.59)

observações 17335 17335 15637 15637estatística z entre parênteses (erro padrão calculado com bootstrap)* significante a 10%; ** significante a 5%; *** significante a 1%

A Tabela 3.4 apresenta os resultados do modelo (5) da seção an-terior, onde se considera como variável explicativa para o nível de escolaridade os retornos escolares absolutos de cada estado e cada raça. Por exemplo, se o indivíduo é branco em Pernambu-co é colocado para ele o coeficiente de anos de estudo da regres-são de salários dos brancos do estado de Pernambuco. Este mo-delo é rodado com todas as pessoas brasileiras da amostra de 11 a 25 anos de idade.

Tabela 3.4 - Regressão de anos de estudo para pessoas de 11 a 25 anos

Negros e pardos Brancos e amarelos

Retorno 12.174*** 2.496***

(15.83) (2.92)

idade 1.754*** 1.749***

(37.76) (37.57)

(idade/10)2 -4.122*** -4,098***

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(35.15) (35.93)

Renda domiciliar per capita X 100

0,000*** 0,000***

(14.19) (15.19)

Escolaridade do pai 0.113*** 0.110***

(29.57) (29,05)

Escolaridade da mãe 0.166*** 0.167***

(40.43) (41.27)

Sexo -1.071*** -1.063***

(35.55) (32.79)

Urbano não-metropolitano 1.609*** 1.615***

(36.30) (30.63)

Urbano metropolitano 1.883*** 1.842***

(42.51) (32.42)

Nº de crianças na família -0.166*** -0.152***

(9.80) (9,00)

Beneficiário de programa educacional

0.415*** 0.517***

(5.63) (7.89)

Saeb 3º ano 0,016***

(21.49)

Constante -13.351*** -16.985***

(28.23) (31.32)

observações 36340 36340 estatística z entre parênteses (erro padrão calculado por bootstrap)* significante a 10%; ** significante a 5%; *** significante a 1%

Percebe-se que o coeficiente de retornos escolares é positivo e sig-nificativo a 1%. Ou seja, quanto maior o retorno salarial à escola-ridade (quanto mais se paga por um ano a mais de estudo), maior tende a ser o nível de escolaridade da pessoa. O coeficiente é de 12.174, o que significa que um aumento de 0,01 no coeficiente de anos de estudo da regressão de salários aumenta 0,121 os anos de estudos das pessoas. Quando controlado por qualidade da educa-ção este coeficiente continua significativo a 1%, mas sua importân-cia é bem menor, passando agora a ser 2,49. Isto significa que um

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aumento de 0,01 nos retornos escolares aumenta em 0,024 a esco-laridade das pessoas.

A diminuição da importância dos retornos escolares quando inclu-ído o controle de qualidade também está de acordo com a nossa hi-pótese de que parte da diferença de retornos salariais à escolarida-de se deve a diferenças na qualidade escolar. O resultado capta este efeito, já que a influência dos retornos salariais à escolaridade na de-cisão de estudar das pessoas é bastante diminuída quando incluímos o controle de qualidade da educação.

Todas as demais variáveis, que eram significativas na regressão anterior, continuam significativas neste modelo. É importante frisar, por fim, que a variável que representa qualidade escolar tem gran-de importância para explicar anos de estudo. Um ponto a mais no desempenho nas provas aplicadas pelo Saeb para o terceiro ano do ensino médio aumenta em 0,016 o número de anos de estudo. As-sim, políticas de melhoria na qualidade da educação que diminu-am as desigualdades raciais dos rendimentos escolares podem con-tribuir para reduzir o diferencial de escolaridade entre brancos e negros no Brasil.

CoNCLUSÃo

A diferença de renda média entre brancos e negros no Brasil é uma verdade histórica que deve preocupar os pesquisadores das áreas de ciências humanas como um dos vários graves problemas relativos à distribuição de renda e justiça social. Muito se ouve a respeito que o problema no Brasil não é racial, e sim, social. A questão é que es-ses problemas não são facilmente separáveis. Existem várias formas de preconceito racial veladas no Brasil. A diferença da qualidade de educação é uma amostra nítida disto, sem falar das formas de pre-conceito direto, como gritos de torcida, por exemplo. A questão está longe de ser resolvida e merece nossa atenção.

A situação no mercado profissional é explorada neste trabalho e mostra, por exemplo, que os negros com 26 a 70 anos residentes em áreas urbanas ganham, em média, apenas 51% do que ganha-vam os brancos com as mesmas características. O fato é agravado por uma racionalidade existente em atitudes discriminatórias (en-

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tendendo isto como tratamentos diferentes para pessoas igualmen-te produtivas). Como mostra o modelo de discriminação estatística, pode ser racional para os empregadores discriminarem grupos que tenham piores médias de características não-observáveis. E, pior ain-da, a discriminação pode diminuir os incentivos nos investimentos em capital humano e, assim, perpetuar diferenças salariais, já que a importância do capital humano na renda já está devidamente com-provada.

Este trabalho sugere que essa lógica comportamental pode estar ocorrendo no Brasil. Mesmo controlando por várias características individuais (como escolaridade, sexo, idade, área de moradia, re-gião, condição na ocupação e qualidade escolar) e por característi-cas familiares (como riqueza e escolaridade dos pais), os negros ain-da ganham, em média, 10% menos que os brancos. Entretanto, é importante mencionar a dificuldade para encontrar uma proxy para qualidade escolar que realmente fizesse essa característica ser cons-tante na regressão. Nesse sentido, o trabalho aponta para o fato de que o Brasil precisa melhor conectar suas pesquisas de domicílio com pesquisas a respeito de qualidade da educação e outras formas de capital humano.

Outro resultado importante é que as médias das características aci-ma mencionadas são bem piores para os negros que para os bran-cos. Daí surge a principal questão discutida no trabalho, a ligação entre a discriminação no mercado de trabalho e os incentivos a in-vestir em características que darão altos retornos em termos de ren-da. A hipótese principal era de que os retornos salariais com aumen-to da escolaridade no Brasil eram menores para os negros que para os brancos e esta diferença geraria menos incentivo para os negros estudarem. De fato, em apenas seis dos estados brasileiros a diferen-ça de retornos escolares entre brancos e negros não foi significativa. Em todos os outros 21 estados brasileiros houve a confirmação da hi-pótese de retornos diferentes. Levando este resultado para a segunda parte do trabalho verificamos que a diferença de retornos escolares esperados entre raças é significativamente negativa para a escolari-dade dos negros. Ou seja, quanto maior a diferença, menos incenti-vos os negros têm para estudar. A diferença de retornos é não-signi-ficativa para os brancos.

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Outro resultado importante é que em lugares onde há um retor-no escolar maior existem mais incentivos para estudar, mesmo con-trolando para outras características. Além disso, a escolaridade dos pais, a qualidade escolar, o fato de receber benefícios de programas sociais para educação também são significativamente positivos para explicar escolaridade.

Estes resultados abrem margem para sugestões de políticas públi-cas. Se a razão dada pelos modelos de discriminação estatística re-almente explica, em alguma medida, a existência de discriminação, uma política apropriada para reduzir atitudes discriminatórias é in-vestir em características não observadas pelo empregador de forma a melhorar as médias dos negros em relação a essas características – qualidade escolar, por exemplo. Para tanto, seriam necessárias polí-ticas que visem à melhoria da qualidade da educação com diminui-ção das desigualdades raciais. Assim, os empregadores vão passar a perceber que negros e brancos com iguais características obser-váveis são igualmente produtivos e não terão mais motivos racio-nais para discriminar. Entretanto, como boa parte da discriminação toma forma de segregação, políticas de ação afirmativa, como cotas de emprego, podem também ser importantes, já que isto pode ge-rar mais facilidade para se construir a posteriori [ver Arrow (1998)]. Além disso, essas políticas podem, se condicionadas a completar graus de escolaridade, por exemplo, gerar incentivos a adquirir anos de estudo.

Um sistema de cotas para universidades pode também gerar bene-fícios antidiscriminatórios. Por exemplo, em lugares onde as univer-sidades públicas têm maior qualidade do ensino, garantir que uma parcela importante das vagas seja ocupada por negros significa estar investindo na qualidade escolar destes, o que leva, pelo raciocínio acima, a melhorar as médias dos negros em características não-ob-serváveis e diminui a racionalidade para a discriminação. Não obs-tante, alguns argumentam que tal tipo de política pode gerar também incentivos à diminuição do esforço na hora de adquirir a formação, já que ficaria mais fácil conseguir emprego ou entrar na universida-de [ver Ferman e Assunção (2005)].

Uma possível extensão deste trabalho, portanto, pode ser anali-sar os efeitos que políticas discriminatórias podem ter nos incenti-

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vos para adquirir capital humano (no sentido de mais anos de estu-do). Outra questão interessante é, seguindo a linha de Arrow (1998) e também de Cornell e Welch (1996), tentar verificar se sociedades que diminuíram a segregação conseguiram por esta razão diminuir a dis-criminação, já que isso pode gerar uma melhor inferência a posteriori dos empregadores a respeito dos trabalhadores de grupos diferentes.

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TRAGÉDiA DA CULTURA E MoDELAGEM DA iDENTiDADEUMA LEiTURA DE WEBER E SiMMEL

Valéria Paiva

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A sociologia clássica pode ainda hoje contribuir para a compreensão do problema da modelagem da identidade na sociedade contemporânea. Max Weber e Georg Simmel são referências para o estudo desta questão. Tanto Weber quanto Simmel observaram como a modernidade implicou, no que se refere ao indivíduo, a perda de liberdade e de sentido da vida. O indivíduo teria se tornado um meio para processos sociais mais amplos e impessoais, perdendo a capacidade de utilizar de maneira ativa os objetos do mundo para o desenvolvimento de sua personalidade. Diante desse mesmo diagnóstico, os autores ofereceram respostas distintas. Weber nos apresenta um tipo heróico de sujeito modelado pela vocação como uma espécie de relação de fé secularizada com os valores últimos. Simmel, por sua vez, encontra na sociabilidade um caminho para que a subjetividade não seja representada como o são os demais papeis sociais. A comparação entre os dois autores é nesse sentido frutífera se considerarmos a persistên-cia de seu diagnóstico.

The classic sociology even today can contribute to understand the self-fashioning process in contemporary society. Max Weber and Georg Simmel are references to the study of this question. Both authors have observed how modernity implied in loss of freedom and meaning to individuals’lives. The individuals have become a mean to wider and impersonal social process. They also became unable to make use of world objects in an active way to the development of their personality. In face of this same diagnosis of time, Weber and Simmel proposed different responses. Weber provides us with a heroic model of self shaped by vocation. By his turn, Simmel’analysis of sociability show the way to subjectivity not to be represented as the rest of social roles are. The comparison between authors is still worthwhile if we consider the persistence of their diagnosis.

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Procuramos analisar, neste artigo, como a questão da modelagem da identidade foi posta por Max Weber e Georg Simmel, a partir da noção de tragédia da cultura. O nódulo central das questões que se-rão expostas aqui está relacionado à percepção de que, por um lado, podemos identificar na obra dos dois autores um padrão de mode-lagem da identidade caracterizada pela renúncia. Os indivíduos se-riam forçados a renunciar a possibilidades alimentadas em relação a um si mesmo ainda sentido como totalidade diante da emergência da subjetividade como uma esfera social específica. Por outro lado, tanto Simmel quanto Weber perceberam que o resultado dos proces-sos de racionalização – nas esferas da economia, da ciência, da arte, da religião, etc. – foi uma perda de sentido para o indivíduo.

A noção de tragédia é normalmente relacionada à diagnose we-beriana da sociedade moderna como desencantada e sujeita a um politeísmo de valores. Pela expressão desencantamento do mundo se entende o longo processo de desmagificação promo-vido pelo monoteísmo cristão e levado a cabo pela ciência, cuja conseqüência foi regular de maneira duradoura – e não pontual, como no caso da magia – a conduta individual, de acordo com um dever ser cotidiano1 (cf. Schluchter, 2000; cf. Pierucci, 2003). Mesmo exercendo um papel significativo nesse processo, a esfe-ra científica não se encontraria para Weber em posição de atuar como instância objetiva doadora de sentido para o mundo2. Na

1 Apesar do termo desmagificação ser, por um lado, pouco usual e desencanta-mento do mundo ter se tornado, por outro, uma expressão corrente nas ciências humanas, é necessário não perder de vista, como afirma Antônio Flávio Pierucci, que “desencantamento em sentido estrito se refere ao mundo da magia” e que o termo desencantamento, em alemão Entzauberung, significa literalmente des-magificação (Pierucci, 2003:7). 2 Como afirma Weber, “o destino de uma época cultural que ‘provou da ár-vore do conhecimento’ é ter de saber que podemos falar a respeito do sentido do devir do mundo, não a partir do resultado de uma investigação, por mais perfeita e acabada que seja, mas a partir de nós próprios que temos que ser capazes de criar este sentido. Temos de admitir que ‘cosmovisões’ nunca podem ser o resultado do avanço do conhecimento empírico, e que, portanto, os ideais supremos que nos movem com a máxima força possível, existem, em todas as épocas, na forma de uma luta com outros ideais que são, para outras pessoas, tão sagrados como o são para nós os nossos” (Weber, 1999:113).

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medida em que o processo da racionalização tornou as outras es-feras de valores igualmente legítimas, a atribuição de sentido ao mundo deve ser realizada pelo próprio indivíduo, a partir de suas escolhas valorativas (cf. Weber, 1999; 2002). O caráter trágico, como resultado da virada axiológica que pressupõe o comprome-timento do indivíduo com seus valores últimos, vem da sensação de fragmentação da personalidade, da incerteza e do desconforto causados pelo contato, com conseqüências imprevisíveis, entre, por um lado, a agência individual e, por outro, as diversas ordens autônomas e impessoais (cf. Albergaria, 2005).

Diante desse horizonte, Weber enxergou na vocação um caminho para o ressurgimento de personalidades fortes. Consciente da im-possibilidade de pensar a vida em termos holísticos, o sujeito webe-riano é levado a escolher entre valores últimos e assumi-los como espécies de deuses. A renúncia aparece, aqui, como um modelo re-novado de conquista do mundo, na medida em que a adesão a uma esfera de valor específica imbui o sujeito de uma nova missão. Visto de hoje, o diagnóstico weberiano sobre a necessidade de se escolher entre valores últimos anuncia um desafio: o da dessacralização des-ses valores como condição para se chegar a acordos intersubjetivos. Simmel, por sua vez, viu na forma pura de sociabilidade um espaço preservado dos mecanismos impessoais, como o dinheiro, e do ex-cesso de estímulos psicológicos que atuariam conjuntamente para a percepção quantitativa do mundo e do outro. Na sociabilidade não imperaria a atitude intelectual típica às interações da vida urbana. A condição para a sua existência se vincularia, no entanto, à capaci-dade de os indivíduos renunciarem, em sua interação com o outro, não somente ao que os diferencia em termos quantitativos, mas tam-bém àquilo que os diferencia qualitativamente. Do contrário, a sub-jetividade passaria a ser representada como o são os demais papéis sociais. Como veremos, a análise simmeliana das condições neces-sárias ao pleno desenvolvimento da personalidade nas sociedades modernas já apontava para um tema cuja importância contemporâ-nea também é inegável, o do reconhecimento.

A discrepância em relação à história da recepção das obras de We-ber e Simmel e à consideração sistemática do ethos individual que cada uma delas disponibiliza torna infrutífera a tarefa de traçar pa-

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ralelos contínuos entre os dois autores. Por isso, a primeira parte do artigo será dedicada ao exame da vocação e da ética da responsabi-lidade em Weber, dada a relação que, neste autor, elas estabelecem com os temas da identidade e da renúncia. Depois abordaremos es-ses mesmos temas em Simmel, focalizando principalmente sua aná-lise sobre a sociabilidade.

É necessário, no entanto, levar em consideração que a ética da responsabilidade só veio a receber maior atenção dos intérpretes no final da década de 60 e na década de 70, através dos trabalhos de Reinhard Bendix, Friedrich Tenbruck e Wolgang Schluchter. Com a recuperação dos textos que compõem sua sociologia da religião, não somente a racionalização técnica representada pela burocratiza-ção, mas o processo de racionalização ocidental como um todo as-sumiu uma centralidade até então desconhecida na obra de Weber3. Essa virada interpretativa permite hoje nuançar a crítica que, por exemplo, Habermas lança à teoria social weberiana, tendo em vista a construção de seu próprio diagnóstico da modernidade, como in-

3 Até então a sociologia da religião não ainda havia sido completamente tradu-zida para a língua inglesa, como afirma Tenbruck, o que certamente dificultava seu acesso a um público mais amplo. A ética protestante, já conhecida do públi-co, os textos metodológicos e, principalmente, Economia e sociedade receberam até esse momento a maior parte da atenção dos intérpretes, o que provavelmente contribuiu para que a burocratização tenha se tornado “o grande tema” relacio-nado a Max Weber (cf. Tenbruck, 1980). Flávio Pierucci, reconhecendo a impor-tância decisiva do livro de Bendix de 1960 (Max Weber: An Intellectual Portrait), aponta, entretanto, os trabalhos de Tenbruck e de Schluchter como marcos da inflexão nos estudos sobre Weber. Segundo ele, “Em matéria de racionalização, o velho ângulo de observação à la Mannheim (1962), que favorecia a atenção ao processo de racionalização funcional e portanto de burocratização da sociedade moderna, foi cedendo espaço a um ponto de vista mais abrangente em termos históricos, que valoriza o observar-se a sociedade ocidental do ponto de vista de um vasto processo de racionalização de longuíssima duração. (...) Dois autores em especial lideraram a grande inflexão nos estudos da obra de Weber que se desenhou na segunda metade dos anos 70; juntos, eles personificam o turning point do interesse acadêmico por sua Sociologia da Religião: Friedrich Tenbruck, com seu artigo de 1975 sobre ‘a obra de Max Weber’ (1975), mais conhecido pelo título em inglês “O problema da unidade temática nas obras de Max Weber’ (1980), e Wolfgang Schluchter, com seu livro seminal e inexaurível, O desenvol-vimento do racionalismo ocidental (1979)” (Pierucci, 2003:21).

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capaz de perceber o potencial de racionalização valorativa que teria ocorrido de forma paralela à racionalização técnica no desenvolvi-mento da sociedade ocidental4 (cf. Souza, 1997). Para Habermas, a ênfase posta por Weber na relação entre conduta eticamente orien-tada e religião o levou a observar uma correspondência entre a per-da da liberdade, produzida pela submissão dos indivíduos à racio-nalização técnica do mercado e do Estado, e a perda de sentido, provocada pela fragmentação da vida social em esferas de valores autônomas5 (cf. Habermas, 1987).

Klaus LichtBlau afirma que, de fato, Weber teria percebido a pos-sibilidade de uma justificação ética dos valores próprios a cada esfe-ra particular (e da racionalização moral implicada por isso) somen-te a partir de seu envolvimento, junto com o de Marianne Weber, no movimento feminista alemão no início do século. Segundo ele, “Weber estava provocado e fascinado pela noção dos valores éti-cos não serem somente os normativos, já que as esferas erótica e estética possuem um valor delas próprias” e “reconhecendo a au-tonomia do ‘amor pelo amor’ e da ‘arte pela arte’ Weber modifi-cou decisivamente o arcabouço conceitual d’ A ética protestante

4 A teoria da ação comunicativa (1987) pode ser vista, nesse sentido, como a obra central onde Habermas desenvolve sua preocupação com um novo tipo de solidariedade social, buscando compreender a racionalização a partir de um esquema dualista (racionalização técnica e racionalização moral), já apresen-tado como um programa de pesquisa em Para a reconstrução do materialismo histórico, de 1968.5 A tese da perda da liberdade corre o risco de se tornar vaga se não é enfati-zado que Weber percebeu, paralelamente ao surgimento das esferas de valores, o processo de alienação dos indivíduos dos meios necessários para a conse-cução de seus fins e, com isso, de dependência em relação a estruturas supra-individuais. Weber, nesse sentido, teria generalizado o diagnóstico marxiano da alienação dos indivíduos dos meios de produção. Vale lembrar que foi Karl Löewith (1993) quem primeiro procurou relacionar racionalização em Weber com alienação em Marx, em seu livro clássico de 1932. Recentemente, também Catherine Colliot-Thélène (1995) retomou essa relação em seu Max Weber e a história. Harvey Goldman faz uma crítica ao sentido específico que Löwith justapôs os conceitos de racionalização e alienação que, no entanto, não parece questionar a tese central da possível aproximação dos dois autores nesse sentido (cf. Goldman, 1995).

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em relação a sua teoria da modernidade”6 (Lichtblau, 1995: 187; 190, tradução do autor). Isso para ele também explicaria o fato de, recentemente, os últimos textos weberianos receberem maior con-sideração de seus comentadores e, no que diz respeito à possibili-dade de uma justificação ética das ações, uma grande atenção ser dada aos textos A Política como Vocação e A ciência como voca-ção. Nesses textos, escritos em torno de 1918, podemos encontrar explicitamente formulada para Weber a questão da possibilidade de ações eticamente orientadas no interior das esferas de valores, a questão dos paradoxos inevitáveis a que essas ações estão expostas e o tipo de personalidade que surge a partir de seu enfrentamento. Os paradoxos inevitáveis relacionados à tentativa de agir no mun-do de maneira ética surgem, como veremos, porque Weber procu-rou evitar uma suposta correspondência entre a perda de sentido e a perda da liberdade na vida moderna.

Os textos A ciência como vocação e A Política como Vocação ad-quiriram, pois, maior importância com a recuperação da sociolo-gia da religião e com a volta dos debates sobre os problemas éticos no mundo contemporâneo. Mas eles têm, ainda, uma outra par-ticularidade: a de terem sido escritos em meio à Primeira Guerra Mundial e para um público especial, a juventude alemã organiza-da no movimento estudantil (cf. Schluchter, 1996). Esses dois fato-res deram aos textos um tom profético que os distingue dos outros textos weberianos: neles, a dominação como destino e a noção de sujeito como caráter, para aproveitar um insight de Gabriel Cohn, são explicitamente postos em tensão em relação ao significado da vida para o indivíduo portador de valores, mas realista quanto à ne-cessidade de escolher entre eles7 (cf. Cohn, 1979). Como afirmou

6 Sobre a relação crítica que Weber estabeleceu com o desenvolvimento do movimento feminista em direção a uma síntese ética supostamente possibilitada pela esfera erótica ver também Schwentker, 1996; e Schluchter, 1979, especial-mente pp.53-59.7 Segundo Gabriel Cohn, “Se a dominação pode ser identificada antes com a figura do destino, então o sujeito se apresenta como a tradução para o plano analítico da idéia de caráter. Em outras palavras: se uma exprime a visão ‘realista’ e ‘desencantada’ de Weber, a outra incorpora os valores básicos aos quais ele adere, sobretudo os de autonomia e liberdade” (Cohn, 1979:138).

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Wolfgang Schluchter, A ciência como vocação e A política como vocação formam uma unidade independente dos demais textos de Weber: eles são textos filosóficos na medida em que têm a pre-tensão de encorajar os ouvintes e os leitores tanto à auto-reflexão quanto à reflexão sobre o sentido do momento histórico que esta-vam vivendo. Em nenhum outro lugar, segundo Schluchter, Weber respondeu tão claramente à situação política e intelectual de seu tempo (cf. Schluchter, 1996).

Em A ciência como vocação, texto que servirá de base à primei-ra parte deste artigo, o caráter trágico da vida moderna é introduzi-do quando Weber, seguindo Leon Tolstoi, coloca a questão de se a ciência seria capaz de fornecer uma resposta para as questões so-bre o que devemos fazer e como devemos viver. “É inegável (diz Weber) que a ciência não dá tal resposta. A única questão que res-ta é o sentido no qual a ciência não dá resposta, e se ela ainda po-derá ou não ter alguma utilidade para quem formule corretamente a indagação” (Weber, 2002:99). A idéia de utilidade é chave nesse ponto, pois podemos considerar o empreendimento científico tan-to sob o ponto de vista prático quanto sob o ponto de vista de seu significado para a vida pessoal. Do ponto de vista prático, a utili-dade da ciência é contribuir para o aperfeiçoamento técnico da vida humana: criando objetos, equipamentos, materiais e princi-palmente conhecimento (idéias). Devemos considerar, no entanto, que o destino desse conhecimento e de toda produção científica, por maior que seja a sua qualidade, é ser ultrapassado. Weber che-ga, nesse contexto, a se referir à lógica do desenvolvimento cientí-fico como uma lei (Weber, 2002:96). Não seria evidente para o au-tor, nesse sentido, a significação de se dedicar toda uma vida a uma atividade cujo progresso é potencialmente infinito e para a qual, em contrapartida, qualquer contribuição individual tende a perder progressivamente o seu valor.

Uma segunda utilidade para a ciência surge, no entanto, se formu-lamos a questão de uma maneira diferente (“corretamente”): “Nós o fazemos (ciência), em primeiro lugar, por finalidades exclusivamen-te práticas, ou, na acepção mais ampla da palavra, por finalidades técnicas: para sermos capazes de orientar nossas atividades práticas dentro das expectativas que a experiência científica coloca à nos-

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sa disposição. Muito bem. Não obstante, isso só tem sentido para os homens práticos. Qual a atitude do homem de ciência para com a sua vocação – ou seja, se ele estiver em busca dessa atitude pesso-al?” (Weber, 2002:96). À vocação para a ciência estão relacionadas a dedicação do cientista a um trabalho voltado para o aperfeiçoa-mento dos métodos de pensamento e a busca constante por clare-za e esclarecimento que fazem com que possamos ter consciência (e com isso potencialmente responsabilidade) sobre o significado de nossos atos.8 “Assim, se formos competentes em nossa empresa (o que devemos pressupor, aqui, diz Weber) podemos forçar o indiví-duo, ou pelo menos podemos ajudá-lo, a prestar a si mesmo con-tas do significado último de sua própria conduta. Isso não me parece pouco, mesmo em relação a nossa vida pessoal” (Weber, 2002:105). Mesmo não podendo responder questões últimas da existência (pelo sagrado), e tampouco pelo valor do que é bom (pela justiça) e do que é belo (pela arte), a ciência, como conhecimento reflexivo, exer-ceria assim um função importante: ela forneceria instrumentos para avaliação de decisões que são extracientíficas, por dizerem respei-to a escolhas individuais relativas a valores. Ao separar juízos de fato e juízos de valor Weber conseguiu, como afirma Renarde Freire Nobre, “sustentar melhor a legitimidade da reflexão científica, para além do evidente progresso técnico” (Nobre, 2004:187).

Apesar da referência que Weber faz à vida pessoal e a significa-dos últimos, não é em relação aos significados últimos da existên-cia (em relação ao que devemos fazer e a como devemos viver) que a ciência pode emprestar seus conhecimentos (como vimos ante-riormente, “é inegável que a ciência não dá tal resposta”). O que a ciência pode fazer é, pois, esclarecer o significado de uma condu-ta que o indivíduo pode ou não assumir, de acordo com suas con-seqüências previsíveis e os meios disponíveis: “Na prática, podeis

8 Não é nosso objetivo aqui analisar a concepção de ciência para Weber. Deve-se ter em mente, no entanto, o fato de que para o autor a esfera científica – diferente, por exemplo, da esfera artística – é regulada pela idéia de progresso, com a contínua superação de um conhecimento pelo outro (cf. Weber, 2002). Uma posição que pode ser pensada como estando relacionada a um raciona-lismo científico “ortodoxo”, como, por exemplo, o de Karl Popper (cf. Paiva, 1994).

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tomar esta ou aquela posição em relação a um problema de va-lor – simplificando, pensai, por favor, nos fenômenos sociais como exemplos. Se tomardes esta ou aquela posição, então, segundo a experiência científica, tereis de usar tais e tais meios para colocar em prática vossa convicção. Ora, tais meios talvez sejam de tal or-dem que sua rejeição talvez vos pareça imperiosa. Tendes, então, simplesmente que escolher entre o fim e os meios inevitáveis. Jus-tificará o ‘fim’ os meios? Ou não? O professor pode apresentar-vos a necessidade de tal escolha.”9

Escolher conscientemente entre meios e fins e prestar contas so-bre a conduta implicada por essa escolha certamente não é pouco, como Weber o afirma. É isso que permite ao indivíduo acrescentar, ao sentido próprio, a esfera de valor específica em que está inseri-do, uma segunda camada de sentido, agora pessoal, que diz respei-to à relação entre um princípio regulador abstrato e uma conduta particular. Adquirir consciência sobre a necessidade da escolha leva o sujeito a agir com responsabilidade, considerando racionalmente os meios alternativos que podem ser utilizados tendo em vista um fim, a relação entre o fim perseguido e suas conseqüências e a im-portância relativa desse fim em relação a outros possíveis. Uma con-duta orientada por essa análise de valores é não somente racional, mas está também de acordo com uma ética da responsabilidade (cf. Schluchter, 1979). A consciência dos paradoxos entre meios e fins a que estão sujeitas as condutas não anula o fato de estarmos atrelados a uma esfera específica de valor, nem o peso de destino que Weber atribuiu a essa condição da vida moderna, mas é uma possibilidade de o indivíduo intervir no fluxo do seu destino como agente.

O sentido de falarmos em vocação em um mundo social desen-cantado, ou seja, dominado por uma postura intelectualista, e não mais mágica, e fragmentado em múltiplas esferas sociais, diz res-peito à responsabilidade ética decorrente da escolha entre diferen-

9 No ensaio A política como vocação, a relação entre os meios e os fins e os problemas que advêm dessa relação são ainda mais explícitos por ser a violên-cia o meio típico da política. Entretanto estamos diante do mesmo paradoxo fundamental: os meios têm conseqüências que, mesmo quando podem ser an-tecipadas, podem não ser desejáveis por entrarem em contradição com os fins perseguidos (cf. Weber, 2002).

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tes valores últimos. Essa escolha pressupõe uma dedicação coerente que implica, como contrapartida, um ato radical de renúncia (No-bre, 2004:184). O cientista deve renunciar a seus juízos valorati-vos e dessa atitude depende sua integridade intelectual; o político, ao contrário, deve expressá-los claramente e não se abster a tomar uma posição, mas, por sua vez, renuncia à ética da fraternidade; o homem religioso realiza um sacrifício intelectual em função de sua fé (cf. Weber, 2002). O que gostaríamos de ressaltar, no entanto, é que esse sentido está relacionado também a uma responsabilida-de existencial, que a noção de vocação traz à tona. E com isso che-gamos ao ápice dramático do texto weberiano no que toca à noção de identidade. Percorrer o caminho da vocação científica significa, agora sim em relação à existência, escolher não percorrer diversos outros caminhos possíveis. Em A ciência como vocação, Weber re-laciona o significado para a vida de se aderir aos valores científicos com o fato de que, sob as condições modernas, a experiência pesso-al não deve ser pensada em termos holísticos. A constituição da per-sonalidade implicaria, antes de tudo, servir nos termos weberianos a um só Deus ou a um só demônio e aceitar as conseqüências: “No campo da ciência, somente quem se dedica exclusivamente ao tra-balho ao seu alcance tem ‘personalidade’. E isso é válido não só para o campo da ciência; não conhecemos nenhum grande artista que te-nha feito qualquer outra coisa que não fosse servir à sua obra, e ape-nas a ela” (Weber, 2002:95).

Também nesse trecho podemos observar o paradoxo entre os meios e os fins, mas esse paradoxo é, aqui, apresentado em termos existenciais: a possibilidade de sermos uma personalidade, comu-mente pensada como uma totalidade, depende de aderirmos livre-mente – pois se trata de uma escolha – a um meio entre outros possí-veis, isto é, a uma esfera de valor específica10. Essa adesão pressupõe

10 Segundo Wolfgang Schluchter, apesar de ser usado com freqüência, o con-ceito ‘valor’ não encontra uma definição unívoca na obra weberiana. Podemos, no entanto, em analogia ao conceito de finalidade (zweck) “definir ‘valor’ como imaginação de uma validade que se torna motivo de uma ação. Valores têm a ver com reivindicações valorativas que apontam para normas de validade e para pretensões de validade. Definido assim, o conceito ‘valor’ mostra ao mesmo tempo seu fundamento numa teoria de ação e também numa teoria mentalista da consciência” (Schluchter, 2000:23).

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ao mesmo tempo uma atitude de renúncia e uma ação dirigida para um fim livremente escolhido, resultando, por fim, em uma conduta dotada de sentido e força moral. Assim como a política, a arte e a re-ligião, a ciência é um meio possível, um valor último, digamos, que um indivíduo pode ou não assumir como seu. Pensemos por exem-plo em um indivíduo que tenha assumido a ciência como sua voca-ção. Pensemos agora em condutas possíveis, em escolhas às vezes trágicas entre meios e fins que, ao longo de toda a sua vida, esse in-divíduo vai ter que realizar. Em que vão se basear-se-ão essas esco-lhas, se elas forem realizadas com responsabilidade? Elas serão ba-seadas, e poderão ser justificadas, de acordo com os princípios que orientam a ação no interior da esfera científica, pré-assumida pelo indivíduo como sua vocação. Com isso, diz Weber, o indivíduo po-derá prestar a si mesmo contas do significado último de sua condu-ta. Mas a vocação também se apresenta no mundo moderno como uma escolha. E em que essa escolha, primeira e essencial, vai estar fundada? Como seria possível, caso quiséssemos ser compreendidos pelos outros, justificá-la?

Somente nesse contexto a idéia de servir a um só Deus adquire toda a sua tonalidade trágica. Mesmo que o indivíduo possa justi-ficar suas escolhas e sua conduta com relação a uma esfera de va-lor específica, sua adesão aos valores dessa esfera e a fidelidade in-condicional que Weber acredita que a adesão a esses valores deve implicar não pode ser justificada. O que estamos sugerindo aqui é relativamente simples. A modernização levou a uma organização di-ferenciada da vida social, onde nenhuma esfera de valor pode se im-por de maneira legítima sobre as outras. Não se põe mais, com isso, a possibilidade de uma esfera superior arbitrar conflitos valorativos entre, por exemplo, a ciência e a religião, ou a ciência e a arte. A conseqüência dessa condição da vida moderna – a que comumen-te chamamos de politeísmo de valores – é a perda de sentido. A so-lução weberiana pressupõe a tomada de consciência desse processo e, do ponto de vista individual, a adesão quase religiosa a uma es-fera de valor. Se pensarmos na generalização desse comportamento do ponto de vista agregado, no entanto, o politeísmo não nos leva a um pluralismo no que diz respeito aos valores, mas à inconsistência entre fins últimos, expressa, em termos de conflitos, não somente ao

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nível institucional, relativo às múltiplas esferas de valores, como no plano da intersubjetividade11.

Weber nos apresenta um tipo heróico de sujeito, que se agarra à única possibilidade dada pelo destino de ter algum domínio sobre o processo de modelagem de sua identidade. A vocação é uma sa-ída necessariamente solitária cujo sentido não pode ser intersubje-tivamente compartilhado por se tratar de uma entrega radical, uma espécie de relação de fé secularizada estabelecida exclusivamente entre o indivíduo e seus valores últimos12. Mas é essa entrega que, fundando as opções valorativas na subjetividade, permitiria ao indi-víduo enfrentar a perda de sentido do mundo preservando a sua au-tonomia13 (cf. Schluchter, 2000).

Para Weber, a vida como um todo não poderia ser ela mesma uma realização, um desdobramento das múltiplas potencialidades ou in-clinações do sujeito, sob as condições da vida moderna. Essas con-dições estão relacionadas a um tipo particular, porque histórico, de organização social na qual as múltiplas esferas sociais se tornaram au-tônomas. Mesmo sendo idealmente funcionais umas às outras, as es-

11 Deve-se estar atento para “os limites e a sugestividade” do trágico como fi-gura retórica para a compreensão da sociedade moderna, principalmente no que diz respeito à metáfora “politeísmo de valores” (cf. Albergaria, 2005). No interior de uma tradição cultural modelada pelo monoteísmo cristão, a mera possibilida-de de múltiplos deuses é logicamente absurda (cf. Wilson, 1994).12 Harvey Goldman defendeu, nesse mesmo sentido, que “Para readquirir a vitalidade que já possuiu antes, o Ocidente, na visão de Weber, agora requer, em primeiro lugar, novos meios de autodomínio e formas de empoderamento para permiti-lo dominar novamente as instituições que criou. Em segundo lugar, re-quer uma metafísica individualista, nova, isto é, requer a aceitação do politeísmo do mundo moderno, aliado ao desejo dos indivíduos de postular ou reconhecer seus valores últimos como ‘deuses’. Esses deuses dão aos indivíduos uma ‘mis-são’, impõem demandas que os põem em tensão com a ordem existente e for-necem a base de uma forma de conduta que fortalece para permitir o indivíduo dominar o mundo” (Goldman, 1995:165, tradução do autor).13 Como afirma Karl Löewith: “a jaula de ‘subordinação’ se torna o único espaço disponível para a ‘liberdade de movimento’ que era a principal preocu-pação de Weber, como homem e como político. Ele negou o valor intrínseco de todas as instituições modernas, mas as afirmou, no entanto, como os meios dados para (se atingir) um propósito escolhido livremente” (Löewith, 1993:69-70, tradução do autor).

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feras de valores se organizam a partir de princípios últimos não com-patíveis entre si, na maior parte das vezes, até, conflitantes. Nesse contexto, a especialização não levaria à ausência de personalidade. Antes, pelo contrário, ela o evitaria, impedindo que a fragmentação da vida social atingisse o núcleo do sujeito. A ética da responsabili-dade e o modelo de identidade por ela implicado representam uma tentativa de evitar a correspondência entre a perda da liberdade e a perda de sentido no mundo moderno através de um modelo especí-fico de relação entre o indivíduo e o mundo, e, conseqüentemente, de indivíduo. Pensar nessa tentativa em termos contemporâneos, no entanto, inevitavelmente nos leva a perceber os seus limites, já que o empreendimento weberiano nos esclarece sobre o que não pode-mos chegar a um acordo, devido à vinculação dos valores a escolhas existenciais, e gostaríamos, ao contrário, de saber em relação ao que podemos positivamente chegar a um acordo (cf. Schluchter, 2000). O que nos permite atualmente visualizar um diálogo entre valores não é, pois, somente a consciência sobre o caráter subjetivo da esco-lha entre eles, como Weber havia observado, mas a perda de sentido também dessa entrega solitária e radical.

Simmel percebeu com a mesma inquietação de Weber a prepon-derância que os meios na vida moderna passaram a ter sobre os fins, em todas as esferas da vida14. Quase ao final do famoso texto The Metropolis and the Mental Life (1904), um dos três textos que servi-rão de base à segunda parte deste artigo, é esse o diagnóstico que encontramos: “O desenvolvimento da cultura moderna é caracteri-

14 Parece ser consensual que o período em que Simmel se ocupa com a so-ciologia propriamente dita é restrito à década de 1890: durante esse período ele escreve a maior parte de seus textos metodológicos na tentativa de fundar a ‘sua’ sociologia e a maior parte dos textos que vão compor A filosofia do dinheiro (FD) são escritos ou aparecem em uma primeira versão (cf. Waizbort, 2000; cf. Frisby, 1992). Para Leopoldo Waizbort há uma série de textos anteriores e posteriores que podem, no entanto, ser considerados por sua temática como sendo parte do ‘complexo’ da FD. Segundo ele, Simmel na verdade não chega a abandonar nas décadas seguintes suas posições e seus insights sociológicos desse período, mas os incorpora ao projeto de constituir uma ‘Cultura Filosófica’ (ib., 509ss.). Segundo David Frisby, por causa disso é que Friedrich Tenbruck vai afirmar que quando Weber começar a se destacar na sociologia Simmel já terá abandonado suas pretensões sociológicas (ib., 21).

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zado pela predominância do que se pode chamar de espírito objeti-vo sobre o espírito subjetivo; isto é, na linguagem assim como no di-reito, na técnica de produção assim como na arte, na ciência assim como nos objetos do ambiente doméstico, está incorporado um tipo de espírito, cujo crescimento diário é seguido somente de forma im-perfeita e ainda com uma grande distância pelo desenvolvimento in-telectual do indivíduo” (Simmel, 1971a:337, tradução do autor).

Esse mesmo diagnóstico recebe uma nova formulação em Sub-jective Culture, de 1908, onde seu sentido preciso e o caráter trági-co que dele resulta se tornam plenamente compreensíveis à luz da definição simmeliana de cultura15. A cultura é uma relação orien-tada para o desenvolvimento do indivíduo que continuamente, e durante toda a sua vida, incorpora objetos do mundo exterior16. In-corporando esses objetos na medida em que eles são e porque eles são significativos para a sua essência individual, o indivíduo supe-raria o seu estado natural e se tornaria o que, originalmente, ele já é: um ser de cultura.

O fato de os indivíduos servirem à produção de objetos da cultu-ra objetiva e ao mesmo tempo não se apropriarem deles para seu desenvolvimento é uma inversão do sentido original da relação en-tre os homens e o mundo dos objetos porque, com isso, os meios (os objetos produzidos) passam a ocupar o lugar do fim (o desen-volvimento individual). Se o homem é um ser de cultura é porque

15 “O desenvolvimento histórico moveu-se em direção a um firme aumento do hiato entre a produção cultural objetiva e o nível cultural individual. A disso-nância da vida moderna – em particular aquela manifesta no aperfeiçoamento técnico em todas as áreas e na profunda insatisfação com o progresso técnico – é causada em grande medida pelo fato de as coisas estarem se tornando mais e mais cultivadas, enquanto os homens são menos capazes de retirar da perfeição dos objetos uma perfeição de sua vida subjetiva” (Simmel, 1971c: 234, t.a.).16 Os objetos do mundo exterior devem ser entendidos como sendo todo tipo de produção (material e simbólica) historicamente acumulada: “Porque a cultura existe somente se o homem traz para o seu desenvolvimento algo que é externo a ele. Este caráter externo e objetivo não é para ser entendido somente em sentido espacial. As formas de comportamento, o refinamento do gosto expresso nos juízos valorativos, a educação do tato moral que torna o indivíduo um agradável membro da sociedade – tudo isso são formações culturais nas quais a perfeição do indivíduo se enraíza através das esferas reais e ideais externas ao seu eu” (Simmel, 1971c:230, tradução do autor).

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somente ele – em seu estado natural – tem um centro interior que se cultivado pode levá-lo à sua perfeição específica. Por isso, em relação ao homem, a cultura objetiva deveria ser um meio atra-vés de que, saindo de si, o indivíduo pudesse retornar a si mesmo: “Onde não há inclusão de um produto objetivo (da cultura) no pro-cesso de desenvolvimento do espírito subjetivo, onde esse espíri-to não retorna a si mesmo com a inclusão de um objeto (cultural) como meio e degrau de seu caminho para perfeição – pode-se re-alizar valores da ordem mais alta em si mesmo ou fora de si mes-mo, mas não mais adere cultura em seu sentido específico” (Sim-mel, 1971:230-1, tradução do autor).

A dissonância, apontada por Simmel, entre aquilo que é produzi-do e que faz parte da cultura objetiva do mundo e o sentido que as coisas têm para o indivíduo na proporção em que ele pode expe-rimentá-las, também está posta em A ciência como vocação. Ainda que a expressão nos termos de um hiperdimensionamento da cul-tura objetiva (ou “espírito objetivo”) em relação à cultura subjeti-va nos remeta a um vocabulário tipicamente simmeliano, Weber conclui, no mesmo sentido e com o mesmo pessimismo de Sim-mel, que “O homem civilizado, colocado no meio do enriqueci-mento continuado da cultura pelas idéias, conhecimento e proble-mas, pode ‘cansar-se da vida’, mas não ‘saciar-se’ dela. Ele aprende apenas a minúscula parte do que a vida do espírito tem sempre de novo, e o que ele aprende é sempre algo provisório e não definiti-vo, e portanto a morte para ele é uma ocorrência sem significado. E porque a morte não tem significado, a vida civilizada, como tal, é sem sentido; pelo seu progresso ela imprime à morte a marca da falta de sentido”17 (Weber, 2002:97).

As conclusões de Simmel sobre as conseqüências da vida urbana para a subjetividade são, em relação ao diagnóstico weberiano, ao

17 A carência de sentido para a vida, na modernidade, é também o diagnósti-co a que Simmel chega em sua análise do papel do dinheiro: o dinheiro, como um meio impessoal – “sem caráter” – despersonaliza e tira o caráter de todos os objetos que os indivíduos produzem, vendem e consomem, e assim fazendo retira qualquer sentido profundo (enraizado na personalidade) que poderíamos encontrar em produzir, vender e consumir. Ele faz isso porque tem a capacidade de reduzir as diferenças qualitativas em diferenças quantitativas.

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mesmo tempo mais e menos trágicas. Elas são menos trágicas no sen-tido de que Simmel não lamenta a falta de certezas que, do ponto de vista subjetivo, marca as escolhas que os indivíduos realizam cotidia-namente ao longo da vida. O caráter provisório, a transitoriedade e os deslocamentos possíveis, tanto subjetivos, quanto objetivos, que as grandes metrópoles capitalistas oferecem e exigem, representam para Simmel uma fonte de liberdade para o indivíduo, tanto negativa quan-to positiva. Significam a um só tempo liberdade dos laços tradicionais – familiares, políticos e religiosos – que limitavam o espaço de desen-volvimento individual e liberdade para o cultivo das peculiaridades e individualidades que fazem de cada um, potencialmente, alguém in-comparável diante de todos os seus semelhantes. A falta de certezas oferece, como o outro lado da moeda, a possibilidade de uma contí-nua mudança em direção à realização daquilo que se quer ser e que em seu estado natural todo indivíduo já é: um conjunto possível de múltiplas disposições e inclinações que, se desenvolvidas, levarão à constituição de um estilo de vida absolutamente único e singular.

Uma pequena utopia nascida com o individualismo moral e adi-cionada de matizes estéticos que é atraente ainda nos dias de hoje, mas cuja condição para se realizar depende da singularidade ineren-te a cada personalidade ser reconhecida pelo outro social. Somente quando a diferença está ligada ao reconhecimento e como distintos um do outro os indivíduos se tornam insubstituíveis é que pode-mos afirmar que usufruímos da liberdade adquirida no processo de desenvolvimento histórico que culminou na modernidade. É nesse ponto, que nos remete a um tema tão contemporâneo como o do re-conhecimento, que a análise simmeliana das conseqüências para a subjetividade da vida nas modernas cidades capitalistas revela as contradições inevitáveis a que estão expostos os indivíduos nasci-dos sob essa configuração histórica. As mesmas condições que pos-sibilitaram o surgimento de uma esfera de/para a liberdade individu-al se refletiram, com efeito, na vida subjetiva, impedindo seu pleno desenvolvimento ou impelindo a um desenvolvimento desequilibra-do e parcial que seria bem ilustrado por algum quadro modernista como metáfora de um subjetivismo caótico.

As instituições modernas, e dentre elas principalmente o mercado capitalista, estruturam-se a partir dos princípios de calculabilidade e

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previsibilidade, típicos de uma sociedade costurada por uma organi-zação racional da economia, do tempo e do espaço. Mas para Sim-mel seria um engano pensarmos que esses mecanismos que permi-tem a autonomia da cultura objetiva não interferem diretamente em como os indivíduos constituem sua identidade. Os conteúdos e as formas sociais de vida mais amplas e gerais estão relacionados aos conteúdos e às formas que a subjetividade adquire. As estruturas su-pra-individuais (como o Estado) aliadas à divisão social do trabalho e à generalização de uma economia monetária, mediando as relações entre os indivíduos, permitiram a autonomia da cultura objetiva. Essa mediação, justapondo os indivíduos em uma rede quase-infinita de interdependência, implicou como contrapartida que relações antes pessoais fossem marcadas por uma dupla distância: objetivamente, por serem mediadas por estruturas supra-individuais; subjetivamen-te, porque o aumento tanto quantitativo quanto qualitativo de con-tatos sociais leva o indivíduo a se retrair e reagir intelectualmente, e não mais emocionalmente, às interações em que está inserido. Mas o que significa e quais são as conseqüências trágicas para a vida sub-jetiva dessa atitude intelectual em relação ao mundo?

A economia monetária e a postura intelectual (do ponto de vis-ta psicológico) atuam no mesmo sentido para reduzir as diferen-ças qualitativas em diferenças quantitativas. Nas relações afetivas, que se baseiam na individualidade das circunstâncias e dos partici-pantes, conseguimos formar uma imagem mais ou menos clara da personalidade individual do outro. Nas relações intelectuais, assim como nas monetárias, as pessoas ao contrário lidam umas com as outras de maneira puramente objetiva, como se fossem números, diz Simmel, que em si mesmos são indiferentes uns aos outros (cf. Sim-mel, 1971a:326). Agindo intelectualmente os indivíduos mobiliza-riam prioritariamente a parte racional de suas mentes, por um lado menos sensível e mais distante do centro interior da personalidade, mas por outro lado a parte mais adaptativa da vida subjetiva. Adap-tativa, aqui, no sentido de autopreservação: porque tem a finalida-de de proteger a subjetividade da massa de estímulos internos e ex-ternos, da profusão de imagens, sons e interações fugidias de todos os tipos que estamos continuamente estabelecendo com desconhe-cidos ou semidesconhecidos; enfim, de um ambiente cujo contínuo

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movimento e mudança exigiriam uma energia não disponível caso fosse percebido e apreendido emocionalmente.

O caráter trágico do diagnóstico simmeliano se deve, em primei-ro lugar, à inevitabilidade desse modo de agir, típico aos habitan-tes das cidades, que priva o indivíduo do reconhecimento. É ine-vitável assumir uma postura intelectual em relação ao ambiente e aos outros, assim como era inevitável para Weber que os indiví-duos se inserissem em uma ou outra esfera de valor e se subme-tessem a seus imperativos ético-funcionais. Não existe a possibili-dade de escolhermos daqui em diante agir de maneira diferente, ou seja, reagir emocionalmente aos estímulos do ambiente, por-que a intensidade e a quantidade desses estímulos seriam insupor-táveis do ponto de vista psicológico e mental. O que Simmel de-nominou como o caráter blasé dos habitantes das grandes cidades – que não são mais capazes de operar distinções entre o valor dos objetos – e sua atitude de reserva em relação aos outros definem, como desdobramentos da postura intelectual, um tipo específico de conformação da subjetividade. Esse tipo de adaptação humana ao ambiente é trágico, em segundo lugar, porque a incapacidade de perceber as coisas e os outros qualitativamente e de ser perce-bido qualitativamente constrange o desenvolvimento da cultura in-dividual, no sentido específico de cultura que vimos acima. A au-topreservação, conseguida a custo da desvalorização do mundo objetivo, acaba por arrastar a personalidade em direção a um sen-timento de autodesvalorização (cf. Simmel, 1971a: 330). E é nes-se sentido que seu diagnóstico pode ser ainda mais trágico do que o weberiano: somada à possível falta de liberdade e de sentido, a vida moderna imporia aos indivíduos uma espécie de fracasso psi-cológico experimentado cotidianamente. Diante de um desenvol-vimento nunca antes visto da cultura objetiva, encontra-se um in-divíduo capaz de perceber esse desenvolvimento, mas incapaz de absorvê-lo para o cultivo de sua personalidade. Em contraste com Weber, as conseqüências desse processo para Simmel independe-riam do grau de consciência ou inconsciência com que ele é psi-cologicamente vivido.

Talvez não explicitamente em tom de resposta, e certamente não como um modo heróico de enfrentar as condições da vida moder-

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na, Simmel parece ter identificado na atitude de distância da sociabi-lidade uma saída para essas contradições, ou pelo menos um espaço em que elas não imperariam. Como uma forma estilizada de intera-ção entre os indivíduos, a sociabilidade se definiria por seu caráter ar-tificial: ela seria uma espécie de mundo artificial (cf. Simmel, 1971b). A idéia de artificialidade é mais importante do que à primeira vista pode parecer por trazer à tona a qualidade de coisa fabricada da so-ciabilidade. Trata-se de um mundo artificial não por ser falso, mas por ser construído. Para sua existência a presença mesmo escondida do artífice – e no caso da sociabilidade dos artífices – faz-se imprescindí-vel. Com isso, como em Weber, Simmel introduz novamente o indiví-duo em cena, como agente. O espaço da sociabilidade é somente um espaço possível entre outros, mas ele tem em relação aos outros es-paços sociais a singularidade de exigir a intervenção efetiva dos indi-víduos como agentes que o constituem e garantem a sua permanên-cia e, assim fazendo, se constituem como personalidades.

As regras do jogo da sociabilidade são o tato e a discrição e o seu espaço típico é o interior e é por isso que os comentadores de Sim-mel assinalam que a sociabilidade simmeliana é pensada segundo o modelo ideal dos salões burgueses que ele mesmo freqüentava e os salões burgueses pensados como o seu ideal de sociedade (cf. Waiz-bort, 2000; cf. Frisby, 1981). A sua especificidade é permitir uma in-teração entre iguais, sem atritos, mas também permitir uma intera-ção para a qual cada um contribui na sua distinção. Em relação ao mundo exterior marcado por um individualismo quantitativo, a so-ciabilidade dos salões pressupõe um individualismo qualitativo, que também deve ser, no entanto, atenuado para que as características individuais de um participante não impeçam que os outros partici-pantes igualmente contribuam para o desenrolar do jogo e o jogo possa assim ser jogado: “a sociabilidade cria, se se quiser dizer, um mundo sociológico ideal, porque nela – por princípio – o prazer do indivíduo é sempre contingente ao prazer dos outros; aqui, por de-finição, ninguém pode ter satisfação a custo de experiências contrá-rias, de insatisfação, por parte dos outros” (Simmel, 1971b:132, tra-dução do autor).

Como em Weber, a solução simmeliana implica um tipo de renún-cia. A sociabilidade exige dos participantes da interação que eles re-

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nunciem àquilo que os diferencia, seja em relação ao mundo ob-jetivo e exterior, seja em relação ao mundo puramente pessoal, e principalmente em relação a esse: “Para não perturbar a forma artís-tica da sociabilidade”, como afirma Leopoldo Waizbort, “também os elementos mais pessoais e individuais dos envolvidos precisam ficar de fora do âmbito da sociabilidade: seus problemas, suas dificulda-des, seus sofrimentos – pois alguém já disse que no sofrimento todos são irredutivelmente diferentes”18 (Waizbort, 2000:450-1).

A renúncia não pode ser representada, aqui, pela imagem webe-riana de uma entrega radical e solitária por parte do indivíduo a um único Deus ou demônio. Ao contrário, trata-se de uma renúncia cuja intenção só é alcançada se for realizada coletivamente, por todos os participantes da interação. Quando todos os que estão interagindo socialmente renunciam àquilo que os diferencia, seja objetiva seja subjetivamente, é que se torna possível usufruir do bem fundamental proporcionado pela sociabilidade: ser reconhecido como uma per-sonalidade; quer dizer, como um sujeito cujas múltiplas potencia-lidades e disposições não se desenvolvem a partir de estímulos ex-ternos, mas através de estímulos externos a partir do próprio centro interior, resultando em um estilo de vida único e singular. Resultan-do, enfim, em vidas com sentido.

O caráter coletivo da sociabilidade que evoca, como já foi assina-lado, o ambiente dos salões burgueses, imersos em uma atmosfera ainda aristocrática, torna às vezes difícil perceber que se trata, tam-bém em Simmel, de uma solução individualista e pessoal no mais alto grau: a de reservar a própria subjetividade. Para escapar ao hi-

18 O mundo da sociabilidade se apresenta como um mundo ideal, de simetria e equilíbrio, em que as questões do mundo objetivo e subjetivo só penetram na medida em que e quando servirem ao desenrolar das relações. Ideal que vale também para os indivíduos da sociabilidade simmeliana caracterizados pela dis-tinção: “a diferença não pode sobressair demais, a ponto de fazer o distinto sair de sua satisfação de si mesmo, de sua reserva e acabamento interior, e transferir sua essência para uma relação com o outro, mesmo que se trate apenas de uma relação de distintos. O homem distinto é um homem absolutamente pessoal, que no entanto reserva inteiramente a sua personalidade. A distinção representa uma combinação absolutamente única de sentimentos de diferença, que tocam a comparação, com a recusa orgulhosa de qualquer comparação” (Simmel, apud Waizbort, 2000:428-9).

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perdimensionamento do individualismo quantitativo, reforçado pela economia monetária, o indivíduo deve, ao contrário do que pode-ríamos imaginar, abdicar de impor às suas relações aquilo que de si mesmo é mais pessoal, mais individual. Essa não é, como pode parecer, uma exigência fácil de ser cumprida. E se torna ainda me-nos se consideramos a influência cultural dos estudos sobre a vida psicológica e, principalmente, da psicanálise durante todo século XX. Diante da possibilidade anunciada pelo desenvolvimento his-tórico de apresentar socialmente sua individualidade, os indivíduos para Simmel devem escolher se reservar para precisamente não cair na armadilha de representarem sua personalidade individual, assim como representam os diversos papéis sociais que lhes são impostos.

O modelo de sociabilidade simmeliano está intrinsecamente atre-lado às condições históricas que ele vivenciou e sem as quais seu modelo não seria possível. Pois foi com a modernidade que o indi-vidualismo primeiro quantitativo e depois qualitativo surgiu como tipos distintos – o individualismo liberal do século XVIII e o indivi-dualismo romântico do século XIX. No conflito entre esses dois ca-minhos possíveis de definir a relação do indivíduo com a totalidade social Simmel identificava o nó da história de seu tempo (cf. Simmel, 1971a:339). Diferente de Weber, sua solução não ensejava o surgi-mento de personalidades fortes, em tensão com o mundo. Mais pes-simista que Weber, talvez, Simmel enxergou que as coisas caminha-vam em direção contrária.

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