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Valdeck Almeida de Jesus Memorial do Inferno A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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Valdeck Almeida de Jesus

Memorial do Inferno

A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, João Alexandre de Jesus e Paula Almeida de Jesus, falecidos,

que foram o alicerce e os principais pilares de minha vida.

Aos meus irmãos, Valquíria, Valmir, Valdecy, Valdir, Vitório, Vivaldo e

Ivonete, minhas únicas e raríssimas jóias.

Aos meus sobrinhos, Murilo, Rodrigo, Ramon, Roberto Junior, Vítor e Tiago.

Às minhas sobrinhas, Delma, Jéssica, Amanda e Paula Fernanda.

Ao meu filho, Valdeck Almeida de Jesus Junior, que sempre me dá motivos

para evoluir.

Aos amigos que passaram por minha vida deixando grandes e indeléveis

marcas.

A todos os que, de forma anônima ou não, ajudaram minha família a

sobreviver neste país chamado Brasil.

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APOIO:

Ivan Ramos

Lázaro Ramos

Vanise Vergasta

CAPA

Jorge Cravo

(artista plástico baiano)

PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho

(escritor, poeta e jornalista)

Valdeck, muita sorte em seu caminho.

BBBeijos.

Jean Wyllys, 18 de abril de 2005

(Dedicatória no livro Aflitos, de Jean Wyllys, publicado pela Fundação Casa

de Jorge Amado, COPENE, Salvador, 2001).

Eli, Eli, lamá sabactâni: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

Mateus, Capítulo 27, Versículo 46

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APRESENTAÇÃO

Para que melhor se compreenda a referência que aqui se faz ao "Jardim do

Éden", é necessária uma prévia explicação. Minha família iniciou-se praticamente a

partir das figuras de minha mãe e meu pai. Não tive avôs nem avós, primos, tios etc.

Assim, tracei um paralelo imaginário entre minha história e a história mitológica

contada na Bíblia.

Este é um livro autobiográfico, onde assumo o papel do narrador, para contar

a história de minha vida e a de minha família, que compreende: mãe, pai e sete

irmãos. Uma saga protagonizada por uma família de baixa renda, residente em

cidade de médio porte no interior da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos,

toda a ordem de dificuldades que essas pessoas enfrentaram: crises financeiras, falta

de habitação, de alimentação, de escola básica, de tratamentos médico-

odontológicos e tanto mais. Ao contrário do que costuma ocorrer com esse tipo de

gente, esta família não mediu esforços para superar as muitas barreiras que lhe

foram impostas, vencendo os mais diversos obstáculos. Sem perder a fé no futuro,

sempre incerto e duvidoso, a Família Almeida conseguiu, com sua luta, atingir os

objetivos almejados e marcar seu lugar ao sol.

Estas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta família, têm por fim

incentivar outros sofridos brasileiros a acreditar em seu país e a lutar por seus

ideais.

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PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho (*)

A memória individual assume uma dimensão grandiosa ao apresentar

aspectos marcantes da memória social. Essa é uma das características do livro

autobiográfico de Valdeck Almeida de Jesus. Com um título atrativo e carregado de

senso de humor (uma das marcas da personalidade de Valdeck, mesmo nos

momentos mais difíceis de sua vida), Memorial do Inferno - A Saga da Família

Almeida no Jardim do Éden revela a trajetória de uma vida sertaneja que comprova

a frase que se tornou célebre no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha: "o sertanejo

é antes de tudo um forte".

Para enfrentar os desafios que Valdeck e sua família sofreram em Jequié,

sertão baiano, é preciso muita força de vontade e determinação. E estes são atributos

inerentes à sua vida.

Conheci Valdeck nas lutas estudantis que realizamos no Instituto de

Educação Régis Pacheco (IERP), o maior colégio de ensino médio de Jequié. Na

época em que fui eleito presidente do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do

IERP, Valdeck fazia parte da diretoria, na qualidade de diretor de Imprensa, onde

foi co-autor do jornal Jornada Estudantil. Nossa gestão ficou marcada na história,

uma vez que, além dos movimentos que fizemos em prol da melhoria do ensino e do

acesso à cultura e ao esporte, foi esta a primeira diretoria de grêmio estudantil livre

após o regime militar e a redemocratização do país. Já no período de estudante do

IERP e ativista do movimento estudantil, Valdeck despontava como um poeta

criativo e como um artista em busca de seu espaço.

Antes mesmo do advento da Internet, ele já entrava em sintonia com o

mundo globalizado, como membro ativo do campo literário, fato que lhe possibilitou

participar de antologias como: Poetas Brasileiros de Hoje, lançada pela Shogun

Editora, Rio de Janeiro, 1984; Transcendental, Art’Labor Eventos e Produções

Artísticas Ltda., Salvador, 1998; Heartache Poems, iUniverse, New York, 2004;

Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - 14º volume e Antologia de

Poetas Brasileiros Contemporâneos - 15º volume, Câmara Brasileira de Jovens

Escritores, Rio de Janeiro, 2005; Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de

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Letras, Rio de Janeiro, 2005. Publicou ainda outros trabalhos literários em jornais

de grande circulação na capital e no interior do estado da Bahia, além de ter sido

colaborador do jornal A Prosa, de Brasília/DF. Publicou, em 2005, o livro de poesias

Feitiço Contra o Feiticeiro, dezenove anos após ter divulgado no Jornal de Jequié

notícia sobre o breve lançamento do referido livro. Mais recentemente, lançou

Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys, pela Casa do Novo Autor, São Paulo,

2005, e fundou o fã-clube do jornalista e escritor Jean Wyllys.

Neste livro, Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do

Éden, Valdeck Almeida de Jesus narra, com detalhes, a história de sua família,

abrangendo sua mãe, seu pai e seus sete irmãos, onde conta passagens de momentos

difíceis, como aquela onde diz que "a comida variava de pão seco com café preto a

pirão de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, acreditando no

que minha mãe dizia: ‘amanhã Jesus vai trazer comida’. Eu me irritava e xingava

muito, pois todos os dias eu ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com a

comida prometida". Mas não é só. O autor se reporta também a momentos de

sucesso, como o fato de ter sido aprovado em concurso do Tribunal Regional do

Trabalho, em decorrência da sua boa capacidade intelectual, e de ter sido, desde

criança, um aluno exemplar.

Valdeck Almeida de Jesus é exemplo para todos que sonham e procuram

concretizar seus sonhos. Ele tem um pensamento fascinante: devemos ter sempre

uma atitude positiva diante da vida e deixar esta imagem transparecer aos outros.

Por este e mais tantos ensinamentos, e pela edificante trajetória de vida do autor,

vale a pena a leitura deste extraordinário livro.

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MEU PAI, MINHA MÃE

Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou menos. Ao entardecer, surgia

ele ao longe, com um machado nas costas, roupas surradas e rasgadas pela ação do

mato. As primeiras lembranças que tenho dele são de quando eu e Quira ficávamos

na porta da casa (casa alugada de Nazinha), esperando por sua chegada no final da

tarde. E ele nunca esquecia de passar na venda de Seu Júlio para nos comprar

bombons.

Semi-analfabeto, trabalhava em fazendas, cortando madeira. Não sei muito

de sua vida, pois, além de trabalhar muito e estar sempre fora de casa, na época em

que convivi com ele eu era muito criança; além disso, em minha adolescência, meu

pai vivia doente e não tinha um espírito conversador como o de minha mãe. Antes

de se casar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu seis filhos, até ficar viúvo.

João Alexandre de Jesus era um pai do tipo rígido, que batia de cinto quando

necessário. Mas também sabia ser amigo, dar bons conselhos e fazer carinhos, ao

seu modo. Lembro-me, uma vez, já morando na casa de Amanda, de uma ocasião em

que ele queria me bater, por uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta

da rua era muito alta, para descer havia uma espécie de escada. O terreiro era de

cascalho. No afã de fugir das cintadas certeiras, joguei-me porta abaixo, caindo e

esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e abdome sangravam, eu chorava de

dor. Então ele disse: "Vem!". Eu relutei, com medo de apanhar. E ele continuou já

com a voz mais mansa: "Não vou te bater mais". Eu fui e ele não bateu... Esta cena se

inscreveu para sempre em minha memória.

Era um homem de pouca saúde. Sobretudo, pelas más condições de seu tipo

de trabalho. Lembro-me de que minha mãe contava sobre uma tora de madeira

(uma árvore) que havia caído em cima de meu pai, em uma das roças onde

trabalhou. Ele também sofria de uma sinusite crônica, que o deixava atordoado.

Vivia a queixar-se de dores de cabeça. Com a velhice, tudo foi se acumulando, e ele

acabou morrendo, vitimado por uma série de problemas de saúde.

Ao final da vida, havia momentos em que perdia a memória. Ficou violento e,

por segurança, minha mãe passou a mantê-lo trancado no quarto, para evitar que se

ferisse ou que saísse pela rua sem rumo. Nessa época, início dos anos 80, criou o

hábito de pedir comida às pessoas que iam visitá-lo. Dizia sentir fome, porque os

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filhos comiam tudo e nada deixavam para ele. As pessoas acreditavam no que ele

dizia e lhe levavam comida, mas não sem antes advertir-nos para não mais agirmos

daquela maneira com o nosso próprio pai. Para resolver o assunto, minha mãe, um

dia, pediu aos que traziam comida a meu pai para ficarem escondidos e observá-la

enquanto lhe dava a comida; ele comia tudo. Depois, chamava a visita para vê-lo

novamente. Como ele não reconhecia ninguém, nem os próprios filhos, repetia a

mesma história de que teríamos comido tudo, sem deixar nada para ele.

Meu pai foi aposentado por invalidez. Recebia um salário mínimo por mês.

Quando morreu, esta pequena renda se extinguiu e minha mãe se viu com oito filhos

menores, sem condições financeiras de sustentá-los.

O velho João - como costumávamos chamá-lo - sofreu muito durante a vida e,

quando esteve doente, de cama, quase à beira da morte, seu sofrimento foi muito

maior. O sofrimento dele era também o nosso sofrimento. No dia de sua morte,

Albérico, um parente distante, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora em que

agonizava. Eram seus últimos momentos de vida. Assisti a tudo e ajudei, inclusive, a

colocar uma vela em sua mão. Para ser franco, devo dizer que não me comovi com

sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Ao contrário, senti mais alívio por

vê-lo partindo do que a dor de perder um ente querido. Vim chorar sua falta

somente dez anos depois. Era um domingo de Dia dos Pais, e neste dia senti

profundamente a sua ausência. Fiz até um poema em sua homenagem.

***

Paula, minha mãe, costumava falar demais. Sempre contava muitas histórias

de sua vida, mas, na maioria das vezes, nós, os filhos, não levávamos muito a sério o

que ouvíamos. Na maior parte do tempo, simplesmente fingíamos ouvir suas

histórias, e, em outras ocasiões, corríamos, deixando-a a falar sozinha.

Ela contava que a mãe tinha morrido de parto e que fora criada pelo pai até os

doze anos de idade; que sua avó paterna era uma índia "pega a dente de cachorro".

Segundo ela contava, seu pai era um ambulante, louro e de olhos azuis. Essa história

foi confirmada, após sua morte, por uns primos, descobertos por minha irmã

Valquíria lá perto do Frisuba - cerca de 15 quilômetros de Jequié -, local onde minha

mãe passou boa parte da infância e juventude.

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Cabe dizer aqui que nossa idéia de família remonta praticamente à figura de

minha mãe e de meu pai, já que não tínhamos conhecimento da existência de outros

parentes.

O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos azuis explica o fato de

quase todos nós termos nascido com cabelos loiros, que mais tarde teriam sua cor

modificada para preto ou castanho claro, pelos efeitos do tempo. Explica também os

olhos claros com que alguns de nós fomos contemplados. Antenor, um de nossos

recém-descobertos primos, afirma que esse avô materno era descendente de

italianos. Diz que ele vivia pelas bandas de Santo Antônio de Jesus e que era,

realmente, um ambulante. Trabalhava com confecção artesanal de cestas e produtos

feitos com palha.

Minha mãe sempre teve problemas sérios de saúde. Contava que, quando

criança, sofria de uma espécie de doença, que nunca entendi bem do que se tratava,

se um problema de coração ou de ordem espiritual. Dizia que, durante uma época,

ficava presa num quarto, amarrada em algo semelhante a uma camisa-de-força, por

não ter controle dos movimentos do corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a

ponto de os parentes precisarem amarrá-la à essa camisa-de-força improvisada, feita

com couro de boi, para que não se machucasse. Essa situação deve ter durado muito

tempo e marcado bastante sua vida, pois freqüentemente voltava a tocar no assunto.

Quando já tínhamos mais consciência da vida, presenciamos muitas de suas

crises: sistema nervoso, asma, coração. Costumava ficar, por boa parte do tempo,

sem os movimentos dos membros inferiores, praticamente paralisada. Arrastava-se

pelo chão, sem qualquer sensibilidade nas pernas. Não sentia a parte inferior de seu

corpo nem mesmo ao fazer suas necessidades. Era um sofrimento só, tanto para ela

quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas. Conseguimos uma, depois

que tive a idéia de enviar uma carta ao programa apresentado por Geraldo Teixeira,

na Rádio Baiana de Jequié. Nesta oportunidade, foi-nos doada uma cadeira de rodas

usada, que serviu à minha mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por

um par de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou a andar.

Essa foi uma das fases mais marcantes para a vida de minha mãe, e também

para a nossa. Ficávamos mortos de vergonha por termos de empurrar aquela cadeira

rua acima e rua abaixo, para que ela conseguisse as esmolas que ajudariam a gente a

comer, beber, se vestir, estudar, sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe

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pesada, e nós franzinos e fracos para agüentarmos todo aquele peso; além da

questão, é claro, da timidez e vergonha de sermos vistos empurrando a cadeira de

rodas. Mas não tínhamos escolha. Ou empurrávamos a cadeira para pedir esmolas

ou morríamos de fome. De minha parte, sentia uma vergonha enorme ao ser visto

conduzindo aquela cadeira de rodas pelas ruas, sob o sol quente.

Durante todo o tempo passado ao lado de minha mãe, o que mais me recordo,

além das constantes mudanças de endereço, já que não morávamos em casa própria,

eram as idas e vindas ao Hospital Geral Prado Valadares, onde ela permanecia

internada por grandes intervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos filhos

ficava na casa de um vizinho, até que ela retornasse e mostrasse condições de

reassumir a casa e as crianças. Esses vizinhos chegavam a lhe propor que doasse os

filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida mais digna e confortável, mas ela

jamais admitiria tal hipótese. Dizia: "Onde come um, comem dois". Passava apertos,

privações, necessidades, mas jamais seria capaz de doar qualquer um de seus filhos.

Era uma experiência sem igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que não

tínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão. Mas o desejo maior era de

que minha mãe pudesse voltar do hospital e todos retornássemos ao aconchego do

lar e do colo materno. Era uma grande festa quando recebíamos a notícia de que

nossa mãe tinha tido alta médica e que estava voltando para casa.

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CENAS DE UMA INFÂNCIA

Primeira residência - Casa de Nazinha

A casa ficava num local que hoje se chama "Banca", no bairro Jequiezinho,

em Jequié. Na época em que moramos ali, não havia água encanada, linha de ônibus

nem calçamento nas ruas. Cabe aqui ressaltar que, passados mais de quarenta anos,

esta e outras ruas do bairro permanecem ainda sem calçamento e sem linha regular

de transporte coletivo. Apenas uma linha de ônibus circula nos arredores.

Os esgotos ainda correm a céu aberto e as casas mantêm o aspecto da pobreza

e da miséria que ainda ronda o antigo bairro. Vivi ali boa parte de minha infância.

Passei fome e brinquei por entre os lixos, catando ossos para vender.

Freqüentemente pedia comida na casa de um e de outro. Este fato rendeu a mim e à

minha irmã Valquíria (Quira) alguns apelidos do tipo "Gordurinha" (Quira) e

"Paquira" (eu), pois, quando íamos à casa de Seu "Santin" pedir comida, eu

costumava dizer: "Minha mãe falou pro senhor mandar um pedacinho de carne

PAQUIRA", enquanto Quira vivia pedindo "uma gordurinha". Seu "Santin" matava

porco e era tido como rico, pois em sua casa não faltavam comida, energia elétrica e

sanitário (com uma fossa no quintal).

Lembro-me de uma vez que eu estava catando ossos nos fundos do quintal

dele, quando, ao pular sobre um esgoto, caí, atolando as duas pernas dentro das

bostas e cortando o pé direito nos cacos de vidros alojados no fundo do lamaçal. Foi

um horror. Um drama. Corri para casa aos prantos e minha mãe cuidou de mim. Eu

gritava e chorava de dor, desesperado de ver toda aquela inundação sanguínea a

jorrar do meu pé.

A casa era de taipa. Dois quartos, uma salinha e uma cozinha minúscula. Foi

construída sobre uma encosta, sendo que a parte da frente da casa, que dava para a

rua principal, tinha uma escada enorme para descer até o nível da rua. E a porta dos

fundos era no mesmo nível do solo, porém dava para uma ladeira, que ia dali da

porta da cozinha até a rua que passava atrás. Era casa de aluguel. Acredito que

Valquíria tenha nascido ali, já que devemos ter morado naquela casa por volta do

ano de 1967. Recordo-me bem do momento em que minha mãe entrou em trabalho

de parto e foi para o hospital. Ao voltar com o nenê, sua cama foi arrumada com

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lençóis floridos. Ficava ali deitada o tempo todo com seu bebê, respeitando o

resguardo do parto.

Os vizinhos eram os próprios donos da casa: Maria, mãe de Nazinha, que, por

sua vez, era mãe de Lúcia e de Domingos. Havia também uma família que morava

perto: Maria de Ademário, sua filha Lúcia e mais outros filhos, dos quais não me

recordo bem. Atrás da casa havia um beco, onde se guardavam ossos. Durante a

noite, os cachorros apareciam para roê-los. Faziam uma algazarra que me

amedrontava. Por inúmeras vezes, acordava chorando e gritando de medo. Achava

que os cães estavam embaixo de minha cama de lona. Mas logo aparecia minha mãe

para me tranqüilizar, dizendo que os cachorros estavam do lado de fora. E, como eu

não me convencia, ela me levava para dormir em sua cama.

Nossos móveis se resumiam a uma pequena cama de madeira e um armário

de cozinha, do tipo cristaleira, porém sem os vidros nas portas. O fogão era de barro

e o combustível era lenha. Não havia água nem luz. Saneamento básico, nem pensar.

Nenhuma casa, em todo o bairro, possuía esgotamento sanitário.

Eu morava a cerca de 500 ou 600 metros da venda de Seu Júlio, que para

mim pareciam quilômetros. Aos olhos de uma criança tudo é imenso, gigantesco... E,

para aumentar a sensação de distância, de minha casa até a venda não havia casas

nem de um lado nem do outro da rua. O que havia era uma cerca, formando uma

estrada, uma passagem chamada de "corredor", por onde passava muito gado.

Muitas vezes eu via passar centenas de milhares de animais, guiados por vaqueiros,

que advertiam aos moradores do perigo de se aproximar da manada. Era um

espetáculo que durava horas e horas, como se fosse um mar interminável de bois e

de vacas. Nos dias de hoje, esse espetáculo já não existe. As criações se restringem a

lugares mais afastados da cidade e também já não há tantos animais como havia

antigamente.

Quando eu ia à venda de Seu Júlio comprar alguma coisa, tinha sempre que

enfrentar um menino que me batia, enquanto o tio dele ficava esperando eu acabar

de apanhar. Uma vez, apanhei bastante desse garoto. Quando minha mãe soube que

isso acontecia, procurou os parentes dele e se queixou. Desse dia em diante não

apanhei mais.

Uma lembrança que até hoje habita a minha mente é a do boato sobre o "fim

do mundo" ou "dia da escuridão". Diziam que o mundo ficaria sob as trevas. Minha

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mãe, muito precavida, tinha várias velas bentas, que seriam as únicas a

permanecerem acesas quando o "escuro" viesse, segundo ela. Tinha também água

benta e pão bento, que seriam os únicos alimentos permitidos durante os dias de

escuridão. Penso que tais boatos eram criados pela igreja católica para amedrontar

as pessoas. Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acreditava piamente

que o mundo se acabaria no ano 2000. A passagem desse ano foi quase uma

decepção para ela, mas também uma alegria, por saber que viveria um pouco mais

aqui na Terra. No entanto, a previsão que fez de sua própria morte, que viria a

ocorrer neste mesmo ano de 2000, realmente aconteceu, no triste mês de junho.

Marcaram-me também as folhas de juá, que usávamos como creme dental. A

fruta do juazeiro é pequena como uma azeitona, porém redonda e muito doce. As

folhas, no entanto, são amargas e, segundo a crença popular, possuem propriedades

medicinais, prevenindo cáries e outras doenças bucais. Crença ou não, fato é que,

hoje, muitos cremes dentais exibem em suas embalagens, com orgulho, a folha de

juá na composição do produto. Uma outra fruta que comíamos muito era a

"quixaba", parecida com o juá, porém de cor preta, diferente da outra, que, quando

madura, fica amarelinha.

***

Moramos também numa casa na antiga "Rua da Palha", atual Rua Vovó

Camila, no Jequiezinho. Era uma pobreza franciscana por todo o bairro. Casas de

palha e de "adobões", muita miséria e falta de tudo. Recordo-me que nessa época eu

e Quira freqüentávamos uma escola na casa de Seu Canuto. A casa era imensa aos

nossos olhos. Anos mais tarde, voltamos ali e constatamos que a casa não era tão

grande assim. Era apenas a impressão dos olhos de uma criança, que amplia tudo.

Havia um extenso matagal onde brincávamos. As casas ficavam somente de um lado

da rua. Do outro, era mato fechado, onde os moradores jogavam o lixo e onde as

crianças brincavam de esconde-esconde. A lenha para os fogões era retirada também

dali. Em dias de ventania, o lixo era espalhado pra todo lado, inclusive pra cima das

casas. Lembro de uma expressão que aprendi, nessa época, de tanto que os mais

velhos repetiam. Quando o vento começava a soprar forte, costumava-se dizer:

"Aqui tem Maria Virgem!". Era uma alusão à mãe de Jesus, para que o vento

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diminuísse sua intensidade e evitasse atingir a casa daqueles que pronunciavam a

"santa frase".

Atrás da casa havia também muito mato. Havia sítios, onde os proprietários

criavam cabras e onde minha mãe buscava água para abastecer a casa. Um desses

sítios pertencia a um "primo" de minha mãe. Mas, como não dispúnhamos de

muitas informações a respeito dos familiares dela, sempre achávamos que as

pessoas que ela nos apresentava como parentes eram apenas pessoas com as quais

tinha alguma afinidade. Esta rua era um prolongamento do "corredor" por onde

passava o gado para as fazendas, tocado pelos vaqueiros.

***

Moramos ainda na casa alugada de Amanda, na Rua Professora Virgínia

Ribeiro. Era uma casa de meia água, modelo de construção no qual o telhado se

projeta em apenas uma direção, da parede mais alta para a mais baixa. Quando

chovia, caía água de chuva por cima da parede, e minha mãe ficava morrendo de

medo que a parede caísse, já que era feita de "adobões". A casa não tinha água

encanada, luz elétrica nem nada.

Nessa época, a Rua Professora Virgínia Ribeiro também tinha casas somente

de um lado. No outro, havia um matagal cheio de planta espinhosa, mandacaru,

urtiga, cansanção e arbustos da espécie. Era dali que as pessoas, inclusive a nossa

família, tiravam, para o consumo diário, a lenha, que era o combustível dos fogões

daquele tempo. O fogão à lenha, marca registrada de todas as casas da época,

enorme, feito de adobes, ficava bem no meio da cozinha.

Nossa família costumava ter sempre muitos problemas de saúde. Uma vez,

fiquei com o corpo todo ferido. Não sei que doença era aquela, mas lembro que

minha mãe me banhava com sumo de folhas de "vassourinha". Eu sentia muita dor

quando o sumo entrava em contato com as feridas. Minha irmã Nete também

apresentou problemas de ferimentos pelo corpo. Mas, no caso dela, as erupções se

concentravam mais no couro cabeludo que, de tão ferido e purulento, acumulava até

bicho de mosca em sua cabeça. Era uma nojeira só.

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Minha madrinha, Dona Nenê, era uma senhora negra que morava perto de

nossa casa. Eu a tratava por Comadre Nenê, exatamente como minha mãe a

chamava. Nunca consegui pedir-lhe a bênção nem chamá-la de "madrinha".

Desta época, lembro nitidamente de um episódio em que eu, com meus seis

ou sete anos de idade, viajava no ônibus com minha mãe, e um passageiro, sentado

no banco de trás, começou a brincar comigo. Como eu não respondia nem

participava da brincadeira, o homem protestou dizendo que eu era muito enfezado e

que tinha a cara fechada. Hoje, ao lembrar desta cena, percebo o quanto mudei.

Atualmente, sou um sujeito brincalhão, que tenta sempre se manter alegre e tirar

uma boa lição de tudo o que a vida possa oferecer, seja de bom ou de ruim.

Insere-se também nessa época um outro episódio do qual jamais esquecerei.

Sempre via as pessoas pularem dos ônibus antes que eles parassem no ponto.

Achava aquilo tão bonito que me senti tentado a fazer o mesmo. Um dia, antes de o

ônibus parar no ponto onde eu deveria descer, me joguei. Logicamente, acabei

caindo de mau jeito e me machucando. Fiquei todo ralado e sujo de terra. Entrevado

no chão, todo empoeirado, me apavorei entre arranhões, sangue e lágrimas. Minha

mãe ficou desesperada. O motorista e os passageiros desceram para ver o que havia

acontecido. Foi uma confusão só. Felizmente, tudo não passou de um susto e de

raladuras pelo corpo inteiro. Um desconhecido que passava na hora se ofereceu para

me levar de bicicleta até em casa. Mais uma lição aprendida.

Nessa época, meus irmãos Zezé e Édson, da primeira família de meu pai,

visitavam meu pai regularmente. E, numa dessas visitas, acharam por bem levá-lo

com eles para São Paulo, onde poderiam cuidar melhor de sua saúde. Ficou então

decidido que minha mãe, eu, Valquíria, Valmir (Mi) e Valdecy (China) - filhos da

segunda família de meu pai - ficaríamos em Jequié, na casa de Amanda, cujo aluguel

passaria a ser pago por Édson e Zezé. Ficou acertado que as despesas com a nossa

alimentação também correriam por conta deles, que enviariam o dinheiro

diretamente para Amanda, dona da casa onde morávamos, e para Preta, dona da

venda onde a comida seria comprada.

Todos os meses as despesas eram cobertas, conforme o acordado. Mas, com o

passar do tempo, o dinheiro parou de chegar, tanto para o aluguel quanto para a

comida, e Preta parou de nos vender fiado. Quanto à casa, Amanda permitiu que

continuássemos morando, agora de graça, com pena de mandar embora uma mãe

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com quatro filhos pequenos. Por falta de comida, minha mãe não teve outra saída a

não ser sair para pedir esmolas pelas casas do centro da cidade. Mas sempre dizia

que estava trabalhando. Não queria que a vizinhança soubesse que ela era uma

pedinte (no interior, pedinte é chamado de "esmoler").

Onde atualmente está erguido o edifício Mansão Avenida, na Avenida Rio

Branco, Centro da Cidade, existia um casarão enorme. Era um dos pontos onde

minha mãe costumava pedir esmolas, arrastando eu e Quira pela cidade inteira. Não

lembro o nome da proprietária da casa, mas lembro claramente que existia em seu

quintal um carrinho tipo jipe, com quatro rodas, e que se locomovia por pedais

internos. Era um carro todo velho e enferrujado, mas com o qual nos divertíamos

muito toda vez que íamos lá. Brigávamos para disputar quem iria brincar com o

carro. Minha mãe, diante da cena, intervinha para evitar a confusão, dizendo que

meu pai traria um Velotrol novo de São Paulo, assim que voltasse de seu tratamento

de saúde. Passou-se uma vida inteira e o Velotrol não chegou. Mas ficou a lembrança

desta promessa em nossas mentes, que jamais será apagada.

***

Não havia transporte coletivo circulando naquela região. Era uma rua de

pobres, e pobres não tinham dinheiro para pagar ônibus. A linha que passava mais

perto, a um quilômetro de distância, cortava a Avenida Franz Gedeon. O trajeto até

ali tinha de ser feito a pé ou, em caso de emergência, tentava-se arranjar uma

carona, coisa muito difícil, uma vez que toda a vizinhança era pobre e mal tinha

dinheiro para a comida. Também não existia calçamento. Anos depois, a energia

elétrica foi ligada na rua, mas em nossa casa nunca pudemos usufruir deste

benefício, pois não tínhamos condições de arcar com a conta mensal. Lembro dos

inúmeros buracos que a companhia de energia elétrica abriu na rua para colocar os

postes, dentro dos quais a criançada costumava se divertir.

Minha mãe passou a pegar água na casa de Amanda, tão logo ela foi instalada

lá. Usava-a para consumo e para lavar roupas e pratos. Nessa época, éramos apenas

eu, Quira, Mi e China, os quatro filhos mais velhos. Com o passar do tempo, as

coisas foram melhorando. Minha mãe já contava com uma boa quantidade de

pessoas conhecidas nos arredores, e muitas dessas pessoas ajudavam regularmente

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a nossa família. À medida que o tempo passava, minha mãe ia aprendendo a cultivar

cada vez mais suas amizades. E, como ficamos muitos anos morando nesta casa, o

círculo foi aumentando.

Certa vez, morando ali, fui com minha mãe ao centro da cidade para pedir

esmolas. Ao passarmos pela Praça Ruy Barbosa, vi alguns clipes de papel espalhados

pelo chão. Achei bonito e parei para catar. Quando terminei de pegar todos, olhei em

volta à procura de minha mãe e não a vi por perto. Perdi-me dela, fiquei apavorado.

Comecei a chorar e a gritar por ela. Aos prantos, lembro de dar voltas e mais voltas

no quarteirão onde ficava o antigo Mercado Municipal.

No final, um senhor chamado Seu Nenzinho me pegou pelo braço e me levou

para a Rádio Baiana de Jequié. Lá me colocou no ar, no programa de Geraldo

Teixeira, e depois me levou para a sua casa, onde permaneci até que minha mãe

fosse me buscar. Ela já conhecia Seu Nenzinho e a esposa, Dona Lia; meu pai já

havia trabalhado em uma de suas fazendas. Fiquei em sua casa apenas um dia. No

dia seguinte, minha mãe já estava lá para me pegar.

Primeira escola

Foi na Escola de Lina que eu e Quira começamos a estudar. Eu com seis anos

de idade e ela com cinco. Era uma escola particular, que funcionava dentro da casa

da professora, na Rua da Banca. Até hoje a escola existe, no mesmo lugar. Saíamos

pela manhã e voltávamos à noite, o turno era em tempo integral. Foi lá que aprendi

o ABC. Quando não sabíamos o dever ou esquecíamos o nome de alguma letra, a

professora nos batia com palmatórias. Mamãe nos dava dinheiro para a merenda,

cinco centavos. Na hora do recreio saíamos para comprar a merenda e brincar

dentro de um matagal que rodeava a escola.

Íamos e voltávamos sozinhos, não havia perigo algum. Nessa época, minha

mãe sempre me mandava à Venda de Preta (que era branca) para comprar algo.

Permanece ainda nítida a lembrança do miolo dos pães, que comia pelo caminho.

Outro episódio bizarro foi quando fui comprar um ovo e acabei por esmagá-lo entre

os dedos, de tanto cuidado para não deixá-lo cair. Voltei para casa com os

fragmentos da casca do ovo na mão, e, quando minha mãe perguntou por ele, abri a

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mão, que guardava apenas as fraturas de sua casca. Não, ela não me bateu nem me

castigou por causa disso. Compreendera o meu dilema.

A segunda escola foi a de Neuza, onde aprendi a ler e a recordar (ler

novamente) o livro Alice. Aprendíamos a ler e a fazer contas com a tabuada. Como

eu terminava de ler o livro inteiro antes do final do ano, tinha que "recordar".

Chorava muito quando não conseguia ler uma determinada palavra e era colocado

de castigo, em frente à professora, até conseguir lê-la corretamente.

Formação Religiosa

Nascemos num país católico e, fatalmente, seguimos a religião da maioria. A

vida de minha mãe era nas igrejas. Não faltava às missas dominicais e, nos demais

dias da semana, sempre que possível, arrumava um jeito de assistir às missas

regulares. Lembro-me, com certa ternura, de uma amiga dela, chamada Anália, mãe

de Roxa, Pedro e Dozinho, também muito fervorosa, que, de vez em quando, nos

trazia hóstias para colocarmos na sopa. Não eram propriamente as hóstias que eram

servidas na missa, mas sim a folha de goma com os furos de onde haviam sido

retiradas as hóstias.

Eu e Quira freqüentávamos o catecismo, que era coordenado por Isaías, um

dos cristãos da Igreja do Convento. Para nós, era uma festa. Ele vinha nos buscar em

casa, de carro, levando também várias outras crianças. Era o melhor dia da semana,

pois significava a chance que tínhamos de conhecer e interagir com outras pessoas,

sem falar na diversão que tudo aquilo nos proporcionava.

Minha mãe adorava a igreja católica e nunca perdia uma procissão. Uma vez,

quando acompanhávamos uma dessas procissões, um menino me deu uma vara

para segurar. Quando segurei firme, ele puxou a vara, que escorregou por entre

meus dedos, deixando minha mão toda suja de bosta. Tive de agüentar a mão

lambuzada e o maior fedor até o final da procissão, quando pude ir para casa me

lavar. Odiei aquele menino.

Minha mãe tinha feito uma promessa para São Roque, pedindo ao santo que a

curasse do problema das pernas: um problema de saúde que a deixava paralítica.

Após cumprir a promessa, começou a sentir alguma melhora, o que contribuiu para

aumentar ainda mais sua fé, motivando-a a fazer uma festa para o santo. Para

realizar essa festa, ela se vestia com uma roupa azul, comprida até os pés, pegava a

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estátua de São Roque, improvisava uma espécie de altar ambulante e saía em

direção a todas as casas da cidade, pedindo esmolas para ajudar no evento. No dia

da festa, vinham as mulheres rezadeiras e muitos outros fiéis comer o arroz-doce

que era servido. A casa, repleta de velas acesas, era toda arrumada para aquela

cerimônia. A reza durava horas e mais horas. Era muito divertido ver aquilo tudo.

Uma autêntica demonstração de fé e de confiança em São Roque, mais um dos

representantes de Deus na Terra.

Foi também nessa oportunidade que tivemos contato com o Centro Espírita

Bezerra de Menezes, atraídos por cestas básicas, remédios gratuitos, cobertores e

roupas. Houve vezes em que até dinheiro minha mãe recebera daquela instituição.

Tornamo-nos conhecidos do pessoal do "Centro", que vinha até nossa casa para

trazer doações. A fome nos atraiu para onde a comida era ofertada gratuitamente.

Com o tempo, minha mãe passou a assistir às palestras de doutrinação. Levava

sempre a mim e a Quira com ela. Acabamos nos acostumando a ouvir a palavra de

Deus e acabamos ficando por lá, sem deixar, contudo, de freqüentar a igreja católica,

que também era uma fonte de alimentos para os pobres.

Em algumas reuniões do Centro Espírita não era permitida a presença de

crianças. Nessas ocasiões, minha mãe nos deixava na casa de Dona Laurita, que

ficava nas imediações do Centro. Enquanto esperávamos pelo seu retorno,

divertíamo-nos imitando o que víamos no Centro Espírita, inclusive os movimentos

dos médiuns dando seus passes. As filhas de Dona Laurita morriam de rir do

espetáculo que lhes proporcionávamos.

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LUCI VALVERDE MAGALHÃES

Minha mãe sempre teve saúde muito frágil e, após a viagem de meu pai, ficou

bastante abalada. E não era para menos. Viu-se sozinha, com quatro filhos para

cuidar e sem nenhuma fonte de renda para garantir sustento e habitação. Pouco

tempo depois da partida do marido, ela resolveu ir também para São Paulo, mas não

conseguiu contar com o apoio de meus irmãos Édson e Zezé. Então resolveu pedir

ajuda à Prefeitura Municipal, então comandada por Caribé. O prefeito forneceu-lhe

as passagens. Quanto à grana para a comida, minha mãe conseguiu vendendo a

mobília que possuíamos. Começou a planejar a ida da família para Sampa: entregou

a casa, embalou as roupas e fez pacotes de comida. Porém, um dia antes da partida,

ela teve um sonho, no qual via que o ônibus em que viajaríamos sofria um acidente.

Eu aparecia no sonho como único sobrevivente, chorando em meio aos corpos dos

passageiros e destroços do veículo. Prontamente ela cancelou a viagem. Amanda,

por sorte, permitiu que continuássemos a morar na casa. No dia seguinte ao dia da

suposta viagem, a Rádio Baiana noticiou um acidente ocorrido com um ônibus da

empresa pela qual viajaríamos, e que apenas um bebê de seis meses de idade havia

sobrevivido.

***

Meu irmão Valmir tinha freqüentes problemas de falta de ar, quando a asma

lhe atacava. Ele ficava ruim, quase morto. Eu não compreendia a gravidade da

situação, mas percebia o quanto minha mãe ficava preocupada quando Valmir era

vitimado por seus ataques de falta de ar. Ela tentava de tudo, sem dinheiro para

médico, sem dinheiro para remédio... Dava-lhe cigarros de flor de zabumba para

fumar, o que amenizava a situação.

Uma vez, Luci Valverde, freqüentadora do Centro Espírita, ao ver meu irmão,

pela primeira vez, teve uma crise de choro e disse que Valmir deveria ter sido

alguém importante na vida dela em alguma vida pregressa. Fez de tudo para que

minha mãe entregasse meu irmão para ela cuidar. Com a permissão de minha mãe,

Mi foi morar com Luci. Ela sempre trazia Mi para minha mãe ver. Quando ele

chegava em nossa casa, trazido por Luci, vinha sempre muito bem vestido e gordo -

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contrastando conosco -, resultado da vida boa que levava por lá, comendo iogurte e

outras coisas que nós, nem em sonho, ousávamos imaginar. Passado o devido

tempo, minha mãe resolveu pedir o Mi de volta. E Luci o trouxe definitivamente

para casa, já curado da asma, em virtude dos tratamentos médicos caríssimos a que

fora submetido, sob os cuidados dela.

Já não tínhamos o que fazer para sobreviver, quando Luci Valverde ofereceu a

fazenda dela para que fôssemos lá morar e trabalhar. A viagem foi acertada, após

minha mãe aceitar a oferta. Partimos para a fazenda, sem saber nem para que lado

ficava. Só sabíamos que se chamava Fazenda Turmalina. E Luci, conhecíamos

apenas das reuniões doutrinárias do Centro e da ajuda que ela nos dava. Minha mãe

já sabia que ela morava em frente ao Posto Shell, no Edifício Jordan, onde

funcionava, até bem recentemente, uma concessionária de automóveis e uma

emissora de rádio. Muitas vezes, acompanhei minha mãe quando de suas idas à casa

de Luci. Íamos para pedir esmolas e sempre recebíamos alguma coisa, comida ou

roupas usadas.

Sem muitas alternativas, fomos todos morar na Fazenda Turmalina, onde

minha mãe trabalhava na cozinha de Luci, quando de suas eventuais estadias na

fazenda, que ocorriam geralmente a cada dois meses. Ela permanecia por lá durante

uma semana ou mais. Da viagem, as recordações são vagas. Lembro apenas que a

sede da fazenda ficava a uns quarenta quilômetros de Jequié.

A princípio, ficamos morando numa casinha dentro da sede da fazenda. Era

uma casa dividida ao meio, formando dois cômodos menores, mas sem quartos ou

espaço destinado a uma cozinha. Tinha uma porta na frente e outra nos fundos. No

meio, havia uma janela que dava para um terraço onde, outrora, colocava-se o café

para secar. Não havia água encanada ou energia elétrica, mas era confortável. A

casinha parecia estar fechada há muito tempo, pelo seu estado de má conservação e

pela quantidade de mofo em seu interior.

Na fazenda havia energia elétrica gerada por motor a diesel, que era ligado

somente durante as visitas de Luci. Não fazia muita diferença para nós, já que

estávamos acostumados a viver a vida sem luz e sem água. O motor fazia um barulho

infernal, quando ligado, mesmo estando a uma boa distância da sede. Lembro-me

que ousei emendar uma ligação de energia elétrica na casinha, certa vez, e tudo

funcionou muito bem.

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Na frente da casa havia um pequeno pátio, onde ficava uma geladeira velha,

que não prestava para mais nada além de depósito de bananas. Colocávamos

bananas dentro da geladeira, deixávamos a porta fechada, e as bananas

amadureciam com rapidez por causa do calor que as abafava. Certa feita apareceu

por lá alguém que precisou dormir em nossa casa. A visita dormiria na cama de

China. Por causa do frio, ela não parava de repetir a China: "Chega pra cá,

neguinha!". E a resenha pegou. Passamos a perturbar China com essa história por

muito tempo: "Chega pra cá, neguinha!".

Brincávamos de vaqueiros fictícios, mas usando nomes de pessoas que

exerciam o ofício na própria fazenda. Eu era Calango, Quira era João Grilo, China

era Edmundo e Mi era Calixto. Víamos esses vaqueiros como uma espécie de heróis

e, por isso, gostávamos de imitá-los em nossas brincadeiras.

Minha mãe trabalhava na cozinha e na limpeza geral da casa de Luci, quando

de suas idas à fazenda. Tinha outra mulher, chamada Jovelina, se não me falha a

memória, que também fazia o serviço da casa. Eu cuidava das plantas, molhando-as

todos os dias, e tomava conta do jardim em frente ao casarão. Uma vez fui ajudar na

cozinha e tomei uma bronca enorme de Luci, quando me viu tirando a casca do alho

com a unha. Ensinou-me, pacientemente, que aquilo era falta de higiene e me

mostrou como fazer o trabalho usando uma faca.

Na casa de Luci, que era enorme, tinha geladeira a gás. Eu achava

interessante aquele fogo aceso para gelar comida... A casa tinha varanda em toda sua

volta, muitos quartos, escritório, biblioteca, quarto de empregada, despensa, sala de

estar e de jantar e um jardim enorme. Havia uma TV na sala, que nunca funcionava

por falta de energia elétrica. E, quando a energia era ligada, a TV também não

pegava, porque a região era muito isolada.

Tinha também um gabinete onde ela guardava centenas de milhares de

revistas em quadrinhos, de vários personagens. Eu costumava pegá-las emprestadas,

entrando escondido na casa pela janela lateral esquerda, sempre que Luci estava em

Jequié. Pegava dezenas de revistas, lia-as todas, voltava, colocava-as onde havia

encontrado e... pegava mais. Era uma curtição ler aquelas histórias. A janela tinha

um problema que a impedia de ser completamente fechada, deixando-a em falso. E

eu, sabendo disso, me aproveitava da situação. Em uma dessas minhas entradas na

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casa, aproveitei para pegar alguns chocolates, que ficavam sobre uma estante da sala

de jantar.

Havia muitos caqueiros de plantas ao redor da casa e um curral no lado

esquerdo. Havia o pé de pitanga, que ficava entre o curral e a casa, do qual eu e

Quira tirávamos os frutos para comer. E também um galinheiro, muitos coqueiros e

um pé de goiaba junto ao muro, onde eu e Quira ficávamos comendo aquelas frutas

até enjoar. Havia patos, perus e gansos. Os gansos, irritados, costumavam nos atacar

quando atingidos pelas pedras que jogávamos neles. Atrás da casa, havia um enorme

galpão que abrigava toras de madeira e uma máquina torrefadeira com ensacadora

de café em grão, que já há muito não funcionava. Tínhamos o hábito de brincar no

galpão, sobre as toras, ou atrás da máquina abandonada.

Seu Maneca, o gerente, inicialmente, morava em uma estufa antiga, que ainda

funcionava quando chegamos à fazenda. Depois ele se mudou com a família para

uma casa na sede, junto à estufa antiga. Lembro-me que na casa dele as pessoas

sempre ouviam música e a que mais me marcou foi "Estúpido Cupido", que tocava

quase todos os dias. Minha irmã Quira logo aprendeu a letra e não parava de cantar

e de dançar dentro de nossa casa. Depois de seu Maneca, houve um outro gerente,

que tinha muitas filhas, mas não consigo me lembrar do nome de ninguém.

Tempos depois foi construída uma nova estufa, que substituiria a primeira

que ficou abandonada. Seu Suta, um senhor já de idade, tomava conta da estufa e da

secagem do cacau. Muitas vezes eu ficava a observar o movimento dos homens, na

nova estufa, ensacando o cacau e colocando os sacos sobre um caminhão, que os

transportaria até Jequié.

A fileira de pés de laranja, de mais ou menos um quilômetro, que ficava

diante da casa da sede, era palco de muitas alegrias, uma festa para nós. Lá

costumávamos chupar laranjas sem descer do pé. E, quando um pé não tinha laranja

madura, subíamos em outro e em outro.

Foi uma parte da vida maravilhosa e enriquecedora. Nunca havia tido um

contato tão intenso com a natureza, com uma cultura diferente daquela da cidade.

Nessa fase, experimentei fatos e situações inesquecíveis, que jamais teria chance de

viver em Jequié. Quando morava na casa de Amanda, pensava que os grãos de feijão

nasciam grudados ao caule da planta. Somente na fazenda pude descobrir que eles

nasciam dentro de bagens, além de muitas outras coisas.

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Cobras eram comuns por todos os lados, e eu já matei muitas delas, inclusive

quando tentavam engolir algum sapo ou rã. Quando morávamos na chamada Casa

do Motor, matava dezenas delas, pois a casa ficava um pouco afastada da sede da

fazenda, próxima aos matagais, onde as cobras, sorrateiras, preferem se esconder.

Todas as manhãs, bem cedinho, buscávamos leite no curral. Geralmente, eu e

Quira éramos os escalados para a função. Aproveitávamos para beber boa parte do

leite. Ficávamos imaginando uma vasilha equipada com uma mangueirinha, para

que não precisássemos tirar da cabeça o balde de leite, permitindo assim que o

bebêssemos enquanto caminhávamos.

Uma vez, nossa casa ficou com problemas, molhando quando chovia, e

tivemos de nos mudar para o quarto da empregada, na casa de Luci. Era um

quartinho que ficava nos fundos da casa, contíguo à cozinha e à despensa. Havia

muitos morcegos ali. Chiavam a noite inteira, o que muito nos apavorava,

principalmente porque minha mãe dizia que eles gostavam de chupar o sangue das

pessoas enquanto elas dormiam. Enquanto moramos ali, era comum ouvirmos

ruídos de objetos caindo na despensa, como se fossem panelas e utensílios de

alumínio jogados ao chão. Minha mãe, sempre muito corajosa, levantava para ir lá

ver o que era. Mas a constatação era sempre a mesma: nada tinha caído no chão.

Uma vez ela foi com Quira e viu um homem sair da cozinha em direção ao quintal.

Seguiu o intruso e tentou, em vão, ver seu rosto. Evitando ser visto, ele se virava

para a direção oposta à de minha mãe. E ela lhe dizia: "Então, é você que fica

derrubando tudo lá dentro, não é?". Quando percebeu que se tratava apenas de um

vulto, minha mãe saiu de costas com Quira e voltou correndo para o quarto. Contou

o acontecido a Luci, que riu de minha mãe, dizendo que aquele homem era o pai

dela, que gostava de rondar a casa, mesmo após muitos anos de morto.

Morando ali, aprendi a fazer vinagre de mel de cacau. Pegava o mel de cacau

na estufa e armazenava em tonéis na casa de Luci, até que fermentasse e ficasse no

ponto para o preparo do vinagre.

Eu e Quira trabalhamos nas roças de cacau de Luci. No meio do cacaual,

fazíamos a coleta, separando-a em pequenos montes. Esse tipo de trabalho é

conhecido regionalmente como "bandeirar cacau". A rotina era simples.

Acordávamos cedo, tomávamos café - geralmente abóbora cozida com leite.

Minha mãe preparava feijão com farinha e colocava a comida dentro de latas de leite

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Ninho, que levávamos para o trabalho. A caminhada até o local era dura. Tínhamos

que passar pelo meio do mato todos os dias. Matávamos nossa sede em qualquer

riacho que passasse por perto. Ruim mesmo era nos dias de chuva, pois, além do frio

que fazia, o terreno se tornava escorregadio.

Outro grande problema eram as muriçocas e as cobras. Sobre os pés de cacau,

ficavam as cobras-cipó que, por serem de cor verde, nos confundiam, o que

aumentava o perigo. Na hora do almoço, sentávamo-nos com os demais

empregados. Cada um abria sua lata e comia. Da sede da fazenda, ao meio-dia e à

uma hora da tarde, o som de um búzio tocava anunciando o intervalo para o almoço

e o horário de recomeçar o trabalho, respectivamente. Meu primeiro salário foi de

CR$ 3,00 (três cruzeiros), mas ia todo para Dona Paula, minha mãe, que o recebia

em meu lugar. Apenas uma única vez eu recebi os três cruzeiros, que gastei

comprando um abridor de latas e uma sardinha enlatada, num mercadinho de Itagi,

por ocasião das nossas costumeiras viagens aos sábados para "fazer feira".

Escola na Fazenda

Nossa escola ficava um pouco distante da sede da fazenda e éramos obrigados

a fazer longas caminhadas por dentro dos mangueiros, enfrentando cobras, gado e

tudo mais. Quando tinha alguma vaca parida no mangueiro, evitávamos a todo custo

passar por perto. Às vezes até íamos por um caminho mais longo, com medo de ser

atacados. Mas, por mais que evitássemos, havia sempre o perigo, e não foram

poucas as vezes em que corremos de vaca ou de boi valente. Para me proteger, levava

um pedaço de pau, com o qual batia entre os chifres da vaca ou boi que nos atacasse.

Ouvi de minha mãe que o gado odiava ser golpeado entre os chifres e que fugia após

receber a paulada. E assim passei fazer. Para minha sorte, sempre deu certo.

No caminho da escola havia um pequeno riacho, onde gastávamos boa parte

de nosso tempo brincando e nos divertindo, pinoteando dentro da água, que não

cobria nem metade da canela. Freqüentemente, chegávamos molhados na escola e

também em casa. As travessuras no riachinho eram nossa melhor diversão, tanto no

caminho de ida quanto no caminho de volta da escola. No horário da merenda,

cantávamos a seguinte canção: "Merenda gostosa, leite, fruta e pão; dá bom apetite,

boa digestão". Foi nessa escola da fazenda que aprendi a ver as horas no relógio da

casa da professora.

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Casa do motor

Assim chamávamos a casa que ficava próxima à cisterna e à casinha do motor

a diesel que fornecia energia elétrica para a sede da fazenda. Moramos um bom

período nessa casa. Havia também uma lagoa perto, cheia de sapos que faziam

barulho todas as noites. A "casa do motor" ficava após uma ladeira íngreme e

escorregadia, atrás da sede, onde havia uma pedra enorme, na qual costumávamos

brincar. Tinha um quintal cercado de arame. Ali meu pai plantou melancia, cana,

quiabo, repolho, couve, abóbora, coentro, cebolinha e outras hortaliças.

Meu pai plantou também uma pequena roça num terreno próximo à casa. Era

um terreno ladeirado, que nos deu muito quiabo para colher. Nessa rocinha, minha

mãe, certa vez, tomou uma queda e, segundo ela própria, ficou enganchada num

piquete, que lhe feriu seriamente os órgãos genitais, fazendo-a perder um filho.

Essas coisas não nos eram faladas abertamente, por nossa condição de criança. Mas

me recordo muito bem do longo tempo que ela passou se medicando.

Nossa refeição geralmente era pirão escaldado de farinha com folha de

quiabo, acompanhado de molho de pimenta, por falta de outra coisa para comer.

Outra presença comum em nossa mesa do café da manhã era a abóbora cozida e

amassada com leite.

Junto da casa havia também um enorme coqueiro e, sempre que chovia,

minha mãe ficava apavorada com medo que ele desabasse sobre nossas cabeças. Só

China ficava rezando para que chovesse, pois teria a chance de vestir uma calça

comprida, que na época era uma peça de vestuário estritamente masculina. China

queria a novidade de vestir algo diferente de suas saias ou vestidos. Como sabia que,

na hora do desespero, minha mãe não ligava para esses detalhes, ela via na chuva a

oportunidade ideal para experimentar uma roupa "proibida", o que era seu sonho.

A água para beber, cozinhar e tomar banho nós tínhamos de buscar na

cisterna de água doce, que ficava junto à casinha do motor. Aproveitávamos para

nos molhar. Havia muitos caranguejos de água doce pelos arredores da fonte de

água e, sempre que podíamos, pegávamos alguns para fazer um escaldado. Nessa

cisterna, Quira quase morreu afogada um dia. Distraiu-se e caiu no poço. Mas, para

nossa sorte, minha mãe ouviu os gritos e correu. Puxou-a pelos cabelos e a salvou da

morte certa.

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Lembro ainda do requeijão e do doce de leite que fazíamos nessa casa. Ali

havia muita fartura de leite. Como não conseguíamos consumi-lo todo, já que

diariamente íamos ao curral retirá-lo, passamos a investir em seus derivados.

Nessa casa, criávamos uma gata enorme, que gostava de sair para caçar. Num

belo dia, a gata apareceu com um coelho. Tomamos-lhe o coelho, que minha mãe

tratou, temperou e assou para nós. Ficou uma delícia.

Havia uma moça chamada Maísa que nos contou uma história meio

fantasiosa. Disse-nos que tinha um gato muito pirracento, que adorava lhe falar

obscenidades. Nós acreditamos, claro!

De vez em quando, os homens da SUCAM apareciam por lá, para picar a

ponta de nossos dedos, fazer exames e colocar veneno contra morcegos e ratos na

casa. Morríamos de medo deles.

Casa do Mangueiro

Morávamos na casa do mangueiro, quando meu pai retornou de São Paulo

para Jequié, e de lá foi direto para a Fazenda Turmalina, levado por meus irmãos,

Édson e Zezé. Assim que chegaram à nossa casa, eu e Quira corremos para perto do

carro que os havia trazido à procura do Velotrol que meu pai nos traria, conforme a

promessa de nossa mãe. Ao descobrirmos que não havia Velotrol algum e que tudo

não passara de uma estratégia momentânea, ficamos profundamente frustrados. Foi

decepcionante descobrir que nossa mãe mentira e, pior, descobrir que jamais

teríamos um Velotrol.

A criação de galinhas e o plantio de roças ficavam nos terrenos próximos à

"casa do motor", tanto antes quanto depois de nos mudarmos para a "casa do

mangueiro". Não sei precisar bem quanto tempo moramos em uma e em outra casa,

mas sei que as plantações foram feitas, e que sempre colhíamos frutas e cereais

dessas roças que meu pai plantou. Não me recordo da data exata de chegada de meu

pai à fazenda, mas lembro muito bem da imagem de Édson chegando lá com ele.

Minha mãe se abriu em felicidade e nós também. Mas meu pai não parecia ter

melhorado. Não notamos muita evolução desde o dia em que ele viajara para se

tratar em São Paulo. Pouca diferença fez para a sua saúde aquela viagem. Porém,

como sempre fora muito trabalhador, não conseguiu ficar parado em casa. Inventou

de criar galinhas e fez várias roças e plantações no quintal. Com o leite abundante

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que buscávamos de graça no curral da fazenda, fazíamos requeijão. Meu pai chegou

a plantar ainda duas outras rocinhas, estas um pouco mais distantes da casa, onde

cultivava milho, feijão, melancia etc. Muitas vezes, íamos comer melancia dentro da

própria roça.

Aprendi a nadar nessa época. Tinha um riacho bem raso que passava perto de

casa, onde tomávamos banho e lavávamos os pratos. Mais uma vez, dando ouvidos

às histórias de minha mãe, acreditei quando ela disse que, para aprender a nadar,

teve de engolir um pequeno peixinho antes de se jogar na água e sair nadando.

Acreditei e fiz o mesmo. E desta vez funcionou. Engoli o peixinho vivo, me joguei no

riacho e saí nadando! É incrível o poder dos “sugestionamentos”, sobretudo para as

crianças, crédulas pela própria natureza.

Esta "casa do mangueiro" ficava um pouco afastada da sede da fazenda, mas

de lá dava para ver o casarão e a estradinha que dava direto nela, por onde todos os

carros tinham que passar, inclusive o carro da dona da fazenda. Por isso, todo

mundo ficava sabendo quando Luci chegava, antes mesmo que alguém viesse avisar.

Era a casa mais afastada de tudo e de todos. Ao lado dessa casa, toda rodeada por

uma cerca de arame para proteção contra o gado, tinha um grande pé de manga,

onde as galinhas costumavam subir, ao cair da tarde, para dormir. Não dava para

plantar nada ao redor, ou por causa do gado, que às vezes entrava no "quintal", ou

por causa da criação de galinhas, que ciscavam e comiam tudo o que houvesse. Uma

vez, ouvimos um barulho vindo desse pé de manga, onde as galinhas dormiam.

Minha mãe saiu para ver o que estava acontecendo. O suspense se desfez quando ela

descobriu que era Roque, um morador da fazenda, tentando roubar nossas galinhas.

Minha mãe deu-lhe uma bela bronca, botando-o pra correr de lá.

Perdemos-nos na roça

Uma vez, minha mãe chamou Quira e eu para pegarmos bananas na roça, que

ficava pertinho da "casa do motor", onde morávamos. Foi um dia do cão aquele.

Acabamos nos perdendo e passamos o dia inteiro andando por dentro do cacaual.

Minha mãe chorava e o desespero em nós crescia cada vez mais. Ouvíamos uma voz

fina, como a voz de Norino (dito homossexual, que morava na fazenda) a bradar

repetidamente: "O caminho é cá!". Quanto mais seguíamos a voz, mais ficávamos

perdidos na floresta. Conseguimos chegar até perto de Itagibá, a cidade mais

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próxima da fazenda, e lá fomos informados por alguns trabalhadores de que

estávamos muito longe da Fazenda Turmalina. Indicaram-nos, então, a direção a

seguir para que pudéssemos retornar. Continuamos mato adentro perdidos até que

minha mãe teve a idéia de pôr fumo numa árvore como oferenda para Caapora.

Segundo a lenda, essa entidade protetora das matas, gosta de fumar. Por isso, faz

com que as pessoas se percam na mata até que resolvam lhe oferecer fumo. Lenda

ou não, o fato é que, depois da oferenda colocada num galho de árvore, encontramos

facilmente o caminho de volta.

Represa

A água que saía da fonte da cisterna percorria um caminho por entre os matos

e formava um riachinho. Esse riachinho tinha muito peixe, e eu sempre ia com um

balaio ou com um jereré pegar caranguejos, tilápias, piabas ou traíra por ali. Uma

vez peguei uma cobra no balaio e corri apavorado.

Luci, a dona da fazenda, mandou construir uma represa, próximo à sede,

formando um lago pequeno com a água desse riacho, e lá soltaram tilápias para

criar. Usávamos esta represa para tomar banho, lavar roupas e nos divertir.

Eu não sabia nadar, mas resolvi acreditar numa história que minha mãe

contava. Dizia ela que, se passássemos óleo de oliva no corpo inteiro, ao entrarmos

na água, o óleo formaria uma bolha de ar ao nosso redor, impedindo que nos

afogássemos. E foi assim que quase morri afogado nessa represa. Lancei-me ao

fundo, com o corpo todo lambuzado de óleo. Essa história deve ter sido fruto de

algum folclore. E eu, achando que na vida real funcionaria tal qual nas lendas,

resolvi levá-la a sério e por pouco não morri. Fui salvo por minha mãe ou por outra

pessoa que não me vem agora à memória.

O Piau

Havia um outro riacho perto de nossa casa, em cujas águas transparentes eu

tinha visto um lindo peixe, um piau. Comprei um anzol e fui pegar o peixe. Foi uma

experiência marcante em minha vida, tal qual a conquista de um grande prêmio.

Afinal, pude me sentir capaz de fazer algo sozinho, algo digno de aplausos. Fiquei

imensamente feliz quando consegui pegar o peixe e levá-lo para casa como um

troféu. Eu pescava por necessidade de matar a fome e também por diversão. A

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pescaria funcionava também como uma terapia, pois o tempo livre era preenchido

com uma atividade lúdica, que requer muita paciência, coisa que eu não tinha.

Ficava observando aquele peixe lindo, nadando de um lado para outro do riacho,

cuidando do ninho, e imaginava-o sendo fisgado por mim. Então comecei a planejar

como seria o dia da pescaria, detalhe por detalhe. Ao final, tudo aconteceu conforme

havia imaginado. Para mim, foi como uma cena de filme de ação. O peixe mordeu a

isca, se debateu, correu de um lado para outro, deu solavancos, puxou a vara com

violência, me deu um trabalho danado. Até que consegui tirá-lo da água. Ele media

uns vinte centímetros de comprimento e era bem pesado. Foi uma das minhas

melhores conquistas.

Acidente de carro

Certa vez, viajei com Luci para Jequié, no carro dela, que era uma Pick Up

Ford. Na rodovia BR-330, ela acabou abalroando um outro veículo, que fazia

ziguezague na pista. Bati com a cabeça na porta do carro e ainda precisei ouvir de

Luci que não devíamos ficar dentro de um veículo em movimento como se

estivéssemos sentados no sofá de casa. Devemos estar sempre de prontidão para a

eventualidade de um tombo, uma batida ou coisa similar, para um choque maior.

Aprendi a lição. Ainda bem que hoje os cintos de segurança são de uso obrigatório.

***

Ainda crianças, eu e meus irmãos percebíamos que nosso pai não estava lá

muito certo da cabeça. Tirando proveito da situação, ficávamos o tempo todo

fazendo brincadeiras com ele. Uma das brincadeiras preferidas era a seguinte: um

de nós se vestia com as roupas de minha mãe, ou dele mesmo, e batia na porta da

casa pedindo açúcar ou outra coisa qualquer. Ele atendia e, em sua inocência, ia

chamar um dos filhos para dar o açúcar. Então, aquele que havia batido na porta

dava uma volta na casa, trocava de roupa e voltava para dentro, enquanto o outro se

vestia e vinha pedir outra coisa. A brincadeira durava o tempo que quiséssemos, e

ele nunca descobria que se tratava de uma traquinagem dos próprios filhos. Após

cansarmo-nos da brincadeira, íamos para os pés de cidra, uma espécie de limão

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grande e muito azedo, que dava em fartura por ali. Tirávamos as frutas da árvore e

comíamos com açúcar.

Certa vez, meu pai passou mal e minha mãe pediu que eu fosse até a sede da

fazenda para pedir ajuda. Saí correndo pelo mangueiro, desesperado, desviando-me

das vacas recém-paridas. Passei por um riachinho, no qual sujei as pernas todas de

lama, pois eu afundava até o joelho naquele lodaçal. Infelizmente, todo o sacrifício

foi em vão, não consegui ajuda. Mas, quando voltei, por sorte, meu pai já estava

melhor.

Perto de nossa casa havia uma pequena vila, com umas quatro ou cinco casas,

no meio do mangueiro. Lá morava um rapaz chamado Norino, funcionário muito

querido da dona da fazenda. Apesar de morarmos perto, nunca estivemos naquela

vila. A mãe não deixava, e eu nunca soube o motivo pelo qual ela proibia nossa ida

ao local.

Uma outra lembrança dessa época foi quando China pediu que minha mãe lhe

comprasse um chiclete, quando fosse às compras. Ela prometeu que compraria.

Numa de suas idas a Itagi, tentou comprar o chiclete de China, mas não encontrou.

Comprou-lhe então balas comuns. O desapontamento de China foi profundo ao ver

seu sonho de mascar chicletes frustrado; sonho este que teve sua realização adiada

por muitos anos, até que ela mesma pudesse trabalhar e comprar o próprio chiclete.

Vim saber dessa história mais de vinte anos depois, pela boca da própria China.

***

O armazém onde fazíamos compras ficava a alguns quilômetros da sede da

fazenda, num local chamado "Preguiça", nome também do rio que cortava as

imediações. Eu e Quira, quando íamos comprar algo para minha mãe, levando

embornais, morríamos de medo dos ciganos que ficavam acampados no caminho e

que sempre nos cercavam para pedir algo. Ficávamos apavorados, temendo que

tomassem nossas compras e que nos batessem. A fim de nos livrar do assédio,

passamos a levar sempre alguma coisa para dar a eles.

Uma vez fui ao armazém a cavalo, montado em Dominó, o animal mais lerdo

e preguiçoso da fazenda. A bem da verdade é preciso dizer que eu não guiei o cavalo.

Foi Dominó que me levou e me trouxe, já que eu morria de medo de puxar a rédea e

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ser derrubado por ele. Quando o cavalo queria parar para comer seu capim, parava.

E quando queria continuar a caminhada, continuava, a seu bel talante.

Toda semana viajávamos para Itagi, a pé ou a cavalo, para fazer compras. Os

homens geralmente iam montados nos animais, enquanto as mulheres iam atrás,

caminhando. Quira lembra que ficava com raiva porque nunca a deixavam montar

num cavalo. Para chegarmos a Itagi, no meio do caminho, tínhamos de atravessar o

rio Preguiça. Lembro que, uma vez, quase caí da garupa do cavalo, quando ele subiu

o barranco do outro lado do rio. Apavorei-me.

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RETORNO PARA JEQUIÉ

Concluí a quarta série primária na escola da fazenda e precisava continuar

meus estudos. Como lá não havia professores para o primeiro grau, tive de retornar

para Jequié. Arrumei minhas coisas e viajei. Não lembro se sozinho, com minha mãe

ou com Luci. Minha mãe conseguiu que eu ficasse morando provisoriamente na casa

de Dona Lia, esposa de Seu Nenzinho, no bairro Cilion. O nome do bairro surgiu a

partir do nome de um posto de gasolina que existia na praça Juracy Magalhães, que

acabou falindo, fechando e reabrindo com outro nome. Mas como o bairro já havia

sido batizado, assim ficou: Cilion. Dona Lia tinha um filho chamado Junior, que não

se deu muito bem comigo de início, talvez por ter que dividir a casa e as atenções da

mãe com um outro menino. Mas depois foi se acostumando e nos tornamos grandes

amigos.

Ele próprio tinha vários amigos, que se tornaram também meus. E eu quase

tive minha primeira experiência sexual com uma vizinha deles, que sempre aparecia

por lá e brincava conosco. Uma vez, resolveram me incentivar a ficar a sós com ela

em meu quarto. Tentamos ter uma relação, mas não houve penetração. Ela desistiu

antes do fim e saiu correndo. Era uma morena escura, que tinha um problema físico

na perna direita, fazendo-a mancar quando caminhava.

A primeira namorada também conheci durante o período que vivi na casa de

Dona Lia. Era uma vizinha que morava na casa em frente. Chamava-se Jaqueline.

Era linda e eu gostava demais dela. De nossas janelas, trocávamos olhares furtivos,

iniciando uma ligação de afeto. Passamos a nos encontrar numa casa em frente. Ali,

no pátio daquela casa, nos beijamos pela primeira vez. Foi daqueles namoros meio

mágicos, sem maldades, sem sexo. Foram momentos muito felizes ao lado de

Jaqueline, e eu jamais me esquecerei dela. Até poesias lhe fiz. A primeira namorada

a gente nunca esquece.

Matriculei-me no Instituto de Educação Régis Pacheco - IERP. Dona Lia

sempre me dava dinheiro para a merenda. Tinha uma vida boa na casa dela. Sempre

fui tratado como um membro da família. Naquela época, havia um ritual muito

bonito nas escolas: hastear a Bandeira Nacional e cantar o Hino Nacional Brasileiro

todos os dias, com os alunos em formação militar. Tudo para mim era muito bom.

Participei de um coral que se apresentou na rádio local, onde cantamos o Hino à

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Bandeira, entre outros hinos. Era a primeira vez que conhecia um estúdio de rádio

por dentro, fiquei em êxtase. Acabei aprendendo coisas muito valiosas com cada

pessoa que conheci e em cada experiência que vivi.

***

Quando morava na fazenda, ganhei um cachorrinho que batizei de Bolinha.

Ele era preto, pé duro. Aonde eu ia, o cachorrinho me acompanhava. Gostava

demais dele. Ao voltar para Jequié, para prosseguir meus estudos, deixei-o com

minha mãe, que, logo depois, também retornaria a Jequié, deixando Bolinha na

fazenda. Longe deles, padecia de saudades da família e do cachorro.

Quando minha mãe resolveu voltar para Jequié com a família inteira, eu já

estava estudando. Fiquei feliz com o retorno da família, mas foi péssima a notícia de

que meu cachorro Bolinha não viera junto. Morri de tristeza. Minha mãe alegou que

seria muito difícil trazê-lo com ela na viagem e, por isso, achou melhor dá-lo a

alguém. Fiquei revoltado e chorei muito. Gostava muito de meu cachorro. Tão

desapontado fiquei que não dei a mínima para as histórias que minha mãe contava

sobre a viagem e sobre as coisas que lhe acontecera, como o fato de Teobaldo, filho

de Luci, ter dito que iria jogar a família, com móveis e tudo, ponte abaixo, além de

outros problemas que enfrentara. Só pensava no meu cachorro. A paixão e a saudade

de Bolinha foram tantas que prometi para mim mesmo nunca mais ter outro animal

de estimação. A promessa vem sendo cumprida até aqui, e hoje desconfio que minha

aversão a animais tem origem nessa dolorosa experiência.

***

Minha mãe ia regularmente me visitar na casa de Dona Lia. Até que um dia

resolveu me levar de volta com ela definitivamente. Fui e voltei várias vezes da nova

casa, achava-a muito feia e o lugar horrível. Ficava na Rua da Palha. Era uma casa

pequena, de adobões, sem água nem luz. Mas, no final das contas, era para onde eu

teria que ir mesmo, sem chance de escolha.

Uma das coisas com a qual não consegui me acostumar, ao voltar para a casa

de minha mãe, foi a comida. Além de ser de péssima qualidade, não a tínhamos

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todos os dias. Foi muito duro sair daquela casa, onde eu tomava café, almoçava e

jantava, de forma decente e em horários regulares, e me adaptar a uma outra

realidade, em que tinha de comer qualquer coisa e em horários disparatados. Isso,

quando não tinha de ficar sem comer mesmo.

Igualmente difícil foi ter de me acostumar com a distância da casa até o IERP,

colégio onde estudava. Tinha de fazer o trajeto a pé, sob o sol escaldante e, agora,

sem ter sequer o dinheiro para merendar. Foi um terror essa fase de adaptação,

muito difícil para mim. Principalmente, nos dois dias da semana em que tinha aulas

de ginástica. Era obrigado a sair pela manhã, para assistir à aula normal, e voltar, no

período da tarde, para a aula de ginástica. Um verdadeiro tormento. O sol

demasiado quente e a estrada sem calçamento, toda cheia de poeira, tornavam a

caminhada insuportável. Mas, gostando ou não, tive de me acostumar com a nova

vida, que passaria a ser minha rotina dali em diante.

Minha luta agora era outra, além da comida que faltava na mesa. Tinha que

comprar livros, mas não possuía dinheiro. Estudava sem livros ou recebia um ou

outro exemplar, cedido por colegas de sala, que faziam uma vaquinha para comprar.

Mas todos os outros estudantes tinham também uma vida difícil, poucos recursos

financeiros, e nem sempre podiam ajudar, já que também precisavam de ajuda.

Uma professora me deu, certa vez, um Kichute usado, que usei por cinco

anos, durante todo o primeiro grau e início do segundo. Os cadernos eram daqueles

doados pelo governo estadual, com o Hino Nacional na capa; os lápis eram também

doados pelo governo, alguns deles vinham até com a tabuada impressa, mas esses

não eram bem-vindos nas aulas de matemática, pela razão óbvia. Uma ocasião, perdi

um lápis na sala - ou foi roubado por alguém - e fiz o maior escândalo. Chorava pelos

corredores, chamando a atenção do colégio inteiro com meus indignados protestos

pela perda do lápis e dizendo que ali só tinha ladrão. Foi um show à parte.

Minha adaptação ao currículo escolar foi muito difícil, para não dizer

impossível, já que eu tinha vindo de escolas onde se aprendia apenas o ABC, as

quatro operações, além de leituras e releituras de livros de histórias, sem nenhuma

técnica para aprender a gramática. Na hora de separar sílabas, eu sempre escrevia

duas letras e colocava um tracinho. Quando a palavra era cavalo, por exemplo, eu

acertava fácil. Mas quando era caule, eu escrevia "ca-ul-e". Ou seja, segundo minha

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lógica, a separação de sílabas era feita a cada duas letras seguida por um tracinho.

Um desastre total.

Por conta da minha falta de estrutura e por motivos de doença, acabei

perdendo o ano. Perder um ano tem sempre conseqüências negativas, um ano de

minha vida ficaria atrasado. Mas, por outro lado, serviu-me de lição, motivando-me

a me esforçar bem mais no ano seguinte. Desse dia em diante, não perdi mais ano

algum e consegui concluir o primeiro e o segundo graus com notas muito boas.

Surpreendentemente, acabei me transformando em um aluno CDF durante todos os

anos escolares.

O lado positivo de tudo isso foi o fortalecimento do meu senso de autocrítica,

que fez com que procurasse estudar mais, para não passar novamente pela vergonha

de perder o ano. Outra coisa boa foi o contato com a poesia, através de uma coleção

de três minilivros que comprei de um daqueles vendedores que passam de sala em

sala oferecendo suas mercadorias. Encantei-me com aquela forma de escrever, com

as rimas e as estrofes. Passei a escrever poemas também. Posteriormente, tive

contato com a literatura de cordel, o que me influenciou bastante a escrever tudo

que me vinha à mente. Não sei precisar no tempo, mas me lembro de uma época em

que eu pegava tudo quanto era papel, ou algo que encontrasse jogado pelas ruas,

para ler. Para mim, era uma espécie de mágica poder decifrar tudo aquilo, mesmo

que não soubesse o significado de todas as palavras que lia. O simples ato de ler

expandia minha mente.

***

Depois de um tempo morando na Rua da Palha, mudamo-nos para a casa de

número 1265, na Avenida Franz Gedeon, uma das principais artérias da cidade. Foi a

partir dessa época que ocorreu o nascimento dos meus outros irmãos, Valdir,

Vitório, Vivaldo e Ivonete. A casa era de meu irmão Édson, e lá já haviam morado

muitos familiares dele, mas naquela ocasião se encontrava fechada. Como de praxe,

a nova moradia também não dispunha de luz, água, saneamento básico, móveis e

outros recursos essenciais. Nosso fogão, para variar, era à lenha. O sanitário era no

chão do quintal, ou seja, exalava uma fedentina horrível. Muita gente fazendo suas

necessidades por todos os lados e o sol quente a tornar o mau cheiro ainda mais

insuportável.

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A vida de minha família sempre foi de muita pobreza, não tínhamos

condições nem de comer condignamente. Televisão então era um luxo que nem

sequer imaginávamos poder comprar. Assim, todos os dias eu e meus irmãos íamos

para a casa dos vizinhos, onde ficávamos dependurados em suas janelas assistindo à

TV. Tínhamos que assistir ao que estivesse passando, ao gosto do dono da casa. E,

por muitas vezes, nem conseguíamos assistir aos programas ou aos filmes até o final,

porque a televisão era desligada sob o pretexto de que "o aparelho estava

esquentando e precisava descansar". Uma das vizinhas que mais desligava a

televisão em nossa cara era a Dominga. Mas, como sua casa era também o lugar

onde a TV ficava ligada nos horários em que estávamos livres de escola ou de outras

obrigações, aparecíamos lá quase todos os dias.

Na casa de Dona Dete e seu Chico a gente morria de rir. Toda vez que

apareciam os atores Tony Ramos e Elisabeth Savalla na telinha, eles faziam o mesmo

comentário: "André Cajarana e Carina estão muito diferentes...", reportando-se aos

personagens vividos na novela Pai Herói pelo casal de atores. Dona Dete e Seu Chico

não conseguiam separar a realidade da ficção. Faziam a maior confusão entre a vida

dos atores e os personagens por eles vividos nas novelas.

Saíamos pela cidade inteira à procura de brinquedos pelos lixos. Batizávamos

cada lixo com um nome, para facilitar o roteiro e para organizar nossas caminhadas.

Um desses lixos foi batizado como "lixo da BODA". O nome veio de uma brincadeira,

pois, quando descobrimos esse lixo pela primeira vez, havia muitas cabras e bodes

por perto. Procurávamos livros, revistas, brinquedos, qualquer novidade.

Encontrávamos muita coisa, mas sempre desfalcada de uma peça ou de uma folha.

Em carros sem uma das rodas, sempre dávamos um jeito, fabricando outra rodinha

com sandália havaiana - naquela época esse tipo de sandália era exclusividade de

pessoas paupérrimas. Mas quando faltava a última folha de uma revista de história

em quadrinhos, por exemplo, a solução era mais difícil. Então, guardávamos a

revista e tentávamos encontrar outra igual, que tivesse o final da história. É bem

verdade que raras foram as vezes que conseguimos completar uma história em

quadrinhos.

Nessas caminhadas, uma vez, adentramos um quintal abandonado. A galera

subiu nos coqueiros que lá havia e começou a tirar cocos da árvore. Após nos

empanturrarmos de água de coco, levamos os cocos que sobraram para casa. Minha

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mãe nos fez voltar e jogá-los no quintal novamente, advertindo-nos de que, se tal

fato voltasse a ocorrer, tomaríamos uma surra daquelas. Esta foi uma lição que

jamais esquecerei, mais uma das inúmeras que ela nos ensinou.

Ainda sobre brinquedos e brincadeiras, não posso deixar de lembrar do

"Mané Gostoso", pendurado entre dois palitos e amarrado com uma borracha que

minha mãe comprava para nós.

Trabalho

Um dos meus primeiros empregos foi no escritório da ASPEB, uma caderneta

de poupança que depois foi comprada pelo antigo Banco Econômico. O escritório

ficava na praça Ruy Barbosa, no centro da cidade de Jequié. Eu era uma espécie de

office-boy. Aproveitei para aprender a datilografar nas máquinas de escrever do

escritório, nas horas vagas, além de ficar escrevendo ou passando a limpo minhas

poesias. Quanto às datas de admissão e de saída deste emprego, não lembro muito

bem.

Certa vez, resolvi trabalhar como vendedor do Baú da Felicidade, do grupo

Silvio Santos. Saía com um vendedor mais experiente, que me mostrava como

deveria fazer para vender os carnês. Aprendi tudo, pois eu prestava muita atenção ao

que ele fazia. Finalmente, arrisquei-me a sair sozinho com uma pasta cheia de

carnês.

Minha primeira vítima foi uma empregada doméstica que trabalhava numa

residência no centro da cidade. Recebi dela a primeira parcela do pagamento, que

correspondia à minha comissão. Quando cheguei ao escritório, à tarde, após andar o

dia inteiro e ter vendido apenas aquele carnê, a patroa da minha única cliente já me

esperava para receber de volta o dinheiro que sua empregada tinha pago pelo carnê.

Alegou que eu tinha enganado a pobre mulher, que ela era uma pessoa pouco

esclarecida e se deixara ludibriar por mim. Acabei perdendo minha comissão e

desisti de vez de ser vendedor ambulante. Aquela não era, definitivamente, minha

praia.

Em uma outra ocasião, candidatei-me para trabalhar com Seu Nenzin. Ele me

escalou para trabalhar com jornais. Pensei em algo como uma banca de jornal ou

coisa parecida. Fui com ele ao centro da cidade e, quando cheguei ao local do

trabalho, descobri que era para vender jornais pelas ruas, como ambulante. Recusei

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imediatamente o trabalho, pois além da baixa remuneração, eu já havia tido uma

experiência nefasta como vendedor ambulante, que não gostaria de repetir para

ganhar a vida. Entendi que deveria preferir sempre o salário fixo, mesmo que fosse o

menor salário que se pudesse pagar, a trabalhar me aventurando a ganhar um

salário maior, através de comissões.

Enchente - Comida estragada

Houve uma enchente em Jequié, por volta de 1982 ou 1983, que arrasou

metade da cidade. O Rio de Contas estava muito cheio e represava a água do Rio

Jequiezinho. Do Centro para o bairro Jequiezinho só se passava pela Ponte de

Newton, a ponte que servia, em tempos remotos, para passagem do trem de ferro.

Todas as outras pontes haviam sido cobertas pela água, exceto esta. A parte baixa do

Centro e os bairros Campo do América, Banca, São Judas Tadeu, Mandacaru e

outros foram totalmente engolidos pela água. Os Edifícios Almerinda Lomanto e

Hildete Brito Lomanto ficaram inundados até o primeiro andar. Todos temiam que a

Barragem de Pedras, localizada a trinta quilômetros da cidade, se quebrasse com a

pressão da quantidade enorme de água e inundasse toda a cidade de Jequié. Mas

felizmente não aconteceu, graças a Deus. Do contrário, seria uma tragédia sem

precedentes, já que a barragem represa mais de setenta quilômetros de água.

Depois que as águas baixaram, muitos estabelecimentos comerciais do Centro

começaram a contabilizar os prejuízos. O Supermercado Cardoso, na praça da

Bandeira, foi um dos estabelecimentos que perdeu quase todo o seu estoque. Muita

coisa fora jogada no lixo, no esgoto. Boatos se espalharam rapidamente de que

muito presunto, queijo, mortadela, salame e uma infinidade de comestíveis estavam

sendo despejados pelos esgotos dentro do rio Jequiezinho. Saímos em passeata: eu,

Dida, Tó, Mi, mais um monte de garotos das ruas próximas, direto para o esgoto. Lá

tivemos de enfrentar uma disputa acirrada com outros meninos para ver quem

conseguia pegar a maior quantidade de mercadoria estragada. Levamos essas

mercadorias para consumi-las em casa.

Se tivéssemos de morrer por termos comido alimentos estragados,

certamente não estaria eu aqui contando este episódio inusitado, pois, durante a

maior parte de minha vida, eu e minha família ingerimos rejeitos e refugos de

comida. Nesse mesmo rio, quando as águas baixavam, costumávamos pegar

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camarões, que ficavam se batendo à procura de uma água mais profunda, já que o

rio estava em fase de extinção e os lugares mais profundos não mediam meio metro.

Muitos esgotos da cidade eram jogados dentro desse rio, inclusive os do Hospital

Regional Prado Valadares. Mas nós não nos importávamos com nada, só queríamos

um pouco de comida para saciar a fome. E o rio se comportou como um pai, sempre

a nos prover daquilo que procurávamos.

Nosso dia-a-dia não variava muito. Num dia, era Gal e no dia seguinte era

Nete quem saía para pedir esmolas pelas casas da rua e dos arredores. Os menores

iam substituindo os mais velhos, que ficavam envergonhados da tarefa de ficar de

porta em porta pedindo comida e ouvindo piadas do tipo: "Você já é bem grandinho,

por que não vai trabalhar?". Tínhamos um roteiro a seguir, e cada dia íamos a uma

casa diferente, para não chatear a mesma pessoa todos os dias. Tinha a casa de

Dominga, a casa de Dora, a casa de Dona Maria da Campanha, casa de Bói... Dona

Maria da Campanha era uma católica praticante que coletava doações do tipo

comidas, roupas e dinheiro, para entregar à minha mãe. Arrumávamos apelidos

para todos os que nos ajudavam, já que eram muitos e ficava quase impossível

memorizar seus nomes. Para complicar ainda mais, havia gente com o mesmo nome,

como era o caso de Dona Maria, por nós batizada de "Maria da Campanha", para

diferenciá-la das outras "Marias" em nossa lista.

Dora é nossa cunhada, casada com Néco (Manoel), que, por sua vez, é filho de

meu pai com sua primeira esposa. Ele pertence à primeira família de meu pai, em

que todos os seis irmãos têm idade superior a quarenta e cinco anos de idade.

Quando meu pai se casou com minha mãe, a mãe desses outros irmãos já havia

falecido há muito tempo. Dora também nos ajudava sempre que podia, já que tinha

uma família para dar conta e somente o marido trabalhava fora.

Bói era uma senhora que morava na nossa rua. China foi morar e trabalhar

em sua casa, em troca de comida e roupas. Lá havia duas irmãs gêmeas, Alice e

Agda, já bem velhinhas, que sempre davam café da manhã aos meninos que

passavam pela porta. E, como não poderia deixar de ser, meus irmãos,

especialmente Tó, Dida, Gal e Nete, sempre passavam por lá, onde tinham a

oportunidade de beber suco de groselha com pão ou com bolachão. China conta que,

quando foi trabalhar na casa de Bói, criou o hábito de deixar o pão do próprio café

para dar aos irmãos. Colocava-o na calha da chuva e ficava esperando que os manos

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aparecessem para pegar. Fazia isso escondida de Bói, que era muito rígida e não

aceitaria que ela deixasse de comer em benefício dos irmãos.

China conta ainda que, quando não tinha o pão para colocar na calha, ficava

muito triste de ver os irmãos brigando para ver quem chegava primeiro e a

expressão de decepção em seus rostos ao perceberem que nada havia sido deixado

para eles. Tinham de enfiar o braço inteiro no cano da calha para poder alcançar o

pão ou biscoitos que China colocava.

***

Dentre os vários episódios de comida estragada, fome, miséria e sofrimento,

me lembro de alguns que marcaram muito.

Domingas era uma vizinha que morava perto de nossa casa, na Avenida Franz

Gedeon, e nos ajudava com comida e roupas usadas. Muitas vezes, ela guardava

comida a semana inteira na geladeira, até que aparecesse alguém da nossa família

para receber o presente. Eventualmente, quando íamos pedir esmolas em sua casa,

recebíamos muita comida, dentro de uma panela enorme. Certa ocasião, uma dessas

panelas estava azeda, pois tinha sopa, repolho, feijão e todo tipo de sobras

misturadas. Minha mãe não deixou que comêssemos com medo que a comida nos

fizesse mal, e deu para Dona Odília, que, por sua vez, deu para suas galinhas. Todas

as galinhas morreram, a comida estava realmente estragada. Dona Odília ficou de

mal com minha mãe por causa deste episódio, achando que ela fizera aquilo de

propósito.

Outro caso inusitado foi esse: minha mãe assou um tendão, que era uma

mistura de pele, cartilagem e gordura. O fogo era feito no meio da casa, com pedaços

de madeira e plásticos que encontrávamos pela rua e no lixo, situação que perdurou

por mais de vinte anos em nossa vida. A comida ficava com um cheiro horrível de

plástico. Mas o pior ainda estava por acontecer. Depois de "assado" (na verdade,

sapecado na fumaça), ela dividiu a iguaria em pedaços iguais para os filhos,

servindo-a com pirão de água fria e farinha. O meu pedaço foi o maior de todos e

tinha bastante gordura. Desconfiado como sempre, abri para olhar e vi um monte de

bichos de moscas, vivos, procurando um local mais frio para se proteger, pois, como

o fogo não tinha assado totalmente aquele pedaço de imundície, não matou

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completamente os bichos de mosca. Fiquei com nojo, joguei fora e comi somente o

pirão.

A necessidade de sobrevivência nos deixava à mercê de situações vexatórias e

inusitadas. Uma vez minha mãe ganhou uma galinha viva. Matou-a e preparou um

almoço. Mas vi, quando ela abriu a galinha, um tumor ou coisa parecida na moela.

Tinha muito pus e fedia demais. Minha mãe preparou assim mesmo e deu para que

todos comessem. Saí para trabalhar e, quando voltei, encontrei à minha espera esse

prato "especial". Ela jurou que não era da galinha que eu tinha visto, mas não

acreditei e joguei tudo no lixo. Não comi e fui dormir com fome, o que não era um

fato raro na vida da gente. Nossa comida variava de pão seco com café preto a pirão

de farinha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, crédulos no que

minha mãe dizia: "amanhã Jesus vai trazer comida". Eu me irritava com ela e

xingava muito, pois todos os dias ouvia a mesma história e Jesus nunca chegava com

a comida prometida.

A refeição mais desejada por nós era um prato de qualquer coisa com carne,

já que essa iguaria quase nunca fazia parte de nossa dieta. Pelas condições de

extrema pobreza, era quase impossível termos carne à mesa. Quando comíamos um

pedaço de carne, era uma festa em casa. O acompanhamento podia até ser pirão de

farinha com água fria, mas se tivesse carne o prato de tornava especial. Mas não era

carne normal a que comíamos, era carne sentida. Era assim que chamávamos a

carne em processo de putrefação. Recebíamos muitas gorduras, pelancas, peles e

outros refugos de carne quando saíamos pela feira livre pedindo algo para comer.

Muitos dos barraqueiros nos enxotavam dizendo impropérios, mas muitos outros

nos acolhiam com palavras doces e nos ofertavam pedaços de carne. Geralmente era

carne que quase ninguém compraria ou que estava já azulada e com bichos de

mosca. Minha mãe aproveitava essas carnes da seguinte forma: ferventava tudo

numa panela e depois colocava para secar ao sol. Assim, já "lavada", a carne ficava

com um aspecto mais agradável ao olhar e ao paladar. Mesmo assim ficava com um

cheirinho enjoado de carne estragada. Minha mãe dizia que era carne "sentida".

Comíamos essa carne frita ou cozida no feijão.

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SONHOS

Na avenida Franz Gedeon, onde morávamos, havia uma oficina de conserto e

de aluguel de bicicletas. Toda a garotada da rua alugava bicicletas ali e aprendia a

pedalar. Todos os meus irmãos também tiveram esta oportunidade e a

aproveitaram. Exceto eu, pela minha exacerbada timidez. Só aprendi a montar numa

bicicleta aos vinte anos de idade, quando pude comprar uma Monark nova, que

precisei empurrar da loja até o loteamento Itaygara, onde morávamos na época. Ao

chegar em casa, chamei Valmir para segurar o bagageiro da bike enquanto eu

pedalava. Alguns instantes depois, meu irmão passou correndo ao meu lado e eu

perguntei quem estava segurando a bike para mim. Ele respondeu que ninguém

empurrava e que eu estava pedalando sozinho. Desde então, passei a pedalar

bicicletas sem nunca sofrer uma queda. Antes, em meus sonhos, imaginava estar

pedalando e voando ao mesmo tempo, ou seja, pedalando até que a bicicleta

decolasse e eu continuasse a pedalar durante o vôo.

***

Não sei bem por que razão eu sempre sonhei em trabalhar com serviços

burocráticos. Desde criança, imaginava-me numa espécie de escritório, lidando com

papeladas e telefones. Realizei este sonho muitos anos mais tarde, quando ingressei

no Tribunal Regional do Trabalho, no ano de 1990.

Um outro sonho que eu sempre alimentei foi o de morar em Salvador. Mas eu

tinha muito medo de sair de Jequié, do conforto da família e do lugar onde sempre

vivi, para enfrentar um mundo completamente hostil. Alimentei o sonho durante

anos. Lia regularmente os jornais da capital e ficava a me imaginar caminhando

pelas ruas da cidade. Até comprei um mapa de Salvador, onde percorria todos os

cantos da capital com os dedos. Já adolescente e trabalhando com carteira assinada,

sempre encontrava uma forma de economizar para poder fazer minhas viagens de

final de semana a Salvador. Saía de Jequié à meia-noite de uma sexta-feira, chegava

a Salvador pela manhã, pegava um ônibus circular e visitava os principais pontos da

cidade. Tomava banho de sol nas praias da Barra e Pituba, e, no final da tarde,

voltava para a estação rodoviária, onde passava a noite descansando e dormindo nos

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bancos. Pela manhã, reiniciava minha peregrinação pela cidade. Retornava à tarde

para a rodoviária e pegava o ônibus para Jequié, aonde chegava à meia-noite de

domingo. Ficava imensamente feliz com essas viagens. Tirava inúmeras fotos, via

coisas e lugares que, aos meus olhos, eram apaixonantes.

Com sacrifício, realizei meus dois sonhos maiores: o de ter um trabalho fixo e

burocrático e o de morar em Salvador, que não troco por nenhuma outra cidade

brasileira ou do exterior.

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FIGURAS INTERESSANTES

A casa de Judite, uma vizinha que muito nos ajudava, ficava do lado oposto à

casa onde morávamos, e era lá que minha mãe diariamente ia para lavar os pratos e,

em alguns dias da semana, para lavar nossa roupa, já que não tínhamos condições

de arcar com os custos da água encanada em casa. Mesmo sofrendo de paralisia nas

pernas, minha mãe atravessava a rua, arrastando-se pelo asfalto, correndo risco de

ser atropelada e morrer. As pernas e os pés ficavam sagrando, arranhados e feridos

pelo contato com o piso grosso da rua.

Freqüentemente íamos com ela à casa de Judite, esposa de Seu Tidinho e mãe

de Maxwel, Creuza e Joel. Certa vez, presenciamos uma discussão bizarra entre

minha mãe e Joel, porque este ficava profundamente irritado de ver minha mãe

mascando fumo e cuspindo o tempo todo. Chegava a ter nojo de beber nos copos que

minha mãe utilizava em sua casa. Foi uma confusão danada. Minha mãe ficou muito

chateada, mas não tinha como evitar de ir à casa de Judite que, além de ser parenta

de meu pai, facilitava-lhe o acesso gratuito à água para uso doméstico.

Na mesma rua, próximo à casa de Judite, morava Dona Zefa, uma senhora

pernambucana enorme e casada com um homem franzino, que vivia levando

broncas dela. Há quem diga até que o pobre apanhava da mulher, o que não era de

duvidar, levando-se em conta a desproporção de seu tamanho em relação ao dela.

Dona Zefa tinha muitos filhos, que brincavam comigo e com meus irmãos. Também

usávamos a casa dela para assistir à televisão - da janela, lógico, pois quase ninguém

abria a casa para nós, à exceção de Seu Chico e Dona Dete (pais de Florisvaldo) e de

Dominga. A brincadeira entre a criançada às vezes terminava em briga, mas minha

mãe nunca ficou inimiga de vizinhos por causa de brigas de crianças.

Maria, que ganhara o apelido de "Boca de Macaco", é uma outra figura

inesquecível. Morava numa casa que ficava juntinho à nossa. Era mãe de Beto e de

Lurdinha. O quintal de sua casa era cercado com varas, que sempre se soltavam ou

caíam, deixando nosso quintal maior. Assim, invadíamos o quintal dela e

ganhávamos mais espaço para brincar. Uma vez, Lurdinha começou a trabalhar na

fábrica de roupas Saci Pererê e contratou meu irmão Valmir para levar seu almoço

todos os dias ao meio-dia. Nessas idas e vindas, ele achou um relógio Citizen, que

vendeu a mim. Algum tempo depois, o relógio começou a atrasar. Mandei trocar a

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pilha, mudar peças internas, mas o atraso persistia. Revoltado, destruí o maldito

com uma marretada e resolvi o problema.

Carrapeta era uma senhora meio louca que passava pela rua. Parecia-se

mesmo com uma carrapeta: gorda no meio e as pernas finas. Quando alguém a

chamava por este apelido, ela enlouquecia e despejava os mais terríveis palavrões.

Tinha também Tonho Doido, um cara tipo cigano, de olhos claros, que

circulava pelas redondezas e sempre aparecia lá em casa. Minha mãe deixava-o

entrar e lhe dava comida. Mas Tonho Doido sempre arrumava confusão, pois não

tinha juízo e se encrencava com tudo.

Lembro também de uma mulher de cor negra, bem idosa, que passava quase

toda semana por nossa casa, que mais parecia um ponto de encontro de loucos e

desequilibrados. Ela trazia bananas e biscoitos, recebidos como esmola, e dava pra

gente. Quando não dava, a gente roubava de sua sacola.

Anália é outra que não pode ser excluída desse elenco. Era mãe de Roxa, uma

comadre minha. Explico-me: é hábito, no interior, que aqueles que pulam juntos a

fogueira das festas juninas se tornem compadres e comadres. Eu pulei fogueira com

Roxa e nos tornamos compadres. Conhecemo-nos quando minha mãe morava na

mesma Rua da Palha e eu era quase uma criança.

Germina era uma mulher morena, bastante gorda, que tinha os pés rachados,

e sempre parava lá em casa para prosear com minha mãe. Suava feito um cuscuz e

exalava um cheiro muito forte. Carregava sempre consigo uma toalha de rosto, com

a qual não parava de enxugar o suor que lhe escorria pelo rosto e pelo pescoço.

Havia também Baratão, outro louco que passava pela rua. Nossa diversão era

perturbá-lo e jogar pedras no pobre homem.

Nessa época, eu era ainda muito jovem. Lembro-me que construí um

parquinho de diversões de brinquedo, que funcionava com um pequeno motor a

pilha. Como só tinha um motor, ora colocava-o na roda-gigante de brinquedo, ora na

"sombrinha". A garotada da rua se juntava perto de minha casa para contemplar

admirada os brinquedos que eu construía.

Zeca Alves era um senhor moreno escuro e gordo que morava em nossa rua.

Meu irmão Vivaldo (Gal), sempre muito gaiato, toda vez que passava em frente à

casa de Zeca Alves gritava: "Zeca Alves, ladrão!" Não sei de onde ele tirou essa idéia

de xingar o homem, que um dia se irritou e quis agredi-lo. Ele devia ter então uns

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cinco anos de idade. Nessa época, meu pai já devia ter morrido. Não me recordo

muito bem, mas minha mãe, apesar de estar aleijada, defendia-nos a unhas e dentes,

tal qual uma loba enlouquecida. Quando Gal chegou em casa chorando, ela saiu se

arrastando pela rua afora até a porta da casa de Zeca Alves e começou a gritar,

xingando-o de ladrão e de tudo quanto era nome. Chamou atenção. Zeca Alves saiu

para discutir com ela, e o filho dele queria bater em minha mãe, uma senhora

descontrolada e aleijada. Nossos vizinhos não permitiram tamanha falta de respeito.

Zeca Alves então se vingou com muitos palavrões e praguejando que todos os filhos

dela haveriam de ser ladrões, maconheiros, drogados e coisas do tipo, pois, além de

não terem pai, viviam sob o jugo de uma mãe louca. Minha mãe voltou para casa

chorando. Toda a criançada também chorava junto com ela. Graças a Deus e à

educação que minha mãe deu a cada um dos filhos, essa predição não se

concretizou. Somos todos honestos e pessoas de bem.

Dona Nêga é uma senhora que morava, e ainda mora, na avenida Franz

Gedeon, perto da casa onde morávamos. Vive até hoje numa casa de três cômodos,

pequena e construída em estilo antigo. Ainda tem fogão à lenha e se veste com

modelos de roupa de vinte anos atrás. Era como se fosse uma irmã de minha mãe.

Em dias de chuva forte, íamos de mala e cuia para a casa dela, quando a nossa

ficava alagada. Dona Nêga sempre foi uma pessoa muito simples e prestativa.

Apesar de dispor de poucos recursos, toda vez que chegávamos em sua casa, dividia

o que podia conosco: comida, carinho e conselho de mãe, entre outras coisas.

Quando o marido dela morreu, ficamos todos muito tristes. Foi como se um

membro de nossa família também tivesse partido. Dona Nêga tinha quatro filhos:

José, Jean Cláudio, Pinto e Jabá. À exceção de José, que era bem maior do que nós,

todos os outros eram uma espécie de extensão de nossa própria família. Saíamos

para catar lixo, brincávamos juntos, freqüentávamos a casa uns dos outros.

Experimentamos juntos muitos momentos marcantes da vida, como se fôssemos

mesmo uma só família.

José, o filho mais velho de Dona Nêga, viajou para São Paulo a trabalho e se

demorou muito por lá. Quando veio de férias visitar a mãe, saiu com amigos para

tomar banho de cachoeira e acabou morrendo afogado após mergulhar e bater com a

cabeça em uma pedra. Foi uma tristeza para a rua inteira, sem falar em sua mãe, que

perdeu um filho de forma tão trágica e precoce.

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Não posso deixar de mencionar aqui o Nêgo Tinho e seu irmão, que também

freqüentavam a casa de Dona Nêga e faziam parte de nosso círculo de amizade.

Eram considerados os "capetas" da rua por viverem aprontando.

***

Sempre fui muito curioso e dinâmico, apesar de sempre me achar um

moleirão, um covarde ou coisa que o valha. Sempre gostei de escrever,

principalmente cartas. Enviava correspondências para o mundo inteiro, mesmo sem

saber falar outra língua que não fosse a portuguesa. Acabava recebendo folhetos

evangélicos da China, Rússia e outros países, após enviar cartas solicitando esse tipo

de material, que eu distribuía pela cidade inteira. Tinha centenas de cartas

guardadas, de amigos, de empresas, de todo lugar do planeta. Também gostava de

catar todos os "cartões de resposta comercial", preenchê-los e enviá-los.

Particularmente, adorava esses "cartões", por dispensarem o uso de selos e

envelopes. Fazia minha festa com eles. O carteiro da cidade já me conhecia. Mesmo

quando eu mudava de um bairro para outro, acabava recebendo as

correspondências, pois o carteiro descobria meu novo paradeiro. Tinha coleções de

revistas Veja, Isto É e outras que chegavam das editoras, por causa dos cartões-

resposta que eu preenchia e enviava. Às vezes, recebia três ou quatro revistas

semanais de uma só vez. Quando uma assinatura era cancelada por falta de

pagamento, enviava outros pedidos e, assim, recebia as revistas ininterruptamente.

Com esse meu hobby, acabei aprendendo alguns macetes como, por exemplo,

que existia e ainda existe a chamada "Carta Social", que qualquer um pode postar

pagando apenas um centavo. Isso mesmo. Carta com peso igual ou inferior a vinte

gramas, cujo envelope seja preenchido a mão, sendo os remetentes e os destinatários

"pessoas físicas", custa apenas R$ 0,01. Há um limite de cinco cartas por vez, em

cada agência, para evitar que se explore demasiadamente o serviço. Mas eu sempre

burlava essa regra, colocando as cartas em agências diferentes ou voltando à mesma

agência em horários diversos e me dirigindo a outros guichês. Nesse vai-e-vem de

cartas, ocorreu-me, um dia, enviar uma carta ao Presidente da República - na época,

João Figueiredo -, pedindo aposentadoria para minha mãe. Não é que ele respondeu

a carta, informando que tinha encaminhado o pedido ao Ministério da Previdência

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Social? E, após alguns meses, o Ministério enviou uma solicitação a minha mãe,

pedindo-lhe que comparecesse a um posto do antigo INPS (atual INSS). Depois de

infindáveis trâmites e perícias médicas, minha mãe foi, enfim, "encostada" por

invalidez, devido ao seu problema de paralisia nas pernas. A renda era de meio

salário mínimo, que, após muitos anos, passou a um salário mínimo completo. E eu

nunca entendi como é que se divide o "mínimo" em dois...

***

O primeiro bem de valor que possuí foi um rádio de pilha, comprado com o

fruto de meu trabalho, do Senhor Francisco, pai de Florisvaldo e marido de Dona

Dete. Essas pessoas desempenharam papel importante em nossas vidas. Francisco,

ou Chico, como era conhecido, tinha uma barraca no Mercado Municipal de Jequié,

onde vendia farinha e sempre nos dava um pouco e Dona Dete era aquela que nos

permitia assistir televisão em sua casa.

O rádio era portátil, à pilha, e já usado. Pegava somente as estações em ondas

médias e curtas. E, mesmo que pegasse FM, isso era coisa que não existia em Jequié

na época. Carregava esse rádio para todos os lugares por onde andava.

Ao deitar e antes de pegar no sono, passava boa parte da noite ouvindo a

Rádio Capital e a Rádio Record, de São Paulo. Esta última tinha um programa de

humor apresentado por Zé Betio, onde conheci a maioria dos humoristas que

atualmente fazem sucesso na TV. Eu trabalhava, à época, com Esmeraldo, fazendo

cintos e sacolas e também atendendo no balcão de seu armarinho ou em sua barraca

de miudezas na feira livre da cidade. O rádio me acompanhava em todos esses

lugares.

Na oportunidade em que eu comecei a trabalhar na pequena fábrica de cintos,

fiz um acordo com Esmeraldo, no qual eu receberia um salário menor em troca de

café da manhã, almoço e jantar, todos os dias.

Uma vez, roubei a calculadora de pilha de uma vizinha de Esmeraldo, que

vendia leite e morava ao lado da casa dele. Devia ter lá meus doze anos de idade

àquela época. Esperei todo mundo sair da sala, não resisti e entrei na casa.

Rapidamente, peguei a calculadora que me tentava sobre a televisão. Ninguém

nunca descobriu o autor do roubo. Mas, muito arrependido, confesso-o aqui, agora.

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***

No mês de junho, são freqüentes as festas em homenagem a Santo Antônio, o

padroeiro da cidade de Jequié. E todos os anos, nessa época, um parque de diversões

é armado em frente à igreja matriz. Minha mãe me levava com ela para assistir à

missa, em um dos treze dias da trezena de Santo Antônio, e também para ver as

outras crianças brincando no parque. Ela não tinha condições de comprar ingressos

para os brinquedos. Nem sequer para me comprar uma maçã do amor. Eu me sentia

muito frustrado com tudo aquilo, até que, um belo dia, resolvi roubar os ingressos

do parque. Precisava apenas saber aonde eram guardados os ingressos usados. E

descobri que, ao lado de cada brinquedo – roda-gigante, carros de bate-e-volta, etc.

−, havia uma espécie de garrafa, onde eram depositados os ingressos já utilizados.

Em uma dessas garrafas percebi que havia um buraco na parte de baixo. E dali

retirei centenas de ingressos, sem que o rapaz que tomava conta do brinquedo

percebesse. Enchi vários saquinhos plásticos de maçãs do amor com os ingressos

roubados e depois corri para casa feliz da vida. Não contei nada à minha mãe, pois

seria surra certa, caso ela soubesse do acontecido. No dia seguinte, levei todos os

irmãos para montarem nos brinquedos do parque, de graça. De alguns brinquedos

nem saíamos, como era o caso dos carrinhos de bate-e-volta. A cada vez que o tempo

terminava, dávamos outro ingresso para o rapaz que controlava o brinquedo.

Brincamos tanto que acabamos enjoando daquilo tudo e distribuímos os ingressos

para a meninada da rua onde morávamos. A garotada fez uma festa no parque,

literalmente.

***

Cursei o primeiro grau no Ginásio Celi de Freitas, onde era o aluno que mais

se destacava. Estudava muito e, por isso, sempre tirava as melhores notas. Todos me

conheciam: alunos, censores, professores, coordenadores e diretores. Sempre

participava das atividades extraclasse: dançava nas quadrilhas juninas, tocava e

ensaiava a banda do colégio, tomava parte nas mais diversas campanhas.

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José Lientinho, um dos professores do colégio, era encarregado de promover

as festas e ensaiar a banda. Tinha contato freqüente com ele, pois tomava conta dos

instrumentos e tinha a chave do local onde eles ficavam guardados, além de também

ter a chave de uma sala onde ele armazenava papel ofício, papel carbono, álcool e

todo material que arrecadava no comércio local para uso da escola. Professor

Lientinho tinha esse aposento como sendo de sua propriedade, e ninguém podia

pegar dali uma folha de papel sem o seu consentimento. Certa vez, ele foi escalado

para tomar conta de uma prova na sala onde eu estudava. Simplesmente, resolveu

sair da sala, permitindo assim que todos "pescassem". Em sinal de protesto, assinei

a prova em branco e me retirei. A turma quase me matou. No dia seguinte, a

professora da matéria me chamou e me deu nota dez pela atitude, anulou a prova

dos demais e marcou outra prova com todos, exceto eu. O professor ficou

desmoralizado no colégio e, por este motivo, trancou-me no auditório da escola;

queria me espancar. Gritei por socorro e vieram professores e alunos acudir.

Felizmente, foi apenas uma "pressão". Não deu tempo para que ele me batesse.

***

Luciene era a mais engraçada, a mais relapsa e a mais admirada colega de

turma. Era gordinha, casada, falava um monte de palavrões e não gostava de

estudar. Quando saíamos da escola, às 22 horas, ela reunia uma galera para fazer

baderna pelas ruas. Roubávamos as plantas que as pessoas colocavam nos pátios de

suas casas e levávamos para a casa de Luciene. Quando não conseguíamos carregar

os caqueiros, por causa do peso, quebrávamos e destruíamos tudo. Até que a

vizinhança deu queixa na polícia, que passou a fazer ronda pelas ruas próximas.

Desse dia em diante, evitamos continuar com aquele tipo de baderna.

Luciene era a aluna que menos estudava. Passava o tempo inteiro

conversando e fazendo bagunça na sala de aula. Mas sempre passava de ano, graças

aos colegas, que, por gostarem muito dela, davam-lhe "cola" no dia da prova. Na

prova final da oitava série, pediu-me que preenchesse a prova e deixasse sem

assinatura, para que ela pudesse assinar e não perder o ano. Eu já tinha notas

suficientes para passar. Sempre fechava minhas notas na terceira unidade. Mas ela

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dependia da nota da quarta unidade para conseguir concluir a oitava série. Fiz o que

ela pediu, e ambos passamos de ano.

Fui fazer o segundo grau em outra escola, já que lá só tinha o primeiro. Um

belo dia estava eu trabalhando numa barraca de doces, na esquina da avenida Rio

Branco com a rua Barbosa de Souza, quando passou minha professora de Português,

Eulália. Ela parou e começou a conversar comigo. Quando tocou no assunto da

prova, aquela que eu tinha preenchido para Luciene, fiquei paralisado. Baixei a

cabeça e não falei mais uma palavra. Com atraso, ela me deu a bronca que deveria

ter dado na época, falou que tinha me visto entregar a prova para Luciene, e que só

não tinha anulado as duas provas em consideração a mim, que era um ótimo aluno e

não merecia ter um ZERO na caderneta. Ressaltou ainda que, também por

consideração a mim, acabara cometendo uma injustiça: passar Luciene para a

primeira série do segundo grau. Culpou-me pelo fato de minha colega passar de ano

sem saber nada, enfatizando que eu levaria para o resto da vida esta culpa. Advertiu-

me para que eu não cometesse mais atitudes daquela natureza e encorajou-me a

continuar sendo o aluno exemplar que sempre tinha sido. Ouvi todo o sermão

calado, sem coragem de olhar em seus olhos. Morri de vergonha de tudo aquilo. Esta

é mais uma lição que me acompanha e, na medida do possível, tento passá-la

adiante.

Estudei em duas fases no IERP - Instituto de Educação Régis Pacheco. A

primeira foi quando voltei da Fazenda Turmalina, depois de lá ter vivido por cinco

anos. Fui direto para a quinta série do primeiro grau. Tendo estudado anteriormente

numa escola onde apenas aprendi o básico - ler, escrever, ver as horas no relógio e

outras amenidades -, fui reprovado em muitas matérias, principalmente em

Português, ao entrar para o novo colégio. Não conseguia sequer separar as sílabas

das palavras. Desisti então de continuar estudando ali e voltei para a escola normal

da cidade. Isso ocorreu por volta de 1982.

A segunda vez foi quando lá me matriculei para cursar o segundo grau. Aí,

sim, fui mais bem-sucedido, pois tinha me proposto a ser um aluno "caxias" no

primeiro grau e, conseqüentemente, tornara-me o destaque de minha turma.

"Vendia" trabalhos de Geografia, História, Matemática e de outras matérias para

toda a turma. Quando o professor passava uma pesquisa, eu fazia os trabalhos da

sala inteira, para vendê-los depois. Era uma boa fonte de renda extra para mim.

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Durante meu curso de segundo grau, eu trabalhava na empresa de ônibus

Tiradentes, de Dalmar (veja detalhes no capítulo "Trabalho na empresa

Tiradentes"). A perseguição era muito forte dentro do trabalho e ninguém conseguia

estudar e trabalhar, pois os horários das escalas de trabalho eram feitos de forma

que impedia que o funcionário tivesse tempo de freqüentar a escola. Mas,

felizmente, consegui conciliar as duas atividades, mesmo porque eu era muito

incisivo e insistente naquilo que eu queria. Sempre enfrentei João e outros "fiscais"

da empresa de forma contundente.

Eu era o único cobrador que agia dessa maneira e não era demitido. Muitas

vezes, chegava de viagem, trabalhando, e ia direto para o colégio, onde fazia provas

que nem sabia que estavam marcadas. A duras penas, concluí o segundo grau, com

muitas falhas, devido ao baixo nível de ensino daquela instituição (a melhor da

cidade), onde se fingia estar ensinando e os alunos fingiam estar aprendendo.

Muitas provas de Economia eram "trabalhos" a serem feitos em casa e entregues na

Secretaria, pois o professor raramente aparecia na sala de aula. Outras matérias

tiveram a mesma sorte. Tanto que me "formei" em Técnico em Contabilidade e nada

sei da área. Os estágios, então, eram catastróficos. Além da imensa dificuldade de se

conseguir locais para estagiar, quando aparecia algum eram empresas que não

tinham a menor estrutura para funcionar, e muito menos para transmitir

informações contábeis. Na época, muita gente nem fazia estágio, apesar de conseguir

notas de estágio supervisionado. É o Estado cumprindo a sua parte em formar

cidadãos desinformados e despreparados para exercer suas atividades com

cidadania.

Ainda durante o curso de segundo grau, conheci Renato, de quem fiquei

muito amigo. Sendo eu considerado um dos CDF da classe, acabava indo sempre à

casa dos amigos, nos finais de semana, para lhes dar aulas. A casa de Renato era

quase uma velha conhecida, pois todos os domingos eu estava lá, bem cedinho, às

vezes até mesmo antes de o café ser servido. Lembro que sempre assistia ao Globo

Rural, um dos programas matinais da Rede Globo, na casa dele.

Lá, aproveitava para tomar café, almoçar e jantar, além das merendas

servidas durante o dia, principalmente a mim, que era visita. A família de Renato

também era muito pobre, mas sua mãe era aposentada e tinha salário fixo, o que lhe

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permitia ter sempre comida em casa. Além disso, como a casa era própria, não

precisavam gastar com aluguel, e sempre sobrava algum dinheiro para outros gastos.

Consegui, uma vez, um emprego para Renato como vigilante na empresa de

um outro amigo meu, também colega de sala, para quem eu também dava aulas em

alguns finais de semana. Este outro amigo morava no bairro Agarradinho e tinha

fama de ser ladrão. Mas nossa amizade continuou mesmo após eu ter tomado

conhecimento de que ele roubava e fazia jus à fama.

Foi nessa época que conheci outra colega de escola chamada Ivonete. Era

dona de uma barraca de verduras na feira livre da cidade. Como minhas "aulas"

particulares nos finais de semana se tornaram famosas, acabei sendo convidado

para dar aulas a ela também. E assim descobri que Ivonete era comerciante e ela

descobriu que eu era uma pessoa necessitada. Acabou se oferecendo para me ajudar

e eu aceitei. Daí em diante, toda semana minha mãe, ou algum de meus irmãos,

passava na barraca dela e recebia um monte de verduras e frutas.

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MILITÂNCIAS, TRABALHOS, MUDANÇAS...

Militância Política

Eu militava no Partido Comunista do Brasil e participava das reuniões de

cúpula, onde discutíamos estratégias de ocupação dos espaços na cidade:

associações de bairros, sedes de partidos, grêmios estudantis e todos os espaços que

pudessem gerar dividendos políticos. Uma das fontes de informações de que me

valia para manter-me atualizado era o jornal Tribuna Operária, que adotava uma

posição e linha de pensamento compatíveis com minhas idéias na busca de um

mundo mais justo e de uma sociedade mais humana. Durante muitos anos, revoltei-

me com as reportagens sobre a Ditadura Militar que lia nos jornais.

No colégio, juntei-me a uma equipe de rapazes e moças que já atuavam

politicamente de uma forma mais madura e profissional. Éramos tão atuantes que

acabamos fundando uma chapa para concorrer à direção do grêmio estudantil.

Nossa chapa de estudantes foi eleita para a direção do Grêmio Estudantil Dinaelza

Coqueiro, que fundamos no IERP e mantivemos por muito tempo. Eu era o Diretor

de Imprensa desse grêmio e responsável, entre outras coisas, pela publicação do

jornalzinho informativo, onde denunciávamos os mandos e desmandos do Diretor

Carlos Melhem.

Cheguei até a viajar para Salvador para pegar o jornal do grêmio, que era

impresso em uma gráfica da Ladeira de Santana. Nessa época, viajei também para

Arembepe, para participar da Convenção Nacional da União da Juventude

Socialista, um braço político do PC do B. Foi uma festa inesquecível. Participamos

de comemorações e debates, tomamos banho nas lagoas de Arembepe e dançamos

ao som de trios elétricos. O que mais me marcou nessa viagem foi o colégio onde

dormíamos e suas inúmeras telhas quebradas que, com a chuva, acordavam muita

gente durante a madrugada. Outra cena que não esqueço foi a de uma tartaruga

gigante, que vi nadando no mar, pertinho da praia. Naquele dia, tinha acordado cedo

e resolvi sair para uma caminhada na beira da praia. Estava distraído olhando o

mar, quando notei uma "pedra" enorme se movendo na superfície da água. Fiquei

intrigado com aquilo e não desgrudei os olhos dali até descobrir que o estranho

fenômeno era uma tartaruga de mais de dois metros de comprimento. Fiquei

surpreso e admirado diante daquela obra formidável da natureza. Permaneci um

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bom tempo contemplando aquele casco colossal a se movimentar na água. Até que a

tartaruga resolveu dar um mergulho e desaparecer no meio das ondas do mar.

Campanha Política de Waldir Pires

Trabalhei com alguns amigos na campanha política de Waldir Pires para o

governo do estado da Bahia. Viajamos para a convenção do PMDB, partido que fazia

parte da coligação para a eleição de Waldir Pires. Em Salvador, fomos para a Câmara

Municipal, onde acontecia a festa, almoçamos num restaurante localizado embaixo

do prédio da Prefeitura e ficamos hospedados num minúsculo apartamento no

Engenho Velho de Brotas, de propriedade de Lídice da Mata. Como o apartamento

era muito pequeno, Lídice foi dormir na casa de sua mãe e lá deixou parte da galera,

na qual eu me incluía. Muito simpática, ela nos autorizou a ficarmos à vontade em

sua casa, inclusive para assaltar a geladeira, nos fartar de iogurtes e ovos, os quais

consumimos com vontade.

Fazíamos panfletagem, boca de urna, colagem de cartazes pela cidade,

debates, reuniões e seminários, em troca de uma promessa de emprego, caso o

Waldir ganhasse a eleição. Para nossa decepção, logo após a conquista do governo

do estado, nosso partido trocou os cargos por "apoio político" na eleição seguinte.

Fiquei revoltado com aquilo, de ver que as decisões eram tomadas em gabinetes,

restando à base aceitá-las pacificamente. Encontrava-me desempregado há um bom

tempo e aquela promessa de trabalho era com o que eu contava. Saí do partido,

abandonei toda a militância e nunca mais me engajei em política partidária.

Trabalho com Abdias e sua mulher

Trabalhei com Abdias e sua mulher desde o tempo em que eram casados e

moravam na Ladeira da Coelba. Nessa época, ele só tinha Rubens de filho. Eram

vendedores ambulantes de panelas, tecidos e utensílios domésticos de plástico.

Viajei muito em sua pick-up C10 para Itagi, Apuarema, Ipiaú e cidades dos arredores

de Jequié, nos finais de semana. Lá armava uma barraca ou simplesmente estendia

uma lona preta no chão, arrumava a mercadoria, e esperava que os fregueses

aparecessem. O mais engraçado era que, muitas vezes, além de ter de "brigar" por

um espaço no chão das feiras livres, ainda tinha de pagar uma taxa à prefeitura local

pela utilização do "solo", que não passava de um chão livre ou coberto de

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paralelepípedos. Lembro-me que, certa ocasião, fui deixado em uma cidadezinha,

onde tive de procurar pelas mercadorias de Abdias, que estavam guardadas na casa

de um dos moradores da cidade, para depois levá-las até a feira e, no final, guardá-

las novamente nessa casa. Dali pegava um ônibus e voltava para Jequié com o

dinheiro apurado na vendagem do dia. Posteriormente, Abdias se mudou para o

Agarradinho, casou-se com outra mulher e teve mais filhos. E, por coincidência,

acabei indo morar em frente à sua casa, quando me casei com Márcia.

Na época em que Abdias e a mulher se encontravam sem condições de manter

a estrutura de vendedores ambulantes, montaram várias barraquinhas, de um metro

de comprimento por meio metro de largura, para a venda de doces, pipocas,

chicletes e cigarros. Trabalhei numa dessas barracas, que ficava guardada numa

residência na Avenida Rio Branco. Era a residência de duas senhoras idosas. Nos

fundos da propriedade, havia um quartinho onde eu guardava o "caixote" com os

doces. As senhoras sempre me davam café ou alguma comida, quando eu chegava

pela manhã para pegar o carrinho de mão e a barraca. Todos os dias eu carregava a

barraquinha e a armava na esquina da casa de Walter Sampaio - então prefeito da

cidade -, onde, tempos depois, foi construído o Superlar Supermercados - uma rede

de mercadinhos de Vitória da Conquista, com várias lojas em Jequié. Sempre era

roubado pelos estudantes que por ali passavam, fosse quando compravam fiado ou

quando, simplesmente, pegavam as mercadorias e corriam. Nessa ocasião, minha

mãe estava com sérios problemas nas pernas e precisava usar muletas para

caminhar. Ainda assim, todos os dias, ia levar minha comida, que não variava muito:

pirão de farinha com água, uma piaba frita ou um pão com manteiga (no interior,

margarina é chamada de manteiga). Como eu não gostava da comida, que ela levava

com sacrifício, e não queria magoá-la, usava da seguinte estratégia: jogava fora

minha água de beber, armazenada numa lata de Neston, e pedia que ela fosse buscar

mais água. Nesse meio tempo, dava um jeito de jogar a comida no lixo, sem que ela

visse. Enquanto ela atravessava, com dificuldades, a avenida Rio Branco, eu olhava

para a comida e dela me desfazia imediatamente, caso meu estômago a recusasse.

Porém, quando minha mãe voltava com a água, dizia-lhe que havia comido tudo. Ela

ficava satisfeita, enfatizando que meus irmãos, em casa, não tinham almoçado para

que sobrasse comida para mim. Eu ficava com o coração partido, mas nunca tive

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coragem de dizer à minha mãe que, na maioria das vezes, eu também ficava com

fome.

***

Trabalhei como balconista no bar de Bio, na praça da Bandeira. Despachava

cachaça, bebidas diversas, cereais, tira-gostos, sucos, bolos etc. Trabalhava de

segunda a sábado e ganhava muito pouco. A grande vantagem era que eu comia

durante todo o dia, coisa que não poderia fazer em casa, onde quase nunca havia o

que comer. Não lembro quanto tempo trabalhei nesse bar, mas é uma passagem que

merece registro.

***

Quando ficava sem trabalho, ia limpar quintais de conhecidos com uma

enxada. Às vezes, saía a caminhar por ruas onde não conhecia ninguém,

perguntando, de casa em casa, se tinha algo que eu pudesse fazer. Desta forma,

nunca ficava sem uns trocados para comprar minhas coisas. Sempre encontrava algo

para fazer. Lembro bem do quintal de Dona Alzira, mãe de Edilene. O quintal dela

era enorme, e sempre tinha muito mato e lixo a serem removidos. Eu levava comigo

uma "galiota" (carrinho de mão, daqueles que os pedreiros usam) para retirar o lixo,

as pedras e o mato que eu capinava.

***

Trabalhei como caseiro na casa de um senhor conhecido como Dr. Gerson.

Ele tinha uma casa enorme e vários cachorros da raça policial. Apesar de não ser

chegado a animais, eu cuidava dos cães e dava comida a eles. Certa feita, entrei no

carro do patrão e encontrei um enorme revólver, calibre 38, no porta-luvas. Foi a

primeira vez que vi uma arma de verdade. Manuseei o revólver um pouco e, em

seguida, guardei-o, com medo de ser visto por alguém.

***

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Trabalhei também quebrando pedras. Era um trabalho duro, literalmente

duro. Ficava numa pedreira, perto de Jequié. Ali eu ganhava por produção. Cada lata

de pedra equivalia a cerca de R$ 1,00, a preços de hoje. Isso poderia significar um

bom dinheiro se eu conseguisse quebrar muitas pedras. Mas a realidade é que eu

passava dois ou três dias tentando encher uma lata. Foi uma das fases mais difíceis

de minha vida.

***

Trabalhei também com Aldo, vendedor de utensílios domésticos e de leite.

Viajava com ele para as cidades circunvizinhas para vender tecidos, utensílios

plásticos e panelas. Trabalhava nas feiras livres das cidades próximas a Jequié. Não

lembro de muita coisa sobre esse trabalho, foi apenas mais um deles.

***

Joel é um primo distante, por parte de meu pai. Ele trabalhava numa

panificadora, na Avenida Franz Gedeon, próximo ao centro da cidade. Conseguiu-

me uma vaga para trabalhar como vendedor e entregador de pães. Eu saía de casa,

então, todos os dias bem cedo, por volta das cinco horas da madrugada, e voltava

somente no final da tarde. Ainda lembro do cheiro dos pães fresquinhos, a exalar do

enorme cesto que eu carregava, para entrega nas lojas próximas e no centro da

cidade. Meu pescoço doía muito por causa do peso do balaio. Não fiquei muito

tempo empregado ali, e nem sequer recordo do motivo de minha saída.

***

Construí um carrinho de mão, de madeira, e com ele trabalhei muito tempo

carregando as compras do povo na feira. As pessoas que iam às compras levavam

cestos enormes, balaios descomunais, que enchiam de verdura, feijão, carne e tudo

mais. Só que a volta para casa nem sempre era uma operação fácil para esses

compradores, pois tinham de levar suas compras em ônibus coletivos ou em táxis.

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Nos ônibus, nem todos os motoristas permitiam; e nos táxis, a corrida ficava mais

cara. A saída para aquela gente então era pagar uns trocados para um rapazinho

carregar as compras. Esta prática é bem comum nos locais onde tem feira livre.

Geralmente, os dias de maior movimento eram sexta e sábado, quando o

centro da cidade era invadido por pessoas vindas de povoados e fazendas próximas

para fazer suas compras em Jequié ou para vender os produtos das roças. Houve um

dia em que eu quase desmaiei quando subia a avenida Rio Branco em direção ao

viaduto Daniel Andrade, com um cesto enorme no carro de mão. O peso era tão

grande que eu me entortava todo para equilibrar o carrinho de mão. E, para piorar a

situação, nesse dia eu não tinha tomado café, estava muito fraco. Acabei passando

mal e quase não pude continuar meu trabalho na feira. A dona do cesto,

sensibilizada com o meu estado, me trouxe um copo d’água e depois me deu café

com pão. Pediu que eu ficasse ali parado um pouco, descansando, e depois fosse

para casa. Segui seus conselhos e descansei, mas, ao invés de voltar para casa, fui

direto para a feira livre, procurar mais cestos para carregar.

***

Um dos trabalhos mais chatos que tive foi o de ajudante de pedreiro. Nunca

havia trabalhado antes nessa profissão - e, depois dessa experiência, não procurei

outras iguais. Seu Elias era um senhor negro e gordo, lento e lerdo como uma

tartaruga. Uma vez, chamou-me para ganhar um dinheiro trabalhando como seu

ajudante no serviço de pedreiro. Só que ele não fazia nada. Ficava sentado na escada

de madeira, recebendo blocos de cimento, massa de cimento e tudo mais, sem fazer

o menor esforço. Só sabia mandar: "Traga o cimento! Traga a corda! Traga a colher

de pedreiro!". Esta passagem foi tão rápida que mal consigo lembrar quanto tempo

durou o trabalho, nem quanto eu recebia por ele.

***

Zezé é o apelido de José, um de meus irmãos, filho do primeiro casamento de

meu pai. Ele é casado com Irene, com quem teve Vagner e Lane. A primeira família

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de meu pai sempre viveu afastada da gente, acredito que por causa da nossa

condição social, que não nos permitia freqüentar os lugares que eles freqüentavam.

Sendo comerciante, sempre teve um bar ou uma mercearia, onde trabalhava

duro para sustentar a família. Quando trabalhei com ele no bar, como balconista,

caminhava quase a cidade inteira, de madrugada, para chegar ao estabelecimento

cedinho, antes das seis horas da manhã, todos os dias. Batia na porta de sua casa e

ele abria uma portinhola por onde enfiava a mão e me entregava as chaves da venda.

Daí eu abria o mercadinho, fazia toda a limpeza do chão, das louças, frigideiras e

panelas de café, que estavam sujas desde o dia anterior. Cozinhava ovos, preparava

lanches, fervia feijão ou alguma outra comida que estivesse no fogão, limpava e

enchia a geladeira e o freezer de bebidas. Deixava toda a venda preparada para o

novo dia.

Zezé acordava por volta das sete horas e ia para lá. Nem sempre ficava

comigo. Mas uma de suas advertências era que eu evitasse vender fiado para a

clientela, sob a alegação de que fiado somente na presença dele. E assim eu

procedia, evitando que a maior parte do estoque fosse vendida fiado. Para cada

cliente que chegava pedindo para fiar a compra, eu repetia sempre que "somente

com meu irmão", pois não tinha autorização para tal.

Gostava daquele trabalho e tentava fazê-lo da melhor maneira possível.

Afinal, eu precisava do salário que ele me pagava (menos que um salário mínimo,

diga-se de passagem). Na venda, ele tinha um ponto de jogo do bicho, onde aprendi

a fazer o jogo. Muitas vezes, Irene, minha cunhada, ficava no bar comigo. Mas o

mais comum era encontrar Vagner por ali, geralmente sentado ao lado do caixa e

passando troco. Nunca desconfiei dele. Mas, um dia, houve uma discussão entre

mim e Irene, porque Vagner tinha colocado um saco de amendoim doce pendurado

num prego sobre a pia. Com o peso, o saco rasgou, fazendo com que o amendoim

caísse na pia, ficando todo molhado e se estragando. Vagner, para livrar-se da

bronca e de pagar o prejuízo, acusou-me de ter colocado o amendoim sobre a pia.

Ficou a palavra dele contra a minha, e sua mãe, obviamente, acreditou no filho.

Protestei e discuti com ela. Quando meu irmão chegou, certamente influenciado por

algo que Irene lhe dissera, resolveu me mandar embora, sob o argumento de que, se

eu não me dava bem com a mulher dele, não poderia continuar trabalhando na

venda. Nada pude fazer, era ele o dono do bar.

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Devido ao jogo do bicho que eu fazia para Zezé lá no bar, acabei conhecendo

todos os fregueses e também aqueles que faziam sua "fezinha" constantemente.

Desempregado e sem ter o que fazer, fui até a banca do jogo do bicho e peguei um

talão para mim. Comecei a fazer jogos por minha própria conta. Meu roteiro incluía

principalmente as proximidades da venda de meu irmão, onde eu já tinha uma boa

freguesia.

Um dia, estava eu do lado de fora da venda e vi uma freguesa conhecida

entrar. Ela não me viu e, dando por minha falta, perguntou à Irene, que estava no

balcão, onde eu me encontrava. Irene prontamente anunciou que "Zé mandou

embora, pois ele estava roubando o bar". Quase não me contive de raiva ao ouvir

aquelas palavras, mas fiquei do lado de fora da venda, escutando toda a conversa.

Até hoje tenho este espinho entalado na garganta. E, um dia, ainda hei de chamar

Irene para conversar sobre o assunto. Ouvi bem quando ela disse à freguesa que

sempre mandava Vagner tomar conta do caixa da venda, para que eu não roubasse

ainda mais. E foi aí que me caiu a ficha: ela mandava o filho, não com a intenção de

me ajudar, mas para me vigiar. O que deixa meu coração aliviado é que eu nunca

peguei nada de meu irmão.

Ouviria de Zezé, tempos mais tarde, quando eu passava por sua venda, sobre

as estripulias do filho. Contou-me que Vagner tinha se tornado evangélico, e que,

quando ia para os "retiros espirituais", sempre arrombava a venda, levando comida e

tudo o que encontrasse, para passar semanas no meio do mato com os "irmãos" de

igreja. Por ironia do destino, ele que era o vigia passou ao papel de ladrão. Zezé

relatou, ainda, que muitas vezes foi xingado pelo filho na presença de pessoas da

vizinhança, o que lhe deixava morto de vergonha. É o destino dando a lição

necessária àqueles que precisam aprender algo na vida.

***

Saímos da Casa da Avenida Franz Gedeon. Essa casa pertencia ao meu irmão

Édson, que sempre morou em São Paulo. A razão de termos saído dessa casa foi que

os cunhados de Édson (Joel, Maxwel e Creuza) convenceram-no a nos tirar de lá e a

pagar o aluguel de uma outra casa para nós. Alegavam que, se continuássemos

morando ali, a casa poderia passar a ser nossa. E ele, temendo que isso acontecesse,

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fez o que lhe foi sugerido. Édson resolveu então passar a pagar o aluguel de uma

outra casa para nós. E, como o valor do aluguel que ele se propunha a pagar era

muito baixo, só podíamos escolher casas bem pequenas e em bairros distantes.

Fomos morar inicialmente no bairro do Pau Ferro. Primeiro, procuramos casa na

rua da Bosta, o pior lugar do bairro, onde encontramos uma que fazia jus ao nome

da rua. Ficava em cima de um despenhadeiro, em rua de chão batido, onde não

havia serviço de ônibus nem de água encanada. Depois, conseguimos uma casa, no

mesmo bairro, pelo mesmo preço, porém mais perto do Centro. Fomos então morar

nessa casa, cujo aluguel deveria equivaler hoje a algo em torno de dez reais por mês.

Alguns meses depois nos mudamos para uma casinha com uma sala de um

metro e meio por dois de largura, um quartinho do mesmo tamanho e um pequeno

corredor, localizada na rua Rafael Pinto, bairro do Jequiezinho. Não tinha quintal,

ou melhor, tinha um quintal que, por não ser cercado nem murado, acumulava

muito mato e lixo. Na frente da casa, a rua era de cascalho. Fica difícil hoje

compreender como todos os meus oito irmãos, juntamente com minha mãe,

conseguiam se acomodar numa casinha tão pequena.

Ali conhecemos muita gente. Continuávamos dependendo da boa vontade das

pessoas para sobreviver. Conhecemos Eva e sua família: a mãe, Dona Maria, e a

irmã, Nalva. Era gente da roça, que se mudou para a cidade após vender um sítio

que possuía. A família foi em busca de uma vida mais fácil, menos sofrida. Acabou

sem o sítio, sem a casa, sem nada, pois, quando o dinheiro secou, ficou sem ter como

sobreviver naquela realidade urbana, onde cada um luta por si. Dona Maria teve de

vender a própria casa para cuidar de Eva, vítima de doença incurável: um câncer em

estágio avançado. Antes de procurar os médicos, ela correu para as igrejas

evangélicas, depois para os terreiros de candomblé e, quando enfim resolveu apelar

para a medicina, o caso já estava adiantado demais. Não me sai da lembrança o dia

em que fui visitá-la em sua casa e espantei-me com o buraco enorme em suas

nádegas, por onde se viam os ossos do quadril. Foi uma das cenas mais chocantes

que vi.

Quando morávamos nessa casa, fui à loja e comprei um fogão a gás. No

entanto, a alegria durou pouco. Nunca usamos o fogão, pois não tínhamos condições

de comprar o botijão de gás e, muito menos, o gás para abastecê-lo mensalmente.

Esse fogão eu acabei vendendo para pagar pela publicação de uma poesia na

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antologia Poetas Brasileiros de Hoje - 1984. Não usamos o fogão para cozinhar, mas

ele serviu para essa alegria minha e de minha família, que vibrou quando viu o livro

publicado. Antes de eu comprar esse fogão, já tínhamos ganho um fogão menor, de

duas bocas, doado por uma pessoa chamada Lourdes. A alegria foi muito grande,

mas não tivemos condições de comprar o botijão de gás e por isso o fogão nunca foi

utilizado. Acabamos nos desfazendo dele para comprar comida.

Nessa rua - como nas outras - era Quira quem mais fazia amizades. Conheceu

Nenquena e Norminha. A primeira usava drogas e a segunda fumava cigarros igual a

uma caapora. Tinham fama de mulheres fáceis, diziam que elas saíam com todos os

homens da cidade. Minha mãe vivia a reclamar com Quira por causa de suas

amizades, mas, sempre muito teimosa, minha irmã continuava a sair com essas e

outras amigas. Felizmente ela não seguiu o destino das amigas e hoje é uma pessoa

de bem, casada, com três filhos, evangélica, responsável e muito amada por todos da

família.

***

Primeira viagem a Salvador

Fui trabalhar em Salvador, em 1984, na casa de Luci Valverde, que morava na

Alameda das Framboesas, Quadra 7, Lote 12, Caminho das Árvores. A casa ficava

perto do Iguatemi e todos os dias eu passava perto do shopping para comprar pães.

Da varanda, dava para ver ao longe os ônibus passando, e eu ficava horas e horas

observando o movimento dos carros. Na verdade, ela me levou para a capital

dizendo que precisava de mim para tomar conta de um cachorro. Mas, quando

cheguei, não tinha cachorro algum. Eu teria de limpar a piscina, o quintal, ser

zelador e jardineiro. Como relatado anteriormente, Luci era a dona da Fazenda

Turmalina, onde morei dos sete aos doze anos de idade. Em sua casa na cidade

moravam, além dela, os filhos Augusto, Conceição e Pitutinha. Teobaldo, o mais

velho, morava no México, na época.

Por falar em Teobaldo, certa vez o carteiro trouxe uma carta dele para Luci, e

eu, por achar o selo muito bonito, arranquei-o do envelope para juntá-lo à minha

coleção. Por medo de mostrar o envelope lascado, cometi a imprudência de ler a

carta e jogá-la no lixo, em seguida. Depois, arrependido, recuperei a carta e

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coloquei-a, aberta, na estante da sala. Luci pegou a carta e me pressionou a

confessar o delito. Neguei até a morte, e ela me deu um sermão que jamais esqueci;

disse que era muita ousadia e falta de responsabilidade abrir correspondência

alheia, que aquilo era crime. Aprendi a lição e nunca mais ousei abrir qualquer

correspondência, fosse de quem fosse. Só não revelei que tinha sido eu o autor do

ocorrido, nem os motivos que me levaram a abrir a carta. Mas ela sempre teve a

certeza de que fui eu que abri aquela correspondência.

Uma vez houve um problema na instalação elétrica da casa e foi chamada

uma pessoa para fazer o conserto. Luci pediu-me que ficasse na garagem, junto com

o eletricista, tomando conta das coisas, para não correr o risco de ser roubada por

ele. Infelizmente, não pude evitar que um roubo acontecesse, e não por culpa do

eletricista. A coisa se passou da seguinte maneira: fiquei sozinho na garagem,

quando o eletricista subiu para verificar uma fiação no primeiro andar da casa.

Minutos depois de o eletricista ter subido, passou um rapaz em frente à garagem,

chegou até a porta e perguntou se não estavam precisando de alguém para trabalhar

na casa. Respondi que não. Ele então entrou e levou uma bicicleta Caloi 10 novinha,

que estava ali, depois de me ameaçar com a chave de fenda que pegou dentro da

própria garagem. Perguntou-me se tinha mais alguém em casa e eu, com medo,

respondi que tinha muita gente na casa, quando na verdade tinha somente o rapaz

que trabalhava consertando os fios e Luci. Ele levou a bicicleta e eu fiquei em pânico.

Corri para fechar a porta da garagem e para avisar Luci. Saímos pelos arredores à

procura do ladrão, mas infelizmente não conseguimos localizá-lo.

A casa era enorme e tinha uma piscina muito bonita no quintal. Eu ficava

louco para tomar um banho ali, mas, como empregado, não tinha direito a essa

regalia. Esperei o pessoal viajar, oportunidade em que fiquei sozinho na casa. Aí

aproveitei para dar o tão desejado mergulho, um único mergulho, naquela piscina de

águas convidativas. Foi o suficiente para matar meu desejo e curiosidade. Foi o

primeiro mergulho de minha vida em uma piscina. Quando Luci chegou, deu-me a

maior bronca, pois tinha observado o rastro que eu deixara no fundo da piscina.

Com o mergulho, meu corpo havia limpado uma faixa de sujeira do fundo e eu não

percebera...

Meu quarto ficava nos fundos da casa, perto da cozinha. Tinha um guarda-

roupa enorme, onde caberiam todas as roupas de minha vida. Mas eu ocupava

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apenas uma gavetinha do fundo, já que não possuía muita roupa. Tinha também

uma televisão. Eu podia assistir TV no meu quarto ou na cozinha; jamais na sala,

com os patrões. Nas poucas vezes em que me sentava na sala para assistir TV, era

posto para fora dali, sob o argumento de que "empregados não podiam se misturar

com patrões". Mas eu não tinha essa noção ou cultura, nem sabia que a expressão

"colocar-me em meu lugar" significava ficar nos fundos da casa. Lembro de uma vez

que fiquei brincando com o controle remoto da TV enquanto Pitutinha assistia aos

programas na sala. De molecagem, eu mudava de canal a toda hora, para vê-la

reclamando. Ela era uma criança ainda, e eu, também da mesma faixa etária,

achava-me no direito de brincar com a patroinha da casa.

Odiava macarrão porque me lembrava lombrigas. Uma vez, no jantar, vi que

meu prato continha macarrão em sua maior parte. Comi o restante da comida e

joguei o macarrão no lixo. Luci estava na janela do primeiro andar e me viu fazendo

aquilo. Desceu e me deu uma bronca memorável. Falou que tinha muita gente

passando fome no mundo e que eu estava desperdiçando comida. Disse ainda que,

se eu não gostasse da comida, que falasse para a empregada me dar outra coisa.

Repeti a cena em outra ocasião, quando a empregada esqueceu de deixar

comida para mim. Então, Conceição, filha de Luci, preparou uma sopa de cogumelo.

Tentei comer, mas odiei o sabor. Fingi que comi, esperei ficar sozinho, e joguei tudo

no lixo. Desta vez não fui visto, senão seria bronca certa.

A empregada da casa folgava nos finais de semana. Certa vez, peguei o prato

sujo e coloquei na pia. E lá veio Luci novamente me dar bronca. Agora alegando que

até ela mesma lavava seu prato, e que muitas vezes já tinha lavado até o vaso

sanitário de seu quarto; que metia a mão dentro dele com esponja e sabão, e que

aquilo não a tornava melhor ou pior do que era. Após o sermão, exigiu que eu

lavasse o prato. Aprendi a lição. Com Luci aprendi muitos valores importantes da

vida.

Chegou o natal e Luci começou a preparar a festa de final de ano. Aquela seria

a primeira ceia natalina de minha vida. A mesa estava repleta de comidas: leitão

assado, peru, frutas, nozes e vinhos. Mas não agüentei esperar até meia-noite e corri

para a cama. Poderia ter experimentado naquele Natal uma sensação diferente de

todas as que já tinha vivido. Mas, infelizmente, o sono me venceu e eu perdi a

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oportunidade de desfrutar da festa. Pouco tempo depois, voltaria a morar na

pobreza, em Jequié, com minha mãe.

Luci era espírita e tinha o costume de oferecer comida e presente aos

espíritos. Lembro-me que, na época em que morei na fazenda, eu já havia

encontrado abóbora com mel, e outras oferendas, dentro de uma tigela de barro, que

ela colocava dentro do mato. Em Salvador, levou-me uma vez para o rio Vermelho,

onde jogou flores e perfumes no mar, para Yemanjá. Foi a primeira vez que vi o mar.

Fiquei maravilhado, extasiado... E, deste encantamento, fiz uma poesia em

homenagem ao mar:

O Mar

O mar é muito lindo!

Tão lindo quanto extenso.

Tudo que vejo e é lindo

Está no mar.

Nele tem peixes grandes e peixes pequenos.

Pelas águas do mar, ou dos mares,

Navegam as maiores embarcações...

Também singram o mar,

A trabalho, diversão ou em simples viagem,

As embarcações menores: canoas, barcos, balsas, jangadas...

A textura da areia é finíssima e alva

Em quase todas as praias brasileiras.

Os habitantes do mar, os peixes já mencionados,

São muito úteis aos brasileiros,

Que têm no mar uma de suas principais fontes de alimentação.

O mar também aparece como a ligação

De outros países com esta Nação.

(1984)

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Retorno a Jequié

Quando voltei a Jequié, minha mãe já estava morando no Pau Ferro, na casa

de Mariinha. Era uma casinha bem pequena, estreita e baixa. Tinha um quintal

imundo e cheio de tralhas. A família inteira morava naquela casinha minúscula.

Sonhava, nessa época, em entrar para a Aeronáutica. Pedi a Luci Valverde que me

ajudasse a pagar o curso preparatório e ela generosamente concordou. Com o

dinheiro, comprei as apostilas.

Um belo dia, Luci apareceu em minha casa para saber se eu estava estudando

e me preparando para o concurso. Expliquei-lhe que achava tudo muito difícil e que

estava prestes a desistir. Luci me deu a maior bronca que recebi em toda a minha

vida. Falou que tinha tido uma vida muito difícil, e que, na juventude, teve que

comer banana verde assada para sobreviver; falou ainda que já havia passado muita

fome; que seu pai enriquecera, sim, mas que antes de conquistar seus bens materiais

passara por muito sofrimento e conhecera a fome de perto; que tudo o que ela

adquiriu foi resultado de muito suor e trabalho; que sua situação financeira

confortável devia-se às economias que fazia e ao cuidado na aplicação de cada

centavo; que não desperdiçava nada, a fim de poder ter sempre com o que se

manter. Ela me disse que eu deveria aproveitar as oportunidades que a vida me

desse, enfrentar os desafios, ter mais coragem e autoconfiança e nunca desistir dos

meus sonhos e projetos, mesmo que eles pudessem parecer impossíveis de

conquistar.

Enfim, deu-me uma lição de moral e uma lição de vida para nunca mais

esquecer. Todo aquele discurso ficou gravado em minha mente e me lembro de cada

palavra como se fosse hoje.

***

Em uma casa em frente à que morávamos, havia uma família com três

irmãos: Balbino, Ádia (conhecida como "sem queixo") e Maria, que moravam com o

pai. Apaixonei-me por Maria, que tinha um filho chamado Anderson, de um ano de

idade, cujo pai morava no Rio de Janeiro. Enquanto namorei Maria, costumávamos

freqüentar uma boate chamada "Cantinho de Lua", que ficava perto do Aeroporto

Vicente Grilo, onde desfrutamos de bons momentos. O romance durou quase um

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ano, mas ela nunca quis algo mais sério comigo. Namorávamos e transávamos

muito, mas, quando eu falava em morarmos junto, ela caía fora do papo.

Quando terminamos, entrei em depressão. Cheguei a fumar uma carteira

inteirinha de cigarros em poucas horas. O detalhe é que eu não era fumante e não

gostava de cigarro. Caminhei do bairro Mandacaru até o bairro do km 4 fumando, e

quase me joguei embaixo de uma caçamba que passou na BR-116, indo em direção a

Vitória da Conquista.

Tirei muitas fotos com Anderson, filho de Maria. Eu gostava demais do garoto

e queria adotá-lo como meu filho. As fotos serviram de lembrança para guardar,

como uma recordação do namoro com a mãe dele e de uma provável família feliz

que seríamos.

Nesse mesmo período, trabalhei como fotógrafo particular. Comprei uma

câmera fotográfica não profissional e comecei a "tirar fotos" de todo mundo. Dessa

época tenho guardada em casa uma infinidade de fotos e negativos. Muita gente não

me pagava, é bem verdade, mas, de um modo ou de outro, acabava recuperando o

dinheiro investido, pois a quantidade de fotos que eu fazia era grande.

***

O Pau Ferro era um dos bairros mais violentos da cidade. Lá havia tiroteio,

gente cortando gente com facão, pobreza, falta de saneamento básico (os esgotos

corriam a céu aberto), ruas sem calçamento, serviço de transporte público precário,

enfim, era um bairro típico da periferia. Eu não falava com praticamente ninguém,

exceto o estritamente necessário, com medo de criar laços de amizade com pessoas

que pudessem me trazer problemas no futuro.

Trabalhava no bar de Joel, um primo distante, e meu contato com o público

se restringia ao formalmente necessário. Quando saía para trabalhar, sempre

advertia meus irmãos para que não abrissem a porta para quem quer que fosse,

lembrando-lhes que, caso alguém perguntasse algo sobre mim, deveriam dizer que

eu era do Exército, patente "herdada" de meu pai, que também tinha sido militar.

Uma mentira de conveniência para que as pessoas nos "respeitassem" e evitassem

confusão conosco.

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Um belo dia, alguém bateu à porta e meu irmão Gal (Vivaldo) atendeu.

Desconsiderando minhas instruções, falou para a pessoa que tudo não passava de

uma mentira e que eu não era do Exército coisa nenhuma. Gal era uma criança e não

tinha noção da gravidade do que estava fazendo, mas levou uma surra por isso, surra

que ele jamais esqueceu. Eu, sinceramente, não me lembrava deste episódio, mas,

recentemente, em conversa com Gal e com meus outros irmãos, fui "lembrado" do

ocorrido.

***

O bar era composto de um pequeno balcão e prateleiras, e também de um

salão onde havia uma mesa de sinuca. Joel tinha montado um aparelho de som em

casa, de grande potência, que posteriormente instalou no bar. Eu sempre colocava

músicas para tocar e, freqüentemente, ouvia Frank Sinatra no volume máximo do

aparelho, irritando bastante os vizinhos. Mas ninguém nunca chegou para reclamar

do barulho, apenas do meu mau gosto por música, já que eles preferiam cantores

mais populares. Joel, o dono do bar, possuía vários discos de vinil, que eu não

parava de ouvir: reggae, Tina Turner e outros sons... A música deixava tudo muito

mais alegre.

Perto do bar, do outro lado da rua, moravam Lusa e Pinóia, duas prostitutas

que tinham um pai cego. Certa vez, chamei Lusa e marcamos um "programa". Ela

aceitou e foi à noite até o bar para me encontrar. Bebemos bastante e transamos

várias vezes em cima da mesa de sinuca, sobre o balcão, em todos os lugares

possíveis. Eu tinha dezoito anos de idade e era a minha primeira experiência sexual,

que viria a me render também a primeira e única doença venérea: gonorréia.

Passados alguns dias, comecei a sentir um ardor insuportável ao urinar. Depois

começou a sair uma secreção do pênis. Fiquei apavorado e mostrei para minha mãe,

que me levou ao posto de saúde, onde o médico me receitou o remédio apropriado.

Tomei as injeções que ele prescreveu e fiquei curado.

Lusa sempre pegava arroz ou feijão no bar, dentre outras coisas, sem pagar,

por conta de nossa transa. Mais de dois anos depois, vim a saber que tinha ficado

grávida de mim e abortado o filho, sob o argumento de que eu não teria condições de

criar a criança e ela não queria assumir o bebê sozinha. Fiquei muito revoltado com

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este infeliz incidente, mas nunca a procurei para falar sobre o assunto. Teria sido o

meu primeiro filho, que poderia estar hoje com vinte anos de idade.

No bar existiam duas mesas de sinuca. Como eu tinha a chave da gaveta,

ficava o dia inteiro jogando de graça. Abria a gaveta por baixo e pegava as bolas, sem

que o contador girasse e marcasse o número de partidas jogadas. Várias e várias

vezes eu repetia a mesma operação, para preencher o tempo vazio, já que quase

ninguém comprava no bar. O povo era muito pobre, dinheiro não sobrava nem

sequer para comprar comida.

Valdinéia era uma das putas do Pau Ferro, filha de Dona Zene e irmã de Yara

(a puta mais poderosa da área). Ela freqüentava o bar onde eu trabalhava e, pelo

contato constante, acabamos nos envolvendo sexual e sentimentalmente. Várias

vezes ela dormia no bar comigo, e transávamos cerca de quatro a cinco vezes por dia.

Acabamos tendo um caso e fomos morar juntos, na casa de minha mãe. Nessa época,

eu andava psicologicamente muito abalado por causa da situação financeira da

família. A depressão andava comigo e, diante da falta de expectativas, passei a

atentar contra a própria vida, como no dia em que tomei um copo inteiro de

aguardente Pitu, chegando em casa transtornado, e quando enchi um frasco de

veneno e me dirigi ao posto médico do bairro vizinho. Lá, entrei no sanitário e tentei

ingerir o veneno, mas me faltou coragem para concluir o ato. Deixei o veneno ali

mesmo e voltei para casa. Num terceiro episódio, entretanto, acabei tomando

veneno Baygon com cachaça e fui parar no hospital, onde permaneci internado por

vários dias. A depressão e o medo de viver me sufocavam, fazendo-me planejar fugas

mirabolantes do hospital. Deus estava presente em minha vida, através de amigos e

familiares, e com o tempo o amor de todos eles foi me deixando mais confiante.

Recuperei-me do susto de morrer, recuperei minha auto-estima e fui vencendo aos

poucos minhas paranóias.

Néia passou a morar comigo, tornando meus dias menos amargos. Lembro

que ela gostava muito de tomar café. Fazia um panelão de café e guardava; toda hora

esquentava e tomava um gole. Era horrível o gosto de café requentado, mas ela

gostava. Néia tinha um problema no útero que a impedia de engravidar. E tinha

também um bafo de onça: a boca fedia como um esgoto, mas eu fingia não perceber

e nem reclamava. Seus dentes eram demasiadamente grandes, o que fez com que

acabasse se tornando alvo de crítica de meus irmãos, que passaram a chamá-la de

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"barrão alvoraçado". Todos gozavam da cara dela, dentro de casa, inclusive eu.

Pirraçávamos demais com a pobre. Não sei como ela agüentava tudo aquilo.

***

Ainda no bairro Pau Ferro fomos morar numa casa localizada no final da rua

João Rosa. Era um casebre, na verdade. Não tinha sanitário, somente uma "casinha"

ridícula no quintal, que não era murado. Um pedaço de plástico funcionava como

porta, e uma tábua com um furo no meio como vaso sanitário. A fossa embaixo da

tábua fedia terrivelmente e em suas bordas se acumulavam muitos bichos de mosca.

Era um lugar insuportável de se morar por causa do incômodo mau cheiro. Ao lado

desse "sanitário", havia um tanque de água, no chão. O tanque nunca ficava cheio,

era rachado. Enchíamos o tanque pela manhã, quando caía água, e a rachadura

levava toda a água antes do meio-dia.

***

Minha ex-sogra, Dona Zene, mãe de Néia, conhecia muita gente, pois

trabalhava nas feiras livres da cidade e também no Matadouro Municipal, vendendo

comida e mingau. Também já havia trabalhado, por muitos anos, em frente ao

Frigorífico Sudoeste Bahiano S/A (Frisuba), vendendo bolo, café, mingau e outras

iguarias. Assim, acabou fazendo amizade com muita gente que trabalhava ali,

inclusive com o médico veterinário Valdelício Fontenelle, chefe do Serviço de

Inspeção Federal que funcionava dentro do Frisuba, a quem me apresentou,

pedindo-lhe que me arranjasse um emprego. O médico precisava de mais um

auxiliar e acabou me indicando ao Frisuba, para ser contratado. Foi o meu primeiro

emprego de carteira assinada. Era um emprego muito bom. Minha função, como um

dos auxiliares do médico, era examinar as carnes e miúdos dos bovinos abatidos no

frigorífico. Nossa equipe tinha destaque e era tratada com certas regalias que os

demais funcionários não tinham: vestuário separado e lavado por conta do Frisuba,

almoço em sala separada com cardápio diferenciado, fardamento diferente (com

uma cruz verde no ombro esquerdo, que significava "auxiliar de médico" ou coisa

parecida), acesso aos telefones, sala com máquina de escrever, frigobar, telefone e

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mesas de escritório. Toda essa regalia gerava uma certa inveja por parte dos demais

funcionários da casa.

Éramos uma espécie de autoridade ali. Tínhamos autorização para jogar no

incinerador todas as carnes ou miúdos bovinos contaminados por fezes, ou que

apresentassem doenças. Os caminhões de carne vistoriada só podiam partir após

serem lacrados com o selo de inspeção do SIF (Serviço de Inspeção Federal) e com o

laudo atestando que aquele produto era apropriado para o consumo humano.

Tínhamos também direito a um meio de transporte diferente do da "peãozada". Mas,

como o frigorífico não comprava um veículo apropriado para o nosso uso, os cinco

funcionários da Inspeção Federal invadiam a cabine do caminhão que levava os

peões. O motorista reclamava que a polícia rodoviária podia multar, mas

protestávamos e não saíamos da cabine.

O frigorífico ficava a uns dez quilômetros do centro da cidade. Todos os dias

pegávamos um ônibus ou o caminhão da empresa às sete horas da manhã. Lembro-

me que, certa vez, perdi tanto o caminhão quanto o ônibus, e acabei indo a pé para o

trabalho. No caminho, o médico veterinário passou dirigindo o Fusca preto, de

propriedade do governo federal, e me deu carona. Chegando atrasado ao trabalho, o

porteiro não permitiu que eu batesse o ponto. Daí, o próprio médico foi à portaria,

pegou e bateu meu cartão de ponto, por sua conta e risco.

Este foi o primeiro emprego de carteira assinada e o melhor que havia tido até

então. O salário era muito bom; com ele pude comprar minha primeira televisão,

fogão a gás e pagar em dia o aluguel da casa onde morávamos. E, apesar das

dificuldades financeiras que enfrentava, ainda conseguia fazer uma economia de

guerra, e juntar alguma grana para o caso de um futuro incerto. Resultado dessa

economia e planejamento: acabei comprando um terreno no Loteamento Itaygara,

no bairro Mandacaru.

Ali no Frisuba, tive uma colega de setor chamada Welma. Conversava muito

com ela sobre minha vida e a situação que enfrentava. Quando lhe disse que não

tinha televisão porque não poderia alugar uma casa equipada com instalações

elétricas, ela me sugeriu comprar uma TV que pudesse ser alimentada por bateria de

carro. Por coincidência, o irmão de Welma tinha uma TV em preto e branco, que

funcionava tanto com energia elétrica quanto com bateria de carro. Não titubeei.

Comprei a TV. Foi uma verdadeira festa em casa, pois dali em diante não

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necessitaríamos mais ficar nas casas dos vizinhos para assistir aos programas, às

novelas e aos desenhos animados. O problema era que varávamos as noites

assistindo televisão, e a bateria se esgotava em poucos dias. Além disso, havia o

contratempo de ter que levar a bateria, na cabeça, até alguma oficina mecânica que

nos fizesse a recarga gratuitamente. E, depois de recarregada, ainda tinha a segunda

jornada: voltar para casa com o peso na cabeça, para vararmos novas noites

assistindo à televisão. Nessas noitadas, comíamos todos os biscoitos e bebíamos

todo o café que existissem na casa...

***

Fomos morar num casebre localizado à rua Teixeira de Freitas, a rua mais

pobre e feia do bairro. As casas que ficavam do lado direito tinham seus quintais

virados para o corte que dava na antiga passagem da linha de trem. Nesse corte

passavam os esgotos de todas as casas, que eram jogados ali. Aquilo exalava um

cheiro insuportável e era foco de muitas doenças, além de servir de berço para

nascimento e crescimento de muriçocas. Incomodado com tanta precariedade,

resolvi fazer uma carta e mandar para a rádio local, que a divulgou num dos

programas de maior audiência. O resultado não foi dos melhores: toda a rua se

revoltou contra mim, a ponto de quererem até me bater. Achavam que tal iniciativa

havia sido intromissão de minha parte e que eu não tinha o direito de enviar carta a

rádio alguma, já que era o mais recente morador do bairro. Os moradores

comentavam em voz alta, para que eu ouvisse, que "os incomodados tinham que se

mudar e não ficar reclamando ou divulgando a situação precária do bairro".

Numa daquelas chuvas torrenciais que costumam cair na cidade, a parede da

cozinha caiu dentro do corte. Minha mãe, temendo que a casa inteira viesse abaixo,

resolveu sair à procura de outro local para morarmos. Havia uma casa numa

transversal, que pertencia a um rapaz apelidado de Petisco. Como a casa estava

fechada, minha mãe decidiu invadi-la. Fomos todos para a nova casa, muito mais

bonita do que a outra. Tinha duas janelas que davam para a rua e o chão era

cimentado em cor vermelha. Ao ser avisado da invasão, o dono da casa chegou

trazendo a polícia para nos expulsar. Ficamos na casa dele até que a chuva passasse.

Depois, voltamos para a casa antiga, por ordem da polícia.

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Moramos também numa casa de adobões, localizada na travessa Teixeira de

Freitas. A casa não tinha água encanada, nem piso de cimento. O chão era de barro

batido, tinha dois quartos, uma sala e uma cozinha. O sanitário era uma casinha de

adobes, com uma fossa fedorenta. O quintal era cercado de varas, e todos que

passavam pela rua de trás podiam nos ver através da cerca.

Essa casa era de Dona Maria, mãe de Edilene e de Jonas. Acabei me

apaixonando por Edilene, uma menina negra, magra e alta. Mas a paixão não passou

de simples admiração, pois ela não me deu a menor bola e terminei por esquecê-la,

apesar de Edilene ter me inspirado algumas poesias.

A essa altura, eu já assumia praticamente todas as despesas da casa. O salário

que recebia já me possibilitava sobreviver com minha mãe e meus sete irmãos, e

ainda dava para pagar o aluguel, a água e a energia elétrica. Passei a fazer um

planejamento de compras para o mês inteiro.

Comprávamos uma caixa enorme de ovos, com mais ou menos umas 150

unidades, além de cevada, feijão, arroz e açúcar em grande quantidade. Depois

dividíamos as mercadorias em pequenos pacotes para consumo diário. Não

poderíamos comer mais de cinco ovos por dia, para que a comida durasse até o final

do mês. Trancava tudo dentro de um pequeno armário e carregava a chave.

Diariamente, eu o abria, pegava a "ração" do dia e entregava-a à minha mãe. Quira

arrombava o armário pela parte de trás e pegava mais comida do que o estipulado

para a "ração diária", e eu tinha conhecimento disso. Mas fingia não saber de nada.

O problema era que, em certos meses, a comida acabava antes do previsto e eu tinha

que conseguir dinheiro para comprar mais. A cevada era usada misturada ao pó de

café, para que este durasse mais tempo. Tinha um gosto muito ruim, mas, apesar de

eu também não gostar, fingia achá-la gostosa, para não ensejar reclamações por

parte de meus irmãos. Com o tempo, todos foram se conscientizando que era melhor

comer pouco mas comer todos os dias do que comer muito em um único dia e ficar

com fome nos dias seguintes.

Nessa época, eu trabalhava no Frisuba e sempre trazia sobras de comida. A

refeição era quase sempre à base de carne na empresa, e, como eu não conseguia

comer tudo, levava o restante para casa. Além disso, meus colegas de trabalho

também separavam parte da refeição deles e me davam. Tinha também as doações

que o gerente de setor fazia: vez ou outra, ele separava úbere bovino ou fígado e

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distribuía entre os funcionários. Era o dia em que eu e minha família comíamos

melhor, pois significava fartura em casa.

***

Tem uma rua no bairro do Pau Ferro, cujo nome oficial é avenida Senhor do

Bonfim. Há também nessa rua uma igreja católica de mesmo nome, dedicada ao

santo. Acontece que, a partir da igreja, em direção ao atual presídio, a rua não era

calçada, era cheia de lama e de esgoto. Este trecho era conhecido como "Rua da

Bosta", por causa do mau cheiro e dos esgotos que corriam a céu aberto. E, mesmo

depois de a rua passar a ter saneamento básico e calçamento de paralelepípedo,

continuou a ser chamada pelo nome de "Rua da Bosta". Ali comprei um casebre de

dois metros de largura por dois metros e meio de comprimento, colado ao muro do

Parque de Exposições Luiz Braga. A casa era ridícula: baixinha, apertada, sal

minando pelas paredes, chão arrombado e um quintal minúsculo. Era muito quente,

por causa do sol que ficava no poente. Para minha felicidade, não cheguei a morar

nessa casa. Comprei-a somente a título de investimento, depois revendi.

Estante com livros velhos

Eu colecionava livros, revistas, jornais e todo tipo de publicações que

encontrava nos lixos ou que alguém me doava. Mandei fazer um carimbo com os

dizeres "Biblioteca Particular Valdeck Almeida de Jesus" para marcar todos os livros

que possuía. Eram tantos que abarrotavam a imensa estante que tínhamos na sala.

Muita gente me pedia livros emprestados, tanto para leitura como para trabalhos

escolares. Com o tempo, fui doando os livros para a Biblioteca Municipal e para

quem me pedisse. Quando nos mudamos do bairro Pau Ferro para o bairro

Mandacaru, não havia espaço suficiente para guardar todos os livros na nova casa.

Mandei, então, meus irmãos levarem uma boa quantidade de revistas e livros à

Biblioteca Municipal para doação.

Até o ano de 2003, eu acreditava piamente que esses livros haviam sido

realmente entregues. Mas, por ocasião de uma viagem que fiz a São Paulo, em 2004,

em conversa com meus irmãos, onde falamos sobre mal-entendidos e pedimos

desculpas uns aos outros pelo que pudéssemos ter feito de errado, fiquei sabendo de

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tudo. Confessaram que rasgaram e jogaram todos os livros e revistas de cima da

ponte do Mandacaru. Foi um choque para mim, mas não havia muito o que fazer. O

tempo já havia passado e meus irmãos já eram adultos. Não fazia sentido brigar por

um deslize ocorrido tantos anos atrás. Já não tinha importância.

Casa própria - o sonho realizado

Ainda morava na casa da travessa Teixeira de Freitas e trabalhava no Frisuba.

"Néia, dente de barrão" continuava a visitar minha casa, embora não estivéssemos

mais juntos como antes. Certo dia, vi o anúncio de um loteamento e fui visitá-lo

pessoalmente. Era um bairro novo que começava a se formar à margem direita do

rio de Contas: o loteamento Itaygara, no bairro Mandacaru. O vendedor, Bêu,

convenceu-me de que se tratava de um ótimo investimento, que o bairro, em pouco

tempo, seria habitado por muita gente, que teria praças, linhas de ônibus, telefone,

água encanada e luz elétrica. Não fiquei muito animado, por causa do preço e

também porque eu tinha medo de ficar desempregado e perder todo o dinheiro

investido no pagamento do lote.

O vendedor, muito esperto, pensando apenas na comissão dele, que equivalia

ao valor da primeira prestação, acabou virando o jogo e me vendendo o lote 12 da

quadra 07. Comprei e voltei feliz da vida para casa. Ele tinha feito um plano de

pagamento, de forma que as prestações fossem reajustadas a cada seis meses, de

acordo com o aumento do salário mínimo, para não comprometer minha renda.

Mas o acaso me favoreceu ainda mais. Assim que José Sarney assumiu a

Presidência da República, foi criada a "tablita", tabela que deflacionava os preços

das compras realizadas antes de sua vigência. E assim acabei pagando várias

parcelas do terreno de uma vez só, já que, a cada mês, o preço diminuía. Foi minha

salvação. Esta medida garantiu-me adquirir a primeira propriedade, o terreno onde

eu e meus irmãos construiríamos nossa primeira casa.

Tentei conseguir ferramentas emprestadas para construir a casa: picareta,

enxada, formão e colher de pedreiro, mas ninguém emprestou. Tive que comprar

todo o material necessário para as obras de construção. Todos os dias, eu ia

trabalhar no Frisuba e meus irmãos saíam do Pau Ferro para o Mandacaru para

limpar o terreno, carregar água do rio de Contas e bater adobes de barro. Isto

significava uma maratona de mais de dez quilômetros, percorridos a pé, sob um sol

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escaldante de 40 graus ou mais. Era de dar pena, eles mal conseguiam carregar a

picareta por causa do peso. Eu não podia ajudar todos os dias, pois só chegava do

trabalho no final da tarde e, além disso, estudava à noite. Mas, nos finais de semana,

eu ia sempre ao terreno ajudar na construção da casa. Fizemos tudo sozinhos, desde

as fundações até a colocação das telhas. Todos os dias eu ou um de meus irmãos

cavava a terra, cessava, buscava água no rio, fazia o barro, pisava o barro, batia os

adobes e os deixava secando ao sol. No dia seguinte, retornávamos para continuar o

trabalho e para recolher e arrumar os adobes prontos. Para nossa surpresa,

verificávamos que muitos dos adobes eram pisados e destruídos por vândalos.

Xingávamos muito, esbravejávamos, mas não podíamos fazer nada além de

aproveitar o barro dos adobes destruídos para fazer novos adobes.

O processo de construção da casa foi bastante demorado, pois era eu quem

comandava tudo e meu tempo era limitado somente aos finais de semana. Mas, de

adobe em adobe, as paredes iam subindo, subindo... Até que, num belo dia, concluí a

obra, após colocar porta (a única), janela (também única), madeiras e telhas no topo.

Imediatamente, mudamos-nos para a "nossa" casinha.

Juizado de Menores

Resolvi colocar todos os meus irmãos sob minha guarda e responsabilidade,

perante a justiça comum, a fim de cadastrá-los como meus dependentes no INSS e

para que eles pudessem ter acesso a consultas médicas e internamentos. Aproveitei

esta deixa para obrigá-los a serem mais responsáveis na vida e também nos

empregos ou trabalhos que encontrassem. Todos eles sempre trabalharam, seja

vendendo picolés, seja em olarias carregando adobinhos, seja limpando quintais ou,

ainda, cortando e preparando papéis para cigarro de palha numa gráfica. Mas, por

outro lado, sempre encontravam uma desculpa para sair do trabalho. Ora diziam

que o patrão falou alto, ora diziam que não agüentavam a jornada, pretextos não

faltavam.

Certo dia, chamei-os todos e dei uma ordem: teriam de sair para procurar

trabalho e só poderiam voltar para almoçar caso encontrassem algum. Ao meio-dia,

chegou o primeiro, Dida, o mais gaiato de todos, e pediu que minha mãe botasse seu

almoço, e ela mandou que falasse comigo antes. Mas Dida insistiu para que

colocasse sua comida, já que havia encontrado trabalho, juntamente com os demais.

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Minha mãe me chamou e eu conversei com Dida, que confirmou já estar

trabalhando. Dizia ter muita fome, por causa do esforço, uma vez que o trabalho era

numa oficina mecânica, como aprendiz de chapista ("martelinho", como se diz em

São Paulo). Comentou também que, como aprendizes, só iriam receber salário

depois de um determinado tempo. Falei então com minha mãe para servir o almoço

de todos os meus irmãos.

Evidentemente, eu não os deixaria com fome, caso não houvessem

encontrado trabalho. Mas precisava tomar aquela atitude para fazê-los "acordar"

para a vida. Além da ameaça de ficarem sem almoço, havia ainda uma outra. Falei

que entregaria todos ao Juizado de Menores (em Jequié existe uma Escola

Profissional de Menores, onde residem crianças e adolescentes rebeldes e

infratores), caso não trabalhassem e fugissem da responsabilidade. Graças a Deus,

hoje todos ganham a vida como chapistas, exceto o Mi, que não se adaptou a esse

tipo de trabalho e já trabalha há dez anos como porteiro de um grande condomínio

em São Paulo.

Foram longos anos de trabalho até podermos entrar na casa e sorrirmos

felizes por termos, enfim, onde morar. Uma casa própria, construída com as

próprias mãos. Foi uma experiência muito boa, uma grande sensação de liberdade.

Desde a infância, só havia morado em casas de aluguel e, finalmente, naquele

momento, já com meus 22 ou 23 anos de idade, pude desfrutar da alegria de morar

numa casa sem precisar me submeter às imposições de ninguém. A casinha media

três metros de largura por seis de comprimento. Era bem baixinha e tinha somente

dois cômodos. Posteriormente, dividimos a sala com uma meia parede e fizemos

uma pequena cozinha. Assim, passamos a morar em nossa casinha, após

entregarmos a casa de aluguel. Foi a primeira moradia a ser erguida e habitada no

local. Nas águas do rio de Contas tomávamos nossos banhos. Morávamos minha

mãe, eu, Quira, Mi, China, Dida, Tó, Gal e Nete. Depois que nasceu Murilo, meu

primeiro sobrinho, filho de Quira com Chico, a casa, que já era pequena, ficou

menor ainda. O calor era imenso e não havia ainda água encanada no bairro. Essas

águas também serviam para lavar as roupas, as louças, e para beber e cozinhar,

depois de devidamente fervidas e filtradas.

Com o passar do tempo, fui construindo outra casa maior, no mesmo terreno.

Esta outra casa foi planejada com mais cuidado e tinha dois quartos, duas salas, uma

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cozinha e um banheiro. Os adobinhos cozidos foram comprados com muito

sacrifício. Sempre que possível, comprava uma carroça de adobinhos de barro

queimado, em cerâmica cozida. Acabei de construir a segunda casa e, quando ela

estava já em ponto de telhado, negociei-a com Chico, meu cunhado. Ele me vendeu a

casa onde morava com Quira e seus três filhos: Murilo, Rodrigo e Delma (ver

capítulo "Casa da Rua João Santana").

Casamento com Márcia

Quase em frente à nossa casa, morava uma moça chamada Márcia, que era

casada com Zé Docílio, com quem tinha uma filha chamada Bete. Márcia era muito

bonita. Fazia um tipo cigana, era alta e do signo de Leão. Márcia flertava comigo,

vivia me chamando para conversar e sair com ela. Saímos por várias vezes e então

começamos a namorar. Depois, passei a dormir em sua casa, quando o marido

viajava. Uma vez, dei uma surra em minha irmã Nete porque pedi a ela que levasse

um recado a Márcia, dizendo que iríamos para a Barragem de Pedras tomar banho.

Nete simplesmente andou até o meio da rua e deu o recado aos gritos. Fiquei muito

envergonhado, pois nosso namoro ainda não era de conhecimento público e era de

todo o meu interesse que continuasse secreto por mais algum tempo. Chamei Nete e

dei-lhe uma surra que ela jamais esqueceu.

Acabei me casando com Márcia. Fizemos uma festinha na casa de meus

sogros, Judite e Acetildes, após a cerimônia de casamento, realizada no Cartório de

Paz de Yolanda Bastos. Várias fotos foram tiradas, mas como eu não tinha dinheiro

para a revelação, nunca saíram do rolo de filme.

Fui morar com ela numa casinha do bairro Agarradinho. O bairro tinha esse

nome porque as casas eram coladas umas às outras. Márcia ficava a noite inteira

assistindo televisão. Ela ficava acordada a noite inteira para me chamar bem cedo,

para poder pegar o ônibus que me levaria ao trabalho. Comprava quilos de milho

para fazer pipoca. Comia pipoca a noite inteira diante da TV.

Na empresa Tiradentes, onde Zé Docílio, ex-marido de Márcia, trabalhava e

onde eu passei a trabalhar como cobrador de ônibus, quando os motoristas

souberam da notícia que eu estava casado com a mulher de Zé Docílio, a resenha

comeu. Todos os dias eu tinha que aturar uma gozação do pessoal. Tinha um

motorista, chamado Bastos, com o qual eu viajava muito fazendo a linha

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Jaguaquara-Maracás, que costumava dizer que eu tinha "olho de Sapo Boi" e que

nunca deixaria que eu botasse os olhos em sua mulher, temendo que eu a atraísse

para mim e ficasse com ela pra sempre. Em tom de escárnio, meus colegas de

atividade perguntavam-me se, caso eu fosse escalado para trabalhar com Zé Docílio,

viajaria com ele ou perderia o dia de trabalho. E eu dizia serenamente que

trabalharia com ele sim. Felizmente nunca fui escalado para trabalhar junto com ele,

e escapei de um constrangimento muito grande.

O casamento se arrastou nas dificuldades que eu enfrentava. Mesmo casado,

ajudava a minha família. Três anos depois, terminei meu casamento com Márcia.

Não sobrou uma lembrança sequer da festa de casamento, até o rolo do filme que

não foi revelado ela abriu e queimou.

Muitos fatores contribuíram para o fim de nosso relacionamento, mas creio

que o mais importante deles tem origem no seguinte fato: estava eu desempregado e

viajei com ela para Salvador, a fim de procurar trabalho. Demos sorte. No mesmo

dia em que chegamos à capital, compramos o jornal e respondemos a um anúncio

que procurava um casal para tomar conta de uma mansão no rio Vermelho. Fomos

direto para a Cardeal da Silva, onde ficava a mansão. Era uma casa imensa, com um

quintal cheio de plantas frutíferas. Morava ali apenas um casal de idosos, cujos

filhos estavam em Minas Gerais tentando lançar uma banda musical. O senhor era

hipertenso e a senhora diabética. A alimentação dos dois era toda controlada pela

dona da casa, que fazia questão de preparar a comida. O trabalho de Márcia seria

manter a casa limpa. E eu teria que cuidar da piscina e do quintal. Toda a produção

de frutas seria para o nosso consumo. Ficaríamos instalados numa casa nos fundos

do quintal, toda mobiliada. Eu ganharia um salário mínimo e Márcia outro. As

referências que dei de ter trabalhado no hotel de César Borges, em Jequié, foram

suficientes para conseguirmos o trabalho. Acertamos tudo e ficamos de voltar no dia

seguinte para trabalhar. Ao sairmos, já no portão da mansão, Márcia começou a

resmungar que o salário não daria para sobreviver. Eu fiquei espantado com aquilo.

Teríamos casa para morar, mobília completa e ainda dois salários para as nossas

despesas. E ainda poderíamos continuar morando juntos, vivendo nossa vida de

casados. Márcia dizia que seu salário seria para comprar brincos, chocolates e coisas

de enfeitar, enquanto o meu seria destinado às despesas da casa. Revoltei-me e

discuti feio com ela. Furioso, disse que iria à rodoviária comprar minha passagem de

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volta para Jequié e não mais voltaria a procurá-la. Ela não acreditou. Mas foi

exatamente o que fiz: fui direto ao guichê da empresa de ônibus, comprei minha

passagem e fui embora e nunca mais voltei pra ela.

Casa da Rua João Santana

Era uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, além de uma

pequena área de serviço, localizada no Jequiezinho. Paguei com o terreno do

loteamento Itaygara e com a casinha de adobe cru que havia construído

inicialmente, mais os adobinhos da casa maior, construída depois, ficando o restante

para pagamento em prestações mensais. A única exigência imposta por Chico foi

derrubar a casa grande e separar os adodinhos para ele, o que aceitei prontamente.

Em poucos dias a casa estava derrubada e os adobinhos empilhados.

A nova casa tinha tudo: móveis, lençóis, panelas, pratos, colheres, tudo. Tinha

até linha telefônica instalada. Passamos a morar ali logo e adoramos a nova

residência, que nos dava muito conforto.

Quase um ano depois, comprei um casarão na mesma rua e todos se

mudaram para a nova casa, exceto eu, que preferi ficar morando sozinho por um

tempo. Mas meus irmãos, que tinham a chave da minha casa, sempre apareciam por

lá para tomar banho e deixavam tudo sujo. Preferiam tomar banho lá porque o

chuveiro era elétrico, luxo que não havia na casa em que moravam. Acabei logo com

a festa deles, por causa da sujeira que faziam em meu banheiro.

Eles trabalhavam como chapistas em oficinas mecânicas e chegavam sempre

muito sujos de graxa, óleo e poeira de oficina, deixando todo o banheiro encardido.

Só que, a despeito do meu protesto, continuaram a usar o banheiro. Arrombavam a

janela e entravam na casa, sem minha permissão, nos horários em que eu me

encontrava ausente. Isso acabou resultando em algumas brigas. Dida e Tó

discutiram feio comigo, e ficamos um ou dois meses sem nos falar, por conta disso.

Depois fizemos as pazes, como é próprio dos bons irmãos.

Trabalho na empresa Tiradentes

Minha experiência como cobrador da Auto Viação Tiradentes foi marcante e

merece um capítulo especial. Eu fui contratado para trabalhar como cobrador

urbano. Acontece que, no contrato de trabalho firmado com a empresa, não havia

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cláusula específica que rezasse que o funcionário admitido como cobrador "urbano"

estivesse desobrigado de trabalhar como cobrador "intermunicipal". E isso foi o que

mais atrapalhou minha vida escolar, pois os horários de trabalho nem sempre eram

compatíveis com os horários da escola. Eu estudava à noite, das 19 às 22 horas, de

segunda a sexta-feira. E, para complicar ainda mais, o chefe do tráfego, que fazia a

escala de trabalho, sempre se "esquecia" que eu estudava à noite e me escalava

freqüentemente para trabalhar no horário das 14 às 23 horas. Mas eu conseguia

driblar o tempo e as adversidades. Pegava os assuntos das aulas com meus colegas e

estudava durante o trabalho, sentado na cadeira de cobrador. Estudava escondido,

pois, se um cobrador fosse pego pelo fiscal fazendo esse tipo de coisa, era demitido.

Quando era escalado para trabalhar nas linhas intermunicipais, o problema ficava

ainda maior, pois tinha de dormir nas cidades de destino da viagem, sem falar na

questão da hospedagem e alimentação, que não eram pagas pela empresa.

Eu tinha comprado uma bicicleta para facilitar meu descolamento para o

trabalho e para a escola. Saía pedalando para a garagem nos dias em que a escala de

trabalho me permitia ir à aula após o serviço. Por várias e várias vezes, quando

chovia, chegava à escola todo sujo. A garagem da empresa ficava no bairro

Mandacaru, onde a maioria das ruas ainda era de chão batido ou de cascalho.

Quando chovia, tudo virava um lamaçal enorme, e o pneu da bicicleta respingava um

bocado de lama em mim.

Toda vez que eu viajava, levava uma marmita de comida, que nem sempre

chegava em bom estado ao final da viagem. Aí, além de passar a noite com fome,

ainda tinha de dormir dentro do veículo, nas poltronas do fundo, que eram as menos

desconfortáveis. Lembro-me de várias viagens para Barra da Estiva, em que dormi

com fome e frio, porque a temperatura ali é sempre muito baixa, sobretudo à noite,

devido à sua localização no alto da Chapada Diamantina. Uma vez, levei uma

marmita que azedou durante a viagem. Ao pararmos em Maracás para fazer um

lanche, comi todo o frasco de pimenta e a farinha que estavam sobre a mesa da

lanchonete.

Cansei de dormir dentro do veículo nas cidades. Em Salvador, cheguei até a

dormir dentro do bagageiro do ônibus, pois o calor era insuportável dentro do carro

e as muriçocas faziam uma festa. Com o bagageiro aberto, pelo menos, a

temperatura ficava mais agradável. De madrugada, o segurança da rodoviária me

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acordou, achando que eu era algum assaltante ou morador de rua. Tive que me

identificar para que me deixasse em "paz". Em Manoel Vitorino, passava a noite

morrendo de medo, pois o ônibus estralava demais, e eu acordava sobressaltado

pensando que era alguém tentando entrar para roubar o dinheiro da féria. Em

Cravolândia, cidade próxima a Santa Inês, cheguei a pedir comida a um cobrador

que morava na cidade e viajava de carona voltando para casa. Em Iramaia, morria

de frio e fome, ao dormir no veículo. Em Nazaré, havia uma pousada de preço

compatível com meu salário, onde pernoitei algumas vezes. A linha fazia o trajeto de

Jequié a Bom Despacho, mas o ônibus ia somente até Nazaré. Eu dormia e jantava

na pousadinha, juntamente com o motorista. O problema era que ali os cobradores

eram roubados durante a noite. Para me proteger dos ladrões, uma vez coloquei o

dinheiro da féria embaixo do travesseiro. A estratégia foi em vão. Pela manhã,

percebi que faltava quase metade do dinheiro, mas nada pude fazer, não havia como

provar o roubo. Daquele dia em diante, resolvi deixar o dinheiro da féria escondido

dentro de uma das poltronas do ônibus. Foi a solução encontrada para evitar os

roubos.

Passei aperto também em Itaquara. O ônibus que rodava para aquela

cidadezinha era o pior carro da frota e demorava o dobro do tempo para fazer a

viagem. Quando chegava à cidade, o veículo era estacionado numa praça e o

motorista ia para sua casa, sem sequer me convidar para tomar um copo de água.

Não restava alternativa senão passar a noite inteira dentro do carro, esperando o dia

amanhecer para retornar a Jequié.

Nas viagens a Valença, o ônibus retornava no mesmo dia. Saía de Jequié às 5

horas da madrugada, chegando a seu destino ao meio-dia. Ali eu tinha que varrer o

interior do veículo, almoçar minha quentinha e esperar pelo horário do retorno, às

13 horas, com chegada em Jequié prevista para 21 horas aproximadamente. Ao

chegar, ainda perdia um bom tempo prestando contas e, até sair da garagem, já não

compensava mais ir à escola.

Quando eu trabalhava na linha Maracás-Jaguaquara, saía de Jequié pela

manhã, por volta das 5 horas da madrugada, e fazia diversas vezes o percurso entre

as duas cidades. Só retornava à garagem no final da tarde, lá pelas dezoito ou dezoito

e trinta horas. Nesses dias, eu ia direto para a escola tentar pegar algum assunto dos

cadernos dos colegas. Essa viagem era de percurso curto e o cobrador tinha de usar

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mais de cinqüenta talões de passagens, cada um de uma cor. Era uma maluquice da

cabeça do dono da empresa, Dalmar, com o objetivo de se precaver de fraudes por

parte dos cobradores. Eu ficava mais atento às cores do talão que tinha de usar do

que a qualquer outra coisa. Passava o dia inteiro tentando recapitular: agora é o

talão azul, percurso de ida; agora é o talão rosa, percurso de volta, e assim por

diante.

Quando trabalhava nas linhas urbanas, no horário da manhã (das 6 às 14

horas), sempre prestava contas no escritório da empresa, ao retornarmos à garagem.

Mas quando trabalhávamos no horário da tarde (das 14 às 23 horas), contávamos o

dinheiro, preenchíamos um formulário e colocávamos tudo dentro de um malote,

que era fechado com um cadeado. Jogávamos esse malote num buraco que dava

para a tesouraria e levávamos a chave do cadeado para casa. No dia seguinte, o

cobrador entregava a chave a um funcionário da tesouraria, que abria o malote,

conferia o dinheiro e fazia a prestação de contas do cobrador. Quando o cobrador

estava escalado para viajar de madrugada, tinha que deixar a chave amarrada ao

malote. Muitas vezes faltava dinheiro nesses malotes, e a diferença era debitada na

conta de cada cobrador. Sempre desconfiei que alguém mais possuía cópias dessas

chaves e tirava o dinheiro durante a noite. Mas, como sempre, nunca podíamos

comprovar nada.

Uma vez, um cobrador amigo meu colocou dentro do malote uma nota de mil

cruzados novos, e a nota simplesmente desapareceu. Fui testemunha de que ele

tinha colocado a cédula lá dentro, pois foi a primeira nota de mil cruzados novos que

ele recebeu e nenhum outro cobrador havia recebido uma dessas antes. Ele havia

mostrado a cédula a todos os colegas do turno da noite, na hora da prestação de

contas na garagem. Era uma nota diferente e todo mundo ficou curioso pra ver. E eu

acompanhei a prestação de contas dele. O sumiço de dinheiro acontecia também

com os cobradores que trabalhavam nas linhas intermunicipais.

Com os cobradores dos ônibus urbanos, acontecia ainda um outro fato

estranho: toda noite, ao sair do veículo, antes de prestar contas, cada cobrador

anotava a numeração da catraca, que indicava a quantidade de passageiros do seu

turno de trabalho, a fim de calcular a quantidade de dinheiro apurada. No dia

seguinte, quando o conferente fazia a verificação, a numeração das catracas nunca

coincidia com a numeração que o cobrador tinha anotado na noite anterior. Ou seja,

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alguém girava a catraca várias vezes, a fim de que o cobrador pagasse as passagens

extras.

Havia uma linha que rodava do Parque de Exposições até a Rodoviária. Mas o

final dessa linha não era exatamente na rodoviária, e sim dois pontos adiante.

Alguns passageiros iam para o Parque de Exposições e tomavam o ônibus em um

dos pontos que ficavam antes do final de linha na Rodoviária. Dalmar, o dono da

empresa, queria que evitássemos pegar passageiros nessas condições, e instruiu-nos

a orientá-los para tomarem o ônibus quando este estivesse retornando. Uma vez, um

determinado passageiro se recusou a descer do ônibus; pagou a passagem e sentou-

se. Dalmar vinha seguindo o ônibus, de carro, passou à sua frente, obrigou o

motorista a parar, entrou e rodou a catraca, para que eu pagasse a passagem extra

do passageiro. O passageiro protestou, mas Dalmar explicou que o cobrador - eu, no

caso - era quem pagaria a passagem.

As linhas intermunicipais da empresa Tiradentes faziam, em sua maioria,

trajetos para cidades distantes, cujo acesso era por estradas de chão, que

atravessavam o sertão. Por esta razão, era muito comum um pneu furar. Nessas

oportunidades, a melhor opção era fazer o "furo" na primeira borracharia

encontrada naquele deserto. Mas para o dono da empresa o preço cobrado pelo

conserto do pneu furado era sempre muito caro: cinqüenta centavos. Quando

trazíamos as notas fiscais, ele se recusava a dar o "visto", para que o valor não fosse

ressarcido ao cobrador. Cheguei a acumular mais de dez notas fiscais. Toda vez que

encontrava Dalmar na garagem da empresa, ele alegava que só poderia tratar

daquele tipo de assunto em seu escritório, que ficava no interior da garagem. E

quando eu conseguia entrar no escritório, após horas de espera, Dalmar dizia que só

poderia atender dentro da garagem. Eu ficava num bate-e-volta sem fim.

Acabei colocando um fim nessa novela, à minha maneira. Numa viagem para

Valença, num sábado, com o ônibus cheio de vendedores ambulantes, tive a chance

de me vingar. O pneu do carro furou na cidade de Mutuípe e o motorista parou o

carro numa borracharia na saída da cidade. Eu não paguei para fazer a "força". E o

motorista falou para os passageiros que o ônibus não seguiria viagem enquanto eu

não pagasse pelo serviço. Contei minha versão para os passageiros, que me

apoiaram e disseram que, se o ônibus não seguisse viagem, eles iriam quebrar o

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carro. O motorista ligou para a garagem e de lá ordenaram que eu pagasse pelo

"furo" do pneu. Não paguei. O motorista pagou do próprio bolso.

Ao retornar para a garagem, meu nome não constava na escala de serviço e

sim indicado para "comparecer ao escritório" e falar com o gerente. Perdi meu dia de

trabalho. Informei ao gerente que não havia pago nem pagaria mais por "furos" de

pneus de ônibus, já que o proprietário da empresa não havia me ressarcido pelas

notas fiscais anteriores.

Voltei ao trabalho e, no dia seguinte, fui interceptado pelo Sr. Dalmar, no

meio da rua, que se referiu a mim como "o cobrador que não paga os ‘furos’ dos

pneus". Falei a ele que não só não havia pago como não pagaria nunca mais, até que

ele assinasse todas as notas fiscais que eu acumulara. Ele retrucou, dizendo que era

muito caro uma força de pneu por cinqüenta centavos, etc. e tal. Respondi-lhe que

era impossível escolher onde levar o pneu para conserto, uma vez que no meio do

deserto não dispúnhamos de muitas opções. Ele então pegou todas as notas e

assinou. Daquele dia em diante, voltei a pagar por todos os outros "furos" de pneus,

e ele passou a assinar as notas sem hesitar.

Parecia haver uma combinação entre certos motoristas e a fiscalização da

empresa para induzir os cobradores a fraudarem os talões de passagem, de modo

que obtivessem vantagens pessoais destinadas a cobrir almoços e diárias de hotel

nas cidades onde dormissem. Mas comigo o truque nunca funcionou, sempre recusei

essas investidas. Não era difícil perceber que se tratava de "armação", pois os

motoristas ditos "durões" e mais fiéis à empresa eram os que davam as melhores

dicas de como roubar. E, para confirmar minhas suspeitas, sempre havia fiscais na

estrada quando eu viajava com esses motoristas. Era como se fosse um ardil, uma

cilada preparada para me pegar em contradição ou, como se diz popularmente, "com

a boca na botija". A política da empresa era a de demissão por justa causa, e a

gerência fazia de tudo para que os funcionários acumulassem advertências e

suspensões até o limite legal, a fim de chantageá-los com o pedido de demissão

voluntária ou forçada, esquivando-se assim de pagar os direitos trabalhistas. Jamais

algum fiscal conseguiu me pegar cometendo erros, pois sempre fui muito correto em

meu trabalho. Mesmo que a situação me obrigasse a sentir fome e a dormir dentro

dos ônibus, nunca me vali dessas prerrogativas para lesar a empresa.

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Testemunhei episódios engraçados como cobrador. Um, particularmente,

merece ser contado aqui. Uma vez entraram dois passageiros, cada qual com um

balaio enorme. Todos os passageiros tinham direito a um volume no bagageiro do

ônibus, sem pagar taxa alguma por isso. Coloquei esses dois balaios no mesmo

bagageiro, para ocupar menos espaço. Quando o fiscal viu que os dois balaios

estavam com o tíquete "gratuito", achou que eu tivesse recebido pagamento por um

dos balaios, que havia colocado aquele tíquete para embolsar o dinheiro e não

vender o tíquete "pago". Entrou no ônibus e perguntou de quem eram os balaios.

Cada um dos respectivos donos levantou a mão. Muito sem graça, o fiscal foi

embora. Era comum que os fiscais aparecessem várias vezes no mesmo dia, para

tentar surpreender o cobrador. Comigo sempre perderam seu tempo.

João, o controlador de tráfego da empresa, era quem fazia a escala de

trabalho. Ele sabia que eu estudava à noite e que não poderia ficar fazendo viagens

intermunicipais. Ainda mais porque a empresa não fornecia tíquete refeição nem

providenciava local para dormidas nas cidades de destino. Eu era tido como o

cobrador mais chato da empresa, pois me mostrava inconformado com aquela

situação desumana, e não guardava este inconformismo somente para mim. Abria o

verbo, falava com os outros cobradores, reclamava com os fiscais, com o gerente e

com o controlador de tráfego, apesar de nunca ter tido um retorno ou uma solução.

Um belo dia, numa sexta-feira, quando acabava de chegar da viagem e prestar

contas na tesouraria, fui informado que um ônibus da linha Jequié-São Miguel das

Matas, percurso de cerca de 150 km, estava prestes a sair, com previsão de ficar

naquela cidade todo o final de semana, retornando somente na segunda-feira. O

gerente da empresa me disse que o cobrador do horário tinha "queimado a escala".

"Queimar escala" era uma gíria usada para designar a falta do funcionário escalado

para um determinado serviço. E, como nesse dia não havia cobrador de plantão na

garagem, a solução óbvia seria: eu viajar com fome, permanecer todo o final de

semana em São Miguel e retornar na segunda-feira. Aproveitei aquela oportunidade

para protestar. Disse a João, o controlador de tráfego, que não iria viajar. Ele

ameaçou me demitir ou me colocar "fora de escala" durante todo o final de semana,

o que significaria perder o salário daqueles dias. Disse-lhe que fizesse o que achasse

melhor, em sua opinião. Ele veio então tentar me convencer a fazer a viagem,

dizendo que eu poderia ter almoço e jantar durante o serviço, que autorizaria as

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notas fiscais e tudo mais. Mas, desconfiado, recusei, pois em outras oportunidades já

havia trazido notas que ele nunca assinou. O máximo que me propus a fazer pela

empresa foi ir até a rodoviária e sair com o ônibus de lá, para evitar que o então

Departamento Estadual de Transportes e Terminais multasse a empresa por atraso

na saída do veículo. Ali, pedi ao motorista que levasse o carro para a garagem,

dizendo que João providenciaria um outro cobrador para seguir viagem. Na

garagem, desci do ônibus, sentei-me à porta da entrada principal e não mais voltei

ao veículo para seguir viagem.

Estava determinado a dar uma lição na empresa. Minha atitude deve ter

ficado para a história da Auto Viação Tiradentes e para seu proprietário, Dalmar

Antônio de Souza.

Numa das viagens que fiz para Nazaré, conversava com um passageiro a

respeito da forma como a empresa tratava seus funcionários. Ele então me

aconselhou a pedir demissão e tentar ganhar a vida em Rondônia.

Peguei todos os seus endereços, inclusive telefones de contato, e guardei. Ele

estava indo a Nazaré comprar material para candomblé e fazer consultas com os pais

e mães de santo da cidade. Depois dessa conversa, eu já tinha tudo planejado para

viajar para Rondônia; sabia, inclusive, todo o roteiro que deveria fazer: de Jequié

iria até Feira de Santana para pegar um ônibus até Brasília, de onde pegaria um

outro para Cuiabá, e outro de Cuiabá para Rondônia. Ao chegar lá, tomaria um táxi

na rodoviária e seguiria direto para a casa da pessoa que o passageiro me indicara,

que me apresentaria ao prefeito da cidade e conseguiria trabalho para mim.

Cansado de suportar o massacre que a empresa promovia contra seus

funcionários, resolvi pedir demissão. Dirigi-me ao gerente geral, Édson, e

comuniquei-lhe que não pretendia mais continuar na empresa. Ele me aconselhou a

procurar o dono da empresa, Dalmar, para resolver a questão. Fiquei quase uma

semana indo e voltando da empresa, todos os dias, tentando uma "audiência" com a

"Majestade", em vão. Quando vi que não conseguiria falar com ele, decidi abandonar

o trabalho. Fiquei um mês sem comparecer ao batente. Quando voltei e reencontrei

o gerente, ouvi dele que a empresa não tinha mais interesse em meus serviços e que

iria me despedir, mas que eu teria de escrever uma carta pedindo demissão. Não

titubeei e escrevi a tal carta, sem me importar muito com o fato de que perderia

parte dos meus direitos trabalhistas com este procedimento. Entreguei a carta ao

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gerente no dia seguinte, e nesse mesmo dia fui demitido. Era a minha redenção para

uma nova vida. Meus planos de ir para Rondônia ainda estavam de pé. Já havia

começado a preparar as sacolas para a viagem.

Antes, porém, de viajar para tão longe, resolvi tentar a sorte em Salvador. Ao

sair da empresa de ônibus, acompanhei meu irmão Valmir, que estava trabalhando

numa serraria em Salvador, junto com meu ex-sogro Acetildes, pai de Márcia.

Quando cheguei à serraria, localizada nas proximidades do aeroporto da cidade,

percebi que aquele tipo de trabalho não era para mim. Para minha sorte, no dia em

que comecei a trabalhar, a serraria estava sendo transferida para outro local, as

madeiras e as máquinas estavam sendo levadas de caminhão. O que vi foi o

suficiente para me convencer de que aquele não era, definitivamente, o tipo de

trabalho mais adequado para o meu porte físico. Tentei ajudar na mudança,

pegando algumas madeiras, mas acabei desistindo, com as mãos sangrando e o

corpo suado e trêmulo de fraqueza. Na hora em que o pessoal pegava as máquinas e

as colocava sobre o caminhão, eu fingia que ajudava. Quando senti que não

agüentava mais o serviço, parei, peguei minhas coisas e voltei para o interior.

Mesmo desempregado e com promessa de emprego certo em Rondônia, fui adiando

um pouco a viagem. E, nesse meio tempo, consegui trabalho no Hotel Itajubá, onde

trabalhei por três meses como recepcionista. O hotel é de propriedade de Waldomiro

Borges, pai de César Borges, ex-governador da Bahia e atual senador da República.

Não me adaptei muito bem ao horário de trabalho, que ia das 22 às 7 horas da

manhã. Quase não conseguia dormir ao chegar em casa, pois, além de não gostar de

dormir durante o dia, o calor era insuportável. Ligava um ventilador pequeno, mas,

mesmo assim, o sono não vinha. Além disso, meus irmãos e minha mãe

conversavam alto o tempo todo, impedindo que eu relaxasse.

Certa vez, um casal hospedou-se no hotel somente por uma noite. Na opinião

do gerente, teria sido uma artimanha para usarem o estabelecimento como motel.

Fui demitido por ter autorizado a entrada do casal - como se eu pudesse adivinhar o

que as pessoas iriam fazer dentro de um quarto de hotel. Segundo o gerente, aquele

"hóspede" já era conhecido no hotel por tal prática, tendo ali se hospedado, em

outras ocasiões, com a mesma finalidade. Por esse motivo, o gerente achou por bem

me despedir sem justa causa.

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Mais do que nunca o meu projeto de ir para Rondônia continuou de pé,

quando fiquei sabendo de um concurso para o Tribunal Regional do Trabalho.

Freqüentava diariamente a Biblioteca Pública de Jequié e gostava muito de ler

jornais. Lia todas as reportagens e todas as notas. Preferia pegar o jornal do dia

anterior, para evitar a fila de pessoas querendo ler o jornal do dia e também porque

não gostava de lê-lo rapidamente, para poder passar o jornal à próxima pessoa. Já

quanto aos jornais de um ou dois dias atrás, quase ninguém ligava. Pois foi num

desses que vi a notinha, bem pequena, a respeito do concurso, que despertou meu

interesse.

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EM BUSCA DE UM LUGAR AO SOL

Fiquei interessado em participar do concurso. Seria o primeiro de minha vida.

Procurei informações por toda a cidade, em todos os órgãos públicos, mas ninguém

sabia dizer nada a respeito. Quando já faltavam dois dias para o encerramento das

inscrições, que tinham começado no dia 11 e se encerrariam no dia 17 de outubro de

1989, descobri um último destino e resolvi ir diretamente até a sede da Justiça do

Trabalho.

Fui atendido no balcão por uma moça, que mais tarde viria a se tornar minha

melhor amiga: Teresinha. Ela me mostrou um cartaz na entrada da Vara do

Trabalho, onde constavam informações sobre o concurso. O cartaz informava haver

apenas UMA vaga para a cidade de Jequié, e que a vaga era para o cargo de Auxiliar

Operacional - Serviço de Limpeza. Nem ali consegui uma cópia do edital que havia

sido publicado no Diário Oficial da União. Teresinha me falou que as inscrições

estavam sendo feitas no Banco Econômico (Banco Bilbao Vizcaya, atualmente do

grupo Bradesco). Fui até lá, onde, por coincidência, eu tinha uma conta-poupança,

na qual estavam depositados cinqüenta cruzados novos. Mantinha essa poupança

como reserva para o caso de qualquer emergência e para a minha viagem a

Rondônia, que estava sendo meticulosamente planejada. No banco, havia apenas um

caixa destinado às inscrições, e lá a atendente me entregou uma cópia do Edital do

Concurso, sublinhando o cargo "Auxiliar Operacional - Área de Limpeza" no

documento e esclarecendo que havia apenas UMA VAGA para Jequié. Fiquei

surpreso e triste, pois investiria quase todo o meu dinheiro numa aventura da qual

não sabia se sairia vitorioso. Na verdade, a inscrição me custou quarenta e três

cruzados novos e noventa e sete centavos. Mas valia a pena arriscar, pois o salário

inicial correspondia a 12 BTN - Bônus do Tesouro Nacional, do qual já perdi a

referência, mas que equivalia a vários salários mínimos da época. A moça do caixa

ficou impaciente com minha indecisão. Sugeriu-me ler o edital com atenção e, caso

me decidisse pela inscrição, que a chamasse novamente. Li e reli o edital várias vezes

e percebi que havia muitas vagas para Salvador e fiquei tentado, mas resolvi arriscar

e me inscrever para a única vaga oferecida em Jequié. Retirei todo o dinheiro da

conta de poupança e paguei a inscrição. Dali em diante, comecei a estudar

arduamente e a me preparar para as provas, que seriam realizadas na cidade de

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Vitória da Conquista. Não parava nem para almoçar. Debruçado sobre os livros, eu

comia, estudava, escrevia, tentando me preparar da melhor forma possível para o

grande dia das provas.

Viagem marcada, eu fui para a rodoviária levando comigo meus irmãos Dida e

Tó, que queriam conhecer a cidade de Vitória da Conquista. Carregava uma lata de

leite Ninho, cheia de farofa de feijão, que seria a nossa refeição durante a viagem. Ao

chegar à rodoviária de Jequié, encontrei muita gente conhecida, que também iria

fazer a mesma prova. Fiquei desanimado com a concorrência, mas não desisti.

Muitas dessas pessoas portavam apostilas enormes, que liam e reliam, passando

questionários. Aí, sim, foi que comecei realmente a acreditar que não teria muita

chance. O máximo que havia feito fora estudar por conta própria em livros velhos,

de primeiro e segundo graus, que não tinham muito a ver com os assuntos daquelas

apostilas sofisticadas.

Chegando a Vitória da Conquista, fiquei com meus irmãos na rodoviária da

cidade, pois não tinha como pagar por uma pousada ou hotel. À noite, o frio era

insuportável e não conseguíamos dormir deitados naqueles bancos de cimento da

rodoviária.

Já bem tarde, um motorista da empresa Gontijo, ao nos ver ali deitados,

perguntou se esperávamos por algum ônibus com destino a outra cidade. Respondi

negativamente, explicando-lhe que estávamos ali porque eu deveria me submeter a

um concurso público no dia seguinte. E ele, generosamente, ofereceu-nos um ônibus

para pernoitarmos. Pediu apenas que não ficássemos no veículo até o dia

amanhecer, pois, se o fiscal da empresa soubesse que ele, motorista, tinha permitido

que estranhos dormissem no ônibus, acabaria lhe aplicando uma advertência ou

uma suspensão. E assim fizemos.

Antes do amanhecer eu e meus irmãos saímos do ônibus e fomos até a escola

pública onde as provas seriam aplicadas - Escola Comercial Edvaldo Flores,

localizada à Rua Siqueira Campos, s/n°, Centro. Ao chegarmos lá, preferi me manter

afastado da escola, com vergonha das pessoas que me conheciam. Comemos a farofa

de feijão e jogamos a lata no lixo. Depois que todos os concorrentes entraram, eu me

aproximei e fui direto para a sala de provas. Terminei a prova e saí antes dos demais,

com medo que algum conhecido me visse. Minha preocupação era que, sendo

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conhecido como aluno CDF na cidade, iria morrer de vergonha se alguém,

porventura, viesse a saber que fiz o concurso e não passei.

Aguardei o resultado, que seria publicado no Diário Oficial do Estado.

Durante várias semanas eu compareci à Vara do Trabalho em busca de informações

sobre o resultado do concurso, mas a resposta era sempre a mesma: que o Diário

Oficial ainda não havia chegado. Em uma das vezes, aconselharam-me a ligar para a

sede do TRT, em Salvador, a fim de obter a informação desejada. Liguei para o setor

de pessoal do TRT e fui informado que na lista dos aprovados havia DOIS

candidatos de nome Valdeck. Um em primeiro e outro em segundo lugar, mas não

me confirmaram se eu era o primeiro ou o segundo colocado. Aguardei mais alguns

dias e retornei à Vara do Trabalho, para saber da chegada do Diário Oficial, não

obtendo sucesso na minha empreitada. A ansiedade pelo resultado do concurso não

me permitia ficar parado. Assim, ocorreu-me viajar para Salvador, a fim de obter

informações mais detalhadas. E foi exatamente o que fiz.

Não tinha dinheiro para pagar as passagens de ida e volta. Precisava obtê-lo

urgentemente, de alguma forma. Lembro-me que Ednaldo, um vendedor ambulante,

foi à minha casa numa quarta-feira e que viajei na sexta para Salvador, a fim de lutar

pela vaga de trabalho. Nessa época, minha mãe começava a se entrosar com o

pessoal da prefeitura municipal e me prometeu que tentaria conseguir as passagens.

Ela foi várias vezes à prefeitura, até que, na última tentativa, na sexta-feira,

conseguiu o que queria.

Andando com ajuda de muletas, ao chegar perto do prédio, viu a pessoa que

ela conhecia já dentro de seu carro, preparando-se para sair. Fez-lhe um sinal

tentando dizer que queria conversar com ela. A pessoa então voltou, abriu a

prefeitura e lhe deu uma carta, na qual solicitava ao gerente da empresa Auto Viação

Camurugipe que fornecesse as passagens. Nesse mesmo dia, fui à estação rodoviária,

mas o atendente me disse que aquela carta não tinha valor algum sem a assinatura

do gerente geral da empresa. Corri até a sede da empresa de ônibus e implorei ao

gerente para dar o "visto" na carta. Finalmente, com o seu aval, voltei à rodoviária e

pude retirar as passagens.

A viagem foi muito tensa. Estava nervoso e preocupado com o resultado de

todo o meu esforço, e não tinha a mínima idéia de como seria o desfecho. Chegando

a Salvador, fui direto ao TRT, no bairro Nazaré. Conversei com pessoas do Setor de

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Pessoal, que me aconselharam a aguardar a Diretora Geral, por quem esperei o dia

inteiro, até conseguir falar-lhe. Tudo resolvido no final. Aliviado e contente, voltei

para Jequié com um ofício para me apresentar ao trabalho. Tomei posse no dia 25

de janeiro de 1990, na Vara do Trabalho de Jequié, onde permaneci trabalhando por

aproximadamente três anos. Essa data, que já era muito especial para mim, por

causa do aniversário de minha mãe, se tornou ainda mais importante, por ser o dia

em que tomei posse no trabalho.

Como fiz o concurso para um cargo no Serviço de Limpeza, minha rotina ali

era limpar o chão, servir café e suco, lavar os copos e pratos, encerar o piso de taco,

varrer as imediações do prédio, jogar o lixo nos tonéis, limpar as mesas sujas com

tinta azul de carimbos, varrer as cascas de amendoins torrados que o povo jogava no

piso de mármore branco, limpar e podar as plantas na frente do prédio, limpar as

folhas que caíam das árvores no quintal, limpar o sanitário público, limpar o

sanitário dos funcionários e o do juiz, limpar a placa de bronze com o brasão da

República com palha de aço e outras tarefas afins.

Como o prédio era pequeno, eu conseguia fazer todo o serviço até meio-dia.

No tempo que sobrava, ia ajudar o pessoal da secretaria nos serviços de escritório,

como colar AR (aviso de recebimento do correio), arquivar e protocolar processos,

juntar e protocolar petições, preparar despachos, fazer notificações, emitir as listas

de correspondências para envio ao correio, comprar vales-transporte para os

funcionários, fazer cargas de processos, emitir certidões negativas ou positivas,

datilografar ofícios diversos, fazer autuação de processos, expedir cartas precatórias

e outras atividades correlatas.

Nessa época, também substituía os funcionários que saíam de férias, de

licença médica, licença-maternidade ou impedidos de trabalhar por qualquer outro

motivo. Fui Oficial de Justiça ad-hoc por um mês, substituí o diretor, secretário de

audiências e todos os demais funcionários, em várias oportunidades. Só não

substituí o juiz.

O Tribunal começou a informatizar todas as unidades da capital e do interior.

Para Jequié foi enviado um terminal remoto de computador, que se resumia a um

monitor de tela verde, interligado ao computador central, localizado em Salvador,

através de uma linha telefônica. Depois da instalação, uma equipe de técnicos foi até

a cidade para ensinar os usuários a utilizá-lo. Por ironia do destino, o terminal

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quebrou no primeiro dia. No segundo dia, faltou energia elétrica. Somente no

terceiro dia, um domingo, os técnicos conseguiram passar as instruções. Passei o

domingo inteiro com a equipe da Secretaria de Planejamento e Informática; anotei

tudo o que ouvia, perguntei o que foi possível e tirei centenas de dúvidas. Tornei-me

um expert no assunto e fiquei incumbido de repassar as informações para os demais

funcionários.

Eu já trabalhava ali há alguns meses quando chegou uma funcionária

transferida de Brasília: Mônica Barroso. Era casada com um holandês de nome

Peter, que não era naturalizado brasileiro e trabalhava como engenheiro na fazenda

Serra da Pipoca, do grupo Paes Mendonça. Mônica tornou-se uma grande amiga,

sempre conversávamos muito. Visitava-a com freqüência e, quando ela viajava para

o Rio, sua cidade natal, deixava sua casa sob minha responsabilidade. Nesses dias

em que eu me instalava na casa de Mônica, recebia visitas de meus irmãos, que

acabavam ficando por lá. A casa era muito confortável. Mônica deixava sempre

muita comida e bebida na geladeira e dizia que eu poderia consumir tudo durante

sua ausência. Meus irmãos faziam uma festa. Lembro-me de uma vez em que eles

comeram tanto milho verde em conserva que ficaram doentes por mais de uma

semana.

Mônica tinha um notebook, no qual digitava muitas sentenças dos juízes

substitutos que passavam pela Vara. Ela me ensinou a utilizar o computador pessoal

dela; foi minha primeira oportunidade de acesso a um computador de verdade.

Em uma das inúmeras viagens que Mônica fez ao Rio de Janeiro, ousei pegar

seu carro emprestado, sem ao menos saber dirigir. Tive muita sorte de não ter me

envolvido em nenhum acidente. Fui da casa dela até a minha com o carro. Convidei

a família inteira para dar um passeio pela cidade. No final da aventura, penei para

recolocar o carro na garagem, cujo acesso era bastante complicado. Quando Mônica

voltou de viagem, descobriu que eu tinha saído com o veículo; eu tinha mudado a

posição do banco do motorista e ela percebeu. Pedi desculpas e ela disse que não se

importava. Mas, desse dia em diante, passou a não mais deixar as chaves do carro

acessíveis durante suas viagens.

O trabalho era muito bom, a equipe de funcionários era maravilhosa, mas eu

queria mudar para outra cidade, tentar fazer um curso universitário e também

mudar de função. Consegui remoção para Ilhéus, mas na última hora desisti, após

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receber um telefonema do serviço de pessoal informando-me que a transferência

implicava que eu continuasse a executar os serviços de limpeza, por determinação

do Presidente José Joaquim. Já havia me acostumado ao tipo de serviço que vinha

prestando na Vara e não queria mais voltar a fazer limpeza. Por esta razão, desisti da

remoção para Ilhéus. Além do mais, notei que os funcionários que tinham prestado

concurso para outras áreas estavam sendo nomeados para a secretaria, o que eu

achava um absurdo.

Por intermédio de uma diretora que foi trabalhar na Vara de Jequié, Alice

Lopes, consegui uma função gratificada de Secretário de Audiências na recém-

instalada Vara do Trabalho de Brumado, em 1993. Mas, antes de aceitar a nova

função, fiz uma visita ao local e acabei desistindo de morar lá. A cidade era muito

pequena e não oferecia muitas perspectivas para que eu pudesse estudar ou crescer

ali. Mais uma vez, continuei mesmo em Jequié, onde prestei vestibular para

Enfermagem, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, e comecei a cursar.

Adorava o curso de Enfermagem, bem como os colegas, os professores, tudo.

Apesar de ter de manipular ossos e cadáveres humanos de vez em quando e de o

curso envolver uma boa base em Química, conseguia acompanhar bem o ritmo das

aulas. Tudo ia muito bem, até que um dia comecei a sentir fortes dores na barriga,

que culminaram numa cirurgia e na conseqüente interrupção do curso.

Passei dois dias sentindo muitas dores na barriga. Suava barbaramente e não

parava de ir ao sanitário. Minha mãe preparava-me uma infinidade de chás, que de

nada, ou quase nada, adiantavam. Achei por bem então tentar conseguir uma ficha

para atendimento médico. Após dormir a noite inteira na calçada do posto médico

do INSS, o clínico me atendeu e solicitou exames de sangue e raios-X com contraste,

para verificar a causa do caroço enorme que ele detectara no meu intestino. Mais de

seis meses levei tentando realizar o exame de raios-X. Sempre que chegava o dia

agendado, o exame tinha de ser remarcado porque o radiologista não tinha ido

trabalhar, ou a máquina de raios-X estava quebrada, ou faltava o material de

contraste.

Para aliviar as dores e por uma questão de precaução, além do medo de

morrer, não parei de tomar antibiótico por conta própria, enquanto aguardava uma

solução. Finalmente, após longos seis meses de espera, consegui fazer o exame. Mas

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ainda teria de esperar mais uns dois meses pelo resultado com o laudo do

radiologista. Tão logo me vi com o material nas mãos, levei-o a um outro médico

clínico, que me aconselhou a procurar uma cidade de grande porte, como São Paulo

ou Rio de Janeiro, a fim de me submeter a uma cirurgia para extrair um provável

tumor cancerígeno do intestino, segundo sua opinião. Fiquei apavorado e com medo

de morrer. Acabei fazendo a cirurgia em Jequié mesmo, na Clínica Santa Helena,

tendo por equipe de cirurgiões a Dra. Josefina e o Dr. Diniz, seu esposo. Antes de me

internar, porém, resolvi passar um final de semana em Ilhéus, a fim de espairecer e

tomar mais coragem para encarar uma cirurgia daquele porte.

Tranquei o curso de enfermagem, do qual acabei desistindo após a cirurgia,

por não me achar em condições de acompanhar o ritmo da turma. O material

retirado na cirurgia (cerca de trinta centímetros de intestino delgado, intestino

grosso e cólon) foi enviado para biópsia ao Hospital Santa Izabel, em Salvador.

Alguns meses depois, recebi o resultado do exame confirmando que se tratava

apenas de uma apendicite aguda em regressão. A médica disse que eu tinha acertado

sozinho numa loteria de milhões, já que a suspeita de câncer não tinha se

confirmado.

Nessa oportunidade, recebi apenas a visita de um único amigo. Todos os

outros que saíam comigo para farras e cervejadas desapareceram. Cada um achava

um motivo nobre para não ter podido visitar um amigo doente. Um verso me vem à

mente, diante deste fato:

Donec eris felix, multos numerabis amicos.

Enquanto fores feliz, terás muitos amigos.

É um verso de Ovídio, em que o poeta lamenta a perda dos amigos, após ter

caído na desgraça de Augusto (Tristia, 1, 1-39).

Recuperado da cirurgia, prestei novo vestibular, desta vez para Letras. Adorei

o curso e cheguei a concluir um semestre. Durante o período, fomos a Ouro Preto

para estudar o Barroco Mineiro. A viagem foi muito divertida, dentro de um

microônibus lotado de estudantes.

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Tiramos muitas fotos, brincamos bastante, enfim, foi um passeio

maravilhoso. Eu não tinha máquina fotográfica e pedi uma emprestada a um amigo.

Com medo de errar, na hora de colocar o filme, pedi ao funcionário da loja que o

fizesse para mim. Tirei fotos durante toda a viagem, mas, para minha decepção, ao

levá-las para revelar, descobri que todo o filme havia sido inutilizado, em virtude de

ter sido colocado incorretamente na máquina. Mas ainda pude guardar como

lembrança dessa viagem as fotos que tirei com as máquinas dos amigos.

Outra viagem interessante que fiz foi para curtir o carnaval de Aracaju. Viajei

de ônibus com passagem de ida gratuita conseguida por uma amiga. No retorno, tive

que pagar, mas não pude voltar na data que planejara. Deveria voltar no último dia

do carnaval, para poder trabalhar na manhã do dia seguinte. Não consegui passagem

e tive que antecipar meu retorno em um dia. Meu plano era pegar o ônibus das 20

horas, no último dia de carnaval. Impossível. E só consegui comprar para o dia

anterior porque um dos passageiros havia desistido de viajar. Mas acabei chegando

em casa a tempo de descansar.

Ao chegar em casa, encontrei minha moto com problemas. Meus irmãos, Dida

e Tó, tinham saído com ela e queimado as velas. Discuti com os dois até que

conseguissem arranjar velas novas para substituir as defeituosas.

Com a moto já funcionando, fui à casa da patroa de China, a fim de devolver a

mochila que eu tinha tomado emprestado. Levei Nete comigo. A patroa de China

insistiu para que eu jantasse lá, mas educadamente recusei. Voltei para casa com

pressa, a fim de assistir ao Jornal Nacional, às 20 horas. Foi justamente nesse

horário que acabei batendo de frente com uma mobilete. Quebrei o pé e o outro

piloto quebrou a boca e o nariz. Nete ficou desmaiada no meio do asfalto e só

acordou no hospital, sem saber o que tinha acontecido. Arrisco-me a uma conclusão:

o horário que planejara voltar de Aracaju era justamente o horário em que, por

alguma obra do acaso, eu deveria estar em Jequié, para sofrer aquele acidente.

Mistérios que não se explicam.

Gastei muito dinheiro para consertar a moto acidentada e dei como entrada

na compra de um modelo mais novo. Numa noite fria e tranqüila, resolvi sair de

moto para dar umas voltas pela cidade. Acabei desistindo e voltei para casa, pois o

frio estava insuportável. No retorno, Walter Sampaio Filho, filho do prefeito da

cidade, me atropelou. O saldo foi: uma fratura em várias partes da patela, o nariz e

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um dedo do pé direito quebrados. Walter nem sequer me prestou socorro, e ainda

tentou impedir que os motoristas que paravam para ver o acidente me levassem para

o hospital. Não bastando, depois de eu já estar no pronto-socorro aguardando

atendimento, ainda entrou para me dizer que eu estava errado e que não iria me

ajudar em nada na cirurgia.

Passei a noite inteira deitado numa maca de alumínio, com frio, esperando

pelo médico ortopedista, que chegaria somente pela manhã. Minha mãe, assim que

foi avisada do acidente, correu para o hospital. Com pena de mim, acabou voltando

em casa mais tarde para pegar um cobertor, com o qual cobri parte da maca e me

embrulhei todo, para agüentar o frio da madrugada.

Fui submetido a uma cirurgia dois dias depois, não no hospital geral, mas na

Clínica São Vicente. A cirurgia foi um sucesso, e eu consegui recuperar 100% dos

movimentos da perna.

Passei mais de seis meses fazendo fisioterapia. Era praticamente uma via

crucis todos os dias. Um colega de trabalho, chamado Paraíso, que possuía um fusca

velho, muito me ajudou nesse calvário. Ia todos os dias me buscar em casa,

carregava-me no colo, colocava-me dentro do seu carro, levava-me à clínica de

fisioterapia, carregava-me do carro para a clínica, ia embora e voltava no horário

combinado para me levar de volta. Tão logo me senti melhor, e já podendo

caminhar, resolvi fazer natação na piscina do Jequié Tênis Clube. Rita, minha colega

de trabalho, foi quem conseguiu meu acesso ao clube.

Sem ânimo para continuar estudando e pela dificuldade das circunstâncias,

acabei trancando o curso de Letras, do qual fui jubilado após minha transferência

definitiva para Salvador.

Já estava recuperado do trauma na perna direita, resultado do acidente,

quando minha transferência para Salvador foi aprovada. Na época, eu tinha

participado de um curso intensivo para secretários de audiência e fui aprovado em

primeiro lugar. Fiquei muito feliz, pois, caso eu conseguisse uma função gratificada

de secretário de audiência, em uma das Varas da capital, poderia manter meus

gastos em uma nova cidade, onde as despesas seriam bem maiores. Mas,

infelizmente, não consegui a vaga. Todos os demais participantes do curso foram

chamados, exceto eu.

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Tinha ciência de que seria muito difícil me estabelecer em Salvador, e que tal

mudança demandaria certo tempo de adaptação. Comecei a me desfazer de todo o

meu patrimônio: vendi duas casas, uma moto e uma linha telefônica. Coloquei o

dinheiro na poupança, na tentativa de fazer uma economia para o novo investimento

de minha vida, que seria um apartamento ou casa na capital. Para não deixar minha

família desamparada, comprei uma casa no bairro Agarradinho, em Jequié, e

acomodei minha mãe e meus irmãos neste imóvel. A casa que comprei já tinha sido

minha, onde morei com Márcia quando me casei. Na separação, deixei a casa para

ela, que me revendeu. Toda a minha família ficou nessa casinha pequena no bairro

do Agarradinho.

Minha mãe não tinha ficado muito satisfeita com a casa do bairro

Agarradinho (Urbis IV), que levou esse nome por alusão a um bichinho de pelúcia

que se agarrava às pessoas, cujo nome era "Agarradinho". Paula sempre reclamava

que a casa era pequena, que não cabia todos os móveis e que daria um jeito de sair

dali. E deu.

Foi à Caixa Econômica Federal e se inscreveu para comprar uma casinha, do

mesmo tamanho daquela, no bairro Brasil Novo, que estava sendo criado no outro

lado da cidade, próximo ao bairro Inocoop. Quando eu soube da história, ela já

estava morando na nova residência, com metade da família.

Valmir resolveu ficar morando no Agarradinho com a futura esposa, Célia.

Nesse período, ele trabalhava como cobrador na mesma empresa de ônibus em que

eu trabalhara antes, a Auto Viação Tiradentes. Depois de sua demissão da empresa,

passou a freqüentar a casa de minha mãe, juntamente com a mulher e o filho recém-

nascido, Ramon. Com o tempo, acabou fechando a casa onde morava e se mudou de

vez para a casa da mamãe. Valmir sempre foi muito esquentado e muito preocupado

com sua família. Não agüentava ver o filho passando fome quando não podia

comprar o leite e os ingredientes para a comida do bebê. Resolveu então viajar para

São Paulo, onde já moravam algumas de suas cunhadas, que prometeram dar

suporte a ele e à sua família, enquanto não conseguisse trabalho.

Valmir viajou para São Paulo com Célia, sua esposa, e o filho Ramon, ainda

de braço, com seis meses de idade. Partiram no dia 25 de agosto de 1995, e desde

então não voltaram mais à Bahia, à exceção da vinda de Valmir para o funeral de

minha mãe, em junho de 2000. Ele conta que o sofrimento foi grande até conseguir

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se estabelecer numa cidade violenta e competitiva como Sampa. A prova de fogo

começara já na viagem de ônibus, pois levara consigo tudo o que pôde. Chegando a

Sampa, foi morar na casa das cunhadas, que sempre ofereceram todo o apoio que a

família necessitava. Mas esse apoio estava muito longe de ser o suficiente. Afinal, as

cunhadas trabalhavam como empregadas domésticas e não ganhavam bons salários.

Segundo Valmir, nem colchão pra dormir ele pôde comprar. As cunhadas,

penalizadas, mas sem poder ajudar muito, conseguiram um colchão de casal, doado

por uma senhora que pesava duzentos e cinqüenta quilos, após tê-lo substituído por

um novo. Esta gordinha não conseguia levantar da cama por causa do seu peso, nela

permanecia deitada a maior parte de sua vida. Por esta razão, o suor de seu corpo

havia impregnado todo o colchão ao longo dos anos. Quando Mi recebeu o presente,

ficou muito alegre porque não mais precisaria dormir em papelões no meio da sala.

Mas, ao mesmo tempo, ficou enojado do aspecto e do cheiro do colchão. Mesmo

assim, agradeceu a Deus pelo presente. Todos os dias pela manhã ele tinha que tirar

a roupa com a qual havia dormido e colocá-la para lavar, pois o colchão, além de

emanar um cheiro extremamente desagradável, liberava uma "tinta" escura e

gordurosa que grudava na roupa dele, da esposa e do filho. Valmir conta que chegou

a levantar muitas vezes no meio da noite para vomitar, devido ao cheiro repugnante,

mas logo voltava a se deitar ali, pois era o único lugar quente e aconchegante que

tinha para passar a noite.

Conta também que várias vezes teve de andar mais de vinte quilômetros a pé,

procurando emprego, porque não queria usar o vale-transporte que as cunhadas lhe

davam, com medo de não achar trabalho naquele dia e ter de retornar no dia

seguinte, refazendo o mesmo percurso. E isso não era raro de acontecer. Foram

vários e vários meses de caminhada em busca de uma colocação, onde pudesse

ganhar o suficiente para o sustento do filho e da esposa.

Quando já estava prestes a desistir, encontrou uma pessoa que lhe aconselhou

a "esquentar" a carteira de trabalho, a fim de poder comprovar experiência como

trabalhador de portaria e jardinagem. A pessoa alegava que somente desta maneira

poderia aumentar suas chances de encontrar uma empresa que lhe fichasse. E assim

ele fez. Conseguiu trabalho na mesma semana. No início, os turnos de trabalho eram

sempre à noite ou de madrugada, o que lhe impedia de ver o filho acordado, pois o

pouco tempo que sobrava era gasto no trânsito, de casa para o trabalho e vice-versa.

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Com o passar dos anos, foi conseguindo modificar sua rotina. Atualmente,

trabalha num grande condomínio, como porteiro, no horário de 8 às 14 horas, o que

lhe permite chegar em casa antes das seis da tarde, quando Ramon e a caçula

Amanda, que nasceu em São Paulo, podem desfrutar da presença do pai. A garota é

especial, nasceu com a Síndrome de Tourette, uma doença raríssima que impede o

desenvolvimento da fala, das funções motoras e de outras funções. Valmir tem o

maior carinho pelos dois filhos, especialmente por essa filhinha caçula.

Eu me mudei para Salvador dois anos antes de Valmir viajar para São Paulo,

mas acompanhei boa parte de sua luta em Jequié, pois eu viajava sempre para

visitar minha família.

Quando viajei para Salvador, já tinha sido indicado por Graça para trabalhar

no Setor de Distribuição, com Dina. Fiquei ali um bom tempo, adorei o setor e as

pessoas, mas o serviço era muito estressante. Pedi para sair do setor e fui para a 3ª

Vara de Salvador. Os funcionários costumavam se referir ao prédio onde

funcionavam as Varas como "Senzala" e ao prédio do TRT como "Casa-Grande", em

alusão ao livro de Gilberto Freire, Casa-Grande e Senzala. Todo mundo queria ir

trabalhar na Casa-Grande. Mais tarde descobri o motivo dessa comparação.

Inicialmente não comprei apartamento. Graça, uma colega de trabalho, havia

me apresentado um amigo que morava no Edifício Crescenciano dos Santos, em

Salvador. Procurei-o, acreditando que ele aceitaria a proposta de "dividir" o

apartamento comigo, mas decepcionei-me diante de sua recusa. Resolvi então ficar

um mês de férias em Salvador, em fevereiro de 1993, dividindo as despesas em um

apartamento em Ondina, onde morava Jaqueline, filha de Edlene, então Diretora da

Vara de Jequié, até encontrar um apartamento para alugar ou comprar. Acabei

encontrando um à venda no Edifício Crescenciano - o "Balança, mas não cai", alusão

a um programa de TV da época. Comprei o imóvel por intermédio de um corretor.

Ao receber as chaves e entrar em meu apartamento próprio, pulei várias vezes, gritei

e chorei de alegria. E a segunda vez em que chorei de alegria foi quando pude

repassá-lo ao proprietário oficial, mesmo tendo perdido metade da grana que, com

muito esforço, juntei ao longo de vários anos.

Foi o maior mico que paguei. O apartamento era financiado pelo Banco

Nacional de Habitação, em nome de um determinado titular. Mas quem me vendeu

foi uma terceira pessoa, com o aval do real proprietário. Já morando nesse

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apartamento, eu peregrinei por mais de dois meses por toda a cidade, coletando

documentos, certidões e outros papéis, a fim de formalizar a transferência do

contrato para meu nome. Dia e hora combinados, fui ao banco com o proprietário do

apartamento, acreditando que tudo seria formalizado em questão de horas. O banco

informou que o processo de transferência seria longo e que poderia ou não ser aceito

pelo agente financiador. Inexperiente e acreditando na boa-fé do vendedor e do

corretor do imóvel, resolvi apostar todas as minhas fichas nesse arriscado

investimento.

Paguei uma fortuna ao corretor e ao dono do imóvel. Três meses depois de ter

entregue uma verdadeira pilha de documentos e certidões ao setor de

financiamento, recebi do banco a informação de que a transferência não poderia ser

realizada, pois o proprietário do imóvel tinha outro apartamento financiado pelo

BNH, o que impediria a transação. Fiquei desesperado e coloquei um anúncio no

jornal, com a intenção de "revender" o apartamento. O dono original do imóvel leu o

anúncio e me procurou para chantagear, obrigando-me a devolver-lhe o

apartamento pela metade do preço que eu havia pago. Não tinha outra saída. Era

receber cinqüenta por cento do investimento ou perder tudo, já que ele ameaçara

entregar o financiamento ao banco, caso eu não aceitasse devolver o apartamento

pela metade do preço que havia pago.

Comprei, então, outro apartamento, no mesmo edifício, desta vez sem

intermediários, mas com uma dívida de IPTU e condomínio de mais de dez anos.

Até o presente momento, não transferi o apartamento para meu nome, apesar de já

ter quitado a dívida com o banco financiador. O apartamento encontra-se fechado

até hoje, por falta de comprador. Não há quem queira morar ali, devido aos vários

problemas que o prédio enfrenta.

O "Balança mas não cai" já foi manchete de programas de televisão e de

jornais da cidade. Os moradores alegam que o prédio treme o tempo todo. Dizem os

mais antigos que uma equipe de engenheiros já examinou o fenômeno e atribuiu-o

ao movimento constante de veículos pesados que passam em frente ao prédio,

apesar de afirmarem não haver risco de desabamento. Quanto a isso, não posso

garantir nada, mas posso afirmar categoricamente que o prédio é uma verdadeira

favela vertical. O edifício tem uma dívida astronômica com a companhia de água e

esgoto, que cortou o abastecimento. O sistema será restabelecido somente após a

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quitação da dívida, que está financiada em dez anos. Caminhões-pipa abastecem o

prédio em intervalos regulares de tempo e a água é fornecida aos apartamentos

através de uma mangueira, em dias e horários predeterminados. Dos três

elevadores, apenas dois ainda funcionam precariamente. O terceiro foi seqüestrado

pela justiça para pagamento de dívidas trabalhistas. E as escadarias estão em

completo estado de destruição, entre outros problemas.

***

Eu não pude comprar novos móveis, botijão de gás, colchão e armário e

acabei pedindo que minha mãe trouxesse para Salvador parte da mobília que eu

tinha deixado em Jequié. Ela veio de ônibus com a mobília. Quando fui me

encontrar com ela na rodoviária, levei dois amigos para ajudar a carregar as coisas.

Mas fiquei com tanta vergonha de ver toda aquela tralha sendo colocada no ônibus

que tive uma crise de riso e fugi, deixando meus amigos, minha mãe e uma irmã

para pagarem o mico de carregar tudo no ônibus coletivo, que pegaram da

rodoviária para o bairro Sete Portas, onde eu morava.

Passei a maior parte do tempo morando sozinho em Salvador. Porém, não era

raro ter sempre alguém da família por perto. Vários irmãos chegaram a viver comigo

e depois voltaram para o interior. Nete foi quem passou mais tempo. Ficou em

minha casa até passar em primeiro lugar num concurso público para Auxiliar de

Enfermagem em Porto Seguro, onde morou por quase um ano. Desistiu de continuar

morando lá por causa do salário, que era muito baixo e ainda por cima atrasava

meses para ser pago. Nete resolveu então que seria melhor voltar para Jequié e fazer

um curso universitário antes de sair da cidade para enfrentar a vida.

Sempre quis morar bem próximo ao local de trabalho, já que a cidade de

Salvador não tem um sistema de transporte público eficiente, fato que eu já havia

comprovado. Experimentei, várias vezes, sair de Ondina, antes de me transferir

definitivamente para o bairro Sete Portas, de ônibus para chegar ao bairro Nazaré. O

atraso era constante, o veículo vinha lotado e muitas vezes não parava no ponto para

pegar passageiros. Este problema me desestimulou de morar distante do trabalho.

Do edifício Crescenciano, onde eu morava, para o TRT, gastava dois ou três minutos

subindo uma ladeira interminável, com minha marmita, cujo conteúdo era sempre o

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mesmo: feijão, arroz, um pedaço de abóbora cozida e um pedaço de carne. Havia um

espaço chamado Centro de Convivência, onde os funcionários se encontravam para

assistir televisão, bater papo e almoçar. Todos os dias estava eu ali com meu

marmitão. Morria de vergonha dos outros colegas, que levavam uma comida

diferente a cada dia e sempre pediam que eu abrisse a minha quentinha para trocar

com eles um pedaço de carne ou de outra coisa qualquer. Como eu sempre levava a

mesma coisa diariamente, alguns colegas nem queriam ver minha marmita,

enquanto outros, já adivinhando o que nela continha, faziam brincadeiras e

gozações.

Afogamento em Itapoã

Quase morri afogado em Itapoã. Fazia apenas dois meses que eu havia

chegado a Salvador. Em abril de 1993, reencontrei um grande amigo do interior,

chamado Greyko, e saímos para tomar umas cervejas na praia de Itapoã. Tomamos

duas cervejas e comemos dois caranguejos - o primeiro caranguejo de minha vida.

Quando caminhávamos em direção ao ponto de ônibus, vimos uma galera andando

de caiaque e paramos para olhar.

Meu amigo cismou de dar umas voltas de caiaque e me chamou para

acompanhá-lo, o que recusei de pronto. Mas ele insistiu e acabei seduzido pela

aventura de andar de caiaque no mar. Já tinha andado de caiaque num rio da cidade

de Ilhéus alguns anos antes. Depois de darmos algumas remadas, resolvemos sair do

caiaque para dar um mergulho. Na hora de entrar no caiaque, eu não conseguia me

equilibrar e caía na água toda vez que tentava subir. Com as inúmeras tentativas, o

caiaque afundou e tivemos que nadar de volta à praia. Tendo a narina esquerda

comprometida por causa do segundo acidente de moto que quebrou meu nariz,

cansei rápido e parei para descansar. Pedi ajuda a ele. Precisei me segurar nele para

poder respirar mais livremente e voltarmos a nadar.

Não agüentei o pique e comecei a me afogar. Meu amigo ainda tentou me

salvar, mas eu estava desesperado e ele ficou com medo de morrer junto comigo.

Após me debater muito, percebi que eu afundava, sentindo a temperatura da água se

tornar cada vez mais fria. Depois, não vi mais nada, tudo estava muito escuro.

Acreditando que aquele seria meu último dia de vida, entreguei-me ao mar, sem

resistência.

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Parecia estar "sonhando" com meu corpo deitado sobre uma pedra, ao nível

da água do mar, e que as ondas batiam em mim. Sentia o brilho intenso do sol forte

e quente sobre mim, enquanto gritava: "Deus, eu não posso morrer agora, me dê

mais uma oportunidade! Tenho somente dois meses em Salvador e muita coisa para

viver ainda nesta cidade!".

Na cena seguinte, alguém me pegou, me colocou dentro de um barco e me

levou de volta à praia. Meu amigo contou que conseguiu ser salvo por um cara que

passava num barco à vela e o levou até a praia. Achou que eu tinha morrido. Estava

chorando na praia, quando o dono da barraca de aluguel de caiaque pediu que

alguém fosse ao mar pela segunda vez, já que na primeira haviam encontrado

apenas os remos do caiaque. Disse-me depois que não acreditou quando viu que me

traziam de volta à praia com vida. Eu também não acreditei naquilo, achei que fora

um milagre, uma segunda chance de vida, para realizar alguma coisa que estaria por

vir.

Socorrido na praia por populares, fui levado de hospital em hospital, mas não

recebi atendimento médico em nenhum deles, sob a mesma alegação de que não

havia pneumologista de plantão. Fui levado para casa, com os pulmões cheios de

água, tive febre altíssima, seguida de bronquite e pneumonia. Consultei-me com um

médico no meu trabalho, que me receitou remédios para dores. A doença evoluiu e

acabei tendo tuberculose. Por conta disso, fui submetido a um tratamento que durou

mais de um ano. Mas, finalmente, fiquei curado. Não era a minha hora.

Dona Nini

Tive uma vizinha chamada Dona Nini. Morava no apartamento ao lado e era

uma criatura maravilhosa. Sempre me presenteava com frutas e, quando fazia uma

comida diferente, me chamava para oferecer um prato do novo quitute.

Depois que me mudei do prédio, soube que ela também tinha se mudado para

a Pituba e que passava por sérios problemas de saúde. Procurei seu endereço e fui

visitá-la. A cena me cortou o coração. Foi chocante para mim ver aquela mulher, que

antes era tão firme, vaidosa, bonita e vistosa, reduzida a um monte de carne

retorcida em cima de uma cama.

Dona Nini tinha tido um infarto que deixara seqüelas. Estava torta de um

lado, a boca meio aberta, até para comer tinha dificuldades. Aquela cena me deixou

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mortificado, mas não deixei transparecer minha perplexidade. Ela sabia que estava

com seus dias contados, mas não me privei de incentivá-la. Falei-lhe que já tinha

visto pessoas passarem por situações mais complicadas e que conseguiram dar a

volta por cima e muitas outras palavras de ânimo. Mas ela estava inconformada.

Alguns dias depois, sua saúde piorou e precisou ser internada num hospital

da cidade, onde fui visitá-la. Fiquei mais estarrecido ainda quando a vi se

alimentando por meio de tubos e respirando com a ajuda de aparelhos, numa semi-

UTI. Veio a falecer pouco tempo depois. Fiquei muito impressionado com o

desenrolar dos fatos; a imagem dela ocupou minha mente por vários dias. Uma

noite, tive um sonho. Estava sentado num grande sofá, juntamente com outras

pessoas. O sofá estava completamente lotado de gente, e todos fixavam o olhar para

frente, não se mexiam para os lados. Passados alguns minutos, Dona Nini entrou no

ambiente. Sentia que era ela, mas, de alguma forma, sabia que não podia olhá-la

diretamente. Parecia que meu pescoço estava preso e não podia girar. Dona Nini se

aproximou de mim, olhou-me nos olhos e me estendeu a mão. Eu fiquei com medo,

assustado, pois eu sabia que ela tinha morrido. E ela falou: "Pegue em minha mão!"

Eu peguei, mas achando que pegaria numa mão de nuvem, sem forma e sem

consistência. Minha mão tocou uma mão quente, firme e humana. Ela, como que

lendo meus pensamentos, falou: "Está vendo? É uma mão de verdade. Eu estou

bem. Não se preocupe. Eu estou bem!". O sonho acabou aí. Acordei muito assustado

e fiz algumas orações, antes de tentar dormir novamente.

***

Quando eu morava no Edifício Crescenciano dos Santos, meus irmãos Dida e

Tó estavam em Ilhéus, onde trabalhavam. Dida vivia com uma garota, e Tó morava

junto com eles, numa casa alugada. Sempre dava um jeito de visitar meus irmãos em

Ilhéus. Quase todos os meses, viajava para o interior de ônibus, ou com minha mãe

ou sozinho. Tinha planos de ajudá-los a comprar um terreno ou uma casa.

Em uma dessas minhas visitas, conversamos sobre a compra de um imóvel, e

ambos me prometeram procurar um local adequado à construção de uma oficina, já

que o desejo deles era ter o próprio negócio. Semanas depois, me ligaram dizendo

que ainda não tinham encontrado nada razoável. Em uma nova viagem a Ilhéus, saí

com os dois em busca de uma casa ou terreno. Encontramos uma casa enorme, no

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bairro Teotônio Vilela, com um quintal descomunal, que tanto serviria de moradia

como dispunha de área apropriada para a construção de uma oficina mecânica. Eles

argumentaram que aquele não seria o local ideal, pois o bairro, além de não oferecer

infra-estrutura adequada, era muito violento. Voltei para Salvador e, na semana

seguinte, recebi um telefonema deles dizendo que tinham encontrado um terreno

muito bom.

Com o dinheiro que enviei, eles compraram um terreno horrível, num

despenhadeiro. A área era grande, mas tinha apenas três metros de terreno plano, o

restante era um barranco que descia até um manguezal, que desembocava no rio

Cachoeira. Fiquei bastante irritado com o fato de meus irmãos terem desperdiçado a

oportunidade de comprar uma boa área onde pudessem morar e trabalhar.

Começaram a construir ali uma casa de dois metros de largura por três de

comprimento, e me pediram mais dinheiro para comprar o material de construção

da oficina mecânica. Mas, ao invés de investirem o dinheiro que enviei em material

de trabalho, compraram um Fusca velho, caindo aos pedaços. Ao chegar a Ilhéus e

verificar que haviam comprado um carro velho e não o material para trabalhar, não

pude esconder minha indignação. Resolvi não mais ajudá-los e passei um enorme

sermão nos dois. Uma semana depois, soube que haviam vendido o Fusca e

comprado material para construir mais dois cômodos na casa.

***

Já trabalhando na 3ª Vara de Salvador, fui chamado por Dina, que dizia ter

uma notícia muito boa para mim. Perguntou-me se eu tinha interesse em substituir

a funcionária de um gabinete que entrara de férias. Eu já havia substituído várias

pessoas, em todos os setores onde trabalhei, inclusive na Distribuição, onde Dina era

a chefe. Perguntei qual era o trabalho a ser feito e Dina me disse que era uma coisa

fácil e que eu iria gostar. Sob tais condições, aceitei. Comunicou-me então que,

assim que tudo tivesse acertado, me telefonaria, o que aconteceu uma semana

depois. Foi um pouco complicado ser liberado da 3ª Vara para substituir uma

funcionária do gabinete, mas acabei conseguindo, sob a condição de trabalhar nos

dois setores em horários diferentes, cumprindo duas cargas horárias. Aceitei

prontamente.

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No dia combinado, fui ao gabinete, com a roupa que eu costumava vestir no

dia-a-dia: uma conga marca Alcolor com um buraco no dedão do pé direito, uma

calça jeans velha, com furo no joelho, e uma camiseta de malha. Conversei com o

juiz Gustavo Lanat, sem fazer a menor idéia de quem era e que importância tinha.

Uma das perguntas que ele me fez foi se eu sabia datilografar. Respondi que sim. E

ele disse que havia em torno de oitenta processos acumulados no gabinete e

precisava de alguém para ajudar sua equipe a dar conta do trabalho. Aceitei.

Perguntou-me também se eu apertaria um parafuso ou tentaria consertar algum

objeto que se quebrasse. Eu disse que sim, caso eu soubesse realizar o conserto. Ao

final da conversa, marcou o dia para eu começar a trabalhar. Iniciei no dia 28 de

novembro de 1993 e permaneci ali, até junho de 2005, a trabalhar com ele e com sua

equipe, onde nunca precisei apertar nenhum parafuso.

***

Não foi muito fácil o processo de adaptação a uma cidade tão grande, repleta

de coisas boas e ruins; muita gente bonita e também muita gente mal-intencionada.

Mas tentava me acostumar com tudo, fui aprendendo a lidar com as adversidades e

a tirar de cada uma delas uma lição de vida.

Recém-chegado de Jequié, uma cidade carente de diversões, quando comecei

a conhecer os points da Salvador, me esbaldei até onde pude. Quase toda semana ia

assistir a filmes, não perdia uma estréia; não faltava a uma "terça da bênção" no

Pelourinho. Eu sempre ia à festa do Pelourinho, nas noites de terça-feira, mas

jamais imaginei que a expressão "bênção" se relacionava à "água benta que o padre

jogava sobre os fiéis, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, durante a

missa"; pensava que era apenas o nome da festa popular. Via muitas peças de teatro

no Teatro Santo Antônio, no bairro Canela, de graça; adorava tomar banho de mar

nas diversas praias; curtia o carnaval adoidado, no meio da multidão, e não perdia

uma seresta ou pagode. Praticamente, não parava em casa. Estava sempre em

atividade. Até toquei no Ilê Ayê, quando o grupo ensaiava no Forte de Santo

Antônio, no bairro de mesmo nome. Os ensaios eram às quartas-feiras e aos

sábados. Ficávamos a noite inteira ensaiando. Mas, como não sou uma pessoa

notívaga, acabei abandonando esses ensaios em poucos meses.

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Numa dessas idas e vindas de festas, conheci Elias, que se tornou meu amigo.

Elias era muito mais festeiro do que eu e sempre me dava boas dicas de lugares onde

estava rolando algum "reggae". Muitas vezes, fui com ele a Periperi, um bairro

suburbano, distante mais de dez quilômetros do centro da cidade, para curtir

serestas e pagodes até altas horas. Acontecia com freqüência de eu me esquecer do

horário e perder o último ônibus. Aí o jeito era esperar o "pernoitão", a linha

especial de ônibus que circula de madrugada. O sono era tanto que dormia sentado

no ponto de ônibus.

Por intermédio de Elias, conheci um outro camarada, Elivan, cuja mãe

morava em Periperi. Ele vivia com o pai em São Tomé de Paripe, o bairro mais

distante do centro. Elivan vendia sorvetes numa garagem da casa do pai. Quando ia

a São Tomé, após tomar umas cervejas na praia, era comum eu ir almoçar ou comer

alguma coisa no bar do tio dele, o Bar do Chico.

Sempre que encontrava Elivan por ali, perdíamos a noção das horas,

conversando sobre todo o tipo de assunto, inclusive sobre trabalho. Ele tinha o

sonho de ser marinheiro, vencer na vida e ajudar a mãe. Eu ficava ouvindo seus

planos e não deixava de lhe incentivar, mas tinha quase certeza de que ele não iria

chegar a lugar algum, pois a dificuldade de se vencer na vida numa cidade grande é

diretamente proporcional ao tamanho dessa mesma cidade. No entanto, para

surpresa minha, Elivan lutou contra todas as adversidades, se preparou para o

concurso e entrou na Marinha Mercante. Hoje é Sargento da Marinha, trabalha no

Rio de Janeiro, servindo no Primeiro Distrito, já viajou por quase toda a costa

brasileira, já se casou e teve dois filhos. E o mais importante: ajudou e continua

ajudando a mãe e os irmãos. Construiu uma casa para a mãe em Aratu e depois

resolveu levá-la com alguns de seus irmãos para o Rio, deixando a casa aos cuidados

de outros irmãos.

Ele é um exemplo de pessoa. Em sua trajetória de vida, pude identificar uma

semelhança muito grande com a minha própria história: a história de um menino

pobre, morador de periferia, que consegue vencer todos os obstáculos e dar a volta

por cima. Assim, conquista seu lugar ao sol, com honestidade, sem trapaças, sem

conchavos, sem passar por cima de ninguém e sem puxar o tapete de quem quer que

fosse.

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***

Desde sempre, quis me mudar do Edifício Crescenciano dos Santos, no bairro

Sete Portas, onde morei. Mas, para isso, teria de sacrificar muita coisa: evitar de sair

às farras, de comprar muitas roupas, reduzir as viagens. Passei mais de três anos

arquitetando o dia de minha libertação. Quando estava com uma boa grana no

banco, comecei a pesquisar preços de casas e apartamentos.

Conheci muitos lugares de Salvador, caminhando em busca de um lugar para

morar. Poucos me agradavam. Até que encontrei o apartamento do Edifício Gama,

no bairro Nazaré. Apaixonei-me de cara pelo imóvel e fechei negócio imediatamente.

Essa compra se deu em 1997. Seria o início de uma nova fase. Depois que passei a

morar no novo prédio, iniciei uma longa jornada de viagens pelo Brasil e por alguns

países do mundo.

Convidei então meus irmãos para virem morar em Salvador no Edifício

Crescenciano dos Santos, que logo aceitaram.

No dia 25 de julho de 1997, nasceu meu filho Junior, fruto de uma aventura

rápida que tive com Maria Raimunda da Conceição, natural de Ilhéus. Após o

nascimento, no Hospital Sagrada Família, em Salvador, decidimos, eu e sua mãe,

que nosso relacionamento tinha chegado ao fim e que o nenê ficaria comigo. A mãe

voltou para o interior e de lá se mudou para São Paulo, para onde levo Junior,

sempre que posso, para visitá-la.

Minha mãe morava comigo e cuidava de Junior. Foi uma experiência muito

boa, o nascimento de meu filho. Além de representar uma extensão de mim, que

teria de cuidar para sempre, ele me trouxe muitas alegrias. Mudei vários conceitos e

planos que tinha para minha vida em função dele. O projeto de viver no exterior, por

exemplo, foi adiado por causa de minha mãe e de Junior, que representavam muito

mais que uma vida para mim. Cuidei de meu filho com muito carinho, enquanto ele

morou comigo e com minha mãe. Troquei fraldas, dei mamadeira e banho. Brincava

sempre com ele quando chegava do trabalho. Aprendi a ter paciência e a descobrir o

significado do choro. Preocupava-me com cada movimento dele, perto de mim, na

cama. Ficamos muito ligados um no outro, principalmente depois que minha mãe

morreu, e eu me vi sozinho para cuidar dele.

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Contratei pessoas para ficarem em minha casa cuidando de meu filho, mas,

depois de pensar muito, achei que o melhor para o menino seria estar perto de

alguém da família, que pudesse cuidar dele como ele merecia. E resolvi deixá-lo com

minha irmã Valquíria, em Jequié. Falamo-nos freqüentemente por telefone e, vez ou

outra, envio-lhe cartas. Ele também me escreve, manda cartões de aniversário, de

Natal e Ano Novo. Quando nos encontramos, Junior coloca toda a conversa em dia,

quer me mostrar a roupa nova, o brinquedo novo, contar as coisas que aprendeu na

escola.

Quanto a meus irmãos, eles aceitaram vir para Salvador. Ao chegarem, não

demoraram a encontrar trabalho nas oficinas mecânicas da cidade. Depois de dois

ou três anos, resolveram voltar para Ilhéus, e de lá foram para São Paulo, onde

vivem até hoje. Quando se mudaram para São Paulo, eu já tinha ajudado Mi a

comprar uma casa no bairro Parque Novo Santo Amaro. A casa custou R$

20.000,00 (vinte mil reais), dos quais emprestei, a fundo perdido, cinqüenta por

cento. O restante foi financiado pela própria imobiliária, e as prestações mensais

eram divididas também com a sogra e com as cunhadas, que saíram de suas casas de

aluguel para morarem na nova casa. O imóvel era bem amplo; possuía três andares e

ainda um telhado, que permitia bater uma laje para a construção de mais um andar.

Vitório acabou batendo uma laje nesse telhado, onde construiu sua casa.

VIAGENS

Primeira viagem a São Paulo

Viajei pela primeira vez para São Paulo em 1996. Fui de ônibus. A viagem

parecia não terminar. Mas foi muito agradável. Transcrevo abaixo uma espécie de

"diário de bordo", relato desta experiência:

“Jequié, 2 de abril de 1996.

10:21 h

Saí de Salvador no início da manhã e, neste exato momento, encontro-me no

Ponto de Apoio da empresa de ônibus São Geraldo, em Jequié.

10:27 h

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Estou dentro do ônibus para São Paulo, comendo taboca, um doce

enroladinho, feito de tapioca. Aqui dá para ver muita coisa bonita. O ônibus segue

estrada adentro.

15:04 h

Passamos pelas cidades de Manoel Vitorino, Poções e Planalto. Paramos em

Vitória da Conquista para almoçar. O ônibus é delicioso. Tem água mineral à

vontade e café quentinho da hora. O ar condicionado torna o ambiente bem

agradável. Passamos pela pequena cidade de Cândido Sales, que é cortada por um

riachinho de água barrenta. Aqui faz muito frio.

16:00 h

Estamos no estado de Minas Gerais, a paisagem é encantadora, com pedras e

montanhas enormes por todos os lados. Muitas curvas na estrada. Em frente à

minha poltrona, duas moscas muito chatas resolveram se acomodar. Penso que são

duas moscas baianas indo de carona para São Paulo.

20:00 h

Paramos em Teófilo Otoni para o jantar. Preferi não comer nada, achei a

comida uma boa droga. Paguei caro pela quentinha, que acabei jogando no lixo.

Arrependi-me amargamente de ter comprado aquela porcaria e ainda por cima ter

de carregá-la dentro do ônibus, com o ar condicionado desligado, por mais de meia

hora. Teria sido melhor sair da rodoviária e fazer um lanche numa bodega de beira

de estrada.

06:00 h

Está amanhecendo. Já é dia 3 de abril e estamos entrando no estado do Rio

de Janeiro. Dormi quase a noite inteira. Com isso, deixei de ver um monte de

cidades mineiras.

06:50 h

Agora estamos passando por Sapucaia, uma cidadezinha do Rio de Janeiro,

pequena e bem cuidada.

07:10 h

O ônibus atravessa a cidade de Anta, bem menor que Sapucaia.

07:30 h

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Passamos por Três Rios, ainda no Rio de Janeiro. Um pouco depois da saída

da cidade, vi um caminhão de leite enlatado virado e uma multidão saqueando a

carga.

08:00 h

Paramos em Paraíba do Sul para tomar café e, em seguida, atravessamos

Vassouras, cidade pequena, arborizada, bonita e aconchegante.

09:00 h

Passamos por Barra do Piraí, outra cidadezinha do Rio de Janeiro, pequena,

muito pobre, cheia de morros.

09:30 h

Já estamos em Volta Redonda. De longe se percebe a nuvem de poluição a

cobrir a cidade, que é bem desenvolvida e cheia de prédios. Acredito que morar

neste lugar deve ser um pesadelo por causa da poluição. Dormi um pouco e acordei

em Resende. É uma cidade pequena, com alguns edifícios e um rio muito caudaloso

que margeia a estrada por muitos quilômetros.

11:40 h

Agora entramos no estado de São Paulo, mais exatamente nas proximidades

de Aparecida, onde há uma parada para o almoço. A cidade é muito simpática. De

longe, pude ver a Catedral Basílica, que impressiona por sua imponência.

13:00 h

Chegamos a Taubaté. A cidade é enorme e eu até acreditei que já estava na

cidade de São Paulo. Se o motorista não me adverte, eu teria desembarcado ali. O

ônibus parou na rodoviária. Muita gente desceu, mas eu preferi ficar no carro, por

estar nervoso demais. Talvez pelo medo do desconhecido. Não vejo poluição, mas o

horizonte da cidade é escurecido.

15:30 h

Finalmente, São Paulo. Ao desembarcar na Estação Rodoviária do Tietê,

tomei um susto. O terminal era imenso e havia uma multidão incalculável ali,

partindo e chegando, ônibus pra todo lado. Fiquei apreensivo, achando que não

encontraria minha cunhada, que prometera me esperar. Mas não demorei dez

minutos para avistar Célia, acompanhada de Bela, sua irmã. Da rodoviária até o

distrito de Jardim Ângela, onde meu irmão morava, foi uma viagem de mais de seis

horas. Um engarrafamento monstruoso paralisava o trânsito da cidade inteira.

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Memorizei quase todas as casas e prédios da avenida Santo Amaro, pois o ônibus

parava a cada metro que conseguia andar. Fazia um calor infernal, e eu lá de casaco,

carregado de malas e mochilas. Parecia até que estava indo de mudança definitiva

para São Paulo. Finalmente, chegamos ao Jardim Ângela, e logo em seguida ao

Parque Novo Santo Amaro, onde ficava a casa de meu irmão.

O tempo ali entre eles passou voando. Em vinte dias, pude descansar e

ordenar minha mente e refazer meus projetos de vida. Gostei tanto das pessoas que

não tinha ainda tido oportunidade de conhecer: um montão de cunhadas de meu

irmão, a sogra dele e mais gente, muita gente. No dia que voltei para Salvador, todos

choraram na despedida. Eu não me agüentei e chorei também.

Gostei tanto da experiência que um ano depois viajei de ônibus com minha

mãe, meu sobrinho Murilo, meu filho Junior e Jean, um amigo da família. Desta vez,

a viagem não foi tão surpreendente quanto a primeira, pois já conhecia o trajeto. A

partir de então, passaria a visitar meus irmãos todos os anos, no Natal e no Ano

Novo. Fui duas vezes de carro e outras tantas vezes de avião.

Houve uma viagem que me marcou em especial, na segunda vez em que fui de

carro. Resolvi sair de São Paulo quando faltavam vinte e cinco minutos para a meia-

noite. Todos protestaram: minha mãe, meu irmão, as cunhadas dele e outras

pessoas que estavam na casa. Mas não ouvi ninguém. Era uma noite de reveillon.

Vimos a queima de fogos, em comemoração ao Ano Novo, quando atravessávamos a

cidade, passando pela Avenida Santo Amaro, em direção à BR-116.

Cursos de inglês e espanhol

Tinha muitos planos de fazer viagens ao exterior, por isso comecei a aprender

inglês. Fiz um curso de três anos em uma escola tradicional da cidade. A princípio,

parecia que jamais conseguiria aprender uma palavra sequer. Mas, com o passar do

tempo, fui me acostumando com a língua, e hoje já consigo conversar normalmente

até com próprios nativos. Já o curso de espanhol durou apenas vinte dias, acabei

desistindo. Preferi me aperfeiçoar primeiro no inglês e somente depois recomeçar o

curso de espanhol.

Viagens para Jequié

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Quase toda semana eu viajava para Jequié e, na maioria das vezes, ficava na

casa de minha irmã Quira. Numa dessas viagens, fui até o açougue com ela para

comprar uns dois quilos de bife. O açougueiro cortou a carne e separou as peles das

partes mais duras num montinho. Enquanto ele pesava e embalava a carne, mostrei

o montinho de peles à minha irmã e perguntei-lhe se aquilo a fazia lembrar de algo.

Ela sorriu, como que concordando com a lembrança do tempo em que comíamos os

refugos doados pelos barraqueiros da feira livre da cidade. O açougueiro, pensando

que queríamos levar as peles, falou que poderia embalar aquele sebo para darmos

aos cachorros, caso os tivéssemos. Respondemos que não tínhamos cachorro e que

falávamos de outra coisa. Ele não entendeu nada.

Pedalando e dirigindo em Salvador

Resolvi comprar uma bicicleta, a fim de fazer exercícios físicos. Não me

agradava muito ficar em academias, pela minha timidez e também por ser um lugar

fechado, onde geralmente não se pode ver paisagens, a não ser através das janelas.

Encontrei um anúncio no jornal, telefonei e fui até o bairro de Pituaçu, que era onde

morava o vendedor da bike. Voltei de lá pedalando pela avenida Paralela. Daí em

diante, passei a pedalar por duas ou mais horas, todos os dias. Lembro-me que,

numa das manhãs em que pedalava pela Pituba, começou a chover e, quando olhei

para o relógio, vi que já eram sete e trinta da manhã e eu deveria estar no trabalho

antes das oito, pois era dia de sessão no Tribunal. Corri tanto que parecia que a

bicicleta flutuava sobre a água. Mas cheguei a tempo ao trabalho.

Saía quase todos os dias de Nazaré e ia até Paripe, Alto de Coutos, pedalando

pela Suburbana e por Ipitanga, em Lauro de Freitas. Muitas vezes, pedalava de

manhã cedo, antes de ir para o trabalho, e, quando chegava em casa à tarde, repetia

a dose. Cometi loucas aventuras com minha bike, como sair às 22 horas de Salvador

rumo a Dias D’Ávila, aonde cheguei após pedalar três horas na chuva. Fiquei em

casa de amigos e voltei no dia seguinte, pedalando de novo.

Eu tinha muito medo do trânsito de Salvador, mas, depois que eu comecei a

pedalar pela cidade, acabei me acostumando com o ritmo e com o movimento rápido

dos carros. Até quando andava de táxi sentia medo, ficava sempre segurando na

porta do carro. Aos poucos, fui me habituando.

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Ao ver senhores e senhoras dirigindo tranqüilamente, fiquei mais animado e

confiante para dirigir também. Resolvi então entrar num consórcio de carro e me

matricular numa auto-escola para aprender a dirigir. Tomei mais aulas do que o

necessário, e mesmo depois delas ainda continuava um pouco inseguro e com medo

de tirar a carteira de motorista. Mas a forma com que os instrutores davam as aulas

foi decisiva para me ajudar a resgatar a minha segurança. Certa vez, quando

manobrava o veículo, o instrutor pediu que me aproximasse de um muro e parasse,

para que um outro carro que estava atrás pudesse passar. O carro ficou numa

posição complicada. Só poderia ser retirado dali através do uso de meia embreagem

e de marcha à ré. Eu estava apenas começando a aprender a fazer meia embreagem,

e por isso o instrutor ficou preocupado com a possibilidade de eu bater com o carro

no muro. Ele já ia saindo para pegar o carro e retirá-lo dali, quando mudou de idéia

e resolveu que eu poderia fazê-lo, seguindo suas orientações. Fiquei supernervoso,

mas ele me transmitiu toda a calma que eu precisava. Foi minha primeira grande

vitória, pois dali em diante criei coragem para enfrentar desafios outros que

porventura pudessem ocorrer na direção de um veículo.

Quando o instrutor achou que eu já estava apto a me submeter aos exames do

Detran, falou em marcar os testes. Relutei bastante. Depois resolvi alugar o carro da

própria auto-escola por um dia inteiro, a fim de treinar bastante antes de fazer os

testes práticos. Marcamos os exames. Fiz todos os testes e passei de primeira, para

minha própria surpresa.

Ao receber minha carteira de motorista, a primeira providência foi reservar

um carro em uma locadora de Salvador. No dia marcado, fui à locadora de veículos,

mas não tive coragem de entrar para fazer o contrato e alugar o carro. Passava várias

vezes em frente à loja, olhava para os carros circulando na rua e ficava apavorado.

Os carros passavam sem parar, a uma distância muito curta uns dos outros.

Concluindo que não tinha condições de dirigir num trânsito daqueles, voltei para

casa sem alugar o veículo.

Mais de um mês se passou e eu, enfim, criei coragem de alugar um carro. Mas

não o fiz em Salvador. Viajei de ônibus até Ilhéus, onde aluguei um Fiat Pálio. De lá

viajei para Jequié, que ficava a uns duzentos quilômetros de distância. Aprendi

muita coisa, inclusive que não se deve entrar numa curva em alta velocidade, como

eu estava fazendo. O carro cantava pneus em todas as curvas por que eu passava. Na

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estrada para Jequié, presenciei um acidente com outro veículo Pálio, que capotou

para evitar o atropelamento de um cachorro. Um dos passageiros, uma moça de

mais ou menos vinte anos de idade, em trajes de banho, voou pelo pára-brisa e caiu

morta no asfalto. O motorista e outros passageiros ficaram gravemente feridos e

foram levados para o hospital geral da cidade de Jequié. Aquilo me chocou e me fez

repensar em uma forma mais segura e preventiva de dirigir, o que adoto até hoje.

Dirigi por toda a cidade de Jequié como uma criança deslumbrada com um

brinquedo novo. Não me cansava. Acredito que gastei um tanque de combustível,

rodando por Jequié inteira.

Em outra oportunidade, aluguei um carro em Jequié, durante um final de

semana prolongado. O mico que paguei foi sair com o carro sem ligar os faróis.

Somente alguns metros após sair da locadora é que fui parar o carro para procurar

onde ficavam os botões para ligar as luzes, pois eu fiquei com vergonha de perguntar

aos funcionários da locadora.

Meu primeiro carro

Fui contemplado no consórcio de um veículo Gol, novo, ano 1998. Com esse

carro, andei cerca de duzentos mil quilômetros. Fiz duas viagens para São Paulo,

várias para Aracaju, uma para Petrolina, além de viajar toda semana para Ilhéus,

onde visitava meus irmãos Dida e Tó e para Jequié, onde moravam outros irmãos e

minha mãe. Rodava cerca de mil quilômetros por final de semana. Fiz uma viagem a

Aracaju somente para tomar uma água de coco na praça e voltar a Salvador. Nesse

dia, eu estava meio na "maresia", sem muita coisa para fazer, meio desanimado, no

tédio. Então resolvi ligar para um amigo. Marquei com ele de nos encontrarmos para

dar umas voltas e espairecer. Acabei pegando a orla, em direção a Itapoã, depois

segui rumo a Lauro de Freitas, depois Arembepe.

Conversando, conversando, passamos por Praia do Forte e acabamos subindo

até Aracaju. Chegamos à capital sergipana por volta das dez horas da noite. A cidade

estava quase um deserto. Parada. Passei por uma pracinha e parei numa barraca de

lanches, onde eu e meu amigo tomamos uma água de coco. Em seguida, pegamos a

estrada de volta a Salvador. Mais de seis horas de viagem para beber uma água de

coco, mas valeu. A gasolina era muito barata e dava para encher um tanque com R$

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25,00. Atualmente, tornou-se impossível viajar todas as semanas, devido ao preço

exorbitante do combustível.

Lembro de uma viagem que fiz a São Paulo, com minha mãe, Quira, Nete,

meu amigo Fernando e Valdeck Junior, de carro. Levamos tanta comida que os

passageiros tinham de colocar seus pés sobre caixas de refrigerantes, bolos e panelas

de comida pronta.

Em outra oportunidade, retornei a São Paulo com Quira, China, o amigo

Anderson, meu filho Junior e meu sobrinho Roberto Junior de carro. Foi uma longa

jornada. Nessa viagem, passei muito mal enquanto dirigia. Faltava pouco mais que

cem quilômetros para chegar a Sampa, quando parei para comer alguma coisa e

descansar. Como eu estava dirigindo há mais de vinte horas, fiquei esgotado e quase

não consegui seguir viagem. Preferi não dizer a ninguém que estava me sentindo

mal, para evitar preocupações. Depois de uma meia hora, já me sentia melhor e

pude então continuar a viagem.

Eu tinha bebido muito extrato de guaraná para evitar dormir ao volante, e o

efeito do guaraná foi muito forte, deixando-me desperto durante toda a viagem.

Dirigindo "ligado", tal qual um zumbi, quase provoco um acidente grave, que jogaria

o carro ribanceira abaixo. Seguia em direção ao acostamento; de repente, saí da

pista e o carro foi em direção ao barranco. Via que estava indo de encontro à morte e

não conseguia reagir. Mas, de súbito, "acordei" e mudei rapidamente a direção do

veículo. Por uma questão de segundos, não causei um acidente grave. Na volta para

Jequié, preferi não tomar qualquer tipo de estimulante. Viajei vinte e duas horas de

São Paulo a Jequié, sem parar para dormir.

Disco voador na estrada de Santa Inês

Depois que comprei o carro, não parei mais de viajar. Já não era de ficar

muito parado em casa, pois sempre fui muito ansioso. Com o carro, fiquei mais

ansioso ainda. Um dia, peguei a rodovia BR-101 para Jequié. Gostava de ir por lá,

porque passava por Santa Inês, onde podia dormir ou descansar na casa de minha

irmã China.

Nessa ocasião, convidei Lázaro Telles, um amigo que hoje vive em Londres, e

Akira, um japonês que tinha vindo ao Brasil fazer um curso de Português, que

conheci e de quem me tornei amigo. Quando peguei a BR-420, no entroncamento de

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Laje, já eram mais ou menos seis horas da tarde e a chuva nos acompanhava há

bastante tempo. Essa rodovia é quase deserta, principalmente em tardes chuvosas

de final de semana. Percebia luzes no horizonte, que confundia com farol de algum

carro em sentido contrário. Como chovia bastante e o pára-brisa ficava

constantemente embaçado, pensei também na hipótese de ser algum reflexo da água

no vidro dianteiro do carro. Tinha a mania de brincar de apagar todas as luzes do

carro, parado no meio da estrada deserta, e ligar e desligar os faróis várias vezes.

Depois seguia em frente. Repeti isso várias vezes durante a viagem. A tal "luz" me

acompanhou por muitos quilômetros, mas não me chamou a atenção.

Cheguei a Santa Inês por volta das oito horas da noite, tomei banho, jantei e

resolvi seguir viagem para Jequié, distante apenas oitenta quilômetros dali. Meu

cunhado Roberto e minha irmã acharam que era loucura sair numa chuva daquelas

e enfrentar a estrada, mas não dei ouvidos às suas advertências. Logo ao sair da

cidade, no entroncamento, percebi uma claridade estranha vindo da cidade. A

princípio, tive a nítida sensação de serem os faróis de um carro em movimento, por

trás de uma fileira de árvores. Continuei a não dar atenção e segui olhando para o

asfalto, a fim de evitar buracos e um possível acidente. Alguns quilômetros adiante,

o japonês, intrigado com a luz que via, perguntou-me de onde ela vinha. Respondi

que se tratava dos faróis de meu carro refletidos nos barrancos, pois era o que eu

realmente supunha ser. Ele não se conformou e perguntou de novo, pedindo para

que eu olhasse na direção em que apontava. E eis que, quando virei a cabeça para o

lado esquerdo do carro, avistei uma luz imensa, que emanava de algo com formato

circular. Parecia um círculo de refletores fortíssimos, apontados para o céu, girando

e vindo em direção ao carro. Fiquei extasiado com aquela visão. Parei o carro e pus-

me a admirar a cena, muito curioso e louco de vontade de saber qual seria a fonte

daquela luz, que se aproximava cada vez mais. A coisa, de formato esférico, tinha

mais ou menos o tamanho de um estádio como o Balbininho, em Salvador.

Meu amigo Lázaro começou a gritar desesperado e implorava para que eu

saísse dali. Eu não queria sair, permaneci olhando, mas acabei cedendo a seus

berros desesperados. Liguei o carro e disparei a mais de cem por hora. Parei vários

quilômetros adiante e resolvi voltar, sob o protesto de Lázaro. Só que não vi mais

nada. No primeiro telefone público que encontrei, já em Jaguaquara, liguei para

casa e para alguns amigos, relatando a história. Enviei mensagens para programas

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de televisão. Alguns até responderam, enviando e-mails onde pediam provas

concretas, fotos etc., para poderem relatar a história. Mas não havia provas. Nunca

mais vi a tal coisa, apesar de sempre passar pela mesma estrada, em horários

noturnos diversos.

Viagens a Nova York

Tive a felicidade de fazer duas viagens a Nova York. A primeira, em 1999, com

vôo saindo diretamente de Salvador para NYC; a segunda, em 2000, com escala em

São Paulo. Adorei conhecer os Estados Unidos, apesar de ter visitado somente um

único estado. Na primeira vez, passei todos os vinte dias de viagem caminhando pela

cidade, com a câmera a tiracolo para registrar tudo. Visitei o Central Park, fui ao

Empire State Building, atravessei a Brooklyn Bridge. Passava a maior parte do

tempo apreciando a arquitetura, os traçados retilíneos das ruas e avenidas, as

centenas de pessoas que iam e vinham. Fui de ferry-boat da ilha de Manhattan à

Staten Island e conheci mais um pouco dos arredores da cidade. Ali, sobretudo na

estação da ferry, vi muitos mendigos se protegendo do frio cortante que fazia. Não

tive muita vontade de visitar a Estátua da Liberdade, depois que me disseram que o

acesso ao topo da estátua era abafado e quente. Também não me animei a visitar as

Torres Gêmeas, pois fui informado de que a vista era a mesma do Empire State

Building, com a diferença de mais alguns andares de altura. Futuramente, após a

tragédia com as Torres, isso se transformaria numa grande frustração, diante da

certeza de nunca mais poder subir ao topo do World Trade Center.

Visitei um programa de televisão chamado Ricky Lake, uma espécie de

"Programa do Ratinho" à moda americana, onde as pessoas se xingavam e se

agrediam o tempo todo. Foi muito divertido.

O que mais me impressionava na cidade era a organização e o respeito ao

sinal de trânsito, mesmo nas madrugadas. Por várias vezes, ao pegar um táxi

voltando das farras para a casa onde estava hospedado, testemunhei a mesma cena:

sempre que o sinal ficava vermelho, a qualquer hora da madrugada, o taxista parava

o carro e esperava o sinal abrir. O sistema de metrô da cidade também me pareceu

fantástico, de uma pontualidade infalível.

Na segunda viagem, eu já não estava tão preocupado em tirar fotos. Além do

mais, fui fazer um curso de inglês em uma escola de intercâmbio cultural. Fiquei

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hospedado na casa de uma família no Brooklyn e estudava em Manhattan, na Sexta

Avenida. Na casa onde eu fiquei havia um sistema de alarme cuja senha de acesso

era trocada todos os dias. A pessoa tinha que digitar a senha, abrir a porta, fechá-la e

digitá-la novamente. Um dia, eu me atrapalhei e o sistema disparou o alarme. Todos

os moradores da casa correram para ver do que se tratava, achando que era um

assaltante. Quando viram que era eu, respiraram aliviados, mas fiquei muito

envergonhado e sem saber me explicar direito.

Um dia antes de minha viagem de volta ao Brasil, liguei para o serviço de táxi

e marquei uma corrida para o aeroporto no dia seguinte. A pessoa que me atendeu

ao telefone falou "hold on", e eu imaginei que ela voltaria a falar comigo. Fiquei

"aguardando" e, depois que percebi que não havia ninguém na linha, desliguei.

Alguns minutos mais tarde parou um táxi em frente à casa e começou a buzinar. Saí

para ver o que era e me deparei com o táxi à minha espera para me levar ao

aeroporto. Fiquei tão nervoso na hora que comecei a conversar em português com

um dos filhos da dona da casa. Ele me olhava espantando, e eu continuava a falar

sem parar, até me dar conta de que ele nada entendia do meu idioma. Depois de me

acalmar, pedi a ele que explicasse ao taxista que a corrida era para o dia seguinte.

Conhecer os Estados Unidos foi uma experiência muito feliz, apesar de ser

torturado pelo frio, que me obrigava a vestir várias roupas ao mesmo tempo, para

conseguir me esquentar um pouco.

Na primeira viagem que fiz tomei um grande susto, como é próprio dos

inexperientes. Remarquei o meu vôo pessoalmente no escritório da VASP em Nova

York com uma brasileira. Tudo confirmado. No dia da viagem, fui para o aeroporto

John Fitzgerald Kennedy, lépido e fagueiro, crente que meu vôo sairia dali. Qual não

foi meu espanto quando vi o guichê de check-in da VASP fechado. Procurei

informações e me disseram que não havia nenhum vôo saindo dali para o Brasil

naquele dia. Fiquei desesperado. Depois, acabei descobrindo que o vôo sairia de

New Jersey, do aeroporto Newark. Peguei um táxi e, durante a corrida, não parava

de pedir ao motorista que corresse bastante. Mas ele sempre respondia que já estava

correndo dentro do limite máximo permitido e que ali havia controle de velocidade.

Por mais que corresse, não conseguia me convencer de que ele não andava devagar.

Mas no final deu tudo certo. Cheguei a tempo, fiz o check-in, embarquei e cheguei ao

Brasil em paz.

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Viagem a Madrid

Quando retornei de Nova York, em minha segunda viagem, no ano de 2000,

fui direto para Madrid, conhecer um pedaço da Europa. Aproveitei para fazer um

curso de espanhol de vinte dias. Viajando como estudante, as despesas da viagem

ficam menores, já que há descontos nas passagens aéreas e é fácil conseguir

alojamento em casas de família. Aproveitei a viagem ao máximo. Caminhei muito

pela cidade, fui à tourada, feiras livres, danceterias, visitei Segóvia e Toledo. Adorei

o pessoal da escola onde estudei. Ali conheci gente do Japão, Coréia, Itália, Estados

Unidos e outros países. A parte triste foi que aconteceu um acidente de carro com

duas amigas coreanas, que acabaram morrendo. Todo o pessoal da escola ficou

consternado e eu até chorei a morte delas. Fiquei impressionado quando a família de

uma delas foi buscar o corpo e destruiu todos os seus pertences, inclusive as fotos

que os amigos tiraram.

Faltando alguns dias para retornar ao Brasil, comecei a ficar subitamente

apreensivo. Sentia uma necessidade grande de ver minha mãe. Por várias vezes

ligara para saber como andava a saúde dela e sempre obtinha a resposta de que tudo

estava bem, o que me deixava mais tranqüilo, mas não eliminava aquela sensação de

apreensão. Resolvi antecipar meu retorno. Mudei a data de embarque no vôo que

estava reservado e, de tão atrapalhado que estava, acabei chegando ao aeroporto um

dia depois de o vôo ter partido. Com algum esforço, a Varig conseguiu um lugar para

mim num vôo das Aerolíneas Argentinas. O vôo era para Buenos Ayres, com escala

em São Paulo. Ao chegar à capital paulista, notei que havia problemas com minha

bagagem: ou não havia sido desembarcada ou fora extraviada. Registrei a ocorrência

junto à companhia aérea e viajei para Salvador, a fim de aguardar em casa o

resultado das investigações.

Falecimento de minha mãe

Dois ou três dias depois de ter chegado de viagem, recebi um telefonema

dando conta de que minha bagagem tinha sido localizada no aeroporto de Buenos

Ayres e que já havia sido remetida a Salvador. Nesse meio tempo, meu celular ficou

sem carga na bateria e, como o carregador se encontrava na mala extraviada, resolvi

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ir até o Tribunal Regional do Trabalho para usar o carregador de minha chefe, que

tinha o aparelho igual ao meu.

Assim que a bateria completou a carga, recebi um telefonema de meu

cunhado Nilson, de Jequié, com a trágica notícia de que minha mãe tinha acabado

de falecer. Foi uma fatídica tarde do dia 14 de junho de 2000. Perdi a noção do

tempo, do espaço, de tudo. Entrei em desespero e liguei para meu amigo Fernando,

que me acompanhou na viagem a Jequié. Para minha surpresa, minha então chefe,

Ramin, e meus colegas Márcio e Iraci também foram até Jequié para o enterro de

minha mãe. Encontrei-me com eles somente no cemitério. Posso dizer que esta foi a

maior perda de minha vida. Uma tristeza que não passa, uma lacuna que não se

preenche, uma lembrança que jamais será esquecida.

Todos os irmãos conseguiram chegar para o velório, inclusive Mi, que morava

em São Paulo, e Tó, que morava em Ilhéus, onde fui buscá-lo. Só Dida não conseguiu

vir de São Paulo, pois não conseguiu dinheiro emprestado para pagar a passagem de

avião.

Em todas as viagens de férias que fiz ao exterior, sempre fui sozinho. A única

coisa que fazia era ligar para casa ou mandar um cartão-postal, não costumava

comprar presentes. Mas, voltando dessa viagem à Espanha, trazia na mala para

minha mãe um ímã de geladeira, com a frase “Te quiero, Mamá” (Te amo, Mamãe) e

o desenho de uma senhora descascando alguma fruta ou verdura. Não consegui dar

a ela o presentinho que comprei, já que falecera antes de eu chegar a Jequié.

Nunca havia pensado em levar alguém da família comigo nessas viagens, nem

mesmo minha mãe. Porém, retornando de Madri para o Brasil, no avião das

Aerolíneas Argentinas, encontrei uma senhora que morava em São Paulo. Viajava

com sua mãe, pela primeira vez em muitos anos. Contou-me que era proprietária de

uma empresa que fornecia alimentação para o exército e que passou muitos anos

trabalhando sem parar. Um belo dia, voltando sonolenta do trabalho, seu carro

atravessou a pista e quase bateu de frente em uma carreta que estava na pista

oposta. Disse ela que, desse momento em diante, resolveu trabalhar menos e cuidar

mais da saúde e da família. Estava ali viajando com a mãe justamente para dar início

ao novo ciclo de sua vida. Após ouvir essa história, decidi que levaria minha mãe

comigo na próxima viagem que fizesse ao exterior. Mas o destino não me deu tempo

de realizar este desejo. A morte chegou antes, levando minha mãe de surpresa.

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Faculdade de Turismo em 2001

Prestei vestibular para turismo, concluí três semestres e tranquei o curso por

motivos particulares. Esses motivos me levaram, também, a solicitar uma licença

sem remuneração do meu trabalho, por seis meses. Durante esse tempo, pensei e

repensei minha vida, fiz planos de me transferir para outro estado, pensei até

mesmo em ir morar em Manaus. Felizmente, após muito refletir, voltei ao trabalho,

mas resolvi não mais continuar com o curso superior (Ver capítulo "Natal e Ano

Novo 2003/2004").

Viagem a Porto Alegre

Participo do programa de milhagem da Varig. Em 2001, já possuía milhagem

suficiente para uma viagem dentro do Brasil. Resolvi então gastar minhas milhas em

uma viagem pelo sul do país, em março daquele ano. Gostei muito da cidade, mas

fiquei somente dois dias, pois não suportei o calor do verão no sul. De Porto Alegre

parti para Florianópolis, de ônibus. Amei a cidade. Conheci a Ilha de Santa Catarina,

a praia da Joaquina, o bairro Jurerê Internacional e outros locais fascinantes. Passei

uma noite e um dia naquela cidade. Em seguida, segui para Foz do Iguaçu, Paraguai,

Argentina, Rio de Janeiro, Vitória e Fortaleza. Foi uma viagem bem eclética.

Primeira viagem de avião de Junior

Meu filho Junior sempre me acompanhou em quase todas as viagens que fiz a

São Paulo, de ônibus e de carro. Um belo dia decidi fazer-lhe uma surpresa. Falei

que iríamos ao aeroporto ver os aviões. Era uma segunda-feira de carnaval, do dia 11

de fevereiro de ano 2002. Fui para a avenida Sete dar uma olhada na festa e me

divertir um pouco, antes de viajar. Quando faltava uma hora para o embarque,

marcado para 21 horas, saí correndo feito louco para não perder o vôo.

Ao chegar ao balcão da empresa, fui informado que o check-in tinha sido

encerrado e que os passageiros já estavam embarcados. Aleguei que estava com uma

criança e a atendente da Varig ligou para a aeronave e providenciou o embarque. Na

verdade, os passageiros ainda aguardavam no salão. Junior nem tinha tomado

banho ainda e eu vestia uma bermuda, camiseta e sandálias havaianas. Minha roupa

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e a roupa de Junior estavam dentro de um saco plástico do supermercado

Bompreço.

Como eu não sabia que os passageiros do nosso vôo ainda aguardavam no

salão, entrei apressado pelo túnel de embarque e, no meio do caminho, fui

informado por um funcionário para retornar ao salão e aguardar o chamado.

Aproveitei então para ir ao sanitário trocar de roupa. O saco onde eu guardava as

roupas se rompera e eu precisava providenciar um novo saco para guardar meus

pertences. A solução foi pegar um saco de lixo do sanitário. Mas, após todos os

contratempos, embarcamos e fizemos uma viagem tranqüila. Junior ficou

maravilhado e muito contente. Não parava de repetir: "Pai, o senhor não disse que

viríamos ver aviões?", ao que eu respondia que era melhor estar dentro de um avião

do que apenas vê-los por uma janela de vidro. E ele concordava exultante, mas não

parava de perguntar quando iríamos ver os aviões.

Chegamos ao aeroporto de Guarulhos no horário previsto, ou seja, às 23

horas. Pegamos um ônibus executivo para o Centro da cidade e, ao chegarmos lá, o

serviço de metrô já tinha encerrado o expediente. Tivemos de pegar vários ônibus,

indo de um terminal para outro, até chegarmos à casa de meu irmão, no Jardim

Ângela, às 5 horas da madrugada. Evitava deixar Junior dormir, para que não se

tornasse mais um fardo a carregar, já que eu estava levando nossas malas, além do

saco de lixo cheio de roupas.

Viagem à Venezuela em 2002

Ganhei uma passagem de milhagem pela TAM e fui até Manaus. De lá, peguei

um ônibus que atravessou toda a floresta amazônica pela BR-174 até a cidade de

Pacaraíma/RR. Ali, tomei um outro ônibus e fui até Santa Elena de Guairén, na

Venezuela. Foi uma viagem maravilhosa, onde pude contemplar as lindas paisagens

naturais, índios e animais exóticos. Foram apenas três dias nesse roteiro. Retornei

logo a Salvador, partindo em direção a Jequié, para passar os festejos juninos com

meus irmãos.

Acidente com o Santana

Resolvi trocar meu Gol por um Santana. Viajei para Jequié num final de

semana, em setembro de 2002, e, na volta para Salvador, quase me envolvi num

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acidente fatal, próximo à região da cidade de Santo Estêvão. Ao perceber que vinha

um caminhão na contramão, freei o carro, que derrapou para a pista oposta, indo em

direção a outro caminhão. Tentei desviar; o Santana derrapou na pista e "voou" em

direção ao matagal que havia ao lado. O carro correu alguns metros por dentro do

mato e parou num barranco. Respirei fundo, toquei em mim para ver se ainda estava

vivo e saí do carro contente e sorrindo, junto com Fernando Bingre, um amigo que

me acompanhava na viagem. O susto foi muito grande, mas me ajudou a aprender a

valorizar mais a vida.

Viagem a Cuba

Antes de ir a Cuba, procurei informações sobre o país na Internet, comprei

um guia e me informei sobre visto de entrada, hospedagem, moeda corrente, clima,

meios de transporte e tudo que um turista precisa saber para visitar um país

desconhecido. Devidamente informado, liguei para algumas agências de turismo e

enviei e-mails para outras, solicitando um orçamento de passagem aérea e

hospedagem. Várias agências responderam. Fiquei sabendo que os vôos partiam de

São Paulo, pela Cubana de Aviación ou pela Copair. Comparei os preços e escolhi os

três mais baratos. Liguei então para as agências solicitando que refizessem os

orçamentos, desta vez sem a hospedagem. Todas me prometeram enviar as

informações, que até hoje não chegaram, infelizmente. Fui pessoalmente a uma

terceira agência, onde a atendente me aterrorizou dizendo que não valia a pena ir a

Cuba. Alegou que era um local muito pobre e feio e que era uma viagem muito cara.

Disse, inclusive, que um amigo dela que esteve em Cuba passara por situações

terríveis e criticou a comida escassa, isso, aquilo e muito mais. Fiquei estarrecido

com o relato, principalmente porque o objetivo de uma agência de turismo é

"convencer o cliente a viajar", e não o contrário.

Resolvi, então, montar meu pacote por conta própria. Liguei diretamente

para a empresa de aviação e reservei minha passagem. A própria companhia aérea

se encarrega de enviar, via sedex, a passagem e o "cartão de turista", que é o visto

cubano. Tudo foi resolvido em apenas um dia. Informei-me sobre hospedagem

alternativa e encontrei as "casas de aluguel", que são casas de cubanos que podem

ser alugadas a turistas, mediante uma autorização prévia do governo federal do país.

Uma dessas casas era a de Miriam Crespo, em Havana, onde fiquei hospedado.

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Liguei para a proprietária e fiz a reserva, pagando-lhe as diárias assim que cheguei à

sua residência. O custo foi muito mais barato do que o informado nos orçamentos

das agências de turismo.

No dia 5 de outubro de 2002, embarquei em São Paulo rumo a Havana.

Infelizmente, houve um problema com o radar do avião, o que obrigou os

passageiros a desembarcarem e ficarem hospedados num hotel por quase dois dias,

tudo pago pela companhia aérea de Cuba. Somente no domingo à noite conseguimos

embarcar. Não diretamente para Cuba, mas com destino a Buenos Ayres, pela

Aerolíneas Argentinas. De lá, pegamos um avião da Cubana de Aviación para

Santiago do Chile e, finalmente, do Chile para Havana. Cheguei a Havana ao meio-

dia de uma segunda-feira, dia 7 de outubro.

Transcrevo abaixo, algumas impressões sobre a viagem, escritas no dia 8 de

outubro de 2002:

“Estou na varanda da casa que aluguei, olhando o movimento da rua. Devem

ser oito horas da manhã. Poucas pessoas passam por aqui, que é um bairro

residencial. Acho que, a esta hora, todos já foram para o trabalho.

Ainda não conheci o centro e a parte nova da cidade. Tudo que conheci até

agora foi o que observei durante o percurso do carro que me trouxe do aeroporto,

que fica a mais ou menos 20 km daqui, além do que pude ver na caminhada que fiz

ontem, de uns cinco quilômetros. A cidade dá uma nítida impressão de simplicidade,

extrema simplicidade, tudo muito parecido com o subúrbio de Salvador,

especialmente com os bairros de Vista Alegre, Paripe, Alto de Coutos e Avenida

Suburbana, no que diz respeito à arquitetura, ao traçado das ruas, à falta de

conservação e manutenção das habitações e das praças e ruas em geral. A diferença é

que, no bairro onde me hospedei, as ruas têm um estilo americano, onde as casas,

afastadas umas das outras, têm jardim e cerca muito baixa. Uma parte da calçada é

gramada e outra possui uma trilha cimentada. A maioria das casas é térrea. E os

poucos edifícios que vi são bem antigos e muito parecidos com os prédios da Ilha de

São João (subúrbio de Salvador, próximo a São Tomé de Paripe). A diferença

primordial é que os prédios de Havana não têm grades na frente nem porteiros -

nem mesmo eletrônicos -, porque não há violência ou perigo de roubo ou assalto.

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Fiquei impressionado com este fato, que se contrapõe à vida em Salvador, onde

vivemos presos atrás de grades, tal qual animais enjaulados.

Hoje, pelo menos até agora, a temperatura está amena, ao contrário da

temperatura de ontem que, de tão quente, tirou-me o ânimo de continuar a

caminhar e conhecer melhor o bairro. Pretendo passar o dia inteiro fora de casa,

tirando fotos e visitando lugares.

Aqui há três canais de televisão e a programação é bem diferente do que se vê

no Brasil, inclusive não há propagandas comerciais. As emissoras exibem quase todo

o tempo, programas educativos, aulas de idiomas, de História, Geografia e assuntos

relacionados a Cuba. Há um noticiário - o "Noticero" - que é transmitido em cadeia

pelos três canais durante a noite. O restante da programação é composto de shows

de músicos cubanos, balé e tudo o que se refere à cultura e à revolução cubana. À

noite, são apresentadas minisséries brasileiras duas vezes por semana (chamadas de

novelas pelos locais). São intercaladas com novelas cubanas. Atualmente estão

exibindo Chiquinha Gonzaga e Aquarela do Brasil, minisséries produzidas pela

Rede Globo. Notícias esportivas também fazem parte da programação, mas os jogos

ao vivo nunca são transmitidos, nem mesmo os da Copa Mundial. Não há satélites

nem antenas parabólicas em Cuba, para evitar a entrada de imagens e interferências

americanas nas TVs e rádios locais.

***

9 de Outubro de 2002, 11:35h

Estou em casa. Ontem fui à La Habana. Muito do que vi deixou-me chocado,

pasmo... Todas as informações e fotos que antes coletara sobre Cuba estavam muito

longe da verdadeira realidade cubana, que eu desconhecia totalmente. Observando

in loco, notei que a dureza da vida do povo e a pobreza do país são muito maiores do

que se possa imaginar. Tudo, absolutamente tudo, é antiquado e ultrapassado, desde

os carros até os edifícios. As coisas são velhas e mal conservadas. Em contraste com

toda a pobreza e decadência, porém, há alguns prédios em impecável estado de

conservação, principalmente aqueles onde funcionam as embaixadas. Também vi

carros importados de última geração e estranhei. Fui informado depois que esses

carros pertenciam a técnicos estrangeiros que trabalhavam no país. Dificilmente um

cubano comum poderia comprar um carro daqueles, devido ao altíssimo preço. Cabe

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assinalar aqui que, de fato, há carros particulares, mas a maioria deles pertence ao

estado.

Tomei uma bebida cubana, muito tradicional e popular, o "Mojito"

(pronuncia-se "morrito"). É uma espécie de caipirinha: rum, limão, açúcar, gelo,

água mineral com gás e folhas de hortelã fina. Toma-se com um canudo. A bebida é

ótima, mas seu preço é salgado: OITO DÓLARES o copo!

Fui comer em um restaurante chinês, mais parecido com aquelas espeluncas

da Baixa do Sapateiro (Salvador/BA) do que propriamente com um restaurante.

Comi uma bisteca, um pouco de salada de pepino, uma colher de arroz e tomei uma

cerveja em lata. Preço: QUINZE DÓLARES.

Pelas ruas do bairro onde fiquei todos os dias passava um homem vendendo

pão, iogurte de goiaba e leite de soja. Este homem é o "mensageiro". Cada família

tem um limite máximo de pães para comprar, acho que UM pão por pessoa. Tudo

que se compra deve ser anotado na "libreta", uma espécie de caderneta da família.

Não podem ultrapassar o limite preestabelecido, para que todas as famílias possam

comprar, já que a comida é escassa no país.

Em uma de minhas caminhadas pelo centro de Havana, tomei uma água de

coco que me custou DOIS DÓLARES. O coco era pequeno, feio e murcho, do tipo

que eu jamais compraria se estivesse no Brasil. Tampouco um vendedor teria

coragem de colocar aquele fruto à venda.

Não comi carne bovina nem vi aonde poderia comprar. Fui informado de que

não deveria comprar carne nas ruas (não vi ninguém vendendo), pois o cubano que

me vendesse a carne poderia ser preso. É proibido o comércio de carne, exceto nas

"carnicerías" (açougues). O nativo que for pego pela polícia ou denunciado por

vender carne é preso. No entanto, nada acontece ao turista que a compra. As pessoas

vigiam umas às outras e qualquer deslize é logo denunciado. Em cada quadra dos

bairros há um "Mayor" (responsável), a quem todos os moradores devem dar

informações de tudo o que ocorre na vizinhança. Eles se reúnem uma vez por

semana. A dona da casa onde o turista se hospeda é obrigada a informar nome,

endereço e carteira de identidade de todas as pessoas que visitam o turista, sob pena

de sanção por parte do Estado, que poderá ser de uma simples advertência e

cancelamento da autorização para alugar a casa e até penas mais pesadas. Não

obtive informações sobre em que consistiriam essas penas.

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Não há muitas lojas ou vendas/armazéns, nem supermercados. Há pequenas

lojinhas onde se vende de comida a roupa, tudo muito caro e da pior qualidade. Em

uma das "tiendas" (lojas) mais completas que entrei, encontrei somente coxa de

frango, fígado e moela de galinha, tudo de origem brasileira. O arroz era todo

quebradinho e custava OITO DÓLARES o quilo, mas mesmo assim era muito mais

barato que comer em restaurantes.

Os táxis são do estado; ônibus urbanos são raros. Os "camelos" - espécie de

carreta imensa adaptada para transportar pessoas -, os trens, os automóveis, tudo

pertence ao estado. Até mesmo as motos-táxi, umas parecidas com laranjas e outras

parecidas com aquelas motos americanas, com um side-car, pertencem ao estado.

Há ainda as bicicletas-táxi, que cobram mais barato. Estas eu não sei se pertencem

ao estado, mas sei que pagam taxas de licença para rodar como "táxi". Ninguém usa

cintos de segurança nos carros. A maioria dos automóveis é muito antiga, das

décadas de 40 e 50. Todos muito velhos, porém correm bastante. Por dentro, são

destruídos e desprovidos de peças, já que ninguém consegue encontrá-las para

reposição. O cheiro de gasolina, muito forte dentro desses carros, fazia com que eu

me sentisse mal. A maioria desses veículos é particular e seus proprietários os

utilizam como táxi, mediante uma licença do Estado. Outros transportam pessoas

clandestinamente, correndo o risco de serem pegos pela polícia e serem presos.

Os telefones públicos são raros. Para fazer uma ligação internacional é

necessário comprar um cartão que custa DEZ DÓLARES, ligar para a telefonista e

solicitar a chamada, que não dura mais de cinco minutos. Ligar de uma residência é

quase impossível, a menos que se conheça, e muito bem, o dono da casa, pois os

cubanos têm medo de perder suas linhas telefônicas, já que as chamadas telefônicas

podem ser gravadas pelo estado, por motivo de segurança.

Fui informado sobre a cesta básica mensal que cada família de quatro pessoas

tem direito a comprar, a preços baixíssimos, para garantir que TODOS possam

comer, pelo menos, o necessário. Os que têm dinheiro podem comprar de

particulares, a preços maiores.

1 kg de biscoito

20 l de iogurte

20 l de leite

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1 kg de sal

12 kg de arroz

2,5 kg de feijão

6 kg de açúcar branco

4 kg de açúcar preto

5 caixas de cigarros (somente para maiores de 42 anos de idade)

1 l de óleo

2 pacotes de café

4 sabonetes (que devem durar até três meses)

1 creme dental

20 kg de gás de cozinha, a cada 20 dias

4 kg de frango

6 kg de peixe

1 kg de salsicha

1 kg de carne bovina

4 dúzias de ovos

frutas diversas

Mais informações sobre Cuba:

1) El Malecon - uma avenida extensa, que mede mais ou menos uns oito

quilômetros, que liga Habana Vieja (Centro Histórico) a Vedado (parte mais

moderna), repleta de casarões antigos - muitos precisando de reforma urgente. Boa

parte dos prédios antigos está sendo restaurada. As construções mais antigas e as

ruas transversais próximas ao centro de Habana Vieja lembram muito as casas e

prédios do Pelourinho, antes da reforma, e a atual rua 28 de setembro, ambos em

Salvador/BA. Não se pode comentar nada a respeito de política ou sobre o governo.

As pessoas se recusam a falar, com medo de que alguém as denuncie.

2) As emissoras de rádio funcionam em ondas médias e curtas, com uma

transmissão muito precária. A programação é baseada em músicas cubanas, política,

notícias nacionais e, uma ou outra vez, colocam uma música estrangeira,

principalmente brasileira, como Roberto Carlos e Alexandre Pires, em espanhol.

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3) A frota de aviões da empresa cubana é formada por aeronaves antigas e

algumas com problemas no sistema de refrigeração.

4) Em minhas andanças, vi algumas embarcações no porto, que mais parecia

um cemitério de navios do que verdadeiramente um porto.

5) A última moda entre os cubanos é a camiseta "furadinha", de cores

berrantes, tipo azul, verde, laranja, rosa e vermelho.

6) Acesso à Internet é uma raridade, se não totalmente inexistente. Os

cubanos podem acessar "correio eletrônico", o que não pode ser chamado de

Internet, como é hábito no resto do mundo, uma vez que não há acesso a sites

estrangeiros e, talvez, nem mesmo a sites cubanos. Somente estrangeiros podem

acessar a Internet, a preços desestimulantes.”

Viagem para São Paulo com Gal e Eliana

No ano de 2003, viajei de ônibus, mais uma vez, para São Paulo. Dessa vez,

levei meu irmão Gal, sua esposa Eliana, minha sobrinha Paulinha e meu filho

Junior. Na viagem de volta, uma cena me chamou a atenção. Na verdade, eu já tinha

visto esta cena várias vezes, nas idas e vindas entre Salvador e Jequié. Mas eu queria

mostrá-la a Junior e Paulinha. Queria que vissem aquelas pessoas sentadas à beira

da rodovia, com as mãos estendidas. Paulinha perguntou o que elas estavam fazendo

naquela posição. Falei que estavam pedindo esmolas. E ela, surpresa, me perguntou

o que significava "esmolas"... Lancei um sorriso de cumplicidade a meu irmão e

minha cunhada, e expliquei a Paulinha do que se tratava. Afinal, tive uma boa

experiência na ação de pedir esmolas.

Natal e Ano Novo em 2003/2004

Devido a uma série de problemas particulares, conflitos, contradições e

pirações diversas, além de um assalto a mão armada que sofri, o final de ano de

2003 para 2004 não foi dos melhores, apesar de eu ter passado as festas de Natal e

Ano Novo rodeado de familiares em São Paulo. Ao retornar a Salvador, fui forçado

pelas circunstâncias a pedir uma licença não-remunerada de meu trabalho e a

trancar meu curso de Turismo na Faculdade São Salvador.

Passei oito meses enclausurado em mim mesmo, tentando sair de uma

profunda depressão, do poço escuro... Recorri até a ajuda profissional. Durante esse

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período, não produzi absolutamente nada, nem sequer acrescentei uma vírgula a

esse livro, já em fase final. Pensei, repensei, caminhei mentalmente mil vezes o

Caminho de Santiago de Compostela, peregrinei pelas profundezas de minha alma

até que, finalmente, após várias injeções de doses de misericórdia, e também

auxiliado pela terapia TEATRO, com André Mustafá e Marília Galvão no comando,

fui sendo, aos poucos, trazido de volta à vida. E aqui estou, inteiro, completo, repleto

de milhões de idéias positivas e rejuvenescedoras, pronto para compartilhar com

quem quer que venha ao meu encontro.

Antes de sair desse estado de torpor, praticamente vegetei. Durante muitos

dias eu acordava pela manhã em pânico, triste e deprimido, apesar de estar tomando

remédios fortíssimos para combater a doença psicológica. Todas as manhãs eu ouvia

músicas de Enya, vindo de longe, como se o vento as estivesse trazendo para me

perturbar. Aquelas músicas eram as mesmas que eu ouvia ao namorar, ao buscar me

concentrar em meus trabalhos mentais e também quando eu queria ficar em paz.

Mas, nas circunstâncias em que eu as estava ouvindo, era muito contraditório. Elas

serviam para me deixar cada vez mais enclausurado e com medo de sair de casa.

Nesses momentos de solidão, eu pensava em morrer, em fugir da cidade, em

fugir das pessoas e de mim mesmo. Todos os meus compromissos sociais eu

cancelava sem motivo justo, ou simplesmente não comparecia a encontros com

amigos e parentes, para não conversar com ninguém.

Busquei, além de ajuda psicológica e psiquiátrica, ajuda espiritual. Freqüentei

o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, por

várias semanas. Ali, eu conseguia um pouco de paz espiritual, mas, quando

retornava para casa, o mundo caía de novo em minha cabeça. Fui, também, à

Federação Espírita, no Pelourinho, tomar "passes", que me acalmavam enquanto eu

estava na casa espírita.

Foram muitas noites de fuga, muita desilusão e falta de interesse de voltar à

realidade... Então eu decidi enfrentar o problema de frente. Parei de tomar os

remédios controlados, comecei a sair de casa, mesmo apavorado. Andei a pé por

muitas ruas e praias ditas perigosas, evitando olhar para trás. Meu medo era que

alguém estivesse me seguindo para me matar ou me causar um mal, mas eu

enfrentava esse medo para que ele não me controlasse mais ainda.

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Aos poucos fui tomando confiança em mim, acreditando que eu poderia

sobreviver àquele pesadelo. Paulatinamente, eu percebia que a cada dia melhorava

um pouco mais... Até no teatro eu comecei a sentir que me concentrava mais e mais

nos textos e na interpretação. Após longos oito meses de terapia convencional e não-

convencional, me achei apto a voltar a trabalhar e a levar adiante meus projetos de

vida, que até então estavam estacionados.

Graças a Deus consegui me libertar do medo e da depressão, à custa de muito

esforço e de muita ajuda espiritual. Eu orei muito durante várias semanas, buscando

fortalecer o meu ego e minha alma, que tinha passado por uma experiência muito

difícil. Finalmente entrei em estado de consciência positiva e prossegui minha

jornada até hoje. Continuo em busca, cada vez mais, de um equilíbrio emocional e

espiritual.

Natal e Ano Novo em 2004/2005

Praticamente todos os anos eu viajava para São Paulo. E, nos finais de ano,

sempre levando minha mãe e mais algum irmão ou parente que ainda não tivessem

conhecido a maior cidade do Brasil. Em 2004, devido aos ensaios de uma peça

teatral que estrearia em breve nas casas de espetáculo de Salvador, preferi não

viajar. E foi um Natal diferente. Passei na casa de Dona Célia, em Monte Gordo.

Conheço dona Célia e sua família há mais de dez anos. Acabei por adotá-la

como mãe e seus filhos como irmãos. Mas, antes mesmo de me sentir irmão de seus

filhos, estes já me consideravam como tal. E, por incrível que pareça, foi o primeiro

Natal em que troquei presentes, como se estivesse no seio da minha verdadeira

família, o que, aliás, nunca fizera antes com meus irmãos de sangue. À meia-noite

em ponto, estouramos champanhe, fizemos a ceia, trocamos presentes e desejamos

uns aos outros muitas felicidades e saúde. Depois caímos todos na piscina, que

estava com sua boca azul e aberta, esperando para nos devorar naquela noite

maravilhosa.

Foi um Natal espetacular, regado a sentimento, carinho, respeito, amor, afeto

e positividade. Os participantes da festa: eu, Dona Célia e seus filhos Roque e Ivana,

suas netinhas Estéfane e Ariana, e os amigos: Edmar Mascarenhas, Isabela, Vera,

Everaldo, Edebaldo, Meire, Érika, Cris e o bebê Eriem, que vieram de Jacobina

especialmente para esta confraternização de final de ano.

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Orientação Religiosa

Talvez não coubesse neste livro discorrer sobre "religião", já que o que se ouve

por aí é que "religião, futebol e política não se discute". Mas tenho muito medo do

que se esconde por trás de frases como essas que se perpetuam através da existência

humana e que acabam travando ou atrasando o fluir do pensamento e sua evolução.

Não me refiro aqui à minha orientação ou crença pessoal, mas a uma visão mais

abrangente do assunto. Estou colocando apenas uma impressão, enquanto ser único

e individual, que é, ao mesmo tempo, influenciável e influenciador.

Nasci na religião católica, com direito a missas, catecismo, primeira

comunhão, crisma e tudo mais, como a maioria dos brasileiros. Diz-se que todo

aquele que não tem religião é católico, o que é bastante discutível, já que há

"católicos" (os praticantes) e "católicos" (os não praticantes). Mas o mérito desta

questão eu deixo para os doutores no assunto.

O que me compete dizer aqui é que eu e todos da minha família (tudo

começou no Jardim do Éden, com meu pai e minha mãe) fomos católicos por muitos

anos. Por força da necessidade de comer e beber - necessidades básicas do ser

humano -, tivemos contato com o Espiritismo Kardecista, atraídos principalmente

pelas cestas básicas distribuídas aos freqüentadores do Centro Espírita Bezerra de

Menezes. Devido às circunstâncias da vida, problemas de saúde, financeiros e

outros, minha mãe acabou voltando aos terreiros de Candomblé, os quais já havia

freqüentado em sua juventude, segundo seus relatos. Mesclaram-se três religiões a

partir de então.

Na minha adolescência, em virtude dos conflitos existenciais, acabei me

perdendo em meio a tantas definições sobre o que era certo e o que era errado.

Busquei refúgio na Igreja Batista Monte Horebe e me "converti", amedrontado por

aqueles filmes que mostravam o destino dos "infiéis", que eram queimados no

mármore do inferno. Bíblia na mão, cantor cristão, harpa, livrinho de hinos e idas

diárias à igreja. Levava comigo a família inteira e os vizinhos mais próximos. Depois

"acordei" para outros horizontes e saí da igreja, arrastando todos os meus

SEGUIDORES de volta.

Transcorridos oito ou nove anos desde que passei a morar em Salvador,

conheci pessoas que professavam o Candomblé, que me convidaram para assistir a

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rituais e participar de festas. E fui. Conheci várias "roças", e tinha sempre sensações

estranhas em quase todas as festas das quais participava: tremores, calafrios,

tonturas e arrepios. Fiquei receoso do que poderia resultar essa experiência e preferi

dar um tempo, fora das atividades, para pensar no assunto.

Por ocasião deste tema, gostaria de deixar registrado que minha mãe era um

pouco bruxa. Conhecia e fazia uso com sucesso de inúmeras plantas medicinais,

pressentia o que estava por vir, tinha visões de acontecimentos futuros, que

posteriormente eram sempre comprovados. Isso sempre nos deixou um tanto

perturbados, pois nos recusávamos a acreditar que ela pudesse possuir tais poderes.

Mas os fatos sempre se confirmavam. Tinha planos de escrever um livro, relatando

todo o seu conhecimento a respeito das plantas e de suas propriedades medicinais.

Fui adiando, adiando, e hoje me arrependo de não tê-lo escrito.

Para concluir a questão religiosa, minha mãe morreu espiritualista e foi

velada numa igreja batista. Minha irmã Valquíria se converteu ao protestantismo e

hoje freqüenta uma igreja batista. Minha irmã Ivonete é beata de carteirinha,

freqüenta e quase mora na igreja católica. Está mesmo se tornando uma freira. Os

demais irmãos freqüentam qualquer igreja que esteja aberta e na passagem dos seus

caminhos. E eu freqüento o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa

Viagem, em Salvador, e a Federação Espírita da Bahia, no Largo São Francisco, no

Pelourinho. Mas, se for convidado para assistir a uma missa, irei; para participar de

um culto evangélico, participarei; para ir a uma festa de candomblé, estarei lá,

sempre com a maior boa vontade.

Atualmente

Trabalho ainda no Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador. Valquíria

(Quira), minha irmã mais velha, mora há oito anos em Jequié com seu novo marido,

Nilson, com quem se casou recentemente. Em oito de novembro de 2004, Quira foi

submetida a uma cirurgia. Quando criança teve complicações de saúde que a

deixaram com seqüelas sérias. Tinha de ficar amarrada na cama para não cair, pois

se batia o tempo todo. Depois do tratamento médico, ficou boa. Mas o que ela nem a

família sabiam era que o tratamento não poderia ter sido interrompido. Resultado:

teve uma febre reumática e a bactéria causadora da doença se alojou na válvula

mitral esquerda do coração. Com o passar dos anos, começou a se queixar

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freqüentemente de cansaço, falta de ar e outros distúrbios relacionados à respiração

e circulação sangüínea. Em janeiro de 2004, Quira resolveu entrar numa academia

de ginástica e, no teste de avaliação física, desmaiou. Procurou um médico

cardiologista especializado, que sugeriu uma valvuloplastia urgente.

Após vários exames nos hospitais de Salvador e uma espera de seis meses

para que o INSS concluísse o processo de licitação internacional e compra do

material a ser utilizado, finalmente conseguiu marcar sua cirurgia no Hospital Santa

Isabel para o dia 20 de setembro de 2004, que foi adiada dois dias antes, sem

previsão de nova data para sua realização. Enquanto a intervenção não acontecia,

Valquíria passava momentos difíceis, com apenas 10% da capacidade da válvula

mitral esquerda em funcionamento.

Em decorrência de várias complicações, foi atendida mais de três vezes na

emergência cardiológica do Hospital Santa Isabel, que sempre exigia um cheque de

R$ 2.000,00 como depósito antecipado para realizar o atendimento médico. E isso

depois de conseguirmos furar a barreira dos seguranças na entrada da emergência,

que só se preocupavam em perguntar, antes de qualquer coisa: "qual é o convênio

médico?". Por meio de informações diversas, descobrimos que o Hospital das

Clínicas (UFBA) também realizava esse tipo de cirurgia. E assim conseguimos

marcar uma outra data, 28 de outubro de 2004, que supúnhamos ser definitiva.

Porém, fomos surpreendidos, na véspera da cirurgia, com a notícia de que ela teria

de ser adiada, sem previsão de nova data, porque o INSS não tinha liberado o

material necessário ao procedimento, que custava mais de R$ 40.000,00.

Pesquisando na Internet, descobrimos o Instituto do Coração de Cachoeiro do

Itapemirim/ES, para onde encaminhei Quira, que viajou acompanhada de Nete,

nossa irmã, para se submeter à cirurgia. Viajaram no dia 4 de novembro. Quira ficou

hospedada em uma casa de apoio mantida pela comunidade cachoeirense e, no dia 8

de novembro de 2004, foi internada e submetida à intervenção cirúrgica, que, graças

a Deus, foi um sucesso total. Em questão de dias, o problema, que esperou durante

anos por uma solução, chegou ao fim.

Valdecy (China) mora hoje em Vitória da Conquista com o marido Roberto e

o filho Roberto Junior. Foram oito longos anos de espera por uma transferência da

Escola Agrotécnica Federal de Santa Inês/Ba, onde seu marido trabalhava, para o

Centro Federal de Educação Tecnológica de Vitória da Conquista/BA.

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Valmir (Mi) mora em São Paulo, com a esposa Célia e os filhos Ramon e

Amanda. Também em São Paulo moram Valdir (Dida), com a esposa Raimunda e a

filha Jéssica, e Vitório (Tó), com a esposa Rejane e os filhos Vítor e Tiago. O

primeiro trabalha como porteiro de um grande condomínio e os demais como

chapistas em oficinas mecânicas.

Vivaldo (Gal) mora em Jequié, com a esposa Eliana e a filha Paula, e trabalha

como chapista em uma oficina mecânica. Nete, caçula e solteira, está fazendo

faculdade de Pedagogia em Jequié.

Creio que somos todos vencedores, sobretudo porque não fugimos à luta. De

tudo, ficaram lições que disponibilizo aqui como uma espécie de roteiro.

Roteiro para quem quer vencer na vida:

1. Traçar um objetivo real e plausível, para não se frustrar, caso não consiga

atingi-lo.

2. Fazer um plano de metas a serem atingidas, a cada dia ou a cada semana.

3. Caso não consiga concluir o plano diário ou semanal, verificar o que não

deu certo para tentar novamente ou mudar de plano.

4. Ter muita paciência, pois o dia-a-dia nem sempre é estimulante.

5. Ter muita fé naquilo que se propuser a fazer e persistir sempre.

6. Dividir sonhos e objetivos somente com aqueles que possam lhe ajudar a

concretizá-los ou, ao menos, incentivar-lhe e dar boas dicas.

7. Nunca se lamentar de uma situação difícil, nem usar os pontos negativos

para desistir ou diminuir a luta.

8. Falar muito pouco sobre os planos estratégicos para a sua caminhada.

9. Sempre dizer "não" a vendedores e promotores de vendas.

10. Evitar gastos desnecessários com festas, roupas e diversões.

11. Estudar e planejar, mesmo nos dias em que não houver o que comer, e

concluir a tarefa do dia a qualquer custo.

12. Não passar para a etapa seguinte sem antes concluir a atual.

13. Contabilizar erros, acertos, gastos monetários etc., a fim de fazer uma

análise crítica dos dados obtidos.

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14. Adotar sempre uma atitude positiva diante da vida e deixar que esta

imagem transpareça ao olhar dos outros.

15. Não desistir, nunca.

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CONCLUSÃO

O objetivo principal da existência humana é a evolução. Mas muitas vezes

evolução é confundida com conquista de bens materiais e conforto físico. Acredito,

no entanto, que seja um pouco mais que isso, e que o maior patrimônio que se pode

acumular com a experiência de vida na Terra é o patrimônio espiritual.

Antes de compreender que a vida é curta e efêmera, protestei e me revoltei.

Talvez por isso tenha sofrido alguns revezes relacionados à saúde, ao amor, à família

e a outros aspectos da vida.

Sempre lutando muito - e honestamente, diga-se de passagem -, consegui

superar a barreira da mendicância e passei de pedinte a esmoler. Mas a brutalidade

inata, ou adquirida, ainda permaneceu em minhas atitudes (e continua até hoje).

Isso ocasionou (e ainda ocasiona) muitos sofrimentos, mas, atualmente, já não com

a mesma intensidade dos tempos passados.

Fui aprendendo, com a experiência, que doar não era o bastante; o ato da

doação deve ser precedido por uma verdadeira vontade de doar. Tentei, e tento

ainda, praticar a doação com desprendimento, sem culpa, sem querer barganhar

com os céus. E, com isso, tenho percebido que minha vida vem se transformando

para melhor, à medida que avanço nessa prática. Essa doação não deve ser

necessariamente compreendida com o ato de retirar algo físico de meu patrimônio

para dá-lo a outrem. Deve ser compreendida, sobretudo, como o ato de doar

sabedoria, aconselhamento, atenção, tempo, um olhar de cumplicidade, um ombro

amigo...

Após esse estágio de quarenta anos de vida, tornei-me uma pessoa mais

humana, mais verdadeira, mais tolerante e mais polida, apesar de ainda estar muito

longe do ideal. Mas já é um bom começo. Quem sabe na próxima encarnação a

evolução aconteça mais rapidamente...

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HISTÓRIAS BIZARRAS

Jequié/Ba

Mordida no Braço de Dida

Uma vez estava com ele, recém-nascido, no colo, andando pelos arredores da

casa, mordendo-lhe a camisa recém-trocada por minha mãe. E eis que meu dente

pegou no braço do menino, que começou a gritar desesperado. Minha mãe veio pra

me bater, mas, como não sabia o que havia ocorrido ao certo, desistiu. Nem

percebeu a marca do meu dente no braço dele...

Choque elétrico

Uma vez estávamos eu e minha mãe pedindo esmola nas ruas. Ela entrou

numa lanchonete, onde havia um balcão de vidro com uma lâmpada para iluminar

as mercadorias. A lâmpada ficava na parte externa do balcão e, ao lado dela, havia

um bocal sem lâmpada, no qual minha curiosidade infantil levou-me a enfiar o dedo.

Tomei um choque elétrico brutal, que me fez cair ao chão e chorar muito. O pessoal

da lanchonete me socorreu. Passaram manteiga em meu dedo e me deram sorvete

para acalmar. A lanchonete ainda fica no Maringá, perto de um posto de gasolina,

guardando minhas histórias de menino.

Pegador de Menino e Tirador de Sangue

Uma das pérolas do folclore popular, alimentada pela ignorância das pessoas,

era a lenda dos "pegadores de menino" ou "tiradores de sangue", que supostamente

andavam pelas ruas dos bairros pobres tentando atrair crianças com balas e doces,

para depois seqüestrá-las e tirar seu sangue. Segundo os mais velhos, havia uma

"carneira" no cemitério da cidade, que sangrava o tempo todo, e o sangue tirado das

crianças seria usado para lavar essa carneira, numa espécie de ritual para purificar

pecados e maldades do morto, que seria um bruxo ou algo que o valha. Eu ouvia

essas histórias tanto em Jequié quanto na fazenda onde morei. Dizia o povo que

esses malfeitores colocavam as crianças em sacos grandes e as levavam para bem

longe. Este argumento era usado, principalmente, para amedrontar os meninos,

desestimulando-lhes a vontade de sair de casa. Na fazenda onde vivi dos meus sete

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aos doze anos, cansei de ouvir essas histórias, e só depois de muitos anos consegui

estabelecer um paralelo entre o folclore e a realidade. Os homens da SUCAM - atual

Fundação Nacional de Saúde, empresa governamental que realiza exames de sangue

e também investiga se há focos de dengue nas residências - encaixavam-se

perfeitamente nas características dos "pegadores de menino" e dos "tiradores de

sangue". Por esta razão, eram muitas vezes mal compreendidos pela população.

Lobisomem

Tínhamos muito medo de lobisomem, quando eu era criança e toda noite

aparecia alguém unhando a porta e a janela da casa de Amanda, onde morávamos.

Minha mãe dizia que era "ele", querendo pegar crianças sapecas... Eu ficava

apavorado, acreditando ser a mais pura verdade. A lenda do lobisomem é muito

comum nas cidades do interior.

Meu anel preferido

Junto à casa de Amanda, onde morávamos, havia a casa da Ana de Antônio

Cego. Eu e meus irmãos costumávamos brincar por lá com os filhos dela. Certa vez,

apareceram na casa umas moças que tomaram meu anel. Era um anel bem simples,

sem valor algum. Mas era meu, e eu o tinha no dedo há muito tempo. Porém, a

forma com que me roubaram o anel, forçando-me a tirá-lo do dedo, marcou-me para

sempre. E jamais me esquecerei desta mágoa e deste dia.

Achei um dinheiro

Quando tinha meus doze anos, costumava ir à feira livre com meu pai. Num

belo dia de sorte, na avenida Franz Gedeon, encontrei uma cédula de dez cruzeiros.

Estava molhada, estirada na calçada. Eu peguei a cédula e mostrei a meu pai, que a

guardou com muito cuidado no bolso direito, para que não fosse destruída pelos

movimentos da perna da calça. Pelo tanto de compras que ele fez com aquele

dinheiro, a nota devia valer bastante.

Carrinho de rolimã

Todos os garotos de minha idade, ou mais velhos, possuíam um carrinho de

rolimã. Era uma tábua com duas rodinhas atrás e uma na frente, onde cada um se

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sentava e era empurrado por alguém nas calçadas ou no asfalto. Muitos acidentes

aconteciam quando algum menino caía ou quando o carrinho quebrava. Com

rolamentos que achei nos lixos das oficinas mecânicas, construí meu carro de

rolimã. Meus irmãos ficavam com muita raiva, e com razão. Obrigava-os sempre a

me empurrar rua acima e rua abaixo no carrinho, mas, quando chegava a minha vez

de empurrá-los, eu sempre dava uma desculpa para escapar daquele encargo.

Caminhada até a Barragem

Nunca gostei muito de ficar em casa parado. Por isso, em certa ocasião,

chamei meus irmãos Mi, Tó e Dida para fazermos uma caminhada de Jequié até a

Barragem de Pedras, situada a mais ou menos uns trinta quilômetros do centro da

cidade. O sol estava escaldante e, no meio do caminho, a fome apertou. Sem muitas

opções, fomos comendo tudo o que encontrávamos pela estrada, de casca de

melancia a laranja estragada. Na volta, ainda subimos no Morro do Totonho, onde

ficam instaladas as torres de transmissão de TV e rádio da cidade. Resultado:

chegamos desidratados em casa e a maioria de nós teve febre e vômitos.

Acidentes com Nete

Quando Nete - minha irmã mais nova - era criança, comeu folhas de uma

planta venenosa que minha mãe tinha dentro de casa. Era cocó, uma planta verde

com pintas brancas espalhadas pelas folhas. Ela ficou espumando e foi levada ao

hospital passando mal. Mas, graças a Deus, o socorro foi rápido e eficiente e Nete

sobreviveu a mais uma perigosa aventura infantil.

Mais uma aventura de Nete: quando tinha dois anos de idade, bebeu água

sanitária Q-Boa. Não me lembro de maiores detalhes desse outro incidente em que

Nete se meteu. Só sei que ela passou muito mal e foi levada ao hospital regional para

ser medicada. Ficou internada e depois foi liberada. Depois desse episódio, nós a

apelidamos de "Q-boa". Ela ficava muito chateada quando a chamávamos assim.

Roubo de doces

Lembro de uma vez que fui ao Supermercado Cardoso comprar um doce.

Tinha dinheiro somente para um pacotinho. Abri um pacote e comi a metade, depois

o joguei na prateleira e peguei outro pacote inteiro. Fui direto ao caixa, todo

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desconfiado, mas, antes de pagar pelo pacotinho de doce, o segurança do mercado

apareceu com o outro que eu tinha furado e jogou em cima do guichê do caixa, para

que eu pagasse. Como o dinheiro não era suficiente para dois pacotes, deixei os dois

no mercado e fui em casa buscar mais para pagar e resgatar os doces. Até hoje não

voltei nem para pagar nem para receber o pacote de doce, mas aprendi a lição.

A calça de Memésio

Memésio, meu padrinho, era gordo como uma baleia. Uma vez, ele deu

algumas roupas usadas para que minha mãe cortasse e fizesse roupas para nós. Para

se ter uma idéia do tamanho do homem, uma calça dele, somente, se transformou

em três calças para mim e ainda sobrou tecido.

Miguel, o filho de Odília

Havia um campinho de bola em frente à casa em que morávamos, onde os

moleques sempre jogavam baba no final da tarde. Eu, perna de pau de carteirinha,

só olhava. Um dia, Miguel, o filho de Dona Odília, chutou a bola com muita força em

cima de mim. Reagi, dando-lhe uns bons tabefes e murros. Esta foi uma das

raríssimas brigas em que me meti contra outros rapazes. Depois fizemos as pazes.

Em outra oportunidade, nós nos encontramos num jogo de futebol. Jogávamos em

times diferentes, para sorte dele. Eu nunca conseguia passar a bola para os

jogadores do meu time, mesmo estando eles vestidos com camisa igual. Sempre tive

problemas de coordenação. Conclusão: meu time acabou perdendo e eu fui expulso

porque, de uma forma ou de outra, acabava ajudando o time adversário.

Caderninho de gastos

Durante muitos anos usei um caderninho onde anotava todas as minhas

transações comerciais, ou seja, tudo o que envolvia gastos e ganhos de dinheiro. Era

uma forma de controlar meu orçamento. Na prática, não deixava de ser uma

contabilidade rudimentar, pois, através desses lançamentos, tinha idéia do quanto

possuía, do quanto poderia gastar e com o quê. Um simples picolé que eu comprasse

ficava ali registrado, para não me esquecer que, naquela semana, eu já tinha

chupado um picolé e não deveria comprar outro, incorrendo assim em "gasto extra"

com guloseimas. Foi um tempo muito difícil, mas aprendi a controlar minhas

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modestas finanças. Hoje já não há necessidade dessas anotações, tampouco possuo

planilhas eletrônicas para acompanhar minha vida financeira. A própria experiência

de vida me deu bases para este controle, onde evito não me envolver em

empreendimentos mirabolantes ou em compras de bens desnecessários, que possam

comprometer meu equilíbrio financeiro.

A cabra

Minha mãe ganhou uma cabrita de presente e levou para criar em casa cujo

quintal não era murado. A pobre da cabrita tinha que viver amarrada a uma corda

durante todo o tempo. Quando o sol estava muito quente, minha mãe colocava-a

dentro de casa, fazendo o mesmo também à noite, para que a cabra dormisse

protegida dos ladrões que moravam no bairro Pau Ferro. Em fotos de família ainda

podemos ver minha mãe sentada em sua cadeira de rodas com a cabra no colo.

Feira do Cardoso

Minha mãe pedia esmolas em frente ao Supermercado Cardoso, no Centro da

cidade de Jequié. Todos os dias, um de nós a levava até a porta do supermercado.

Isso fez com que ela passasse a conhecer o dono do estabelecimento, que passou a

doar-lhe uma cesta básica por semana. Esta cesta de comida sustentou a família

inteira por muitos anos.

Pinduca

Na época em que moramos no bairro Pau Ferro, por volta de 1987, nosso

gosto musical era muito influenciado pelo que ouvíamos na casa dos vizinhos.

Assim, nós nos encantamos pelas músicas de Pinduca, tocadas nas radiolas de quase

todos os moradores do bairro. Até encomendei uma edição antiga do disco de vinil

dele, numa empresa que fazia regravações de sucessos antigos. A sede da empresa

era em São Paulo e o disco foi enviado pelo correio. Foi uma festa. Ouvíamos esse

disco todos os dias, repetidamente. E, nos finais de semana, colocávamos as músicas

de Pinduca para tocar na radiola, na porta de casa, do lado de fora. Era uma radiola

pequena, daquelas com uma tampa que, quando fechada, se transformava numa

espécie de maletinha. Tão pequena que tínhamos de abri-la completamente para que

o disco pudesse tocar. Nesse bairro, onde somente moravam pessoas muito pobres,

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o costume era colocar o som do lado de fora. Assim, toda a vizinhança era obrigada a

ouvir as músicas que estivessem tocando na casa de alguém.

Percevejos

Durante toda a nossa vida fomos perseguidos pelos percevejos. Somente

quando passamos a morar em nossa primeira casa própria, no loteamento Itaygara,

começamos a nos livrar dessa praga. Desde criança convivi com os percevejos. Eles

nos acompanhavam por todas as casas onde morávamos. Ou levávamos os nossos,

ou encontrávamos percevejos novos nas casas onde passávamos a habitar. Era uma

coisa terrível. Eu tinha uma espécie de alergia a percevejos e quase não conseguia

dormir quando atacado por eles. Mais terrível ainda era o mau cheiro que deles

exalava quando os espremíamos para matá-los. As casas onde morávamos sempre

ficavam com as paredes pintadas de sangue, pois os matávamos onde quer que

estivessem. Mas, por mais que os matássemos, nunca conseguíamos nos livrar

desses insetos horrorosos. Entranhavam pelas frestas das paredes e dos móveis,

escondendo-se da claridade do dia. Só apareciam à noite, para infernizar nossa vida

e sugar nosso sangue. Nessa casa do Mandacaru, eles começaram a desaparecer.

Havia na sala um sofá velho, que tinha somente a carcaça de madeira e um colchão

deformado que servia de almofada. Esse sofá velho servia de cama para nós e para

um cachorro chamado Rex, que criávamos. Todos os dias, minha mãe colocava essa

carcaça ao sol para que os percevejos começassem a sair das frestas do sofá, pelo

efeito do calor. Em seguida, ela jogava água fervente sobre o sofá e matava centenas

deles. Com o tempo, os percevejos foram ficando cada vez mais raros, até

desaparecerem por completo de nossas vidas, após mais de 25 anos de perseguição.

O beliche que Paula construiu

Nesta casinha do bairro Mandacaru o espaço era exíguo e cada centímetro

muito importante. Como não havia onde colocar camas para todos, minha mãe

acabou "construindo" um beliche com as camas velhas que possuíamos. Amarrou

com paus e arames uma cama sobre outra e fez um beliche até o teto. Certa noite, Tó

acordou gritando, desesperado, dizendo que tinha um olho nas telhas a lhe

espreitar. Ele estava dormindo no último dos beliches, que ficava quase colado ao

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telhado. A luz da lua passava pelo buraco de uma das telhas, fazendo-o imaginar que

seu reflexo era um olho.

Clínica São Vicente

Uma ocasião, Nete, nossa irmã caçula, foi internada na Clínica São Vicente,

com febre e diarréia. Minha mãe voltou para casa e reuniu toda a família. Pegou

lençóis, cobertores, sacolas de roupas e mais alguns apetrechos e levou-nos todos

para lá. Chegando à clínica, entramos e nos acomodamos na enfermaria onde minha

irmã estava internada. Tomamos banho nos banheiros da clínica, jantamos,

assistimos TV e depois nos acomodamos nas camas destinadas aos pacientes

internados. A festa não durou muito. Quando as enfermeiras perceberam que havia

somente uma pessoa doente e que as demais faziam parte da família, expulsou-nos

de lá.

Penico de bosta

Meus irmãos contam uma cena muito cômica. Não tínhamos sanitário em

casa, até porque não havia esgotamento sanitário no recém-lançado bairro Itaygara,

onde morávamos. Assim, cada morador se virava como podia para satisfazer suas

necessidades fisiológicas. A maioria usava o matagal próximo à sua casa ou então

enchia sacos de bosta e jogava-os no mato - os chamados "aviões". Vitório, um de

meus irmãos, preferia cagar atrás do muro que fizemos para cercar a casa. Tínhamos

um penico, que era usado durante toda a noite e despejado no mato na manhã

seguinte. Só que todos se recusavam a descarregar o penico, alegando não terem

feito uso do dito-cujo durante a noite. Sobrava para minha mãe, como sempre, que

despejava o penico por cima do muro. Num belo dia, quando Vitório estava

agachado atrás do muro, cagando compenetradamente, o penico foi despejado

subitamente em sua cabeça. Ele ficou furioso. Xingou feito louco e ainda teve que

caminhar quase um quilômetro até o rio de Contas, para tomar banho e tirar o fedor

de bosta do corpo.

Escorpiões

Nossa casa foi a primeira a ser construída no bairro Itaygara e era cercada de

mato por todos os lados, exceto na frente. E o loteamento era infestado de

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escorpiões. Tomávamos todas as precauções possíveis, mas não pudemos escapar da

fatalidade: Quira, ainda grávida de Murilo, foi picada por um escorpião e levada às

pressas para o hospital regional. Semanas mais tarde, minha mãe foi a vítima

seguinte do inseto. Felizmente, o socorro foi rápido e eficiente, em ambas as

oportunidades, o que ensejou recuperação rápida tanto de minha irmã quanto de

minha mãe.

China em Salvador

China foi uma das pessoas da família que menos conviveu dentro de casa com

os irmãos, já que passava a maior parte de seu tempo trabalhando em casas de

família. Se não era em Jequié, era em Salvador. Quando foi morar na casa de uma

moça na Politeama, China enviava-nos muitas cartas, dizendo que se sentia muito

triste e que não agüentava viver longe da família. Falava que era tratada a pão e água

na casa onde vivia e das situações constrangedoras por que tinha de passar.

Queixava-se que, quando as visitas a confundiam com alguém da família, tratavam-

na muito bem. Mas, tão logo descobriam que ela era apenas uma empregada

doméstica, mudavam radicalmente sua forma de tratamento.

Vitório e Dida em Ilhéus

Vitório não estava gostando muito do salário que recebia na oficina mecânica

onde trabalhava em Jequié, por volta do ano de 1992, e resolveu ir para Ilhéus tentar

vida nova. Levou apenas uma sacola plástica com um par de bermudas e outro de

camisas, além de uma sandália havaiana e objetos de uso pessoal, como escova e

pente. Tinha somente o dinheiro da passagem de ida.

Contou-nos depois que, ao chegar a Ilhéus, arrependeu-se e queria voltar para

Jequié. Mas não podia, pois não tinha dinheiro da passagem. Disse que pensou que

a cidade era apenas a rodoviária e alguns barracões que estavam enfileirados ao

longo da rodovia. O centro da cidade fica distante dali, e quem chega à cidade não

tem idéia do quanto é linda. Ele ficou por ali mesmo, conseguiu um trabalho em

uma oficina mecânica e se instalou na cidade. Um mês depois, Dida resolveu

também viajar para Ilhéus. Os dois sempre viveram muito próximos, até mesmo por

causa da semelhança de idade e de profissão.

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Meses depois, fui visitá-los na nova cidade. Fiquei morrendo de pena dos

dois. Dormiam dentro de uma carcaça de carro, que nem janela possuía. Era algo

desumano. Tive uma conversa séria com eles, mas não deixei transparecer que

estava com dó, pois sabia que aquele sofrimento, de alguma forma, significava um

estágio necessário na vida deles e que logo passaria. Além disso, aquela situação

poderia vir a se transformar em mais um estímulo para que continuassem a lutar

por uma vida melhor.

Em outra oportunidade, visitei-os novamente. Notei que, desta vez, tinham

passado a um estágio superior: moravam dentro de um barraco de madeira, com

fogão, cama e alguns pratos. Ali também moravam centenas de guaiamus, que à

noite saíam dos buracos no chão para devorar qualquer tipo de comida que

encontrassem. Chegavam até a lascar os sacos de feijão ou de outros cereais que

estivessem em local próximo ao chão.

Salvador/Ba

Joanita

Conheci Joanita durante um curso que eu fiz em Salvador. Eu ainda morava

em Jequié, nessa época. Ela trabalhava da 14ª Vara do Trabalho como secretária de

audiências. Procurava-a sempre que viajava a Salvador, e passávamos horas

conversando. Joanita dizia que tinha muita vontade de engravidar, mas temia ter

problemas no parto, pois sofria de anemia falciforme. A vontade foi maior que o

medo, e, após inúmeras tentativas, ela engravidou e morreu de parto. Senti bastante

sua morte. Joanita foi uma das pessoas com quem mais me identifiquei no trabalho.

Era uma funcionária muito dedicada; não tinha tempo nem para fazer as compras de

casa durante o dia, era obrigada a ir aos mercados à noite. Por causa de tanta

dedicação, não viveu a vida, só trabalhou. Outra lição para minha vida: aproveitar as

oportunidades, me divertir, visitar amigos e parentes, mesmo quando o tempo

parecer escasso. A vida passa muito rapidamente. Muita gente espera para vivê-la

depois de se aposentar. Esquecem-se de que nem todos conseguem chegar à

aposentadoria, ou que podem chegar lá com várias limitações impostas por

problemas de saúde.

Primeira viagem de avião

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Morando em Salvador, costumava sempre viajar para o interior,

principalmente nos feriados prolongados e durante as férias. Tinha uma imensa

vontade de viajar de avião e resolvi realizar meu desejo. Fui para Ilhéus de ônibus e

voltei de avião. O vôo durou apenas vinte minutos, mas marcou toda a minha vida.

Não senti medo algum, sempre soube que aquele era o meio de transporte mais

seguro do mundo. Mas que deu um friozinho na barriga... Ah, isso deu. Este sonho

foi realizado em dezembro de 1993.

A terceira moto

Comecei a pagar um consórcio de moto, na intenção de usá-lo como

investimento para futuramente comprar um outro apartamento. Não gostaria de

viver para sempre num prédio com permanentes problemas de elevadores e de

abastecimento de água, como era o caso do Edifício Crescenciano dos Santos. Ao ser

contemplado, fui buscar o veículo. Mas não tive coragem de pilotar a moto até

minha casa. Paguei uma pessoa para trazê-la. Chegando ao edifício, subi para o

sexto andar com a moto no elevador. Foi um trabalhão danado, mas acabei sendo

bem-sucedido em mais esta proeza.

Iraci

Conheci uma colega de trabalho chamada Iraci. Ela sempre foi muito

engraçada. Chegava ao setor onde trabalhava, animando o ambiente com suas

expressões personalizadas: "Qual o significado da mesma?", "Algo a declarar?", "Não

se afobeis". Iraci é uma pessoa muito interessante e de um coração enorme. Ela é

muito conhecida no TRT da 5ª Região, pela sua alegria e pelo alto astral que espalha

por onde passa. Trabalhou por muitos anos ali e depois se aposentou. É a única

pessoa em cuja casa eu me sinto como se estivesse em minha própria. Nossas

famílias se conhecem e todos nós nos sentimos como se fôssemos velhos conhecidos.

Sempre que posso vou à sua casa bater papo ou comer um belo prato de feijoada,

que ela sabe preparar como ninguém.

Pagando micos

Certa feita conversava com alguns colegas de trabalho sobre comida, café e

coisas afins. Falava que gostava de tudo, exceto de café "resquentado". O pessoal

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começou a gargalhar, corrigindo-me em seguida. Mas eu estava convencido de que

era assim mesmo que se falava, aprendera o termo em Jequié. Fui ao dicionário, tirei

minha dúvida e paguei mais um grande mico.

Em uma outra conversa, desta vez sobre festas de aniversário, começamos a

falar de festa de quinze anos, e comentei que ainda não tinha pensado na festa de

quinze anos de meu filho. Mais uma vez fui alvo de risos. Ensinaram-me então que

não era comum rapazes fazerem festa de quinze anos, quando muito de dezoito.

VALDECK ALMEIDA DE JESUS é funcionário público federal, nascido em 15

de março de 1966 em Jequié/BA, onde viveu até os seis anos de idade, quando foi

residir na Fazenda Turmalina (região de Itagibá/BA), onde continuou a estudar até

os 12 anos de idade.

Aluno exemplar, retornou a Jequié/Ba para se matricular na 5ª série do

primeiro grau. Ingressou na Faculdade de Enfermagem da Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia em 1990, desistindo de continuar o curso. Prestou vestibular para

Letras, na mesma universidade, no ano seguinte, onde concluiu apenas o primeiro

semestre.

Por motivos financeiros e outros, resolveu se transferir para Salvador, onde

reside desde fevereiro de 1993. Na capital, fez cursos de Informática, Relações

Humanas e Fotografia. No exterior, fez ainda um curso de Espanhol, em Madri, por

um período de dois meses, e um curso intensivo de Inglês, em Nova York, também

com duração de dois meses, complementando os três anos do curso de Inglês

iniciado em Salvador.

Em 2003, iniciou o curso de Turismo, concluindo três semestres, na

Faculdade São Salvador, e um cursinho de teatro por um ano e meio.

Suas habilidades na área literária valeram Menção Honrosa, em 1989, no 1°

Concurso Nacional de Poesia, promovido pelo Instituto Internacional da Poesia de

Porto Alegre/RS e no Concurso Literário Oswald de Andrade, promovido pela

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 1990, na cidade de Jequié/BA.

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Possui poemas publicados nas antologias:

Poetas Brasileiros de Hoje -1984, Editora Shogun Arte, Rio de Janeiro, 1984.

Transcendental, Editora Gráfica da Bahia, Salvador, 1986.

II Antologia Cultural: 500 Anos de Língua Portuguesa no Brasil, Editora

Clube de Letras, Barra Bonita/SP, 2005.

Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, 14º volume, Câmara

Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005.

Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos, 15º volume, Câmara

Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005.

Letras Libertas - Contos, Crônicas e Poesias - Vol 2, Editora Ilha das Letras,

Santa Catarina, 2005.

XV Concurso Internacional Literário de Verão, Editora Agiraldo, São Paulo

2005.

Sangue, Suor e Lágrimas, Arnaldo Giraldo Editor, São Paulo, 2006.

Palavras que Falam, Editora Scortecci, São Paulo, 2005.

Todas as Formas de Amar, Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2005.

O Amor na Literatura, São Paulo, Casa do Novo Autor Editora, 2005.

Livro de Ouro da Poesia Brasileira Contemporânea, Câmara Brasileira do

Jovem Escritor, Rio de Janeiro, 2005.

VII Antologia Nau Literária, Komedi Editora, Campinas/SP, 2005.

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Poetry Vibes, Editora Poetry Vibes, Ohio, USA, 2005.

20 Anos de Poesia - Caderno 32, Oficina Editores, Rio de Janeiro, 2005.

Pérgula Literária - VII, Editora EVSA, Rio de Janeiro, 2005.

Amor, Sublime Amor, Editora Litteris, Rio de Janeiro, 2006.

Ensaios Poéticos, Academia Virtual Brasileira de Letras, Rio de Janeiro,

2005.

X Coletânea Komedi, Editora Komedi, Campinas/SP, 2006.

Participação no V Fórum Social Mundial, em Porto Alegre/RS - 26 a 31 de

janeiro de 2005.

Expositor, como escritor independente, da VII Bienal do Livro da Bahia, em

setembro de 2005, em Salvador/Ba.

Fundador e presidente do Primeiro Fã-Clube Oficial do Jean Wyllys, cujo site

é www.jeanwyllys.com.

Livros publicados:

Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet,

Editora iUniverse, New York, USA, 2004.

Feitiço Contra o Feiticeiro, Editora Scortecci, São Paulo 2005.

Jamais Esquecerei do Brother Jean Wyllys, juntamente com Edmar José

Mascarenhas da Silva e Karina Schill, Casa do Novo Autor Editora, São Paulo, 2005.

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Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden, 1ª

edição, Editora Scortecci, São Paulo, 2005.

1ª Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus, Casa do Novo Autor Editora,

São Paulo, 2006.

Tem poemas publicados em jornais de grande circulação da capital e do

interior do estado da Bahia, além dos jornais de Brasília/DF; Colaborador, desde

1985, do jornal A Prosa, Brasília/DF.

Organizador do projeto Antologia Poética Valdeck Almeida de Jesus, que

publica e divulga poetas do Brasil inteiro, em edição anual, já no segundo ano.

Membro da Federação Canadense de Poetas desde 2004 e da União Brasileira

de Escritores desde 2005.

Participante ativo, nos anos oitenta, da Diretoria Regional do Partido

Comunista do Brasil, em Jequié/BA, em 1987 foi eleito o primeiro diretor de

imprensa do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, do Instituto de Educação Régis

Pacheco, sendo o fundador do jornal Jornada Estudantil.

Poeta e escritor, filho de Paula Almeida de Jesus e de João Alexandre de

Jesus, já falecidos.

E-mail de contato: [email protected]

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(texto para contracapa)

O livro narra a vida de um brasileiro que nunca parou de lutar por seu lugar

ao sol. Valdeck, rapaz pobre, cuja mãe era paralítica e o pai portador de várias

enfermidades que o impossibilitavam de trabalhar, nasceu no interior da Bahia. Sua

família não tinha casa própria nem renda suficiente para o sustento de um casal

pobre com oito filhos. Viveram precariamente em casas de aluguel, sem móveis, sem

conforto, sem sequer água encanada e energia elétrica.

O grande amor de uma mãe sofrida, Paula Almeida de Jesus, manteve essa

família unida, até que cada um dos filhos pudesse sobreviver por si só. Órfão de pai,

Valdeck, protagonista desta obra, viu-se obrigado a assumir a família aos 16 anos de

idade, tendo vivido e trabalhado para sustentar e educar os irmãos. Contra todas as

apostas, estudou, venceu na vida e hoje ocupa um cargo federal, tendo seus esforços

reconhecidos.

Essa família de brasileiros e lutadores continuou unida, como era da vontade

de uma mãe valente, mesmo após sua morte, em junho de 2000. E hoje todos os

membros da família Almeida, apesar de suas vidas atribuladas ou da distância que

os separa, encontram sempre uma data no calendário para se visitar e estar juntos,

compartilhando momentos de alegria e tristeza.

Mais do que uma história real, esta obra relata um exemplo de vida que pode

servir de espelho, inclusive, para muitos jovens das nossas grandes cidades

brasileiras, que, ao invés de estudar e acreditar em seus sonhos optam por se

enveredar pelos caminhos das drogas e da violência.

Espero que vocês se vejam um pouco neste livro assim como eu me vi nele.

Tenham uma boa leitura e saúde a todos.

Lázaro Ramos