Vale Cultura: estímulo insuficiente à cultura nacional?

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ANDRÉ MORAIS FRANÇA (00207234) Vale Cultura: estímulo insuficiente à cultura nacional? Trabalho final apresentado para a disciplina de Sociologia da Cultura (HUM 4824), sob responsabilidade do Prof. (Dr.) Enio Passiani

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Uma análise das insuficiências da política pública de fortalecimento do acesso aos bens culturais no Brasil.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

ANDR MORAIS FRANA (00207234)Vale Cultura: estmulo insuficiente cultura nacional?

Trabalho final apresentado para a disciplina de Sociologia da Cultura (HUM 4824), sob responsabilidade do Prof. (Dr.) Enio Passiani

Porto Alegre2014

O Vale Cultura uma poltica pblica instituda pelo governo em 2012 que subsidia o acesso aos trabalhadores que ganham at cinco salrios mnimos o acesso a bens culturais. O benefcio se d atravs da emisso de um carto magntico, atravs do qual o trabalhador recebe a quantia de R$ 50 mensais, restrito ao acesso a cultura. Para fornec-lo, a empresa onde trabalha deve se cadastrar para ceder o benefcio a seus empregados, Em troca, o governo federal concede benefcios fiscais no Imposto de Renda de Pessoa Jurdica, isentando o empregador de custos. Resumidamente, o Vale Cultura um subsdo aos trabalhadores de baixa renda para que exeram seus direitos culturais.A lei n 12.761, de27 de Dezembro de 2012, que cria o Programa de Cultura do Trabalhador no traz em seu texto uma definio explcita de cultura. H, no entanto, uma definio do que so servios e produtos culturais; respectivamente, atividades de cunho artstico e cultural fornecidas por pessoas jurdicas, cujas caractersticas se enquadrem nas reas culturais previstas no 2 e materiais de cunho artstico, cultural e informativo, produzidos em qualquer formato ou mdia por pessoas fsicas ou jurdicas, cujas caractersticas se enquadrem nas reas culturais previstas no 2 (BRASIL, 2012). O referido pargrafo 2 trata das reas que abrangem os servios e produtos culturais: (I) artes visuais, (II) artes cnicas, (III) audiovisual, (IV) literatura, humanidades e informao, (V) msica e (VI) patrimnio cultural (BRASIL, 2012).O Decreto n 8.084, de 26 de Agosto de 2013, que regulamenta lei supracitada, tambm no traz maiores especificaes sobre quais servios e produtos, dentro das reas acima, poderiam ou no ser considerados culturais. Esta uma das falhas do projeto, ao abrir espao, em tese, para qualquer produo audiovisual, por exemplo. A ausncia de maior regulamentao pelo decreto, mesmo aps o amplo debate ocorrido aps a aprovao da lei e antes de baixado o decreto, demonstra, talvez, o objetivo do governo de se abster em definir sua viso do que cultura. Mesmo em entrevistas a ministra de Estado da Cultura, Marta Suplicy, no fornece um posicionamento claro do governo, ou mesmo pessoal, sobre o que configuraria cultura e que deveria ser alvo do programa.Embora sejam bastante criticveis os possveis usos do incentivo estatal com certos produtos e servios culturais, h de se elogiar a iniciativa por permitir aos estratos de baixa renda o acesso a algum tipo de bildung, por mais pobre o que seja. Com a necessidade de priorizar outros gastos bsicos, como alimentao e vestimentas, ou mesmo por estmulos de um sistema que no prioriza a formao cultural do indivduo, o trabalhador de baixa renda se encontra marginalizado do usufruto bens culturais.Uma forma interessante de articular estmulos ao usofruto e a produo cultural seria uma articulao entre o programa Vale Cultura e uma Lei Rouanet[footnoteRef:1] melhor regulada. A ttulo de exemplo, a utilizao do benefcio do trabalhador poderia ser restringida a produtos com apoio fiscal da lei. Muitas das crticas, que se voltam ao uso do incentivo governamental a grandes produes que no necessitam deste apoio parar ter acesso ao mercado, seriam atendidas com uma articulao como a proposta. [1: Lei n 8.313, de 23 de dezembro de 1991, tambm chama de Lei Rouanet, institu o Programa Nacional de Apoio Cultura (Pronac) e estabelece uma srie de estmulos aos produtos culturais nacionais. Um dos mecanismos mais conhecidos da lei so os incentivos fiscais e financiamentos estatais s produes culturais brasileiras. No entanto, recebem este incentivos at mesmo produes da Indstria Cultural que no necessitam de apoio governamental para sua realizao. Logo, h um grande debate sobre a necessidade de melhor definir o alvo do programa, focando nas produes independentes e de cultura popular.]

Outra crtica passvel de ser feita que a poltica do Vale Cultura no possui nenhuma especificao que d a vantagem ao usufruto de servios e produtos culturais nacionais. A lei e o decreto que a regulamento no trazem em seus textos menes diretas produo brasileira. O artigo 2 da lei estabelece como objetivos do programa (I) possibilitar o acesso e a fruio dos produtos e servios culturais; (II) estimular a visitao a estabelecimentos culturais e artsticos; e (III) incentivar o acesso a eventos e espetculos culturais e artsticos (BRASIL, 2012).Poderia se argumentar que o Vale Cultura neutro quanto ao tipo de produo que promove, j que as possibilidades ficam totalmente abertas e a deciso cabe ao trabalhador beneficiado. Entretanto, na falta de um estimulo a produes independentes e de cultura popular, a tendncia reforar o peso da indstria cultural[footnoteRef:2], que j tem acesso ao mercado, corroborando a oligopolizao do setor. A iniciativa do Vale no objetiva, como referenciado acima, ser uma poltica de promoo exclusiva da produo cultural brasileira; muito embora, ao incrementar o acesso aos servios e produtos culturais de forma geral, tambm corrobore um crescimento quantitativo do pblico para as produes nacionais Demanda-se do poder pblico, ento, uma poltica complementar de promoo e insero das pequenas produes culturais brasileiras, articulando um grande sistema de poltica pblicas com este fim. [2: Bildung um conceito de origem alem e muitas vezes traduzido para o portugus como educao. O significado dos dois, no entanto, no coincidem completamente. Bildung refere-se a uma formao da alma, um processo de engradescimento e realizao humana. ]

Nesse sentido, o Vale Cultura pode acabar incentivando os efeitos negativos da Indstria Cultural, destacados por Adorno e Horkheimer (1988). O trabalhador, antes marginalizado, passa a ser melhor inserido; no entanto, consumido produes alienantes e massificadoras, que servem como uma forma de lazer acrtica e desmobilizante. Ao invs de servir como um instrumento para aumentar no s a formao cultural e crtica do indivduo, sem um estmulo a certos servios e produtos culturais, o Vale Cultura pode vir a ter um mero efeito quantitativo em termos de produo e consumo cultural, sem qualquer mudana para melhor em termos qualitativos. A parte da discusso sobre Indstria Cultural, a produo cultural brasileira certamente j se beneficia dos estmulos do Vale Cultura. Com seis meses de vigncia de programa, R$ 13,7 milhes movimentados atravs do uso do carto. No obstante, alguns desequilbrios se mostram e que podem ser de importante considerao por parte do governo. Do total movimentado com o Vale, R$ 12 milhes foram gastos s em livros e revistas (GAZETA DO POVO, 2014). Mesmo que reflita uma melhor preparao do setor editorial e uma boa notcia em um pas com um nmero de livros lidos por ano por pessoal muito baixo, de se preocupar que outras reas pouco sejam afetadas. O governo poderia estudar maneiras de desconcentrar esse percentual, atravs de maior divulgao junto a outros produtores das outras reas, dando-lhes um maior suporte tcnico para saberem capitalizar o benefcio a seu favor etc.Em termos de abrangncia, a excluso de funcionrios pblicos do rol de beneficirios de se salientar. O Brasil contava, em 2008, com 8 milhes de servidores pblicos em todas as suas esferas (UOL, 2008). Considerando os altos soldos pagos pelo setor pblico, de se esperar que a maioria daqueles se encontrem acima da faixa salarial em que a poltica do Vale Cultura mira. Mesmo assim, o nmero de trabalhadores excludos deve ser alto, ainda mais considerando a expanso do setor pblico ocorrida nos 5 anos at a regulamentao do Programa de Cultura do Trabalhador.O Vale Cultura certamente incapaz de se tornar, sozinho, uma poltica de avano no processo civilizador brasileiro. Sequer seria de se esperar tal faanha de um mero benefcio de renda para o setor cultural. Como j apontado, a grande falha no est no projeto em si, mas na ausncia de uma verdadeira articulao das polticas pblicas para cultura j existentes para a promoo de servios e produtos culturais nacionais e de qualidade. claro que para alm do debate estrito da promoo cultural, um programa bem estruturado de apoio a cultura popular brasileira de qualidade mexeria com diversos interesse econmicos e polticos. Por isso mesmo o governo aparente preferir distncia deste debate. Um retrocesso na densidade cultural do povo brasileiro, atravs do programa, aparenta improvvel. Possvel que, sem mexer nas atuais estruturas, aprofunde-se a vergonhosa ultravalorizao da produo estrangeira frente a nacional. A maior crtica deste trabalho justamente, haver um benefcio, sequer, ao establishment nacional. Nenhum avano ser obtido no processo civilizador, no entanto, ocorrer sem enfrentarmos as questes politicamente espinhosas do debate sobre cultura.

Referncias:Brasil. Lei n 12.761, de27 de Dezembro de 2012. Institui o Programa de Cultura do Trabalhador e cria o vale-cultura. Dirio Oficial da Unio. 27 dez 2012.Brasil. Decreto n 8.084, de 26 de Agosto de 2013. Regulamenta a Lei n 12.761, de 27 de dezembro de 2012, que institui o Programa de Cultura do Trabalhador e cria o vale-cultura. Dirio Oficial da Unio. 26 ago 2013.GAZETA DO POVO. Vale Cultura j movimentou R$ 137 milhes em seis meses. Gazeta do Povo, 08 jul. 2014. Disponvel em: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1482293&tit=Vale-Cultura-ja-movimentou-R-137-milhoes-em-seis-meses. Acesso em: 08 jul. 2014.UOL. Brasil tem 8 milhes de servidores pblicos. UOL, 28 out. 2008. Disponvel em: http://noticias.uol.com.br/empregos/ultimas-noticias/2008/10/28/brasil-tem-8-milhoes-de-servidores-publicos.jhtm. Acesso em: 04 jul. 2014.