VALERY, Paul - Degas Dança Desenho

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    15 Degas

    27 Da dana

    35 Rue Victor-Mass, 37

    45 Degas e a Revoluo

    55 Opinies

    57 22 de outubro de 1905

    61 Ver e traar

    67 Trabalho e desconfiana

    69 Cavalo, dana e fotografia

    77 Do solo e do informe

    83 Do nu

    89 Poltica de Degas

    93 Mmica

    99 Digresso

    101 Outra digresso

    105 Degas e 0 soneto

    109 Degas, louco pelo desenho.

    113 Continuao do anterior

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    115 Moral da histria

    117 Pecado de inveja

    119 Algun s "chistes" e diversas tiradas

    125 Outros "chistes"

    127 Reflexes sobre a paisagem e muitas outras coisas

    133 Arte moderna e grande arte

    135 Escoro da pintura

    137 Romantismo

    139 O desenho no a forma...143 Recordaes de Berthe Morisot sobre Degas

    145 A linguagem das artes

    151 Questes de pocas

    155 Recordaes de Ernest Rouart

    165 Crepsculo e fim

    171 Notas biogrficas

    185 Crditos das imagens

    189 Sobre 0 autor

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    Esta edio procurou observar as opes ortogrficas de Paul Valry.

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    DEGAS

    Como acontece que um leitor um pouco distrado rabisque nas

    margens de uma obra e produza, ao sabor do alheamento ou dolpis, pequenos seres ou vagas ramagens, ao lado das massas

    legveis, assim farei, segundo o capricho da mente, em torno

    desses poucos estudos de Edgar Degas.

    Acompanharei essas imagens com um pouco de texto que

    seja possvel no ler, ou no ler de uma nica vez, e que tenha

    com esses desenhos no mais que uma ligao frou xa e as relaes menos estreitas.

    Ser, portanto, apenas um a espcie de monlogo, em que

    voltaro como quiserem minhas recordaes e as diversas

    ideias que formei sobre um personagem singular, grande e

    severo artista, essencialmente voluntarioso , de uma inteli

    gncia rara, viva , fina, inquieta; que ocultava, sob o absolutodas opinies e o rigor dos julgamentos, no sei que dvida

    sobre si mesmo e que desespero de satisfazer-se, sentimentos

    muito amargos e muito nobres desenvolvidos por seu conhe

    cimento incomum dos mestres, sua cobia dos segredos que

    lhes atribua, a presena perptua em sua mente de suas per-

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    se trata de uma biografia segundo as regras; no tenho uma

    opinio muito boa das biografias, o que prova apenas que no

    fu i feito para escrev-las. De todo modo, a vid a de algumno passa de uma seqncia de acasos, e de respostasmais ou

    menos exatas a acontecimentos casuais...

    Alis, o que me importa em um homem no so os aciden-

    tes,nem seu nascimento, nem seus amores, nem suas tristezas,

    nem quase nada do que observvel pode me servir. No en

    contro nisso a menor clareza realsobre o que lhe d seu valor eo diferencia profundamente de qualquer outro e de mim. No

    estou dizendo que eu no fique muitas vezes curioso sobre

    esses detalhes que no nos dizem nada de concreto; o que me

    interessa no sempre o que me importa,e todo mundo faz o

    mesmo. Mas deve-se tomar cuidado com o que divertido.

    Muitas das caractersticas de Degas que relato aqui no sode minha lembrana. Devo-as a Ernest Rouart, que o conhe

    ceu intimamente desde a infncia, cresceu na admirao e no

    temor reverente daquele mestre extravagante, alimentou-se

    de seus aforismos e preceitos e levou a efeito por sua injuno

    imperiosa diversas experincias de pintura ou de gravura das

    quais apresentarei textualmente o relato cheio de humor e preciso que ele teve a gentileza de redigir para mim.

    Por fim, nenhum a esttica; nenhuma crtica,ou o menos

    possvel.

    Degas, generoso para poucas coisas, no era dcil para com

    a crtica e as teorias.Ele dizia de bom grado e repetia no final

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    Comme il arrive quun le

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    da vida que as Musas nunca discutem entre si. Trabalham o

    dia inteiro, bem separadas. Ao cair da noite e depois de cum

    prida a tarefa, ao se encontrarem, elas danam: elas no falam.Ele era contudo grande polemista e argumentador terrvel,

    particularmente excitvel sobre assuntos de poltica e de dese

    nho. Jamais cedia, alterava rapidamente a voz, lanava as pa

    lavras mais duras, cortava bruscamente. Alceste,1 perto dele,

    pareceria um homem fraco e singelo. Mas, devido ao sangue

    napolitano que nele co rria e que o fazia alcanar logo o tommais agudo, podia-se sentir que s vezes apreciava o fato de

    ser intratvel e conhecido por todos como tal.

    Tambm tinha momentos encantadores.

    Conheci Degas na casa do senhor Henri Rouart, por volta

    de 93 ou 94,2 apresentado aos de l por um de seus filhos, e logo

    amigo dos trs outros.A manso da rue de Lisbonne estava repleta, desde a porta

    at o quarto mais alto, de quadros apuradamente escolhidos.

    At mesmo o zelador, tomado de paixo pela arte, cobrira as

    paredes de sua guarita com telas s vezes boas, compradas no

    leilo que freqentava com a mesma assiduidade com a qual

    outros serviais vo s corridas de cavalo. Quando era felizem sua escolha, o patro lhe comprava o quadro, que passava

    rapidamente da guarita para a sala de estar.

    1. Personagem doMisantropo, de Molire [n. t.].

    2. Em 1893 ou 1894 [n .t.].

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    Eu admirava, venerava no senhor Rouart a plenitude de

    uma carreira na qual quase todas as virtudes do carter e do

    esprito encontravam-se combinadas. Nem a ambio, nem a

    inveja, nem a vontade de aparecer o atormentavam. Am ava

    apenas os verdadeiros valores, que era capaz de apreciar em

    mais de um domnio. O mesmo homem que foi um dos maiores

    colecionadores de sua poca, que apreciou e adquiriu prem a

    turamente as obras de pintores como Millet, Corot, Daumier,

    Manet e El Greco , devia sua fortuna a suas construes de

    mecnica, s invenes que ele levava da teoria pura tcnica

    e da tcnica ao estgio industrial. O reconhecimento e afeto

    que guardo pelo senhor Rouart no devero mais se manifes

    tar aqui. Direi apenas que o coloco entre os homens que mais

    impresso causaram em minha mente. Suas pesquisas de

    metalrgico, de mecnico e de criador de mquinas trmicas

    nele se conciliavam com uma paixo ardorosa pela pintura; co

    nhecia-a como um artista e at mesmo a praticava como verda

    deiro pintor. Mas sua modstia fez com que sua obra pessoal,

    curiosamente precisa, permanecesse quase desconhecida e o

    bem exclusivo de seus filhos.

    Aprecio que o mesmo homem possa conduzir diversos tra

    balhos e propor para si mesmo dificuldades de variadas catego

    rias. s vezes, quando algum problema desafiava suas lembran

    as matemticas, o senhor Rouart recorria a colegas de outrora

    que no haviam deixado, desde a Escola Politcnica, de culti

    var e aprofundar a anlise. Consultava Laguerre, grande ge-

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    mites, os artistas que fazem sucesso;cita Saint-Simon, Proudhon,

    Racine e as sentenas bizarras de Ingres... Parece-me que ainda o

    ouo. Seu anfitrio, que o adorava, escutava-o com uma indulgncia admirativa, enquanto outros convivas, jovens, velhos generais,

    senhoras mudas, apreciavam de forma diferente os exerccios de

    ironia, esttica ou violncia do maravilhoso criador de chistes.

    Eu observava com interesse o contraste entre aqueles dois

    tipos de homem de grande valor. Espanto-me s vezes com que

    a literatura tenha explorado to raramente a diferena entreos intelectos, as concordncias e as discordncias que surgem,

    com poder e atividade mental iguais, entre os indivduos.

    Assim, conheci Degas na mesa do senhor Rouart. Tinha dele

    uma ideia formada a partir de algumas obras suas que eu vira,

    e de alguns ditosseus que se repetiam por a. Sempre achomuito interessante comparar uma coisa ou um homem com a

    ideia que eu fazia deles antes de os ver. Se a ideia precisa, seu

    confronto com o objeto em si pode nos ensinar algo.

    Essas comparaes nos do certa medida de nossa faculdade

    de imaginar com base em dados incompletos. Mostram-nos no

    vamente tambm toda a vaidade das biografias em particular, eda histria em geral. verdade, todavia, que uma coisa ainda

    mais instrutiva: a espantosa inexatido provvelda observao

    imediata, a falsificao que obra de nossos olhos. Observar,

    em grande parte, imaginar o que esperamos ver. H alguns

    anos, uma pessoa que conheo, alis bastante popular, tendo

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    ido a Berlim para fazer uma conferncia, foi descrita por mui

    tos jornais que concordaram em achar que tinha olhos negros.

    Seus olhos so muito claros, mas ela vem do sul da Frana;

    os jornais sabiam desse fato e enxergaram em funo dele.

    Eu fazia de Degas a ideia de um personagem reduzido ao r i

    gor de um desenho duro, um espartano, um estoico, um jan-

    senista artista. Uma espcie de brutalidade de origem inte

    lectual era sua caracterstica essencial. Pouco tempo antes eu

    tinha escrito Monsieur Teste,3e esse pequeno ensaio de um

    retrato imaginrio, embora feito de observaes e relaes

    verificveis, to precisas quanto possvel, no deixava de ter

    sido mais ou menos influenciado(como se diz) por um certo

    Degas que eu imaginava.A concepo de diversos monstros de

    inteligncia e conscincia de si assombrava-me com alguma

    frequn cia naquela poca. As coisas vagas me irritavam , e

    espantava-me que em ordem nenhuma houvesse quem talvez

    consentisse em levar seus pensamentos at o fim...

    Em minha prefigurao de Degas, nem tudo era fantstico.

    Como eu poderia ter previsto, o homem era mais complexo do

    que eu esperava.

    3. La Soire avec M onsieur Teste[1896] foi a primeira das inmeras peas do

    ciclo Teste.Degas recusou a dedicatria do livro, que foi publicado pela pri

    meira vez em Le Centaure[n.e.].

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    ser deixado em silncio. No se conta em nenhuma Histria da

    Literaturaque alguns segredosda arte dos versos foram trans

    mitidos desde o final do sculo x v i at o fim do sculo x ix , e

    que seria fcil discernir, entre os poetas desse perodo, os que

    seguiram e os que ignoraram esses ensinamentos. E existe algo

    mais interessante do que as opinies recprocas de que falei?

    Pouco tempo antes de sua morte, Claude Monet contou-me

    que, no incio de sua carreira, tendo exposto algumas telas em

    um marchand da rue Laffitte, esse homem viu um dia parar na

    frente de sua vitrina um personagem e sua companheira, am

    bos de aspecto digno, e burgueses at quase majestade. O se

    nhor, em face dos Monet, no pde se conter: entrou, fez uma

    cena; no concebia que fosse possvel expor tamanhos horrores.

    Reconheci-o facilmente, acrescentou o marchand quando en

    controu Monet e lhe fez o relato. Quem era?, perguntou Mo

    net. Daumier..., disse o marchand. Pouco tempo depois desse

    episdio, as mesmas obras ainda na mesma vitrina, e estando

    Monet desta vez presente, um desconhecido, por sua vez, se

    detm, observa longamente, franze os olhos, empurra a porta

    e entra. Que linda pintura, diz, quem fez isto?. O marchand

    apresenta o autor. Ah! Senhor, que talento... etc. Monet der

    rama-se em agradecimentos. Quer saber o nome de seu admira

    dor. Sou Descamps, diz o outro, antes de afastar-se.

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    DA DANA

    Por que no falar um pouco da Dana, quando se trata do pin

    tor das Bailarinas?

    Gostaria de fazer uma ideia bastante ntida dela, e me ar

    ranjarei como puder, diante de todos.

    A Dana uma arte dos movimentos humanos, daqueles

    que podem ser voluntrios.

    A maior parte de nossos movimentos voluntrios tem uma

    ao exterior como fim: alcanar um lugar ou um objeto, ou

    modificar alguma percepo ou sensao em um ponto deter

    minado. So Toms dizia muito bem: Primum in causando,

    ultimum est in causato.

    Atingido o objetivo, terminada a atividade, nosso movi

    mento, que estava de algum modo inscritona relao de nosso

    corpo com o objeto e com nossa inteno, cessa. Sua determinao continha sua exterminao; no se podia nem conceb-lo

    nem execut-lo sem a presena e o concurso da ideia de um

    acontecimento que fosse seu termo.

    Esse tipo de movimento efetua-se sempre segundo uma lei

    de economia de foras, que pode ser complicada por diversas

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    condies, mas que no pode deixar de reger nosso dispndio.

    No se pode nem imaginar ao exterior terminada,sem que

    certo mnimo se imponha mente. Se penso em me dirig ir da

    toile ao Museu, no pensaria nunca que posso tambmreali

    zar meu desgnio passando pelo Panthon.

    Mas h outros movimentos cuja evoluo no excitada,

    nem determinada, nem possvel de ser causada e concluda por

    nenhum objeto localizado. Nenhuma coisaque, alcanada, traga

    a resoluo desses atos. Cessam apenas mediante alguma inter

    veno alheia a sua causa, sua figura, sua espcie; e, em vez de

    estarem submetidos a condies de economia, parecem, ao con

    trrio, ter a prpria dissipao por objeto.

    Os saltos, por exemplo, e as cambalhotas de uma criana,

    ou de um co, a caminhada pela caminhada, o nado pelo nado,

    so atividades que tm como fim apenas modificar nosso senti

    mento de energia, criar certo estado desse sentimento.

    Os atos dessa classe podem e devem multiplicar-se, at que

    uma circunstncia completamente diversa de uma modifica

    o exterior, que eles tiverem produzido, intervenha. Essa cir

    cunstncia ser uma qualquerem relao a eles: cansao,por

    exemplo, ou conveno.

    Esses movimentos, que tm neles mesmos seu fim, e que

    tm como fim criar um estado,nascem da necessidade de serem

    realizados, ou de uma ocasio que os excite, mas esses impulsos

    no determinam nenhuma direo no espao. Podem ser de

    sordenados. O animal, farto da imobilidade imposta, evade-se,

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    bufa, fugindo de uma sensao e no de uma coisa; extravasase

    em galope e travessuras. Um homem, em quem a alegria, ou a

    raiva, ou a inquietude da alma, ou a brusca efervescncia das

    ideias, libera uma energia que nenhum ato preciso pode absor

    ver e esgotar em sua causa, levanta-se, vai, caminha a largos

    passos apressados, obedece, no espao que percorre sem ver,

    ao aguilho dessa potncia superabundante...

    Mas existe uma form a notvel desse dispndio de nossas

    foras, que consiste em ordenar ou organizar nossos movimen

    tos de dissipao.

    Dissemos que, nesse gnero de movimento, o Espao era

    apenas o lugar dos atos: ele no contm seu objeto. o Tempo,

    agora, que desempenha o papel mais importante...

    Esse Tempo o tempo orgnico tal como encontrado

    no regime de todas as funes alternativas fundamentais da

    vida. Cada uma delas efetua-se por meio de um ciclo de atos

    musculares que se reproduz, como se a concluso ou o tr

    mino de cada um deles engendrasse o impulso do seguinte.

    A partir desse modelo, nossos membros podem executar uma

    seqncia de figurasque se encadeiam umas s outras, e cuja

    frequncia produz uma espcie de embriaguez que vai do lan-

    gor ao delrio, de uma espcie de abandono hipntico a uma

    espcie de furor. O estado de danaest criado. Uma anlise

    mais sutil a veria sem dvida um fenmeno neuromuscular

    anlogo ressonncia,que ocupa um lugar to importante na

    fsica; mas que eu saiba essa anlise no foi feita...

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    0 Universo da Dana e o Universo da Msica tm relaes

    ntimas sentidas por todos, mas ningum apreendeu at agora

    seu mecanismo, nem mostrou sua necessidade.

    Nada mais misterioso do que essa percepo to simples

    de enunciar: a igualdade de durao,ou de intervalos de tempo.

    Como podemos estimar que rudos se sucedem em intervalos

    iguais,soar batidas igualmente distantes? E o que significa at

    mesmo essa igualdadeafirmada por nossos sentidos?

    Ora, a Dana engendra toda uma plstica: o prazer de dan

    ar irradia a seu redor o prazer de ver danar.

    Dos mesmos membros compondo, decompondo e recom

    pondo suas figuras, ou de movimentos respondendo-se em

    intervalos iguais ou harmnicos, forma-se um ornamento da

    durao,assim como da repetio de motivos no espao, ou de

    suas simetrias, forma-se o ornamento da extenso.Esses dois modos, por vezes, transformam-se um no ou

    tro. Veem-se, nos bals, instantes de imobilizao do conjunto,

    durante os quais o agrupamento dos danarinos prope aos

    olhares um cenrio fixo, mas no durvel, um sistema de cor

    pos vivos repentinamente congelados em suas atitudes, que

    oferece uma imagem singular de instabilidade. Os sujeitosesto como que presos em poses bastante distantes daquelas

    que a mecnica e as foras humanas permitem manter... ou

    imaginar outra coisa.

    Da resulta esta maravilhosa impresso: que no Universo

    da Dana o repouso no tem lugar; a imobilidade coisa im-

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    Essa observao profunda no somente profunda: verda

    deira; e no somente verdadeira, isto , fortalecida cada vez mais

    com a reflexo, mas tambm verificvel, e eu a vi verificada.

    A mais livre, a mais flexvel, a mais voluptuosa das danas

    possveis apareceu-me numa tela onde se mostravam grandes

    Medusas: no eram mulheres e no danavam.

    No so mulheres, mas seres de uma substncia incompa

    rvel, translcida e sensvel, carnes de vidro alucinadamente

    irritveis, cpulas de seda flutuante, coroas hialinas, longascorreias vivas p ercorridas por ondas rpidas, franjas e pre

    gas que dobram, desdobram; ao mesmo tempo que se viram, se

    deformam, desaparecem, to fluidas quanto o fluido macio

    que as comprime, esposa, sustenta por todos os lados, d-lhes

    lugar menor inflexo e as substitui em sua forma. L, na ple

    nitude incompressvel da gua que no parece opor nenhumaresistncia, essas criaturas dispem do ideal da mobilidade, l

    se distendem, l recolhem sua radiante simetria. No h solo,

    no h slidos para essas bailarinas absolutas; no h palcos;

    mas um meio onde possvel apoiar-se por todos os pontos que

    cedem na direo em que se quiser. No h slidos, tampouco,

    em seus corpos de cristal elstico, no h ossos, no h articulaes, ligaes invariveis, segmentos que se possam contar...

    Jamais bailarina humana, mulher inflamada, embriagada

    de movimento, do veneno de suas foras excedidas, da pre

    sena ardente de olhares carregados de desejo, expressou a

    oferenda imperiosa do sexo, o apelo mmico da necessidade de

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    prostituio, como aquela grande Medusa, que, por espasmos

    ondulatrios de sua torrente de saias engrinaldadas, que ela

    arregaa repetidas vezes com uma estranha e impudica insistn

    cia, transforma-se em sonho de Eros; e, subitamente, rejeitando

    todos seus folhos vibrteis, seus vestidos de lbios recortados,

    vira-se ao avesso e se expe, furiosamente aberta.

    Mas imediatamente se recompe, freme e se propaga em

    seu espao, e sobe como balo regio luminosa proibida onde

    reinam o astro e o ar mortal.

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    RUE VICTOR-MASS, 37

    Degas agradava e desagradava. Ele possua e afetava o pior car

    ter do mundo, com dias encantadores que ningum sabia prever.

    Era divertido nesses momentos; seduzia com um misto de piada,

    chiste e fam iliaridade, no qual entrava algo do aprendiz dos

    atelis de outrora, e no sei que ingrediente vindo de Npoles.

    Acontecia-me de bater sua porta muito ansioso com a recep

    o. Ele abria com desconfiana. Reconhecia-me. Era um dia

    bom. Ele me recebia em um cmodo comprido, sob o telhado,

    com ampla face envidraada (com vidros pouco lavados) onde a

    luz e a poeira estavam felizes. L amontoavam-se o lavatrio,

    a banheira de zinco fosco, os robes sem frescor, a bailarina de

    cera com tutu de gaze verdadeira, em sua gaiola de vidro, e os

    cavaletes carregados de criaturas feitas a carvo, perfis, torsossegurando um pente em torno de sua espessa cabeleira esticada

    pela outra mo. Ao longo da vidraa vagamente varrida pelo

    sol, corria uma mesinha estreita, toda amontoada com caixas,

    frascos, lpis, pedaos de pastis, pontas e coisas sem nome que

    sempre podem servir...

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    Ocorre-me por vezes de achar que o trabalho do artista

    um tipo muito antigo de trabalho; o prprio artista uma so

    brevivncia, um operrio ou arteso de uma espcie em vias

    de extino, que fabrica fechado em seu quarto, usa procedi

    mentos muito pessoais e muito empricos, vive na desordem e

    na intimidade de suas ferramentas, v o que quer e no o que o

    cerca, usa potes quebrados, sucata domstica, objetos condena

    dos... Talvez essa condio esteja mudando, e vejamos opor-se

    ao aspecto dessas ferram entas improvisadas e do ser singular

    que se acomoda nelas o quadro do laboratrio pictrico de um

    homem rigorosamente vestido de branco, com luvas de bo rra

    cha, obedecendo a um horrio muito preciso, armado de apa

    relhos e instrumentos estritamente especializados: cada qual

    com seu lugar e uma oportunidade exata de uso?... At aqui, o

    acaso ainda no foi eliminado dos atos; o mistrio, dos proce

    dimentos; a embriaguez, dos horrios; mas no garanto nada.

    Esse ateli sem luxo ocupava o terceiro andar da casa em que

    Degas morava quando o conheci, na rue Victor-Mass. No

    prim eiro andar, instalara o seuMuseu,composto por alguns

    quadros que havia adquirido com seus tostes ou por meio

    de troca. No segundo, seu apartamento. Havia pendurado

    as obras que preferia, suas ou de outros: um Corot grande e

    muito bonito, carves de Ingres, e certo estudo de ba ilarina

    que toda vez despertava minha inveja. Ele no a havia exata

    mente desenhado e sim verdadeiramente construdo e articu

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    lado como a uma marionete: um brao e uma perna dobrados

    em ponta, o corpo rgido, uma vontade implacvel no desenho,

    alguns detalhes em vermelho aqui e acol. Eu pensava, ao olhar

    aquela obra, em um desenho de Holbein que est em Basel,4 e

    que representa uma mo.Suponham que se faa uma mo de

    madeira, como aquela que se ajusta ao punho de um maneta, e

    que um artista a tenha desenhado antes de estar acabada, com

    os dedos j reunidos e meio dobrados, mas ainda no refinados,

    de modo que as falanges sejam outros tantos dedos alongados,

    com uma seo quadrada.Assim a mo de Basel. Perguntei-me

    se esse curioso estudo no tivera, no pensamento de Holbein,

    o significado de um exerccio contraa flexibilidade e a rotun-

    didade do desenho.

    Alguns pintores de nosso tempo parecem ter entendido

    a necessidade de construesdesse tipo; mas confundiram oexerccio e a obra, e tomaram como fim o que deveria ser ape

    nas um meio. Nada mais moderno.

    Terminaruma obra consiste em fazer desaparecer tudo o

    que mostra ou sugere sua fabricao. O artista deve apenas,

    segundo essa condio ultrapassada, revelar-se por seu estilo,

    e deve manter seu esforo at que o trabalho tenha apagado asmarcas do trabalho. Mas, como a preocupao com a pessoa

    e com o instante supera pouco a pouco a preocupao com a

    obra em si e com a durao, a condio de acabamento passou

    4. Estudo de mos,1520 , Kunstmuseum, Basel [n . e .].

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    a parecer no s intil e incmoda, como at mesmo contrria

    verdade, sensibilidadee manifestao dognio.A perso

    nalidade tornou-se essencial, at mesmo para o pblico. O es

    boo igualou-se ao quadro. Nada mais distante dos gostos ou,

    se quiserem, das manias de Degas.

    Naquele apartamento do segundo andar encontrava-se

    uma sala de jantar onde comi relativamente mal muitas vezes.

    Degas temia a obstruo e a inflamao intestinais. A vitela

    sem nenhum tempero e o macarro cozido em gua pura que

    a velha Zo nos servia, muito devagar, eram de uma in sip i

    dez rigorosa. Era preciso consumir depois um certo doce de

    laranja de Dundee que eu no conseguia aguentar, acabei su

    portando, e creio no detestar maispor causa da recordao.

    Quando acontece que eu prove, hoje, esse pur penetrado de

    pequenas fibras cor de cenoura, volto a me ver sentado na

    frente de um homem velho horrivelmente solitrio, entregue

    a pensamentos lgubres, privado, pelo estado de sua viso, do

    trabalho que foi toda a sua vida. Ele me oferece um cigarro,

    duro como um lpis, que rolo entre as mos para torn-lo fu-

    mvel; e essa ao, todas as vezes, chama sua ateno. Zo traz

    o caf, encosta sua grande ba rriga na mesa e conversa. Fala

    muito bem; parece que foi professora prim ria; os enormes

    culos redondos que usa do um aspecto bastante erudito ao

    rosto largo, honesto e sempre srio.

    Zo cuida da casa, assistida por uma moa que se chama Ar-

    gentine. Uma noite, Argentine corre assustada em nossa dire

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    o, gritando que sua tia est morrendo. Degas parece perder a

    cabea. Eu voo at a cozinha, deito a doente no cho, dispenso-

    -lhe alguns cuidadosao acaso; o mal-estar passa e assistimos

    ressurreio de Zo. Degas fica encantado, cheio de reconheci

    mento: ele viu um milagre. Quanto a mim, fico espantado com

    a carncia das noes mais simples e das prticas mais elemen

    tares em um homem to inteligente, e alis nutrido com as le-

    tras clssicas.Em muitos pontos ele tinha ideias de camponesa.

    A instruo que se dispensava por volta de 1850 nos col

    gios devia ser to absurda, embora maisforte,quanto a que se

    d hoje. Nenhum dos premiados do Concurso Geral5 teria sido

    capaz de mostrar no cu as estrelas de que fala Virglio; e esses

    fabricantes de versos latinos ignoram radicalmente que existe

    uma msica do verso francs. Nem a limpeza, nem as menores

    noes de higiene, nem a arte de se portar, nem mesmo a pro

    nncia de nossa lngua apareciam nos programas desse ensino

    inacreditvel, de cujas concepes o corpo, os sentidos, o cu,

    as artes e a vida social eram cuidadosamente excludos...

    O quarto de Degas repetia a mesma negligncia do resto,

    pois tudo, naquela habitao, lembrava a ideia de um homem

    que no faz mais questo de nada a no ser da vida, e porquedela se faz questo apesar de tudo e apesar de si. Havia l al

    gum mvel estilo Imprio ou Lus Felipe. Uma escova de dentes

    ressecada em um copo, com as cerdas meio tingidas de um cor-

    5. Exame nacional de fim de curso secundrio [n .t.].

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    -de-rosa morto, lembrava-me aquela que se v no ncessairede

    Napoleo, no Museu Carnavalet ou em algum outro.

    Uma noite em que ia trocar de camisa para jantar fora, Degas me fez entrar naquele quarto com ele. Ps-se inteiramente

    nu na minha frente e vestiu-se, sem o menor pudor. Entro no

    ateli. L, vestido como um pobre, de chinelos, com as calas

    largas e nunca fechadas, circula Degas. Uma porta aberta deixa

    ver claramente no fundo os lugares mais secretos.

    Penso que esse homem foi elegante, que seus modos, quando

    quer, tm a distino mais natural, que passava suas noites nos

    bastidores da pera, que freqentava a pesagem de Longchamp,

    que foi o observador mais sensvel da forma humana, o mais

    cruel amante das linhas e das atitudes das mulheres, um co

    nhecedor sofisticado das belezas dos cavalos mais finos, o desenhista mais inteligente, o mais reflexivo, o mais exigente, o

    mais insistente do mundo... Ele tambm foi o homem de esp

    rito, o conviva cujas palavras resumem, em um ato soberano de

    abuso da justia, algumas verdades bem escolhidas e matam...

    Ei-lo, velhote nervoso, quase sempre sombrio, por vezes sinis

    tro e tristemente distrado, com recargas repentinas de furor

    ou de esprito, impulsos ou impacincias infantis, caprichos...

    s vezes, volta a si: tem iluminaes, momentos de uma de

    licadeza comovente.

    Mas hoje um dia bom. Ele canta para mim em italiano umacavatina de Cimarosa.

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    Coisa pouco comum entre os artistas, Degas era um homem

    de bom gosto.Declarava s-lo e era.

    Apesar de nascido em pleno Romantismo, de lhe ter sido

    preciso, perto de sua maturidade, tomar parte no movimento

    naturalista, ter relaes com Duranty, Zola, Goncourt, Duret...,expor com os primeiros impressionistas, no deixava de ser

    um desses connaisseursmuito agradveis, obstinada, volup

    tuosamente estreitos, impiedosos para com as novidades que

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    so apenas novas, alimentados por Racine e pela msica antiga,

    amantes das citaes e clssicos at ferocidade, extravagn

    cia, s discusses, os quais infelizmente so uma raa extinta.

    Ser que ele se tornou esse personagem ao envelhecer, ele

    que, apesar de seu culto por Ingres, havia admirado apaixona

    damente Delacroix?

    Acontece, com a idade, que o homem, insensivelmente, espe

    lhe-se nos velhos que observava em sua juventude e que achava

    ridculos ou insuportveis. s vezes lhes adota os modos, torna-

    -se mais solene, mais corts, mais imperioso, s vezes mais ga

    lante ou at assanhado , do que foi na poca de sua juventude.

    Ele me faz lembrar de pessoas muito idosas, que eu via, h

    muito tempo na provncia, e que no se vestiam mais como

    haviam se vestido durante a maior parte de sua existncia, mas

    moda dos velhos de sua juventude. Certo marqus acabou usando

    coletes cor de lua e monculo quadrado.

    Degas, homem de bom gosto, estava nesse ponto mais atra

    sado do que muitos de sua idade, ao passo que, em funo da ver

    dadeira ousadia e preciso de seu esprito, estava, por outro lado,

    avanado em relao a muitos artistas, seus contemporneos. Foi

    um dos primeiros a entender o que a fotografia poderia ensinar

    ao pintor, e o que o pintor deveria evitar tomar emprestado dela.

    Sua obra talvez tenha sofrido com a notvel quantidade e a

    diversidade de seus apetites artsticos bem como com a inten

    sidade de sua ateno sobre os pontos mais elevados, mas os

    mais opostos, de seu trabalho.

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    Todas as artes observadas por muito tempo aprofundam-se

    em problemas insolveis. O olhar prolongado gera uma infi

    nidade de dificuldades, e essa gerao de obstculos imaginrios, desejos incompatveis, escrpulos e arrependimentos,

    proporcional, ou ento muito mais do que proporcional,

    inteligncia e aos conhecimentos que se possuem. Como esco

    lher entre o partido de Rafael e o dos Venezianos, sacrificar

    Mozart a Wagner, Shakespeare a Racine? Esses problemas no

    tm nada de trgico para o amador nem para o crtico. Para oartista so tormentos da conscincia renovados a cada obser

    vao que ele faz sobre o que acabou de realizar.

    Degas encontra-se preso entre os preceitos de Ingres e os

    estranhos encantamentos de Delacroix, e, enquanto hesita, a

    arte de sua poca decide explorar o espetculo da vida mo

    derna. As composies e o grande estilo envelhecem a olhosvistos junto opinio pblica. A paisagem invade as paredes

    que os Gregos, os Turcos, os Cavaleiros e os Cupidos abando

    nam. Destri a noo de tema,reduz em poucos anos toda a

    parte intelectual da arte a uns poucos debates sobre a matria

    e a cor das sombras. O crebro torna-se pura retina, e no se

    trata mais de procurar expressar com o pincel os sentimentos de alguns velhotes diante de uma bela Susana, ou a nobre

    resistncia de um grande mdico a quem oferecem milhes.

    Por volta da mesma poca, a erudio e a explorao do

    mundo trazem novos elementos de prazer e dvida. Muitos

    modos de ver inditos ou esquecidos so afirmados. O gosto

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    pelos primitivos declara-se: Gregos da poca urea, Italianos,

    Flamengos, Franceses... Por outro lado, as miniaturas da Pr

    sia, e principalmente as estampas do Japo, vm fazer-se admi

    rar e estudar pelos artistas, enquanto Goya e Theotocopoulos6

    entram na moda ou voltam a ela. Por fim, a chapa sensvel

    Esse o problema para Degas, que nada desconhece, apro

    veita e portanto sofre com tudo.

    Ele admira e inveja a segurana de Manet, cujo olho e mo

    so certezas, que v infalivelmente aquilo que, no modelo, dar-

    -lhe- a oportunidade de mostrar toda a sua fora, de executar

    o mximo. H em Manet um poder decisivo, uma espcie de

    instinto estratgico da ao pictrica. Em suas melhores telas,

    ele alcana apoesia,ou seja, o pice da arte, por meio daquilo

    que me permitiro chamar de... a ressonncia da execuo.

    Mas como falar de pintura?

    6 . Domenikos Theotocopoulos, nome do pintor El Greco [n .e .],

    44

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    DEGAS E A REVOLUO

    Em 28 de julho de 1904, Degas me conta a seguinte recordao

    Tinha uns quatro ou cinco anos. Sua me, certo dia, levou 1para visitar a senhora Le Bas, viva do famoso convencional,

    amigo de Robespierre, que se matou com um tiro de pi;iolas

    no dia 9 de termidor. O filho da senhora Le Bas, Philippe. era

    um erudito eminente. Havia sido preceptor dos tios de I)ena?

    A velha senhora morava na rue de Tournon. Degas lem

    brava-se da cor vermelhado piso de cermica encerada quecobria o apartamento.

    Terminada a visita, enquanto a senhora Degas, segura 11* l

    0 filho pela mo, retirava-se, acompanhada at a porta pela ne

    nhora Le Bas, viu nas paredes do corredor de entrada os relra

    tos de Robespierre, Saint-Just, Couthon...

    Como exclamou , a senhora ainda conserva as cabeadesses monstros...

    Cale-se, Clestine, eles eram santos...

    No mesmo dia 28 de julho de 1904, Degas, animado com ai

    recordaes, falou-me sobre seu av, que conheceu e cujo re

    trato fez em Npoles (ou Roma?) em 18...

    4 '

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    Esse av especulava com trigo durante a Revoluo. Um

    dia, em 1793, quando estava fazendo seus negcios na Bolsa

    de Gros, ento instalada no Palais-Royal, um amigo passou

    s suas costas e murmurou: Caia fora!... Fuja!... Esto atrs de

    voc na sua casa....

    Ele no perde tempo, toma emprestados todos os assignats7

    que consegue encontrar na praa, sai imediatamente de Paris,

    esgota dois cavalos, chega a Bordeaux, embarca em um navio

    que estava de sada. O navio chega a Marselha. Esse navio, se

    gundo o relato de Degas (que evito interromper), carrega pe

    dra-pomes em Marselha, 0 que me parece inverossmil... Talvez

    fosse buscar enxofre na Siclia.

    O senhor Degas chega por fim a Npoles, onde se estabe

    lece. Era um homem to capaz e to honesto que encarregado,

    dois anos depois de sua chegada, de cr iar o Grande Livro da

    Dvida Pblica da Repblica Partenopeia, inveno recente

    de Cambon. Desposa uma senhorita nobre de Gnova, uma

    Frappa, e constitui famlia.

    Degas conservara relaes familiares em Npoles para

    onde ia s vezes. Numa dessas viagens, contudo, foi vtima

    de um roubo no trem. Afirmava que lhe haviam dado uma in

    jeo, enquanto dormia, e inoculado alguma substncia n ar

    ctica poderosa, e que roubaram sua carteira aproveitando

    aquele sono reforado.

    7. Papel-moeda emitido na Frana durante a Revoluo de 1790[n .t .].

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    (como costume em todas as perseguies polticas bem entendi

    das) todas aquelas que, de perto ou de longe, lhe diziam respeito.

    Aquele Mallarm , eu sabia, era da famlia do poeta, ances

    tral direto ou no.

    Demorei-me com prazer no pensamento delicioso de um

    Mallarm preocupado em mandar cortar a cabea de um De

    gas, e as relaes entre Edgar Degas e Stphane Mallarm vol

    taram minha memria.

    Essas relaes no eram, nem poderiam ser, muito simples.

    Nada se parecia menos com o carter deliberadamente duro,e di

    reto at brutalidade, de Degas do que o carter deliberadode

    Mallarm. Mallarm viv ia para certo pensamento: uma obra

    imaginria absoluta, meta suprema, justificativa de sua exis

    tncia, fim nico e nico pretexto do universo, habitava-o. Ele

    havia transformado, reconstrudo sua vida exterior, sua atitude

    para com os outros e com as circunstncias, com vistas pre

    servao e edificao sempre mais precisa da ideia essencial,

    pura, sublime, qual remetia todos os valores. provvel que

    os homens e as obras valessema seus olhos e se classificassem

    segundo o sentimento mais ou menos definido que neles encon

    trava daquela verdadeque havia descoberto. Ou seja, ele devia

    abolir mentalmente, guilhotinar idealmente muitos seres: isso o

    levava a se apresentar para todos com uma graa, uma pacincia,

    uma cortesia verdadeiramente raras,a abrir sua porta a todos, a

    responder nos termos mais elegantes, e sempre os mais novos em

    seu estilo, a todas as cartas... Surpreendia devido a sua prodigiosa

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    civilidade refinada e a seu sistema de gentilezas universais, com

    os quais eu ficava ingenuamente chocado, mas com os quais ele

    criara para si uma esfera de proteoimpenetrvel, em que a mara

    vilha de seu orgulho permanecia perfeitamente sua, tesouro da

    intimidade daquele homem com sua prpria estranheza.

    Nada se parecia menos com a intransigncia definitiva de

    Degas, com seus julgamentos expressos em chistes implac

    veis, com as execues sumrias e sarcsticas a que jamais se

    recusava, com seu amargor sempre sensvel, com suas te rr veis variaes de humor, com suas raivas, do que o estilo equi

    librado, ameno, delicado, deliciosamente irnico de Mallarm.

    Creio que Mallarm, de alguma forma, temia bastante

    aquela personalidade to diferente da sua.

    Quanto a Degas, ele falava de forma muito amvel de Mal

    larm, mas principalmente do homem. A obra parecia-lhe frutode uma doce demncia que teria atacado a mente de um poeta

    maravilhosamente talentoso. Esses erros de julgamento no so

    raros entre artistas. facilmente concebvel que eles fossem fei

    tos para no se entender. Alis, os relatos de Mallarm ofere

    ciam grandes oportunidades para os zombadores e os piadistas

    de toda estirpe. A opinio de Degas era totalmente conforme,nesse ponto, com a dos freqentadores do Grenier de Goncourt,9

    9. Crculo literrio criado em 1885 no segundo andar da manso dos irmos

    Goncourt, onde se reunia a nata da literatura da poca, dando origem Aca

    demia Goncourt e ao prmio literrio de mesmo nome [n .e .].

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    onde Mallarm ia de vez em quando. Aqueles escritores o

    achavam encantador, e maravilhava-os que um homem de

    uma inteligncia to refinada e que se expressa va com uma

    pureza, uma preciso, uma arte de dizer e sugerir incompa

    rveis, pudesse produzir monstros de obscuridade e de com

    plicao quando escrevia, e acima de tudo resolver enfrentar

    o pblico cujos favores e a clientela eles mesmos buscavam to

    avidamente. Aquela pequena sociedade de grandes autores,

    sedentos por tiragensimportantes e furiosamente invejosos

    uns dos outros, ficaria muito espantada se algum previsse queno demoraria meio sculo para que baixasse ao extremo a auto

    ridade de suas doutrinas, o renome e a venda de seus romances,

    enquanto a obra pequena e absconsa,independente da moda

    e do nmero, desenvolveria nas mentes mais atentas todos os

    poderes da perfeio devido a suas virtudes formais to longa

    e rigorosamente elaboradas.Certo dia, enquanto conversavam no Grenier, Zola disse a

    Mallarm que, para ele, a m... va lia o mesmo que o diamante.

    Sim, disse Mallarm, mas o diamante... mais raro.

    Degas no se privava de fazer diversos ataques dos quais a

    poesia de Mallarm era o objeto:

    Vtima lamentvel a seu destino oferecida...

    Contava, por exemplo, que, um dia, Mallarm leu um soneto

    para alguns discpulos e estes, em sua admirao, quiseram

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    parafrasear o poema, explicando-o cada um a seu modo: uns

    viam um pr de sol, outros o triunfo da aurora; Mallarm lhes

    disse: Nada disso... Trata-se da minha cmoda.

    Parece que Degas chegou a contar essa histria na frente

    de seu heri, que dizem ter sorrido ao ouvi-la, mas com umsorriso meio forado.

    Acrescento que a prpria anedota me parece pouco veros

    smil. Mallarm, que eu saiba, nunca lia seus versos na frente de

    testemunhas. Na verdade, leu para mim o Lance de dados em

    1897; mas foi a ss, e a extraordinria novidade da obra pareceu-

    -lhe, sem dvida, justificar uma experincia direta de seu efeito.

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    Por fim, houve entre Degas e Mallarm conflitos singulares

    dos quais o carter indcil do primeiro era a causa invarivel.

    Mallarm teve a ideia de fazer com que o Estado comprasse

    um Degas. Consegue obter de seu amigo Roujon, na poca dire

    tor da Escola de Belas-Artes, a deciso que desejava e voa para

    a casa de Degas.

    Degas, a quem a simples meno do nome Belas-Artes

    lanava a extremos de furor, entra em uma crise de raiva con

    fusa, vomita in jrias e antemas, vai de um lado a outro no

    ateli como um leo bravo em sua jaula.

    Os cavaletes pareciam um joguete entre suas mos, dizia

    Mallarm.

    E acrescentava, segundo o relato que me fez a senhora Er-

    nest Rouart,10 que ele mesmo teria gostado de alimentar um

    verdadeiro sentimento de clera, bem conduzido, regulado

    com sensatez, e no aquela raiva discordante e grosseira.

    Houve outras discusses entre eles.

    Como essas relaes entremeadas de tempestades eram

    minhas conhecidas, a descoberta que fiz casualmente do pa

    pel desempenhado pelo convencional Mallarm na fuga para

    Npoles do av de Degas e, por conseguinte, na gerao de

    nosso pintor, divertiu-me amide.

    10. A senhora Ernest Rouart Julie Manet, filha de Berthe Morisot e sobrinha

    do pintor douard Manet [n .e .].

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    Aquele Mallarm (Franois-Auguste), nascido em Lorraine

    por volta de 1756, foi deputado pela Meurthe na Assembleia Le

    gislativa, depois convencional e a favor da pena de morte para 0

    rei Lus xvi. No dia 9 de nivoso do ano II, 0 Comit de Salvao

    Pblica enviou-o para os departamentos da Meuse e Moselle,

    em misso muito especial para a execuo das medidas de sal

    vao pblica e para o estabelecimento do governo revolucio

    nrio. Foi assim que ele conheceu 0 caso de Verdun, precisou

    perseguir, segundo todos os rigores das leis, os causadores dedistrbios, os quais mandou para 0 tribunal revolucionrio.

    Trinta e cinco cabeas caram. Foi substitudo, em Lorraine,

    pelo representante Charles Delacroix, que no ningum me

    nos do que 0 pai, nominal, sem dvida, de Eugne Delacroix.

    Franois-Auguste Mallarm foi nomeado por Napoleo

    subprefeito de Avesnes em 1814; havia usado sua fortuna paratransportar grupos de partidrios na poca da invaso. A Res

    taurao baniu-o como regicida, e ele morreu em 1835.

    Encontrei todos esses detalhes sobre seu papel e sobre ele,

    no Ensaio sobre a Revoluo em Verdun,obra muito interes

    sante de Edmond Pionnier (1905).

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    OPINIES

    Degas no admitia discusso quando se tratava de Ingres.

    A quem lhe dissesse que o grande homem desenhava figuras de

    zinco, ele replicava: Talvez!... Mas ento ele faz zincos geniais .Um dia, Henri Rouart permitiu-se criticar a frieza da

    Apoteose de Homeroe observar que todos aqueles deuses j

    congelados em suas nobres atitudes respiravam em uma at

    mosfera glacial.

    Como assim! exclamou Degas. Mas admirvel!...

    Uma atmosfera de empreo preenche a tela...Ele esqueceu que o empreo um lugar onde h fogo.

    Recordava sempre que tinha oportunidade os apotegmas

    do Mestre de Montauban:11

    O desenho no se encontra fora do trao, est dentro dele...

    Deve-se perseguir o modelado como uma mosca que corre

    sobre uma folha de papel.

    Os msculos so meus amigos, mas esqueci seus nomes.

    Degas conheceu bem Gustave Moreau, cujo retrato fizera.

    11. Refere-se a Ingres, nascido em Montauban [n .e .].

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    levantado em meio a muito sangue. Degas lava seu rosto. Corre

    depois para buscar a senhora Ingres na rue de lIsle. Oferece-lhe o

    brao e acompanha-a a p at o nmero 10 do quai Voltaire.

    L, encontram Ingres, que estava descendo, ainda todo

    emocionado. No dia seguinte, Degas vai buscar notcias suas.

    A senhora Ingres recebe-o de form a muito graciosa e mostra-

    -lhe um quadro.

    Algum tempo depois, o senhor de Valpinon pede-lhe que

    volte casa de Ingres em seu nome, e que pea a tela empres

    tada de volta.

    Ingres responde que j a devolvera para seu proprietrio.

    Mas Degas, desta vez, quer falar por si. Pensa: Preciso abso

    lutamente conversar com ele. Inicia timidamente a conversa

    e termina declarando: Eu pinto; estou comeando, e meu pai,

    que homem de bom gosto e conhecedor, acha que meu casono desesperado....

    Ingres lhe diz: Faa linhas... Muitas linhas, ora de memria,

    ora de observao da natureza.

    Degas, outro dia, contou-me essa mesma visita com uma va

    riante bastante importante.

    Ele teria voltado para a casa de Ingres, conforme foi descrito acima, mas na companhia de Valpinon, e carregando

    uma pasta debaixo do brao. Ingres teria folheado os estudos

    contidos na pasta e a teria fechado, dizendo: bom! Meu jo

    vem, nunca de observao da natureza. Sempre de memria e

    segundo as gravuras dos mestres.

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    Pode-se meditar sobre esses dois textos. No lembro se De-

    gas os comentou na minha frente.

    Degas fez uma terceira visita ao ateli de Ingres. Foi ver al

    guns quadros que o mestre tinha exposto. Ingres mostrava suas

    obras a um senhor (Degas dizia: a um idiota) que, ao passar na

    frente de um quadro chamado Homero no banho turco,excla

    mou: Ah! Este aqui, senhor, a graa e a volpia... e algo mais....

    Ingres respondeu: Senhor, tenho vrios pincis.

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    VER E TRAAR

    H uma imensa diferena entre ver uma coisa sem o lpis na

    mo e v-la desenhandoa.

    Ou melhor, so duas coisas muito diferentes que vemos. At

    mesmo o objeto mais fam iliar a nossos olhos torna-se comple

    tamente diferente se procurarm os desenh-lo: percebemos

    que o ignorvamos, que nunca o tnhamos vistorealmente.

    O olho at ento servira apenas de intermedirio. Ele nos fa

    zia falar, pensar: guiava nossos passos, nossos movimentoscomuns; despertava algumas vezes nossos sentimentos. At

    nos arrebatava, mas sempre por efeitos, conseqncias ou res

    sonncias de sua viso, substituindo-a, e portanto abolindo-a

    no prprio fato de desfrutar dela.

    Mas o desenho de observao de um objeto confere ao olho

    certo comando alimentado por nossa vontade. Neste caso, deve--se quererpara vere essa viso deliberadatem o desenho como

    fim e como meio simultaneamente.

    No posso tornar precisa minha percepo de uma coisa sem

    desenh-la virtualmente,e no posso desenhar essa coisa

    sem uma ateno voluntria que transforme deforma notvel o

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    que antes eu acreditara perceber e conhecer bem.Descubro que

    no conhecia o que conhecia: o nariz de minha melhor amiga...

    (H alguma analogia entre isso e o que ocorre quando queremos especificar nossopensamentocom uma expresso mais

    deliberada. No mais o mesmo pensamento.)

    A vontade continuada essencial ao desenho, pois o dese

    nho exige a colaborao de aparelhos independentes que es

    to sempre pedindo para resgatar os automatismos que lhe

    so prprios. O olho quer vagar; a mo arredondar, tomar atangente. Para garantir a liberdade do desenho, pela qual po

    der realizar-se a vontade do desenhista, preciso se desven-

    cilhar das liberdades locais. uma questo de governo... Para

    deixar a mo livre no sentido do olho, preciso suprimir sua

    liberdade no sentido dos msculos;em particular, amaci-la

    para traar em qualquer direo, o que ela no gosta de fazer.

    Giotto traava um crculo puro com pincel, e nos dois sentidos.

    A independncia dos aparelhos diversos, suas distenses e

    tendncias prprias, suasfacilidades,so opostas execuo

    completamente voluntria. Da resulta que o desenho, quando

    tende a representar um objeto do modo mais fiel possvel, requer

    o estado mais desperto:nada mais incompatvel com o sonho,

    j que essa ateno deve interromper a cada instante o curso

    natural dos atos, evitar as sedues da curva que se pronuncia...

    Ingres dizia que o lpis deve ter sobre o papel a mesma deli

    cadeza da mosca que vaga sobre uma vidraa (no so exata

    mente estes os termos dele, que esqueci).

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    Algumas vezes fao esse raciocnio sobre o desenho de

    imitao. As formas que a viso nos entrega em estado de con

    torno so produzidas pela percepo dos deslocamentos de

    nossos olhos conjugados que conservam a viso ntida.Esse

    movimento conservativo linha.

    Ver as linhas e tra-las. Se nossos olhos comandassem me

    canicamente um estilode traar, bastaria olhar um objeto, isto

    , seguir com o olhar as fronteiras das regies diversamente

    coloridas, para desenh-lo exata e involuntariamente. Dese

    nharamos, do mesmo modo, o intervalo de dois corpos, que,para a retina, existe to nitidamente quanto um objeto.

    Mas o comando da mo pelo olhar bastante indireto. Mui

    tas etapas intervm: entre elas, a memria. Cada relance de

    olhos para o modelo, cada linha traada pelo olho torna-se ele

    mento instantneo de uma lembrana, e de uma lembrana

    que a mo sobre o papel vai emprestar sua lei de movimento.H transformao de um traado visual em traado manual.

    Mas essa operao suspensa na durao de persistncia da

    quilo que chamei elemento instantneo de lembrana. Nosso

    desenho se far por pores, por segmentos, e aqui que sur

    gem nossas grandes chances de erro. Ocorrer com facilidade

    que esses segmentos sucessivos no estejam na mesma escala,e que se unam de forma inexata uns aos outros.

    Direi portanto, como um paradoxo, que no pior desenho

    dessa espcie cada um dos segmentos est em conformidade

    com o modelo, que todas as partes do retrato infiel so boas,

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    sendo o tododetestvel. Direi mesmo que bastante improvvel

    que cada poro possa ser inexata(supondo a ateno do artista),

    pois seria preciso uma inveno continua para fazer sempre um

    trao diferente daquele desenhado pelo sistema dos olhos. Mas

    a soma to facilmente noconformequanto cada um de seus

    elementos facilmente, e quase necessariamente, conforme...

    O artista avana, recua, debrua-se, franze os olhos, comporta-

    -se com todo o corpo como um acessrio de seu olho, torna-se por

    inteiro rgo de mira, de pontaria, de regulagem, de focalizao.

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    TRABALHO E DESCONFIANA

    Todas as obras de Degas so srias.

    Por mais divertido, por mais alegre que ele s vezes tenha

    parecido, seu lpis, seu pastel, seu pincel nunca se abandonam.

    A vontade domina. Seu trao nunca est suficientemente perto

    do que ele quer. No alcana nem a eloqncia, nem a poesia da

    pintura; busca apenas a verdade no estilo e o estilo na verdade.

    Sua arte se compara dos moralistas: uma prosa das mais lm

    pidas que encerra ou articula com intensidade uma observao nova e verdadeira.

    Ainda que se dedique s danarinas, capturaas mais do que

    as seduz. Defineas.

    Como um escritor que, desejando alcanar a preciso ltima

    de sua forma, multiplica os rascunhos, rasura, avana reco

    meando inmeras vezes, e nunca admite que tenha alcanadoo estadopstumode sua obra, tal Degas: retoma indefinida

    mente seu desenho, aprofunda-o, ajusta-o, envolve-o, de folha

    em folha, de cpia em cpia.

    Retorna s vezes a essas espcies de rascunhos; neles

    adiciona cores, mistura o pastel ao carvo: as saias so ama

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    relas em um, violetas no outro. Mas a linha, os atos, a prosa

    encontram-se por baixo; essenciais e separveis, utilizveis

    em outras combinaes, Degas da fam lia dos artistas abstra

    tos que distinguem a forma da cor ou da matria.Creio que ele

    deve ter receado aventurar-se na tela e entregar-se delcia

    da execuo.

    Era um excelente cavaleiro que desconfiava dos cavalos.

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    CAVALO, DANA E FOTOGRAFIA

    O cavalo anda nas pontas dos cascos. Quatro unhas o carre

    gam. Nenhum animal se parece tanto com uma primeira bailarina, uma estrela do corpo de bal, quanto um puro-sangue

    em perfeito equilbrio, que a mo de quem o monta parece

    manter suspenso, e que avana em passos curtos em pleno

    sol. Degas pintou-o com um verso; dizia dele:

    Nervosamente nu em seu vestido de seda

    em um soneto muito bem feito no qual divertiu-se e pro

    curou concentrar todos os aspectos e funes do cavalo de

    corrida : treinamento, velocidade, apostas e fraudes, beleza,

    elegncia suprema.

    Degas foi um dos primeiros a estudar as verdadeiras figuras do nobre animal em movimento por meio dos instantneos

    do grande Muybridge. De resto, amava e apreciava a fotografia,

    em uma poca em que os artistas a desdenhavam ou no ousa

    vam confessar que a utilizavam. Possua algumas muito belas:

    guardo com todo cuidado certa ampliaoque me deu.

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    Nela se podem ver, junto a um grande espelho, Mallarm

    apoiado a uma parede e, sua frente, Renoir sentado numa

    poltrona. No espelho,-como um fantasma, Degas e o aparelho,

    e adivinha-se a presena da senhora e da senhorita Mallarm.

    Nove lmpadas de querosene, um terrvel quarto de hora de

    imobilidade para os retratados, foram as condies para essa

    espcie de obra-prima. Possuo aqui o mais belo retrato de Mal

    larm que j vi, fora a admirvel litografia de Whistler, cuja

    execuo foi outro suplcio para o modelo, suportado com toda

    a boa vontade do mundo: ao longo de inmeras sesses, ele teve

    de posar quase colado a um aquecedor, ardendo sem ousar

    queixar-se. O resultado valeu o m artrio. Nada mais delicado,

    mais espiritualmenteparecido do que esse retrato.

    As fotos de Muybridge tornavam manifestos os erros que

    todos os escultores e pintores cometeram quando representa

    ram as diversas posies do cavalo.

    Viu-se ento como o olho inventivo, ou melhor, como

    a percepo elabora tudo o que nos entrega como resul

    tado impessoal e certeiro da observao. Toda uma srie de

    operaes misteriosas entre o estado de manchase o estado

    de coisasou objetosintervm, coordena como pode dados bru

    tos incoerentes, resolve contradies, introduz julgamentos

    formados desde a primeira infncia, impe-nos continuida-

    des, relaes, modos de transformao que agrupamos sob os

    nomes de espao, tempo, matriaou movimento. Imaginava-

    -se ento o animal em ao como se acreditava v-lo; e talvez,

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    se examinssemos com bastante sutileza as representaes de

    outrora, encontraramos a leidas falsificaes inconscientes

    que permitiam desenhar momentos do voo dos pssaros oudos galopes do cavalo, como se pudssemos t-los observado

    sem pressa: mas esses momentos interpolados so imaginrios.

    Atribuam-se queles objetos mveis e rpidos figurasprov-

    veis,e seria interessante por meio da comparao de docu

    mentos procurar verificar essa espcie de criao,com a qual

    o entendimento preenche as lacunas do registro pelos sentidos.No que tange ao voo dos pssaros, aproveito a oportunidade

    para dizer que a fotografia instantnea corroborou as imagens

    que dele haviam dado Leonardo da Vinci em seus croquis e

    os japoneses em suas estampas; um talvez pela reflexo, os ou

    tros talvez pela sensibilidade e pacincia na observao.

    Degas encontrava no cavalo de corrida um tema raro, quesatisfazia s condies que sua natureza e sua poca impu

    nham s escolhas. Onde encontrar algo puro na realidade

    moderna? Ora, o realismo e o estilo, a elegncia e o rigor

    viam-se combinados no ser luxuosamente puro do anim al

    de raa. Alis, nada poderia seduzir mais um artista to refi

    nado, to difcil e amante de preparaes longas, de seleessutis e do fino trabalho de adestramento, do que essa obra-

    -prima anglo-rabe. Degas amava e conhecia o cavalo de sela

    a ponto de reconhecer os mritos de artistas muito distantes

    dele quando encontrava o cavalo bem estudado em sua obra.

    Um dia, na casa de Durand-Ruel, ele me reteve durante muito

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    tempo na frente de uma estatueta de Meissonier, um Napo-

    leo eqestre em bronze, de cerca de trinta centmetros de al

    tura, e detalhou para mim as belezas, ou melhor, as exatides

    que reconhecia naquela pequena obra. Canelas, quartelas,

    boletos, postura, garupa... Tive de escutar toda uma anlise

    crtica e finalmente elogiosa. Louvou igualmente o cavalo da

    Joana dArc de Paul Dubois, que se encontra em frente igreja

    de Saint-Augustin. Esqueceu de fa lar da herona, cuja arm a

    dura to exata.

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    DO SOLO E DO INFORME

    Degas um dos raros pintores que deram ao solosua importncia.

    Ele tem assoalhos admirveis.

    s vezes, retrata uma danarina de certa altura, e toda a

    forma se projeta sobre o plano do palco, como a viso de um

    caranguejo na praia. Esse partido lhe d vistas novas e combi

    naes interessantes.

    O solo um dos fatores essenciais da viso das coisas. De

    sua natureza depende em grande parte a luz refletida. A par

    tir do momento em que o pintor considera a cor no mais como

    qualidade local que age por si prpria e em contraste com as

    cores vizinhas, mas como efeito local de todas as emisses e re

    flexos que ocorrem no espao, e que se permutam entre todos

    os corpos que este contm; a partir do momento em que se

    esfora em perceber essa sutil repercusso, em utiliz-la paradar sua obra certa unidade totalmente diferente da unidade da

    composio, sua concepo daform ase altera. No limite, ele

    chega ao impressionismo.

    Degas, embora tenha conhecido muito bem e visto desen

    volver-se a seu redor essa maneira de ver,nunca lhe sacrificou

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    o culto do contorno em si, a que sua natureza e educao o

    tinham destinado.

    A paisagem, que estimulou nos artistas as interpretaes

    sucessivas que engendraram o impressionismo, jamais o

    seduziu. As raras que fez executou em seu ateli e totalmente

    de memria. Eram para ele diverses no isentas de alguma

    malcia com respeito aos fanticos pela pintura ao ar livre.

    Eram curiosamente arbitrrias: mas as que serviram de fundo

    para seus cavaleiros e para diversos outros temas so, ao con

    trrio, realizadas com a preciso que ele apreciava.

    Diz-se que fez estudos de rochedos entre quatro paredes,

    usando como modelos amontoados de fragm entos de carvo,

    emprestados de seu forno. Ele teria despejado o balde sobre

    uma mesa e se aplicado a desenhar cuidadosamente o local as

    sim criado pelo acaso que seu ato havia provocado. Nenhum

    objeto de referncia no desenho permitia imaginar que aque

    les blocos empilhados eram apenas pedaos de carvo do ta

    manho de um punho.

    Se isso for verdade, essa ideia me parece bastante vincista.

    Ela me faz pensar tambm em certas reflexes a que eu me en

    tregava, h muito tempo, e que talvez no estejam infinitamente

    distantes daquelas que minha lembrana de Degas me sugere.

    Eu pensava s vezes no informe.H coisas manchas, mas

    sas, contornos, volumes - que tm, de alguma maneira, somente

    uma existncia de fato: so apenas percebidas por ns, mas no

    conhecidas; no podemos reduzi-las a uma lei nica, deduzir seu

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    todo da anlise de uma de suas partes, reconstru-las por meio

    de operaes racionais. Podemos modific-las com bastante liber

    dade. Elas no tm outra propriedade seno ocupar uma regio

    do espao... Dizer que so coisas informes dizer no que no tmformas,mas que suas formas no encontram em ns nada que

    permita substitu-las por um ato de traado ou reconhecimento

    ntido. E, de fato, as formas informes no deixam outra lembrana

    seno a de uma possibilidade... Assim como uma seqncia de no

    tas tocadas ao acaso no uma melodia, tampouco uma poa, uma

    rocha, uma nuvem, um fragmento de litoral so formas redutveis.No quero insistir nessas consideraes: elas levam demasiado

    longe. Retorno ao desenho. Suponhamos que quisssemos dese

    nhar uma dessas coisas informes, mas em que se pudesse todavia

    reconhecer certa solidariedade entre suas partes. Jogo sobre uma

    mesa um leno que amassei. Esse objeto no se assemelha a nada.

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    Digo-lhes que seria preciso conhecer tudo; mas, de prefe

    rncia, saber utilizar o que se conhece.

    V-se de modo completamente diverso um objeto cuja es

    trutura se conhece. No se trata de mostrar msculos sob a pele,

    mas de pensar um pouco no que est embaixo dela. Isso leva

    a um questionrio profundo. No vejo seno vantagens nisso.

    Mas eis uma observao que fao: quanto mais se afasta a

    poca em que perspectiva e anatomia no eram negligenciadas,

    mais a pintura se restringe ao trabalho de observao do mo

    delo, menos ela inventa, compe e cria.

    O abandono da anatomia e da perspectiva foi simplesmente

    o abandono da ao do esprito na pintura em favor apenas do

    divertimento instantneo do olho.

    A pintura europeia perdeu nesse momento algo de sua von

    tade de poder...

    E, por conseguinte, de sua liberdade.

    Quem se lanaria hoje na empreitada de um Michelangelo ou

    de um Tintoretto, isto , numa inveno que brinca com os pro

    blemas de execuo, que enfrenta os grupos, os escoros, os

    movimentos, as arquiteturas, os atributos e naturezas-mortas,

    a ao, a expresso e o cenrio, com uma temeridade e um pra

    zer extraordinrios?

    Duas mas numa compoteira, uma academia com trin

    gulo preto nos exaurem.

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    DO NU

    A moda, os novos jogos, teorias diversas, curas maravilhosas,

    a simplificao dos costumes que compensa a complicao damaterialidade da vida, o enfraquecimento de todos os empeci

    lhos das convenes (e o diabo, sem dvida) abrandaram singu

    larmente o antigo rigor do estatuto da Nudez.

    Na praia com nus incontveis, talvez esteja preparando-se

    uma Sociedade totalmente nova. As pessoas ainda no se tra

    tam com intimidade; ainda existem certas formalidades, assimcomo ainda existem certaspartesescondidas; mas ouvir: Bom

    dia, senhor, Bom dia, senhora, entre um senhor nu e uma

    senhora nua comea por chocar.

    H poucos anos ainda, o mdico, o pintor e o freqentador

    de bordis eram os nicos mortais que conheciam o nu, cada

    qual segundo sua atividade. Os amantes usavam-no em algumamedida; mas um homem que bebe no necessariamente um

    verdadeiro apreciador e conhecedor de vinhos. A embriaguez

    nada tem a ver com o conhecimento.

    O Nu era coisa sagrada, ou seja, impura. Era permitido s es

    ttuas, por vezes com algumas reservas. Pessoas srias que sen

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    tiam horror por ele o admiravam no mrmore. Todos sentiam

    confusamente que nem o Estado, nem a Justia, nem o Ensino,

    nem os Cultos, nada de srio poder ia funcionarse a verdade fosse

    toda visvel. preciso haver roupas para o juiz, o padre, o mestre,

    pois sua nudez arruinaria o que deve haver de impecvel e inu

    mano em um personagem que representa uma abstrao.

    Em suma, o Nu tinha apenas dois significados na mente: ora

    era sinnimo do Belo; e ora do Obsceno.

    Mas, para os pintores de figuras, ele era o objeto mais im

    portante. O que foi o amor para os contistas e os poetas, foi o Nu

    para os artistas da forma; e, assim como, para os primeiros, o

    amor oferecia uma diversidade infinita de formas para exercer

    seus talentos, desde a representao mais livre dos seres e dos

    atos at a anlise mais abstrata dos sentimentos e dos pensa

    mentos; do mesmo modo, desde o corpo ideal at a nudez mais

    real, os pintores encontraram no Nu o pretexto por excelncia.

    Sente-se claramente que, quando Ticiano dispe uma V-

    nus da mais pura carne, molemente congregada sobre a pr-

    pura na plenitude de sua perfeio de deusa e coisa pintada,

    pin tar foi acariciar, juntar duas volpias num ato sublime,

    onde o domnio de si mesmo e de sua tcnica, o domnio da Bela

    Mulher com todos os sentidos, se fundem.

    O carvo de Ingres persegue a graa at a monstruosidade:

    nunca as costas so macias e longas o bastante, nem o colo fle

    xve l o bastante, e as coxas lisas o bastante, e todas as curvas

    do corpo condutoras o bastante do olhar que as envolve e toca

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  • 8/10/2019 VALERY, Paul - Degas Dana Desenho

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    mais do que as v. A Odaliscaest mais prxima do plesiossauro,

    faz sonhar com o que uma seleo bem dirigida teria feito com

    uma raa de mulheres especializada h sculos no prazer, como

    o cavalo ingls o na corrida.

    Rembrandt sabe que a carne lama que a luz transforma

    em ouro. Suporta e aceita o que v: as mulheres so o que so.

    Encontra apenas obesas ou descarnadas. At mesmo as poucas

    mulheres belas que pintou o so devido a no sei que emana

    o de vida mais do que forma. No teme as barrigas cadas,os membros grossos, as mos vermelhas e pesadas, os rostos

    muito vulgares. Mas aqueles traseiros, aquelas panas, aquelas

    tetas, aquelas massas carnudas, feiosas e serviais que ele traz

    da cozinha para o leito dos deuses e dos reis ele os impregna

    ou os toca com um sol que s dele, mescla como ningum o

    real, o mistrio, o bestial e o divino, a tcnicamais sutil e a maispoderosa, e o sentimento mais profundo, o mais solitrio que a

    pintura jamais expressou.

    Degas, durante toda a sua vida, procurou no Nu, observado em

    todos os seus aspectos, em uma quantidade incrvel de poses, e

    at em plena ao, o sistema nico das linhas que formuladeterminado momento de um corpo com a maior preciso, mas

    tambm com a maior generalidade possvel. A graa ou a poesia

    aparente no so seus objetos. Suas obras no cantam. pre

    ciso deixar algum rastro aleatrio no trabalho para que alguns

    encantos ajam, exaltem, dominem a palheta e a mo... Mas ele,

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    essencialmente voluntarioso, jamais satisfeito na primeira vez,

    com a mente terrivelmente armada para a crtica e alimentada

    em demasia com os maiores mestres, nunca se abandona vo

    lpia natural. Eu gosto desse rigor. Existem seres que no tm

    a sensao de agir, de ter realizado o que quer que seja se no

    o tiverem feito contra eles mesmos. Talvez seja esse o segredo

    dos homens verdadeiramente virtuosos.

    No Louvre, um dia, eu percorria com Degas a Grande Gale

    ria. Paramos em frente a uma importante tela de Rousseau que

    representa magnificamente uma alameda de carvalhos enormes.

    Depois de um tempo de admirao, observei com que cons

    cincia e pacincia o pintor, sem perder nada do grande efeito

    da massa de folhagem, executara o detalhe infinito ou produ

    zira a iluso suficiente desse detalhe a ponto de fazer pensar

    em um labor infinito.

    soberbo eu digo , mas deve ser tedioso fazer todas

    essas folhas... Deve ser at muito chato...

    Cale-se diz Degas se no fosse chato, no seria divertido.

    O fato que ningum mais se divertedessa forma laboriosa,

    e eu s traduzira ingenuamente a repugnncia cada vez maior

    dos homens por todo trabalho de aspecto montono ou que

    deve ser realizado com atos pouco diferentes e longamente

    repetidos. A mquina exterminou a pacincia.

    Uma obra era, para Degas, o resultado de uma quantidade

    indefinida de estudos e, depois, de uma srie de operaes.Acre

    dito que ele pensava que uma obra nunca pode ser considerada

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    terminada, eque ele no concebia que um artista pudesse rever

    um de seus quadros depois de algum tempo sem sentir a ne

    cessidade de retom-lo e de pr de novo a mo. Acontecia deele retrabalhar telas h muito tempo penduradas nas paredes

    da casa de seus amigos, lev-las para seu antro, de onde elas

    raramente voltavam. Alguns, de cuja casa era freqentador,

    chegavam a esconder o que tinham dele.

    Haveria muito para se filosofar sobre essas questes. Dois

    problemas, em particular, surgem neste ponto. Para determinado artista, o que representa seu trabalho? Paixo? Diverso?

    Meio ou fim? Para uns, domina sua vida; para outros, confun-

    de-se com ela. Dependendo dessas naturezas, uns passam facil

    mente de uma obra a outra, rasgam ou vendem, e comeam algo

    totalmente diferente; alguns, ao contrrio, lutam, atacam, cor

    rigem e acorrentam-se; no conseguem largar o jogo, sair docrculo de seus ganhos e perdas: so jogadores que dobram sua

    aposta de durao e vontade.

    O outro problema surge do primeiro. O que pensa (ou pen

    sava), de si, determinado artista?

    Que ideia tinha sobre o que para ns sua maestria,um

    Velzquez, um Poussin, um dos Doze Deuses do Olimpo dosMuseus? Meu problema insolvel. Se o tivessem apresentado

    a eles e se eles o tivessem respondido, poderamos suspeitar

    da resposta, mesmo a mais sincera, pois a questo vai mais

    longe, ou mais alm, de toda sinceridade.A ideia que fazemos

    de ns mesmos e que desempenha um papel essencial numa

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    carreira fundada totalmente nas foras que sentimos ter no

    se desenvolve nem se expressa claramente para a conscincia.

    Varia, alis, como essas foras, que se exaltam, se extenuam,

    renascem por to pouco.

    Por mais insolvel que seja, esse problema parece-me real

    e til de ser apresentado.

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    POLTICA DE DEGAS

    Degas tinha suas ideias polticas. Elas eram simples, perem p

    trias, essencialmente parisienses. Achava que Rocheforttinha um bom sensomilagroso. Quando veio Drumont, pedia

    para que lhe lessem seu artigo todos os dias. Tornou-se fan

    tico durante o caso Dreyfus. Roa as unhas. Ao menor indcio,

    adivinhava, estourava, interrom pia bruscamente: Adeus, se

    nhor... e virava para sempre as costas ao adversrio. Amigos

    muito antigos e muito ntimos foram dessa form a cortadosporele, sem apelao, sem recurso.

    A poltica Degasera necessariamente nobre, violenta, im

    possvel como ele.

    Conhecera outrora Clemenceau nos bastidores da pera,

    freqentada por esse personagem curiosamente egosta, ja-

    cobino absoluto, aristocrata dos mais esnobes, zombador universal, sem amigos, com exceo de Monet, mas que contava

    com pessoas fiis a ele, um homem duro, que gostava de ser

    temido, capaz de amar um povo, de for-lo redeno, um

    homem de prazer, de orgulho, de perigo. Ele adorava a Frana

    e desprezava os franceses...

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    Uma noite em que lhe aconteceu estar prximo de Cle-

    menceau, ambos sentados no mesmo banco, nofoyerda Dana,

    iniciou uma conversa... Contou-me essa conversa, ou melhor,esse monlogo, uns quinze anos depois.

    Desenvolveu sua concepo elevada e pueril. Que, se es

    tivesse no poder, a grandeza do cargo dominaria tudo a seus

    olhos, que levaria uma vida asctica, manteria uma habitao

    modesta, voltaria todas as noites, do ministrio para seu apar

    tamento no quinto andar... Etc.

    E Clemenceau perguntei , o que respondeu?

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    Dirigiu-me um olhar... de um desprezo!...

    Outra vez, novamente encontrando Clemenceau na pera,

    disse-lhe que fora naquele mesmo dia Cmara: No consegui,

    durante toda a sesso, falou, desviar os olhos da portinha que

    h do lado. Imaginava sempre que o campons do Danbio iria

    entrar por l....

    Ora, senhor Degas respondeu Clemenceau , no o te

    ramos deixado falar...

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    MMICA

    Havia em Degas uma curiosa sensibilidade para a mmica.Alis,

    as bailarinas e passadeiras que retratou, ele as apreendeu ematitudes profissionais significativas, o que perm itiu que reno

    vasse a viso dos corpos e que analisasse inmeras poses com

    as quais os pintores jamais se haviam ocupado antes dele. Dei

    xou de lado as belas mulheres languidamente recostadas, as

    deleitveis Vnus e Odaliscas; no procurou mostrar sobre o

    leito alguma obscena e soberana Olmpia, brutal como um fato.A carne, fosse ela dourada, fosse ela branca, ou carmim, no pa

    recia incit-lo a que a pintasse. Mas trabalhou para reconstruir

    o animal feminino especializado, escravo da dana, ou da goma,

    ou da rua; e esses corpos, mais ou menos deformados, aos quais

    pede que adotem estados muito instveis de sua estrutura arti

    culada (como amarrar uma sapatilha, pressionar com as duasmos o ferro sobre a roupa), fazem pensar que todo o sistema

    mecnico de um ser vivo pode se contorcercomo um rosto.

    Se eu estivesse fazendo crtica de arte, creio decerto que

    arriscaria uma hiptese de tripla raiz. Tentaria explicar esse

    modo mmico de verem Degas pela coexistncia de trs condi

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    Degas, cada vez mais solitrio e melanclico, sem saber o

    que fazer de suas noites, imaginara pass-las, durante os dias

    quentes, nas imperiais12 dos bondes ou dos nibus. Ele subia;

    deixava-se levar at o fim da linha, e, do ponto final, ser recondu

    zido de volta para perto de sua casa. Contou-me, certa vez, uma

    observao que fizera no dia anterior, em sua imperial. Trata-se

    de uma dessas observaes que retratam principalmente o ob

    servador. Assim, ele dizia que uma mulher viera sentar-se no

    longe dele; percebeu o cuidado que ela tinha em estar bem sen

    tada e bem arrumada. Passou as mos sobre o vestido, alisou-o,

    ajeitou-se e empertigou-se para melhor esposar a curva da ban

    queta; esticou as luvas em suas mos, abotoou-as com cuidado,

    passou a lngua sobre os lbios, que mordiscou um pouco, me-

    xeu-se em sua roupa para sentir-se vontade e fresca nos panos

    mornos. Por fim, estendeu o vu, aps ter beliscado levemente

    a ponta do nariz, colocou um cacho no lugar certo com dedo ve

    loz e, no sem ter verificado com uma olhadela o contedo de

    sua bolsa, pareceu concluir aquela srie de operaes adotando

    as feies de uma pessoa que encerrou seu trabalho, ou que, tendo

    feito tudo o que se pode fazer de humano antes de iniciar algo, est

    com o esprito tranqilo e entrega-se s mos de Deus.O bonde estremecia e comeava a andar. A senhora, defini

    tivamente instalada, permaneceu quase cinqenta segundos

    12. Compartimento aberto na parte superior ou traseira dos nibus, carrua

    gens ou outros veculos pblicos [n . e .].

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    em toda perfeio de seu ser. Mas ao fim desse tempo, que

    deve ter-lhe parecido eterno, Degas (que com gestos imitava

    perfeitam ente o que estou descrevendo a duras penas) a viuinsatisfeita: ela se ergueu, ajeitou o pescoo em seu colarinho,

    enrugou um pouco as narinas, ensaiou uma careta; depois,

    retomou suas retificaes de atitude e de ajuste, o vestido, as

    luvas, o nariz, o vu... Todo um trabalho muito pessoal,seguido

    de novo estado de equilbrio aparentemente estvel, mas que

    durou apenas um momento.

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    Degas, por sua vez, recomeava sua pantomima. Estava en

    cantado. Mesclava-se sua satisfao certa misoginia. Falei

    h pouco de animal feminino: receio ter-me expressado cor

    retamente. Huysmans no escreveu que ele pintava as baila

    rinas com horror? Huysmans exagerava; mas, fora algumas

    pessoas muito raras, nas quais encontrava toda a graa e todo

    o esprito que aquele homem refinado poderia desejar, Degas

    sem dvida julgava o sexo segundo seus modelos comuns con

    siderados nas atitudes de que falei. No aplicava nenhuma boa

    vontade em torn-las mais belas.

    No sei qual foi sua histria sentimental: nossos julgamen

    tos sobre as mulheres ressentem-se muitas vezes de nossas

    experincias.

    preciso ser uma espcie de sbio para culpar apenas a si

    mesmo quando as questes desse gnero s nos deixam des

    gostos, amargor e s vezes coisa pior. Mas o carter de Degasme faz pensar que sua vida passada tinha pouca relao com

    seu modo de reduzir a mulher ao que dela fazia em suas obras.

    Seu olhar negro no via nada cor-de-rosa.

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    DIGRESSO

    No conheo arte que possa envolver mais intelignciado que

    o desenho. Quer se trate de extrair do complexo da viso a des

    coberta do trao,de resumir uma estrutura, de no ceder mo,de lerepronunciar dentro de siuma forma antes de escrevla;

    ou ento de a inveno dominar o momento, de a ideia se fazer

    obedecer, se tornar precisa e se enriquecer com o que ela se

    torna no papel, sob o olhar; todos os dons da mente encontram

    seu uso nesse trabalho, em que aparece com no menos fora

    toda a personalidade da pessoa, quando ela a possui.

    Quem no mede o intelecto e a vontade de Leonardo ou de

    Rembrandt aps uma anlise de seus desenhos? Quem no

    percebe que um deve ser colocado entre os maiores filsofos,

    o outro, entre os moralistas e msticos mais interiores?

    Creio que, se tradies ou prticas escolares no nos im

    pedissem de enxergar o que e no reunissem os tipos de es

    prito segundo seus modos de expresso, em vez de reuni-los

    pelo que tm a expressar, uma Histria nica das Coisas do

    Espritosubstituiria as histrias da Filosofia, da Arte, da Lite

    ratura e das Cincias.

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    Em uma histria analgica dessa espcie, Degas estaria si

    tuado entre Beyle e Mrime. Nem o gosto pela msica italiana,

    o horror pelas especulaes de tipo alemo, a diviso do de

    sejo entre a diversidade romnticae a simplicidade clssica,

    os julgamentos cortantes, radicais, exterminadores, ou as ma

    nias faltam-lhe para que possa aparecer ao lado de Stendhal.

    Seu desenho trata os corpos to amorosa e duramente quanto

    Stendhal trata o carter e as motivaes das pessoas. Ambos

    admiravam Rafael, e o belo idealtinha em ambos seu papel de

    pedra de toque absoluta.

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    OUTRA DIGRESSO

    Paira sobre a arte moderna uma suspeita de ignorncia ou de

    impotncia que as mais estranhas pesquisasestimulam maisdo que dissipam.

    A inveno desapareceu. A composio fo i reduzida ao

    arranjo.

    mais simples apresentar de maneira bem-sucedida uma

    vitrina de sedas ou um buqu do que organizar uma cena com

    personagens em que uma quantidade semelhante de harmoniadeve coincidir com as formas impostas e a expresso. Talfesta

    para o olhar tambmuma batalha...

    Hoje, quase nada feito sem modelo. Quase tudo feito sem

    estudos; ou melhor, quase tudo no passa de estudos, e, mais

    ainda, estudos inutilizveis! Um bom estudo deve ser mais pro

    fundo do que qualquer quadro, e permanecer na sombra do ateli. No deveria jamais estar venda, jamais em Museus.

    Como chegamos a esse ponto de relaxamento?

    Primeiro, a ideia de hierarquiaentre obras e entre gne

    ros se esgotou. Se duas ameixas sobre um prato valem tanto

    quanto uma Descida da Cruz ou uma Batalha de Arbelles, e

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    podem valerinfinitamente mais; se um croqui de x vale infi-

    nitamentemais do que uma imensa tela de y ou seja, se o

    resultado vale mais do que o problema , esses julgamentos,

    embora inevitveis, reduzem contudo pouco a pouco opeso

    dos elementos de apreciao que no sejam puramente subje-

    tivos.(O Academicismo no passa, no fundo, de uma conser

    vao, mais ou menos consciente, dos critrios,mais ou menos

    ilusrios, de julgamentos objetivos:anatomia, perspectiva, se

    melhanas, viso comum das cores etc.)

    Conseqncia: aumento do nmero de maus pintores, pois a

    depreciao de meus famosos critrios objetivostem como pri

    meiro efeito suprimir todas as dificuldades(ao menos as conven

    cionais) da arte. Ningum se divertemais estudando cuidadosa

    mente e com reflexes que podem levar muito longe (Leonardo),

    um tecido jogado sobre uma cadeira, uma folha, uma mo... nem

    buscando nesse confronto com o objeto, sem pressa e sem uti

    lidade imediata, certa cincia de si mesmo, da manobra combi

    nada de seu intelecto, de seu desejo, de sua viso e de sua mo

    sobre uma coisa dada...e com o pblico ausente. (Este ltimo

    ponto capital: deve-se tentar espantar apenas a si mesmo.)

    Outra recompensa:A literatura tornou-se todo-poderosa, criadora ou destrui-

    dora de reputaes. Ovalor ou a estima destinados a uma obra

    de pintura depende (durante certo tempo) do talento do escritor

    que a exalta ou critica.No existe coisa informe, tolice colorida,

    anamorfose arbitrria que no se possa impor ateno e at

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    admirao, por via descritiva ou explicativa, com base na cons

    tatao (vinte vezes verificada no sculo xix ) de um retorno da

    opinio pblica que eleva ao nvel de obra-prima a obra incom

    preendida e ridicularizada em um primeiro momento, e que

    multiplica por mil seu preo de venda inicial.

    Foi assim que a infeliz Pintura viu-se presa dos mtodos

    rpidos e poderosos da Poltica e da Bolsa.

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    DEGAS E O SONETO

    Por volta do fim do sculo xix , o soneto,pouco estimado, mal

    executado pelos Romnticos, voltou moda. Foram feit