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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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ISBN 978-85-7019-504-3 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Pinto, Aloylson Gregrio de Toledo. Valnir Chagas / Aloylson Gregrio de Toledo Pinto. Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 166 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-504-3 1. Chagas, Raimundo Valnir Cavalcante, 1921-2006. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo. CDU 37(81)

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SUMRIO

Apresentao, por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Aloylson Gregrio de Toledo Pinto, 11 A luta pela educao brasileira, 11 As ideias de Valnir Chagas, 27 A luta pela universidade no Brasil, 35 Atualizao e expanso do ensino de 1 e 2 graus, 50 O professor necessrio, 70 E agora, outra vez?, 71 Textos selecionados, 107 Objetivos da educao, 107 Objetivos do ensino de 1 e 2 graus, 109 Autorrealizao, 110 Trabalho e lazer, 114 Cidadania, 119 Dos princpios estrutura, 124 Continuidade e terminalidade, 125 Obrigatoriedade e gratuidade, 131 Concentrao, 135 Progressividade, 136

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A estrutura, 138 Os processos, 144 Cronologia, 155 Bibliografia, 159 Obras de Valnir Chagas, 159 Obras sobre Valnir Chagas, 164 Outras referncias bibliogrficas, 164

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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VALNIR CHAGAS (1921-2006) Aloylson Gregrio de Toledo Pinto

A luta pela educao brasileira Ao pensamento expresso; pensamento, ao implcita; e ambos orientam-se pelos valores que engendram.

Valnir Chagas era, antes de tudo, um homem educado. No apenas no sentido de ter muito estudo e aptides intelectivas aprimoradas. Mas porque encarnava a difcil vocao de negociador de dissdios. Sempre atento inelutvel dialtica das situaes diferenciadas, dos interesses antagnicos, dos pontos de vista diversos, das condies histricas e conjunturais ele buscava, diligentemente, o caminho menos oneroso e o mais factvel para discernir objetivos comuns. Esse cearense, que haveria de destacar-se nacionalmente nas lides da educao brasileira, nasceu no interior do estado, no municpio de Morada Nova, em 21 de junho de 1921. Espao e tempo de pobreza desoladora. Filho de Egdia Cavalcante Chagas professora do primrio e de Manoel Chagas Filho funcionrio da rede ferroviria, Valnir era o terceiro dentre cinco irmos: dois homens e trs mulheres. Sem o apoio de um sistema escolar pblico e sem recursos para a educao formal de uma prole numerosa, era comum as famlias pobres naquela poca encaminhar os meninos para os se-

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minrios da Igreja Catlica. E assim foi com Valnir, em seguida ao retorno do irmo mais velho que no se ajustara experincia do seminrio menor dos padres franciscanos, no municpio de Canind, ainda hoje famoso na regio pela grande afluncia sazonal dos romeiros de So Francisco. Seus primeiros estudos foram feitos com a me-professora e, a seguir, ao amparo dos religiosos que souberam bem instru-lo no apenas no uso do vernculo. O convvio com frades originrios de diferentes pases europeus e sua disposio para aprender valeram-lhe o conhecimento precoce do latim, espanhol, francs, ingls, lnguas que veio a dominar fluentemente e uma iniciao lngua alem. Sua habilidade com as abstraes verbais foi uma das caractersticas mais evidenciadas ao longo de sua formao e do exerccio profissional. Valnir tambm tinha uma aptido natural para a msica, cujo desenvolvimento os frades igualmente souberam estimular. Ao deixar o seminrio em busca de oportunidades que a vida estagnada do interior no podia oferecer, suas habilidades musicais lhe permitiram amealhar alguns trocados na luta pela sobrevivncia em Fortaleza. Tocava flauta, piano, violo, cavaquinho e bandolim. Na capital do estado completou o curso secundrio no ento Liceu do Cear, colgio pblico estadual. Seus dotes musicais e uma disposio simultnea crtica bem humorada das prprias circunstncias, dos costumes e das instituies ento vigentes levaram-no s serestas e destas boemia. Na sua juventude e enquanto solteiro ele vivenciou a noite, havendo fundado uma banda liceal com alguns colegas tambm instrumentistas. Durante o dia, Valnir mourejava em empregos modestos, de contnuo ou escriturrio, inicialmente; depois, de professor de lnguas, inclusive nos tradicionais colgios So Jos e So Joo da rede particular da cidade. Todavia, ainda que ganhasse a vida como professor de lnguas verncula e estrangeiras ele jamais formalizou esses conhecimentos mediante cursos superiores.

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At por isso e ao longo de toda sua vida ele construiu a merecida fama de haver intelecto brilhante e invejvel capacidade de trabalho. E, nesses primeiros tempos de experimentao, punha-se a explorar tantas oportunidades quantas aparecessem. Classificou-se em primeiro lugar em concurso para admisso ao Banco do Brasil. Na poca, um dos melhores empregadores em um ambiente carente de ocupaes bem remuneradas e estveis. Curiosamente, no aproveitou esse resultado. provvel que j houvera tomado gosto pelo magistrio ou que sua inquietude intelectiva se recusasse rotina burocrtica. Seu primeiro curso superior foi o da Faculdade de Direito do Cear, concludo em 1944. Bem mais tarde, j participando do Conselho Federal de Educao, haveria de formar-se bacharel e licenciado em pedagogia pela Faculdade Catlica de Filosofia do Cear, de que fora um dos fundadores, professor nos cursos de letras e pedagogia, alm de Chefe de Departamento e diretor (temporrio). O conhecimento jurdico e o de sistemas e processos educativos convergiram para destac-lo, entre os seus pares de Conselho, pela formulao exmia da legislao educacional ento produzida. Ainda em 1944, foi admitido, por concurso no Rio de Janeiro, ao magistrio (civil) do ensino superior do Exrcito e lotado na Escola Preparatria de Fortaleza; cargo de que se afastou por aposentadoria, em 1974. Casa-se em 1947, com Maria da Paz de Drumond Miranda, filha da tradicional famlia Teixeira, do municpio de Itapipoca. Conheceram-se por relaes de vizinhana em Fortaleza e cultivaram longa amizade antes de chegar ao namoro e ao casamento que completou 59 anos de feliz unio. Seus filhos, Luis Helano, o primognito, que se dedicou administrao de negcios, e Lia Drumond Cavalcante Chagas, biloga e bacharel em direito, deram-lhes cinco netos e dois bisnetos, o ltimo dos quais o bisav no chegou a conhecer.

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Dona Pazinha, como carinhosamente nomeada na intimidade, pessoa dinmica, prtica e determinada, viveu para administrar esse universo familiar e os relacionamentos sociais do casal, deixando o marido vontade para as lides intelectuais e profissionais. Dizem os amigos que, uma vez casado, o professor Valnir passou a dedicar-se exclusivamente famlia e ao trabalho. De 1948 a 1953, organizou, instalou e dirigiu o Departamento Regional do Servio Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Embora se notabilizasse como mestre no ensino de lnguas, a experincia da educao profissionalizante familiarizou-o com os problemas e necessidades dos estudantes que a buscavam e tambm com as possibilidades formativas da aprendizagem do trabalho. Alis, foi sua participao no Seminrio de Orientao Tcnica do Ensino Comercial, realizado em Florianpolis (1948), quando pronunciou conferncia, que mais tarde, ampliada, resultou no livro Didtica especial de lnguas modernas. Foi tambm coordenador do ensino comercial do setor Nordeste Oriental, de 1955 a 1958, designado pelo Ministrio da Educao e Cultura; e representante desse Ministrio no Conselho Regional do Senac-Cear, de 1957 a 1961. Dirigiu o Instituto Brasil Estados Unidos, do Cear (1959/1961). Participou de amplas investigaes, dentre as quais se destacam a da comisso que se encarregou, no setor Nordeste Oriental, da pesquisa sobre o nvel mental da populao brasileira, de que resultou o INV (Teste de Inteligncia No Verbal), em 1955; a pesquisa didtica, patrocinada pela diretoria de ensino comercial do MEC, compreendendo a elaborao e experimentao de metodologia denominada sistema de classes-empresas, em 1958; e a reviso do Projeto de Ensino por Televiso desenvolvido pela Universidade do Texas e o Instituto Tecnolgico e de Estudos Superiores de Monterrey, Mxico (1964). Atuou no Conselho Estadual de Educao do Cear de 1956 a 1962, do qual se exonerou a pedido.

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Com a criao da Universidade Federal do Cear (UFC), dedicou-se ao ensino superior e dirigiu o Departamento de Educao e Cultura dessa instituio, de 1958 a 1962. Nesse perodo, orientou e coordenou trs seminrios anuais de professores dessa universidade, incrementando, no estado, o movimento ento nascente da Reforma Universitria (1959/1961); fez curso de especializao em Secondary Education and Teachers College, nas universidades de Michigan e Columbia (Estados Unidos, 1959); elaborou o projeto inicial e coordenou a execuo do Planejamento para Seis Anos da Universidade Federal do Cear (1960); e assumiu o planejamento em novos moldes da recm-criada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras (1960/1961). Nomeado professor catedrtico da Universidade Federal do Cear, lotado na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras (1961), foi seu diretor de 1962 a 1963. Instituio essa desdobrada em vrias unidades universitrias, uma das quais a Faculdade de Educao, da qual foi no s um dos idealizadores e fundadores, como tambm diretor, em 1969/1970, e onde lecionou at 1974. O curso de pedagogia dessa faculdade, que tive a oportunidade de fazer, iniciando-o em 1964, foi pioneiro na experimentao efetiva do primeiro ciclo universitrio que, posteriormente, seria generalizado universidade brasileira por meio da reforma universitria. A atuao acadmica do professor Valnir, naquela altura, extrapolara os limites da regio e obteve reconhecimento nacional com a nomeao para o Conselho Federal de Educao. Nomeao consecutivamente renovada at o limite da lei, perfazendo o perodo de quatorze anos, de 1962 a 1976. Nesse posto foi surpreendido, como tambm toda a nao, pelo golpe militar que interrompeu a evoluo de nossa frgil democracia poltica. Em 1964, iam avanadas as discusses sobre a reforma universitria. Os estudantes delas participavam intensa e acaloradamente, apesar de que o autoritarismo hegemnico tudo

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viesse a fazer para reduzir essa participao e as vozes dissonantes das concepes conservadoras. O professor Valnir sempre estivera frente das propostas de atualizao institucional. Mas o Conselho, doravante, haveria que atuar sob a presso de um Poder Executivo descontrolado e arbitrrio, ao ponto de marginalizar indivduos e instituies que se lhe opusessem ostensivamente. A resistncia ditadura, no plano institucional, teria que ser sutil, mas pode ser aquilatada pelo que permaneceu, de fato, da legislao da reforma universitria daquele perodo, uma vez diluda a coao que o governo militar ento exercia sobre sujeitos e grupos. Desde 1963, e at 1967, Valnir foi membro da Comisso de Especialistas do Ensino Superior para Formao do Magistrio, do Ministrio da Educao e Cultura. Em 1965, faz sua segunda especializao: University Administration, nas universidades de Londres, Exeter, Sheffield e Lancaster (Inglaterra). Coube-lhe, ento, relatar o anteprojeto de que resultou o Decreto-Lei n 53/65, primeiro ato legislativo da Reforma Universitria, completado em seguida pelo Decreto-Lei n 252/66. Aquele anteprojeto sintetizava prolongada discusso da universidade brasileira que convergira para o Conselho Federal de Educao e, naquele momento, tomava forma sob condies adversas. O professor Valnir participa do grupo de trabalho da Reforma Universitria, responsvel pelos anteprojetos e relatrio final de que resultou a legislao da Reforma Universitria, em sua primeira fase: leis 5.537/68, 5.539/68 e 5.540/68; e decretos-leis 464/ 69 e 465/69. E nomeado pelo presidente da Repblica, em 1968, membro da Comisso Nacional de Implantao da Reforma Universitria. Para o entendimento do embate poltico subjacente ao processo dessa Reforma, vale a pena comparar a legislao dele resultante com as proposies da Comisso especial instituda pelo Decreto 62.024, de 29/12/1967 e presidida pelo general Carlos de

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Meira Mattos, contidas no documento que ficou conhecido como Relatrio Meira Mattos, publicado no Suplemento do n 168 do Dirio Oficial. Comisso essa instituda pelo Poder Executivo cerca de seis meses antes da nomeao daquele grupo de trabalho, que com este concorria e, felizmente, perdeu na competio. Perdeu porque, no mbito das instituies educacionais federais houve quem resistisse prepotncia do regime de exceo, a este se opondo, na medida das contingncias daquele momento, mediante o conhecimento crtico das condies e possibilidades da universidade que tnhamos e a competncia propositiva de sua modernizao, para alm do pensamento nico ento vigente. Pensamento que parecia pautar-se apenas por dois critrios exclusivos: manuteno da segurana do governo quanto s atividades dos acadmicos, fossem professores ou estudantes, e atribuio de eficincia funcional ao desempenho da oferta de cursos. Em nome de tais critrios, o prprio Conselho Federal de Educao responsabilizado pela crise de autoridade que acometeria o conjunto do ensino superior pblico, cuja irresoluo decorreria tambm da inrcia desse Conselho e daria vez a usos e abusos inaceitveis na perspectiva daquela Comisso. O processo mesmo de reforma das universidades, em curso desde 1965, criticado no relatrio por sua implantao lenta e desordenada... sem uma viso objetiva da necessidade de reduzir currculos e durao de formao profissional de algumas especialidades. Paradoxalmente suspeio de inoperncia, a Comisso considera que o CFE tem mais poderes que o prprio ministro, em clara indicao de que seria conveniente minimizar as atribuies colegiadas do rgo para concentrar nas instncias do Poder Executivo a capacidade de determinar monoliticamente as instituies universitrias e controlar a movimentao poltica de docentes e discentes em especial. At para isso,

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A Comisso Especial sugeriu a alterao do sistema de nomeao dos reitores das universidades e diretores de estabelecimentos de ensino superior, atribuindo ao presidente da Repblica o poder de preencher tais cargos, independente de indicao das respectivas universidades ou congregaes.

Quando o CFE recebeu oficialmente, do ministro de estado de Educao e Cultura, o aviso 499/B, de 29 de agosto de 1968, encaminhando o relatrio da Comisso especial, foi possvel responder-lhe, entre os salamaleques convenientes, que esse relatrio aqui chegou depois de j haver este Conselho se manifestado sobre o relatrio do grupo de trabalho da Reforma Universitria. E que os problemas aludidos por aquela Comisso mereceram pronunciamento deste Conselho, quando examinou o relatrio do grupo de trabalho de Reforma Universitria, sobre os quais o governo j fixou diretrizes. (cf. Parecer n. 120/69. In: Documenta n 98 (pp. 124-127). Rio de Janeiro: MEC/CFE, 1969). No mbito local, Valnir Chagas elabora os projetos originais do Plano de Reestruturao, do Estatuto e do Regimento Geral da Universidade Federal do Cear (1968/1970); bem como os anteprojetos de Estatuto, Regimento Geral e Sistema Curricular de que resultou a nova organizao da Universidade de Braslia UnB (1970/1971); orienta, entre outras, a reforma da Universidade Federal do Par (1970). Neste perodo, faz uma terceira especializao: Manpower Planning and Analysis, na Michigan State University, EUA (1969). Em 1970 posto disposio da Universidade de Braslia, como professor titular, lotado na Faculdade de Educao. o ano em que assume a relatoria do grupo de trabalho constitudo em obedincia ao decreto presidencial n 66.600/70, que elaborou a doutrina com o anteprojeto de que resultou a lei n 5.692/ 71: de diretrizes e bases para o ensino de 1 e 2 graus. Na sequncia, o professor Valnir deixa-se absorver pelo esforo de explicitar as normas e disposies necessrias execuo dessa Lei. Dele fazem parte destacada a elaborao do Parecer n18

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853/71, que fixa as normas de contedo e durao para o Ncleo Comum do ensino de 1 e 2 graus e apresenta a doutrina do currculo emergente da lei n 5.692/71; e sua atuao como coordenador e relator do grupo de trabalho, designado pelo ministro da Educao e Cultura, que estudou a doutrina, a poltica e a implantao do ensino supletivo (1972). O pice de sua dedicao ao processo de atualizao e expanso do ensino de 1 e 2 graus foi a proposta da poltica e das estruturas curriculares para a formao de professores que pudessem dar suporte executivo s diretrizes e bases estabelecidas. Tal era a conscincia de que no se realizariam as mudanas pretendidas sem o entendimento da nova legislao pelos agentes do sistema educacional que, no segundo semestre de 1970, antes mesmo de concluda sua apreciao no Congresso, a Universidade de Braslia (UnB) j oferecia, por meio da Faculdade de Educao, o primeiro de uma srie (prevista) de trs cursos de especializao na reforma do ensino de 1 e 2 graus, para professores de universidades pblicas em todos os estados e tcnicos das respectivas secretarias de educao. Pretendia-se que esses especialistas assessorassem a implantao das mudanas nas diferentes unidades da Federao. A figura mais atuante desse curso, como no poderia deixar de ser, foi Valnir Chagas. O curso, todavia, no mais se repetiu. De 1973 a 1976 o professor Valnir submeteu sucessivamente apreciao da Cmara de Ensino Superior e ao plenrio do CFE: 1. A Indicao n 22 introdutria poltica de formao do magistrio (aprovada em 8/02/1973); 2. A Indicao n 23 pertinente s licenciaturas da rea de educao geral (aprovada em 08/02/1973); 3. A Indicao n 36 pertinente ao curso de licenciatura em educao artstica (aprovada em 09/08/1973); 4. A Indicao n 46 pertinente ao curso de licenciatura em cincias (aprovada em 07/06/1974);19

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5. A Indicao n 67 pertinente aos estudos superiores de educao (aprovada em 02/09/1975); 6. A Indicao n 68 pertinente formao pedaggica das licenciaturas (aprovada em 04/12/1975); 7. A Indicao n 70 pertinente ao preparo de especialistas em educao (aprovada em 29/01/1976); e 8. A Indicao n 71 pertinente formao de professores para educao especial aprovada em 12/02/1976). Dessas indicaes, a de n 7 foi homologada pelo ministro da Educao e Cultura, por despacho de 04/03/76, publicado no Dirio Oficial da Unio, de 11 do mesmo ms, p. 3412 (cf. Chagas, 1976, p.101 (*); e, a seguir, desomologada. Talvez porque o ento ministro da Educao, Ney Braga, estivesse mais atento s presses corporativas oriundas do meio universitrio do que s contingncias curriculares dos estudantes no ensino de 1 e 2 graus. Esgotada a possibilidade de renovao de sua permanncia no CFE, Valnir Chagas retoma suas atividades docentes na Faculdade de Educao da UnB e acadmico-administrativas: membro do Conselho Diretor da Fundao Universidade de Braslia, nomeado por ato presidencial (1972); do Conselho de Ensino e Pesquisa, da Cmara de Ensino de Graduao e da Comisso (permanente) de Enquadramento da Universidade de Braslia (1974/1991). Entre 1970 e 1989, o professor Valnir atuou em rgos deliberativos ou comisses permanentes, de mbito nacional, relacionados educao: Comisso Nacional do Concurso Vestibular; Comisso Nacional de Ps-graduao em Educao; Comisso de Especialistas em Faculdade de Educao; Conselho Consultivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep); etc. Participou da seo brasileira da Comisso Mista Brasil-Argentina, designada por decreto presidencial, que discutiu, em Buenos Aires, a reviso do convnio de Intercmbio Cultural entre os dois pases (1971); da delegao brasileira, designada por decreto presi-

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dencial, XXIII Conferncia Internacional de Educao, promovida pela Unesco e realizada em Genebra (1971); da delegao, designada por decreto presidencial, que representou o Brasil na XVII Conferncia Geral da Unesco, realizada em Paris (1972); da delegao brasileira, designada por decreto presidencial, Conferncia Internacional de Educao, promovida pela Unesco e realizada em Genebra (1973). Foi ainda membro do grupo de trabalho criado pela ministra da Educao e Cultura, professora Esther de Figueiredo Ferraz, para rever a legislao da Reforma Universitria (1982); do conselho editorial da Revista brasileira de estudos pedaggicos, do Inep-MEC (1983/1985); de comisses examinadoras de habilitao livredocncia, ao provimento de ctedras e de titularidade docente de ilustres professores, como Heldio Csar Gonalves Antunha (Universidade de So Paulo 1971 e 1980); Joo Eduardo Rodrigues Villalobos e Amlia Domingues de Castro (Universidade de So Paulo 1974); Glaura Vasques de Miranda (Universidade Federal de Minas Gerais 1981), Jos Carlos de Arajo Melchior (Universidade de So Paulo 1986); alm de outros. Ainda que fosse tmido e sofresse em cada vez que se expunha a pblicos maiores, o professor Valnir pronunciou conferncias, aulas inaugurais e envolveu-se em debates no escritos em universidades (Par, Cear, Paraba, Pernambuco, Bahia, Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Paran, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Braslia); em Secretarias de Educao; no Servio Nacional de Aprendizagem Comercial e no Servio Nacional de Aprendizagem Industrial; no Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras; no Centro Nacional de Aperfeioamento de Pessoal para a Formao Profissional; no Frum de Cincia e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro; na Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia; et al. (1953/1989). Em certa ocasio, confidenciou-me que tinha lido muito sobre a timidez,

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mas toda essa leitura de nada lhe valera para afastar de si o medo de gente. Nem por isso abandonou sua luta por uma educao brasileira e de qualidade para todos os brasileiros. Valnir Chagas gostava, mesmo, era de lecionar. Esse termo entendido como um processo de aprendizagem compartilhada. fato que suas prelees eram deliciosas. Os alunos assistiam-nas com evidente encantamento. Sua fala era verdadeiramente um discurso claro, muito articulado e entremeado de vivncias inditas, pontilhadas de humor. No havia quem no a apreciasse com ateno e sasse da interao com ele sem acrescentar algo prpria experincia. Mas o professor no nos permitia a contemplao passiva de um espetculo no participativo. Quando o questionamento no vinha espontneo de ns alunos, logo era provocado por ele. E seguamos assim, ainda que um tanto distraidamente, como testemunhas e provadores do processo de construo da educao brasileira. Eram tempos de intolerncia e imposio hierarquizada, mas o professor no se furtava a discusso do seu desempenho nas funes que exercia; nem conosco jamais utilizou seno de sua inteligncia para contestar nossas razes e entender diferentes pontos de vista possvel correo de eventuais descaminhos. Vez por outra, algum desentendimento revelava-se mais difcil de resolver. Com o Valnir porm, no processo didtico o argumento de autoridade no seria invocado. Esse embate seguramente no se dava entre iguais, mas, em compensao, travava-se com uma gerao aguerrida e disposta a contribuir para mudar o Brasil e, talvez, o mundo... Por meio do dilogo que soube levar com os mais jovens, o professor Valnir identificava promissoras vocaes acadmicas entre os estudantes, estimulava-os a progredir, apoiando-os no incio da carreira universitria e, no raro, utilizou de seu prestgio no meio para preserv-los das disposies repressivas do regime poltico vigente.

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Ao longo de sua vida e atividade profissional, acumulou numerosos ttulos e comendas: do seu estado natal; de diferentes universidades: doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Santa Maria (RS, 01/1973) e professor Honoris Causa da Universidade Federal do Esprito Santo (ES, 03/1983), ambos concedidos pelos respectivos Conselhos Universitrios; do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq); do governo brasileiro; e do governo francs. Exerceu atividade docente no curso de ps-graduao da Faculdade de Educao da UnB at aposentar-se, no ano de 1991, quando atingiu a idade limite, no servio pblico, para permanecer em atividade. Raimundo Valnir Cavalcante Chagas faleceu em 4 de julho de 2006. Por essa ocasio, o professor Elcio Pontes e eu, seus ex-discpulos na UFC e colegas na Faculdade de Educao da UnB, redigimos uma breve nota de falecimento que se encerrava assim:Qualquer que seja a polmica em torno de sua obra, h que nela reconhecer uma inteligncia privilegiada, a capacidade de lidar com a historicidade da cultura brasileira e a inteno de contribuir sua progressiva humanizao. Seus amigos e, especialmente, os que tiveram o privilgio de ser seus alunos no esquecem o brilho de seu conhecimento e a elegncia com que se colocava a servio da aprendizagem.

Afora os trs livros que publicou, seus escritos esto espalhados por numerosas publicaes, separatas e opsculos. A Documenta, revista oficial do ento Conselho Federal de Educao, hoje Conselho Nacional de Educao; e a Revista brasileira de estudos pedaggicos, do MEC-Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira) so as principais fontes de acesso ao conjunto dos trabalhos que produziu ao longo de catorze anos como membro daquele Conselho. Ao todo, segundo ele mesmo, chegou a relatar 504 processos durante esse perodo.23

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No s esses produtos, mas inclusive seus livros constituem o registro evolutivo de uma experincia pessoal e profissional densamente refletida no conhecimento histrico e contemporneo da educao, vivida em diferentes configuraes locais, como tambm nos contextos nacional e internacional. Valnir Chagas partia sempre da situao atual para a anlise dos seus antecedentes e espelhava-as no acervo da pedagogia, at chegar ao encaminhamento criativo das proposies sua manuteno ou modificao. Sua ateno teve como objetos de estudo praticamente todos os componentes estruturais do sistema educacional brasileiro, no sentido vertical a sequncia e articulao do ensino fundamental, mdio e superior, inclusive a sistematizao inicial da ps-graduao; e no sentido horizontal a gnese dos conceitos teis composio, ao relacionamento e diferenciao de currculos em cada nvel da escolaridade e modalidade de educao. Nesse sentido, props a reorganizao didtica da experincia escolar segundo as caractersticas evolutivas dos educandos, ao longo da escala de escolarizao. Bateu-se com a dualidade estrutural que, historicamente, dividia o ensino mdio em ramos: os profissionais, de um lado, que preparavam para o mercado de trabalho, e o secundrio que no preparava seno para os exames de ingresso no curso superior um esquema de indisfarvel discriminao socioeconmica para manuteno do status quo. No ensino superior, haveria de lutar pela atualizao de suas estruturas e processos funcionais, entre os quais a extino da ctedra vitalcia; a instituio do departamento como a menor unidade estrutural da universidade; a indissociabilidade de ensino e pesquisa; a superao da dualidade de bacharelados e licenciaturas, cuja tradio no s desconhecia a formao de professores para o incio da escolarizao, como cuidava apenas da preparao de docentes para o curso secundrio: simplesmente no havia, ento, soluo instituda formao de professores para os ramos tcnicos do ensino

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mdio. O magistrio das disciplinas tcnicas do ensino profissional era exercido por bacharis e profissionais de nvel mdio, ao sabor das contingncias da oferta e procura de trabalho. O estabelecimento de critrios para o reconhecimento de universidades ou para definir a durao dos cursos, sua carga-horria e o modo de contabiliz-la; a passagem das rgidas sries anuais para a matrcula por disciplinas; a padronizao dos registros mnimos de informao componentes do significado dos diplomas de cursos profissionais; formas de controle de frequncia escolar; normas ao jubilamento de estudantes. A tudo isso e a outros aspectos ainda no mencionados, como o regime de trabalho em tempo integral e dedicao exclusiva e a abolio de aulas aos sbados nos estabelecimentos federais de ensino superior; a remunerao do professor pelo seu nvel de qualificao e no pelo grau em que atue, o professor Valnir deu sua ateno, na companhia de seus pares de Conselho, para melhorar as prticas educacionais vigentes ou instalar novos padres didtico-administrativos. Seu trabalho foi eminentemente social porque estava ao permanente servio das instituies pedaggicas, seja no CFE, seja nas demais instituies em que atuou simultnea ou seguidamente. E tambm porque nessas instncias ele criticava o estabelecido, discutia abordagens distintas, negociava a exequibilidade de novos padres, recolhia contribuies inovadoras e acabava por dar-lhes a ltima forma que no dispensava o trao de sua contribuio original. Vale notar a problemtica tpica do trabalho sciopoltico dos conselhos de educao: suas proposies devem, na medida do possvel, atender a questes de ordem local ou particular, mas configurar alguma resposta passvel de generalizao, firmando jurisprudncia a respeito; ou, pelo contrrio, formular ou reformar normas, fazendoas aceitveis no mbito de municpio, estado ou Federao, apesar da grande diferenciao social e econmica e dos mltiplos interesses que essas esferas administrativas necessariamente comportam. No fcil

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consegui-lo. Dir-se-ia que mesmo temerrio, ainda que indispensvel em um pas com as dimenses do nosso. Mas d para imaginar a dificuldade que esse cometimento envolve, a competncia e audcia que requer, principalmente no nvel federal. O professor Valnir dispunha de ambas. E colocou-as a servio da educao. Do sistema pblico de educao, seria melhor dizer. Esse sistema, por sua vez, deve exercer, com equidade, o controle de unidades escolares pblicas e privadas e garantir, para os cidados que deles se servem, sua unidade e consistncia com a formao da cidadania e consolidao da nacionalidade. Isso seria menos rduo se as escolas particulares no fossem tambm um negcio e, como tal, visceralmente orientadas obteno de lucro, economia de custos, aos motivos de seus proprietrios ou entidades mantenedoras. preciso pois, que suas atividades sejam reguladas, os direitos dos usurios garantidos e seja assegurado um padro educacional capaz de satisfazer as necessidades e caractersticas dos estudantes e as aspiraes de seus familiares. A escolaridade pblica, por sua vez, ainda que voltada realizao dos interesses coletivos sofre, no Brasil, de crnica escassez de recursos que dificulta ou impede a instalao adequada de suas unidades escolares e a plena atualizao de seus processos didtico-administrativos, condenando-a, portanto, as mais das vezes, relativa ineficincia de suas prticas e ineficcia de resultados. Os conselhos de educao, em seus diferentes mbitos de alcance, so como caixas de ressonncia de todos os problemas educacionais e devem lidar com eles, proceder mediao dos interesses por vezes conflitantes do estado e de particulares, interpretar a legislao estabelecida, recomendar solues possveis, propor legislao no sentido de aprimorar as condies vigentes da educao institucionalizada. A essas tarefas, sempre interativas e de alcance poltico, o professor Valnir dedicou boa parte de sua vida e maturidade profissional.26

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As ideias de Valnir Chagas

O seu livro Didtica especial de lnguas modernas, cuja primeira edio data de 1957, fornece-nos um panorama da atualidade do autor, em relao ao contexto internacional da educao em meados do sculo XX. Desde ento e ainda que no escopo do ensino de lnguas, sua disposio era vanguardista e seu foco dirigia-se mais educao que poderia resultar da aprendizagem de lnguas do que especificidade desse campo de conhecimentos. Suas preocupaes dirigem-se necessidade de atualizao metodolgica desse ensino, considerada a classe escolar no como um mundo parte, mas como o lugar onde a existncia pode ser refletida e sistematizada.[...] curioso notar como os avanos da cincia pedaggica s a custo penetram na cidadela do formalismo livresco que se construiu em torno do ensino das lnguas sejam estrangeiras ou nacionais, sejam clssicas ou modernas. Isto parece constituir mesmo uma caracterstica definidora desse antiqussimo departamento da cincia da educao, porque ainda hoje, em poca de transformaes to radicais, a gramtica ranosa e os mtodos formais continuam a imperar onipotentes, desafiando a argcia dos estudiosos e o poder inovador das novas geraes. A doutrina se aperfeioa; surgem novas concepes didticas; multiplicam-se quase ao infinito os meios auxiliares postos disposio dos mestres e cada vez mais cresce o abismo entre a classe e a vida que se vive. (Chagas, 1979, p. 43.) [...]

Valnir vai fundo na pesquisa histrica da pedagogia para compreender seus fundamentos e verificar os avanos, nem sempre contnuos, a que se chegara no mundo, e a que se poderia chegar no pas. Sua mirada larga, para alm do constrangimento disciplinar ou da especificidade do estudo de lnguas e das respectivas literaturas:[...] A misso da escola entrou a ser encarada de um ngulo mais amplo e por critrios mais estritamente objetivos, associando-se instruo de finalidades meramente informativas a educao que forma e constri.

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Novamente porque a ideia vinha de Rousseau e dos filantropos ao lgico contraps-se o fator psicolgico da aprendizagem, atravs de uma valorizao do interesse, como elemento fixador da ateno e vitalizador do esforo, sem o qual no se alcanaria a atividade fecunda e atraente da instruo educativa. O princpio da intuio, que Pestalozzi formulara e aplicara escola elementar, foi posto em relevo, de maneira sistemtica, para abranger agora as sucessivas etapas do trabalho escolar; e este, por sua vez, deixou de ser unicamente indireto para alar-se observao imediata da prpria realidade. A experincia pessoal do aluno passou a ser levada em conta na aquisio de novos conhecimentos e atitudes, graas teoria da apercepo. Desta resultou mais tarde a fixao dos vrios passos formais do ensino, grande contribuio de Herbart que, a partir dos trabalhos de Ziller, iria destacar-se no conjunto de sua psicologia para converter a aprendizagem num processo determinado a priori e de desenvolvimento puramente mecnico. Finalmente, o princpio do autogoverno dos educandos, a ser conseguido mediante uma interveno discreta dos mestres, surgiu pela primeira vez como norma tendente a estabelecer, na escola, um justo equilbrio entre os eternos extremos da liberdade e autoridade. Outras influncias igualmente poderosas vieram juntar-se ao sistema compacto da psicopedagogia de Herbart. Projetando em novo plano o intuicionismo naturalista de Pestalozzi, Froebel e Diesterweg conceberam e deram feio prtica aos jardins de infncia (Kindergarten) e s escolas de trabalho (Arbeitschulen), ao mesmo tempo em que, estruturando-se como cincia, a pedagogia experimental se arrogava um campo de incidncia quase ilimitado no conjunto de ao educativa, abrangendo desde a criana ao adulto e assim os normais como os anormais. Sentia-se em tudo um mpeto de renovao, um renascer de esperanas, um florescer de iniciativas que anunciavam, na inquietude deste comeo de sculo, uma nova era que estava prestes a surgir. Aferrando-se embora aos seus velhos dogmas, com disfarces que no escondiam o secular anacronismo que o minava, o ensino das lnguas no pde fugir ao impacto da onda inovadora que tudo invadia e contagiava sua passagem. E, com efeito, como ainda impingir a aridez de listas de palavras e regras de gramtica a estudantes cujo interesse deveria ser a grande fora motivadora de aprendizagem? Como considerar apenas o aspecto grfico do idioma, numa28

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poca em que se visava principalmente educao integral? Como prosseguir falando exclusivamente a lngua materna em aula de idioma estrangeiro, e como ainda transmitir o valor semntico dos vocbulos pelo recurso indireto da traduo, quando o princpio da intuio era a doutrina mgica do momento? Como nivelar a aprendizagem dos escolares ao plano uniforme das mesmas noes gramaticais, se o princpio da apercepo estava na ordem do dia e a todos empolgava? Sobretudo, como insistir em que todos os alunos, na mesma hora, dissessem as mesmas coisas, conjugassem os mesmos verbos, memorizassem as mesmas palavras ou frmulas e realizassem as mesmas aes, num instante em que se aludia com insistncia flexibilidade do ensino e ao autogoverno dos educandos? Positivamente, o estudo das lnguas tinha que atualizar-se, para acompanhar as transformaes profundas por que passava a velha arte de educar. (Chagas, 1979, pp. 48-49.) [...]

Entretanto, o mestre mantinha-se atento aos exageros do entusiasmo com a metodologia cientfica que assumia uma expresso hegemnica sobre quaisquer outras formas de produo de conhecimento na primeira metade do sculo passado. Particularmente as cincias da natureza que, poca, eram creditadas como exatas, deram vezo a incautos acadmicos para olhar sobre outros campos de conhecimento, notadamente os estudos sociais aplicados, como se no tivessem valor equivalente. Talvez pior, as retumbantes conquistas do conhecimento cientfico e o avassalador processo de descobertas e invenes indutoras ao desenvolvimento tecnolgico produziram um movimento de transposio, de algum modo ingnuo, dos mtodos experimentais s cincias humanas. Ao ponto que um de seus crticos chegou a dizer, da psicologia, por exemplo, que para ser cientfica, deixara de ser humana. O humanismo do professor Valnir no se deixou iludir por tais excessos. Pelo contrrio, interage com a cincia e as tcnicas sem vestgios de submisso, como se pode perceber no seu texto:[...]

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O essencial [...] que o cientfico no chegue jamais a eliminar o humano. Todas estas comprovaes experimentais valem apenas como dados iniciais para orientar a subsequente atuao do professor, isto , como verdades que existem sempre em funo de verdades melhores. sobretudo neste particular que repousa a grande diferena entre o mtodo cientfico e o mtodo pedaggico: aquele admite uma cincia formada; este, ao contrrio, caracteristicamente o mtodo da cincia em formao. Com efeito, [...] quem no sentiria, honestamente, uma certa e natural hesitao ao impedir que determinado candidato se matriculasse num curso de lngua, pelo simples fato de um teste psicolgico, em alguns minutos, o haver mecanicamente contraindicado? Educar sobre a base de uma limitao inicial, observa com razo Lombardo-Radice, no propriamente educar: moldar; comprimir. E este tem sido, em que pese aos seus inegveis mritos, o grande pecado do mtodo cientfico no ensino das lnguas modernas: apoiar-se, de modo incondicional, nos resultados de exames feitos em grupos de indivduos os quais, como toda amostra, no passam de meras ... amostras e aplic-los indiscriminadamente a outras pessoas, em novas situaes, ao longo de todas as aulas e de todo o curso. Como sugestes iniciais, sujeitas aos constantes ajustamentos ditados pela psicolgica flexibilidade de tudo o que humano, esses elementos so excelentes. Mas fazer justamente o inverso, conformando todo o ensino aos modelos prvios de tais experincias, algo que no se pode admitir de nenhuma forma, porque cada ser humano, dotado como de autonomia funcional, constitui uma personalidade inconfundvel, de estrutura psicolgica sui-generis, que no ultrapassa os limites de sua prpria vida individual. curioso observar como se condena a escola tradicional pelo que ela tinha de antecipado, decidindo aprioristicamente o que o educando deveria ser, fazer ou aprender. Ora, no isso tambm, mutatis mutandis, o que tem feito este mtodo cientfico outrance, conformando o ensino a esquemas que, em relao a novos indivduos, so quase to apriorsticos como os daquela? Alis, por que mtodo cientfico, se o ser cientfico apenas uma dentre as muitas facetas do Mtodo? O qualificativo impe uma limitao pedagogicamente inaceitvel, porque afinal todo mtodo deve ser no somente cientifico mas, no caso particular das lnguas,30

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direto, intuitivo, fontico, psicolgico, natural e tudo o mais que se possa legitimamente desejar para encaminhar o trabalho educativo, em cada momento da sua evoluo, no sentido de alcanar rpida e eficazmente o objetivo que se tem em mira. O mtodo natural, na medida em que adota os processos empregados no aprendizado da lngua materna, pouco importando que se atenha, ou no, ao sistema de Berlitz e seus seguidores. psicolgico, no apenas por lanar mo das sries de Gouin, em algumas circunstncias especficas, mas sobretudo porque nenhuma concepo educativa, em nenhum instante do seu desenvolvimento, poder jamais deixar de subordinar-se s normas que regem a marcha complexa e ininterrupta do ajustamento humano. fontico, segundo o realce que atribui ao aspecto oral da linguagem, buscando as melhores tcnicas que assegurem urna reproduo tanto quanto possvel exata da pronncia estrangeira. intuitivo, conforme se funda em percepes e representaes claras, precisas e totais da realidade mediata ou imediata, sem que com isso se devam obrigatoriamente usar as lies de coisas ou os quadros-murais. direto, sempre que o ensino do idioma se faz no prprio idioma. cientfico, quando se inspira no esprito de ordem e clareza que caracteriza todas as cincias, e o seu contedo, por conseguinte, emerge de uma verificao precisa e controlada da matria considerada, dos meios empregados para transmiti-la e dos prprios indivduos que devero aprend-la. O Mtodo tudo isto porm muito mais do que isto. [...] De fato, ele resulta dos esforos conjuntos de professor e alunos e , assim, menos um que fazer do que um que se faz ou um que se fez. Esta conceituao instrumentalista elimina a possibilidade dos sistemas particulares e rgidos, uma vez que, segundo a observao de um realista do porte de Meumann, toda experincia tendente a adotar um mtodo exclusivo fracassa inapelavelmente, ora pelas diferenas individuais das disposies lingusticas, ora pela variedade dos fins educativos e culturais visados com o ensino dos idiomas estrangeiros. No falemos, pois, de mtodos. Falemos do Mtodo, ou melhor ainda, repetindo as palavras sempre oportunas de Mnch, de uma conduta metdica, um pensamento metdico, cujos fundamentos residem assim nas leis da nossa vida espiritual como na prpria natureza do contedo didtico. (Chagas, 1979, pp. 99-102) [...]31

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Um dos aspectos que mais encanta no posicionamento didtico do professor Valnir a conscincia, nele inalienvel, de que a disciplina a ensinar e o seu respectivo contedo so meios para o desenvolvimento do estudante. Conscincia essa muito pouco comum entre os professores, ainda hoje, particularmente aqueles que no tm formao pedaggica. Esses, em geral querem ensinar o que sabem, atentos principalmente informao e lgica intrnseca do campo de conhecimento a ministrar. A subjetividade do aluno e o conhecimento de suas circunstncias sociais e econmicas so, praticamente, desconsiderados na escolaridade formal, enquanto os lentes se deixam seduzir pelo valor intrnseco da objetividade dos conhecimentos, objetivamente imposta aos aprendizes, revelia de seus motivos e possibilidades. Educar parece-lhes mais uma responsabilidade familiar que propriamente escolar, sobretudo no ensino superior quando, supostamente, se lida com adultos. Suposio que se sustenta apenas em discutvel referncia cronolgica. Ora, tomar os contedos didticos como objeto, sem dvida privilegiado, da atividade dos estudantes, no sentido de seu amadurecimento intelectivo, e para o discernimento de valores muito diferente de sujeitar os alunos passiva aceitao do espetculo dos mestres, sob a condio irrecusvel de avaliaes seletivas, com o fito de transmitir conhecimentos. Talvez Valnir Chagas tenha se sado melhor do que eles, no s por sua erudio pedaggica, mas porque seu mtier fosse o ensino de lnguas, o da lngua verncula em especial, que se confunde com a prpria gnese da inteligncia e dos afetos da pessoa, embora no a esgote. Para ele, as lnguas modernas:[...] podero tambm contribuir, e o fazem com inegvel proveito, para desenvolver a capacidade de reflexo, a agudeza de julgamento, o esprito de observao, o senso de iniciativa e a apreciao de valores, assim como as atitudes mentais positivas e socialmente teis. Nenhuma destas caractersticas, nem mesmo a primeira, constitui afinal privilgio do latim ou das cincias matemticas, como se sups du32

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rante muito tempo por um injustificvel anacronismo psicolgico. Aprender a pensar no algo que se consiga, passivamente, com o estudo formal de determinadas disciplinas ou lies. Ao contrrio, resulta do contedo reflexivo que, conscientemente, vamos imprimindo a toda nova aquisio que fazemos e , acima de tudo, um problema de mtodo antes que simples questo de regras ou teoremas. Todos os processos de ensino, observa John Dewey, podem considerar-se unificados a partir do momento em que se concentram na produo de bons hbitos de pensar. O pensamento o mtodo por excelncia da experincia educativa, porque a essncia do mtodo reside na essncia mesma da reflexo. (Chagas, 1979, p.134.) [...]

O pensamento educacional do professor Valnir evidencia as necessrias articulaes das disciplinas nos currculos e destes existncia social e cultural, sempre tendo o desenvolvimento do estudante como a referncia de origem e finalidade. De estudante e escola situados no tempo e espao. Sua ateno mantm-se como que em movimento pendular, de um dever ser teoricamente sustentado compreenso lcida da historicidade do sistema escolar. Ele se pergunta o que a educao poderia vir a ser, quais seus objetivos, mas sabe que ela no pode transformar-se seno a partir do que .[...] Uma das causas mais evidentes da pouca eficincia registrada pelo ensino das lnguas modernas, na escola brasileira de segundo grau, tem sido a quase total ausncia de objetivos capazes de nortear uma atividade proficiente e segura dos seus professores. E, se formos um pouco mais adiante, veremos que o fenmeno, antes de ser caracterstico dos idiomas, decorre da imprecisa fixao dos rumos a seguir no prprio curso secundrio. Durante muito tempo, e infelizmente ainda hoje, estudar em ginsio ou colgio era, e , um meio incmodo mas inevitvel, para atingir, to rapidamente quanto possvel, a meta suprema da universidade. Quando, para o ingresso na faculdade escolhida, se exige o conhecimento de algum idioma estrangeiro, o seu estudo se faz simplesmente em vista do vestibular respectivo, pouco importando o aspecto realmente educativo ou cultural que se deve levar em conta no ensino de qualquer disciplina. Todos conhecemos a facilidade33

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com que nascem, e o xito com que se desenvolvem, os cursos particulares de preparao s escolas superiores, os chamados cursinhos, que tm como nico propsito exercitar o candidato para responder, mecanicamente, a certas perguntas que a experincia dos anos passados mostrou serem as mais comuns em cada estabelecimento de nvel universitrio. (Chagas, 1979, pp. 136-137.) [...]

Por que ocupar-se com as proposies educacionais do primeiro dos livros de Valnir Chagas, editado em meados do sculo passado, se esto ao alcance os seus trabalhos mais atuais, aqueles expressivos de sua atuao em mbito nacional e definidores de sua pedagogia poltica? A maior razo para faz-lo poder comparar seu pensamento em pocas e contingncias diferentes, para aquilatar o grau de consistncia de seu posicionamento didtico. Pode-se inferir, desses poucos trechos, arbitrariamente selecionados, sua insero no movimento de renovao da educao e da metodologia de trabalho docente e discente. Resumidamente, so seus traos fundamentais: a inteno de transcender o ensino centrado na transmisso de informao e informao compartimentada, alm de formalmente abstrata desde o incio da escolarizao; a busca de integrao dos campos de conhecimento tomados como formas diferentes de realizar os mesmos objetivos psicolgicos e sociais; a considerao da experincia anterior do aluno, o que implica no ajustamento do ensino s caracterstica evolutivas e diferenciais da populao escolarizada; a denncia do insulamento das classes escolares e do consequente distanciamento dos estudos e da aprendizagem em relao ao curso da existncia social e cultural; o apelo necessidade de obter o interesse e sondar os motivos dos educandos como ponto de apoio inicial do processo educativo;34

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a indicao da importncia metdica da atividade discenteno processo de aprender, inclusive como meio para alcanar o autogoverno do estudante; a considerao dos meios tcnicos e tecnolgicos para tornar o ensino mais eficiente; a crtica ao peso coercitivo das avaliaes no sistema educativo; a preocupao com o sentido exclusivamente preparatrio do ensino secundrio e a decorrente depreciao social dos ramos profissionais do nvel mdio; o reclamo de clareza nos objetivos do sistema e dos processos educativos; a ateno para com o preparo dos professores, condio sem a qual a atualizao educacional no passar do propsito de uns poucos construo de uma nova realidade; Ser muito interessante verificar se esses componentes se mantm, ampliam e explicitam mais e melhor no sentido do desenvolvimento de uma educao ao mesmo tempo brasileira e atual ou se, pelo contrrio, sero contraditados por quem os expressou ao subsequente comando da autocracia militar do regime ditatorial. Foi nesse infausto perodo poltico que a reforma universitria e do ensino de 1 e 2 graus foram lanadas, tendo o professor Valnir Chagas como relator dos esforos nesse sentido desempenhados pelo Conselho Federal de Educao.A luta pela universidade no Brasil

Esse ttulo encabea um dos trabalhos do professor Valnir sobre a universidade que tnhamos, sob o peso da historicidade de nossa cultura, e que, em sua viso poderamos vir a ter, transitando para a modernidade, isto , para a progressiva conscientizao: de seus objetivos como instituio que agrega e produz conhecimento para educar; da racionalizao organizacional dos prprios35

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meios tcnicos, cientficos e educacionais; e do compromisso crescente com a realidade brasileira. Componente do grupo de trabalho da Reforma Universitria e como seu relator, Valnir d forma aos resultados dessa atividade colegiada, mediante o parecer aqui parcialmente transcrito. O anteprojeto de lei anexo ao parecer dar origem ao Decreto-Lei n 53, de 18 de novembro de 1966, primeiro marco legal do processo de reforma universitria posterior Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (Lei n 4.024, de 20 de dezembro de 1961).Reestruturao das universidades brasileiras Parecer indicao n. 442/66, C.E.Su. (1 Grupo), aprov. em 5-81966. O Sr. ministro da Educao e Cultura solicita a cooperao deste Conselho para elaborao de um anteprojeto de lei que promova a reestruturao das universidades federais sem, contudo, padronizar o que deve obedecer inspirao e experincia dos educadores. Entende Sua Excelncia que j tempo de o Govrno ir ao encontro das iniciativas em curso nesse campo e que visam maior concentrao dos recursos materiais e humanos como pressuposto do aumento da produtividade, ainda baixa por vcios de estrutura que devem ser corrigidos. E embora sem descer a pormenores, lembra tambm a necessidade de regularizar a questo referente formao de licenciados, sobretudo de cincias que muitas universidades tendem a atribuir a institutos bsicos ou centrais. O problema universitrio se insere na competncia da Unio em dois nveis de profundidade. Como instncia mxima reguladora do processo educacional em todo o pas, cabe-lhe fixar para sse grau escolar, como para os que o precedem, diretrizes e bases a partir das quais as escolas e universidades se organizam conforme as regras traadas pelas entidades pblicas ou privadas que as instituem e mantm. Num segundo nvel, funcionando tambm como instituidora e mantenedora, compete-lhe desenvolver aquelas diretrizes e bases em princpios e normas que assegurem a eficcia de suas prprias universidades e escolas. o que, ainda h pouco, se fez quanto ao magistrio na Lei n. 4.881-A, de 6 de dezembro de 1965 [Doc. 44, p. 7]. Mas outros aspectos devem igualmente ser discipli36

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nados; e entre avulta o da estrutura universitria, sem cuja racionalizao ser praticamente intil cogitar dos demais. Da a iniciativa do Sr. ministro. Como observa Sua Excelncia, o que se pretende no impor modelo nico a instituies que diferem em propores e finalidades imediatas ao influxo de peculiaridades regionais altamente condicionadoras, e sim reunir em cada uma delas o que seja comum por critrios de organizao capazes de assegurar, de um lado, a unidade caracterstica da concepo universitria e, de outro, a plena utilizao dos recursos empregados em sua manuteno. Precisamente sobre estes dois aspectos incidem as maiores crticas lanadas Universidade Brasileira; e no sem fundadas razes, pois a falta de unidade, correndo paralela com a impreciso de objetivos, gera fatalmente a disperso dos meios, e vice-versa, respondendo ambas pela ausncia da prpria universidade como tal. Em nosso caso, alis, no se trata sequer de restaurar a universidade na universidade, como ainda h pouco reclamava para a Frana o Prof. Georges Gusdorf, j que no temos uma tradio interrompida a restabelecer porm rigorosamente de instaur-la pela integrao de partes que no chegaram a resolver-se num todo maior. [...] O ponto de partida ser o relacionamento dos estudos bsicos entre si e com os de aplicao, mediante a institucionalizao do ensino e da pesquisa em comum. Dificilmente, entretanto, podero desenvolver-se essas atividades interescolares se ficarem elas entregues iniciativa de institutos e escolas que tendero, como o demonstra a experincia, a segregar-se cada vez mais nos limites das suas especialidades. Ainda que assim no ocorra, preciso considerar que a mesma disciplina assume coloridos diversos conforme seja encarada como cincia pura ou do ponto de vista de suas aplicaes. Ora, os estudos fundamentais se faro, em grande parte, no pressuposto de sua utilizao em escolas profissionais; e as prprias unidades bsicas tero de valer-se das aplicadas, como estas entre si, no desenvolvimento dos seus respectivos programas. Nestes e em casos anlogos. Ter-se- que levar em conta, ao mesmo tempo, a perspectiva da unidade que realiza o trabalho para outra e a da que o incorpora, numa sntese que s poder ser conseguida em nvel superior ao das congregaes. A sse nvel, portanto, devero as atividades interescolares37

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ser superintendidas por rgos centrais que tenham atribuies deliberativas e sejam constitudos por representantes das vrias unidades universitrias. Todas estas ideias esto condensadas no incluso anteprojeto de lei, que se divide em trs partes. A primeira (art. 1.) fixa os princpios de unidade ensino-pesquisa e no duplicao de recursos. A segunda (art. 2.) estabelece normas para observncia daqueles princpios: (I) coexistncia de ensino e pesquisa em cada instituto, escola ou faculdade; (II) concentrao dos estudos bsicos em moldes amplos a que se ajusta qualquer das solues em curso; (III) exclusividade de cada setor profissional; (IV) institucionalizao das atividades interescolares; e (V) superviso dessas atividades no nvel da administrao superior. A terceira parte, finalmente, d outras providncias as estritamente necessrias para cumprimento das normas traadas: a) atribuies didtico-cientficas do sistema de unidades comum a toda a universidade, inclusive as de formao de professores para o ensino de segundo grau, conforme a oportuna sugesto ministerial (art 3. e pargrafo nico); b) desdobramento, fuso ou extino de unidades existentes, com relotao ou extino de cargos e remoo ou aproveitamento dos respectivos titulares, por decretos do Poder Executivo (arts. 4 e pargrafo nico 5 6., caput); c) prazos para a reorganizao das universidades, que totalizam 12 meses sem contar os perodos intermedirios e a fase de transio que fica a critrio de cada instituio (arts. 6., pargrafo nico 7., caput e 1.); d) previso, em carter facultativo, de um Regimento Geral para reunir as atividades interescolares, como consequncia e expresso do regime integrado que se inaugura (art. 7., 2. ); e) assistncia do Ministrio da Educao e Cultura s universidades que a solicitem para implantao do nvo sistema (art. 8.); f) incluso do descumprimento da nova lei entre as hipteses de interveno previstas no art. 84 da Lei de Diretrizes e Bases (art. 9); g) extenso dos princpios e normas assim estabelecidos s universidades institudas sob forma de fundaes criadas por leis federais (art. 10).38

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Como os primeiros projetos de adequao aos novos termos daquele decreto revelassem a indisposio dos interesses instalados no meio universitrio ou entendimento inadequado das diretrizes de reestruturao, seguiu-se a ele a elaborao de um anteprojeto de lei complementar ao decreto-lei anterior que redundou no Decreto-Lei n 252, de 28 de fevereiro de 1967. De sua curta justificativa, destacam-se os pargrafos seguintes, indicadores de um dos principais conflitos entre a imposio do novo e a resistncia do j estabelecido.[...] Prolongando as perspectivas do Decreto-Lei n 53, e utilizando as suas virtualidades, este documento excede os limites de uma mera regulamentao, e introduz solues que lhe completam a doutrina e a sistemtica. Para que tal objetivo fosse alcanado, evidenciou-se a necessidade de desfazer incongruncias e remover obstculos contidos em leis anteriores. Duas inovaes trazidas por este anteprojeto merecem especial destaque: a) a instituio efetiva do sistema de departamentos, como pea fundamental da nova estrutura universitria, do ponto de vista no s estrutural mas tambm funcional; b) a possibilidade de estabelecer-se mais um nvel de integrao nas atividades universitrias, segundo o critrio setorial. [...]

Como se v, a Reforma Universitria progride no sentido da superao da ctedra vitalcia como referncia de poder e organizao administrativa. O Departamento passa a ser a soluo colegiada para a hegemonia autocrtica do catedrtico e so introduzidos novos colegiados para as funes de coordenao interescolar inerentes unidade de ensino e pesquisa, plena utilizao dos recursos humanos e materiais da universidade e extenso a comunidade das atividades de ensino de pesquisa. O 1 ciclo universitrio aparece, ainda, apenas como hiptese, no 2. do Art. 8. do anteprojeto supramencionado.39

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O processo de reforma continuaria. Novo grupo de trabalho nomeado pelo presidente da Repblica, em 1968, para consolidar as mudanas j em curso e complement-las. Ao encargo do professor Valnir ficou a relatoria do reexame do setor de estrutura e funcionamento da universidade. O resultado toma forma na Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968 e no Decreto-Lei n 464 de 11 de fevereiro de 1969, entre outros dispositivos legais [v. Leis n. 5.537/68, 5.539/68 e Decreto-Lei n. 465/69] pertinentes a outros setores. Parte do que naqueles se estabelece foi antecipada pela Indicao n. 48, do Conselho Federal de Educao, aprovada em plenrio em 15/12/1967, cujo relator foi o conselheiro Valnir Chagas, publicada sob o ttulo Articulao da Escola Mdia com a Superior, na Documenta n. 79, 1967. pp. 92 e segs.; e com o ttulo Continuidade e Terminalidade do Processo de Escolarizao na Revista brasileira de estudos pedaggicos n 110, 1968. pp. 247 e segs.. Nesse trabalho antecipa-se tambm parte significativa do que viria a ser a reforma do ensino de 1 e 2 graus, em 1971. Da anlise crtica das relaes vigentes entre o ensino superior e a escolaridade que o antecede, o professor Valnir haveria de enxergar muito alm do problema dos excedentes nos exames vestibulares de ento, ou da atual obsesso com a verificao digital das respostas, a manuteno do sigilo das provas e a segurana quanto sua correta aplicao. As consideraes preliminares da indicao supracitada dizem-no bem:[...] A articulao dos graus escolares, particularmente do segundo com o terceiro grau da escada de escolarizao, talvez o problema sobre o qual mais se discute na presente conjuntura da educao brasileira. A circunstncia mesma de que assim ocorra j constitui uma evidncia de que tal articulao ainda no existe entre ns; nem existir enquanto formos levados, como temos sido at agora, a encar-la de um ponto de vista estrito que a situa em termos de passagens especiais da escola primria para a escola mdia, e desta para a superior. Trata-se, em rigor, de

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momentos artificiais que somente podem ser concebidos no quadro dessa diviso, pois a fonte de que emanam as trs grandes fases do desenvolvimento individual a funciona como simples mecanismo atravs do qual persiste o modelo de uma estrutura social em mudana e, em alguns casos, j substancialmente transformada. Afinal, no nos parece demais repetir o lugar-comum de que a educao um processo de amadurecimento que se faz num continuum, e no espasmodicamente, abrangendo em maior ou menor escala a trplice dimenso reflexiva, conativa e afetiva da personalidade. Varia no pela ausncia ou presena dsses componentes, que so constantes, mas pela sua direo e intensidade segundo a capacidade do estudante e os dados de sua experincia colhida assim na escola como no meio em geral. De certo modo, ela uma corrida (e no sem propriedade se usa a palavra curso) na qual o ideal ser que no existam limitaes externas plena expanso das potencialidades de cada um nessa competio, consigo prprio, em busca de ajustamento social e superao individual. Muitos, porm, ficam ao longo do caminho, que se vai progressivamente estreitando medida que a educao resulta, em ltima anlise, num processo dinmico de seleo dos mais capazes. Nesta perspectiva, desde o grau primrio at o superior, somente uma passagem existe, ou deveria existir, com o sentido de real mudana de campo: a passagem da escola para a vida, assinalando o instante em que o aluno, individualmente considerado, interrompe as atividades escolares por hav-las concludo em algum nvel ou por j no ter condies pessoais de nelas prosseguir. Em consequncia, a indagao famosa sobre quem deve ir para a universidade perde a sua razo de ser fora das situaes concretas; mas a faz-la, particularizando da escada de escolarizao o lano correspondente ao ensino superior, ter-se de abranger todo sse grau escolar e no, como hoje se verifica, permanecer no momento abstrato de uma transio que ou j ocorreu, funcionalmente, ou somente poder ser avaliada no processo em que ela se insere. (Chagas, 1968. In: Documenta n 79, pp. 92-93) [...] Mas h tambm [...] uma desarticulao qualitativa que tem como fulcro o atual concurso de habilitao. Este, ao ser institudo em 1911, constituiu-se principalmente um exame de sada do ensino secundrio para atender disperso do regime de preparatrios. Funcionalmente,

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isto significava uma habilitao para matrcula nas poucas faculdades existentes, porquanto nestas existiam lugares para a minoria ainda mais escassa dos que ento realizavam estudos superiores. Em 1925, introduziu-se na regulamentao do vestibular o princpio do numerus clausus, em torno do qual ele se desenvolveu at hoje, cada vez mais como um dispositivo externo para distribuio de vagas que foram progressivamente diminuindo em relao procura. a situao de hoje, objetivamente delineada em longa pesquisa promovida pela Capes, na qual ficou muito claro que o rigor dos exames aumenta na razo inversa das vagas disponveis, e vice-versa. No vemos, em consequncia, por que atribuir ao concurso de habilitao um papel que ele no pode desempenhar na forma e no contexto em que realizado: o de avaliar conhecimentos e maturidade. Anos atrs, quando o quadro era menos carregado que o de agora, o professor Rui Leme, aps acompanhar uma nova turma da Escola Politcnica de So Paulo, j conclua que a correlao entre os resultados obtidos no curso e os do vestibular era de apenas 0,4. Apesar disso, a orientao mais frequente no Brasil ainda a de organizar concursos diversos base de conhecimentos tidos como necessrios para determinadas carreiras, desde logo escolhidas pelos candidatos. Como Frei Lus de Len, que retomou as suas prelees em Salamanca, aps longa ausncia nos crceres da Inquisio, com um simples como decamos ayer, espera-se talvez que, no primeiro dia de universidade, o professor inicie as aulas de sua disciplina exatamente no ponto em que o assunto fra interrompido na escola secundria... E ante a impossibilidade de que assim ocorra, a culpa sempre lanada sobre esta ltima. Portanto: desequilbrio na relao candidatos-vagas, desarticulao dos graus de ensino e deciso antecipada sobre o curso profissional a seguir so causas que geram o vestibular pretensamente organizado por disciplinas e noes especficas, da resultando (a) a deformao dos estudos prprios da escola mdia, ainda muito cedo s vzes j no ginsio discriminados em face da opo que o aluno forado a realizar; (b) proliferao dsse dispositivo de ensaio dos exames que o cursinho, hoje transformado em curiosidade internacional aps o registro que dele se contm no livro de Bowles; (c) excesso de procura das carreiras que eventualmente gozam de maior prestgio, com desequilbrio da rde escolar de ensino superior, distribuio irregular42

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das oportunidades existentes e no atendimento das reais necessidades do pas; e (d) repetio indefinida do vestibular ou, o que talvez pior, escolha do curso por critrio diferencial referido a vagas ainda existentes. (Chagas, 1968. In: Documenta n 79, pp. 99-100). [...]

Dessas consideraes sobre a facticidade da desarticulao desdobra-se o leque de problemas educacionais que, tendo por fulcro os exames vestibulares, incidem, quer sobre a qualidade do ensino superior, quer sobre a da escolaridade precedente. O exame lcido e criativo de tal problemtica configura os pressupostos de sua resoluo que deveria realizar-se no s por meio da Reforma Universitria, mas tambm pela posterior reforma do ensino primrio e mdio:[...] O fato concreto, diante do que a fica, um nmero cada vez maior de cidados que no tm possibilidade de levar adiante os seus estudos, nem possuem habilitao para o trabalho. Resta, pois, saber qual o destino dsses que no se incluem entre os escolhidos, os quais de nenhuma forma podem simplesmente ser postos margem. Em nosso entender, a resposta ter de ser encontrada na dinmica do prprio sistema. Para tanto, o que desde logo se recomenda atribuir, desde os graus mais elementares, um cunho de progressiva terminalidade aos estudos de cada ano, de cada semestre e de cada disciplina a fim de que interrompendo normalmente a sua vida escolar, no tenha o aluno e a prpria sociedade que o educa o prejuzo da sua inutilidade. Afinal, os jovens que chegam ao fim da escola mdia constituem recursos humanos que a essa altura j se fizeram bastante custosos; e desperdi-los, como si ocorrer, implica uma atitude to desastrosa quanto a de uma empresa, certamente condenada falncia, que declarasse imprestvel a metade da matria-prima adquirida para a sua produo industrial. primeira vista, a recproca ser tambm verdadeira; e de fato o at certo ponto, pois na medida em que se ampliem as oportunidades, deve tambm crescer o sentido de continuidade dos estudos, com vistas a nveis sempre mais altos. A terminalidade , portanto, inversamente proporcional continuidade: quanto menos provvel seja esta, tanto mais intenso h de ser o teor de terminalidade que se deve imprimir ao43

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ensino, e vice-versa. Num sistema ideal em que todos obtivessem diplomas de cursos superiores, s estes em rigor seriam terminais; mas onde apenas se alcanasse o primeiro grau de escolarizao, o ensino primrio j teria de ser plenamente terminal. Acontece, todavia, que, juntamente com a macroterminalidade de cada sistema, coexiste uma microterminalidade referida s diferenas individuais dos alunos. Assim, abstraindo os casos extremos, s verificveis em teoria, toda educao deve revestir ao mesmo tempo ambas as caractersticas. Para que tal ocorra, necessrio se faz encarar a escada de escolarizao como um todo contnuo e, em consequncia, eliminar dos planos globais as divises estanques dos graus escolares. Insistimos em que o verdadeiro limite da educao no est num certo nmero de anos convencionado de fora, porm na complexidade a partir da qual determinado aluno j no tem condies de prosseguir nos estudos. Se, por exemplo, a maioria dos jovens norte-americanos do incio do sculo estudava seis ou nove anos, enquanto a quase totalidade dos de hoje permanece na escola por dez, doze e mais anos, a causa da diferena menos dos alunos que do meio em geral, o qual no proporcionava antes os estmulos e oportunidades que hoje oferece. Da no se h de inferir que tenhamos por ilegtima a terminalidade imposta pelo sistema no quadro de um projeto educacional que sociedade cabe formular. O que no nos parece aceitvel a generalizao dos limites assim fixados como intrnsecos da capacidade de aprender. Tanto isto no admissvel que, desaparecendo a limitao, tendemos a perder conscincia da passagem, ao nvel anteriormente convencionado, ante a evidncia natural da continuidade. No Brasil de hoje, por exemplo, preocupamo-nos tanto menos com o exame de admisso ao ginsio quanto mais se atenuam as fronteiras que separavam a escola primria da escola mdia. certo que a diviso persiste; mas sem a dramaticidade de outrora e com um sentido inteiramente diverso, um sentido de mtodo referido s grandes fases do desenvolvimento que a se implicam: infncia e adolescncia. Tambm com este sentido h de ser encarada a passagem da escola mdia para a superior, correspondente no plano psicolgico transio da adolescncia para a idade adulta ou, nas palavras de Whitehead, da fase do romance para a fase da preciso. Para tanto, necessrio que todo o sistema escolar se organize com a dupla caracterstica de continuidade e terminalidade, sem o que as distores se tornaro44

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inevitveis. A verdade, porm, que a esta condio fundamental ainda no se ajustam, no Brasil e em muitos outros pases, os objetivos e funes confessados dos trs graus de ensino. Entre ns, segundo a concepo mais corrente, atribui-se escola primria uma finalidade de iniciao cultural e escola superior a formao de quadros, sobrecarregando nominalmente a escola mdia com o trplice objetivo de educao geral, treinamento para o trabalho e preparao para os cursos superiores. artificial e mutiladora esta ciso do conhecimento em aspectos cultural ou geral, de um lado, e especial do outro, porquanto nem o geral se circunscreve escola primria e mdia, nem o especial deixa de existir na escola primria. Se h variaes entre tais componentes, como no podia deixar de ocorrer, a questo deve ser encarada no em termos radicais de sua presena ou ausncia na formao do currculo, e sim do sentido e intensidade que assumem em cada grau. H um geral da escola mdia que se encontra acima do amadurecimento da infncia, como h um geral da escola superior que ser intil ministrar em ginsio ou colgio. Por outro lado, enquanto o especial da escola primria no ultrapassa os primeiros ensaios de manipulao, o da superior atinge nveis de elaborao que o colocam fora de alcance dos adolescentes. medida, portanto, que se eleva e estreita a escada de escolarizao, invertem-se gradativamente as posies relativas dos componentes geral e especial na configurao do currculo; enquanto o geral predomina por todo o ciclo ginasial, nivelam-se os dois no colgio e o especial acaba por predominar nos ciclos profissionais dos cursos superiores. Isto nada mais , alis, que a traduo pedaggica das comprovaes mais atuais da psicologia. At a primeira adolescncia, correspondente ao ginsio, existe uma quase exclusividade da inteligncia geral (fator G), com raras aptides especiais perfeitamente caracterizadas, enquanto na segunda adolescncia ocorre a ecloso dos fatres especficos. Quer isto dizer que ser to absurdo um ginsio profissional como um colgio exclusivamente acadmico: no primeiro caso, por pretender cultivar o que ainda no existe e, no segundo, por deixar de desenvolver aptides que tendero a estiolarse pelo desuso. (Chagas, 1968. In: Documenta n 79, pp. 100-102). [...]

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s transformaes na escolaridade anterior no sentido da articulao dos graus haveria que instituir um 1 ciclo universitrio que lhe correspondesse efetivamente. Segundo o professor Valnir:[...] No h, pois, como admitir possa haver universidade sem um primeiro ciclo to indiferenciado em sua estrutura quo rico em suas funes pedaggicas, mltiplas numa instituio que se organize para de fato atender s novas realidades. Uma delas consistir na reunificao dos estudos, antes diversificados no colgio pluricurricular e novamente a diversificar-se nos ciclos profissionais universitrios; outra ser a formao cultural o incio daquela Educao geral superior mencionada linhas atrs que de esperar prossiga no perodo seguinte; uma terceira, intimamente relacionada com as anteriores, compreender os estudos bsicos para um ou mais ciclos profissionais; uma quarta funo convergir para os trabalhos de orientao dos alunos com vistas escolha da carreira ou mesmo, quando fr o caso, a uma reorientao para o trabalho; uma quinta, de carter excepcional, constituir-se- pela recuperao dos estudantes reconhecidamente dotados que, na linguagem do Parecer n 58/62, apresentem falhas corrigveis a curto prazo; e de todas, por fim, resultar uma sexta funo-sntese, que ser a seleo. (Chagas, 1968. In: Documenta n 79, p. 106). [...]

Difcil dizer se um entendimento to abrangente do problema da articulao vertical dos graus de ensino decorre da compreenso do professor Valnir da universidade como o tipo natural de estrutura para o ensino superior ou a requer necessariamente. Mas o fato que essa compreenso consistente com as demais indicaes pertinentes estrutura do ensino superior, constantes do captulo III, do relatrio do grupo de trabalho: A unificao crescente dos exames vestibulares; A flexibilizao dos cursos e currculos, desde a durao dos cursos e sua possvel diversificao, matrcula por disciplinas e introduo das disciplinas opcionais, que permitiriam aos estudantes modular o andamento dos estudos s prprias condies psico46

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lgicas e circunstanciais, bem como instituio exercer melhor sua trplice funo e atender mais s demandas sociais, inclusive do mercado de trabalho; A execuo integral dos programas didticos e a oferta de disciplinas no perodo de vero; O reconhecimento da indissolubilidade das tarefas de ensino e pesquisa, expresso na ideia da unidade da carreira docente e do princpio da dedicao exclusiva que deve ser a meta de toda e qualquer universidade; A expanso da ps-graduao universitria, no sentido de sua progressiva generalizao institucional. Em conferncia sobre as Funes da universidade na implantao do ensino de 1 e 2 graus, pronunciada no V Seminrio de Assuntos Universitrios, realizado em Braslia por iniciativa do CFE, a 11 e 12 de maio de 1972, o professor Valnir nos fornece uma sntese de sua concepo da universidade como instituio eminentemente educativa, componente intrnseca do sistema educacional:[...] Como quer que seja, a universidade tambm educao e, como tal, difere dos nveis precedentes apenas em graus. Ao mesmo tempo, ela cultiva a educao como uma de suas tarefas prioritrias. Tomando uma classificao da psicologia, diramos que h uma posio subjetiva da universidade a universidade como escola ao lado de uma posio objetiva em que a escola, incluindo a prpria universidade, se torna ela prpria matria de estudo. As duas se encontram no que chamaremos a reprodutividade do organismo educacional, oferecendo os mecanismos para assim dizer endgenos de sua preservao e do seu desenvolvimento. Neste ponto avulta o papel da universidade. Dependendo umbilicalmente dos graus que a precedem tanto quantos estes dela dependem nos conhecimentos e atitudes que ensinem, nas tcnicas que empreguem, nos seus professores e nos seus diretores, supervisores, planejadores, orientadores e demais especialistas sobre eles deve a universidade debruar-se para estud-los, tanto quanto a si prpria, e proporcionar-lhes os instrumentos de que necessitam para crescer e aper47

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feioar-se constantemente. Ora, verdadeira como viso permanente de um sistema integrado e dinmico, esta formulao mais o no momento em que se completa no plano legislativo, o processo desencadeado com a Reforma Universitria, ao decretar-se agora a atualizao do ensino de 1 e 2 graus. (Chagas, 1972. In: Documenta n 155/73, pp. 47-48). [...]

Consideradas as proposies de Valnir Chagas, em parte resultantes de trabalho em grupo e todas aprovadas pelo Conselho Federal de Educao, pode-se perguntar se o poder discricionrio ento vigente deixou-se seduzir pela competncia desses educadores, mas acolheu-a a convenincia de seus prprios propsitos? Quem haveria usado quem? A ditadura, que se camuflou ostentando uma legislao educacional atual e inteligente? Ou o professor Valnir e os colegas conselheiros, que disseram a que vieram, apesar do ambiente poltico autoritrio e repressivo? H tambm que discernir entre o que foi entregue ao executivo e o que se manifesta, ao longo do perodo, como expresso hegemnica do Poder Executivo ento exacerbado. Teria sido melhor que as indicaes, pareceres e relatrios no fossem to bem construdos e pertinentes? Das propostas que se tornaram letra de Lei, e cuja substncia permanece ainda hoje, por usual ou sob novas formas de expresso legislativa, poder-se-ia dizer que ficaram, depois de restaurada a democracia poltica, porque so estrutural e funcionalmente corretas e pertinentes? Do que foi descartado, no havia o que merecesse continuar? Haveria que articular efetivamente a escolaridade anterior e os estudos superiores? Os exames vestibulares tm consequncias deletrias no ensino de 2 grau? A dualidade estrutural do ensino mdio permanece um bice histrico no sistema educacional a demandar superao? O 1 ciclo universitrio, com sua trplice funo prevista: a) recuperao de insuficincias evidenciadas, pelo concurso vestibular, na formao dos alunos; b) orientao para a esco48

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lha da carreira; c) realizao de estudos bsicos para ciclos ulteriores [cf. Art. 5, do Decreto-Lei n 464 de 11/02/1969], no teria valor educativo suficiente para justificar-se e manter-se? A durao e a uniformidade dos cursos superiores de graduao no deveriam flexibilizar-se ento, como hoje est admitido e apenas recentemente se comea a praticar? Um ensino autenticamente universitrio seria possvel sem uma escolaridade pregressa adequada s respectivas faixas etrias, simultaneamente eficiente e eficaz? Uma apreciao isenta das contribuies de Valnir Chagas e do CFE daquele tempo educao brasileira teria que responder conscienciosamente a estas indagaes, entre outras. Em qualquer hiptese, o que estava ao alcance daquela equipe de educadores era a construo de um arcabouo conceitual que poderia servir atualizao e expanso articulada de nossas instituies educacionais. Essa condio contava com o poder da palavra nada desprezvel mas contrapunha-se facticidade do real, com todo peso de sua historicidade e circunstncia poltica. O Poder Executivo, entretanto, estava em outras mos. Das reformas educacionais empreendidas ao longo do regime autoritrio, aquela em que os governantes de ento realmente se empenharam e para a qual foram despendidos novos, continuados e vultosos esforos e recursos foi a universitria. Porque correspondia ao perfil hierrquico da sociedade brasileira de classes e servia s pretenses de atualizao tecnolgica, crescimento econmico e hegemonia poltica continental que embalavam os sonhos da burguesia nacional e de seus prepostos militares, bem como respondia s demandas da classe mdia por canais de ascenso social. Ainda assim, o encaminhamento dessa reforma poderia assumir formas muito diversas daquela que tomou. O relatrio Meira Mattos o evidencia sobejamente.

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