Valor135-Política externa e relevância

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    Poltica externa e relevncia

    Fbio Wanderley Reis

    Falei h pouco, nesta coluna, sobre o carter problemtico das

    relaes entre relevncia (social, poltica) e qualidade analtica no trabalho

    no campo da cincia poltica. Em contraste com certa posio corrente

    entre ns, que v essas relaes em termos de acomodao e barganha e

    aceita que a exigncia de qualidade seja comprometida em nome da

    relevncia dos problemas tratados, defendi a posio de que a qualidade

    analtica tem total precedncia sobre consideraes de relevncia, sendo

    mesmo condio para que o trabalho possa pretender reclamar relevncia

    prtica no equacionamento dos problemas, em vez de expor-se a

    simplesmente aumentar a confuso a respeito deles.

    Uma complicao da questo geral trazida pela salincia que os

    temas e problemas supostamente adquirem aos olhos do pblico ou, numa

    democracia, do eleitorado. Presume-se que problemas de importncia

    prtica so problemas que despertam o interesse dos cidados e vo ser

    objeto de debate entre eles e, na perspectiva que defendo, no caberia

    esperar que os cientistas polticos (ou sociais, em geral) no faam mais

    que juntar-se como palpiteiros aos palpiteiros leigos (que, como cidados,

    tm todo o direito de palpitar, naturalmente). Mas a confuso aumenta

    quando ponderamos dois fatos: de um lado, o de que h boas razes para

    vincular a qualidade do trabalho no estudo da poltica tambm apropriada

    sensibilidade diante das questes que preocupam aos cidados (contra a

    velha ideia de uma academia transformada em torre de marfim sem

    conexo com o mundo real); de outro lado, o de que os eleitores ou

    cidados, como fartamente evidenciado pela prpria sociologia poltica,

    mostram graus muito diversos de informao e interesse com respeito aos

    assuntos polticos e de disposio a envolver-se com eles e participar

    politicamente, disposio esta que tende a estar fortemente relacionada com

    a estratificao social, diminuindo medida que descemos nos nveis

    socioeconmicos. E este segundo aspecto se desdobra em algo mais grave:

    a hierarquia social continua a condicionar as chances de que as opinies

    dos cidados tenham influncia nas decises polticas mesmo quando taisopinies chegam a existir nos nveis menos favorecidos, ou seja, quando h

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    a envolvimento e participao na pobreza, como formulou R. Weissberg

    (citado em L. M. Bartels, Voice, and Then What?, 2009), adquirir voz

    ou gritar mais alto tende a ser intil.

    Com a sbita elevao do status do Brasil no cenrio internacional, a

    esfera da poltica externa vem adquirindo indita relevncia no pas, j

    tendo mesmo chegado a constituir-se, como registrava Maria Cristina

    Fernandes em coluna de dias atrs no jornal Valor Econmico, em tema da

    campanha para a eleio presidencial de 2010. Pena que seja esta uma

    esfera em que as confuses em que se embolam a relevncia, a qualidade

    das anlises pertinentes e questes de democracia surgem de modo

    especial.

    Para comear, trata-se de rea em que, no obstante a tradio do

    Itamaraty na diplomacia, no chegamos a desenvolver tradio de pesquisa

    e reflexo acadmica mais rigorosa e profcua (talvez merea meno, a

    propsito, a frustrante experincia pessoal de participar como convidado h

    poucos anos, em prestigiado centro que reunia nomes de destaque num

    grupo de trabalho sobre o assunto, de repetidas reunies em que no se ia

    alm da leitura inteligente dos jornais). Por outra parte, se estudos feitos

    nos Estados Unidos mostram a poltica externa como rea em que a viso

    governamental das questes particularmente distante das opinies dos

    cidados comuns, com certeza no h razo para esperar que os cidados

    comuns brasileiros estejam atentos ao que a se passa e possam trazer real

    estofo democrtico s decises.

    Seria descabido negar que a projeo que experimentamos, cujo fator

    decisivo se acha na favorvel dinmica econmica e poltica recente, se

    articula com polticas bem concebidas e executadas no mbito do

    Itamaraty. Mas creio ser evidente que nos encontramos deriva entre,

    talvez, um vago orgulho nacionalista de parcelas da opinio popular, certo

    nacionalismo mais instrumental e economicamente orientado que faz (j

    h algum tempo) do presidente da Repblica um ativo caixeiro viajante e,

    finalmente, iniciativas de inspirao tecnocrtica ligadas ideia de

    segurana e afirmao do pas como potncia e de protagonismo nos

    planos regional e mundial (como a reivindicao do assento no Conselho

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    de Segurana da ONU) cuja traduo em termos de um interesse nacional

    democraticamente definido no tem por que ser vista como pronta ou fcil.

    De todo modo, curioso, a propsito do incidente em que Lula,

    diante de Angela Merkel e do tema do Ir, reclamava a desnuclearizao de

    potncias atmicas como parte do esforo de impedir o risco de

    proliferao dos armamentos nucleares, ver um Alexandre Garcia a

    informar-nos, na TV Globo, de que isso no corresponde s aspiraes

    nacionais. Uma viso do panorama internacional que se desvincule dos

    supostos em que ele aparece como o mero terreno baldio dos egosmos

    nacionais mais ou menos poderosos e que encare o desafio de como reunir

    o realismo das consideraes de poder ideia de efetiva construo

    institucional e apaziguadora em escala planetria no pode deixar de lidar

    com questes como a levantada por Lula. E, enquanto no aprendemos a

    pensar as relaes internacionais em termos maiores, poder ter algum

    impacto com a manifestao presidencial sobre questes como essa, ou

    com decises como as relativas reunio de Copenhague, um aspecto

    positivo da nova projeo do pas.

    Valor Econmico, 7/12/2009

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