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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 VAMOS PINTAR A SETE? CONSIDERAÇÕES SOBRE RUAS DE LAZER E DE PEDESTRES EM VITÓRIA (ES) NA DÉCADA DE 1970 1 EIXO TEMÁTICO: IDEÁRIOS, URBANISMOS E PROCESSOS DE INSTITUCIONALIZAÇÃO CAMILA BENEZATH RODRIGUES FERRAZ / PPGAU-UFBA RESUMO O presente trabalho apresenta duas ações promovidas entre 1976 e 1977 pelos governos estadual e municipal em Vitória, Espírito Santo. O ponto de partida é um convite direcionado às crianças para realização de atividades lúdicas e esportivas na Rua Sete de Setembro aos domingos. A ação, denominado "Vamos pintar a Sete", deu início à realização de ruas de lazer em Vitória a partir de 1976. A segunda ação envolve a da transformação de um trecho da Rua Sete de Setembro em rua de pedestres. Inicialmente em caráter experimental, o trecho foi transformado definitivamente em calçadão em 1977. Para além de estarem situadas na Rua Sete, as ações escolhidas inserem-se em uma tendência de "humanização das cidades" relacionada à crítica contra o excesso de automóveis nas cidades e contra o esvaziando dos espaço públicos atribuídos à abstração e rigidez da cidade funcional modernista. Neste sentido, procuramos entender como estas possíveis inspirações teóricas se inserem nas cidades, durante da Ditadura Militar (1964-1985). PALAVRAS-CHAVE: Rua de pedestres. Rua de lazer. Humanização de cidades. 1 O artigo apresenta parte da pesquisa de doutorado em andamento, realizada sob orientação de Xico Costa junto ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU- UFBA) e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO

A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

VAMOS PINTAR A SETE? CONSIDERAÇÕES SOBRE

RUAS DE LAZER E DE PEDESTRES EM VITÓRIA (ES)

NA DÉCADA DE 19701

EIXO TEMÁTICO: IDEÁRIOS, URBANISMOS E PROCESSOS DE

INSTITUCIONALIZAÇÃO

CAMILA BENEZATH RODRIGUES FERRAZ / PPGAU-UFBA

RESUMO

O presente trabalho apresenta duas ações promovidas entre 1976 e 1977 pelos governos estadual e

municipal em Vitória, Espírito Santo. O ponto de partida é um convite direcionado às crianças para

realização de atividades lúdicas e esportivas na Rua Sete de Setembro aos domingos. A ação,

denominado "Vamos pintar a Sete", deu início à realização de ruas de lazer em Vitória a partir de

1976. A segunda ação envolve a da transformação de um trecho da Rua Sete de Setembro em rua

de pedestres. Inicialmente em caráter experimental, o trecho foi transformado definitivamente em

calçadão em 1977. Para além de estarem situadas na Rua Sete, as ações escolhidas inserem-se em

uma tendência de "humanização das cidades" relacionada à crítica contra o excesso de automóveis

nas cidades e contra o esvaziando dos espaço públicos atribuídos à abstração e rigidez da cidade

funcional modernista. Neste sentido, procuramos entender como estas possíveis inspirações teóricas

se inserem nas cidades, durante da Ditadura Militar (1964-1985).

PALAVRAS-CHAVE: Rua de pedestres. Rua de lazer. Humanização de cidades.

1 O artigo apresenta parte da pesquisa de doutorado em andamento, realizada sob orientação de Xico Costa

junto ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU-UFBA) e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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LET'S PAINT THE 7TH? CONSIDERATIONS ON THE

PLAY AND PEDESTRIANS STREETS IN VITÓRIA (ES),

AT THE 1970'S

ABSTRACT

This paper presents two actions promoted between 1976 and 1977 by the state and municipal

governments in Vitória, Espírito Santo. The starting point is an invitation addressed to the children to

carry out recreational and sports activities on September 7th Street on Sundays. The action, called

"Let's paint the Sete", started the construction of play streets in Vitoria from 1976. The name of the

action is a play on words with the idiomatic expression "let's paint the town red". The second action

involves the transformation of a stretch from the September 7th Street into a pedestrian street. First as

an experimental basis, the stretch was definitively transformed into a thoroughfare in 1977. Besides

being located on the September 7th Street, the chosen actions are part of a tendency to "humanize

cities" as a criticism of the excess of cars in cities and emptying of public space due to the abstraction

and rigidity of the modernist functional city. In this sense, we seek to understand how these possible

theoretical inspirations are inserted in the cities during the Military Dictatorship (1964-1985).

KEY-WORDS: Pedestrians Street. Play Street. Humanizations of cities.

¿VAMOS PINTAR A SIETE? CONSIDERACIONES SOBRE

CALLES DE OCIO Y DE PEATONES EN VITÓRIA (ES),

EN LA DÉCADA DE 1970

RESUMEN

El trabajo presenta dos acciones promovidas entre 1976 y 1977 por los gobiernos estadual y

municipal en Vitória, Espírito Santo. El punto de partida es una invitación dirigida a los niños para

realizar actividades lúdicas y deportivas en la Calle Siete de Septiembre a los domingos. La acción,

denominada "Vamos a pintar a Siete", dio inicio a la realización de calles de ocio en Vitória a partir de

1976. La segunda acción involucra la transformación de un tramo de la Calle Siete de Septiembre en

una calle peatonal. En su principio experimental, el tramo fue transformado definitivamente en paseo

peatonal en 1977. Además de estar situadas en la Calle Siete de Septiembre, las acciones escogidas

se inserta en una tendencia de "humanización de las ciudades", en cuanto crítica al exceso de

automóviles en las ciudades y vaciando de los espacios públicos como consecuencia de la

abstracción y rigidez de la ciudad funcional modernista. Se trata, por tanto, de entender cómo estas

posibles inspiraciones teóricas se insertan en las ciudades, durante la dictadura militar (1964-1985).

PALABRAS CLAVE: Calle peatonal. Calle de Ocio. Humanización de las ciudades.

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INTRODUÇÃO

A Rua Sete de Setembro está localizada no centro de Vitória, Espírito Santo (Figura 1). A partir da

década de 1950 passou a ter grande importância comercial para a cidade de Vitória, como indicam os

edifícios de uso misto com tipologia de galerias comerciais no térreo construídos a partir de então,

tais como os edifícios Valverde e Joanne D'Arc. O Edifício Antares, construído na década de 1970,

também possui esta tipologia, com o diferencial de ser uma das primeiras edificações com escada

rolante na cidade, o que se tornou atração local.

Figura 1 - Mapa de Localização

Fonte: Elaboração própria.

Nesta rua também estava localizada a redação do jornal O Diário, que circulou entre os anos 1955 e

1980. O jornal tinha como objetivo ser um alternativa aos dois jornais locais de maior circulação na

cidade: A Gazeta e A Tribuna. Visto como um jornal cuja equipe era composta por jovens

simpatizantes da esquerda e participantes de movimentos estudantis, o controle e a intervenção

externa sobre jornal O Diário eram constantes, especialmente durante a Ditadura Militar (1964-1985).

Neste período a censura aos meios de comunicação era latente e se manifestava pela autocensura

ou pela censura prévia, ou seja, pelo medo de publicar matérias que pudessem causar

descontentamento dos militares ou pela presença de um censor responsável por verificar

presencialmente o material a ser publicado, que não deveria estar em desacordo com os interesses

do regime militar (MAZZEI, 2011). Apesar disto, a irreverência dos jornalistas de O Diário conseguia

transgredir e alfinetar alguns os padrões impostos pelos militares e também a sociedade da época.

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Muitos dos jornalistas deste e de outros jornais da cidade freqüentavam o Britz Bar, localizado nas

proximidades da Rua Sete. Além deles, o bar era o ponto de encontro de jovens, profissionais

liberais, intelectuais,"pessoal mais renitente, que faz a vida noturna da cidade" (ROTEIRO, 1977,

p.11). Milson Henriques também aponta a presença de policiais federais disfarçados (HENRIQUES,

1995), o que indica que a renitência apontada na publicação ia além da questão do horário e poderia

ser interpretada também como uma oposição à Ditadura Militar.

Ao final da década de 1970, o Brasil vivia uma lenta e gradual distensão política, marcada pela

pressão contra a Ditadura Militar em diferentes setores da sociedade. Ocorre que a abertura

anunciada por general Ernesto Geisel (1974-1979) provocou o recrudescimento da linha dura

formada pelos segmentos militares contrários ao abrandamento do regime. Assim, a tensão política

obrigou uma estratégia dupla "de um lado, combatia a linha dura, mas de outro, oferecia aos que não

desejavam a abertura do regime ações no sentido de manter a 'revolução' e o chamado 'regime

revolucionário" (RESENDE, 2005, p.56). Ou seja, as bases do regime militar ainda não poderiam ser

abertamente contestadas. Entre as ações desta política, estavam a censura aos meios de

comunicação e o financiamento de conteúdo publicitário para divulgação de ações que pudessem

manter o partido Aliança Renovadora Nacional (ARENA) no poder. Após a extinção dos partidos

políticos através do Ato Institucional nº2 (AI-2) de 19652 e a determinação para eleições indiretas para

governadores e prefeitos biônicos, através do Ato Institucional nº3 (AI-3) de 1966, os governadores

passaram a ser escolhidos pela Assembléia Legislativa Estaduais e a eles cabia a administração dos

interesses estaduais, subordinados pelas orientações decidias em âmbito federal (CID, 2013), além

da indicação direta dos prefeitos das capitais.

Além da tensão política, a tensão econômica também se fez presente ameaçando o "Milagre

Econômico", forjado nos primeiros anos da Ditadura Militar. A crise mundial do petróleo, que provocou

sucessivos aumentos no preço da gasolina a partir de 1973, forçou o Governo Federal a lançar

campanhas nacionais para redução do uso de combustível e incentivo a realização de deslocamentos

a pé pela cidade. Portanto, se por um lado, a Ditadura Militar procurou esvaziar os espaços públicos

em uma tentativa silenciar o debate político sobre alternativas políticas, sociais e econômicas. Por

outro, fazia-se necessário "descontrair o povo, ensinando-o novamente a sorrir" (VITÓRIA, 1975,

p.70).

Considerando o contexto rapidamente apresentado, o presente trabalho apresenta duas ações

promovidas em 1976 e 1977, durante a gestão de governador e prefeito biônicos, respectivamente

Élcio Álvares e Setembrino Pelissari, ambos ligados ao ARENA. Nosso ponto de partida é um convite

direcionado às crianças para realização de atividades lúdicas e esportivas aos domingos na Rua Sete

de Setembro. A ação, denominado "Vamos pintar a Sete", deu início à realização de ruas de lazer em

Vitória a partir de 1976. A segunda ação se refere à pedestrianização de um trecho da Rua Sete.

Inicialmente em caráter experimental, o trecho entre as praças Costa Pereira e Ubaldo Ramalhete

Maia foi transformado definitivamente em calçadão em 1977.

2 Foram mantidos apenas o partido de sustentação política da Ditadura Militar, a Aliança Renovadora Nacional

(ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição moderada que representava uma aparente democracia ao regime.

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Procuramos entender quais foram as possíveis inspirações teóricas e práticas destas ações e como

elas se inserem na cidade. Para tanto foram realizadas pesquisas no Arquivo Municipal de Vitória, no

Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, na Biblioteca Pública do Estado do Espírito Santo. No

Arquivo Municipal foram consultados documentos referentes à gestão dos Prefeitos de Chrisógono

Teixeira da Cruz (1971-1975) e Setembrino Pelissari (1975-1978). No Arquivo Público do Estado do

Espírito Santo foram consultados documentos relacionados à Fundação Cultural do Espírito Santo.

Na Biblioteca Pública do Estado do Espírito Santo, por sua vez, foram consultadas as edições do

jornal A Gazeta entre os anos de 1973 e 19773. Além da pesquisa documental, foram realizadas

diversas entrevistas e consideradas publicações no grupo do Facebook "Memória da rua Sete -

Centro"4.

RUA SETE DE LAZER

O evento "Vamos Pintar a Sete" foi realizado pela primeira vez em 11 de julho de 1976, como

atividade do Programa de Desenvolvimento da Criatividade Infantil promovido pela Fundação Cultural

do Espírito Santo (FCES). A Fundação Cultural vinculava-se à Secretaria de Estado da Cultura e Bem

Estar Social, possuía relativa autonomia administrativa e financeira e tinha como objetivo planejar e

executar a política cultural do Governo do Espírito Santo5. O Programa de Desenvolvimento da

Criatividade Infantil da FCES buscava despertar o interesse de crianças para atividades artísticas ao

mesmo tempo em que pretendia estimular a ação em grupo. Para tanto, o evento "Vamos Pintar a

Sete" contava com apresentações de bandas musicais, teatro e dança; distribuição de balas, pipocas,

livros e materiais de pintura. As atividades aconteciam aos domingos das 15 às 18 horas na Rua Sete

de Setembro e na Praça Ubaldo Ramalhete Maia, recém-construída.

Como maneira de viabilizar sua realização, a Fundação Cultural buscava apoio financeiro em

diversas instituições e empresas, tais como a Companhia de Melhoramentos e Desenvolvimento

Urbano S.A. (COMDUSA), Chocolates Garoto, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),

Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o jornal A Tribuna e Escola de Aprendizes do Espírito Santo

(EAMES). Por exemplo, a Chocolates Garotos colaborou com 98kg de balas e Cr$5.000,00 mensais

entre os março e junho de 1977, enquanto a UFES apoiava com a participação de professores e

alunos do Centro de Artes e do Centro de Educação Física e Desportos para instrução das atividades

artísticas e esportivas do evento.

Quando o "Vamos Pintar a Sete" começou a ser realizado em julho de 1976, a Rua Sete de Setembro

e um trecho da Rua Duque de Caxias já estavam interditadas para veículos e destinadas à circulação

de pedestres.

3 Não há nos arquivos consultados exemplares do jornal O Diário para os anos pesquisados.

4 Publicações do grupo disponíveis em: <https://www.facebook.com/groups/1485060755072849/>. Acesso em 01

fev. 2018. 5 A Fundação Cultural do Espírito Santo foi criada pela Lei nº. 2307, de 17 de novembro de 1967 e instituída pela

Lei nº. 2.468, de 24 de novembro de 1969. Através do Decreto nº. 1.469, de 28 de outubro de 1980, teve suas atividades incorporadas ao recém-criado Departamento Estadual de Cultura (DEC), vinculado à Secretaria de Estado de Educação.

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Em ambas o movimento de mães passeando com os filhos e crianças brincando é constante. As poucas praças existentes também sofrem grande afluência da gurizada e a falta de mais áreas livres leva adultos e crianças disputarem espaços com os carros em vários pontos da Capital (DETRAN, 1976, p.06).

Além destas, estavam sendo elaborados estudos pelo DETRAN-ES em parceria com a Prefeitura de

Vitória para que outras ruas fossem interditadas aos domingos. Tão logo a notícia foi divulgada, o

jornal A Gazeta publicou o texto "Os perigos do lazer", o qual propõe a proibição de práticas

esportivas consideradas violentas ou potencialmente prejudiciais aos moradores das ruas a serem

transformadas em ruas de lazer.

As peladas já nascem mortas. As raquetas e demais adereços da prática de jogos mais ou menos

regulamentares devem sofrer o crivo da autoridade, para aquilatar da possibilidade ou não de sua utilização nesses novos locais. Skates e carros de rodas de bilha também ficam na dependência do sinal verde [...] a autoridade precisa ficar atenta e, mais do que cortar o mal pela raiz, impedir que ele se inaugure juntamente com as áreas de fins tão meritórios e salutares (OS PERIGOS, 1976, p.04, grifos no original).

A preocupação exposta no texto reverberou na direção do DETRAN-ES e no mês seguinte Mário

Natali, então diretor do órgão, afirma que antes de implantar outras ruas de lazer em Vitória será

preciso "conhecer o comportamento do público em relação à primeira" (RUA 7, 1976, p. 07). Todavia

esclarece que a restrição a certos esportes era de competência da Secretaria de Segurança Pública e

não do órgão do trânsito.

Por outro lado, a matéria de capa do Caderno Dois do jornal A Gazeta publicada em 09 julho de 1976

parece rebater ao controle defendido e expõe o desejo de uma mãe para "deixar que a criança ela

mesma descubra o que fazer. Acho que nesse período [o de férias escolares], pelo menos, as mães

deveriam deixar as crianças viveram um pouco mais a própria infância, sem a interferência do adulto"

(PELLERANO, 1976, p.01). Na sequência, o evento " Vamos Pintar a Sete" é divulgado como "a

coisa mais importante que vai acontecer nas férias".

A expectativa para a realização do evento era grande e sua divulgação foi constante antes e depois,

tanto em colunas sociais, como encartes culturais e na seção de Política/Administração do jornal

(Figuras 2 e 3). Segundo as publicações, o evento de estréia contou com a participação de

aproximadamente 500 crianças de Vitória e do interior, mesmo com o tempo chuvoso. O governador

Élcio Alves também marcou presença e teria comentado eufórico "Ufa! conseguimos livrar nossas

crianças da televisão aos domingos!" (O EXERCÍCIO, 1976, p.1).

Em 01 de agosto de 1976, a ação aconteceu pela primeira vez em outra área da cidade, apenas em

função de obras realizadas na Rua Sete de Setembro pela Telecomunicações do Espírito Santo

(Telest). Em 1977, a ação foi programada propositalmente em outros bairros da cidade e também em

outras cidades do Estado, o que resultou na alteração do nome alterado para "Vamos pintar o Sete".

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Figura 2 - Anúncio de divulgação do projeto "Vamos pintar a Sete", publicado na seção Política/Administração no jornal A Gazeta em 10 de julho de 1976.

Fonte: Acervo da Biblioteca Pública do Estado do Espírito Santo.

Figura 3 - Capas do Caderno Dois e do encarte infantil A Gazetinha, integrantes do jornal A Gazeta e publicadas em 13 e 17 de julho de 1976, respectivamente.

Fonte: Acervo da Biblioteca Pública do Estado do Espírito Santo.

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O "Vamos Pintar a Sete" parece ter sido inspirado na ação "Pintura Infantil na Rua XV", promovida

pela Prefeitura de Curitiba logo após a inauguração da rua de pedestres na Rua XV de Novembro em

1972. Na ação, uma atividade regular aos sábados, era estendido uma faixa de papel e distribuídos

tintas e pincéis para que crianças pudessem pintar. Segundo Cristiane Silveira, sua realização teria

sido uma estratégia para ocupação da nova rua de pedestres e inibição de manifestações contrária à

proibição de veículos no local. Desta forma, as crianças

foram colocadas na condição de “linha de frente” pelo evidente apelo emocional que produziam. Mas a ação de motivação e caráter duvidosos não se encerra aí: para garantir o sucesso da contrainvestida seria preciso garantir um número razoável de crianças na rua, razão pela qual foram conduzidos à Rua XV mais de 150 estudantes da rede pública de ensino, acompanhados de professores, aos quais se somaram crianças que eventualmente visitavam a nova rua naquele momento, acompanhadas por seus responsáveis (SILVEIRA, 2016, p.128).

Em 1973, a ação passou a integrar o "Programa de Desenvolvimento da Criatividade Infantil" da

recém-criada Fundação Cultural de Curitiba (FCC). Nota-se que o mesmo nome foi escolhido pela

FCES para o programa que incluiria a ação "Vamos Pintar a Sete".

O projeto "Ruas de Lazer" realizado em São Paulo a partir de fevereiro de 1976 também pode ser

considerado uma segunda inspiração. Este projeto consistia no fechamento de ruas aos domingos e

feriados para serem "invadidas por crianças com carrinhos de rolimã, skates, bicicletas, bolas e uma

disposição de brincar há muito tempo contida pelas horas passadas em frente da televisão, ou

simplesmente ocupadas dentro de casa" (RUAS, 1976, p. 15). Para implantação destas ruas de lazer

era necessário uma estrutura mínima - cavaletes de madeira, rede de vôlei e bolas - e apoio dado por

associações de moradores, comunidades paroquiais ou centro comunitários para organização das

atividades.

Nos três casos - Curitiba, São Paulo e Vitória - o investimento para realização das ruas de lazer era

diminuto se comparado ao recurso necessário para construção de centros educacionais e esportivos.

Isto pode ser observado na descrição dada por Mário Natali para implantação das ruas de lazer em

Vitória:

Primeiro a gente metia o gelo baiano, isolava a pista, fechava aquilo e colocava algumas jardineiras e nesses locais aí as pessoas faziam muitas vezes lazer, crianças, as próprias escolas de vez em quanto faziam encontro das crianças aqui, era uma festa danada

6

A partir de 1977, as ruas de lazer foram associadas nacionalmente à campanha Esporte para Todos

(EPT). O EPT foi realizado entre 1977 e 1985 pelo Departamento de Educação Física e Desporto do

Ministério da Educação e Cultura (DED/MEC) em parceria com o Movimento Brasileiro de

Alfabetização (MOBRAL). Notam-se semelhanças entre a Campanha EPT e o "Vamos Pintar a Sete",

embora o início desta seja anterior à promoção da campanha EPT.

O primeiro material didático do EPT, "Documento Básico da Campanha Esporte Para Todos", foi

elaborado em 1977 e distribuído gratuitamente nas redes municipais e estaduais de ensino do país. O

documento recomendava ao educador físico priorizar jogos recreativos e esportes com regras

simplificadas para maior adesão. Além disso, o documento incluía um Decálogo, um conjunto de dez

6 Entrevista concedida à autora em 19 de fevereiro de 2018.

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"ideias-força" que deveriam orientar a realização das atividades (PAZIN, 2014). Entre as ideias-força

destacamos:

1. Lazer: Orientar o tempo livre para a prática esportiva com prazer e alegria de modo voluntário e sem prejudicar as demais possibilidades educacionais e culturais.

[...]

3. Desenvolvimento Comunitário: Aperfeiçoar a capacidades de organização e mobilização das comunidades para o trabalho em conjunto, em mutirão e dentro do necessário sentimento de vizinhança, de bairro, de região e de município.

4. Integração Social: Estimular a congregação e a solidariedade popular, dando ênfase à unidade familiar, as relações pais e filhos, à participação feminina e à valorização da criança e do idoso.

5. Civismo: Reforçar o sentimento de povo, de nacionalidade e de integração nacional.

6. Humanização das Cidades: Criar meios de práticas de esporte recreativos com participação de grande número de pessoas, para a conscientização geral de áreas livres nos grandes centros urbanos. (COSTA, 1977 apud PAZZIN, 2014, p.200)

Tais ideias-força se aproximam dos objetivos Programa da FCES, do qual o evento "Vamos Pintar a

Sete" fez parte. O esboço do Programa faz menção à coletividade, à ação em grupo e à liberdade.

Este sistema, além do próprio interêsse despertado na criança para a criação coletiva, serve igualmente para desenvolver toda uma tendência que, por falta de oportunidade, manteve-se então amorfa, estática. Ao sentir-se unida a companheiros num mesmo empreendimento, dando vasão a certos intuitos instintivos, a criança liberta-se de uma série de complexos de desejos criativos reprimidos, sentindo-se útil e prestigiada

7.

Assim, apesar de se apoiar em estratégicas pedagógicas não-tradicionais e de incentivar o uso da

rua, os exemplos apresentados buscam a promoção de atividades supervisionadas, em um combate

ao uso espontâneo das ruas, já que era preciso orientar o lazer voluntário [?] e estabelecer limites

para os "perigos" de certas práticas recreativas.

RUA SETE DE PEDESTRES

Antes da realização do evento "Vamos pintar a Sete", a Rua Sete já era ocupada por crianças e

"desocupados" que pintavam o sete8. Em abril de 1976, o trecho da Rua Sete compreendido entre as

praças Costa Pereira e Ubaldo Ramalhete encontrava-se interditado diariamente para o tráfego de

veículos em caráter de experiência (Figura 4). Isto fazia com que este trecho se transformasse em um

"ambiente carregado, onde os ripis, bicicletas e skates só fazem atrapalhar o comércio"(OLEARI,

1976, p.02). Os ripis mencionados na notícia referem-se provavelmente aos hippies que organizavam

uma feira diária na Rua Sete entre 1975 e 19769.

7 Documento localizado em pesquisa no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo.

8 Chamamos atenção para a ambigüidade da expressão idiomática pintar o sete que pode assumir tanto o

significado de "provocar desordem " e "fazer bagunça" como o de "realizar alguma coisa com facilidade" e "comemorar intensamente", segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Dicionário Online de Português. Verbetes disponíveis respectivamente em : <https://www.priberam.pt/dlpo/pintar%20o%20sete> e <https://www.dicio.com.br/pintar-o-sete/>, com acesso em 31 jan. 2018. 9 Conforme comentário feito por Maria Elisabeth no grupo Memórias da rua Sete - Centro. Disponível em:

<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=931352263665836>. Acesso em 22 fev. 2018.

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O gerente da Lanchonete Sete também reclamava da movimentação em frente ao seu comércio:

"Além de tudo, bicicletas e carrinhos de criança transformaram a rua Sete em jardim de infância para

os garotos da redondeza" (OLEARI, 1976, p.02). A Lanchonete Sete era reduto de adolescentes e

jovens na época e sua fama extrapolava o limite do centro da cidade. Inúmeros são os relatos que

identificam a lanchonete com ponto chique de lanches, sorvetes e paqueras, tanto para moradores do

centro, como para moradores de outros bairro da cidade. Angela Benezath conta que

ia todo domingo no Cine São Luiz na primeira sessão e só saía na última e depois ia para a Lanchonete Sete para lanchar. E todo domingo eu ia com um vestido novo que tia Izide costurava pra mim. Acho que tinha uns 12 anos. A gente ia sozinha, era uma turma grande e fazia muita bagunça

10.

O cronista Fernando Tatagiba trata da Lanchonete Sete como um lugar onde "aconteceram inúmeros

encontros e desencontros, beijos na fronte ou no horizonte, solitários encostados nos balcões, uma

mulher esperou alguém que não veio" (ELTON, 1999, p. 99).

A princípio, seria contraditório que justamente o gerente da lanchonete discordasse da interdição, já

que pedestrianização da rua poderia expandir seu comércio: com a rua interditada para veículos, os

clientes não precisariam se espremer na calçada estreita e nem disputar espaço com os automóveis.

Todavia, a presença de hippies, crianças e "desocupados" poderia comprometer a imagem elegante

que este e outros estabelecimentos da rua detinham.

Apesar destas reclamações, a primeira sugestão para transformação definitiva da Rua Sete em rua

de pedestres teria partido de um comerciante. Sem identificá-lo, o jornal A Gazeta apresenta sua

sugestão: "deveria fazer um calçadão no leito da rua Sete para embelezar a área" (OBRAS, 1976, p.

06). A sugestão foi acatada em abril do ano seguinte, quando o caráter de experiência na Rua Sete

de Setembro como rua de pedestres se encerra e a "A Rua 7 começa a virar o 1º calçadão da cidade"

(A RUA, 1977, p. 06).

Figura 4 - Rua de Pedestre em Experiência.

Fonte: Sandro Chiabai Paterlini. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=934616566672739 >. Acesso em: 18 dez. 2016.

10

Entrevista concedida à autora em 30 de janeiro de 2018.

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Figura 5 - Calçadão da Rua Sete de Setembro em construção

Fonte: Jornal A Tribuna, 25 set. 2010, p.06.

Figura 6 - Calçadão da Rua Sete de Setembro.

Fonte: . Antonio Carlos Sessa. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1494472174108475>. Acesso 02 mar. 2018.

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As obras do calçadão da Rua Sete foram concluídas em junho de 1977 e contemplaram a elevação

do piso e seu revestimento em pedra portuguesa com desenhos inspirados no calçadão de

Copacabana. Bancos e canteiros circulares em alvenaria foram construídos no centro da rua. As

dimensões e o formato dos bancos foram definidos para impedir sua utilização como camas por

moradores de rua11

.

Na reportagem que anunciou a inauguração do calçadão da Rua Sete são apontadas mudanças em

função do novo piso, do conforto oferecido ao consumidor.

Motos sobre a calçada, jardins suspensos, escada rolante, bancos, farmácias, armarinhos, cabeleireiro, boutiques em profusão, casas de roupas para crianças, armazéns de secos e molhados. O que mais necessita a Rua Sete para ser completa? A resposta, aguarda-se para muito em breve e. naturalmente, será dada pelas agências imobiliárias, que já estão cuidando de rever suas tabelas de preços para este que se tornou o ponto alto da cidade" (FRAGA, 1977, p. 01).

O sucesso na implantação da primeira rua de pedestres em Vitória difundiu esta ideia para a

implantação de outros calçadões na cidade durante o período.

O discurso para construção dos calçadões coincide com a preocupação da Prefeitura e do DETRAN-

ES em solucionar os constantes engarrafamentos no centro de Vitória em decorrência do aumento da

frota de veículos. Neste sentido, foram realizadas outras ações, tais como: ampliação no serviço de

transporte coletivo, com criação de linhas seletivas; modificações viárias; e criação de bolsões de

estacionamento pagos administrados pela Fundação de Estacionamento e Pontes (FUNDEP)12

.

Estas ações também faziam parte da campanha nacional para redução do uso de combustível,

suscitadas pela crise mundial do petróleo e pelos sucessivos aumentos no preço da gasolina a partir

de 1973.

A criação da primeira rua exclusiva para pedestres no Brasil se deu em 1972, durante a primeira

gestão de Jaime Lerner na Prefeitura de Curitiba. Assim como o gerente da Lanchonete Sete em

Vitória, os comerciantes curitibanos se mostraram reticentes à proposta de pedestrianização da Rua

XV de Novembro. Temendo que fossem acionados mandados de segurança, a intervenção urbana

começou após o fim do expediente nos tribunais em uma sexta-feira, dia 19 de maio de 1972, e durou

todo o final de semana. "No dia seguinte à inauguração, um dos comerciantes que encabeçavam um

abaixo-assinado contra o projeto apresentou-me um novo pedido: que as obras continuassem e

abrangessem mais regiões" (LERNER, 2011, p.96).

A rapidez na realização da obra se mostrou eficiente neste caso e tornou-se uma das características

defendidas por Lerner para projetos de "acupuntura urbana". "Na acupuntura, o importante é que a

picada seja rápida [...] [para] evitar que a inércia dos vendedores de complexidade, mesquinhez e da

política inviabilizasse momentos e obras fundamentais" (LERNER, 2011, p.96-98).

Portanto, podemos dizer que a ausência de participação nas tomadas de decisão seria intrínseca à

acupuntura defendia por Lerner, o que também acontecia em Vitória. Chrisógono Teixeira da Cruz,

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Segundo Marília Custódio dos Santos em entrevista concedida à autora em 06 de março de 2018. 12

A FUNDEP foi criada através da Lei nº 2.194, de 22 de novembro de 1972, com estatuto aprovado pelo Decreto Municipal nº 5.299, de 12 de março de 1973 e teria sido criada com o objetivo principal de "afastar definitivamente os carros do centro da cidade" (FUNDEP, 1976, p.07).

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prefeito de Vitória entre 1971 e 1975, afirma que "para humanizar a nossa cidade é necessário

medidas de renovação rápidas, mesmo que o povo se assuste ou deixe de aprovar" (VITÓRIA, 1975,

p.72). À esta afirmação, soma-se o depoimento de Marília Custódio dos Santos ao falar sobre a

construção do calçadão da Rua Sete "era mais decisão técnica. Não havia prática de demanda

popular"13

.

Em São Paulo, a implantação de várias ruas de pedestres em setembro de 1976 também causou

insegurança entre os comerciantes, que temiam perder seus clientes para aos recém-criados

shoppings centers. A interdição do tráfego de veículos foi resultado do projeto "Operação Centro",

elaborado durante a gestão do prefeito Olavo Setúbal, que incluía a restrição do uso do carro

particular e priorização do transporte público. Assim como em Curitiba, em São Paulo houveram

ameaças de impetração de mandados de segurança contra o que foi considerada uma decisão

"arbitária e abrupta". A proposta da "Operação Centro" teve início após o Seminário Internacional de

Revitalização de Áreas Centrais em 1975 em São Paulo. O Seminário foi realizado pela

Coordenadoria Geral do Planejamento (COGEP), com apoio do Instituto de Pesquisa e Planejamento

Urbano de Curitiba (IPPUC) e tinha como objetivo convencer os técnicos da administração municipal

paulistana da necessidade da transformação de vias de circulação de veículos motorizados para

áreas exclusiva de pedestres, através da apresentação de casos similares em diversos países. A

participação no evento foi exclusiva aos técnicos da prefeitura e autoridades municipais, sendo

proibida a participação de jornalistas e demais interessados. Entre os convidados estava Jaime

Lerner, que apresentou o projeto para a Rua XV de Novembro em Curitiba (ABRAHÃO, 2008).

Estudos elaborados após o seminário concluíram que as ruas da área central de São Paulo estavam

ameaçadas pela aumento no número de veículos, pelo crescimento desordenado da cidade e pelo

aparecimento de novas centralidades urbanas. Destes estudos resultou a "Operação Centro",

divulgada como "uma ação cujo objetivo era 'tornar a cidade mais humana, através da recuperação,

valorização e enriquecimento dos locais públicos, edifícios e a própria paisagem da cidade"

(ABRAHÃO, 2008, p.40). Para tanto, além de proibir a circulação do automóvel na área central e criar

ruas de pedestres equipadas com bancos, telefones, floreiras, lixeiras, postes de iluminação e outros

mobiliários urbanos, a intervenção incluiu a reforma de praças, o restauro de construções e a criação

de "recantos infantis". Tais recantos "foram concebidos como um misto de praça pública e parque

infantil, numa concepção espacial que reforçava o caráter de espaço aberto com áreas de estar e de

brinquedos para atender a população do entorno" (ABRAHÃO, 2008, p.41).

A ação em São Paulo aponta o esforço da administração municipal em valorizar a rua como lugar de

encontro e de lazer, ponto "fundamental à retomada da escala humana das cidades" (ABRAHÃO,

2008, p.39). Ao mesmo tempo, buscava-se alterar o comportamento dos usuários do Centro,

justificada pela "necessidade de se resgatar os valores tradicionais - sociabilidade, civilidade e de

comunidade" (ABRAHÃO, 2008, p.58).

13

Segundo Marília Custódio dos Santos em entrevista concedida à autora em 06 de março de 2018.

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Em Vitória, o discurso era similar. As mudanças no trânsito e a implantação da rua de pedestres eram

justificadas pela defesa da humanização da cidade, em contraposição ao aumento de veículos na

cidade e dentro das determinações do Governo Federal, como deixa claro o trecho abaixo.

O espaço é do homem e não do automóvel [...] Vale lembrar que o elenco de medidas vai ao encontro das últimas determinações do Governo Federal, no sentido de viabilizar a racionalização do combustível no País, evitando assim o racionamento (O INDISPENSÁVEL, 1977, p. 04)

UMA CIDADE MAIS HUMANA?

Nas ações de criação de ruas de lazer e de pedestres apresentadas neste trabalho encontramos a

defesa por uma abordagem que priorize o homem e o uso da rua dentro de "um plano de

humanização por achar ser ele [o homem] mais importante que as maiores obras de concreto

armado" (VITÓRIA, 1975, p.74), como afirmou ex-prefeito Chrisógono Teixeira da Cruz (1971-1975)

no relatório de sua gestão à frente da Prefeitura de Vitória.

Esta tendência não era nova e se aproxima das primeiras críticas contra a abstração e rigidez das

cidades funcionais propostas pelo movimento moderno. As cidades funcionais foram modelos

propostos e discutidos durante os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs),

especialmente o III CIAM - A cidade funcional. Deste congresso, realizado em 1933 a bordo de um

cruzeiro entre Marselha e Atenas, originou-se a Carta de Atenas que definiu as quatro funções-

chaves do urbanismo: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular. À rua caberia apenas

esta última função, é "uma máquina de circular [...] urge criar tipos de ruas que sejam equipadas

como é equipada uma fábrica" (LE CORBUSIER, 1925 apud QUEIROZ, 2015).

Embora a Carta de Atenas defenda o uso da escala humana nos projetos urbanos, ela estaria

direcionada à modulação e padronização do homem no espaço. A expressão "humanização do

espaço", criada por Alfred Neumann e citada por Le Corbusier em o Modulor 2 (1955) relaciona-se

com a defesa pela criação de sistema de medidas universal que não fosse baseado em unidades

abstratas e ao mesmo tempo que não tivesse características regionais (NUDELMAN, 2011).

Apesar do livro de Corbusier partir de um mote humanista, desenvolvido com argumentos de ordem poética, acabou sendo rechaçado pelos críticos que enxergaram nele uma ferramenta tecnocrática, comprometida com um projeto abstrato e ideal de padronização do mundo. Para muitos, o Modulor tornou-se símbolo de uma racionalidade moderna desumana que deveria ser enfrentada em nome da diversidade dos corpos e dos processos criativos (MIYADA; GALLINA, 2012, online).

As críticas contra a abstração e rigidez das cidades funcionais tiveram lugar dentro dos próprios

CIAMs, a partir do VIII CIAM - O coração da cidade, realizado em 1951 em Hoddesdon, Inglaterra. A

discussão priorizou o "elemento humano, na associação humana, que resulta do interesse em

retomar a cidade existente como foco de atenção" (SOSA, 2008, p.105), tal qual indica a

publicação do Congresso elaborada por Sigfried Giedion, "Summary of needs at The Core":

1 Que deve haver somente um Núcleo central em cada cidade;

2 Que o Núcleo é um artefato – uma coisa feita pelo homem;

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3 Que o Núcleo deve ser seguro do trânsito – onde os pedestres possam caminhar e mover-se livremente;

4 Que os carros deve chegar e estacionar na periferia do Núcleo, mas não atravessá-lo;

5 Que propaganda comercial descontrolada – como aparece no Núcleo de muitas cidades de hoje – deve ser organizada e controlada;

6 Que elementos variados (moviles) podem fazer uma importante contribuição à animação do Núcleo, e a base arquitetural deve ser planejada para permitir a inclusão desses elementos;

7 Que ao planejar o Núcleo o arquiteto deve usar médios contemporâneos de expressão e – quando seja possível – deve trabalhar em cooperação com pintores e escultores (GIEDION, 1952 apud SOSA, 2008, p.102, grifos nossos).

Posteriormente, o Manifesto de Doorn, publicado em 1954 por integrantes do CIAM, também tece

críticas à concepção de cidade funcionalista e fundamenta-se "na necessidade de enfatizar o caráter

de espaço urbano como gerador de relações humanas" (SOSA, 2008, p. 98). O Team 10, criado para

organização do X CIAM realizado em 1956 em Dubrovnik, Croácia, também se posicionava contra à

concepção de cidades funcionais e defendia a necessidade de discutir a humanização doas cidades.

A intenção fundamental dos jovens era questionar a validade dos princípios universais a partir da noção de que o homem se organiza em comunidades, que desenvolve a necessidade de se diferenciar, se identificar com o local onde habita, criar vínculos sociais e aprender o espaço a partir de seus próprios valores culturais (SOSA, 2008, p104).

Soma-se às críticas fomentadas dentro do próprio movimento, as críticas publicadas por Jane Jacobs

em 1961, na constatação de que as cidades encontram-se em erosão em função do excesso de

automóveis nas cidades, causa e conseqüência de projetos urbanos modernos (JACOBS, 2003).

Entre as táticas apresentadas pela autora para reverter o quadro estão a redução do número de

automóveis da rua, a ampliação de calçadas e o incentivo ao uso da rua - sugestões muito próximas

às ações apresentadas neste artigo.

Entretanto, é preciso lembrar que tais ações - rua de lazer e rua de pedestres - foram realizadas em

um contexto de tensão política e econômica no país. À primeira vista, parece contraditório que estas

ações tenham sido promovidas pelo justamente pelo governo ditatorial. Apenas à primeira vista, pois

"se por um lado o espaço público foi esvaziado do debate político oposicionista, por outro o governo

procurou preenchê-lo com outras práticas culturais" (PAZIN, 2014, p.193), como as descritas neste

artigo.

Tais práticas procuraram, portanto, divulgar e reforçar os sistema de valores moldados pelas

instituições militares e dar legitimidade ao regime. Ou seja, era preciso dimensionar a população

dentro de um modelo pré-estabelecido. Era preciso disciplinar os corpos para silenciá-los. A

constatação de ausência de participação popular na decisão sobre estas ações faz reverberar estas

afirmação e evidencia que é preciso diferenciar o incentivo às práticas esportivas e artísticas pelas

ruas de lazer ou a criação de novos lugares de encontros nas cidades de um movimento para

promoção de uma verdadeira autonomia da população brasileira.

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7 HORAS, os carros fora do centro. O Estado de São Paulo. São Paulo, 04 set. 1976, p. 20.