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VARIEDADES LINGUÍSTICAS: deficiência ou diferença?

Autora: Cynara Angélica Moura Jorge1 Orientadora: Cloris Porto Torquato (UEPG)2

RESUMO

Pretende-se por meio deste artigo socializar os resultados obtidos na implementação do Projeto de Intervenção Pedagógica do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), desenvolvido no Colégio Estadual João Paulo II – EFM na cidade de Arapoti. Sabe-se que na prática pedagógica tradicional há grande resistência a aceitação da pluralidade linguística. Tal comportamento revela o preconceito existente a toda variedade na língua (oral ou escrita), avaliada como "erro" ou "deficiência" quando não corresponde ao que está nas gramáticas normativas. Diante do exposto, percebeu-se a necessidade da escola repensar a diversidade linguística, pois há muitos e diferentes usos da língua falada que podem se distanciar da "gramática tradicional". Pretendeu-se com este trabalho possibilitar aos estudantes a compreensão da e o respeito à existência da diversidade linguística, tanto na fala quanto na escrita, levando-os a compreender que a diversidade provém da evolução histórica das línguas como também da variação estilística utilizada pelos falantes em diferentes situações. Possibilitar ao aprendiz o esclarecimento deste processo é levá-lo a tomar consciência de que a realidade linguística brasileira não é homogênea e que, através de mecanismos próprios, interage com outras formas sociais. Por isso a língua não é só um meio de comunicação, é também um instrumento de controle social, onde os seus usos estão associados a valores, vinculados a relações de educação e poder na sociedade.

Palavras-chave: variedades linguísticas; preconceito; diferença; escola.

ABSTRACT

It is intended through this article socialize the results obtained in the implementation of Pedagogical Intervention Program of the Educational Development Program (PDE), developed in Colégio Estadual João Paulo II - Elementary and High School in the city of Arapoti. In practice pedagogical tradicional there is a large resistence of the acceptance of linguistic plurality. This behavior reveals the existing prejudice to any variety of language( oral and written), evaluated as a mistake or deficiency when 1 Professora do Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE. Área de Língua Portuguesa. Colégio Estadual João Paulo II – EFM. ([email protected])2 Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. ([email protected])

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doesn t correspond with what is in the grammar rules. It was realized the need to rethink the school linguistic diversity, because there are many different uses of spoken language that can distance themselves from tradicional grammar.Expected with this work to enable students to undesrtand and respect the existence of linguistic diversity in speach and writing, making them to understand that diversity comes from the historical evolution of languages and also the stylistic variations used by speakers in different situations. Allow the learner to clarify this process and leads him to take conscience that the linguistic reality of Brazil is not homogeneous and that through the own mecanismos interacts with other social forms. That s why the language is not only a mode of communication, is also an instrument of social control, where its uses are associated with values, linked to relations of power in society and education.

Keywords: varieties of language, preconception, difference, school.

1. Introdução

Este texto é o relato de uma experiência de intervenção pedagógica no

âmbito do PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) da Secretaria de

Estado da Educação do Paraná, a qual foi desenvolvida no Colégio Estadual João

Paulo II – Ensino Fundamental e Médio, na cidade de Arapoti – PR com alunos do 1º

Ano do Ensino Médio.

Atualmente, os livros didáticos de português dão mais atenção a questão da

variação linguística e um exemplo disto é a abordagem feita pelo livro “Por uma Vida

Melhor”, que foi alvo de crítica e preconceito. Um dos capítulos do livro mostra que

cada escolha de alguma variedade linguística que o aluno faz é carregada de

valores.

No entanto, a abordagem das variedades linguísticas no processo educativo

ainda tem sido alvo de crítica e discordância no ensino-aprendizagem da língua

materna. Observa-se certo conflito, quando um grupo de professores aceita e

respeita as variedades da língua, e o outro desqualifica as demais variedades que

não correspondem à norma padrão.

Há muitos e diferentes usos da língua que podem se distanciar daqueles

prescritos na "gramática tradicional", ainda valorizada nos bancos escolares. Em

função da diversidade de usos que os indivíduos fazem da língua, há diferentes

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registros. Decorrentes de fatores de ordem interna (estrutural – regras fonético –

fonológicas, morfológicas e sintáticas) e externa (social – gênero, faixa etária, classe

social dos falantes – e contextual) a língua varia. Outro ponto que deve ficar bem

claro é que a escrita também comporta variedades em função da diversidade de

gêneros discursivos.

Desta forma, é preciso levar o aluno a perceber e tomar consciência das

variedades da língua, fazendo-o perceber a relação com o contexto e as diferentes

situações de uso da língua. Portanto, é fundamental que os educadores não fiquem

presos a regras e nomenclaturas gramaticais, é necessário que o ensino-

aprendizagem da língua tenha significado para o aluno e que ele compreenda seus

diversos mecanismos.

Cagliari afirma que, “para a escola aceitar a variação linguística como um

fato linguístico, precisa mudar toda a sua visão de valores educacionais” (CAGLIARI,

1997, p.82). Somente através da reeducação sociolinguística na escola é que se

promoverá uma “ação pedagógica de qualidade a todos os alunos, tanto para

derrubar mitos que sustentam o pensamento único, padrões pré-estabelecidos e

conceitos tradicionalmente aceitos, como para construir relações sociais mais

generosas e includentes” (PARANÁ, 2008, p. 83). A reeducação sociolinguística é

concebida por Bagno (2009) como o espaço em que o aluno pode e deve tornar-se

consciente da atribuição de valores às variedades linguísticas.

Por isso estamos falando de uma reeducação, de uma educação nova, de uma reorganização dos saberes linguísticos que não tem nada a ver com “correção” nem com substituição de um modo de falar por outro – ao contrário, a reeducação sociolinguística tem que partir daquilo que a pessoa já sabe e sabe bem. E é uma reeducação sociolinguística porque é através dela que o aprendiz conhecerá os juízos de valor sociais que pesam sobre cada uso da língua. (BAGNO, 2009, p. 83)

Isso significa levar em conta os saberes, a linguagem e os modos de vida

desses grupos que estavam tradicionalmente fora da escola. É preciso valorizar

aquilo que vem dos diferentes grupos de alunos.

A tradição gramatical continua idealizada nas sociedades letradas, porém o

que se espera das instituições escolares é que realmente haja "educação para

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todos", e que o reconhecimento às variedades linguísticas seja compreendido como

o reflexo da variedade social.

Como considera Bagno (2009, p.168), “a língua é uma atividade social, ela é

parte integrante (e constitutiva) da vida em sociedade”. Desta forma, a escola deve

considerar as diversas redes de interação que o sujeito participa e a partir daí

desenvolver, no aluno, outras possibilidades de falar e escrever.

Nesta perspectiva, a norma culta (oral-escrita) deve ser compreendida como

uma dentre tantas outras variedades utilizadas pelo falante, pois reconhecer tais

diferenças é perceber que a língua não é única e está sujeita a mudanças.

Diante disso, entende-se que é necessário formar o aluno numa perspectiva

de linguagem como interação e prática social, conforme orientação das DCE. A

intervenção aqui proposta justifica-se, então, por esta necessidade e porque se volta

justamente para o reconhecimento da variação e das relações de poder aí

implicadas.

2. Fundamentação teórica

[...] com a expansão quantitativa da rede escolar, passaram a frequentar a escola em número significativo falantes de variedades do português muito distantes do modelo tradicionalmente cultivado pela escola. Passou a haver um profundo choque entre modelos e valores escolares e a realidade dos falantes: choque entre a língua da maioria das crianças (e jovens) e o modo artificial de língua cultuado pela educação da linguística tradicional; choque entre a fala do professor e a norma escolar; entre a norma escolar e a norma real; entre a fala do professor e a fala dos alunos (FARACO, 1997, p.57 apud PARANÁ, 2008, p. 43).

A partir da ideia de que a escrita literária e a fala das camadas privilegiadas

da população eram as representantes do uso "correto" da língua, constituiu-se a

norma-padrão tradicional, considerada modelo ideal, e através dessa distorção

ideológica passou-se a considerar que as demais formas utilizadas eram "erradas".

O resultado desta concepção para o ensino foi a valorização apenas das

variedades de prestígio - cuja variedade interna foi apagada, criando-se uma

imagem de homogeneidade, como se houvesse apenas uma única variedade de

prestígio -, o estabelecimento desta variedade como o parâmetro de correção para

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todo e qualquer uso da língua e o estabelecimento da crença de que havia uma

única forma de expressão escrita, como se a escrita não fosse também constituída

por variedades.

A diversidade da língua começou a ser reconhecida no ensino nas décadas

de 70 e 80, com a elaboração de Documentos que tematizavam a revisão das

práticas pedagógicas no Ensino/Aprendizagem da Língua Portuguesa (Decreto

n°1372, de 26b06/1985) e destacavam que o ensino das variedades linguísticas deve

ser levado em conta na escola.

Felizmente, nas últimas décadas, as políticas educacionais contemporâneas

vêm se distanciando do ensino gramatical normativo que tem como única finalidade

decorar nomenclaturas, e propõem uma prática de ensino de português voltada aos

avanços das ciências da linguagem. Já existem propostas no ensino da língua em

que se observam atividades que refletem a existência dos infindáveis recursos que a

língua oferece.

A ruptura com os modelos antiquados no ensino da língua materna dá lugar

a novos caminhos que propiciarão ao aprendiz ter acesso a outros conhecimentos

relacionados a questões da linguagem em sala de aula. Não se pode mais privilegiar

apenas o acesso à gramática tradicional e descartar a diversidade linguística que os

alunos trazem em seu repertório. O ensino da língua deve adaptar-se à realidade

heterogênea, variável e mutante que fazem seus falantes e ser capaz de levar o

estudante a respeitar e compreender essas diferenças.

Como diz Bagno em seu livro Preconceito linguistico: o que é, como se faz,

"uma das principais tarefas do professor é conscientizar seu aluno de que a língua é

como um grande guarda-roupa, onde é possível encontrar todo tipo de vestimenta."

(BAGNO, 1999, p. 123). Neste sentido, o papel da escola é levar o aluno a saber

quando e como utilizar tais “vestimentas”, levando-o a compreender qual a situação

adequada e inadequada para cada uma delas, analisando o contexto, a origem

geográfica, o status socioeconômico, o grau de escolarização, a idade, enfim, todos

os fatores sociais que auxiliam na identificação da variação linguística.

Para além do reconhecimento e da compreensão da diversidade linguística e

da adequação dos usos linguísticos às situações sociais, é papel da escola levar o

aluno a reconhecer e a situar-se nas relações de poder que se efetivam nestes usos,

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as quais se expressam nos papéis e juízos de valor atribuídos às variedades

linguísticas. Desta forma, o que se propõe é uma reeducação sociolinguística.

A reeducação linguística é a reorganização dos saberes linguísticos de

modo a permitir que o aluno conheça os juízos de valor sociais atribuídos às

variedades linguísticas, aos usos da língua (BAGNO, 2009). A reorganização desses

"saberes" e a conscientização de que a língua é também, elemento de promoção

social se fará através do contato do aluno com diferentes gêneros do discurso que

circulam na nossa sociedade.

Portanto, a reeducação linguística é uma proposta que leva o aluno a

compreender que a língua realiza interações sociais com uma escala de valores em

relação ao seu uso (certo/errado, bonito/feio, bom/ruim, positivo/negativo) e é parte

da promoção social (repressão e/ou discriminação), e a compreender que há

diferentes possibilidades de falar e escrever (ampliação do repertório comunicativo)

nas diferentes instâncias de uso da linguagem.

Nesta perspectiva, entende-se que a criança chega à escola trazendo o que

aprendeu naturalmente em contextos informais e, no ambiente escolar, vai fazer

dialogar seus “conhecimentos” com saberes formalizados. No caso da linguagem,

vai adquirir outras possibilidades de uso linguístico que não fazem parte de seu

convívio familiar, social (regras de funcionamento da língua). Além disto, na escola,

o educando compreenderá que as suas manifestações verbais, orais e escritas,

estarão sujeitas a julgamento social, pois a língua também é um instrumento de

controle social.

Toda variedade linguística que o aluno domina resulta das interações

interlocutivas que este participou no convívio com seu grupo social (família, escola,

amigos, rádio, tv.) e, através dessas interações, se constitui a aprendizagem. Nas

interações de que fez parte, construiu e apropriou-se de novos "sentidos", pois sua

linguagem teve papel constitutivo nas interações: combinou sentidos e escolheu

estratégias de acordo com o interlocutor. Todo esse processo se modifica

continuamente cada vez que participa de novas interações e constrói suas

interpretações da realidade.

O uso da linguagem se organiza de modo particular nas diferentes instâncias

públicas e instâncias privadas. Entende-se por instâncias, os diferentes espaços

sociais onde se dá o trabalho linguístico. Para melhor entender a diferença entre

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instância pública e privada, segue um quadro produzido por Geraldi (1996, p. 43),

que aponta as distinções entre uma e outra:

INSTÂNCIASPúblicas Privadasa) atendem a objetivos imediatos (satisfação de necessidades de compreensão de mundo)

a) atendem a objetivos imediatos (satisfação de necessidades vivenciais básicas)

b) interações à distância, no tempo e no espaço implicando também interlocutores desconhecidos

b) interações face a face, o que implica a presença de interlocutores desconhecidos

c) referência a um sistema de valores ou sistemas de referência nem sempre compartilhados, com categorias abstratas ou mais sistemáticas

c) referência a um sistema de valores ou sistemas de referência compartilhados, vinculados à experiência cotidiana

d) privilégio da modalidade escrita d) privilégio da modalidade oral

Muito frequentemente as interlocuções em instâncias públicas iniciam-se na

escola. Deste modo, cabe à escola permitir a experiência entre duas diferentes

instâncias de uso da linguagem, enfatizando, sobretudo, os usos linguísticos nas

instâncias públicas.

Para pensar o ensino de língua portuguesa na escola, Bagno (2009), o autor

que desenvolveu a concepção de reeducação sociolinguística, retoma o seguinte

poema de Carlos Drummond de Andrade:

AULA DE PORTUGUÊS

A LINGUAGEM

na ponta da língua,

tão fácil de falar

e de entender.

A linguagem

na superfície estrelada das letras,

sabe lá o que ela quer dizer?

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,

e vai desmatando

o amazonas de minha ignorância.

Figuras de gramática, esquipáticas,

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atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me

Já esqueci a língua que comia,

em que pedia pra ir lá fora,

em que levava e dava pontapé,

a língua, breve língua entrecortada

do namoro com a prima.

O português são dois; o outro, mistério.

Segundo Bagno, esse poema pode nos auxiliar a observar que, em alguns

contextos escolares, ainda "impera" uma concepção voltada apenas para a

valorização e para o repasse de regras e nomenclaturas. A situação acima, retratada

por Drummond, ainda se faz presente no ensino da língua materna no Brasil, pois de

um lado está o ensino linguístico, nomeado "norma padrão", (aquele que sabe lá o

quer dizer), que parte da ideia da unificação e padronização da língua que deve ser

"adquirida" na escola; de outro lado, está o idioma em uso (aquele fácil de falar e de

entender), o vilão das salas de aula, a língua "errada", que deve ser evitada pelos

falantes cultos.

Percebe-se uma grande distância entre a norma padrão e a língua viva do

povo, o que leva a muitas distorções e intolerância a respeito do assunto. Ouve-se

que "agora pode tudo", que uma irá "substituir a outra" e por aí afora. No entanto, na

perspectiva da reeducação sociolinguística, a ideia não é de descartar nenhuma

variedade linguística. O que é realmente importante ser levado em conta nos bancos

escolares é que a norma padrão não é a língua em uso e que a língua evolui a todo

momento. Neste sentido, podem se aplicar à língua os seguintes versos:

"Nada do que foi seráDe novo do jeito que já foi um diaTudo passa, tudo sempre passará..."Como uma onda (Lulu Santos e Nélson Motta)

Os versos citados acima, parte da música de Lulu Santos e Nélson Motta,

ilustram bem o que ocorre na vida e, portanto, na língua. Partindo dessa concepção,

a escola precisa realmente reorganizar sua prática pedagógica e deixar de acreditar

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em algo que não existe: uma língua fixa, imutável e invariável. Assim passará a dar

espaço aos fenômenos de variação e mudança linguística, demonstrando que o que

realmente existe são diferenças e não "erros" e que a língua está sempre em

construção. (BAGNO, 2009)

Portanto, é de extrema importância que a escola permita ao aluno a

aquisição de uma competência comunicativa cada vez mais ampla e esse

reconhecimento deverá começar pela observação dessas variedades no contexto

escolar, através da investigação e análise em seu próprio meio social (família,

amigos e escola). Provocar tal reflexão promoverá a ampliação do repertório

linguístico do aprendiz, levando-o a sua inserção no mundo da escrita e leitura.

2.1 Variedade Linguística na sala de aula

" No meio do caminho tinha uma pedratinha uma pedra no meio do caminhotinha uma pedrano meio do caminho tinha uma pedra."(ANDRADE, Carlos Drummond de. "No meio do Caminho". In: Alguma poesia.)

A pedra no meio do caminho do ensino de língua portuguesa é o fato de a

escola privilegiar o ensino da gramática normativa e condenar todo "desvio" da

norma, desconsiderando as variedades linguísticas e as relações de poder

implicadas nestas variedades.

Nos espaços sociais, formados por diferentes grupos sociais, e, portanto,

nas distintas instâncias de uso da linguagem, as pessoas se expõem como

locutores, e a existência das variedades linguísticas, ali presentes, é determinada

pelas variáveis sociais (classes, idade, sexo, região, etc.) da nossa sociedade. A

língua evolui, e muitos desses "desvios" são incorporados pelos falantes.

Esse fenômeno linguístico, que é heterogêneo, é estigmatizado na

sociedade e na escola, pois o que vale no contexto escolar é a pretensão da

unidade/ homogeneidade linguística, que tem como base a variedade "culta" das

classes dominantes.

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A escola pública recebe alunos provenientes das classes populares e o

modo "diferente" de falar destes estudantes não é aceito. Essa "diferença" confronta-

se com a língua "una" e "adequada" nas aulas de língua portuguesa, e o saber

trazido pelo aluno é descartado. A escrita é tida como referência para normatizar a

fala, concretizando a crença de que português é uma "língua difícil". É preciso deixar

de lado essas considerações e reconhecer os processos de variação e contínua

mudança das formas linguísticas que possibilitam a comunicação. Acima de tudo, é

preciso reconhecer que a variação e a mudança na língua estão relacionadas a

questões de juízos de valor e, principalmente, de poder.

3. Encaminhamento metodológico

O projeto de intervenção pedagógica foi desenvolvido numa escola de

Ensino Médio da Rede Pública do Estado do Paraná, através da observação e

reflexão sobre as variedades linguísticas utilizadas no contexto escolar e na

comunidade local. O objetivo deste é levar o aluno a compreender e valorizar tais

diferenças, ampliando as possibilidades de uso da língua, tanto na fala como na

escrita.

A implementação foi realizada no Colégio Estadual João Paulo II – Ensino

Fundamental e Médio, na cidade de Arapoti - PR, na Vila Bamerindus. O Colégio

conta aproximadamente com 670 alunos matriculados. Destes, há também alunos

vindos de outros bairros próximos: Vila Romana, Vila Humaitá, Vila Nova e Jardim

do Bosque.

A renda média das famílias que compõem a comunidade escolar varia entre

1 a 3 salários mínimos. Os pais são trabalhadores rurais, empregadas domésticas,

motoristas de caminhão e funcionários de uma fábrica de papel da cidade.

A reflexão de situações de uso real da língua motivou o desenvolvimento do

projeto, como fim de facilitar a conscientização e aceitação da variação linguística e

promover a consciência da relação entre linguagem, sociedade e poder.

Tendo em vista os objetivos do projeto e o contexto socioeducacional no

qual foi implementado, os percursos deste estudo seguiram os seguintes processos:

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• Reflexões sobre a língua oral e sobre variação linguística

(questionamentos sobre o funcionamento da língua oral e

produção de textos: cartaz, e-mail, slide, com a finalidade de

observar as variedades na apresentação oral e nos textos

escritos dos alunos);

• Análise do Contínuo de Urbanização dos alunos e de seus pais,

através de entrevista com familiares. Transcrição da entrevista

para a língua oral escrita com o objetivo de verificar as marcas

linguísticas presentes na oralidade dos entrevistados;

• Produção escrita de história familiar;

• Leitura de reportagens e entrevistas sobre o tema para verificar

as relações de poder e o preconceito existente na escolha do

repertório linguístico dos sujeitos;

• Visita a uma Sessão da Câmara Municipal para observar o

monitoramento na fala dos sujeitos;

• Produção de uma síntese do projeto, com registro em slide, a

respeito das variedades encontradas na comunidade.

4. O projeto na prática

Inicialmente, foi apresentada aos alunos a proposta de estudo. Na

sequência, foram direcionados a eles alguns questionamentos sobre o

funcionamento da linguagem oral e da variação linguística, que serviram para

diagnosticar o conceito que os mesmos possuem sobre os temas em questão,

como:

• O que se entende por língua?

• Por que a língua muda? E por que varia?

• Que tal refletirmos sobre nossas conversas? Existe alguma regra ou

norma para se estabelecer uma conversa? Quais são?

• Como o assunto é definido nestas interações?

• Quais as interações mais comuns de que vocês participam?

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• Depois de tudo o que foi discutido e com base nos registros produzidos

pelos colegas responda: “O que se entende por língua?

De início, percebeu-se que, de modo geral, os alunos associam a noção de

“erro” quando a língua não corresponde à norma padrão, como também não

percebem que a fala e a escrita são duas modalidades distintas, cada uma com sua

particularidade. Outra observação foram os apontamentos feitos pelos alunos dos

“erros” nas respostas dos seus colegas. Esta informação reforça a importância do

tratamento da variação linguística em sala de aula para desconstruir valores

excludentes sobre a língua.

Após esse primeiro momento, deu-se sequência às atividades propostas.

Foi distribuída uma cópia para cada aluno do continuum de urbanização ou

continuum rural-urbano3 (BORTONI-RICARDO, 2009), pedindo-lhes que situassem a

si e a seus pais. O contínuo de urbanização, segundo Bertoni-Ricardo (2009), pode

ser representado da seguinte maneira:

variedades área rurbana variedades urbanasrurais isoladas (migrantes de origem rural) padronizadas

Após situarem-se no contínuo, cada aluno realizou uma entrevista com um

membro mais velho de sua família para verificar em que parte do contínuo se

encaixaria. Em seguida, a entrevista foi transcrita para a língua escrita com o

objetivo de circular entre os alunos para a leitura.

Antes da escrita, os alunos foram orientados sobre as diferenças entre a

língua falada e a escrita, com base em Marcuschi (2005). Além disso, foi distribuída

para cada aluno um uma cópia do diagrama abaixo, para mostrar que

as inovações linguísticas surgem primeiramente nos gêneros falados mais espontâneos e vão se expandindo em direção aos demais gêneros textuais até atingir o outro polo do diagrama de Marcuschi, onde se situam os gêneros escritos mais monitorados (BAGNO, 2009, p. 184).

3 Refere-se ao contínuo que compreende desde as variedades linguísticas das comunidades rurais isoladas até as variedades linguísticas urbanas cultas. (BORTONI-RICARDO, 2009)

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Sendo assim, em função dos diferentes graus de monitoração, percebe-se

que na escrita pode haver variação, como há na fala.

Figura 1 – Representação do contínuo dos gêneros textuais na fala e na escritaFonte: BAGNO, 2009, p. 183.

Estas atividades permitiram que os alunos concluíssem que a maioria dos

seus familiares passou a infância na zona rural, tiveram uma vida sofrida e tinham

pouca escolaridade e, sobretudo, concluíssem que esses familiares são falantes de

variedades rurais. Outros declararam que, para seus familiares, o acesso à escola

era difícil e por este motivo acabaram desistindo de estudar. Há também aqueles

que, apesar das dificuldades, concluíram o Ensino Fundamental.

Outro aspecto observado foi que alguns usos linguísticos presentes na fala

dos familiares ainda aparecem na fala dos alunos: “não alembro”, “sintu falta”, “meus

irmão”. Para Bertoni-Ricardo (2009), esses alunos poderiam ser incluídos no

espectro do contínuo definido como rurbano.

Quando interagimos com brasileiros nascidos e criados na região rural ou

rurbana do contínuo de urbanização, observamos muitos usos linguísticos diferentes

dos nossos. Diante desta percepção, pode-se sugerir que

para lidar com a variação linguística e cultural de nossas crianças, a escola precisa tornar-se culturalmente sensível. As formas de implementação

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dessa pedagogia culturalmente sensível são múltiplas: aproveitar as experiências que as crianças trazem consigo, repetindo padrões interacionais que lhes são familiares; desenvolvendo estratégias que façam a distinção entre eventos de oralidade e de letramento (BORTONI, 2006).

Dando continuidade às atividades, foi feita a leitura da reportagem “Grazi e a

polêmica sobre o sotaque paranaense”, disponível em

(http://www.reclamando.com.br/?system=news&action=read&id=3291&eid=142). Este

texto mostra a rejeição aos falares não cultos, e causou um certo “desconforto” aos

alunos devido à expressão “falar caipira” utilizada na entrevista. Os alunos

discordaram e não consideram o seu sotaque como “caipira”. É interessante

observar que os estudantes não se reconheceram na categoria de caipiras, ainda

que sua fala tenha muitas falas desta variedade linguística. Eles disseram também

que o preconceito linguístico ficou evidente na entrevista. O objetivo desta atividade

foi demonstrar que existem diferentes formas de se dizer a mesma coisa e que,

dependendo das nossas escolhas, esses usos linguísticos podem gerar efeitos

positivos ou negativos nos interlocutores. Como afirma Bagno (2009), onde tem

variação (linguística) sempre há avaliação social.

Para reforçar tal questão, assistiu-se também à entrevista dada a UNIVESP

TV, pelo professor Ataliba Castilho, sobre a polêmica e a indignação causada aos

brasileiros após a aprovação pelo MEC do livro didático “Por uma Vida Melhor”. Na

entrevista, Castilho fala sobre a importância em se tratar do tema e condena a

exclusão linguística em sala de aula.

Ao término do estudo da entrevista, os alunos concluíram que realmente é

preciso saber diferenciar a fala da escrita e saber escolher a variedade que melhor

se adeque à situação de comunicação, evitando certos julgamentos sociais.

Para o desenvolvimento das atividades e aprofundamento da questão da

variação estilística, foi realizada uma visita a uma Sessão da Câmara Municipal com

o objetivo dos alunos observarem que, em certos ambientes profissionais, os

indivíduos fazem uso de estilos mais monitorados, pois a escolha do repertório

linguístico depende dos diferentes papéis sociais que exercem.

Outro aspecto observado foram os momentos em que a língua oral e a

escrita foram mais ou menos monitoradas pelos falantes. Esta atividade tinha como

objetivo refletir sobre a variação estilística nas atividades profissionais.

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A fim de verificar os resultados obtidos com o trabalho sobre a questão das

variedades linguísticas (oral/escrita) observadas na comunidade local foi produzido

um slide com as fotos das atividades realizadas e com a conclusão que os alunos

chegaram ao término da intervenção pedagógica. Os alunos apresentaram esses

slides como subsídio a uma apresentação oral que fizeram aos colegas, expondo

suas conclusões relativas ao trabalho desenvolvido no decorrer deste projeto.

5. Conclusão

Estudar a língua em situações reais de uso e observar a variação linguística

local oportunizaram aos alunos uma reflexão consciente sobre os diferentes usos da

nossa língua. Cabe a nós, professores de língua portuguesa, desenvolver

estratégias em sala aula para refletir sobre esta língua. É importante que o próprio

aluno reconheça as diferentes formas de usar a língua (oral/escrita) e reconheça a

ideia de poder envolvida nesses usos. Perceber a língua como algo inacabado é

construir possibilidades de usá-la sem medo. As “diferenças” no repertório linguístico

não podem ser ignoradas pela escola.

Acredita-se que o objetivo proposto com a implementação do Projeto

“Variedades Linguísticas: deficiência ou diferença?” foi atingido de forma satisfatória,

uma vez que oportunizou aos alunos refletir sobre questões linguísticas próprias do

seu repertório, longe da prática tradicional do “certo ou errado”. Outra consideração

importante foi a mudança no que diz respeito à discriminação social que os mesmos

faziam das diferentes formas de manifestações verbais (oral/escrita).

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