VÁRIOSAUTORES1ªEDIÇÃO

ISBN:9780463284803ELEMENTALEDITORAÇÃO

FichadoLivro

Nightmares–algunspesadelosparaquemdormeacordado,

VáriosAutores

Organizador:FernandoLima

Capa:FernandoLima

ImagemdaCapa:Gabriel714976

DiagramaçãoeEdição:ElementalEditoração

RevisãodeTexto:Feitapelosprópriosparticipantes

Copyrightdestaedição:2018©ElementalEditoração

ISBN:9780463284803

1.Coletânea2.Contos3.Português4.Nightmares

1.Título2.LivroDigital3.Coleção

Todos os direitos sobre esta obra são de exclusividade do seloindependente Elemental Editoração, para qualquer tipo de informações oureproduçõessobreamesma,énecessárioaautorizaçãoantecipadapeloseloassimcomopelosautoresparticipantesdesteprojeto.

Sumário

FICHADOLIVRO

APRESENTAÇÃO

ABESTANAJANELA

ASGAIOLAS

AVEMESTRELÚCIFER

BADTRIP

CARNAVALDESANGUE

ORELÓGIODEPAREDE

DELÍRIO

ELESEALIMENTADESONHOS

EUEOSOUTROS

OREIDOFOSSO

ILUSÓRIASELUCIDAÇÕES

MARNEGRO

ESCURIDÃOILUSÓRIA

OENCONTRO

OMAUSOLÉU

SUCCUBUS

Apresentação

Por:FernandoLima

OAutor:

FernandoLimaénaturaldeSantoAndré–SP.Publicasuasobrascomos pseudônimos de Donnefar Skedar e Jay Olce, além de ser criador eorganizadordoprojetoAArtedoTerror,tambémadministraoseloElementalEditoração.

Contato:E-mail

Apresentação:

Nightmares— alguns pesadelos para quem dorme acordado, é umacoletâneaondeofantásticoeosinistroseencontramparaalimentaramentehumana.Nestelivrovocêencontraráalgunscontosdiversificadosdentrodosgênerosterror,horror,suspenseemistério.Comtextosvoltadosparatodososgostos,eisumabreveapresentaçãodoquetemosnanovaliteraturafantásticadomeioindependente.

Aproveitealeituraesegostar,compartilheeavalieolivro.

BoaLeitura!

FernandoLima

Organizador

ABestanaJanela

Por:RangelElesbão

OAutor:

RangelElesbãonasceuemCachoeiradoSul(RS)em1983.EstudantedeAdministração, nunca abandonou sua paixão pelas letras. Começou aescrever aos treze anos, mas somente em 2016 começou a publicar seuscontos macabros em plataformas para escritores amadores, que até entãoestavamengavetados.

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Conto:

ABestaestáláfora.

Esperaomeudescuido,assimqueeusairdecasa.Parameatacar.Masnãovousairparaarua.ABesta,tambémpoderiaentrarsequisesse.Masnãoofaz.Elaficasentadasobasombradeumaárvore,meesperando.Vigiando.

“Sevocênãosecomportar,aBestavaitepegar!”

Da janela, eu a vejo, com os dentes pontudos e rosto demoníaco.Esperando eu colocar o pé para o outro lado da porta. Fiapos de baba

escorrempelocantodasuaboca.Seusolhosenormescomumbrilhoamarelo,sobreoseufocinhopeludo.Farejandoomeumedonoar.

“Meninomau,Jamie!”

Aindaouçoasuavoz,meassustando,mamãe.Depoisdetantotempo…

ABestacontinuavalá…

Passavamdiasenoites,maselacontinuavalá.À espreita. Embaixodamesmaárvore.Apenasmeesperando.

Duranteanoiteépior.Seusolhosbrilhamnoescuro,faiscantes,comoosdeumanimalpredador.

—A senhora fica aí sentada, sem fazer nada, enquanto aBesta está láfora,esperandoparamepegar.Desdequeeueracriança!

Ouvi um rosnado. Era o som que ela fazia quando estava com fome.Rosnavaearregaçavaasuabocarra,mostrandoseusdentesafiados.Famintos.

—Nuncafuiummeninomau!–eudisse,aindasegurandoomartelo—Mas a Besta quer me pegar, e esse martelo, é tudo que tenho para meproteger!

—Deixeamamãelevantar,Jamie!–disseasenhora—Masqueroquefiqueaí,eunosdefendodafera!

Asenhoraestavaesperandoopapaichegar,maseusei…Eusei!Elefoipego pela Besta. Eu a vejo pela janela, com seus pelos e patas sujas desangue.

Jáestavaanoitecendo,eElacontinuavalá.Umbrilhoassassinonosseusolhos.

ABestameacompanhaparacadaladoqueeuvá.Avejomeseguindo,pela movimentação na janela. Se eu a vejo parada na rua, então, tambémpossoservistodentrodecasa.

Caminhei até a janela, de onde a avistava se aproximando da vidraça.Baixeiacortinaparanãovê-la.Nãopasseiachavenaporta.Elanuncatentou

entrar em casa, nem quando eu era criança, nem mesmo agora depois deadulto.Maspoderiaentrar,comsuasgarrasepatasensanguentadas,seassimdesejasse.

PensoomotivopeloqualaBestameescolheu,paraperseguir.Semprepróximademim.Nãoconsigoentender…

Nãovouapagarasluzes.Vaificarumaluminárianajanela.ParaqueElasaibaquenãobaixeiaminhaguarda.

Fuiatéamesaondemamãeestavasentada, imóvel,acabeçapendendoparabaixo.Serena,emseusonotranquilo.

“Jamie,vocênãopresta!”–elahaviagritadocomigoaquelavez,quandocriança—Meninomalvado!ABestavaivirbuscarvocê!”

Eassim,mearrastouatéovelhoarmário,nofundodoporãoescuro.Metrancou ládentro, rindodomeudesespero,echaveouaporta.Desesperado,com falta de ar, assimmesmoa senhora ria daminha agonia e não abriu aporta. Me assustava ainda mais, contando histórias sobre a Besta, quearrancavaosolhosdascriançasmalvadas.Sesatisfaziaemaumentaromeupavor.

—Mas aBesta não vaime pegar,mamãe!— gritei—Eu quem vouacertarela!—Vouesmagarsuacabeçaeofocinhocomomartelo!

Ouvi ao longe o barulho de um carro chegando. Estava passando peloportãodafazenda.Oroncodomotorseaproximavaelogoestacionouaoladodaárvore.ABestaestavaatenta.Pegariaquemquerquesaíssedele.

Osuorfrioescorrianomeurostoenaminhanuca,grudandoacamisanomeucorpo.Euofegavasegurandoomartelo,sentindoosnósdosmeusdedosdoerem.

“ABestavaicomerosmeninosmaus,quemaltratamosanimais!”–diziamamãe, enquanto juntavaos pedaçosdo coelho espalhadosno celeiro.Masela nunca me deixou ter amigos ou brincar com as crianças das fazendasvizinhas.

—Anne!Venhadepressa!–gritoumeupai,ouviaseuspassoscorrendoláfora.—Elesjáestãochegando!

Corri até a janela nesse momento, e vi através da vidraça Ela seaproximando.Sedenta.

Osmeusdedosseguravamfirmeocabodomartelo,meucoraçãobatiadescompassado. Cada passo que eu dava na sala, Ela movimentava outroigual lá fora. Se aproximando, pronta para caçar.A saliva já escorrendonocantodabocarra.

Tinhacertezaqueatacariameupaiantesdeleentrar,eficariaespreitandoatéomomentoqueaportaseabrisse.

Quando a maçaneta girou e a porta abriu lentamente, rangindo suasdobradiçasenferrujadas,meescondinumasombraatrásdela.

—Anne!–eraavozdomeupai,gritandohorrorizado.

Masnãoeraelequemhaviaentrado.

Era aquela criatura bestial. Caminhava sobre as duas pastas traseiras,estalando as tábuas do assoalho. Exalava um cheiro de morte. De carnepútrida..

Parouemfrenteamesa,comopeitoarfando,olhandoparaaminhamãe.

—Oh,JesusCristo!Oquêfizeramcomvocê?

ABesta estava com sangue escorrendonas suas patas, na sua pelagemreluzente.

Mas antes que a criatura concluísse seus pensamentos, saltei do meuesconderijosegurandoomartelo.Urrandocomoumloboenfurecido,golpeeiaBestanasuacabeça,fazendocomquecaíssenochão.

Sentianomeucorpoosefeitosdaadrenalinadescarregadapelasminhasglândulas suprarrenais. Ainda urrando, segurava o martelo ensanguentado,quedeslizavaentreosdedos.

ABestazonzacomoprimeirogolpe, remexia-senoassoalhoenquanto

subisobreela.Cadagolpedesferido,faziaesguicharjatosmornoseviscososde sangue e miolos, nas paredes e na minha roupa, sujando-a ainda mais.Quandomais eu golpeava, mais prazer emmartelar eu tinha. A cabeça daBesta,pareciaumamassadecarne.

De repente, braços me seguraram com firmeza e me puxaram comviolência,fazendocomqueomarteloescapassedasminhasmãosecaindonasoleiradaporta.

Tenteimesafar,masmeussapatosescorregavam,napoçadesanguequeestava formada no chão, banhando-me aindamais naquele lago brilhante evermelho.

Extasiadopormatarmais umabesta, nãoouvi o somdooutroveículoquechegouláfora.

— O senhor e a senhora Freeman estão mortos! – falou um velho eóculosebigode.—Vouchamarapolícia!

Rosnando comoum lobo furioso, tentavame soltar,mas era presonosbraçospordoishomensvestidosdebranco.

—ABestaestáláfora!–gritei.

— Acalme-se, Jamie! – falou o velho – Tudo ficará bem! Você serálevado novamente para o sanatório de onde fugiu! O Sr. Freeman foi nosavisarassimquevocêapareceuaquinafazenda…

— A Besta estava lá fora! – eu tentei falar, mas que diabos, aquelesbranquelos nãome ouviam – Ela entrou… eram duas… e tinha outra, queficavao tempo inteiro…Vigiando!Espreitandoferozmente…Cadavezqueeuchegavanajanela,avianoreflexodavidraça…

Asduas bestas estavammortas na sala.Umadelas sentada na cadeira.Outranoassoalho,imersaemumapoçadesangue.

—AsenhoraFreemantambémfoiatingidapelomartelo!–falouovelho—DeusdoCéu,quehorror!–olhoucomumaexpressãodenojoparamim—Levem-no!

Nomomentoqueoshomensmepuxavam,apertandomeusbraçoscomsuas garras fortes, ouvi o velho falar um palavrão, seguido de um gritosufocado:

—Issoérepugnante!–falouenquantoerguiaacabeçadabestamortanacadeira—Quehouvecomabocadela?

Abriumsorrisodeorelhaaorelha,orgulhosodaminhahumildeproeza.

—Arranqueiasualíngua!EcostureiparaqueelanuncamaischamasseaBesta!!!

Osbrutamontesdebrancomepuxaramcommaisforçaainda.Pareciamestarcommuitaraivademim,poreuterliquidadocomascriaturasbestiais.

Enquantomecarregavam,passeiemfrenteajanela.

ABestaaindaestavalá,ávida.Avipeloreflexodovidro,seguradanosbraçospeloshomensbrancos.

Rosnavaassimcomoeu.Furiosa.

Noreflexodavidraça,minhafisionomiasefundiacomadela.Seuspelosmisturavam-secomminhabarba,nossosolhosnummesmobrilhofaiscanteeinsano. Por instantes pareciam formar uma criatura híbrida. Eu e a Bestaéramosumaúnicapessoa,afinal.

Apesardeosmeusesforçosparamesafar,meenfiaramumacamisadeforça. Pensavam que iam controlar uma besta enfurecida somente assim.Deiteinamacadentrodaambulância.

Osanguenomeucorpoerapegajosoejáestavacomeçandoasecar.Meucorpocheiravaacarneemdecomposição.Asamarrasdacamisadeforçanasminhas costas, eram desconfortáveis. Mas algo ainda me trazia alento àalma…

Era o reflexo de uma besta assassina, imobilizada, rugindo à minhafrente;refletidanosvidrossujoseembaçadosdajaneladaambulância.

FIM

AsGaiolas

Por:CzarMilch

OAutor:

DavidLeite,nascidoecriadoemJandira.

É especialista em Arte e Conceito de Game Design pelo Instituto deArtesdaCalifórniaecertificadoemEscritaTransmídiapelaUniversidadedeMichigan. Participa de antologias e publicações, comoA Arte do Terror eRevistaLiteralivredesde2017.

Contato:E-mail

Conto:

Erasuamissãoacolheraalmadossonhadores.Talvezfosseumanjo,comomuitosonomeavaemsuasoraçõesapedirdescanso,maslhepareciaumrótuloimpróprio.Lembravadashierarquiascelestes,dashostesdequeumavezouviu.Noentanto,noplanoáridoquesolitariamentedominava,jamaisalguémovisitou.Naeternidadeemqueexerciaseuofício,nuncaninguémlheinstruiu.Aindamenosocondecoroucomasas,aureolaevestesníveas,ouqualqueroutroartificioquesugerissealgomaispróximadoqueimaginavaafiguraangélica.Narealidade,sequersereconhecia.Nãoera

capazdedistinguiremsi,formadiáfana,algooualguém,esenãofosseumalatenteconsciênciasequerpoderiaestarsegurodopróprioexistirseu.Noentanto,sabiaquealiestava,sabiaqueexistia,comoalgumaentidadeincorpórea,naqueleplanolímbico.

Sabiatambémdasimagensdosanjos.Poiseraseupapel,ali,estarláparaossonhadoresdoduroplanodarealidade.Ali,exerciaaatividadedevê-losemberçodeilusão.Nesteterrenoobscuroondetudooqueosonhadorviaesentiaenquantodespertotomavaaeloquênciacaóticaonírica.Ele,comoobservadorimpassível,investigavaasformasecoresenomeseestóriasdequementrasseemseusdomínios.Nãopoderiaseconsiderarumprotetor.Nãoguardavaouprotegiaosnãodespertosdenadaquealisurgia.Eraumdeplanodecriaçãoecaos.Nãocaberiaaeleprotege-las.Osonodosjustos,quemuitosfalam,afantasiaprotegidadosbons…Estavaaeternidadealiadesempenharumafunçãoqualquer,maspoderiaafirmarqueesseenredotambémeraumafalácia.Oviverdosonhareraárduoparatodos.Crentes,incréus,bonsemaus.Issoelepodiaafirmar,enadafazer.

Aliás, nada fazia. As janelas por onde vislumbrava o idílio alheioespocavam no ar, por todo o lado. Sem qualquer intervenção sua.Resplandecentes espelhos de molduras nebulosas que surgiam a cadasegundo. Cavidades brilhosas no breu, onde filmes incoerentes eramtransmitidos.

Seupapelalierasimples….Observar.Fezissoporquantotempoquenãopoderiadizer.Conheciaoqueeratempoatravésdossonhadores,masparaeleeraoutracoisadesconhecidacomooanjoquepensouserantes.

Dentrodeseuâmago,então,novainquietaçãosurgia.Oseupapel.Nadafazia.Porpoucosabiaqueexistia.Oquefaziaali,então?Apenasobservava?

Colheuentão,deumadasmontrasdedevaneios,afiguradeumanfitrião.Porta-secomotal,então.Começaasaudarcomumapêndiceimagináriotodosonhar que surge. Tenta recebe-los com toda a etiqueta e maneirismos dobom anfitrião, tal como observara nas imagens dos bons sonho, onde

banquetesefestejoseramapreciados.

Nãopareceufuncionar.Suapresençanãopareciasernotadapornenhumdosdivagantes,tampoucoseriaamudançadeatitudescomele.

Frustra-seporummomento, recostaoque imaginavaserseucorpoemum dos espelhos oníricos e sente, por um momento, penetra-lo. Observanovamenteepercebequeperturbavaalioencaminhardacena.Aorecostarnoespelho, dentro do cenário, cai de sobre uma cômoda o vaso de flores queinadvertidamentetocou.Oprotagonistadosonhodespertacomoquebrardovidro,entãosegueosonhoporoutrorumo,talvez…

Percebeu então, depois do indefinido tempo que ali estava, que podiaatravésdaquelajanelaprojetarsuapresençaetransformaraquiloquevia,pelomenos um pouco, em novos enredos… Um sutil empurrar, uma mudançapequenadeobjetopróximo,qualquerrecatadaatitudesuapodiatornaraquelesonhoumpoucodiferente.

Brincou com isso por um tempo. Empurrava vasos, trocava itens delugar, acionava equipamentos e o sonhador sempre parecia surpreso comaquilo.Fezopapeldepoltergeistatéentediar-sedeleevoltarparaaposiçãoinicial.

Retornandoaoócioanterior,novasdúvidassurgemsobresuacabeça.Elenão podia sonhar. Sequer podia dormir e, caso dormisse, sonharia o que,exatamente?Naquelelimboemquevivia,inerte,vazio,nãohaviaexperiênciaquepudessecomporsuaprópriaobranossonhos.Apenasopassivoolhardosonhoalheioerainsuficiente.Erapoucavida,minguadademaisparaserfontedealgomelhordoquejáviualiemtodososespelhos.

Tenta entrar novamente em um dos espelhos.Dessa vez, atravessa porcompletosuapresençaparaopequenoquartoondeosonhosedesenrolava.Deitadonacama,osonhadorsonhavaquedormia.Tantasaventuras,mundoseexuberâncianossonhosdeoutros,estepareceque tinhaenormes reservasem algo extravagante. O pequeno aposento que ocupava era mofado, deprecáriascondições.Poucaedesgastadamobília.Osonhador,então,pareceu

sentirquealguémocupavaoquartocomele.Descobrindoacabeça,observa,aluzdavelanacômodaapresençaestranha.Atônito.

Ele,apresençasemnome,seespantaaoperceberqueosonhadorovia.Umespelhoquebradojogadonocantodaparedeentãorevelaàpresençaalgoinédito.Eraeleumasímiledosonhador.Idêntico.

Osonhadorameaçagritar,massuavoznãosai,comoemtodopesadelo

Apresença,aindacontemplandoofatodetertomadocorpoeexistiraoatravessar,olhaparaasprópriasmãos.Cerraospunhos,etocaaprópriaface,fascinado. Por longosminutos encara-se no espelho quebrado,movendo osmúsculosdafaceemtodosasfeiçõesqueantesvira.

O sonhador, dono original daquela forma confiscada, levanta-seabruptamente.Tentabuscarcomasmãoporalgoparasedefender.Nãohavianada próximo a ele que pudesse servir de arma. O transe da presença sequebra com a movimentação. Olha para o sonhador. O que faria agora?Estavadentrodosonhodeumvisitantedeseusreinos,etomou,porincomumocasião,apeledeste.Não“simplesmenteexistia”agora.Haviaalgodevivocrepitandoemsuaessência.

Assustado cada vez mais, sem conseguir soltar nota da garganta paragritar,osonhadorseencolhenaparede.Apresença,então,deciderápido.Iriaalimentaraquelesoprodevidadentrodesi.Tomariaaquelavida.

Nummovimento agora de mãos formadas, constrói no ar uma grandegaioladourada.Mesmocomabatalhadosonhador,conseguearrasta-loparadentrodelacomfacilidade.Aerguecomoumaplumae,mirandoooutroladodo espelho pelo qual viu anteriormente aquele ingênuo sonho.Arremessa agaiola,queprespassouoportalevagouparaolimboondeanteseleestava.

Agoraeleeraosonhador.E,emmomentos,odespertoparaomundo.

Um apagar repentino de luzes….um estampido…e ele despertasobressaltado.

Estavaacordado,então.

Nomesmoquartodosonho.Nadamudou.Ocubículoestreitoepobre.Sentia com mais firmeza o acolchoado em que estava deitado. Olhanovamente para as mãos. Ao aperta-las, um fluxo de sangue é sensívelsubindopelosbraçosatéopunho.Sentiaseucorpo.Sentiavida.

Levantou-se com entusiasmo. Aproveitaria agora para sentir obanquetearvivo,aexuberânciaqueviapovoandoossonhos,ossentimentosplenoseconfortáveisquetantooencantavamnopensamentoalheio.

Abreaportadetapumedoaposento,quedavaparaumcorredorlongo,tambémruinoso,comdezenasdeoutrasportascastigadascomoasua.

Nãopareciaemnadaoscenáriossuntuososqueviu.

Passosnocorredormaliluminadochamamsuaatenção.

—Eae,Carlos.Comovai,amizade?

Umhomemsemcamisa, repletode tatuagensno corpo, saúda ele comcertoescárnionavoz.

—Voubem.Obrigado.–Ele responde,emdúvidadecomodeveriaseportar.

— Então, né, truta? – Continua o homem – Três meses de aluguelvencido,certo?

Aluguel?Nãoentendiabemoqueera isso. Jamaisviualguém,emseuconforto,colocaressenomedentrodeseussonhos.

—Eunão….–Hesitaemresponder

—Émuitodinheiroquetudeveparamim,chapa…

Dinheiro?Procuranosbolsosporalgoparecido.Viadinheiroemsonhos,montes emontes.Nobolso, apenasumanota amassada comonumeral2 ealgumasmoedas.

Ofertaparaohomemmal-humoradooqueapanhoucomprontidão

Ohomemjogaopescoçoparatráscomumagargalhadaindignada.

—HAHAHA….vctátirandoumacomminhacara,seupalhaço?

Comoohomempareciacadavezmaishostil,eledecidequedeveriaagirde algum modo. Defender aquela vida que acabou de tomar. Decide quedeveria ataca-lo com a firmeza que tinha agora. Subjuga-lo como muitossonhadoresohaviamdemonstradoemseusvitoriososeheroicosidílios.

Comopunhocerrado,numfrenesiparasedefender,desfereumdiretonafacedohomem.Ogolpefoiomaisviolentoquepodedar,masaquelafacedepedra,jácastigadadohomem,apenassofreumespasmoeumcortenolábio.

—AGORA TU PASSOUDOS LIMITES,MANÉ! – Berra o homemtatuado.

Elesenteosanguedescerparasuaspernas.Repentinamente,ocalafrio,medo, desespero se irmanamdentro de sua cabeça.Estava não num sonho,masnumpesadelo.Ocorpoentãorespondeporeleesepõeemcorrida.

O homem tatuado o persegue. Pelos corredores fétidos e cheios deumidade.Algunsquartosabertosrevelavampessoascastigadas,usandotodotipodedrogas,vendoaconfusãoqueseformou,enquantoemoutrosalgumaspessoas humildes batiam a porta para se protegerem do caos. Como nossopores tortuososdosentorpecidosqueentravamemseureinodeantes,eraisso que ele sentia enquanto cortava os corredores labirínticos do edifício,desciaescadasempulo,aindasendoperseguidopelohomemtatuado.

Aosaltarumlancedeescadasdestruídas,dádefrenteparaumtapumeimpedindo nova decida. Num beco sem saída, desesperado, tenta chutar otapumeparaabrircaminho,semsucesso.Ohomemtatuadodesceasescadascalmamenteentão,enquantopuxaumafacadobolso.

—Ora,passarinhoquervoarparaonde?–diz,comdesdém–EssaaquiéMINHAgaiola,Carlos….

Eleserecostanotapume,emdesespero.Ohomemtatuadoseaproximavagarosamente,prontoaataca-lo.

Umaexplosão,então.

Algunsandaresacima,faztremeroedifícioarruinadointeiro.

Oincêndiosealastrarapidamente.Aquedadosescombroséaindamaisrápida. Ele, o homem tatuado, os outros residentes, todos presos naquelagaiola,quesedesfazia.

Emoutro lugar,navastidão inertedo limbo,outragaiolasedesfazia,eespelhosdemoldurasnebulosassurgiameevanesciam.Apresença,libertada,sequersereconhecia,excetopelasuaconsciênciadeexistir…

FIM

AveMestreLúcifer

Por:CarlosH.F.Gomes

OAutor:

CarlosH.F.GomesédeSãoPaulo.FoibicampeãodoDTRL-DesafiodeTerror Rascunhos Literários, é organizador do Projeto A Arte do Terror,participadasantologiasSociedadedosPoetasVivoseOMundoFantásticodeR.F.LucchettiedoromancecoletivoRioVermelho.

Contato:E-mail

Conto:

“Naclareiraentreasárvores

Aluacheiabrilhanaescuridão

Euouçocadavezmaisaltoocanto

Eugritoolouvor

AveMestreLúcifer”

Besatt

FoinoshowdoBesattquevisuacarantonhapelaprimeiravez.

“Possuído”, acho que em norueguês ou suíço; sei lá se existem essesidiomas.Besattéumabandadeblackmetal,comseuvisualcheiodecouroearrebites, dando agressividade à presença de cada membro, além damaquiagem corpse paint, ou pintura de cadáver, deixando-os com cara de“coisaruim”.

A energia emanada dessamúsica sólida e rápida é a que faz aminhacabeça.Nemmeinteressaseoblackmetal temcomotemáticaosatanismo,ocultismo,anticristianismoeessascoisasdegentedescontente.Nãoentendoinglêseasbandasquesemetemacantaremportuguêsnãodáparaentenderaletra,entãoéosom,opoderdostrítonosafinadosem440hzquefazemessamúsicaímparmeseduzirtanto.

TrítonoéaquelacombinaçãodenotasquedeixamamúsicatensaequefoiproibidopelaIgrejaCatólicanaIdadeMédia,quedenominouofenômenode “Diabolous in Musica”. Para tentar te explicar, vou citar um exemplobobo:imagineumacantigadeninar,agoraimaginequenofinalapareçaumsomquenãocombinacomamelodia,tipoumpããããããããããrouco,queduresótrês segundos e que nesse ínfimo tempo, que custa a passar, você fica namaiorafliçãoquerendoqueaquiloacabeimediatamente.

Étãosinistroessetrítonoqueeleéointervalodetrêstonsinteirosentreduas notas.A conta é assim: temos as notas dó, ré,mi, fá, sol, lá e si; porexemplo,sevocêtocaraomesmotempoasnotasfáesi, teráumtrítono.Aequaçãoéaseguinte:danotafáàsol,temosumtom;desolàlá,maisum;edeláàsi,oterceiro,oqueéigualatrêstons.Entãovocêtocaduasnotascomumintervalodetrêstonsentreelas.Issoéum“DiabolousinMusica”.

Para complicar ainda mais, tem um tal de experimento cimático quemostra a diferença entre instrumentos afinados em 432hz, frequência quedizemseradavida,edepoisem440hz,que,dizem,causaumacertaagitação,todosemlá,anotaperfeita.Oexperimentoconsisteemobservaravibraçãocausadaporuminstrumentoafinadoem432hzedepois,em440hz,emuma

folha quadrada de metal, com uma certa quantidade de grãos de areia emcima.Oprimeiro fazcomqueaareia formedesenhoscalmos,baseadosemcírculos, e o segundo faz a areia ficar inquieta, gerando desenhos maiscomplexos, semelhantes aosmandalas, com ângulos retos. Tem uns vídeosmuitoloucosnoyoutube;pareceatémontagem.

Poisbem,essesvaloresde432hze440hz referem-seàquantidadedevezes que a nota vibra por segundo. Ouvidos comuns não identificam taldiferença, jáosouvidosdivinosdizemqueelaégrande.Eacoisacontinuasinistra: há uma lendaquediz queoMinistro daPropagandaNazista na 2ªGuerraMundialdecretouquesemudasseessevalordeafinaçãopara440hzporque as músicas nessa frequência causavam insegurança nas pessoas eoutas sensações do mesmo naipe e a lenda segue dizendo que a regraespalhou-sepelaEuropadaépoca.Boa ideia,não.Sónão ficouclarocomomediam esse valor, quais os instrumentos de precisão eram usados naquelepassado remoto. Fato é que o ISO, órgão oficial que atualmente definepadrõesparaomundo,padronizouafrequênciadeafinaçãodeinstrumentosecoisasrelacionadasem440hzeissonãofaztantotempoassim.

Então,voltandoaoassuntodoshowdoBesatt…

AbandatocavaasmúsicasdonovoCD,“Ninesins”,alédeoutrasmaisantigas, e no meio daquela puta sonzeira, todo mundo batendo cabeça,começaamúsica“AveMasterLucifer”quetemumapegadabemparticular.Noriff do início, é como se a guitarra cantasse “AveMasterLucifer”, e aí,meuamigo,vocênãoconsegueficarparado.Éinevitávelacaradefúria,àsvezesababavoadescontroladaporentreosdentesserrados.

Essa ordemperfeita dentro do caótico, que parece fácil de fazer, nemprecisa saber tocar, como dizem alguns pobres de musicalidade refinada,enfim,essaordemnocaostrazàtonaumritmomentalecorporalsemelhanteà fúria primitiva que aprendemos a segurar e lidar. O que a diferencia do“errado” é que ela é boa de sentir, é elétrica, veloz,mas não destrutiva. Éprimalelibertadoraparaumtempomodernoeaprisionador.

Écomosevocêfosseaquelachapadeferro,doexperimentocimático,comaareiaemcima,sentindoavibraçãodemilhõesdetrítonosafinadosem440hz, bagunçando toda a areia, entortando a chapa de ferro É uma forçainteriormente motivada, em resposta a uma força exterior, propagando umguturalquefazagargantaarder.

Voltemosàmúsica“AveMasterLucifer”,porquenomomentodorefrãoapareceuumefeitoespecialmuitofoda!

Umaescuridãofoicomendoopalcoesumiu;esquisitoumaescuridãosumir, já que é ela quem faz sumir. Aí as luzes piscaram muito rápido,embaralhandomesus sentidos,masvi na frentedabateria a imagemdeumdemônioselevantandocomasasaspontudasabertas,demembranasfinaseasquerosas, que coava as rajadas de luz, queixo de bode e cabelo escuro eseboso grudado na testa. Acho que era preto fosco, com as pernas finas eesquisitas,comoasdeumbode.Fuiàloucura,mostreiparaquemestavaaomeulado,masninguémviu.

Essamúsicanãotemsolodeguitarra,mastemumaparteinstrumental,como no começo, em que as guitarras “cantam” o refrão e logo entra ovocalista dando seus guturais poderosos, cantado de verdade. Foi naquelemomento que senti o cheiro de chorume como se estivesse dentro domeunariz.Ninguémmaissentiu.Ninguémmaisviuaqueleefeitoespecialbemnamossafrente,comosolhosparadosnacaradehomem-bode,semchifres,ocabeloensebadogrudadonacara.

Acabadooshow,aeletricidadevoltouaosníveissocialmenteaceitáveise a segunda-feira chegou. O homem-bode-demônio começou a aparecer edesrespeitaraspessoasqueeumaisprezo:aprimeiravitimafoiminhachefe.Elamechamouparapassarumtrabalhochato,comotodosossãoparamim.Uma escuridão, como a do show, engoliu sua mesa, indo embora comochegoueobode-homem-demôniofezsuaaparição,juntocomseucheirodechorume,quesóeusentia.Abestacomeçoua“come-la”comseusolhosdebode e a cheirá-la como se fosseumacabradisponível.Elanãooviu,maspenso que sentiu, porque parecia incomodada e semexiamuito na cadeira.

Foiquandoodesgraçadoenfiouacarantonhaquasedentrododiscretodecotedelaecomeçouafungar,farejando.

Emcasa o bode-demônio-homemdesrespeitou a vóLuíza, coçando opintopodredebodena frentedela.Peguei avassourae fuiparacimadele,batendocomforça,noque,paraavóLuíza,eraoar.Resultado:acoitadinhaligouparaminhatiapedindo“pelamordideus”quefossebusca-la.

A próxima pessoa a ser insultada foi minha namorada. A criaturaasquerosa, exalando seu miasma de caminhão de lixo, curvou suas asasnojentas, com membranas de pele de filhote de rato, em torno dela e fezruídosdecópula.Mireiondedeveriaseracabeçadehomem-bodeedesciaporrada. Saldo: ex-namorada de olho roxo e a notícia se espalhou rápido,muitorápido,e láse foramosamigos, inclusiveosqueestavamcomigonoshow.

Antesqueperdesseoemprego,pediparatirarumasfériasatrasadas.Achefianãohesitou,porcausadomeucomportamento inquieto,estranho,atéde dar medo, e assinou logo o meu requerimento. Então eu poderia mededicar a descobrir o que estava acontecendo, quem era aquele demônio-homem-bode,donodaescuridãoefedidopracaralho.

MeuamigoSilvio,preocupadocomasnotícias, foimevisitar.Elemeouviu com atenção, balançando a cabeça sem parar em sinal afirmativo,coçandoonarizcercadedezvezesacadaoitosegundosetomavasuacervejacomfleumabovina.Sealguémpoderiameentender,eraele,ocaraquemecolocounessedivinoinfernodomundodoheavymetal.

Mas aí o filho da puta do bode-demônio-homemmijou na cerveja domeumelhoramigo.Antesqueelelevasseocopoaosbeiços,dei-lheumtapanamãoeocopoespatifou-senochão,pegueiagarrafapelogargalo,quebrei-anabeiradadamesaefuiparacimadainfernalaparição.OSilviopuloudacadeira, como um ninja, afastou-se e ficou só olhando e coçando o nariz.Depoisdepôrabaixoquasetodaacozinha,semacertarumavezsequeromeualvo,conformei-medequeeraumalutavãecaíemdesespero,sensaçãode

impotênciaeaafliçãodeserumaameaçaparaquemrespeito.

Acordei lá pelo meio dia ou mais e o Silvio não tinha ido embora.Insistiuqueeucomessealgumacoisa,masnãodava,estavasemfome,eumasofridavergonhaquemeimpediadeolharnasuacara,alémdoreceiodequeaquele bicho o desrespeitasse mais uma vez, ou pior, que eu acabasse pordesrespeitá-lo.Enquantotentavacomer,olhavaemtornoacozinhadestruídae refleti que aquela descarga todame deixou tão exausto que até conseguidormir,coisaquenãofaziahaviadias.

OSilvioéumapessoasensata,masoqueelemedissefez-memudardeopinião Segundo ele o que estava me causando aquela “alucinação” era oblack metal que eu insistia em ouvir, ignorando estilos mais elevados doheavymetal,comoasbandasmelódicas,oheavytradicionaleatéohardrock.Teve até a “brilhante” ideia de insistir que eu ouvisse um rockprogressivotipoJourney,Asia,Styxx,Bostoneessasbostasqueparecemtodas iguais.Éclaro que não segui suas recomendações e assim que ele se foi, comecei ainvestigaroquepoderiaseraquelaaparição.

Procureina internet ecoisa ridícula, sempénemcabeça,éoquenãofalta naquele mundo. Fiquei pelo menos umas dez horas na frente docomputador,aténãoaguentarmais,enãoencontreinadaqueseassemelhasseaobode-homem-demônio.Nãodesistidoblackmetal, recusava-meaaceitarquetivessealgumarelaçãocomaquelabestaefoiemmeioaosompoderosodoblack metal do grande Bathory que respirei fundo, abri uma cerveja erelaxeipelaprimeiravezdesdeaquelediadoshow.AcabouoladoAdodiscoe quando fui virá-lo, aquela escuridão chegou engolindo o toca-discos e ocheirodechorumeenvolveu-meemumaatmosferararefeita.Decidiignorarachegada do bode-demônio-homeme, no escuromesmo, comcalma, virei odisco,fuisentarnapoltrona,mesmosemenxergarnada,afinalconheçoacasadesdequenasci,etateandopelamesinhadotelefoneencontreiminhadivinacervejatrincandodegelada.Fecheiosolhosedeiumagoladarefrescante.

Aoabri-los,obichofeioestavanaminhafrente.

Reparei melhor nos detalhes: temmais oumenos um e cinquenta dealtura,emboraasasaspareçammaisaltasqueele,sãoescuras, rasgadasemvárioslugares, talvezpormordidasouunhadas, talvezportiros,parecemdemorcegoedobram-secomoumguardachuvaeasmembranasparecempelede filhote de rato, com pelo ralo e ensebado. As pernas de bode parecemfracasemancas,maságeiscomoasdeumvelhopedófilo,entreelasestáopintocomaparênciadenecrosado,pequenoparaumbodeouparaumhomeme para um demônio, uma piada. Até então eu não havia reparado no rabo,quebradonomeioepeladoemváriaspartes,comoseacometidodesarna.Umdemônio raquíticoquemostravaascostelasà flordapeleeabarrigaquaseinexistentedetãoafundadaqueera,cheiadecicatrizes.

Suacaraeramuitoescrota:homem-bode,bode-homem,meio-a-meio,apele commatizesdeumpreto fosco, semchifres.Seos tivesse, dariamaiscredibilidade, seria capazdeamedrontar, impor respeito.Caso sérioos seusolhosparados,debode,dandoaimpressãoirritantedequemnãoseimporta.Aí a cara vai se afunilando até chegar ao queixo fino, com uma barbichapreta, falha, suja e despenteada, as orelhas são humanas e pequenas, comtufosdepelonegrosaindoporelas,onarizquasequeafundadonacara,comnarinas largas, tambémcheiasde tufosdepelosnojentosescapando.Eparacompletarafeiura,temoscabelosmuitopretos,grossos,ensebados,grudadosna testa, até um pouco compridos, cheio de pontas e bagunçado. A maiordecepçãoficaporcontadaausênciadechifres.

Ele me olhava com seus olhos caprinos, coçando o pinto podre. Derepenteaasadireitadeuumtrancocomosefosseabrirevoltouàposiçãoderepouso,comonumtiquenervoso.Acervejageladinhadesceurefrescanteenosolhamoscomodesprezoquenoseramerecido.

—Queporradebichoévocê?

Lembrei-medafamigeradadeepweb,ovelhooestedainternet,aterravirtual sem lei. Sorri para o bode-homem-demônio e, sem esperar umarecíproca,pegueiummontedepacotesdebatatafritanoarmário,outromontedecerveja,coloquei-asemumbaldecheiodegeloeáguageladaevolteipara

ocomputador.Deiumapasseadapelasordidezdaquelemundo,acheialgumascoisas parecidas com o que queria, mas nada que fizesse referência àcarantonha escrota de bode-homem sem chifres. Fiz perguntas em algunsfórunspequenoserecebimuitasrespostas;nenhumarelevante.

Entreiemoutrofórumdediscussõesquemepareceumaisdoramodoocultismodeverdadeepergunteisobrea imagemdohomem-demônio-bodequeestavaaomeulado,coçandoocadáverdeseupintoefazendobarulhodeguarda chuva por causa do tique nervoso da asa direita. Recebi umatempestade de respostas, nenhuma satisfatória, embora parecessem maisembasadas, mas mada que me indicasse um caminho. O dia já haviaamanhecidofaziatempoeeuaindaestavanafrentedocomputadore,éfoda,mas comecei a ficar com uma certa pena daquela besta. Estava esgotado eprecisavadormir,fuimeequilibrandoatéacamaeeleficouolhandoparaomonitoreseutiquenervosofazendobarulho.

Tive a impressão de ter dormido por dois dias, acordei com dor decabeça,umputagostoruimnaboca,sentindocheirodechorumeeabexigaexplodindo. Eu já estava me sentindo à vontade com aquele bicho feio apontode falar comele,mesmo semobter resposta, nem ligavamaisparaoimpregnado odor de aterro sanitário. Lembrei-me do Besatt tocando “AveMaster Lucifer”, a escuridão engolindo o palco, as luzes piscando muitorápido e aquele bode-demônio-homem abrindo as asas e se levantando,imponente, um gigante naquele momento. Seria ele o próprio Lúcifer?Balanceiacabeçaemnegativa,sorrindodecantodeboca,achandoengraçadotalpensamentoesdruxulo.

Resolvifazermaisumatentativadeencontraralgonadeepwebeassimqueligueiocomputador,achoquecliqueisemquerernoOutLookqueabriucomonumpassedemágicaume-mail.O remetentemechamoua atenção:besatt@lucifer.hell,semassunto,apenascomumlinkenorme,cheiodeletras,números, pontos, barras, under lines e que me levou a um texto apócrifoescrito emportuguêsnumapágina sem links.Quando terminei de ler, olheiparaasuacaradebode-homemeele,paraaminhacaradeesgotado.

Copioecoloaquiotexto:

“Lúcifereraumanjoderetidãoemsuasações,lutandoparaprotegeracriação mais perfeita do Senhor Deus: o Homem. Seu nome significa“PortadordaLuz”esuaaladapresençatransmitiaesperançaaocoraçãoaflitoe inseguro doHomem em construção. Seus quatro irmãos,Miguel, Rafael,GabrieleoagressivoMetatron,perdiamprestígioentreosimaturoshomensemulherespordestilaremseustraçosdepersonalidadeautoritária,sarcásticaeviolenta sobreospobres seres inferiores.Lúciferestendiaamãoestreladaatodas as pessoas, sem olhar a quem, e em resposta os homens e mulheresevoluíram a outro nível de suas existências, sendo capazes de nutrir umsentimento puro e até divino por ele: gratidão. Os irmãos, liderados porMiguel,solicitaramaoSenhorDeusquerecrutasseoanjoLúciferparaoutrosprojetoseosdeixassemcuidardoaperfeiçoamentoeevoluçãodoimperfeitoHomem; pedido este que foi negado. Os zangados anjos mudaram deestratégiaeLúciferforacaluniadodemodoveementeereiteradoemmeioaoshomens e mulheres, e estes retiraram sua gratidão em relação ao anjoinjustiçado, retrocedendo assim a seu estado anteriormente primal, semqualquerelaboraçãoemseuentender.OSenhorDeus,talvezsobrecarregadoemsuaonipotência,deixouinstruçõesparaaformaçãodeumconselhoentreosanjosdesuaconfiança,osirmãosdeLúcifer,paraquejulgassemocasoetomassemasdivinasprovidênciascabíveis.Surgiunessemomentooconceitode bode expiatório, poisLúcifer fora julgado e sentenciado a ser queimadojuntamente com ummiserável bode, símbolo da imprestabilidade, a fim deque se fizesse patente a sua real valia. O que os algozes sagrados,embriagados por vapores sedutores com fragrância de ira, avareza eestupidez, não se deram ao labor de se lembrarem que um anjo nãomorrequeimadoeumbodenãoé tão imprestávelassim,poissemelenãohaveriacabrae semcabra, eles,osdivinosanjosnãopoderiam tomarbanhode seuleite a fimde paramanterem-se puros.Mas oPortador daLuz, enquanto aestrela Mercúrio brilhava no céu, levantou-se de seu túmulo de cinzasostentandorepugnantesemblantedeanjo-homem-bode,quebrouosfrágeiseinúteischifrescalcinadoseexilou-senosinsondáveisdomíniosdaescuridão.

Desdetalremotaépoca,quasenoinfinitopassado,eleéconhecidocomoumanjocaídonadesgraça,queserebeloucontraadivindadedoSenhorDeusesemeiaaperdiçãonoscoraçõesdoshomensfracosdeinterpretaçãoeforçadevontade, pois atendendo aos seus chamados primevos, Lucifer, envolto emvéubordadoemfiosmaléficosetecidopeloteardesuaprópriadegeneração,surgecavalgandopelaestradadefogodostrêstonseduasnotas,seuhorrendocavaloDiabolousinMusica.”

Encarei-o olho no olho. Perguntei se aquilo era verdade e comoresposta,apenasoespasmodesuaasamaltrapilha.Continueiencarando-odeperto enadaacontecianaquelesolhosparadosdebode.O relógio:marcavatrês horas da madrugada, coloquei a mão no seu ombro ossudo, de pelerepugnante,efaleiparaele:

—Sintomuito…—euestavasendosincero.

O anjo-bode-homem continuou na minha frente com os olhosinexpressivos,assemelhando-seaumagárgula.Seuúnicosinaldevidaeraotiquenervosonaasa.

Aqueleanjocarregavaumahistóriaeexperiênciaderespeito.

Foi então que o ex-Portador da Luz, aquele que desrespeitou minhachefe,avóLuíza,minhanamoradaeomeumelhoramigo,essehomem-anjo-bode-demônio,esseanjo injustiçado,essebodeexpiatório, sumiu imersonaescuridãoqueengoliumeuquarto,levandoconsigoseucheirodechorumeeseusolhosinexpressivos,deixandoparatrásemmeuâmagoasraízesdeumódioveementecontraainjustiça.

FIM

BadTrip

Por:LeonardoDuprates

OAutor:

Leonardo Duprates é escritor de contos de terror e ficção científica.Membro doMaldohorror (Coletivo de Escritores Fantásticos eMalditos) eautordecontospublicadosemantologiasdaseditorasLendari,CoerênciaeAnansiBooks.

Nascido em Sapucaia do Sul (1987), Rio Grande do Sul, é tambémdesenvolvedordesoftware,compositorebaixista.

Contato:E-mail

Conto:

Um clarão quebra a escuridão do quarto seguido pelo estrondo de umtrovãoque faza janeladePVCdoapartamento tremer.Congeloporalgunssegundos, cerroos olhos com força tentando lembrar onde estou, quedia éhoje e quanto tempo estou dormindo? Mas só consigo aumentar a dor decabeça,provavelmenteoresultadodemaisumaressaca.Querolevantar,masnãoconsigomeapoiar,omeubraçodireitoestádormente.Esperaaí!Queméessaguriadeitadaaqui?Pareceumamocreia.Empurroacabeçapara tentar

reanimaromeubraço.Queloucura!Tenhoqueparardeusarácido,obaratoestáindolongedemais.Sentonacamaeficomassageandoobraçomortoatéquecomeçoasentirumformigamentoelentamenteconsigovoltaramexerapontadosdedos.Escutoumavozdehomem.Ficochocado!Amocreianãoéuma mulher. Eu me viro torcendo que seja só um flashback causado pelaalucinação,masavejo,oumelhor,ovejoarrumandoaperucaloiraetocandoosseiosartificiais.Aessaaltura jáconsigocolocarasduasmãosnacabeçaemsinaldedesesperoeperguntoqueméele,ouela,oudiabosqueiraser.Arespostasaisensualeaveludada:—Larissão!

Aperguntaérecíprocaerespondocalmamentecomavozrouca:−Prazer,Bodão!−Para quemnãome conhece, não passo de uma figura excêntrica,soudescendentedeafricanosedevoestarpesandounscentoe trintaquilos.Mevistosócomosmelhoresternosimportadoseomeusapatoestásempreumbrilho,façoquestãodeengraxartodososdiasnapraçadaRuadaPraia.Aosdezoitoanosme torneiumdosmaispromissores trompetistasdePortoAlegre, aos vinte e dois um viciado em álcool, ácido lisérgico e sexo, aosvinte e seis já tinha cometido todas as gafes possíveis e aos trinta anosmetorneiumapersonanongrataemtodososbaresecasasnoturnasdacidade.Oquemerestou?Oempreendedorismo.Inicieimeupróprionegóciofocadoemlogística,souimportadordeselos,especializadonotransportedafronteiradoParaguaiatéPortoAlegre.PeloamordeDeus,nãomedizquetupensouemcartas,correspondênciasecorreios?SeloéocodinomeparaopapelondeémergulhadaesecaasoluçãodeLSD.Baratodoido,meurei!Deiavoltaporcima com os negócios, recuperei todo o meu carisma, voltei para a altasociedade de Porto Alegre e hoje toco nas melhores bandas de blues dacidade.

Mas o meu produto é forte, é puro e ainda vai me matar, vê só essaparadacomaLarissão,fodeu!ConhecielanaavenidaFarraposeaconvenciaentrar de mula em um transporte para Amsterdam, não sou traficanteinternacional,mas tenhoumpresentequepretendoenviarparameumelhoramigo e bluesmanGinga Boy quemora na Holanda há dez anos. Depois

disso ela se encostou por aqui e agora parece que a coisa esquentou.Masvoltamos ao que interessa, o que diabos aconteceu? Fico alguns minutosfalando sozinho tentando reconstruirmeus últimos passos,mas nem sequerseiporondecomeçar.ProcuroaLarissão,quemsabeelalembradetudoemeabrevia a angústia, a encontro no banheiro escovando os dentes, de costasvestindo só uma calcinha de renda roxa atolada na bunda, até que ela éjeitosa.Pressionoodisjuntorenadadeluz,sentonovasosanitárioecomeçoum interrogatório,mas ela também não se recorda de nada e fica viajandocompletamentesequelada.Apobregarotadevepesarunscinquentaquiloseaindaestásobefeitodadroga.TerminooserviçonovasoedespachoopacoteparaoDMAE.Vistoomeupaletóvermelho rubi, colocoamãonobolsoeencontro uma caixa de palitos de fósforos, era do Bar do Chinês. Umflashbackmetrazàtonaumalembrançacurtaeconfusa,umbalcãodevidrorepletodeadesivosdesbotadoscoladosdeformanegligenteumsobreooutro,pegoumcopocompingaeescutoavozdeLarissão,amemóriasedissolveenão vejo mais nada, tudo parecia acontecer no mesmo bar da caixa defósforos.

Desço as escadas e vejo, através das janelas basculantes, o céu bordo,com os contornos das nuvens iluminados pelos relâmpagos. Algo muitosinistro acaba de acontecer, provavelmente um temporal que levou a luzelétricaemborapelobreuqueoprédiointeiroestá.Passopelaportariaenemumavivaalma,nemumúnicoruído,conversaousirene,tenhoasensaçãoquevousairemmeioaumcampocompletamenteisolado,enãoemPortoAlegre.Pisonacalçadae sintomeusapatopretopianoafundaremumbarronegrocomcheirodeestrume.Vermeulindopisantesermergulhadonaquelechorumemetiraapaciência,voltoatatearosbolsoseachoumadosedeunscinquentaecincomicrogramasdeLSD,oselotinhaimpressoafotodaCicciolina,repousoadroganapontadalínguaepressionocontraoseudaboca.Delícia!Emdezsegundosjádourisadadacamadadechocolatesuíçoquelambuzameussapatosdecourocintilante.Olhoparaosladosejáidentificoondeestou,nãoprecisamente,mascertamentenaAvenidaFarrapos,ondemaiseupoderiaestar,sópelaminhacompanhiaepelotipode

acomodaçãoqueeuestavajádeveriaterpercebidoquenãopodiaestarnaPadreChagas.Ocaminhoestádeserto,porondeandaoscafetõeseasgarotasdeprogramadarotaromânticadacidade?Vagopelapenumbraemdireçãoaocentro,nocaminhoficaclaroqueumachuvamuitoforteouumabombanuclearhaviadizimadoacidade,provavelmentetodoshaviammorrido.Alucinoporummomento,oácidoestáqueimandominhamassacinzentaemeuspensamentosestãosemisturandocomafantasia,precisomeconcentrarnarealidade.

NohorizontevejoumaVariantedecorazulbebêvindonacontramão,ocarropiscaaluzdosfaróisfazendoumsinalecontinuaatépararlentamenteaomeulado.Omotoristaseesforçamuitoparagiraramanivelaquedesceovidroparacomeçarumberreiroemespanholgesticulandomuitocomasmãosparaforadoautomóvel.Discordodelecategoricamente,digoqueosCroatonsnão dominaram a República Cisplatina sem antes conhecerem a fúria daarmadaFarroupilha.Voltoacaminhar,naverdadeamarchar,cantandooHinoRioGrandenseemcorocomumamultidãoeufóricaquebalançafitasverdes,amarelasevermelhasnas janelasdos inferninhosdavelhaavenida.Ocarroarrancaferozmentesubindoacalçada,omotoristasaieempurraobancoparafrentefazendosinalparaqueeuentrenobancodepassageiros.Soltoumbufoereluto,enfimnãosouumadamapara receber tantagentilezadeumnobreparaguaio. Outro homem desce do carro vestindo bota, bombacha, guaiacacomumrevólverprata,coleteecamisa,oGaúcho.Nitidamentemaisvelhoeexperientequeooutrohomem,puxaumlençovermelhoeenxugaosuordorosto fazendo sinal para que o homenzinho castelhano me agarre e mecoloqueaforçaparadentrodocarro.

Levantoasmãosacenandominharendiçãoecomclassemeaconchegono banco de couro branco, segurando no puta merda e me limitando aaproveitar a brisa que entra pela janela domotorista. Pelo canto dos olhosobservooGaúchonafrentesentadonobancodepassageiroeomotoristameobservandopelo espelho retrovisor.Eles aguardamansiososque eu inicie aconversa,comoseeudevesseumaexplicação,masnãoseiexatamenteoque

elesqueremsaber.Minhacabeçapareceumtornadogirandoentrearealidadee a fantasia, desordenandomeubomsenso.Oefeitodo ácido está pertodealcançarotetoequandoissoacontecervouencararasétimaefervescência.OGaúcho, velho conhecido, era agente federal de fronteiras no Paraguai efacilitavaaentradadeentorpecentes,atéqueochefedocartelparaguaiocaiuemumaemboscadaefoifuziladopelocartelbrasileiroenquantoatravessavapela Ponte da Amizade. O El Cholo Loco, como era conhecido, sóatravessava a fronteira quando oGaúcho garantia a proteção, nesse dia elevendeuochefedotráficoparaguaioeseexilouemPortoAlegrecomandandooprópriocartel.Eunãosouseuatravessador,masquandoaPolíciaFederalBrasileira aperta o cerco na fronteira acabo tendo que revender parte dobagulho que ele importa paramanter osmeus clientes fidelizados. O carrocontinuaemaltavelocidadepelaescuridão,nãohavianenhumaluzacesanacidadeeissoestimulavaaindamaisaminhaimaginação.OGaúchocomeçaumdiscurso acalorado, umamistura de português e espanhol que confundeminhamentepermitindoqueeuconsigasóentenderemumapartedoqueeledisse:—TegustalasCicciolinaymegustaeldinero.Dondeestalaplata?

FecheiosolhosealembrançadeummotoboydocarteldoGaúchomeentregando uma caixa de pizza repleta de drogas vem a memória, ela sedissolvenovamenteemmeioaumanévoaverdeequandoabroosolhosvejoo Gaúcho se contorcendo no banco da frente. Parece que ele está sendoacometidoporumataqueepilético,massuapelecomeçaacriarbolhasqueexplodemexpondoacarnevivadeseucorpo,osolhosperdemavitalidadeeficamcompletamentebrancosenquantotodososorifíciosexpelemumlíquidocinza, o pobre traficante urra tentando se livrar do cinto de segurança. Euobservo tudo compavor, penso emquebrar ovidroda janelaparapular docarro,masenxergoamesmanévoaverdecadavezmaisdensanarua.Agoratudoestáclaro,eraquestãodetempomesmo,acidadeestavaemmeioaumapocalipse zumbi, provavelmente algum produto químico havia sidodespejado no Guaíba e reagido gerando aquela névoa mortal. Um espíritoheroicotomacontadomeucorpoeolhofixamenteparaaguaiacaprocurandoorevólverquehaviavistoháinstantes,comumgolpecerteiropuxoaarmae

aengatilhodisparandoumtirocontraopescoçodoGaúchozumbi.

Omotorista,quea essaaltura também já tinha se transformado,bate alateral do carro em um poste de concreto e perde o controle, fazendo-odeslizar em círculos pela rua até parar bruscamente. Fico alguns segundosdesorientado, a sequência foi tão alucinante que vomitei todo o interior doautomóvel.Quando retomocompletamente a consciência sintoum impacto,acompanhadodeumestouro,quearremessaocarroparacimacomviolência,opostenoqual batemos acabade cair sobreo capô.A situaçãonão éboa,para sair terei que passar para a frente do carro através do estreito espaçoentreosbancos,missãonadafácilparaquempesacentoe trintaquilos.Meespremoeconsigosairdocarro,mecertificoqueosvidroseasportasestãofechados, não quero que as bestas assassinas saiam facilmente. Retorno acaminhar,masagoranocentroemdireçãoaCidadeBaixa,emalgunsminutosalcançoaavenidaBorgesdeMedeiros,parosoboviadutoparacontemplaravistaevejocentenasdevermesgigantessaindodoesgotoatravésdosbueiros,searrastandopelaavenida.Umarepulsa tomacontadomeucorpo,procurouma solução para acabar com aquelas aberrações e saco o revólver,disparandooscincotirosrestantesno tamborcontraaquelescorposmolesealongados.Obarulhodosdisparadosdispersaaspragasevejoapenasumdosanimais caídomorto no chão. Sinto ter cumprindo comméritosmeu devercívico limpando as ruas daquelas pragas, antesmesmo de inflarmeu peitocomorgulho,umadorintensarasgameucérebro,colocominhasmãossobremeusolhosesfregando-oscomforça.

Adormetrazàtonaparaasuperfíciedarealidadee,confuso,meponhoaolharnovamenteparaavenida,masdestavezsóvejopessoascaídas,feridaseoutrascorrendotentandoseabrigar.Deusmeperdoe,oquefoiqueeufiz?Umamulher se esvaia em sangue sobreomeio fio,minhas alucinaçõesmelevaram longe demais. Um grupo de homens na rua abaixo do viadutoapontamemminhadireçãoejuramaminhamorte,precisofugirdaquiantesquemepeguem.

Semcondiçõesdefugir,afinalsouumhomemobesocomavitalidadede

um velho de setenta anos, corro cambaleando e forçando as entradas dosprédiosembuscadeumabrigo.Aportadeumvelhocasarãoseabrecomopesodomeucorpoecaioparadentrosobreumchãodemármorecinza,fechoa porta com o pé e fico quieto torcendo para que ninguém tenhame vistoentrando. Escuto um grupo caminhar lentamente pela rua aminha procura,maspassameosilêncioaospoucostomacontadolugar.Transtornadocomosmeusatos,resolvoesperar,nacasa,oefeitodoácidopassar.Subolentamenteuma escadaria, evito fazer qualquer ruído, não quero ser descoberto pelosmoradores.Nopatamardaescadaencontroumagrandesala iluminadacomvelas,ochãoédemadeiraenvernizadaeasparedeseotetobranco.Nocentrodasalaumagrandemesaesentadanapontaestáumabelamulherdecabeloslongos e negros, pelemorena, lábios carnudos e o corpo coberto com umabata feita de um fino algodão transparente, através do qual, consigo ver,mesmoadistância,seusbelosseios.

Ficohesitanteemcontinuarequandoresolvodarmeiavoltaeirembora,ela me convida para sentar, sinto meu corpo arrepiar. A voz da mulher ésuave, compenetrante e me seduz imediatamente, quando percebo já estousentado à sua frente.Comamão esquerda ela coloca umbaralho de cartasgrandessobreamesaecomamãodireitaeladesenhanamadeiracorcaféumrisco com um giz branco. Ela corta o baralho começando a embaralhá-loenquanto resmunga uma sequência de palavras que parecem grego ou umalíngua perdida no tempo.Amulher larga as cartas formando um leque, emseguidalevaoindicadoratéoslábiosoumedecendoeretiraaprimeiracarta.É Ftono, deus da cobiça, ela a coloca no início da linha de giz. Algunssegundos se passam enquanto a mulher olha fixamente para a carta.Parecendosatisfeitaelapuxaapróxima,destavezéVênusecomoaanteriorelaarrastaacartaeacoloca juntoa linha.Comosolhos fechados,passaamão sobre o baralho e escolhe a terceira, agora é Ares. Ela puxa a cartavirando-a para eu observá-la e coloca junto às outras. Sobram apenas duascartas, a mulher escolhe a primeira e descarta a outra. Gargalhando, elaarrastaaúltimacartaatéofinaldalinha,masnãovira.Umpavordominaomeucorpoesintoamãodamorterepousaremmeuombro,empurroacadeira

para trás e me viro procurando a saída, mas ela não existe mais. Confusocomeçoaandarpelasalatateandoasparedesmecertificandoquesãoreaisenumatodedesesperocaminhoatéamulherquecontinuagargalhandocomaminha atuação tragicômica. Eume ajoelho e pego em suamão, suplicandoparaquemelibertedaquelaalucinaçãodemoníaca,maselaordena.−Sente-seBartolomeu, vamos descobrir se hoje é seu dia de sorte. O risco brancodesenhadonamesarepresentaodestinoquesópodeserpercorridoumaúnicavez. O que significa que os atos desta vida não têm volta, no dia dojulgamentotodosestarãoláparadeporcontravocê.Vamosveroqueascartasnoscontam–continuou.−Sim,Ftonoodeusdacobiça,vocêpegouoquenão é seu e não devolveu isso traz consequências. Depois temos a minhapreferida−dissetocandonasegundacarta.−AonipotenteVênus,deusadoAmor,sintoluxúria,odesejodacarne,sexoedepravação,vocêébemsafadorapaz.Agora,oimplacávelAres,aguerra,vocêinfligiuoconflitolevadopelacobiçaepeloamorecausouadesgraçaparaaquelesqueconfiaramemvocê,mau muito mau. Chegamos no final da linha, descobriremos agora o seufuturo.−Elalevaasdelicadasmãosatéacartaeagiralargandosobreofinaldalinha,éHades,odeusdamorte.Aúltimalembrançaemergedoabismodaminha mente e se conecta com todos os flashbacks formando uma únicalembrança.Enfim,relembrodetudooqueaconteceu.

NanoiteanteriormarqueiumencontrocomoGaúchonoBardoChinês,aespeluncaeratãomalfrequentadaquenãolevantarianenhumasuspeita.Oobjetivo,fecharumatransaçãodeoitentamilreaisemácido.OGaúchonãovai,masenviaumdosseuscapangasqueentregaopacoteemumacaixadepizza.Deixovintemil adiantandoeo restopagariadepoisdavenda,masacoisavaidemalapior.Começoatomarumtragonobarcomumtravesti,oLarissãoetomamosuma,duasetrêsdozesdeLSD,ficamoscompletamentedoidões dentro do bar e começamos uma baderna até sermos expulsos daespelunca. Seguimos até um inferninho na Farrapos e fechamos a casapromovendoumbacanalregadoaLSD.AdrogaquedeveriamerenderunsduzentosmilsemosencargosdoGaúchosevaicomputasetravestisemumafestaenfeitadacompapelcrepomebalõesbrancos.

−Vejabemrapaz,amortenãosignificaofimdalinhaesimorecomeçoeestánahoradevocêcumpriroseucarma.−Abruxapegaopedaçodegizeespremecomamãootransformandoempóeassopracontraomeurosto,eulevo as mãos na altura da cabeça e fecho os olhos. Um clarão quebra aescuridãoseguidopeloestrondodeumtrovãoquefazolugartremer.Congeloporalgunssegundos,cerroosolhoscomforçatentandolembrarondeestou,que dia é hoje e quanto tempo estou dormindo? Quero levantar, mas nãoconsigomeapoiar,omeubraçodireitoestádormente.

FIM

CarnavaldeSangue

Por:FernandaMiranda

OAutor:

Souaantítesedoparadoxocomperíodosdeinstabilidadeepremissasdeincerteza… Possuo interesse em mitologias e histórias em geral — bemcontadas,ousimplesmentecontadascomalma…

Contato:E-mail

Conto:

Quasemadrugada,Elianacaminhavaporumaestranharuatotalmenteàsescuras.De repente tudo ficouparcialmente claro.Amoça sentiuumventocalmoefrioquelhefezgelarosangue.

Logosentiaquenãoestavasozinha.Começouaouvirpassos,enquantoandava bem próximo a um muro. Olhou para trás e viu um homem quecaminhavanamesmacalçada.

Agarotaestremeceu,entãoparoueencostounomuro.Quandoohomemse aproximou ela prendeu a respiração. Ele passou sem olhar para ela, quesentiu-sealiviada.

Porémoalívioduroupouco.Quandoohomemchegouaofimdaparededetijolosalgoodeteve,comosesaíssedetrásdomuro.Ecomumaenormefoiceodecapitourepentinamente.

Aoveraquelacabeçarolandopelochãoetodoaquelesangue,Elianadeuum agudo grito.Olhou para quem segurava a foice e notou apenas o rostobrancoeopacoaosaircorrendoemdesespero.

LogosuaprimaSabrina tentavaacordá-la,aoverqueElianachoravaegritavadeolhosfechados.

—Sabrina,euvi!Eleperdeuacabeça!

—Calma!Não foi nada. Só um pesadelo!— a outramoça afagava aprima,quepareciaemchoqueaoabrirosolhos.

—Maspareciatãoreal!

Sabrina abraçava Eliana com preocupação. A prima chegara de longeantesdosferiadosdomêsdefevereiro.Nãoapreciavaadata,evieraparaacidadedeinteriornatentativadefugirdetudooqueaquelaépocadoanolhesuscitava.

Naquela manhã de Carnaval, Sabrina preparava o café enquanto suahóspede se sentava à mesa. O rádio ligado na cozinha parava de tocarmarchinhasparainformarumanotíciadeúltimahora—umcorpodecapitadohaviasidoencontradonobairrovizinho.

—Éele!Eutenhocerteza!

—Calma,Eli!Devetersidosócoincidência…

##

Naquelamesmanoitealgunspequenosblocospopularesdesfilavamemvoltadocoretomontadonapraçacentraldobairro.

TobiaeFátimahaviamsedestacadodapequenamultidãoenamoravam

emumcantodeserto,distante.Agarotasentiu incômodoecessouosbeijosquandovianitidamentequeomoçoqueriabemmais.

—Euachomelhorvoltarmos…

—Queéisso,gata!Vamosaproveitarafesta…

— Sim…A que ficou naquela direção! — A jovem, fantasiada comorelhasdegatofeitasdepanonoaltodacabeça,apontavaparaadireçãodeonde o som damúsica ainda podia ser ouvido apesar da distância, e sorrianervosamente.

Orapaz,comacabeçaenfeitadaporchifresdediabofeitosdeplástico,aindatentouforçaramoçaaficardemaneiraabusada,prendendoosbraçosdela.Fátimanãogostounemumpoucoe sedesvencilhouempurrandocomforça…

—Queéisso!?EudisseNÃO!

—Comoassim,gata?Nãomeleveamal…ÉCarnaval!

—Nãotevegraça!Ficaaísozinhocomtuasterceirasintençõeserimasidiotas!

Tobiaaindatentoupuxa-ladevolta,masFátimadeu-lheumfortechutenas partes íntimas e se afastou o mais depressa que pôde, antes que eletentassealcançá-la.

Tentandoseescorarnaparedeomoçofechoucomforçaosolhoseaindacuspiualgunspalavrões,inconformadoegemendodemerecidador.

Quando abriu as pálpebras planejando ir embora viu uma figuraencapuzadabempróximaasi,parada,Assustadoramenteparadaesilenciosa.Comalgoquepareciaumafoiceumtantorealistademaisemumadasmãos.

Não podia ver-lhe a face para saber se era um conhecido. Mas fossequemfossenaquelemomento,Tobianãoestavaparabrincadeirasefranziuocenho.Avozsaiuirritadaesarcástica…

—Quem é você idiota!? Quem você quer assustar com esta fantasia?

Saiadaminhafrente…

Antesqueorapazdissessemaisalgumacoisa,oencapuzadolevantouafoice e deu um golpe certeiro em seu pescoço, fazendo sua cabeça voarmetrosàfrente.

NamesmahoraElianaseencontravanosofá,quaseemtransefrenteaosdesfiles das escolas de samba de sua cidade de origem, transmitidos pelatelevisão.Suamentecontudohaviasedesviadoporalgunsminutos…

EquandoderepenteElisoltouumgrito,aprimaSabrinatremeuinteiraaoseuladoelargouarevistaquelia,tombando-adevidoaoenormesusto…Elianajádesandavaafalarsemparareaindaofegando.

—Eletinhaumroupãoescurocomcapuz…

—Doquevocêestáfalando,Eli?

—Usavaumamáscarabranca…Ematoualguémcomfoice!

—Calma…Vocêestádelirando,Eli…

SabrinaolhouparaaTV.Suspirouecontinuoucomtomdescontraído…

—Olha só! Fica tão ligada nestas alegorias estranhas que dá nisso…VocênãoveioparacáesquecerdequeéCarnaval?Ficaassistindoisso…

—NãotemnadahavercomaTV,Sabrina!Vocêsabebemquenãoétãosimples…Eébemreal!

—Eliana,não!Vocêveiopassarunstemposaquiparadeixar tudoissobemlonge…Acabou!

—Não,Sabrina!Seiquenãoacabou…

##

Enquanto isso César caminhava alerta pelas ruas daquela cidadeaparentementepacata.Opsicólogocriminalchegaraalinaquelemesmodiae

estavahesitante.

Viudelongenumapraçaumapequenamultidãovestidacomfantasiasefestejando. Apenas passou rapidamente, pois nunca fora de apreciar osfestejosdaqueleferiadonacional,aoqualjulgavasemsentido.

Emumadasruasadjacentesumagarotacomorelhasdegatonacabeçaesbarrouneleaopassarcorrendo,dando-lheumbrevesustoeseassustandodevolta.

O psicólogo pensou aborda-la e perguntar-lhe algo, pois achou suaatitudesuspeita.Contudoelalogosemisturouàpequenamultidão,fazendo-odesistir.

Cesárachoumelhornãofazeralarmeparanãocausaropânicocoletivo,ou atémesmo ser novamente visto comopiada.Como fora naquelamesmatardenumadelegacia, ao tentar informar àpolícia localque “amortehaviachegadonaquelacidade”.

##

—Eli,porfavor…Euseiqueédifícil…Masprecisaseguiremfrente!

Eliana cobria o rosto com as mãos e chorava. Sabrina tentava nãoacompanharseuexcessodedrama,paranãoalimentartalatitudequejulgavanociva.Maspassavaumadasmãosnacabeçadaprimaenquantofalavacomfirmeza…

—Eli,oteuirmãoestámorto!Seiquetodaestahistóriadeumassassinonafamíliaébemdifícil,mas…

—Dequeadiantafalarcomvocêqueeleveioatrásdemim…?

—Parecomestechoro!Istosótefazmal!Ninguémpoderiasobreviveràqueleincêndio…

—Não sei como,mas ainda sinto o nosso laço, Sabrina…Ainda vejo

quandoelemata…Comoeusempreviaantes!

—Não!Você só está impressionada…Teve um pesadelo e soube quealgumbandidodecapitoualguém…Sim,éalgohorrível!Masdeve ter sidobrigaportráficodedrogas…

—Não,Sabrina…Eusinto!Euseiqueéele!Estavanooutrobairro…Masjáchegouneste!Elesómatanestaépoca…Nestemalditoferiado!

—Prima,seacalma!Vocêsóestáimpressionada!SabequenãotemnadahavercomoGuilherme!Eleestámorto!Foianotíciadeontem,eadatadamortedele…Jáfazumano…

—Amanhã!Vai fazerumanoamanhã!Eestanoite foinapraçadaquiqueelematou…

—Seacalma…Olha,voufazerumcaféparavocê…

##

Neste momento César apertava a coronha do revólver escondido nacintura,quandoouviuumgritonãomuitolonge…

Apesardesentiromedopecorrertodoocorpo,opsicólogocorreuparaolocal,metros à frente, deixandopara trás a algazarra na praça próximaqueaindaprosseguia.

Ao se aproximar viu um grupo de moças que corriam ao longe,horrorizadas em direção ao final da rua, e contemplou trêmulo omotivo aseuspés…

Poisalijaziaumcorpodecapitadopróximoaumaparede,enomeiofioacabeçacomchifresquenaquelecenárioacentuavamo tomsinistrodacena,mesmosendoapenasumacessório.

Quasesoltouumgritoelemesmo,eengoliuemsecoquandoolhouparaochãoenotoualgoquesedeixavarevelarpelaparcaluzbruxuleantedeum

poste…

Poisnochãodacalçadaaoladodocorposemcabeçaestavaescritocomsangueemletrasgrandes:ELIANA…

Talvezagoraapolícialocallhedessealgumcrédito.

##

Naquela noite Eliana parecia receosa ao tentar adormecer. Preferia ircedoparaacamapoisnãoparavadepensarnosassassinatosenomotivopeloqual ela os vira…Pormais que Sabrina lhe tentasse tranquilizar, ela temiaquealgoacontecesse.

Era aniversário da morte de Guilherme… O assassino. Mesmo sendosangue de seu sangue, era o irmão maldito. Mas com quem possuía umamisteriosa conexão mental desde que nascera. Via ou pressentia desde aprimeiravezqueelematara.

Nãoaguentavaaquilo,masnãohaviadesejadosuamorte…Preferiacrerqueeleeramovidoporalguminstintomecânicoaomatar,comosempreforaparatudodesdeainfância.

OCarnavalforapalcodeseuscrimesporalgunsanosemvida,emesmomorto ele não lhe dava paz… Morto… Estaria mesmo seu irmão morto?Aquela palavra reverberava em sua mente enquanto ela tentava pegar nosono.

##

Sabrinanavegavapeloscanaisdatelevisãocomocontrolenamão,maspareciaquetodosexibiamquaseamesmacoisanaquelesdiasdoano.Aténosnoticiárioseracomosenadaderuimacontecesse…Masacontecia.Eracomose toda falsaalegriaperpetuadanaquelaépocaservisseparaocultar tudode

sinistroquedefatoacontecia.

A prima fora para o quarto e a deixara na sala.Melhor que dormisse,talvez assim esquecesse os traumas de seu sombrio passado.Com todas asluzesdacasaapagadasaanfitriãquasedormiaelamesma,recostadaaosofá.

Derepenteocontrolequasecaiudesuamãoquandosesobressaltoucomumbarulhode alguém forçandoaportada frente.O sangue lhegelounuminstante.Eladesligouatelevisãoecorreuparaacozinhapegandoláumafacagrandeeafiada.

Caminhandopelasalacomcautelasuamãotremianafaca,enquantosemovia cuidadosamente. O coração deu um solavanco quando constatou aportajáaberta.

—Quemestáaí?

Ninguémrespondeu.Apenasoventosoprouadvindodaporta.Oquefezgelarsuaespinha,pelomedo…Quandotentoualcançarasoleiradaentradasentiuumnónagargantaeaspernasbambasaoencararaestranhafiguraquesecolocoudiantedela.

Soltouumgritoaltoetentouusarafacaparasedefender…Masantesdesequer esfaquearo invasor, tal comoamorte empessoa ele ergueua foice.EmsegundosacabeçadeSabrinarolavanotapetedasala.

No mesmo instante Eli acordava chorando, e já sabia o que haviaacontecido. Levantava da cama tentando alcançar o abajur, mas tombou-opelonervosismoeocômodocontinuoumergulhadonaescuridão.

Semnadaenxergarbuscavaalgoparaseapoiar,quandoanítidasensaçãode não estar mais sozinha a fez congelar. Até sua respiração parecia terparado,poisapresençadoirmãolheficaratãopróximaquesentiapodertoca-lonoescuro…Ouviaapenasosomdarespiraçãodelepróxima…

Porém repentinamente a luz invadiu o quarto, e tiros puderam serouvidos… Guilherme, ainda vestido de morte com sua máscara brancainexpressiva,foiatingidonascostasetombouaospésdeEliana.

Cesar adentrou o quarto correndo, enquanto a moça ainda tentavaentenderoque acontecia.Asvozesdospoliciais jápodiamserouvidasportodaacasa,enquantoopsicólogojátentavaconduziramoçapelaporta.Elaoreconheceraimediatamenteesabiaque,comoela,eletambémestavalongedecasaporcausadeGuilherme.

Elianacontemplouumaúltimavezocorpodoirmãodebruçosaoladode sua cama, e lágrimas lhe escorreram. Já no corredor o homem parou-a,antesqueelaprosseguisseemdireçãoàsala…

—Eliana,espere!Háalgoqueémelhorvocênãover…

—Sabrina…Elaestá?

O homem lembrou do corpo feminino decapitado na sala e confirmoucom a cabeça, numa expressão de pesar… Havia achado a casa certaexatamenteporqueosvizinhoshaviamfornecidoosnomesdasduasmoças…Moradoraehóspede…

EnquantoElianarecostou-seàparedeaosprantos,Césarporgarantiadeuoutraespiadaparadentrodoquarto…Oqueeleviuoalarmou.Poisocorpododesgraçado,cujocasooimpressionaratantoaopontodelargarsuacidadenatalparasegui-lo,jánãoestavamaislá…

—Sefoi!Elefugiu!Omalditosefoi!

Cesár sabia estar diante da irmã do “maldito” que mencionava. Masfalava no calor domomento, e aquilo seria o quemenos importava. Pois aúnicacertezarelevanteeraqueemalgumlugarforadaliumafiguravestidademortecontinuavaarondar,paralevaroterroràoutroscarnavais.

FIM

ORelógiodeParede

Por:AnaRosenrot

OAutor:

AnaRosenrotdeJacareí–SP,éescritora,cineastaeativistacultural.JátevetrabalhosexpostosnoConsuladoBrasileirodaSuíçaenoPrincipadodeLiechtenstein,integrouantologiasnacionaiseinternacionaiserecebeuváriosprêmiosliterários.ÉcriadoraeeditoradaRevistaLiteraLivre.

Contato:E-mail

Conto:

As batidas compassadas do relógio amarcar as horas, tão vigorosas econstantes, contrastamcomas demeu coração, que a cadaminuto se tornamaisfraco,alertandoquemeufimserábreve.

Nesta triste e velha cama de hospital, o melancólico relógio que sedestaca negro e acusador na cama à minha frente, infelizmente é a únicacompanhiaquemerestanessestristesinstantesdeagoniaedor.

Abandonadoportodosquefalsamentediziammeamar,medeixeiabaterpelosproblemas,ficandoàmercêdeconflitosedesafiosquepoucoapoucoflagelarammeucorpoeminhaalma.Logo jánãoconseguiamealimentareem menos de um mês meu coração demonstrava indícios de parada

prematura;nãomeimporteidevidoaoenfraquecidoestadodeespíritoemquemeencontravaetambémnãofuicapazdeadmitirquehouvessemetornadoumviciadonojento,nãoconseguiaenxergarmeuestadomentalconfusonemmeucorpocadavérico.

Hoje,largadonessacamadehospital,sintofaltadonadaquedeixeiparatrás,anoseanosdevidainútil,pessimamenteaproveitada;estouagoraprestesa terminar na solidão total de um leito enferrujado; somente as batidas dorelógioacompanhammeusofrimentoevigiammeusonoperturbado.

Ashorasvãopassando,amorteestácadavezmaisperto,possosenti-laemmeusangue;seiquetudoestaráterminadoantesdasdozebadaladaseelajáestáaqui,possovê-lacomoumserpalpável,osoprofrioeasgarrasafiadasdadamadastrevastocandominhascarnes,ofimvazioquetantotemidurantea vida se concretiza e eu estou sozinho, lamentando o triste destino quebusquei para mim mesmo, tantos anos perdidos na desesperada busca pordinheiro,famaepoder.Obtivetudooqueambicioneipassandoporcimadetodosquecruzarammeucaminho,roubando,enganandoesemprementindo;mas de tudo o que consegui, só me restou o suficiente para pagar umtratamentodignodeummendigo;queriatantomecurarparateroutrachance,parapoderfazertudodiferente.

Asbadaladasparecemaumentarseuritmoacadasegundo,ouserámeucoração galopando em direção ao fim?Desesperado grito por socorro,masparecenãoexistirnomundoalguémquepossameouvir,meussentidosestãose tornando lentos, meu cérebro lateja, não consigo respirar, sei que meucorpomiserávelestápartindo.

Sinto um medo sufocante, um aperto no peito e uma dor dilacerante,minhasilusõesseacabamnesteinstantedecompletodesespero,umturbilhãodevisõesbizarrashabitamminhamente,seresnegroscomoanoitegargalhammostrando sangrentos dentes afiados. Eles estão aqui parame levar para aescuridãoeterna,nãoconsigoenxergardireito,somenteaimagemdorelógiode parede permanece, enquanto minha alma está prestes a abandonar suasofridamorada,elesoaalto,assustador,emfunestasbadaladas.

Banhado de suor, com a sensação de morte ainda presente, acordoassustado, estou no meu quarto, o coração aos pulos, minha cabeça estádoendoterrivelmente,meuestômagosereviraemnáuseas,chegoaesquecerquetudofoisomenteumsonhoeficoumbomtempoimóvel,commedodesair da cama, um estranho pavor de estar realmentemorto neste quarto tãoescuro,ondesópossoouvirobadalardorelógio.

Respirofundo,abrobemosolhosepercebendoqueodiaamanhecerajáhá algum tempo, levanto rápido, cambaleando, resolvido a dedicar este etodososdiasquerestamdeminhavidaaefetuarmudançasradicaiseevitaraqualquercustoqueesteterrívelsonho–oupremonição,oupesadelo–possatornar-serealidade,paraminhatotaldesgraça.

Ochatoéqueeuseiqueemnomáximomeiahorajárireidestesonhoridículo e cadavezmais repetitivo, seráque essespesadelos frequentes sãoumaviso?UmefeitodaquelaspílulasquecompreinaColômbia?Não,achoque só preciso de um colchão novo, ou talvez de um relógio de paredesilencioso.

De repentecomeçoamesentirestranho;aindaestou fraco,precisomedeitarmaisumpouco…

Masoqueéisso?Temalguémnaminhacama?

É impossível, eu acabei deme levantar e nem sequer saí do quarto…Estoudelirando,éisso…Vouchegarpertoparavermelhor…

Puxoolençolqueescondeorostodo“invasor”evejoaterrorizadoquequem está na cama sou eu…Os olhos arregalados, a boca aberta…Estoumorto!!Não,nãopodeser!Precisofazeralgumacoisa,chamaralguém,aindanãodevesertardedemais…

MeuDeusquegargalhadaéessa?Quemsãovocês…Mesoltem…Não!!NÃO!NÃAAAO…

FIM

Delírio

Por:CarinaTrubat

OAutor:

CarinaTrubatéprofessoradeinglês,portuguêseliteraturaapaixonadapelomundodasletras.SuasprincipaisinspiraçõessãoEdgarAllanPoe,HPLovecrafteH.GWells.

Contato:E-mail

Conto:

Luana dedilhava seu violino sem realmente senti-lo. Era só umtreinamento para a apresentação da semana que vem. Quando a paixão setornou algo banal? Quando tudo em sua volta parecia não fazer o menorsentidoepassouaserumagrandeobrigação?Vivereraumaobrigação.

Haviaumapressãoemtodososlugares,começandodentrodesimesma,transformando em uma dor insuportável que a derrubava. Ela estavamuitoferida,masestassãoferidasinternas.Feridasnaalmadificilmentecicatrizam.Comopossuirumcorpofísicoíntegroseoseuconteúdoestáempedaços?

Sem muitas surpresas, os demônios que habitavam sua mente aperturbaram mais uma vez. Antes eles só vinham enquanto dormia, então

passou a ficar mais tempo acordada, agora eles passaram a atormenta-lamesmocomosolhosabertos.Seumomentodepazeraumfrasconacabeceirada cama receitadopelo seu psiquiatra que a deixava tão entorpecida, que oquehaviadentrodelanãopodiatortura-la.

Otreinamentoacabaeeladeixaseuviolinonosofáantesdepegarumataçadevinho.Osilênciodacasagritaoqueelanãoquerouvir.Osdegrausdacasa fazem barulho sob seus pés, enquanto segura a taça em umamão e abarradacamisolacomaoutraemdireçãoaoseuquarto.

Lá está o frasco de remédio. Parecia gritar pelo seu nome e prometerbrevesmomentosdepaz.Eratudooqueelaquerianomomento:paz.Deixoutrêscomprimidossaíremdofrasco,otriplodoindicado,eosengoliuseguidosporumadosegenerosadevinho.

Deitadaemseucolchãodeespumavelho,Luanapensouemquãoestavacansadadetudo:detodasasmáscarasqueelaprecisainterpretar,cansadadetentarmontaroquesobroudeumavidadespedaçada.Averdadeeraqueelanãosabiaoquefazernemoquefalarotempotodo,comosetivesseperdidoocontroledetudo.

Aqueimaçãopareciapartirseucorpoemváriospedaços,despertando-a.Aprimeiracoisaqueviufoiumajanelacomovidroquebradoecomcortinasrasgadas.Asemsuavolta estavamdescascando, algumaspartesmanchadasde mofo verde e marrom. Do lado de fora via-se apenas algumas árvorescujososgalhosdavamaimpressãoderostosretorcidosemdor.

Suamenterodopiavagroguepelosremédiosquandopercebeuqueestavasentadaemumacadeiraantiga,compartedoestofadosaindobemdoladodesuacabeçadevidoaumrasgo.Tentouse levantar,maspercebeuqueestavacomambosospésepulsospresosporcintosdecourodefivelasenferrujadas.Sentindo uma náusea repentina, inclinou a cabeça para a frente e vomitouumagosmaescuraefétidaquedeixouumgostoamargonaboca.

Seucorpoconvulsionoueelainclinouacabeçaparaolado,percebendofinalmente o acesso que saía de seu pulso e a conectava a suporte de soro

antigo.Nessesuporte,haviaumfrascodevidrocomumlíquidoescuroquegotejavaparadentrodeseucorpo.

Amente de Luana se esforçava para encontrar algum sentido naquilo.Comoelaparoupresaemumacadeiravelhaemumprédioabandonado?Sesuamemórianãofalhasse,eladeveriaestaremcasa.Aquilotudopareciaumpesadelo, entretanto suaqueimaçãoe tontura eram reaisdemaisparadeixaraquelateoriaemxeque.

Passospreencheramosilênciodaenormesala,seussapatosecoandoportodooambienteepreenchendoocorpodela.

— Vejo que alguém acordou, finalmente – ela escutou uma vozterrivelmentefamiliar,massombriaedistante.

ParadaemumaentradaadireitadaLuanaestavaelamesma.UmaoutraLuana.Umaversãodiferentedesimesma.Haviaumdetalhequelhecausouum arrepio nas costas: Os olhos da outra Luana era dois buracos negros,sangue escorria pelas suas faces enquanto ela sorria inocentemente para aLuanaqueestavaamarrada.

— Você não imagina o quanto eu fico feliz em você ter acordado.Acredite,vocêéaprimeiraquedefatoacorda.Issoéumavançoetanto–dizaOutra,caminhandoemsuadireção.

—Quemévocê?–perguntouLuana.

— Não está vendo meu rosto? Não se reconhece quando se vê –respondeu ela, sarcasticamente — Hmmm, está quase vazio. Isso é muitobom.–comentouela,batendonogotejadordosoro.

—Oqueéissoquevocêcolocouemmim?Oqueeuestoufazendoaqui?–vociferavaasperguntasqueecoavamnoambienteamploevazio.

AOutra a esbofeteou no rosto, deixandomarcas de dedos no rosto deLuana.

— Precisa gritar desse jeito? – respondeu a Outra.— Tudo bem queestamosnomeiodonada,todaviasuavozmeirrita!

—Casonãotenhapercebido,minhacara–LuanatentouusaromesmotomsarcásticodaOutra,fracassando.—Temosamesmavoz.

AOutraLuanadeude ombros e saiu para detrás da cadeira deLuana,ondedeveriahaverumamesa,poisaOutravoltoucomumapranchetaeumacaneta.

— A paciente respondeu bem ao tratamento – dizia ela enquantoescrevia.

—Comoconsegueescreversevocênãotemolhos?–perguntouLuana.

— Seu raciocínio permanece inalterado – diz a Outra, ignorando-a eandandoemsuavolta—Anatomiasfísicaspermanecemsemalteração.

AOutrapostou-seemsuafrenteeapertouodedopolegaremédiocontraasbochechasdeLuana,fazendo-aabriraboca.

— Sem alteração interna – disse ela, depois de escrever — Mesmoapresentando um pouco de émese, a cobaia respondeu bem ao tratamento,sendodevidamenteidentificadaecolocadasobreacompanhamento.

Luanapermaneceuquietaemsuacadeira,observandoenquantoaOutrasorria para a prancheta em suasmãos.Mais umavez ela foi para detrás dacadeira de Luana, com seu sapato alto ecoando sobre a sala. Agoniadatentandoimaginaroqueaconteceriaaseguir,elafitouoambientedestruídoem sua volta.Viu restos demacas viradas e enferrujadas, cadeiras iguais adelaepiores,maisjanelasquebradasealgunsburacosqueeladeduziuseremdearcondicionado.

Outra Luana voltou com uma tesoura em mãos e vestindo luvas deprocedimentocirúrgico.

—Agoravocêseráidentificada–anunciouela.

AOutraajoelhou-senasuafrenteepegouabarradacamisoladeLuana,cortando-aatéocolo,depoisabrindo,expondotodoocorposeminudela,comos seios amostra e sua calcinha preta. A Outra sorriu, em umamistura dedesejoesatisfação,comoseestivesseplanejandofazeralgosexualcomela.

Luanaaencaroucomnojoeraiva.AOutraajoelhou-sedenovoecortouumpedaçograndedacamisoladeLuana,dobrando-oeamarrandonabocadela,impedindoqueLuanaemitissequalquerbarulho.Quandoapertouosuficiente,elapartiumaisumavezparadetrásdacadeira.

Demorou mais uma pequena eternidade até ela voltar com um ferreteescrito“CO10023”.Seusorrisoagoraerasádicoassassino.Luanacomeçouagritar,emitindosonsabafadoscontraamordaça.Lágrimasescorrerampelosos olhos e suor rolava pela testa. Ela debatia-se da melhor forma possívelestandoamarrada.Noentanto,tudoforaemvãoeaOutraLuanaencostouoFerretenabarrigadeLuana,emcimadoumbigo.

Mais lágrimas rolaram sobre a face de Luana enquanto sentia aqueimaçãodeforamisturar-secomaqueimaçãodedentrodoseucorpo.Suavisão ficou turva e seu corpo começou a convulsionar de novo. A OutraLuana praguejou, mas não se moveu, sorrindo e balançando a mãoelegantemente,comoseestivessesedespedindo.Elainclinouacabeçaparaoladoenquantosorriadespretensiosamente.

Luanaacordoucomseucolchãovelhoencharcado,suacamisolaestavagrudadanocorpoesuarespiraçãoesbaforida.Olhouaoredorparatercertezaqueestavadefatoemseuquarto.Tudoparecianomesmolugar,atéofrascode remédios com a taça de vinho ainda com um terço do seu conteúdo.Ajanela apontava os primeiros raios de sol que lutavam para adentrar naescuridãodanoite.

Amulhercolocouamãonatestaesuspiroualiviada,poisaquelemalditopesadelohaviapassado.Levantou-seesentiusuamenterodopiarporalgunsinstantes. Prometeu a si mesma que nunca mais misturaria vinho comremédios enquanto se sentava na cama. Esperou alguns minutos até poderlevantar de novo e ir em direção ao banheiro, arrancando a camisola edeixando-acairnocaminho.

Se ela tivesse seguido rapidamente em direção do chuveiro como decostume,evitandooespelhocompridoqueficavaaoladodapia,elanãoteria

visto.Conquanto,elaparouparavercomoestavaesentiucomosemilharesdequilosaatingissem.

Seucorpopareciaomesmo,omesmocabeloemesmo tomdepeledequando fora dormir, no entanto, ao ver-se no espelho, notou forma demãoquemarcavasuabochecha, járosadaemvezdevermelhas.Nãoobstante,oqueadeixouemestadodechoquefoioqueselocalizavaemsuabarriga.Elatocou levemente sua barriga, sentindo a pele que se recuperava de formairregularumpoucoacimadoumbigo:O“CO10023”estavamarcadoemsuapele,comoumaqueimaduraemprocessofinaldecicatrização.

FIM

EleseAlimentadeSonhos

Por:DiegoMendonça

OAutor:

DiegoMendonça é autor dos contos “O Impostor” publicado no livro“A ARTE DO TERROR – VOLUME 4”. “O Eterno Duelo” e “Fé Cega,Oração Silenciosa”, publicado no livro “A ARTE DO TERROR –HISTÓRIA”.

“O Impostor” foi adaptado para a língua espanhola como “ElImpostor”nolivro“ELARTEDELTERROR–VOLUMEN4”.

Contato:E-mail

Conto:

Era03:54hdamadrugadaeestavaacordado.Tinhapostoodespertadorpara apitar as 8:00h em ponto para ir a uma reunião com o editor do seupróximolivroe,noentanto,serecusavaapregaroolho.Sentiamedo,emborase esforçasse para não transparecer. A esposa dormia ao lado, estavamergulhada no sétimo sono e não queria preocupá-la com pensamentosestranhos.Nãoéporqueevitavaosonoqueaprivariadedormirtambém.

Heitor andou até a cozinha e passou café.Quandopronto, bebeupuro.

Queriaficardesperto,maseradifícil.Nanoiteanteriortinhaficadoacordadoatéas4:00hfugindodosonoe,nanoiteantesdessa,tinhaficadoacordadoatéàs2:30hporqueestavaescrevendoumcontodeterrorsobreomonstroqueoatormentavaaopregarosolhos.Somadasashorasdormidasnosúltimosdoisdias, havia sido cerca de três. E se somadas com a última semana inteira,haviasidosete.Eraoequivalenteaumahorapordia.

Eraumabsurdo.Sim.MaseraissoouencararoDiabo.

Subiuasescadascommaiscaféemumacaneca,evoltouparaoquarto.Pôs a caneca no criado-mudo ao lado da cama e abriu o laptop quando seescorounotravesseironoseuladodacama.

OsonobatiacomooQuasimodobateriao sinodeNotreDame.Olhoupara a esposa e a notou descoberta. Cobriu-a. Ela resmungou. Ele abriu oprocessadordetextoe,emvezdetrabalharnumnovocontodeterror,clicounumapáginabrancaecomeçouadigitarumacartaparaaesposa.

Aline,háuma“coisaestranha”acontecendocomigo,portanto,nãotratecomoalgoleviano,porqueseiquevocêédisso.Seeunãoacordar,significaqueeu sucumbiaoMONSTROquemeatacaquandodurmo.Sequandoeuestiver morto e o legista te disser que tive uma parada cardíaca ou umderrame, pode até ser verdade, mas provavelmente foi porque fui pego eretorcido dentro da minha própria mente. Sim, eu sei, não deve estarentendendonada,masvouexplicarmelhor;foiporissoquedeixeiestacarta.

Eucomeceiaperceberessedemôniohá,talvez,ummêsemeio.Nãoseidizeraocertoquanto tempo,porquequandonão sedormedireito,o tique-taque do relógio parece correr de formadiferente.Às vezes o tempo passadevagar,àsvezespassarápidodemais.Eissonãoétudo,agentecomeçaaouvir coisas estranhas e mesmo a alucinar. Mas sei que “ele” veio pelaprimeiravezdepoisdanoiteemquebebemosvinhoetivemosaquelatransamaravilhosaemquequaseviramosanoitecomodoisadolescentes,coisaquenão fazíamos há anos. É. Você deve se lembrar, disse que queria repetir a

dose, e eu disse que também queria que as coisas fossem boas comoantigamente.Naquelanoitemesentiajovial,hojeestoudevoltaaos48,nãotenhomaisdadisposiçãoquetinhaaos25.Minhascostasdoemeopênisnãoobedecedireito.Ah.Oqueestoudizendo?Écomovocêdiz,“dousempreumjeito de me perder nos assuntos”. Bem, voltando então… acontece que eudorminaquelanoiteeaomesmotemponãodormi.Eraumanoitequente,oslençóisgrudavamnapeleeeulembroquedepoisdetransarmosrevezamosochuveiro. Você foi primeiro e trocamos um beijo quando entrei no box dobanheiro,edepoisquevolteidaminhaducha,jáavidormindo.Aomedeitardoseulado,osonoveioligeiro,masnãoumsonorelaxante.Oquesentifoium aperto no peito, como se tivesse algo em cima de mim. Na vagaconsciênciadequemdorme,penseiseroFumaça,masmesmogatosnãosãoloucos de dormir colados em humanos em dias absurdamente quentes. Averdadeéqueeuestavaacordado,masaindadormia.Eracomoumsonholúcido emque eu via tudo comoum espectador.Eu estava sendo devoradoaos poucos, e tentava gritar, me mover. Mas não conseguia nem mexer omindinho. Entrei em pânico, é claro, quem não entraria? Quando se estátendoumpesadeloesetemconsciênciadisso,oprimeiroinstintoéseforçara acordar. E eu não acordava. Achava que estava me debatendo e, noentanto,nemmemexia.Imaginoqueestarsendooperadoeacordarnomeiodacirurgiaaindaanestesiadodevecausaromesmotipodesensação.Esabequaléessasensação?

Pavor.

Agonia.

Deveestarpensandoquesouloucoagora,nãoé?Nãominta.Euseiquesim,Aline. Sou escritor, felizmenteumque fazbest-sellers, e oque façodemelhor é espionar o comportamento das pessoas para ver quais seriam ostiposdereaçõesque teriamemdeterminadassituações.Asramificaçõesdoqueestápensandoaolerestacartasãopoucas.

1)Ouvocêachaqueestoulouco;2)Ouachaquefaloaverdade;

3)Ouachaqueestoubêbado;

Bêbado eu não sou, raramente bebo, bem você sabe. E você nuncaacreditaemmim.Sobraaopçãodequeachaqueestoulouco.Tudobem,temessedireito.Eudiriaquevocêestarialoucaseestivesseemminhaposição.Infelizmente,meuamor,nãoestou.Queriaestarlouco,porquetudopoderiaserresolvidocomremédioseorientaçãodepsiquiatras.Coisaquefiz,nãovoumentir.

Duassemanasatrás,eraumaquarta-feira,vocêmeperguntouondeeuestava indoeeudisseque tinhaumareuniãocomoeditor,umareuniãodeemergênciaqueeletinhafeitopararesolverumcasodeextraviodelaudasdomeu original que estava para diagramação. Disse que se eles nãoconseguissem recuperar, eu ia ter que reescrever todo o pedaço que haviasumido. Aí então, quando voltei para casa, você perguntou se eu haviaconseguido resolver o problema. Eu respondi que sim, que não era umpedaçomuitogrande.Algo como trêspáginas, coisaque reescrevi nahoraporque me lembrava muito bem da cena em questão. Lembra disso? Poisentão, era mentira. Eu tinha ido ao psiquiatra. Me consultei com o dr.Zorzatoeconteiparaeledomonstroquevinhameatormentandoportodasasnoitesdesdequeoidentifiquei.

––Éparalisiadosono––elemedisseraprontamente.Comoseeufosseumidiotaejamaistivessepensadonapossibilidade.

––Sefosse,eunãoestariaaqui––respondi.––Játiveparalisiadosonoantes,doutor.Esemquererofender,euseidiferenciar.Aparalisiadosonoéumasensaçãoruimeatéparecida,masaindaassimapenasumasensação.Oqueacontececomigonãoéumasensação,éosentir!

Elenãoentendeuoqueeuquisdizer.Eraumidiota.

––Comovocêdescreveriaadiferença?

Eeuorespondidaformamaissinceraquepudepensarnomomento.

–– Sabe diferenciar a punheta do sexo de verdade, não sabe? –– ele

ficaraclaramentechocadocomaresposta,oquemeprovouqueeuestavanacompanhiadeumbaita imbecil.Umpsiquiatraatéondeeusaibanãopodeexternarsurpresa.

––Sim,claro––disseraele,seaprumando.

–– A diferença é essa, doutor. A punheta é como a paralisia do sono,algopassivo;suave,umasensação.Jáoataquedomonstroéosexo.Oativo.Agressividade.Carnenacarne.Otoqueeocalor.Entãooclímax.Nocasodosexooclímaxébom,etenhoaterrívelcertezaqueadomonstro,não.Aindanãootive.Esinceramentedoutor,nãoestouinteressadoemdescobrir.

––Essemonstronãoquertedeixardormir,éisso?

––Naverdade,achoqueeleestámedevorando;sugandominhaenergiaouvitalidade.Meucansaçoefadigapodeserporcausadisso,nãoacha?––Elefizeraummuxoxo.Nãosabiaoquemedizer.Suspirei.––Nãoseimaisoque fazer, doutor. Toda noite quando ponho a cabeça no travesseiro, euexperimentoo inferno.Essacriaturaapareceeéum terror.Quandoacaba,estouchorando.Geralmentenãoconsigodormirdepoisdisso,enaspoucasvezesquesim,durmodeumaaduashorasnomáximo.

––Nãoseiseoquevêéalucinógenoounão,ouseéfrutodeestresse.Comoocasoquedescreveénovoparamim,experimentemoscomeçarcomumaprescriçãodetarjaspretas.Provavelmentevaiajudar.

Então eleme deu uma prescrição de ‘derruba cavalos’ parame fazerdormir.Umapíluladisso,umcomprimidodaqueleoutro,eeranocaute.

Funcionou por um tempo. Consegue imaginar o quão bom é dormirquandosequermuito?Quandomaisnovo, fuiemumafestadeanonovoeestavaumcalordematar.Eutivequeficaracordadoanoite todaeatéumpedaçodatardeporqueestavamuitoquenteeeuestavanacasadeumamigo(quehojeemdiaéfalecido).Tivequepegardoisônibusatéchegaremcasa,equandocheguei,entreidiretonumaducha.Foiumorgasmomental.Foiomelhorbanhodaminhavida.Malmesequeiedepoisdormi.Foibom.Fiqueiumdiainteiroemdescanso,aquilohaviasidomaravilhoso.Deverdade,sim.

Masentão,quandoeutomeiastarjaspretasdodr.Zorzato,osonoveiomuitomelhorqueaquelaveznoréveillon.Eunãopreciseipassarpelolimiarentreo acordado e o dormindo, eu só apagava.É tipo entrar pela janela, sabe?Você não precisa passar pelo capacho da porta. E por causa disso euconsegui enganar o monstro, que, imagino eu, sempre me esperar noalpendredacasa.

Aline,achoqueeledescobriuqueeuentravapelajanela,edesdeentãoestouumcaco.

Masachoque,poreuconseguirburlaropoderdelesobremim,ganheium pouco de liberdade enquanto eleme devorava.Consegui falar com eleumavez.Efoihorrível.

Eudormianessanoiteemespecíficodebarrigaparacima,eeuentreinotranse.Eleapareceu,imenso;duascorcovaspontiagudasnascostasebicoderapinacomdentesocos.Seusolhospendiammortoscomoodeumcadáver,eacauda,comoadeumdragão,casoexistisseumdeverdade.Ocheiroeraodamorte:amargo,sufocante.Aqueleodorqueentranasnarinaseseprendenofundodagarganta.

Ele bicouminha testa, o ponto do terceiro olho, emedrenou, é o quesemprefaz.

Euconseguidizer:

––Mesolte.Medeixeempaz…

Eleparou.Noentanto,riu.

––Vocênãotempoderaqui,humano.Seussonhossãomeus.Suamenteéminha.Tudooquepode fazeréassistir.Echorar, talvez.Masnadamaisqueisso.

Então ele me bicou de novo. Os dentes ocos me drenavam essêncianegra.Nãosangue.

––Porfavor,mesolte!Eunãotefiznada!

Foiaíquevocêfaloucomigo,Aline,resmungandoemsono.

––Oquehouve,Heitor?Dissealgo?

Elecacarejouumarisadaefezqueeraparaeudizerquesim.

––Façaumaperguntaparaela.Nãoadeixesaberqueestouaqui.Ouelaserámeupróximoalvo.

Fizumapergunta,comoelesugeriu.

––Pergunteisevocêestásesentindobem,estavafalandodormindo.

––Ah––vocêdisse.––Estavatendoumpesadelo.Vocêmorria.Erasóumpesadeloidiota.

Você seaconchegouemmimeafastouomonstroumpouco.Eleaindaassimria.

–– Por hoje estou satisfeito. Mas estarei aqui sempre que fechar osolhos.Voumealimentardevocêatéquenadamaisdasuamentesobre.

––Nãovoudeixar––eudisse.Eraumsussurro.

–– E o que vai fazer? Nunca mais dormir? É impossível, humano. Éimpossível.

Porfimsumiu.

Ele se sacia, some, e espera eu dormir de novo para voltar a devorarmeussonhos.PorissoAline,temoporminhavida.Temoquenapróximavezqueeudormir,eunãoacordemais.Eseeunãoacordar,saberáoporquêenão pensará que foi umamera fatalidade. Porque não será. Estou lidandocomastrevaseacreditoquedepoisqueelesecansardemim,elevaiiratévocê.Ecasoelefor,sugiroquetireaprópriavida.Nãovalenemumpoucoapenaenfrentá-lo.Dói;vocênãodorme.Aúnicacoisaquelherestaéesperaramorte;bemcomoestouagora.

Nãotratecomopiada.Tudooquefaleiéverdade.Tudomesmo.

Oque farei agora, é dormir.Estou sendo vencidopela exaustão. Sinto

muito.

Euteamo,Aline.Teamodesdeodiaemquenosconhecemos.Nãohácoisas na Terra que se equiparem aos seus olhos. Seu sorriso não é destemundo,diriaquenãoénemmesmodesseuniverso.Teamoeteamo.TeamodaquiatéMarte.

Repito:“Seeunãoacordar,elemematou.Então,useorevólver.USE-O!

Maisumavez,euteamo.

Muito.

Heitorparoudeescrever,revisouaortografia,ecomissofeito,estalouosnós dos dedos. Já eram 4:59h. Digitou a carta de uma vez só e os olhosardiam.OcaféestavafrioeAlineroncavaaoseulado.Eleolhouparaelaesorriuumpouco,melancólico.

Salvou o arquivo e mandou a impressora trabalhar. Ouviu o som dasfolhas caindo na bandeja do escritório e, com muito custo, forçou-se a selevantarparabuscaracarta.

––É.Entãoéisso––divagou.

Abriu a terceira gaveta debaixo da escrivaninha onde botava o laptopparaescreverseusromancesecontosetiroudeláumrevólver.

Voltou para o quarto e pôs as folhas das cartas em cima do livro decabeceiradela.E,também,orevólver.

Lembrou-se de escrever na carta “USE–O” e o coração gelou. Masestavaquasecaindodeexaustão,queriamuitodormir.

Deuumbeijosuaveemuitocarinhosonabochechadaesposaedepoisvoltouparaoseuladodacama.

Disseparaaescuridão:

––Seeuviverdepoisdessanoite,euvenci.

Ninguémrespondeu.Masacreditouqueeraumaboaaposta.

“USE–O”,selembrou.“Elavaiselevantarnormalmentepelamanhã,lera carta e vai tentar me acordar. Se eu acordar, venci”. Chorou. “Querovencer”.

Entãodormiu,masnãoantesdepensarqueseperdesse,Aline tambémperderia.

FIM

EueOsOutros

Por:AntonioSteguesBatista

OAutor:

Comecei a escrever com 17 anos, primeiramente imitando autoresamericanos e ingleses de romances policial. Com o decorrer dos anos fuiadquirindo estilo e ideias próprias, abordando temas, ou gêneros, comoficção científica, policial, terror/horror e suspense. Sempre procurandoencerrar a história com uma revelação surpreendente, com a intenção dedeixaroleitorimpressionado.

Contato:E-mail

Conto:

INGLATERRA-1831

Meunome éMiltonKarloff.Vou lhes contar aminhahistória, emborafantástica,épuraverdade.

Era inverno quando comecei a trabalhar naquela casa em Millbank,próximodorioTâmisa.Umacasaquepareciamaisumcastelodetãograndee bonita. Dizem que pertenceu a lorde Byron. O novo proprietário recém

estavamorandonelaeprecisavademaisumempregado.

MoreinodistritodeWinchesteretrabalheinumaminadecarvão.Houveumdesmoronamentonamina,causando16mortes.Escapeidemorrerporqueestavapertodasaída.Depoisdatragédiaaminafoifechada.

Sememprego,memudeiparaLondres,ondealugueiumquartinhocomodinheirodaindenização.Saíatodososdiasaprocuradetrabalhoemcasasdecomércio,estábulos,ferrariasetavernas.FoinumatavernaqueconheciTomCavor.Eleestavabebendonobalcãoemeouviupedirempregoaotaverneiro.Disseparaeuiràcasadenúmero77,naFlowersStreet,emMillbank,queláestavamprecisandodeumempregadodoméstico.

Serviçodoméstico,penseicácomigo,éparamulher,masaímelembreique havia outros afazeres para homens numa casa, cortar lenha, cuidar dojardim, limpar o estábulo, consertar o telhado e muitos outros. Assimpensando,mediriginamanhãseguinte,comoTomrecomendou,paraacasade número 77 da Flowers Street. Quando bati na porta, o próprio Tommerecebeu.Eletirouorelógiodobolsoeconsultouashoras.

—Nahoracerta–disse,comaquelacaradepoucosamigos,quepareciasersuaexpressãonatural.ParecequeTomjánasceudaquelejeito!—Issoéumpontoaseufavor.—completou,acabandodeabriraporta.Elemeguiouatravésdeumasalapraticamentevazia,atéumcurtocorredorondeficavaogabinetedopatrão.

Confessoquenuncaviumgabinete tãobonitoe lustrosocomoaquele.Asparedeseram forradascommadeiraenvernizada, tinhaumaestantecomlivros,umamesinhacomumastrolábioeumacaixadecharutos.Foioqueeunotei de relance.Opatrão, estava sentado atrás da escrivaninha demadeiraescura e lavrada. Era jovem, tinha entre 30 e 35 anos, rosto quadrado, dequeixoossudo.Osolhoscastanhoseocabelodamesmacor,lisos,deixavamo rosto sombreado.Não era tão carrancudoquantoTom,mas notava-se umbrilhodeseriedadeecircunspecçãonoolharenalinhalevementecurvadoscantosdaboca.

Fez as perguntas de praxe, onde eumorava, se tinha família, se tinhareferências de trabalho. Falei que era solteiro emostreiminha inscrição demineiroeeleficousatisfeito.ExplicouquemeuserviçoseriaajudarTomnosafazeres da casa, principalmente cuidar duma fornalha e uma caldeira noporão.Afornalhaeraalimentadacomcarvão,oquemedeixousatisfeitoporpodervoltarasentirocheirocaracterísticodaquelemineral.

—Seosenhorquiser,podemorarnacasinhadosfundos,temumacamalá,alémdeprivadaebanheira.Sónãolhepossodaralimentação,eumesmoalmoçoejantonumataverna.

—Euvouaceitarasuaoferta,assim,possoeconomizarnoaluguel.

—Muitobem.Vamostratardosseushonorários.

***

O salário era o dobro do que eu ganhava como mineiro e ainda nãoprecisavapagaraluguel.Nodiaseguinte,leveimeusparcospertencesparaamansão,ouseja,paraacasadosfundos,umaconstruçãodetijoloscomduaspeças,quartoesala.Aentradadoporãoficavalogoemfrente.Eleconsistianum aposento amplo, não do mesmo tamanho da casa, mas espaçoso osuficiente para conter uma fornalha, canos de cobre, um depósito para ocarvão e um armário de ferramentas. A claridade do dia e o ar fresco,entravamporduasjanelaspequenas,umaemcadalado,protegidasporteladearameparaimpediraentradaderatos,gatosemorcegos.Emdiasnublados,eranecessárioacenderlampiões,poisolugarficavamaissombriodoquejáera.Quemnãoestivesseacostumadocomlugares fechadoseapertados,nãoaguentariapermanecermuitotempoali.Comotrabalheinumamina,nãomeincomodeicomoambiente.

Afornalhaesquentavaumacaldeira,deondesaiamtubosdecobrequesubiamparaointeriordamansão.Ovaporquentepassandoporcanosentreasparedes,aqueciaacasanoinverno.Tomexplicouqueovaportambémgeravaenergiaparainstrumentosemáquinasnolaboratóriodopatrão.Acaldeiraeraprovidadeválvulasdesegurança,paraexpulsarapressãoexcessiva,eunão

precisavame preocupar com esse detalhe,mas sim, com o fogo e o calor,tinhaquemanteratemperaturaconstante,sempreentredoisníveis.

NamanhãseguinteacordeicomTommesacudindopeloombro.Tiveumsonotãopesadoquenãoovientrar.

—Searrumeevenhaaopátiomeajudaradescarregaralgunscaixotes.

Vesti a roupa e sai. No pátio estava uma carroça sem cavalo. Os doisanimais comiam feno diante do estábulo e o cocheiro, sentado num banco,tomavaodesjejum.Eledeviaterviajadoanoitetoda.Osolrecémseerguianohorizonteeoarerafrio.

Havia cinco caixotes na carroça, três pequenos e dois grandes. Tompegouumdospequenos,mandoueupegaroutroesegui-lo.Entramosnacasa,pelaportadosfundosesubimosumaescadaatéosótão.Ascaixasmaioreseram mais pesadas e foram necessário nós dois para carrega-las. Depoisdesencaixotamos o conteúdo, aparelhos e instrumentos estranhos, os quais,nãoconseguisaberautilidade.

—Paraqueservemisso?– indaguei.Tommeolhoucontrariado,comosedissesse;issonãoédasuaconta!

—Opatrãoémédicoevaiusaressascoisasemseustrabalhoseésóoquevocêprecisasaber.Opatrãonãogostaqueninguémvenhaaosótão.Elevai fazer experiênciascom ratose coelhos infectadoscomdoençasmortais.Quemnãoestivervacinadopodemorrer.Então,apartirdehojenãoponhaospésdentrodestacasa.Fiqueapenasnoporãoounasuacasaesóentreseopatrãochamar,entendeu?

Fiquei um pouco assustado com a possibilidade de pegar uma doençagrave. Já tinhaouvido falarquealgunscientistas, tentandoencontrar a curapara certas doenças, eles mesmos muitas vezes, adoeciam e morriamcontaminados.Julgueinecessárioobedeceraoavisoeàsregras.

Euqueriatrabalho,umsalário,lugarparadormirealieutinha.Nãomepreocupeicommaisnada,nemcomasatitudesestranhasdosmeuspatrões,

ou com as batidas de Tom à noite na porta de meu quarto, às vezes demadrugada,paratirarfardosdacarroçaeleva-losparaumasaladepesquisasno andar térreo. Outros dias era ajuda-lo a carregar fardos para a carroça,conteúdo que eu não conseguia identificar, mas que exalavammau cheiro,como de coisas podres. Tom dizia que eram animais mortos, que o patrãoutilizavaemsuasexperiências.Elesos jogariaemalgumpântano, longedacidade.

Osdiasforamsepassando.Naquelasduassemanasnãotivefolga.

— O doutor está empenhado em concluir uma pesquisa e precisa dacaldeirafuncionando.—disseTom—Eleestáesgotado,masquercompletaro trabalho. Portanto, quando ele concluir o que está fazendo, vai nos daralgunsdiasdefolga.

Algunsdiassemtrabalhar!Tenteiimaginaroquefaria.Passearnocampo,talvez.Quatrodiasdepois,acordeicomTombatendonaporta.

—Acendaacaldeiraimediatamente!—disseele,numtomdeurgênciaevoltouasumir.Quemsoueuparaficarfazendoperguntasetentarimaginaroporquêdascoisas?Ocalorda fornalhaaindaaqueciaacasa,mesmoassim,fuicumpriraminhaobrigação.Umacargadecarvãodesaboupeloduto,nodepósito. Tom sempre se preocupou em deixar o depósito cheio. Abri oregistrodaáguaparaencherobojo,depoiscoloqueiocarvãona fornalhaeacendiofogo.

Trabalhei até de madrugada. Pouco antes do amanhecer, a campainhatocou. Abri os registros para liberar o vapor. Tirei as luvas, o avental decouro,melaveiefuidormirumpouco.AcordeicomTommesacudindopeloombro.

—Acorda,preguiçoso!Vejaoqueopatrãonosmandou.

Sobreamesahaviapão,queijo,galinhaassada,peixeseco,salameeumagarrafadevinho.Fiqueideverassurpresocomaquelegestodopatrão.

—Éumarecompensapelonossotrabalho.Umesplendidoalmoçopara

recuperarmosaforça,ovigor,depoisdeumanoiteinsone.

Tomcortouopão,umpedaçodesalame,dequeijo,galinha,colocouemdoispratosemedeuum.Encheudoiscoposdevinho.

—O patrão não é de dar regalias— disse ele entre umamastigada eoutra.—Aconteceuqueeletevesucessonumaexperiênciaedecidiudividirconoscoasuaalegria.

—Háquantotempoosenhortrabalhaaqui?

— Uns cinco anos. Eu morava na rua, vivia de esmolas e pequenosserviços. O patrão tem uma clínica e eu cuidava dos cavalos e conduzia acarruagem dele. Depois de alguns dias comecei a fazer outras tarefas deconfiança e acabei sendoomordomo.Opatrãoémuitobom, saibaque elenosdeudoisdiasdefolga.Aproveiteparapassear.

Eu não tinha lugar nenhum para ir e estava nevando. Preferi ficar emcasa,tomandovinhoecomendoqueijoassado.

***

Acordei, quandoalgo tocoumeu rosto.Foi comoumabrisa leve, ouotoquedeumaasadeborboletaemminhaface.Abriosolhosefiqueisurpresoao ver uma mulher ao lado da cama. A princípio achei que sonhava, maspercebi que já era dia, então tive certeza que era real. Ela parecia confusa,olhouparamim,depoisaoredor,fazendoumgestovago.Tentoufalar,masaprincípioaspalavrassaíramemboladas,semsentido.

Nãoconseguiimaginaroqueestavafazendoali,oquequeria.Peloqueeusabia,apenasopatrãoeTommoravamnaquelacasa.Elausavaumvestidosimples,delinho,comalçasnosombros.Estavadescalça,seuscabeloseramlongos,pretoseestavamrevoltos,comoseela tivesseacordadoeesquecidode penteá-los. O rosto redondo de pele clara, os lábios pálidos, os olhosfundos,tinhaumarfebril.

—Comosechama?Oqueveiofazeraqui?

Novamenteelafezumesforçoparafalar.

— Não sei! Não me lembro de nada! Eu estava na casa, não havianinguém,descievimpararaqui.

—Sabeondemora?

Elasacudiuacabeça,olhandoaoredor.

—Não.Estouconfusa!

— Vou leva-la ao doutor. Ele examinará a senhora e lhe dará algumremédioparaacalmarosnervos.

Amulherarregalouosolhos,seguroumeubraçocommãostrêmulas.

—Não!Odoutornão!Eleémau.

Fiqueisurpresocomareaçãodela.Odoutoreramau?Eunãosabia,aliáseu pouco sabia da vida particular do médico. Julguei que ele tivesse feitoalgumaexperiênciamédicacomamulher.Algoquetenhalhecausadoalgumtranstorno, um trauma mental! Resolvi ajuda-la. Talvez se lhe desse umtempo,elaacabarialembrandooquetinhaocorrido.

—Asenhoraestevenacasa?Nolaboratóriodele?

Elahesitou,refletindoporalgunsinstantes.Pelaexpressãodorostovia-seoesforçoparatentarselembrar.

—Sim,euestavanumacama, comumaparelhonaminhacabeça,umaparelho que me dava choque elétricos. Fiquei lá o dia todo, enquanto omédico me examinava e fazia anotações numa caderneta. Quando acabouadormecendo, conseguimedesamarrar e fugi.Não consegui abrir o portão,entãovimparacá,pedirajuda.

Eu já tinha ouvido falar que, em certos hospitais, os médicos davamchoques elétricos nas pessoas que sofriam de doenças mentais. Considereique,seopatrãoeramau,nãopodiapedirajudaaele, tampoucoaTomquedeviasaberdasatividadesilícitasdomédico.Bem,senãoestavamforadalei,pelomenosaspráticasmédicaseramimoraisedesumanas.

Resolviocultaramulher,enquantosairiaparaprocurarumparentedela.

Estava amanhecendo, era meu dia de folga, então poderia sair sem mepreocuparcomotrabalho.Abrioportãoesai.Mas,porondecomeçaria?Elanãoselembravadenada!Então,tiveumaideia!

Talvezopatrão tivessealgumdocumentosobreelaemseu laboratório.Seria perigoso entrar lá às escondidas,mas resolvime arriscar. Pedi para amulherficarnomeuquartoemedirigiparaamansão.Entreiporumajanelaesubiaosótão.Eviteifazerbarulho,andandocomoumgatofurtivo.Coloqueiolençonorostoparanãorespirararnocivo,comofazianaminaeentreinolaboratório.

Haviaaliumainfinidadedeinstrumentoseaparelhos.Bemnocentrodoaposento,estavaumaespéciedecama,comcorreiasparaprenderospacientesque sofremdeconvulsões.Sobreumamesinha,umcapacetedemetal, comfiosligadosaumamáquina.

Encontrei sobre um armário baixo, um formulário médico. Peguei-o everifiqueiqueeraoatestadodeóbitodeumamulherchamadaAnnaMarley.

As gavetas do armário estavam trancadas e comecei a procurar pelaschaves. Foi então que olhei com mais atenção para os frascos de vidro ebarro, nas prateleiras no fundo do aposento. Fiquei espantado ao descobrirque eles continham órgãos humanos, pés, mãos, coração, fígado e até acabeça de homem! Tudo conservado, boiando num líquido amarronzado.Haviatambém,umtanquenumcanto,fechadocomumatampademetalqueeunãotivecoragemdeabrirparaveroconteúdo.

Horrorizado,saiapressadodaquelelugar.Quandochegueinopátio,viamulher saindo pelo portão, (que eu não voltei a trancar). Havia nevadodurante a noite, estava muito frio e mesmo assim, ela não pegou nenhumagasalho. Corri atrás dela, pois achava que tinha a obrigação de ajudá-la aencontrarseusfamiliares.EunemimaginavaqueelaeraAnnaMarley,queodoutorhaviacompradoseucorpoparafazerexperiênciaspararessuscitarosmortosequeeleteveêxito,ressuscitandoamulher.

AnnaMarleycorreuparaatravessaralinhaférrea,emdireçãoaigrejade

Westminster. Corri atrás dela.A neve estava alta em alguns lugares, difícilparacorrer.Annadiminuiuacorrida,comoseestivessecansada,ouporcausadaneve.Parou,aturdida,vacilou,levouasmãosàcabeçaecaiu.

Quandochegueiatéela,percebiqueestavamuitomal,respiravacomdificuldade.Ocorpoestendidosobreaneve,osbraçosabertos,osolhosjásemvida,fitavaocéuplúmbeo.Seurostoebraços,ocorpointeiropordebaixodovestido,tornou-seazulado,depoisescureceuediantedemeusolhosincrédulos,sedesfezemcarnespodres.Recueiapavorado,ouvindoumsomestridente,repetido,comoumavisodeperigo.

Otremmepegouearrastousobreostrilhosedormentes.Umturbilhãodesonsedores,acarnesendocortadaeestraçalhadapeloferrofrioemmeioa neve.Muita dor e espanto.A última coisa que eu vi antes demorrer, foiminhas pernas e quadris estraçalhados de um lado e o tronco do outro, asvíscerasespalhadasaoredor,juntoaosrestosdeAnnaMarley.

***

Quandoacordei,emprincípio,nãomelembravanadadisso.Fiqueilongotempo deitado naquela cama, olhando para o teto daquele sótão sombrio,cheio de instrumentos e máquinas. Depois chegou alguém, um homem derostoseveroeolhardeterminado.Opatrão!Reconhecideimediato.Onomedele estava gravado no avental branco, no lado esquerdo do peito; doutorVictorFrankenstein.Elemeexaminoucomumestetoscópio,verificouapele,osolhoseosmembros.

— Consegue se levantar? — perguntou. Não conseguia me mover,tampoucoresponder.Mesmoqueeufizesseforça,nenhumsomsaiudeminhagarganta.

—Vamosesperarmaisumpouco—disseomédicoesaiu.Alifiqueiodiainteiro,Victoriameverdevezenquanto,àsvezes,Tom.Foiaoanoitecerqueeucomeceiasentiromeucorpo,a terasensibilidadede tato.Tambémcomeceiamoverosdedoseacabeça.Porém,omédicohaviameprendidocomcorreias,paraquenãofugisse,comofezAnna.Quandoadquiriforçanos

músculos,arrebenteiascorreias,erguimeutroncoemesenteisobreamesa.Vicomespanto,queomédicohaviamedadooutrocorpo,pernase tronco.Membrosetroncodeoutraspessoas,costurados,formandooutrapessoaqueeraeu,outroMilton!

As lembranças ainda eram confusas, porém, conseguindo caminhar,aindaumpoucolentoerígido,decidifugirdaquelacasa.Encontreiumaúnicacalça,atiradanumcantoeavesti.

Fugi de madrugada, quando Victor e Tom ainda dormiam. As ruasestavam vazias, nevava. Apesar do frio, caminhei por um bom tempo, atéachar um lugar para me esconder, um galpão que eu pensava estarabandonado,pertodeumacasanoaltodeumacolina.

Foiadonadacasaquemeencontrou,encolhidonumcantoemeacolheu,dando-meroupaseumpratocomcaldoquentedegalinha.Quandoconseguifalar, contei a ela a minha história. Seu nome era Mary Shelley. Ela eraescritora.

FIM

OReidoFosso

Por:GabrielMayer

OAutor:

EscritoreroteiristadePortoAlegre,apaixonadoporhorrorefantasiaefascinado por monstros, lugares abandonados e magia. Suas grandesinfluências sãoGuillermodelToro, StephenKing,EdgarAllanPoeeH.P.Lovecraft,alémdeserumgrandefãdeZeldaeCavernadoDragão.

Contato:E-mail

Conto:

Emumamplosalãoescuro,compilaresdealtura infinitae imponênciamilenar, berros ferozes ressoam, de uma voz grave e obscura, a voz dospesadelos.

Entremeando os pilares que se perdem no breu, centenas de teias dearanha cobrem o lugar. Individualmente, os fios que compõem as teias sãoquase invisíveis,masagrandequantidade sobrepostaparececriarumaauranebulosaeprateada.

Avoz que ecoa pelos pavilhões sombrios pertence aoReiMortimer, osoberanodoFosso.Sobresuacabeça,umaauréolaestouraemluminosidade,

refletindo de maneira surreal a pouca e incendiada luz que as chamas dasenormestochasaoseuredorsãocapazesdeproduzir.

Alguns metros à sua frente, uma pilha de partes corporais, membrosselvagens, fatais, encontra-se reunida de maneira caótica. Garras afiadas eenormes ferrões distribuídos por pernas, pescoço e costas, tudo imerso emsangueefraturasexpostas:ossosperfurandotirasdeumagrossapeledetomacinzentadoentrepelugemnegra.Nomeiodetudoisso, jogados,umpardebraços, sendo um deles gigantesco e disforme, entre remendos de fibras epústulaseamontoadosdecarnemutante.

—Játentarammetrairmuitasvezes.

A voz ensandecida do Rei Mortimer parece fazer a criatura caídarecobrarossentidos.

Mortimerestendeasduasmãoscomaspalmasabertas.

—Estasmãostornaram-sefortesecalejadasaolongodotempo.Atenacidadedoscrâniosqueesmaguei,dosvermesquejátentarammetrair,asdeixouresistentes.

O brilho proveniente do ornamento em sua cabeça parece ofuscarqualquer visão do rosto de Mortimer. Em meio ao brilho, sua face éindistinguível.

—OFossoémeu,Boris.EmeuFossoéminhademência.

BorisarregalaosolhosefitaoReiMortimerporcimadesuasquelícerasviolentamentefraturadas.Seusolhossãoamareladosepenetrantes,eseuscapilarespulsantesparecemprestesaexplodir.

OReiMortimer levanta umadasmãos.Em seguida, uma figura alta eencapuzada,vestindoummantonegro,aproxima-sedeMortimer,carregandoalgo comprido e pesado envolto num pano. A figura entraja um crânio detouro,quecobrenãosóseurosto,mastodaasuacabeça.

Mortimertomaoobjetoparasi.Comcuidado,retiradopanoumaespadaemseuinvólucro,quedeposita,dejoelhos,àsuafrente.OsoberanodoFosso,

decabeçabaixa,ficaalgumtempofitandoonada,emfrenteàespadalacrada.Uma onda de vozes silenciosas, sussurros de sofrimento e gemidos tomacontadolugar,intensificando-secadavezmais.

Subitamente,Mortimerretiraaespadadoinvólucro.Elaégrandeetemocabo feito de algum material enegrecido, cheio de curvas e detalhes. Aodeixarseurecipiente,aespadarangedeumamaneiraaguda,comoumgrito.Reflexos das chamas das tochas dançam na lâmina, até que ela enegrececompletamente,eaimagemseesvai.Alâminadaespadapossuiumcuriosodobramentopontiagudonaponta,comoumdenteafiado,voltadoparatrás.

O Rei Mortimer começa a caminhar lentamente em direção a Boris.Agora é possível ver uma coroa em sua cabeça. Uma coroa de um brancolímpido e brilhante, feita de ossos pontiagudos, cuidadosamente polidos.Afrontedeseurostoévestidadeumelmofeitodecrânio.

—EaDemênciaéincapazdedemonstrarmisericórdia.

OReiMortimerparaemfrenteaBoris,comumlevesorrisonorosto.

Numa fração de segundo, Mortimer, com suas duas mãos, penetra ocoraçãodeBorisnumgolpedeespada.

—EssaéaLeidoFosso.

OReiMortimeragoraestánumfocodeluzdosalão,eassimépossívelver a enorme quantidade de cicatrizes em seu rosto cadavérico, e os doisburacos negros que possui no lugar dos olhos. Esses buracos emanamumaestranhaespéciedeauraesverdeada.

Em seguida,Mortimer arranca a espada do corpodeBoris, que cai nochão,estendido.OpeitodeBorisestáviolentamentedilacerado.Napontadaespada, escorrendo sangue negro, está o grotesco e gigantesco coraçãomonstruoso de Boris, emmeio a tripas arrancadas. O coração rapidamentecomeçaaenegrecer,tornando-sepó.OpóeosanguedeBorisvãocobrindolentamentealâminadaespada.

Nasmãos doRei doFosso, a espada agora resplandecenumvermelho

intenso,queinundaosalãoemsualuzescarlate.Peloscantos,todootipodeinseto e criatura asquerosa rasteja em direção às pequenas sombras onde aforteluzdaespadanãofoicapazdealcançar.

Agora carregando a espada em pose ritualística, Mortimer parecemurmurar palavras em baixo tom. Um círculo de contornos escarlates,circundado por inscrições rúnicas, surge no chão.Em seu centro,Mortimerposicionaaespadaemrepouso.

Ao tocarochão,aespadaesua luzescarlate inundamoscontornosdocírculo, que começam a brilhar intensamente. O aumento de luz no salãorevelaumagigantescaárvorenegraemfrenteaocírculo.

AÁrvoreNegraparecepetrificada.Suasraízespontiagudasultrapassamos limitesdo solo, colocando suaspontas ameaçadorasparao ladode fora,comoestalagmitesfeitasdeferrõesmortais.

Mortimercaminhaatéa figuraencapuzada,entregando-lheaespada.OfeiticeirodoFossoguardaaespadanovamenteemseuinvólucro.

Devoltaàsuabainha,aluzdaespadajánãopodeservista.

E,assim,oFossomergulhanaescuridãonovamente,retornandoàmaiorconstânciadesuaexistência.

FIM

IlusóriasElucidações

Por:AlFerreira

OAutor:

Alessandra Ferreira, estudante de Letras Português na UniversidadeFederaldeSantaCatarina,pseudofanfictionwritterdeTamashii,colaboroucomoredatoranarevistadeculturapopjaponesaNeoTokyoeprimeirolugarno43ºPrêmioLiterárioBunkyonacategoriaquadrinho.

Contato:E-mail

Conto:

“Pretensão. Uma palavrinha sórdida e destruidora de mundos. Viverpacificamente emmeio aos seresmais estranhos possíveis, sentir que nadadaquilo lhe prende ou estimula, estar afogado nomeio dessasmagnânimaspretensões…Ocorpopesado,oânimoacirradoemconstantesmudançasdeníveis para por fim, desistir sem luta. Apenas viver, como se fosse algointeressante, que lhe fará despertar uma curiosidade epistemológica sobre oqueháforadevocê.Oúnicointeresserealemtodaessaexistêncialimitadaéo que se sente. Como você expõe isso para outros, sempre é uma situaçãoarriscada e delimitadora, naqual, a pessoa emquestão apenas se fere, cada

vezmais.

Nadadissofazsentido.Éabsurdoteressacompulsão,essanecessidadede pensar, ilimitada, desesperada; um abismo sem fim de compreensãosensitiva quando não há capacidade alguma de agir. Submetido a estasconjunturas, nada resta além estabelecer uma redoma de proteção emanterolhos fixos no chão, em todas as coisas que sejam sombras e imobilidade,contemplar pacificamente o tempo passando e a indiscernível sensação deausência,crescendoacadaminuto,emumaexpectativaenternecedoradequecertamente encontrará um vazio, repleto de ausências tão significativasquantoessavontadedenadaser.

Enquantohaviaespera,observo.Observocontinuamenteocontrastedavisãosólida,neutraeseguradascoisasmonocromáticas.Lutocontraaânsiaqueseapoderademim,aoterquemoveropescoço,paradesviaroolhardavergonha de ter meu campo de visão invadido por vidas infundadas,hipócritas,torrencialmentelotadasdefrustraçõesemseucaminhohumilhantede auto-preservação, sem coragem de enfrentar as próprias verdades e deoferecer aooutrooque esperam receber.Todo essemovimento é cansativodemais, apenas de vislumbrar essas abominações; ser sujeitado a mereconhecercomoumserhumano-entrandodentrodacaixinha limitadora -desubsistirdeforma igualaoutrascriaturasditasvivas, toldadasavontadesem controle de perpetuar a própria existência, de aceitar a imposição deexistir,apenasparasermaisumaabstraçãonouniversoignorantedeoutrem;quelheinvadedetodasasmaneiraspossíveisecontinuamsobseuspretextosa lhe enfiar todas as suas pretensões goela abaixo, lhe agredindo emprofundidades abissais até o menor desaparecimento de vontade própria:viver, semoldar - definir-, encontrar respostas - limitantes, conviver - entrebichos- e receber o boton da normalidade. Pensando bem, ainda restaesperanças.Aironiadaespera!Comoépossívelesperarquandonaessêncianão se aguardava especificamente nada? A passagem desse tempo, nãocronometrado ocorre independente da vontade de esperar, agir ou in-agir -mergulharparasimesmo,encontraroostracismoreconfortante-sobreoque

for.Nãoháobjetivoalgum,alémdealcançaro fimexistencialde todoessetormentoindesejável.

Soubequeoprincípiohumanizadoréfundamentalmenteacomunicação.Certamente. Dever ser, somos levados a acreditar. Entretanto, em quemomento foi definido ouvir a comunicação verbal ou gestual dos meusdesejos de me inibir de quaisquer contatos com outros seres? Aimperatividade na necessidade de fornecer bases, padronizar e dispor dascompetências que outros, sempre outros, julgam serem necessárias para ailusóriaconstruçãodafelicidade.Agrandequestão,retomadaéquãoperdidosestão,essesserespequenose insignificantes,queseprendemcadavezmaisem aparências, regras e gostos e não fazem sequer o fundamental e maisimportante principio: analisar sua própria essência, aceitar quem e o querealmente são. Essas tendências inconsistentes que preenchem a vida vaziaacepção,paramimnadamaissãodoqueumborrãoapósacordar,aolimpardos olhos as areias de Morpheus. Penúria ordinária de sabotismo, céticaascençãodepoderutópico,ver-sepresoecadavezmaispresodentrodestadensasociedade,quandotudooqueévitaléolhareseroqueseépordentro.

Ademais, é questionável as capacidades facultativas admostada parachegarmosatéesseponto,não?Oquesinceramenteprevalece,éaexperiênciadaobservação,utilizarseussentidos;éouvirecompreender,nãoasuperfíciedascoisas,masaessênciadetodaselasouapenasocontrolefugazdoqueépré-estabelecido, fora de seu controle, que lhe tolda,molda, incita a atacarcomoumanimaldesesperado,quechafurdanalama,comessepesoviscosoegrotesco da sociedade contaminando, invadindo, rompendo todos os seusporos?Nãoesquecerdoparasemprebem-vindo,estátudobemecomvocê;oferecer o lenço e a simpatia para aqueles necessitados -desde que tenhaaudiência.

Desistirdetodoesseaparatoabsurdodeideologias,doutrinas,dogmasecoisas estranhas e insignificantes que sequer te consideram como umindíviduo,apenascomoumpedaçodecarnemanipulável-testável,reciclável-podeserconsideradoesperança.Esperançadeumeternoretornoaocerneda

existência, ao estado nulo da satisfação plena pela total inexistência deamarraseoutrascoisasnojentaseescrupulosasqueteinvadem,sederchanceparaqueocorra.Percebiháalgumtempo,queantesdeamainaressasondasdeauto-consciência,enquanto“cresçoeamadureço”comoobichoquesou,apenas acabo criando um laço, que torna-se cada vezmais firme, grotesco,teso de convicções diáfanas cuja compreensão apenas eu e ninguém temoscontrole. Sorver dessa medula, manter o contato direto com a essência epossuiraconsciênciaplenadesentidos–semprelimitantes,poisnãoalcançoum fim para este dilema- me torna uma pessoa sortuda integra. Capaz depassar entre omeio de todas essas abominações lúdicas de coisas que nãoexistemepermanecervivo,poismesmooabandonodesesperado–eremita,ermitão,enjeitadonãomeépermitido.

Estivemaquinalmenteabsorvendooqueeraesperado,exigido,atestado.Aprendi. Apreendi. Apresentei e representei uma imagem que refletia umcorpo deslocado, bem talhado, moldado e total e completente nãoreferenciadoaoquemeviacomoser.Cadaumadessascoisas,quenãosoueu, foram devidamente analisadas, catalogadas, referênciadas e observadasholísticamente para serem descartadas, após a autópsia impiedosa de meujulgo concreto, exato, absoluto para ver as passas descartáveis de totalirrelevância que sobravam.Determinado porChronos e todos os poderososmeiosdetentoresdeascêndencia,foi-medeterminadoautoridadeseapreleçãodapermanênciapotenteevirilizantedeassumiràcarater-apóstantoesforçoemcontrário dessa tendênciamaníacode sofrimento que perpetuouduranteanos, infligidos, sentidos, amordaçados e lançados aos mais vis olhos esorrisos,deignorância,barbárie,impetuosidadeedesumanidade-aguarda,deseres estorvo, estorvo-seres, serevos-não servos.Que diferemdemim, querporessênciadistinta,querporcondiçõesindividuais,experiênciasdevidanãopartilhadas vivenciadas ou submetidas ao escrúpulo apurador, tolhido deacolhimento,aberturaecompreensão,forammeraesimplesmentedecartados,acometidos de alheamento social, discriminados e estigmatizados comoimpuros, incopetentes, incompletos ausências de capacidades sociaismediativasparaquepossamintegrar,interagir,relacionarcomessesincríveis

emaravilhosos pedaços de coisas nenhuma que super populam o planeta equesentem-seempodeiradosecomdireitosdejulgar,toldaresubmeteroutrascriaturasàseumerocaprichodemocrático,ostentandoabandeiralibertáriadaevolução, mudanças com perspectivas positivas e melhores elementos decontextualização para continuarem competindo entre si, independência dadistânciaedasdistinçõesentreascriaturasquesãosubmetidas,viabilizandoseuprocessodeadaptaçãoacondiçõesdiferentes.Essasdiferençasquesãoamaior oportunidade de se ter a plena compreensão de o que é abjeto, é anegaçãodequediferençaémais,dequeéaimensidãodomardeperguntassem respostas que torna o ato de buscá-las e experimentar os desabores daderrota-morte,derrota-vidaomaiorengodoparamergulharprofundamentenacompreensão universal de que tudo isso, continua e permanentemente nãolevaanada.

Lástimo aos que permanecem em terra. Limitados, indignos sequer dereceberemnomes–porquenomearélimitar,mastambéméesempreseráumdegrauparacompartilharevivenciarovaloreaessênciadeoutrascriaturasesituação. Me aterroriza ainda o toque de outros, pasmo ao ver o quãoabsurdamentecegossãoeacapacidadeheroícaquepossuemparamergulharem um abismo obscuro de convicções infundadas nas quais o sangue, aderrotaemisériadeoutrossãoatestadosdasabedoriaemarcadevalidaçãopara seus atos. Desgosto do emprego do amor, desgosto de tantos outrossentimentosquejáforamcatalogadosparaquepercamsuaautonomiaesejamapenasreproduzidosindefinidamente,cadavezmaistorcido,esgotado,longedo âmago de suas intenções. Sordidamentemanipulado e deveras utilizadocomodesculpaparataparosburacosdacompreensãofrustradadosquenadade facto pretendem, querem, possuem coragem de receber ter e usufruir.Augustodeminhaspretensões,creionoafastamentonecessárioparagalgaracompreensão da essência fortuita de que somos todos parte, aquele pedaçosincerode insinceridadesque tememosenfrentar.Aconstânciacomqueporbrevesmomentosaporto,paraquemaisumavezpossasersentiraterrasobmeus pés e por muitos poucos lapsos e deslizes de consciêcia, voltar enovamenterepresentarafiguragalanteedistanciada,hojetomadacomolenda

régiadeterroresinomináveisqueparatodososoutrosaconchegadosemseuslares, possammanter comoúltimopensamento – lacrado, secreto, fariseu ofatodequehásimumlugar,paraquesejamrecebidodebraçosabertostodosos abortos sociais, deformações naturais e desválidos presenciais que sealimentam da miséria ou fartura de seus familiares e que contaminam ecorrompem esse sistema de constante declínio de fingida ascenção que é aculpada sociedade. Essas criaturas não precisam ser salvas, apenas sedistanciar integralmente da convivência degradante e putrefada destesignorantesdepravados.

Ontemjogou-semaisumparaosbraçosdomar,emmeioaosdevaneiosenternecedores de suas dificuldades em galgar seu interior. Heroícamente,grandepartedoscativosemsuasprimeirassemanas,alcançamaclarezaemmeioa sua loucuradequena realidade,nãoapenasestãoemoutromundo,masqueabandonaram–enãoforamabandonados-ummundocircunstâncialdeabsurdodegrante,corruptoealienígena.Afiguraqueestanaurepresenta,permanecerá para sempre estigmatizada na história – que relato concretohonestoé isso?Seráquealcançaráodiaondeserávisto todasashistóriasepontosdevista,paraentãojuntartudo,tacarfogoeencaminharessemontedecinzas cheirando a sangue, suor e derrota, para mim novamente? Essemorfema, teorema, praxi enternecedor de assistir todos os elementosnecessáriodisponíveissendoconvertidosesubmetidosasetornaremalgoquenunca foram até alcançar o estado do lapso permanente de essência, umfingidamente imposta encontro com o nada existencial, que é a ausênciapermanenteeconstantedascoisassentidas.Aviolênciafísicanadamaisédoque exposição ao último grau das ferramentas de poder, atitude… Hah, ocernedessaquestãofoirevisto,poisnão.Porfim,alcançaocernedaquestãoe não encontro respostas, pois é necessário a continuidade através de ação.PossoatémesmoseroCapeta,desdequemedivirtacomisso.”

FIM

MarNegro

Por:VictorDias

OAutor:

MeunomeéVictorDias.

Desenvolvi um gosto por filmes, histórias em quadrinhos e livros deterrordêsdemuitocedo.Meuprimeirolivroaserlidodessegênerofoio“OChamadodeCthulhu eOutrosContos”,meapaixonei aindamaispor essegêneroecadavezfuimeinteressandomais.

Contato:E-mail

Conto:

Lúcia teveque semudar da casa dos pais.Deumapequena cidadedointerior para uma metrópole, onde começaria a cursar medicina em umauniversidade federal. Seus sonhos estavam se tornando realidade: morarsozinhaemumagrandecidade,estudarmedicina, sairdebaixodasasasdospais.Ela encontrou umpequeno apartamento comquarto, sala e cozinha, àuma estação do metrô. Pagaria o aluguel trabalhando no escritório de umparente, que também a ajudou a encontrar onde morar. Era um prédiosossegado,compoucoscondôminos.Lúciaaindanãotinhacruzadonemcom

osvizinhosdopróprioandar.

Umamisturadesentimentosquenuncahaviasentidoantestomoucontadela quando pisou no apartamento: felicidade, empolgação, a sensação deliberdadee,aomesmotempo,omedodeestarporsuacontaemumlugartãogrande quanto São Paulo. Colocou sua música favorita no celular paraapaziguar a ansiedade enquanto arrumava suas coisas no apartamento. Amobília já estava completa, só precisava deixar do jeito quemais gostava.Espalhou fotos de seus pais e dos amigos pela sala, enquanto dançava,cantava e pulava pelo apartamento. Passou a tarde assim, se organizando eatualizandoasredessociaiscomfotosdeseusmomentosdealegria.Algunsamigosdesejavamsorte,outros elogiavamsuaconquista,outrosdiziamquesentiriamsaudades.

Nocomeçodanoite,Lúciausouumaplicativoparapedirumapizzae,enquanto esperava, conversava com sua melhor amiga por mensagem. Ointerfone tocadepoisdealgum tempo, eLúciavai até a cozinhaatender.Oporteiro avisa que a pizza chegou. Lúcia calça os chinelos e desce peloelevador. Caminha até a portaria, cumprimenta o motoboy. Ela troca odinheiropelapizzaevoltaparaoprédio.

Entranoelevador,jásalivandocomocheirodapizza.Apertao4,evêosandares passando pelo letreiro luminoso impaciente, mal podendo esperarparacomer.Oelevadorparacomumtranconoterceiroandareasluzestodasseapagam.Logoa fomedeu lugar aomedo,Lúcia ficaatônitanomeiodocubículo, sem saber o que fazer. Ela dá alguns passos pra trás assustada eofegante,atébatercomospésnaparedemaisdistantedaporta.Asluzesseacenderam,oelevadorvoltouafuncionar,eumavozecooudoalto-falante:

—Moça, está tudobem?Caiuaenergiada rua!–EravozdoporteiroqueviaLúciapelacâmeradoelevador.

Lúcia,aindaassustada,foiatéointerfonedoelevador,apertouobotãoedisse:

—Estátudobemsim,estousóumpoucoassustada!

—Tudobementão,seprecisardealgumacoisa,podeligarparaportaria.

—Ok,obrigada.

Lúcia chegou no quarto andar e quase correu elevador afora.Respiroufundo e soltou o ar, se sentindo mais aliviada. Reparou que a porta doapartamentoaoladohaviasidofechada,pensouqueeraaúnicamoradoradoandar.Enfiouamãonobolsodos jeansepegouachave.Aoentrar,ouveotoquedocelular.Colocaacaixaemcimadamesaeatendeotelefone:

—Alô?–Elaficaesperandoumaresposta,massóouveumchiadobemaofundodaligação.Lúcia,olhaprateladocelularenãoreconheceonúmero,entãodesligaocelularevoltaprasuapizza.

Acordaàsseisdamanhãcomumsorrisonorosto.Nuncatinhalevantadotãodisposta.Lúciaandouatéacozinha,procurouumachaleiranosarmárioseencontrouuma,umpoucovelha,masqueserviria.Enquantoaáguafervia,foiaté o quarto para arrumar a cama e separar as roupas que usaria paratrabalhar: uma camisa e uma calça social. A chaleira assobiou, chamandoLúcia de volta para a cozinha, prepara o filtro e adiciona o café antes dedespejaraágua.Deixouabebidacoandoefoiparaobanho.Fezumpenteadodiferente,amarrandoseuscachosnegrosevolumososparatráscomumlençoamarelo.Vestiu as roupas e suanova sapatilhapreta e estavaprontaparaoprimeirodiadetrabalho.Tomouocafé,colocouamochilanascostasesaiu.Dessavezresolveuusaraescada,aoinvésdepegaroelevador.

Ela caminhou até a estação de metrô, o vento gelado batia em seuscachos, fazendo-os balançar. O sol não estava muito quente, mas aqueciaquando os raios de sol tocavam sua pele.Ao entrar na estação, se deparoucom uma aglomeração de pessoas que nunca tinha visto antes. O metrôchegava a cada cinco ou oito minutos e, mesmo assim, a plataforma nãoesvaziava.Lúciaentrounovagãosendoempurrada,masachouatéumpoucoengraçado. Ela observava as pessoas ao seu redor, eles não pareciam seimportar tanto com o empurra-empurra ou com a lotação, alguns atéconseguiamlerlivros,estudareatémesmoirdeumaconversanocelular.

Depois de cinco estações, Lúcia descia no coração de São Paulo, onúmerodepessoaspareciateraumentadomilvezes.Elasaiudaestaçãojuntocomcentenasdepessoas,masaimagemdaCatedraldaSéafezesquecerporalgunssegundosdetudoqueestavaaoseuredor.Aovoltarasi,foidescendoapraçadaSé.Virounaruaàdireitaeavistouoprédioondeiriatrabalhar.Aoentrarnoprédio,Lúciacontornouosaguãoatéarecepção:

—Bomdia,emquepossoajudar?–Dizarecepcionista.

—Bomdia,meunomeéLúcia,hojeémeuprimeirodiaaqui,souanovafuncionáriadoescritório!–DizLúciacomentusiasmo.

— Ok, use esse crachá provisório para andar pelo prédio, até vocêreceberopermanente.Vocêvaiparaodécimoandar,éondeficaoescritório.

—Muitoobrigada.

Lúciapendurouocracháàdireitadeseupeitoefoiatéoelevador.Sentiuum frio subindo pela espinha, mas não era nada que ela podia enfrentar.Enquantosubia,omedosetransformouemansiedade.Chegandonodécimoandar,LúciafoiprocurarSr.Roberto,ochefedoescritórioeseucontratante.Eleapresentouaelacadapessoadoescritóriopornomeeporcargo.Depoisalevou até seu local de trabalho: umamesa de escritório com uma pilha depapéisembranco,umcomputadoreumacanecaapinhadadelápisecanetas.

—Vocêpodedecoraramesadoseujeito!—AvisouoSr.Roberto.

O dia foi bastante produtivo, Lúcia fez algumas novas amizades noambiente de trabalho, aprendeu como funciona alguns processos dentro daempresa e fechou alguns arquivos. Na saída, foi com um pessoal pegar ometrôparaafaculdade.Látambémseriaseuprimeirodia.

Estava sendo um diamaravilhoso, até chegar na estação e a encontrarmaischeiadoquepelamanhã.Lúciaolhouorelógioeeram18:25,elaaindatinhatempoparachegaràfaculdade.Despediu-sedeseusnovosamigosefoienfrentar a multidão de gente para tentar chegar um pouco antes da aulacomeçar.

Seusolhoschegaremabrilharaopassarpelascatracasdocampus.Eraumprédionormal,comalgunsandares,salasparatodososladosepessoasindoevindootempotodo.Elafoiatéomuraldecalourosseinformar,viuquesuasalaeraa27eaprimeiraaulaseriaAnatomia1.Lúciapediuinformaçãodecomochegarparaumgrupodegarotasqueestavapróximoaopainel.Lúciateriaquesubirdoislancesdeescadaparanãopegaroelevadorefoioqueelafez.Enquantoandava,pensavaemcomoseriaaaula,osnovosamigos,osprofessores.Eraumsonhotomandoforma.

Saiu da faculdade conversando com suas novas amizades, trocaramnúmeros de telefone para poderem fazer os trabalhos juntos, foi a maiorsatisfaçãodavidadela.Aochegaremcasa,cansada,mascomasensaçãodedevercumprido,elapegouocelularemandouumaenormemensagemparasuamãe,dizendoqueeratudoqueelahaviasonhado.Lúciatomouumbanho,colocouseupijama,sentounosofáe,enquantocomiaomiojoqueacabaradefazer, ligou a TV para assistir qualquer coisa que estivesse passando. Aoterminar seu jantar, ela escovou os dentes e foi dormir, se preparando paramaisumdia.

Passaram trêsmeses desde queLúcia semudara para SãoPaulo e seuentusiasmo já não era o mesmo: o cansaço era evidente em seu rosto, asolheiras eram fundas, ela já não tinha mais a mesma motivação daquelesprimeirosdias.Andarpelacidadejánãotinhamaisamesmagraça.

No fimdaquela tarde, elahavia acabadode sair do trabalhoe estava acaminho da estação. Andando pelas calçadas da Sé, foi surpreendida porgritos, e olhou assustada ao redor, procurandode ondevinham.Se deparoucomumsenhormagro,orostobemenvelhecido,vestiaumternopreto,tinhauma barba que batia no peito e com a cabeça semum fio de cabelo.Cadapalavraquedizia,gesticulavaeapontavaprocéu.Lúciacontinuouandando,mas olhava para o senhor tentando entender o que ele estava gritando, nãoconseguia identificar uma só palavra. Subitamente ela sentiu uma dor decabeçaforte,paroudeandarefechouosolhosporalgunssegundos.Adorde

cabeçapassoueelavoltouacaminhar.

Pegou o metrô direto pra casa, estava exausta demais para encarar afaculdade.Antesde chegar emcasa, passou emummercadinho e comprouumvinhodaquelesquejávinhamumataçajunto,poisemsuacasamalhaviacopos,quemdiráumataça.Aochegaremcasa,aprimeiracoisaquefez,foitomarumbanhoquentee ficarpensandonoseudiaeemcomoestavamascoisas.Depoisfezojantar,macarrãoaomolhobranco.Pegouumpratoeumataçacheiadevinhotintosuave,sentounosofá,ligouaTVedeuumagoladanovinho.Eraocomeçodeseufinaldesemana.

Erasegunda-feira,ocelulardespertouàs6hanunciandoavoltaàrotina.SóqueLúcianãooouve.Ocelulardespertavade10em10minutos,maselasóacordounaterceiravez.Esticouobraçoparapegarocelularedesligarodespertador. Ao perceber que já estava atrasada, levantou em um salto ecorreuparaobanho.Sevestiuomaisrápidoquepode,pegouamochilaesaiude casa.Acorreria foi tantaquenãodeu tempodeprepararo café.Ela atépensouempararemalgumbardeesquinaecompraralgoparacomer,masestavamuitoatrasada.Eelanuncaseatrasara,essaseriaaprimeiravez.

Nesseodia,ometrôestavacirculandocomvelocidadereduzidadevidoàchuva que caiu de madrugada. A plataforma estava lotada, Lúcia precisouempurrar algumas pessoas para conseguir entrar em um vagão. A cabeçacomeçavaadarumaspontadasleves.Aosairdaestação,ela jánãosentiaacabeça doer. Chegando ao escritório, passou andando rápido sem olhardiretamenteparaorostodeninguém.Aosentarnasuamesa,viuumapilhadepapéisàserempreenchidoseumbilhetedeseuchefegrudadonomonitor:

“Porfavor,venhaatéaminhasalaquandochegar!”

Lúcia colocou a mão no rosto, respirou fundo e levantou, a cabeçavoltavaalatejar,foicaminhandoatéasala,bateuduasvezesnaportaeumavozdedentrodisse:

—Podeentrar!

Lúciaabriuaportacomcertalevezaefoientrando.

—Bomdia,Sr.Roberto.

— Lúcia, veja esses documentos, eles foram expedidos por você nasexta-feira, mas a maioria está com erros, os nossos clientes nos ligaramgritandoquandoviram!Esperoquenãoaconteçamais,vocêtemprestarmaisatençãonoquefaz!–Dissecomumtomumpoucoelevado.

LúcianuncatinhavistooSr.Robertoassim,semprefoigentilcomtodosno escritório. Ela levantou da cadeira, pegou os documentos e foi até suamesa.Aosentar,suadordecabeçaficoumaisforte,elaabriuabolsa,pegouum comprimido e tomou. O seu horário de almoço foi na frente docomputador,corrigindoosdocumentosetomandoumcopodecafé.Adordecabeçaeratanta,queelanãosentiafome.Nahoradeirembora,Lúciatomoumaisumcomprimido,juntocommaisumcopodecaféefoiprafaculdade.

Todos estavam no laboratório de anatomia, com um corpo sem vidaexpostobememsuasfrentes.Lúciatentavaouviraexplicaçãodaprofessora,masaatençãosempreeratiradaquandoolhavaocorpoescurecidoemurchodeitado na bancada. A dor de cabeça voltou, sentiu uma leve tontura, suavisãoescureceu,masvoltouaenxergarrápido.Elaolhouparaosladospraverseninguémtinhanotado,masestavamtodosprestandoatençãonaaula.Elacomeçouaanotarasexplicaçõesdaprofessora,quandocomeçouaouvirumchiado aumentando gradativamente. Olhou na direção de onde vinha ochiado,pareciavirdocorpodeitado.Elanão tinhanotadoantes,masagoranotará que o corpo estava com a boca aberta. Encarou a boca, quando ochiadocomeçouaaumentar,adordecabeçaficoumaisforte,elafechouosolhosporummomentoe,quandoosabriu,ocadáverestavamexendoaboca,osolhosseabrindoese fechandorapidamente.Dasuabocasaiampalavrasqueelanãoconseguiaentender,atéqueocadávervirouacabeçanadireçãodeLúciaegritou.Elaolhavaparabocaquegritava,massóenxergavaumaescuridão saindo da boca dele, envolvendo toda a sala e uma luz ao fundoacendendoeapagandoemumritmoquaseleve.

Ochiadofoisumindo,porummomentoelasentiuquenãoestavamaisnafaculdade,ochãodesaparecera,asensaçãoeradeestarflutuando,mesmosemnuncatervoadooualgodotipo.Ospontosdeluzforamsemultiplicandoeelasentiaalgumacoisaabraçandooseucorpo,elanuncahaviasentidoumasensação tão boa assim, era um lugar magnífico, no fundo ela ouvia umaglomeradodepalavrasquenãoconseguiaentender.

Ela fechou os olhos e abriu novamente, se deparou com a professorasegurando sua cabeça e todos os colegas da sala estavam a sua voltacomentando.Lúciaselevantousemfalarnada,olhouocadávereviuqueeleaindaestavalá,deitadodecabeçapracimaecomabocafechada.Pegousuamochilaqueestavaemcimadeumabancadae saiucorrendo, semexplicarnada.Deolhosmarejados,aúnicapessoaemquempensouemligarfoiprasuamãe,masotelefonesótocavaeninguématendia.Elaguardouocelularefoipracasa.

Passaram-se alguns dias desde o ocorrido na faculdade. Era final desemana,Lúciaestavaestudando,jáquefaltouàaulaalgunsdias.Elajátinhamelhorado, até conseguiu terminar todos os documentos para entregar naempresa.Resolveudarumaparadanosestudos, levantoudosofáefoiatéajanelaparaolharo céu.Estavaumanoite agradável, umpoucoquenteparaessa época do ano. No céu havia poucas estrelas, afinal a luz da cidadeatrapalhavaavisibilidade.Pensouemdarumacaminhadapelobairro,vestiuumaroupamaisconfortávelesaiu.

Enquantotrancavaoapartamento,percebeuquealguémaobservaraporumafrestanaportadovizinho.Tinhaimpressãodeserumacriança,masestavaumpoucoescuroparaenxergar.Foiatéointerruptor,ligoualuze,quandosevirouparaverquemera,aportaestavafechada.Deixoupralá,desceuefoiandarumpouco.Oventobatiaemseurostoebalançavaseuscachos.Elaprecisavadisso,ummomentosódela.Andandoamaisde30minutos,elaresolveuvoltar.Tiroualgumasfotosdobairronavolta,umaesquinaantesdechegaremseuprédio,elatinhaasensaçãodeestarsendoseguida.Olhouparatráseviuumafiguramagra,comroupaspretas,cujo

rostonãoconseguiaenxergar,massentiaqueestavaolhandoparaela.Acaminhadavirouumacorrida,odesesperoaumentavaacadapasse,elacruzouaruasemolharoscarroseentrounoprédiocorrendo.Oporteiroperguntouseestavatudobem,maselanãoouviu,subiuofegantepelasescadas,chegounaportadeseuapartamento,masnãoconseguiaencaixarachavenafechadura.Logoarespiraçãoofegantedeuespaçoparaochoro,conseguiuentrardentrodoapartamento,trancouaportaesentouencolhidanosofá.Soluçavadetantochorar,ficoualiatépegarnosono,maslogofoiacordadapelotoquedocelular,Elaatendeu,masocelularsótransmitiaumaoscilaçãodechiadosqueaumentavaebaixavaatéaligaçãocair.Lúciafoiolharonúmeronatela,masnãoaprecia.Resolveuverohistóricodocelular,mastambémnãohavianenhumnúmerolá.Commedo,eladesligouocelular.ResolveuassistirumpoucodeTVparaesqueceroocorrido.Colocouemumprogramademúsicaeficouassistindo,atécairnosonodenovo.Eram3hdamanhã,aTVestavaligada,Lúciacochilavanosofá,aospoucoselavaisendoacordadapelobarulhodaTV.Abriusóumpoucoosolhos,avisãomeioturvaobservavaaTVforadesintonia.Tornouafecharosolhos,quandocomeçouaouvirumchiadovindodolugardaTV,elatentavaabrirosolhos,masnãoconseguia,algumacoisaaimpedia.Juntocomochiadohaviaumavozgrave,dizendopalavrasqueelanãoconseguiaentender,elasequersabiaseexistiatalvocabulário.Elatentavalevantardosofá,masseucorponãoarespondia.Ochiadocadavezmaisaltocomeçavsadoeremseusouvidos,avozficavacadavezmaisgrave.Lúciaconseguiulevantardosofá,mascaiulogoemseguidabatendoacabeçanochãoedesmaiando.

Ao abrir os olhos, percebe que não está em casa, mas em uma praia.Sentia os grãos de areia em sua mão, mas nunca tinha visto tal praia emnenhumlugar.Suaareiaeradacormaisbrancaquepodiaexistireaáguadomareratãonegraqueeraimpossívelverofundo.Elafoiselevantandoaospoucos.Percebeuquenãoexistianadaalémdaareia,domar,eumasilhuetacaminhandoemsuadireção.Conformeiachegandoperto,elapercebiaqueasilhuetanãoandava,mas flutuavasobreaareia.Aochegar tãoperto,notouqueosereradeumacortãoescuraquantoadomar.Vestiaummantosobreo

seucorpoquerefletiaaluz.Eraimpossívelverseurosto,esuasmãostinhamdedos compridos.O ser nãodizia nada,masLúcia conseguia ouvir os seuspensamentostãonítidosquantoqualqueroutrosom.Seuidiomaeraalgoquenãoexistia,maselaconseguiaentenderperfeitamente.Aáguageladadomarbatiaemseuspés,Lúciaficououvindoavozatétornarafecharosolhosdenovo. Ao acordar, percebeu que estava em casa, deitada no chão da sala.Passou a mão em sua cabeça e sentiu um leve corte, havia um pouco desanguenochão.Elanãosabiasetudoaquiloerarealidadeoualucinação.

Durante o dia, Lúcia não fez quase nada, nem comeu direito, só ficoudeitada, segurandouma fotode seus familiareseporvezes, chorando.Seuspensamentos não a deixavamempaz, era trabalho, faculdade e agora essasalucinações. Por vezes ela levantava, ia até a sala, e ficava olhando pelajanela.Outras,deitavanosofá,efoiassimodiainteiro.Aocairdanoite,seuspensamentos ficaram mais fortes. A vontade era de nem existir mais, asaudadedafamíliaaumentava.Lúciaresolveutomarumremédiopradormir.Dormiu,masàs2:40damanhãeladespertououvindoochorodeumacriançanoapartamentoaolado,ochoronãopassava,seouviapassosdeumladoparao outro, Lúcia se revirava na cama e o choro ia aumentando, se tornandoberrosdecriança.Elalevantouefoiligarnaportariaparareclamardochoro,oporteirofalouquenãotinhaninguémmorandonaqueleapartamento.Lúciafoificandoirritadaesetornandoignorantecomoporteiroatédesligaremsuacarao interfone.Aovoltarparaoseuquarto,ela tomaumsustocomoseucelular tocando, se lembrava de tê-lo desligado. Ela vai até o celular queestavaemcimadamesaevêonúmero.Onúmeroeraomesmoquealigavaemoutrasvezes.Elarejeitaaligação,masemquestãodesegundos,voltouachamar.Ela retirouabateriadocelular,maselenãoparavade tocar.ATVligousozinha,semsintonizarnenhumcanaleemitiaochiadoensurdecedor.Desesperada,começaachorareseencolhenochãodasala.Adordecabeçaestavamaisforte,elasentiagrandespontadas,seunarizeouvidossangravam,osolhos turvos jánãoconseguia identificarascoisas, atéqueaquela formaapareceu em sua frente.Ela só sabia porqueouvia a sua voz dentro de suacabeça, e todos as dores e sons sumiram, o ser estendeu a mão com seus

dedoscompridos,Lúciasegurouelevantou,viuquenãoestavamaisemcasa,mas sim na praia com o mar negro, o ser foi entrando dentro da águasegurandoamãodela,quesentiaaáguageladapassandoporseuspés.Todopeso domundo havia sumido, ela entendia cada palavra de um idioma quenunca ouviu falar, cada vez mais fundo ela via pontos de luz brilhantesoscilandosuailuminação.Lúciaviuoutrosserescomoele,nãosabiadeondeelesviam,maselesadiziamquesempreestiveramàsuaespera.

Alguns dias depois, o serviço de Lúcia tentava entrar em contato comela,masninguématendiaocelularouointerfonedoapartamento.Apolíciafoi acionada, ninguém sabia o paradeiro dela. Vídeos de segurançamostravam ela descendo pelo elevador só com a roupa do corpo e umferimento na cabeça. A câmera da portariamostrava ela saindo sozinha doprédio,foiemitidooalertapelacidade,casoalguémaencontre.

FIM

EscuridãoIlusória

Por:MegMendes

OAutor:

Estudante deLetras, escreveu seu primeiro romance aos 15 anos,masnuncaopublicou.Aantologia“Porbaixod’água”é suaprimeiraseleção,além da participação em mais algumas antologias e da organização deoutras três.Faz parte do“Clube dosCinco” e daABERSTdesde julho de2018.

Contato:E-mail

Conto:

Era18h30eacapitalpaulistainiciavaomovimentodevoltaparacasa.Asruasabarrotadasdepessoascansadasdolongodiadetrabalho,umasindoparaomerecidodescansoeoutrasparaosegundoroundnafaculdade.

Fazia frioeocéuestavaescuro, euolhavapela janelada saladeaula,ainda faltavam 30 minutos, o âmbito vazio. Do décimo andar podia verapenasalgumasluzesemprédiosdistantesenomais,escuridão.

Não demorou para que a sala se enchesse, o professor chegoupontualmenteparaoiníciodaaula.Elefalavasobreamatériaeeuiaquase

adormecendo,estavamuitocansado.

—Tápescando,velho?–meucolegamedeuumabatidanoombro.–Mano,Luan,táperdendocoisaimportante.

Oprofessorhaviaanotadona lousa:“Prova20/10”em letrasgrandeseexplicavaquaisseriamoscritériosdeavaliação.

O sono não permitia que eu me concentrasse no que ele dizia, eraestranho eu estar assim. Por mais que tivesse trabalhado, nunca havia mesentidotãocansado.

Faziaumesforçodescomunalparamanterosolhosabertosquandoaluzpiscou. Todos emminha sala soltaram um sonoro “Aê” e todo o prédio dafaculdadepareceutremeremexpectativa.

Semprequefaltavaluzpormuitotempoéramosdispensados.Issoeraaglória para maioria dos adolescentes recém-saídos do ensino médio. Paramim, por outro lado, era uma grande perda de tempo. Morava longe dafaculdadeeteriaidoatéaliemvão.

Minhamenteestavaalerta,nuncafuifãdoescuroeaagitaçãodosalunossomadaaexpectativadeacabarounãoaenergiamefezdespertar.Meusonotinhaidoembora.

Omomentode euforiapassou rápidoe eu começavaame tranquilizar.Entãoaescuridãoveio,semprévioavisodestavez.Tudoerabreu.Olheinadireçãoemqueeusabiaqueficavamasjanelasetodasasluzesdistantesdeoutroranãoexistiammais.

Tudoestavaescuro.

Prestei atenção por um instante e percebi atônito que a euforiacorriqueira de situações como aquela não existia. Tudo estava emudecido.Não ouvia sequer o ruído dos motores dos carros que passavam na AvPaulista.

Tateeiosbolsosdeminhacalçajeansembuscademeucelular,pretendiaativar a lanterna para ver o que acontecia, apertei o botão, porém a tela

permaneceuescura.Penseiqueeletinhadesligadosemquereremmeubolso,entãotenteireligá-loenadaaconteceu.Euestavasembateria?

Comeceiahiperventilar,afaltadeluzpareciameapertaremeprender.Asensaçãodeclaustrofobiacomprimiameupeito.

Comumzumbido,aenergiavoltou.Nãoseiquantotempoficouescuro,mas quando as luzes acenderam senti um alívio enorme e uma cegueiramomentânea.Meusolhosardiamcomasúbitaluminosidadeefiqueiporumtemposemenxergar.

Quando finalmenteme adaptei, olhei aomeu redor e o que vi gelou aminha alma, ummar de sangue pintava o chão da sala de aula. Todos deminhaturmaestavammortos.Oprofessor,sentadoemsuacadeiranafrentedo recinto, tinha cabeça pendendo para trás, boca e olhos abertos e sanguejorrandodeumcorteprofundonagarganta.

Levantei-meetenteialcançaraporta,precisavadeajuda.Escorregueiemumapoçadesangue,patineiumpouco,masconseguimemanterempé.Sóprecisavasairdali.

Quando minha mão tocou o metal frio da maçaneta ouvi uma vozdizendo:

—Tápescando,velho?–olheiparaoladoquandoomeucolegabateudeleveemmeuombro.–Mano,Luan,táperdendocoisaimportante.

Atônito,olheiaoredor,estavanovamentesentadoemminhacarteira.Oprofessorfalavadaprova.

Quandoouseirespiraraliviado,asluzespiscaram.

FIM

OEncontro

Por:Debritus

OAutor:

SounaturaldacidadedeIpatingaqueficalocalizadanaregiãolestedoestadodeMinasGerais,casadoetenhoumcasaldefilhos.

Tenhoumlivropublicadoediversasparticipaçõesemantologias.

Contato:E-mail

Conto:

Naminha adolescênciameus avós possuíam uma fazendo, o quemaisgostavadefazererapassarminhasfériaslá,haviacavalos,cachorros,umlagoe uma cachoeira enorme e bela. Tudo o que não existia na cidadeencontrávamos naquele lugar. Muita vida e uma sensação de liberdadeextrema.

Sempre tive medo daquele lugar à noite. A verdade é que o local setransformavaetudooqueerabelosetornavasombrio.Parapiorarasituação,meusavóssempreficavamàbeiradafogueiracontandocertosencontrosdemoradores locais com seres extraterrestres, situações essas que sempreaconteciam à noite. Nunca acreditei nessas histórias, mas me dava arrepio

quandocontavam.

Averdadeéquenuncaarriscava ficaranoite foradacasa, semprequeanoiteciaentrava,nomáximo,ficavaemfrenteàvarandasentadopróximodafogueiracomosoutros.

Existia uma lenda de que, quando os seres estavam prestes a voltar,aconteciam certas situações estranhas e assombradas na propriedade quevisitariam. Meus avós contavam que, em todos os casos de encontros, aspessoasrelataramquetiveramacontecimentosforadonormal,desdesinaisnopasto,animaisdesaparecendosemdeixarrastros,nascentessecando,barulhoseoutrascoisas.

O que estou prestes a relatar a partir desse momento ficou escondidodentro daminhamemória por vários anos, durante esse período nunca tivecoragemdecontaroquerealmenteaconteceucomigonaqueledia,19demaiode1986.

Cadasegundodaminhaexperiênciaficoutrancadoemminhamemóriaetinhaacertezadequemorreriaemsegredo,masresolvidescrevertudooqueaconteceu.

Erapara ser apenasmaisum fimde semanana fazendademeusavós,estávamos em uma turma enorme, além de todos os netos resolvemosconvidarnossosamigosmaispróximos,pois iríamos ficardesexta-feiraatéterça-feira para aproveitar ao máximo o passeio e o sol maravilhoso queestava fazendo naqueles dias. E assim aconteceu. Alugamos um ônibus epartimosparaafazenda,cheiosdealegriaseplanos.

Chegamosantesdoalmoço,resolvemosarrumasascoisaseseguirparaacachoeira.Queríamosaproveitaraomáximo.

Duranteotrajetopudemosverváriospássarossaindoemdisparadacomoseestivessemfugindodealgumacoisa,lembroquenuncahaviavistoaquiloem todas asvezesqueestive ali, nahora senti umcalafrio,mas, assimquechegamos, a sensação passou e aproveitamos a água para nos refrescar eficamosaliatémeutionosavisarqueoalmoçoestavapronto.

Meusavóssempreforammuitorígidosegostavamquetodosestivessemàmesa na hora das refeições, apesar de que, naquele dia, seria impossíveltodosficarememvoltadeladevidoaonúmerodepessoas.

Duranteodiacorreutudotranquiloeanoitelogochegou.

Como sempre, reunimos todos em volta da fogueira e meus avóscomeçaram a contar as histórias, entretanto, dessa vez, eles relataram que,algunsdiasantesdenossachegada,começaramaacontecercoisasestranhasnapropriedade.Encontraramváriasgalinhasmortassemnenhumamarcadepredador,certasluzesaparecendoànoiteecoisascaindodentrodecasa.

Assim que o relato acabou, houve um enorme barulho dentro da casa,comosealguémtivessederrubadoumtamboroualgoassim,nahoranãotevequemnão ficassecommedo,atéporque todosestavamali foraenãohavianinguém dentro de casa. Corremos para dentro para verificar o que haviaacontecido,masnãoencontramosnada,estavatudonormal.Apesardetodosteremescutadoaquelebarulhoninguémencontrounadadeanormal.

Confessoqueanoitenãoconseguiafecharosolhoseparaminhatristezapude presenciar diversos barulhos e a cada um deles eu me cobria com olençol até a cabeça, morria de medo de olhar e ver alguma coisa, tentavaconversarcomalguém,mastodosestavamdormindoumsonoprofundo,foiumadasnoitesmaislongasdaminhavida,masoqueviriananoiteseguintemudariaorestodaminhavida.

Assimqueamanheceulevanteidacamaefuiparacozinha,comoeradecostumeminha avó sempre levantavamuito cedo e lá estava ela fazendo ocafé, conversei com ela e perguntei se ela havia escutado alguma coisa nanoite anterior, ela me respondeu que tomava remédio para dormir e nãoescutava nada, mas que meu avô vem, há alguns dias, comentando certosbarulhosdentrodecasaquenãoconsegueidentificarelocalizaraorigem.

Tomamos café e fomos para cachoeira. Dessa vez não vi os pássarossobrevoando,masnoteiquenãoescutavamaisnenhumsomdeles,Algoqueera normal de se escutar durante o trajeto. Na cachoeira, o barulho dos

pássaros se misturava ao da queda d’água, mas ali, naquele momento, eraapenasaquedad’águaenossasvozes.

À tarde a turma se dispersou, uns voltaram a cachoeira, outros forampescarnalagoa,algunsficaramnacasatirandoumcochiloeeuemeusdoisprimosresolvemosandaracavalo.

Sempre gosteimuito de cavalos,mas sempre andava com a éguamaismansa,vistoquemeusprimostinhammaisexperiênciaeiamcomoscavalosmaisbravosemais rápidos.Ficamosandandoporalidurantehorasedessavezresolvemosnosaventuraremumaáreamaisdistantedapropriedade.

Quando já estava quase anoitecendo resolvemos voltar, meus primoscomosempreresolveramsairemdisparadamelargandoparatrás,masaindatinhaumbomtempoatéanoitecair,tinhaacertezadequechegariaatempo.Logo notei que eles desapareceram da minha visão, continuei minhacavalgadaemumritmolento.

Estavapertodeumaponte,aéguadeuumaempinadaparatrás,nãotivecomosegurarecainochão,nomomentodaqueda,aéguasaiuemdisparadamelargando.Quandoolheiparaapontepudenotarumajararacaemumadasmadeiras de sustentação, eis ai o motivo do susto da égua, levantei eatravesseiapontesemtirarosolhosdacobra,mastinhaacertezadequelogoàfrenteencontrariaaéguavistoqueamesmaeramuitomansa,masnãofoioque aconteceu. Para minha surpresa e medo ela havia desaparecidocompletamente.

Eu não tinha a mínima noção se ela havia voltado ou pego outrocaminho. Caminhei durante algum tempo e logo em seguida a noite caiu.Com ela todos osmeusmedos vieram à tona, não tirava da cabeça a noiteanteriororelatodemeuavôeosbarulhosdentrodecasa.

Chegou um momento em que não conseguia enxergar nada a minhavolta, o que achavamuito estranho era o silêncio que estava fazendo, nãoconseguia escutar um mosquito ou outro som qualquer, foi quando, derepente,olheiparaocéuevidiversospontosluminososquesemoviamem

alta velocidade, fiquei ali parado durante um tempo observando aquelespontosluminosos.

Foinessemomento,quandoumdessespontosveioemminhadireçãoeparou na minha frente, que não consegui enxergar direito devido à luzbrilhante.Sabiaqueaquilonãoeradesseplaneta.

Derepente,umaluzmeatingiuesenticomosemeucorpotivesselevadoumchoque.Nahora cai,mas, paraminha surpresa, eunão estavano chão,estavaapoucoscentímetrosdele,comosealuzestivessemesegurandonoar,essamesmaluzmepuxouparaoquepareciaumpontocentral.

Tenho apenas alguns flashes do que houve comigo a partir dessemomento, lembro-medeestardeitadoemumaespéciedemaca,meuspésemãosestavampresosehaviaumaespéciedeagulhaemmeuspunhos.

Escutava alguns sons, mas era algo que não conseguia compreender,quando se aproximavam era como se estivessem com uma lanterna muitoforte, só conseguia ver uma luz, não havia como descrever o formato deninguémoudoqueeraaquilo,lembroquemederamalgumacoisaatravésdaagulhaquequeimavamuitoetinhaumacoloraçãoazulescuro.

Durante algum tempo fiquei ali e depois fui enviado para outro local,entretanto, durante o trajeto pude perceber que existiam outras pessoasdeitadas em outras macas, porém, não estavam acordadas, pareciam estardormindo.Lembro-medeabrirosolhoseestaremumaespéciedequartoemformatodeumpolígono,fiqueialidurantemuitotempoepudeperceberqueficavammeobservandodoladodefora.Sempreconseguiaveralgunsfeixesdeluzessemovimentando.

Apósisso,oqueconsigomelembrarédeacordarnamataanoitecomvárias luzes se aproximando e pessoas gritando, dizendo que haviam meencontrado,noteiqueumadaspessoaserameupai,nahorativeacertezadequehavia pegono sono e que tudo aquilo nãopassavadeumpesadelo, nahora meu pai não conseguiu dizer nada, apenas me abraçou e começou achorar.

Fomosdiretoparaacasademeusavós,chegandolá,foiumacorreriaegritaria, todos queriam me ver e tocar, foi quando pude ver minha mãecorrendoemminhadireção,elamedeuumforteabraçoseajoelhounaminhafrenteefoilogoperguntando:

—Ondevocêestevenessescincodiasquevocêficoudesaparecido?

—Olhesuasroupasestãotodaslimpascomosevocêestivessetiradodoguardaroupaagora!

—MeuDeusoqueaconteceu,meufilho?

Nahoraacheiqueerabrincadeira,masminhamãenuncabrincariacomalgo tãosériodessamaneira, foientãoquepercebiquenãoeraumsonhoequetodosaquelesflashesqueestavamemminhamemóriahaviamacontecidomesmo.A partir daquele dia decidi não contar a verdade a ninguém, disseapenasquenãomelembravadoquehaviaacontecido.

Depoisdesseocorridomeusavós resolveramvendera fazendaenuncamaistivenoticiaisdolocal,mastodasasnoitesquandoolhoparaocéutenhoaimpressãodequeelesestãoláemcimaapenasmeobservandoeesperandoomomentocertoparavoltar.

FIM

OMausoléu

Por:AlisonSilveiraMorais

OAutor:

AlisonSilveiraMoraiségraduadoemLetras InglêspelaUniversidadeFederaldeSantaCatarina,atuacomtraduçõeseéescritoreilustrador.Teminteressenasáreasdeliteraturasinglesas,regionalistaenaáreadeteologia.Publicoucontosemcoletâneasdeterror/horror,ealgumaspoesiasepoemasemrevistasperiódicastemáticas.

Contato:E-mail

Conto:

LasAnimas,Colorado.1930

Harreld Thomas O’rilley era um homem inovador, sempre que ouviasobre coisas exóticas de outros países e culturas,maquinava uma forma detrazer essas maravilhas para sua comunidade, ele se tornou o primeirofazendeiroaproduzirocháverdenaquelaregião,eraaficionadoporcaçaretiravaosustentodesuafamíliadaterra.Eraumhomemmuitorespeitado,etodosnacomunidadeolhavamparaelecomoumafiguradeliderança,esuafamília,JudithJoO’rilleyeopequenoDarwinT.O’rilleyoamavam,oupelo

menoseraoqueparecia.

QuasetodososdiasHarreldlevavaseufilhoatéogalpãoaoladodecasa,entregava-oumaWinchester70,pegavasuarelíquiadosrifles,umaMauser98queseupaiusaranaPrimeiraGuerra,eseguiamparaomeiodaflorestadensa. Caçavam durante horas, desde guaxinins, castores, doninhas atégrandes lebresecommuita sorteumcarneiro selvagem.Darwin tinha trezeanos, era um menino muito envergonhado e quieto, parecia sempre muitodistanteda realidade, sempre emumestado semi letárgico,olhandopara aspessoas com desconfiança e nunca demonstrando interesse especial nascoisas. Porém, algo em sua feiçãomudava drasticamente quando saia paracaçarcomseupai,seusolhossemicerravam-se,assobrancelhasretesavam-se,suasbochechaselábiosficavamavermelhados,esuavafriopordebaixodaroupa,sentindoumarrepioinevitávelemseupescoço.

—VamosDarryl!–DiziaHarreld.

—Vamos…–Respondiaquaseemumsussurro,Darwin.

LasAnimas,Colorado.1932

Eraimpossívelcontinuarmorandoali,Wyomingeralogoaolado,eláasituaçãonãoestavatãoruim,oproblemaestavasendoJudithqueseprendiamuitoàquelefimdemundo,suafamíliatodaeradeLasAnimas,masjáfaziaquase dois anos que eles sofriam dia após dia com o que os governanteschamavamdeDustBowl,asecaeastempestadesdepoeiraquedevastavaoColoradonaquelesanos.Váriosvizinhoseamigosdafamíliahaviammorridocom problemas respiratórios ou já haviam fugido à muito tempo. EntãoHarreld decidiu semudar, nemque para isso precisasse arrastar sua esposapeloscabelos.

Uma noite ele preparou seus retalhos, enfiou as roupas da mulher emumamalavelhaeamassadaecomeçouadiscutircomelasobreamudança.Elaqueria ficar,poisacreditavaqueas tempestadeseraumcastigodeDeuspara algo que haviam feito de muito errado. Darwin ouvia a briga de seu

quarto, commuitomedo, quando seu pai começou a bater em suamãe, ossussurrossetornaramgritoseomeninonãosabiaoquefazer…

No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, o menino Darwin foiencontrado deitado às portas da casa de seu vizinho, Manfred, o velhocarpinteirodacomunidade.Curioso,eleperguntouoqueomenino faziaalina sujeira, quase cobertodepoeira, eDarwinchoramingando, explicouqueseuspaishaviamidoembora.

UmapequenareuniãodeemergênciaentrealgunsmoradoresdalieumarevistanacasadosO’rilleydeixaramaforteimpressão,ouacerteza,queelestinham idoemboraeabandonadoopequenoDarwin.Todosachavamqueomeninotinhaalgumproblemamental,masninguémfalavanada,edepoisdeele explicar que seus pais estavam brigando demadrugada sobre ir para oWyoming, todos colocaram uma pedra em cima do assunto e Manfred desetentaequatroanosadotouomeninoDarwindequinze.

Darwin cresceu aprendendo o ofício da carpintaria, todavia, aindapossuíaumavontadearrebatadoradecaçar,coisaquemisteriosamentenuncadeixou de fazer, e só o fazia sozinho.QuandoManfredmorreu, um poucomais que cinco anos depois de tê-lo adotado, deixou por testamento suapequena casinha, sua oficina e algunsmetros de terra paraDarwin, que setornouumhomemaindamaisfechadoeantipáticoaosolhosdosvizinhos.

LasAnimas,Colorado,quarentaanosdepois,1972

Darwincrescera rápidoeviveraumavidasimples,era já idoso,nãosecasara,nemtiverafilhos,preferiuconstruirumacasanomeiodaflorestaondecaçavaepassavaamaiorpartedotempo,raramentevoltandoparaacasadeManfred para fazer negócio. Ele trocava peles curtidas e tratadas de suascaças por suprimentosna cidade.Aparecia umavez a cadaduas semanas ecomprava vegetais, grãos,munição para rifles e logopartia de volta para oisolamento.

Era visto como um homem misterioso, porém inofensivo, algunslembravam de sua história, mas muitos outros mal o conheciam. Algumascriançascaçoavamdelechamando-odepégrande,porvivernosconfinsdasflorestas e ter uma barba volumosa enorme quase completamente grisalha,mas não passava disso, todos os habitantes o respeitavam comopessoa e oconsideravamhonestocomospreçosdesuaspeles.

RaramenteDarwinencontravaalguémnasflorestas,equandoencontravaeramcaçadoresamadoresoucasaisdenamoradosapaixonadoseemambososcasoseledavaumtirodealertaparacimaeelessaíamcorrendo.

Uma tarde, enquanto caçava, Darwin avistou um vulto brancoatravessando com velocidade alguns galhos de árvore, e resolveu ir atrás.Após algunsminutospôde avistar denovo apequena criaturabranca comoalgodão, agilmente se deslocando entre as árvores, a tarde ia se tornandonoite, e o frio aumentava assim como uma ventania repentina que faziaparecer que a floresta era um grande pulmão enervado.Darwin persistiu, ecom calma se aproximou do que percebeu ser um macaco albino.Maravilhado, elemirou, atirou e acertou em cheio o animal, que guinchoualto com a dor e se estatelou no chão.Darwin estava extasiado com o seu“prêmio”,colocou-oemumgrandesacoelevou-oparasuacasa.Iriaprepararcomaquelacarneumbeloguisadocombatatasparaojantar,retirar,curtireapreciarsuanovapele,queresolveranãovender.

AquelanoiteDarwindormiumuitomal,tevefebres,calafrioshorríveisepesadelosquetraziamlembrançasaterrorizantedeseupassado.Durantetodaaquela semana teve noites em claro, impiedosamente atormentadoras eparalisiaspelamanhã,elejánãoconseguiapregarosolhossemquealgumaimagemmonstruosa lhe invadisse a mente. Vivia dentro de seus pesadelosmais sórdidos, se imaginava morrendo afogado, devorado por criaturas danoite,emumincêndiona florestaounomeiodeuma tempestadedepoeiraenquantotentavaalcançarseurifle.

Se sentia exausto durante o dia, mas continuou fazendo suas peles esaindoparacaçar,estavacomeçandoaterdificuldadeparaprestaratençãoao

seuredor,ouviasonsquenãoestavamláe ilusõesdeanimaiscruzandoseucaminho. Errou muitas vezes a pontaria e ficou enfurecido por não terconseguidomatarnemsequerumadoninhadametadedaquelasemanaparaofim.Nãopodiacontinuarassim.

No sétimodia sem conseguir dormir,Darwin,mortificado por noites epesadelos perversos, enquanto caçava emuma região distante nas florestas,viualgoquefezseucoraçãoparareseusmembroscongelarem.Ummeninonu, caído no chão da floresta, coberto de sujeira e insetos.No que pareceuumafraçãodesegundo,enquantoDarwincoçavaosolhos,quandoreabriu,omenino estava em pé bem em sua frente. Com um sobressalto deu algunspassos desajeitados para trás e apontou a arma para o garoto. O rosto e aexpressãodomeninopareciamdemuitatranquilidade,eraummeninomagro,comolhosmuito escuros e cabelo curtos e desgrenhado, aparentava ter porvoltadedozeanos.SorriuparaDarwinecoçouabarrigaenquantofalava:

—Osenhoréopégrande?

—Garoto,oqueestáfazendoaquinessapartedafloresta?Aondeestãoseuspais?Ondevocêmora?

—Eumoroaquieosenhormoraaonde?

—Garoto,aondeestãoseuspais?

—Fugiram

—Venhacomigo,voutelevaratéacidade,quemerda!Oqueumgarotonuestáfazendonessefimdemundo?

—Nãoquero,eunãoteconheço,quemévocê?

—MeunomeéDarwin,souumcaçador,evocênãodeveriaestaraquisozinhonessasituação,vamos!Semenrolação.

—Vocêvaime levarparaoMausoléu?–Respondeuomenino, quasesussurrando.

Naquelemomento,Darwinsentiuumpânicocrescenteemseupeito,um

apertoeasensaçãohorrívelcomoumsoconoestômagoqueodeixousemar.Ogarotoprosseguiuchoramingando:

—Não quero ir para lá de novo, eu não gosto, eu não gosto, eu nãogosto,nãoqueroirparaoMausoléu!

—ParacomissodeMausoléu,doquevocêestáfalandomolequeidiota?caleaboca,evenhalogoaquiparatelevar.

—OquevaifazercomigoDaryll?Vaimelevarparalá,mevendar,emeestuprar?…euaprendiessapalavracomamamãequandoficavacomelaemcasanosdomingos.

—Quemévocê?Hein?Seudesgraçado!Eudevoestardelirando,somedaqui,somedaquiagora!

—VocêtinhaumsegredoguardadonoMausoléu,agoravocêtemdois,eeuconheçooseusegr…–seouveumestampido…

Acabeça domenino se partiu aomeio como tiro a queima roupas deDarwin, bementreosolhos, seu cérebro foi ejetadopelanuca e seusolhosvirarampara ladosopostos,caiuaochãoaindacomespasmosnosdedosdamãoedospés.EmumsurtorepentinoeledescarregouseurifleRugern.1nocorpodogarotocommaisquatrotiros.

Darwin colocou-o em um saco e arrastou-o pela floresta por quatroquilômetros e meio, levou quase uma hora para chegar até o Mausoléuabandonado.Eraumaconstruçãofúnebreperdidanafloresta,provavelmenteerausadoporalgumafamíliaricaquemorouporaliporvoltadosanos1850,estava completamente tomada por raízes, cipós, bromélias e mato, quaseinvisívelemmeioàcegueiraverdedaquelelugar.OvelhoabriuaportaesedirigiuaocentrodoMausoléu,ondehaviaumjazigocomtrêsgavetas,elesedirigiuaterceiragaveta,abriu-a,retiroualgumasfolhasesujeiraquelátinhaevirou-separaabrirosacoedepositarnojazigoocorpodomenino,quandoouviuváriospassosnoladodeforadaconstrução.

Suasmãosepésestavamdormentes,suaroupaensopadadesangue,não

maisdistinguia a realidade e imaginou estar delirando eouvindo coisas, noentanto, abandonou essa teoria quando viu três senhores apontando suasespingardasparaele.Atônitoeduvidandodoquevia,selevantouparabuscarseu rifle que havia deixado à alguns passos de distância, mas um dos trêshomensgritou:

—OficialGarret,daPolíciadocondadodeLasAnimas,mãossobreascabeçaseparaochãoporfavor.

Darwin parou, com olhos ejetados e nervosos, suas mãos tremendo,olhouparaelesefalougrosseiramente:

—Meu nome é Darwin, senhor oficial, o que eu fiz? Estou caçando,eu…eu…souumhomemdebem…

—NãoestamoslheacusandodenadacarosenhorDarwin,ouvimosdelongeumaconversaentredoishomens,observamosquealguémhaviaatiradorepetidas vezes, a conversa acabou e logo em seguido o vimos arrastandofloresta adentro um saco por horas. Estávamos caçando por aqui também,entãoresolvemossegui-lopelocomportamentosuspeito,oqueosenhortemnosaco?

Osacoestavasujoecompletamenteensanguentado,Darwin,geladoeaflitonãoconseguiuformularumaresposta,sesentiaexausto,masbalbuciou:

—Écaça…éapena…éum…–Enquantofalava,Darwinseimaginounaprisão,entrequatroparedesbrancas,eaquilofoiumchoquefortedemais,correuemdireçãoaoseurifle,miroueatirou,acertandoumdosoficiaisnopescoço. Tentou sair correndo para a porta, mas Garret rolou e atirou,acertandoseuquadril.Darwinapagoucomador.

OcuriosodasituaçãofoiooficialGarretperceberquedentrodosacohaviasomenteummacacobrancotodoperfuradodebalas,umacaçadefato,ficaramsementenderatentativadesesperadadeDarwindefugirdalieatirarnosoficiais,sendoqueeleestavafalandoaverdade.Foramaveriguarojazigo

depedra, e quando resolveramabrir as outras gavetas, o queviram lá fariacomquelembrassemdaqueleMausoléuparaorestodesuasvidas.

Maistarde,nacidade,foireveladoqueforamencontradosdoiscorposnoMausoléu, sendo os cadáveres de Harreld Thomas O’rilley e Judith JoO’rilley.NaprimeiragavetaestavaosrestosmortaisdopaideDarwin,comumburacoemseucrânioetotalmenteabandonadocomsuasroupasrotasdaépoca.Jánasegundagavetaestavaoesqueletodesuamãe,Judith,elaestavavestida com um longo vestido bonito e sua gaveta estava repleta de floresbrancas, não havia nenhum dano em seus ossos. Em seu alucinadodepoimento à polícia,Darwin revelou em partes que seu pai o levava paracaçarnafloresta,eoviolentavanaqueleMausoléu,faziaaquiloemcasacomasuamãetambémeaquiloacabavacomele.Porfim,tentouexplicaroquehaviaacontecidoháquarentaanosatrás,porémdeixoumaismistériosdoquerespostasemsuaconfissão.

Naquelanoitede1932,Darwinouviadeseuquartomaisumadiscussãoviolentaentreseuspais,foiquandopercebeuquemaisumavezseupaiestavaespancandosuamãe.Oestopimfoiouvirsuamãegritandoporsocorro.Empânico, ele saiu da cama, pulou a janela do seu quarto e correu emmeio àtempestadedeareiaatéalcançarodepósito,pegouaWinchester70dopaievoltoucorrendo.Abriuaportadoquartoaoladoeviuseupai,estuprandoeestrangulandosuamãe.Elemirou,atirou,eumaexplosãodesangueecérebropintou as paredes do quarto.O corpo deHarreld bateu com força contra oassoalho,Darwin correu em direção à suamãe, porém ela já estavamorta.Chorou como a criança que era, e gritou com todo o ar de seus pulmõesdesesperados, sem ser ouvido por ninguém, somente a tempestade tinhaouvidosparaseusofrimento…

Quandoquestionadosobreoqueaconteceraapósoassassinato,Darwinse mostrou confuso e se fechou por completo, alegou que não lembrava,justamente o que mais intrigava as equipes de investigação, ele nãoesclareceu.Comoumgarotomagrodequinzeanos,arrastouoscorposdedois

adultospormaisdetrezequilômetrosflorestaadentro,demadrugada,esobreuma das mais violentas tempestades de areia registradas na história dosEstados Unidos. Havia de ter precisado da ajuda de alguém, pois além detudo,omeninovoltouparaacasa,limpoutodoosanguedoquartoeconviveuescondendo este segredo mórbido por mais de quarenta anos, semarrependimentos.

FIM

Succubus

Por:JulianeVicente

OAutor:

24 anos. Natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Mestranda emComunicaçãoeInformação(UFRGS).GraduadaemLetras-LínguaInglesa(PUCRS).Contista.BailarinanoGrupoAndanças.ProfessoradeLiteratura,LínguaPortuguesaeInglesa.

Contato:E-mail

Conto:

Eucaminhavana frentedomosteiroquandoomenino sorriupramim.Era difícil encontrar almas que resplandecessem como aquela e aindapudessemmeenxergar.Abaneiparaeleeoescolhi.Nasprimeiras semanasacompanheiseusestudosparasetornarumacólito,eletinha8anosenadaemsuavidahouverasidotrágico.Nãoimportavaoquantoeusussurrasseemseusouvidos, eleparecia ignorarminhas investidas.Poucaspessoaspoderiam seorgulhardetalfeito.Sendoassim,deciditirar-lhealgoqueofizessequebrar.Apósamortedoirmãoeletransformouaraivaemrebeldia,quantomaiseleaterrorizava os colegas menos ele conseguia me ver, acreditando cada vez

mais que eu era sua voz interior. Damesma forma, passei a lhe instigar ocontato com o professor conhecido por sua intolerância e rigidez, isso otornouobstinado.Passouacrerqueoautosacrifícioeraumpreçoapagarporumacausaque fosse justa.Ao terminarosanosdeescolaestavadecididoadeixaraprovíncia,lhecausavanojoaquantidadedepovosnaquelelugarqueem nada lhe parecia um lar. Quando chegou em Viena tentara duas vezesentrarparaaAcademiadeArtes.Elenãotinhatalentoosuficiente,eraoquelhediziamameucomando.

Oqueeuqueriaparaelenãopermitiaqueelefosseumartista.Tornou-semensageironaPrimeiraGuerraMundialesenãofosseaminhaproteçãoteriajazidoemterritórioinimigo.Osacrifíciosetornarapartedesuafilosofia:nãohásucessosemdor.Ainfertilidadecomoumferimentodeguerralheincutiraacertezadenãoconstituir família.Aúnica famíliaqueeledesejavaeraumfracassoqueelenãoconseguiaaceitar:aAlemanhahaviaperdidoaPrimeiraGuerra.Senãofossemos judeusesuarendiçãoodestinodopaís teriasidodiferente, eu repetia enquanto acariciava seus cabelos. Começou a ir empasseatas e observar os líderes da revolução. O país havia perdido seusterritóriose ele tinhaque fazer algumacoisa.Aguerrahavia sidoamelhorexperiência de sua vida e não havia outro meio de conquista que não aviolência.Comoagitadorpolíticoencontrouavocaçãolatente,suahabilidadede se comunicar com as multidões lhe trouxe o convite para ingressar nopartidodostrabalhadores.Atémesmocriouosímboloqueficariaconhecidoporcentenasdeanoscomosinônimodohorror:vermelho,pretoebranco,ascoresvivasdoantigoimpérioalemão.Asminhascores.Oavançodopartidoesuaascensãolhetrouxeramambiçõesilimitáveis,foiassimquetentoutomaro poder na Bavaria. Não sendo bem-sucedido foi levado preso, na celasolitáriaqueoencarceraramsaíramosescritosnecessáriosparaa conquistadoseulugar.Minhaluta,titulavasuaobraporqueapenasaemoçãoeoódiocontrolavamavida.Osucessodo livro lhe trouxea riquezaqueadvinhadasede de sangue natural ao homem. Quando foi liberto a Alemanha haviaentrado em colapso, finalmente sua chance se mostrara. Em momentos dedesespero o homem se agarra no que lhe traz conforto.A promessa de paz

deleeraocontráriodoqueseriafeito.Euqueriaocaos.Muitossãoosnomesquemesãodadosporisso.Dedeusaàdemônio,prefirooúltimo.Nãoháumderramamentodesanguenesteplanetaquenãotenhaminhasmãoscravadassobossonhosdaquelesquenasceramparasetornargrandeslíderes.Quandoomeupupilofinalmentesetornouolíderdopaís,asmultidõesgritavamseunomeeoenalteciam,diziamatémesmoqueeleeraumenviadodeDeus.

Foinessaépocaqueeudecidiassumiraformahumanaemetornarsuaserva.Opaísrenascidoexalavasuperioridadeepoder.Asededevitóriatomavaproporçõesperigosas,maselenãofraquejava.Eraumexímioestrategista.Inúmerossucessosimpediramqueeleenxergasseaderrotaàsuafrente.AoatacaraUniãoSoviéticaviudiantedesiodesmoronardetudopeloqualhavialutado.Qualqueratitudesetornavaconspiraçãoaosseusolhos,cadavezmaisreclusoeintrospectivopassouadesconfiardetodos.Aganânciaafinalcorróiaalmadoshomens.ConfinadoemumBunkerperdiaavitalidadequeoutrorativera.Mesmosobminhainfluênciasuaamabilidadetinhasaídonotóriaduranteessesanos.Comemorei,saboreandoodocesaborda derrota alheia. Finalmente ele se tornara uma sombra domeninoque euhaviaescolhido.Olhouparamimedissequeseucorponãoseriaumtroféu.Diantedofim,seajoelhouaosmeuspés,arrependidodocaminhoquehaviatomado. Ele queria ter sido um artista, ele teria sido um padre. A vozembargada questionava o destino, amaldiçoava a si mesmo. Dispensei osempregados,enquantoelebalbuciavaaossoluços.Foiquandoeusentitédio.No fundo eu esperava que ele permanecesse de pé. Nada do que eu via aminhafrenteeraoseudestino,eraumhomememfrangalhos.Talvezeufosseboa demais no que eu faço.Era hora de ir para o próximo.Não aguentavamaisseuchoramingo.

Sussurreiemseuouvidoeelepegouaarma.

FIM

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SELOEE.WEEBLY.COM