Vários Autores - Clássicos Do Sobrenatural

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Clássicos do Sobrenatural

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  • H.G. Wells - Rudyard Kipling

    Henry James - Edward Bulwer-Lytton

    W.W. Jacobs - Charles Dickens

    Edith Wharton - Bram Stoker

    Joseph Sheridan Le Fanu - M.R. James

    Robert Louis Stevenson - Sir Arthur Conan Doyle

    CLSSICOS DO SOBRENATURAL

    Prefcio, seleo e traduo

    Enid Abreu Dobrnszky

  • ~ 3 ~

    PREFCIO

    Enid Abreu Dobrnszky

    Foi nas trs ltimas dcadas do sculo XVIII que a explorao do sobrenatural

    adquiriu os contornos precisos de um novo subgnero literrio: o romance gtico. De seu

    nascimento participaram tanto o conflito entre o iderio racionalista do Iluminismo, de

    um lado, e as crenas religiosas e supersticiosas, de outro, quanto o aumento dos ndices de

    alfabetizao, que impulsionou a imprensa peridica e popular, na qual se explorava o

    gosto pelas emoes fortes. Nesse sentido, nada melhor do que as proporcionadas por nar-

    rativas ambientadas em cenrios sombrios de castelos mal-assombrados, cheios de passa-

    gens secretas, envoltos em brumas e cobertos por um cu tempestuoso. Criou-se um outro

    mundo, no o de uma natureza melhorada, banhado de sol e coberto de flores, mas seu

    negativo, seu duplo: o Mundo das Trevas, o Outro, habitado por potncias terrveis, ame-

    aadoras, que, por vezes, encontram fendas pelas quais se insinuam no nosso mundo coti-

    diano e revelam aos mortais a existncia e a substncia do Mal neles ocultas. Certamente

    no foi pequena aqui a contribuio de certos aspectos da primeira fase romntica, sobre-

    tudo o gosto pelo Sublime, assim como suas exploraes na pintura, com Piranesi (Pri-

    ses imaginrias, 1745), Fuseli (O pesadelo, 1782), Goya (O sono da razo

    engendra monstros, 1796-98), as vises mticas de William Blake.

    Dentre os pais do novo gnero contam-se principalmente aqueles que lhe deveram a

    fama, como Horace Walpole (O castelo de Otranto, 1764), Ann Radclijfe (Os

    mistrios de Udolpho, 1794), Matthew Gregory Lewis (Ambrosio, ou o Monge,

    1796), Charles Robert Maturin (A vingana fatal, 1807) e principalmente Mary

    Wollstonecraft Shelley (Frankenstein, 1818). Mas outros houve que nessa senda se

    aventuraram esporadicamente, como Walter Scott (The tapestried chamber). E assim

  • ~ 4 ~

    sucederam-se novos cultores das trevas, engendrando numerosa prole e novos ramos, como

    a histria de mistrio, a histria de detetive. Ramos que se entrelaaram com outros mais

    antigos e estabelecidos: poemas como A balada do velho marinheiro, de Coleridge, ou

    os poemas satnicos, na veia byroniana, mostram vestgios identificveis dessa contami-

    nao. E, para no falar das irms Bront principalmente de Emily a autora de O

    morro dos ventos uivantes, em que a unio de erotismo e terror apresentada na sua

    forma mais intensa e elaborada , comparecem at mesmo autores como Jane Austen,

    cujo romance Northanger Abbey (1818) permite uma leitura enviesada, irnica do

    gnero. E o que dizer para abreviar uma lista longa demais, interminvel mesmo

    das modernas histrias em quadrinhos? Batman, de preferncia nas sries desenhadas por

    Frank Miller, ou o da verso cinematogrfica de Tim Burton, primorosamente dark...

    Mas voltemos ao ncleo do sobrenatural, por assim dizer, literrio. A exploso

    de peridicos na era vitoriana foi acompanhada da rpida ascenso das ghost stories

    uma ascenso provavelmente impulsionada pelo vivo interesse suscitado, nos vinte anos

    anteriores, pelo espiritualismo e pelo mesmerismo, os quais, de um lado, alimentaram a

    credulidade popular e, de outro, ao provocar esforos em provar a realidade objetiva dos

    fenmenos sobrenaturais, realimentou o gnero, caso, por exemplo, do famoso conto de

    Conan Doyle, O co dos Baskervilles, em que Sherlock Holmes soluciona, com seus

    mtodos cientficos, um mistrio de origem aparentemente sobrenatural. Uma sntese per-

    feita, essa, de dois opostos: crenas supersticiosas e mtodo indicirio, adequado a um inte-

    lectual esclarecido. Mas no haveria aqui, tambm, algo de quase sobrenatural num

    personagem que se alimenta como um vampiro dos casos de crime, em suma, do

    mal?

    Mas a ambigidade, a bem dizer, est no cerne do gnero: talvez mais do que qual-

    quer outro, ele exige a suspenso da descrena. O jogo entre o verdico e o imaginado

    ou impossvel requer uma adeso incondicional do leitor e, portanto, uma grande mestria

    na tessitura narrativa, de que poucos so capazes. Uns, mais do que outros. Uns, mais

    ingenuamente, diramos, dispostos a convencer o leitor da veracidade da histria mediante

    recursos a detalhes factuais e/ou fico de mero coletor de documentos encontrados por

    acaso. Outros, que preferem sublinhar sua indefinio quanto ao narrado, pontuando-o

    com talvez, parece-me que e expresses semelhantes. Ou seja, a hesitao que consti-

  • ~ 5 ~

    tui a essncia do conto gtico, como observou Tzvetan Todorov: os mecanismos que utili-

    zamos para compreender os acontecimentos da vida cotidiana sero capazes de dar conta

    dos fenmenos narrados, ou ser preciso recorrer a explicaes extraordinrias? E com

    essa incerteza que joga o conto, e o leitor mais adestrado na gramtica narrativa e mais

    familiarizado com o gnero receber uma recompensa proporcionalmente maior.

    A era vitoriana poca de ouro desse gnero produziu mestres de ambos os ti-

    pos: o ingnuo e o sofisticado. A seleo dos contos includos nesta coletnea obedeceu

    alm do critrio inevitvel de preferncia pessoal a uma leitura nesse sentido. Diante

    da bvia multiplicidade de escolhas possveis, optamos pela composio inicial de trs gru-

    pos. O primeiro, formado por contos quase cannicos (para os aficionados) de escritores

    pouco conhecidos (ou absolutamente desconhecidos) do pblico brasileiro, como Sheridan

    Le Fanu, M.R. James, Bulwer-Lytton e W.W. Jacobs. O segundo, de autores mais co-

    nhecidos por obras que no pertencem categoria do sobrenatural, como Conan Doyle e

    H. G. Wells. Por fim, o grupo de contos do sobrenatural escritos por autores pertencentes

    ao cnone literrio de lngua inglesa: Charles Dickens, Rudyard Kipling, Henry James e

    Edith Whar-ton. Estes dois ltimos, embora norte-americanos, pertencem a uma linha-

    gem de pedigree britnico, aquela bem estabelecida na Nova Inglaterra. E Bram Sto-

    ker? Ele aqui est para lembrar ao leitor que esse grande mestre do gnero no escreveu

    apenas o Drcula. Assim como Robert Louis Stevenson, para nos lembrar de que ele

    no deve ser lembrado apenas como o autor de Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Esperamos

    que nossas escolhas dem tanto prazer ao leitor quanto o que nos proporcionou a traduo

    desses contos magnficos.

    * * *

    Sheridan Le Fanu (1814-1873), jornalista, romancista e contista ingls conside-

    rado por muitos como o pai do conto fantstico moderno, quem primeiro percebeu o poten-

    cial do gnero. Seu primeiro conto, The ghost and the bonesetter, foi publicado no Du-

    blin University Magazine em 1838, assim como Schalken, the Painter, includo

    nesta coletnea. Graduado em Direito pelo Trinity College (Universidade de Dublin), Le

    Fanu entrou para o corpo editorial do Dublin University Magazine em 1837, ali

  • ~ 6 ~

    iniciando sua carreira de jornalista. Em 1861, tornou-se proprietrio daquele peridico,

    no qual vrias de suas obras foram publicadas em captulos. Embora tido como um dos

    mais populares escritores da era vitoriana, no mais to conhecido e lido atualmente,

    no obstante em 1923 o tambm escritor de contos fantsticos M.R. James tenha publi-

    cado uma coletnea dos contos de Le Fanu, sob o ttulo Madam Crowls ghost and

    other tales of mistery. A ltima coletnea de contos seus publicada foi Carmilla and

    other classic tales of mystery (1996), Leonard Wolf (ed.). Obras mais conhecidas:

    Uncle Silas (1864), uma histria de suspense, e The house by the churchyard

    (1863). O Drcula de Bram Stoker, segundo dizem, foi fortemente influenciado pelo

    conto Carmilla, de Le Fanu, do qual existem verses cinematogrficas.1

    Em alguns dos contos de Le Fanu, os acontecimentos estranhos esto envolvidos

    numa aura religiosa por vezes anticlerical quase, diramos, um grau zero do gnero.

    Schalken, o pintor constitui um dos raros exemplos de sobrenatural com ambientao

    histrica e de explorao do tema da abduo, com sugesto adicional de violncia sexual.

    Junto com o An account of some strange disturbances in Aungier Street (1852), um

    dos seus contos mais conhecidos.

    Edward George Bulwer-Lytton (1803-1873), de famlia abastada, erudito fre-

    qentador de crculos literrios foi amigo de Dickens e de Macaulay , iniciou sua

    carreira literria com a publicao de Ismael: an oriental tale with other poems

    (1820), que lhe rendeu elogios por parte de Sir Walter Scott. Entre suas obras, alm de

    contos fantsticos, encontram-se uma histria social da Inglaterra e uma histria de Ate-

    nas. Foi membro do Parlamento por duas vezes. O romance Pelham; or the adventu-

    res of a gentleman (1828) inaugurou sua carreira de sucesso como escritor de fico.

    Atualmente, mais conhecido como o autor de Os ltimos dias de Pompia (1834).

    1 Carmilla foi publicado na coletnea In a glass darkly (1872); o erotismo, principalmente

    lesbianismo, subjacente histria foi notado por muitos diretores de cinema, entre eles Roger

    Vadim, que dirige a verso cinematogrfica Et mourir de plaisir (1960), com Mel Ferrer, Annette

    Vadim e Elsa Martinelli. Outras verses cinematogrficas: Vampyr (1931, dirigido por Carl Dre-

    yer); Crypt of horror (1964, dirigido por Thomas Miller); The vampir lovers (1970, dirigido por

    Roy Ward); A filha de Drcula (1972, dirigido por Jesus Franco); Carmilla (srie de TV Showti-

    me's nightmare classics, 1989, dirigido por Gabrielle Beaumont).

  • ~ 7 ~

    Aps quase meio sculo de esquecimento, nos anos 1960 comearam a aparecer novas

    edies das obras de Bulwer-Lytton e biografias suas.

    Assombraes (The haunted and the haunters), publicado inicialmente no

    Blackwoods Magazine (1859), seu conto mais conhecido, um clssico sobre o tema

    da casa mal-assombrada e, ao mesmo tempo, um timo exemplo das tentativas em provar

    a realidade objetiva dos fenmenos sobrenaturais, que mencionamos anteriormente uma

    espcie de cruzamento do iderio irracionalista romntico com o iderio cientificista vitori-

    ano.

    M.R. James (Montague Rhodes James, 1862-1936) foi lingista e erudito bri-

    lhante, estudou no colgio da elite inglesa, Eton, graduou-se em Cambridge, onde ocupou

    cargo importante, no departamento de arqueologia clssica do museu Fitzwilliam. Seus

    contos fantsticos ainda so bastante lidos e apreciados e inspiraram muitos autores mo-

    dernos do gnero. O livro de recortes do cnego Alberic considerado por muitos o me-

    lhor deles, um exemplar quase supremo da preocupao com detalhes factuais, nos quais

    se espera ancorar mais solidamente a suspenso da descrena. Foi publicado pela primeira

    vez na National Review (maro de 1895) e depois na coletnea Ghost stories of an

    antiquary (1904), qual se seguiram: More ghost stories of na antiquary (1911),

    A thin ghost and others (1919) e A warning to the curious (1925). Mais recen-

    temente publicaram-se selees de seus contos: The ghost stories of M.R. James

    (1986, Michael Cox [org.]) e Ghost stories (1994, Penguin Popular Classics).

    W.W. Jacobs (William Wymark Jacobs, 1863-1943). Funcionrio do Correio

    britnico, publicou seus primeiros contos na revista subvencionada por aquele rgo. Ou-

    tro conhecido cultor do gnero, Jerome K. Jerome, introduziu-o na revista To-Day, de

    maior importncia e circulao. Sua ascenso, desde ento, levou-o publicao na presti-

    giosa The Strand Magazine, em que tambm colaborava freqentemente Conan Doyle.

    Apesar de seu sucesso inicial, morreu pobre e annimo num asilo londrino. A pata do

    macaco, seu conto de maior sucesso dentre seus admiradores, nada menos do que Bioy

    Casares , publicado inicialmente em The Lady of the Barge (1902), mescla terror

    com um certo humor. Outra fonte da qual beberam, e bebem talvez, muitos dos mestres

    atuais...

  • ~ 8 ~

    Os autores pertencentes ao cnone da literatura sria dispensam apresentaes.

    De Charles Dickens merece nota o fato de ter sido ele quem primeiramente farejou a opor-

    tunidade de lanamentos de ghost stories na poca natalina. Quem no se lembra do

    famosssimo e sentimental Um conto de Natal (Christmas Carol), cujas verses,

    sempre renovadas, nos invadem as telinhas, em dezembro? Tanto Para ser lido com re-

    servas quanto O sinaleiro foram publicados inicialmente no peridico All the Year

    Round (ambos em dezembro, respectivamente 1865 e 1866), com olhos nesse mercado

    sazonal. Dados factuais no tratamento de um escritor estupendo...

    Em No fim da passagem (publicada inicialmente no Lippincotts Magazine,

    1890, e depois na coletnea Lifes Handicap, 1891) e Eles (Traffics and Disco-

    veries, 1904, e depois separadamente, 1910), de Rudyard Kipling, outro vitoriano ilus-

    tre, muitos leitores reconhecero a mo do autor de O homem que queria ser rei. Dic-

    kens e Kipling constituem exemplos do tratamento do tema por romancistas mestres e

    experientes. J em O quarto vermelho (The Plattner story and others, 1897), de

    H.G. Wells, um dos criadores da fico cientfica, temos quase uma desconstruo do

    gnero.

    Outros aspectos menos explorados comumente encontram-se em A coisa verdadei-

    ramente certa, de Henry James, e nos dois contos de Edith Wharton includos nesta

    coletnea: Depois e Os olhos. O tema de A deciso correta (em The soft side,

    1900) mais propriamente o mesmo que encontramos em O desenho do tapete 2 o

    evasivo significado de uma obra literria e, nesse sentido, constitui um contraponto a

    The Turn of the Screw, uma narrativa mais convencional no gnero. Edith Wharton,

    sua discpula sob muitos aspectos, conduz a ambigidade e a sutileza de James a um novo

    patamar, entrelaando-as com os pressupostos e cdigos sociais da aristocracia norte-

    americana em Os olhos e com as ambies e percalos da camada ascendente burguesa

    em Depois. Ambos os contos fazem parte da coletnea Tales of men and ghosts

    (1910).

    O ladro de corpos, de Robert Louis Stevenson, apareceu no nmero de dezem-

    bro de 1884 do Pall Mall Magazine e posteriormente no livro Tales and fantasies

    2 JAMES, Henry. O desenho do tapete, traduo e apresentao de Ondia Clia Pereira de

    Queiroz, em H. James, A vida privada e outras histrias, So Paulo: Nova Alexandria, 2002.

  • ~ 9 ~

    (1905). A casa do juiz, de Bram Stoker, s foi publicado postumamente, no volume

    Draculas guest and other weird stories (1914), organizado por sua viva, Floren-

    ce Bram Stoker.

  • ~ 10 ~

    ASSOMBRAES

    Edward Bulwer-Lytton

    Um amigo meu, homem de letras e filsofo, disse-me um dia, meio

    zombeteiro, meio srio: Adivinhe! Desde que nos vimos pela ltima vez,

    descobri uma casa assombrada no meio de Londres.

    Assombrada de verdade? E pelo qu? Fantasmas?

    Bem, no sei; tudo que sei o seguinte: seis semanas atrs, minha mu-

    lher e eu estvamos procura de um apartamento mobiliado. Ao passar por

    uma rua tranqila, vimos na janela de uma das casas: Apartamentos mobili-

    ados. O lugar nos convinha; entramos na casa, gostamos dos aposentos,

    mudamos para eles na semana seguinte... e os abandonamos no terceiro dia.

    Nada no mundo poderia ter convencido minha mulher a permanecer mais

    tempo; e no me surpreende.

    E o que vocs viram?

    Perdo; no quero ser ridicularizado como um visionrio supersticio-

    so, nem, por outro lado, poderia pedir-lhe aceitar, sob minha palavra, aquilo

    que voc considerasse inacreditvel a menos que seus sentidos o compro-

    vassem. A nica coisa que posso lhe dizer que no foi tanto o que vimos

    ou ouvimos (pois voc poderia muito bem imaginar que framos ludibria-

    dos por nossa prpria imaginao vivida ou vtimas da impostura de ou-

    trem) que nos expulsou quanto um terror indefinvel que nos tomava sem-

    pre que passvamos pela porta de um determinado quarto vazio, no qual

    nada vamos nem ouvamos. E o mais espantoso de tudo foi que, pela pri-

    meira vez em minha vida, concordei com minha mulher, por tola que ela

  • ~ 11 ~

    seja, e admiti, aps a terceira noite, ser impossvel ficar mais um dia naquela

    casa. Assim, na quarta manh, chamei a mulher que cuidava da casa e nos

    assistia e disse-lhe que os aposentos no nos serviam e que provavelmente

    no ficaramos ali no restante da semana. Ela disse secamente: Sei por qu:

    vocs ficaram mais tempo do que os outros inquilinos. Poucos ficam alm

    da segunda noite; ningum antes de vocs ficou at uma terceira. Mas supo-

    nho que eles foram muito gentis com vocs.

    Eles quem?, perguntei, tentando sorrir.

    Ora, os que assombram a casa, sejam quem forem. Eles no me in-

    comodam; lembro-me deles h muitos anos, quando morei nesta casa, no

    como criada; mas sei que me mataro algum dia. No me importo. Sou ve-

    lha e morrerei logo, mesmo; e ento estarei com eles e ainda nesta casa.

    A mulher falava com sombria tranqilidade, mas uma espcie de te-

    mor me impeliu a interromper a conversao. Paguei a semana de aluguel, e

    minha mulher e eu nos sentimos afortunados por pagarmos s pela estadia.

    Voc despertou minha curiosidade, disse eu. Nada me agradaria

    mais do que dormir em uma casa assombrada. Por favor, d-me o endereo

    daquela que voc abandonou to vergonhosamente.

    Meu amigo deu o endereo e, quando nos despedimos, fui imediata-

    mente para a casa indicada.

    Ela est situada na parte norte da Oxford Street (em uma travessa sem

    movimento, porm respeitvel). Encontrei a casa fechada, sem nenhum car-

    taz na janela, e ningum respondeu s minhas batidas na porta. Quando es-

    tava me afastando, um desses meninos que recolhem garrafas nas vizinhan-

    as disse-me: O senhor quer falar com algum daquela casa?

    Sim, soube que ela estava para alugar.

    Alugar! Ora, a mulher que cuidava dela est morta. Morreu h trs

    semanas e no h ningum l, embora o sr. J. a tenha oferecido a tanta gente.

    Ele ofereceu-a minha me, que lhe traz carvo, na semana passada, apenas

    em troca de abrir e fechar as janelas, mas ela no quis.

    No quis! E por qu?

  • ~ 12 ~

    A casa mal-assombrada; e a velha que cuidava dela foi encontrada

    morta na cama, com os olhos arregalados. Dizem que o diabo a estrangu-

    lou.

    Bobagem! Voc falou sobre o sr. J. Ele o dono da casa?

    .

    Onde ele mora? Quem ele? O que faz?

    Nada em particular, senhor; solteiro.

    Dei ao menino uma gorjeta em paga de suas informaes generosas e

    dirigi-me ao sr. J, na rua G, que ficava perto da rua da famosa casa mal-

    assombrada. Tive a sorte de encontrar o sr. J. em casa, um homem de idade,

    com uma fisionomia inteligente e maneiras agradveis.

    Imediatamente disse-lhe meu nome e minha profisso. Contei que ou-

    vira dizer que a casa era assombrada, que queria muito examinar uma casa

    com uma reputao to estranha, que ficaria imensamente agradecido se me

    permitisse alug-la, embora somente por uma noite. Estava disposto a pagar

    o que ele pedisse por essa concesso. Senhor, disse o sr. J., com grande

    cortesia, a casa est a sua disposio, pelo tempo, curto ou longo, que o

    senhor desejar. Alug-la est fora de questo. O favor o senhor quem me

    prestar, se puder descobrir a causa dos estranhos fenmenos que at agora

    a privou de todo o seu valor. No posso alug-la, por que no consigo se-

    quer um criado para mant-la em ordem ou atender porta. Infelizmente a

    casa assombrada, se me permite usar essa expresso, no apenas noite,

    mas tambm de dia, embora noite as perturbaes sejam mais desagrad-

    veis e por vezes mais amedrontadoras. A pobre velha que nela morreu h

    trs semanas era pobre e eu a tinha tirado de um asilo, pois, em sua infncia,

    fora conhecida por algum de minha famlia e, em dias melhores, alugara

    aquela casa de meu tio. Era bem educada e equilibrada a nica pessoa

    que pude jamais convencer a ficar na casa. De fato, desde sua morte, que foi

    sbita, e a autpsia, que chamou a ateno nas vizinhanas, perdi de tal mo-

    do as esperanas de encontrar uma pessoa para tomar conta da casa, e mui-

    to menos um inquilino, que de bom grado a cederia por um ano, sem paga-

    mento de aluguel, a qualquer um que pagasse seus impostos e taxas.

  • ~ 13 ~

    H quanto tempo a casa adquiriu essa caracterstica sinistra?

    Sei muito pouco sobre isso, mas h muitos anos. A velha senhora de

    quem lhe falei disse que ela era assombrada quando alugou-a trinta ou qua-

    renta anos atrs. Acontece que passei minha vida nas ndias Orientais, como

    funcionrio pblico da Companhia. Retornei Inglaterra no ano passado,

    ao herdar a fortuna de um tio, na qual se inclui a casa em questo. Encon-

    trei-a lacrada e desabitada. Disseram-me que era mal-assombrada, que nin-

    gum queria morar nela. No levei a srio uma histria to tola. Gastei al-

    gum dinheiro em sua recuperao, acrescentei sua moblia antiquada al-

    gumas peas modernas, anunciei-a e consegui alug-la por um ano. Era um

    coronel aposentado a meio-soldo. Ele entrou com sua famlia, um filho e

    uma filha e quatro ou cinco criados; todos eles deixaram a casa no dia se-

    guinte, e embora cada um deles declarasse ter visto algo diferente do que

    assustara os outros, havia algo de igualmente terrvel para todos. No pude

    em s conscincia processar, nem mesmo censurar o coronel por sua quebra

    de contrato. Coloquei ento a velha senhora de quem lhe falei e dei-lhe li-

    cena para alugar aposentos da casa. Nunca tive um inquilino que ficasse

    mais de trs dias. No lhe conto suas histrias no houve dois inquilinos

    que tenham presenciado exatamente o mesmo fenmeno. melhor o se-

    nhor julgar por si mesmo do que entrar na casa com a imaginao influenci-

    ada por narrativas anteriores; esteja somente preparado para ver e ouvir al-

    guma coisa e tome as precaues que desejar.

    O senhor nunca teve a curiosidade de passar uma noite naquela ca-

    sa?

    Tive. Passei no uma noite, mas trs horas em plena luz do dia naque-

    la casa. Minha curiosidade no est satisfeita, mas reprimida. No tenho ne-

    nhum desejo de repetir a experincia. O senhor no pode, compreenda,

    queixar-se de que no sou suficientemente franco; e a menos que seu inte-

    resse seja extremo e seus nervos excepcionalmente fortes, com toda sinceri-

    dade aconselho-o a no passar uma noite naquela casa.

    Meu interesse muito grande, disse-lhe eu, e embora somente um

    covarde possa vangloriar-se de seus nervos em situaes inteiramente des-

  • ~ 14 ~

    conhecidas para si, os meus tm sido temperados em tantos tipos diferentes

    de perigo que tenho o direito de confiar neles at mesmo em uma casa

    mal-assombrada.

    O sr. J. no disse muito mais; pegou de sua escrivaninha as chaves da

    casa, deu-as para mim e eu, agradecendo-lhe vivamente sua franqueza e cor-

    ts assentimento a meu desejo, fui embora com meu trofu.

    Impaciente por iniciar a experincia, assim que cheguei a minha casa

    chamei meu criado de confiana um jovem de esprito alegre, destemido

    e to isento de supersties quanto se possa conceber.

    F., disse eu, voc est lembrado de como ficamos desapontados

    por no encontrar um fantasma naquele velho castelo na Alemanha, que

    diziam ser assombrado por um fantasma sem cabea? Bem, eu soube de

    uma casa em Londres que, segundo espero, assombrada de verdade. Pre-

    tendo dormir l hoje noite. Pelo que ouvi, no h dvida de que algo se

    far ver ou ouvir algo, talvez, terrivelmente aterrorizante. Voc no acha

    que, se eu levar voc comigo, poderei contar com sua presena de esprito,

    acontea o que for?

    Sem dvida, senhor! Conte comigo, respondeu F., dando um sorri-

    sinho de prazer.

    Muito bem; ento aqui esto as chaves da casa, e este o endereo.

    V agora; escolha para mim o quarto que achar melhor; e, uma vez que a

    casa h semanas permanece desabitada, acenda um bom fogo na lareira, are-

    je a cama, verifique, claro, se h velas e tambm combustvel. Leve consi-

    go meu revlver e minha adaga so armas suficientes para mim; provi-

    dencie tambm armas para si. E, se no formos preo para uma dzia de

    fantasmas, seremos apenas uma dupla de ingleses patticos.

    Passei o resto do dia to ocupado em negcios to urgentes que no

    houve tempo para pensar muito na aventura noturna na qual empenhara

    minha honra. Jantei sozinho e muito tarde e, enquanto jantava, li, como de

    hbito. Selecionei um dos volumes dos Ensaios de Macaulay. Pensei com

    meus botes que poderia levar o livro comigo; seu estilo to direto e os

  • ~ 15 ~

    assuntos to relacionados com o cotidiano que poderia servir como um an-

    tdoto contra a influncia de fantasias supersticiosas.

    E assim, s nove e trinta da noite, mais ou menos, pus o livro no bolso

    e caminhei despreocupadamente at a casa assombrada. Levei comigo meu

    co favorito um bull-terrier muito inteligente, corajoso e alerta, um co

    que gosta muito de farejar cantos e corredores estranhos e obscuros noite,

    em busca de ratos, enfim, o melhor dos ces para um fantasma.

    Era uma noite de vero, mas muito fria, o cu algo sombrio e toldado.

    Havia lua, esmaecida e doentia, ainda assim uma lua. E, se as nuvens permi-

    tissem, aps a meia-noite, ela estaria mais brilhante.

    Cheguei a casa, bati e meu criado abriu-a com um sorriso animado.

    Est tudo arranjado, senhor, e muito confortvel.

    Ah!, disse eu, um tanto desapontado; voc no viu ou ouviu nada

    fora do comum?

    Bem, senhor, devo reconhecer que ouvi algo estranho.

    O qu? O qu?

    O som de passos atrs de mim; e uma ou duas vezes rudos curtos

    como sussurros junto ao meu ouvido, nada mais.

    Voc no est assustado?

    Eu? Nem um pouco, senhor, e seu olhar corajoso tranqilizou-me

    quanto a um ponto, isto , que, acontecesse o que acontecesse, ele no me

    abandonaria.

    Estvamos no saguo, a porta de entrada fechou-se e observei ento

    meu co. Inicialmente ele entrara correndo, mas recuara sorrateiramente

    para a porta e estava arranhando e gemendo para sair. Aps eu acariciar sua

    cabea e dirigir-lhe palavras de estmulo, o co pareceu resignar-se e acom-

    panhou-nos pela casa, mas mantendo-se junto a meus calcanhares em vez

    de correr curioso frente, como era seu hbito usual e normal em todos os

    lugares estranhos. Percorremos primeiramente os aposentos subterrneos, a

    cozinha e outras dependncias, especialmente a adega, na qual havia duas ou

    trs garrafas de vinho em uma caixa, cobertas de teias de aranha e eviden-

    temente intocadas h muitos anos. Os fantasmas decididamente no gosta-

  • ~ 16 ~

    vam de vinho. Quanto ao resto, nada descobrimos de notvel. Havia um

    quintalzinho sombrio com muros muito altos. As pedras desse quintal eram

    muito midas, e em virtude quer da umidade, quer da poeira e da fuligem

    no pavimento, nossos passos deixaram pegadas leves por onde passamos.

    E ento apareceu o primeiro fenmeno estranho testemunhado por

    mim naquela estranha habitao. Vi, bem minha frente, a impresso de um

    p como que subitamente formar-se. Parei, segurei meu criado e apontei

    para ela. Diante daquela pegada, to subitamente quanto antes, fez-se uma

    outra. Ns dois a vimos. Avancei rapidamente para o lugar; a pegada conti-

    nuava a me anteceder, uma pegada pequena o p de uma criana; a im-

    presso era leve demais para que se pudesse distinguir sua forma, mas a am-

    bos pareceu-nos que era a impresso de um p descalo. Esse fenmeno

    cessou quando chegamos ao muro oposto, mas no se repetiu ao retornar-

    mos. Voltamos escada e entramos nos aposentos no andar trreo, uma

    sala de jantar, uma saleta pequena e um terceiro cmodo ainda menor, que

    fora provavelmente ocupado por um lacaio todos em um silncio mortal.

    Ento percorremos as salas de estar, que pareciam ter sido recentemente

    reformadas. Na sala da frente, sentei-me em uma poltrona. F. colocou sobre

    a mesa o candelabro que acendera para ns. Mandei-o fechar a porta.

    Quando ele se virou para faz-lo, uma cadeira minha frente moveu-se da

    parede rpida e ruidosamente e postou-se a cerca de uma jarda de minha

    prpria cadeira, de frente para ela.

    Ora, isto melhor do que mesas que viram, disse eu, meio sorrindo;

    e quando ri meu co ergueu a cabea e uivou.

    F, voltando, no notara o movimento da cadeira. Ele tratava agora de

    acalmar o co. Continuei a fitar a cadeira e imaginei nela ver, em uma nvoa

    azulada, o contorno de uma figura humana, mas to vaga que no permitia

    certeza. O co agora estava quieto.

    Ponha essa cadeira minha frente, disse eu a F., de volta junto

    parede.

    F. obedeceu. Foi o senhor?, disse ele, voltando-se abruptamente.

    Eu o qu?

  • ~ 17 ~

    Ora, algo me golpeou. Senti-o nitidamente no ombro, exatamente a-

    qui.

    No, disse eu. Mas h ilusionistas aqui, e embora no consigamos

    descobrir seus truques, ns os pegaremos antes que nos assustem.

    No permanecemos muito tempo nas salas de estar na verdade, elas

    eram to midas e geladas que foi um alvio chegar ao aquecido andar supe-

    rior. Trancamos as portas das salas de estar uma precauo que, devo

    dizer, tnhamos tomado com todos os aposentos que vasculhramos no an-

    dar abaixo. O quarto de dormir que meu criado escolhera para mim era o

    melhor, naquele andar um quarto grande, com duas janelas que davam

    para a rua. A cama de dossel, que ocupava um espao considervel, estava

    em frente ao fogo, que queimava alto e reluzente; uma porta na parede

    esquerda, entre a cama e a janela, comunicava-se com o quarto que ele esco-

    lhera para si. Este era pequeno, com um sof-cama e no tinha nenhuma

    comunicao com o corredor nenhuma porta seno a que levava ao

    quarto que eu ocuparia. De cada lado da lareira havia um armrio, sem fe-

    chaduras, encostado parede e coberto com o mesmo papel de parede mar-

    rom apagado. Examinamos esses armrios apenas ganchos para pendu-

    rar vestidos femininos e nada mais; auscultamos as paredes decididamen-

    te slidas externas da casa. Terminado o exame desses aposentos, aqueci-

    me por uns instantes e acendi um charuto; depois, ainda acompanhado por

    F., dei continuidade vistoria. No corredor, havia uma outra porta; estava

    emperrada. Senhor, disse meu criado, surpreso, destranquei esta porta

    juntamente com todas as outras quando vim pela primeira vez; ela no pode

    ter-se trancado por dentro, pois...

    Antes que ele terminasse a frase, a porta, que nenhum de ns estava

    ento tocando, abriu-se silenciosamente sozinha. Trocamos um olhar por

    um instante. O mesmo pensamento nos tomou: alguma mo humana podia

    ser detectada aqui. Precipitei-me porta adentro, seguido de meu criado. Um

    pequeno quarto sombrio e vazio: poucas caixas e cestos em um canto, uma

    pequena janela com as venezianas fechadas, nem mesmo uma lareira, ne-

    nhuma outra porta seno aquela pela qual entrramos; nenhum tapete, e o

  • ~ 18 ~

    soalho parecia muito velho, irregular e rodo, remendado aqui e ali, como se

    podia ver pelos remendos mais claros na madeira; mas nenhum ser vivo e

    nenhum lugar visvel no qual um ser vivo pudesse ter-se escondido. En-

    quanto olhvamos em volta, a porta pela qual entrramos fechou-se to si-

    lenciosamente quanto se abrira antes: estvamos presos.

    Pela primeira vez senti um arrepio de indefinvel terror. Mas no meu

    criado. Ora, eles no pretendem nos armar uma cilada, senhor; eu conse-

    guiria quebrar a porta ordinria com um pontap.

    Tente primeiro abri-la com a mo, disse eu, afastando a vaga apreen-

    so que me tomara, enquanto abro as venezianas para ver o que h l fora.

    Destranquei as venezianas a janela dava para o quintalzinho descri-

    to anteriormente; fora no havia nenhuma salincia nada que interrom-

    pesse o plano vertical da parede. Ningum que sasse por aquela janela en-

    contraria onde pr os ps: ele cairia nas pedras abaixo.

    F., nesse nterim, tentava em vo abrir a porta. Virou-se ento para

    mim e pediu-me permisso para usar da fora. E eu devo aqui fazer justia

    ao criado, que, longe de dar mostras de qualquer terror supersticioso, com

    sua coragem, equilbrio e at mesmo jovialidade em meio a circunstncias

    to extraordinrias, conquistaram minha admirao e me fizeram congratu-

    lar-me pela segurana de uma companhia to altura da ocasio. Dei-lhe de

    bom grado a permisso solicitada. Porm, no obstante ele fosse extraordi-

    nariamente forte, sua fora foi to intil quanto seus esforos menos violen-

    tos; a porta sequer mexeu com seu pontap mais vigoroso. Sem flego e

    ofegante, ele desistiu. Eu ento tambm forcei a porta, igualmente em vo.

    Quando desisti, fui novamente tomado daquele arrepio de terror; mas desta

    vez mais frio e persistente. Senti como se algo terrvel emanasse das frestas

    daquele soalho corrodo e enchesse a atmosfera de uma influncia nefasta e

    hostil vida humana. A porta ento, muito lenta e silenciosamente, abriu-se

    como que por sua prpria vontade. Precipitamo-nos no corredor. Vimos

    uma luz fraca e volumosa do tamanho de um corpo humano, mas in-

    forme e transparente mover-se nossa frente e subir a escada que levava

    ao sto. Segui a luz, meu criado acompanhou-me. Ela entrou, direita do

  • ~ 19 ~

    corredor, em um pequeno sto, cuja porta estava aberta. Entrei no mesmo

    instante. A luz ento se transformou em um pequeno globo, extremamente

    brilhante e ntido; pousou por um momento sobre uma cama no canto,

    tremeu e desapareceu.

    Aproximamo-nos da cama e a examinamos uma cama estreita, co-

    mo as que comumente se encontram em stos reservados aos criados. So-

    bre a cmoda prxima a ela vimos um xale velho de seda desbotada, com a

    agulha ainda no remendo inacabado de um rasgo. O xale estava coberto de

    p; provavelmente pertencera velha senhora que morrera naquela casa, e

    este devia ter sido seu quarto de dormir. Tive a curiosidade de abrir as gave-

    tas: havia alguns poucos artigos de roupas femininas e duas cartas amarradas

    com uma fita estreita de um amarelo desbotado. Tomei a liberdade de pegar

    as cartas. Nada mais encontramos na sala digno de nota, nem houve outra

    apario da luz; mas ouvimos distintamente, quando nos viramos para sair,

    um som de passos apressados no soalho, exatamente nossa frente. Percor-

    remos os outros stos (eram quatro), com os passos ainda a nos precede-

    rem. Nada se via, nada havia exceto os passos. As cartas estavam em minha

    mo; justamente quando eu estava descendo a escada, senti claramente que

    pegavam meu pulso e um fraco e suave esforo para tiradas de mim. O ni-

    co gesto que fiz foi apert-las ainda mais, e o esforo cessou.

    Retornamos ao quarto de dormir que me fora destinado, e ento ob-

    servei que meu co no nos seguira quando dali havamos sado. Ele se pos-

    tara junto ao fogo, tremendo. Eu estava impaciente para examinar as cartas

    e enquanto as lia meu criado abriu uma pequena caixa na qual depositara as

    armas que eu lhe ordenara trazer; tirou-as, colocou-as sobre a mesa junto

    cabeceira de minha cama e ento ps-se a acalmar o co, que, contudo, pa-

    receu quase no not-lo.

    As cartas eram curtas e estavam datadas de exatamente trinta e cinco

    anos atrs. Eram visivelmente de um amante a sua amada, ou de um marido

    a uma jovem esposa. No somente os termos, mas uma clara referncia a

    uma viagem anterior indicavam que o escritor fora um homem do mar. A

    ortografia e a letra eram as de um homem de pouca instruo, mas mesmo

  • ~ 20 ~

    assim a linguagem era eloqente. Nas expresses carinhosas havia uma es-

    pcie de amor rstico, porm ardente; mas aqui e ali se liam aluses sombri-

    as e vagas de algum segredo no amoroso algum segredo aparentemente

    com relao a um crime. Devemos amar um ao outro, era uma das frases

    de que me lembro, porque todos nos censurariam se soubessem de tudo.

    E tambm: No deixe ningum ficar no mesmo quarto que voc noite

    voc fala durante o sono. Ou: O que est feito est feito; e eu lhe assegu-

    ro que no existe nada contra ns, a menos que o morto voltasse vida.

    Aqui havia um comentrio em uma caligrafia melhor (feminina): Eles sa-

    bem! No fim da carta da data mais recente de todas, a mesma caligrafia

    feminina escrevera estas palavras: Desaparecido no mar em 4 de junho, no

    mesmo dia em que...

    Depus as cartas e comecei a refletir sobre seu teor.

    Temendo, contudo que o curso de meus pensamentos pudesse abalar

    meus nervos, resolvi firmemente manter meu esprito em um estado mais

    apropriado para lidar com os fenmenos extraordinrios que a noite ainda

    poderia trazer. Levantei-me, coloquei as cartas sobre a mesa, aticei o fogo,

    que ainda estava alto e reconfortante, e abri meu Macaulay. Li bastante

    tranqilo at s onze e trinta. Ento me atirei vestido na cama e disse a meu

    criado que ele podia ir para seu quarto, mas permanecer acordado. Pedi-lhe

    que deixasse aberta a porta entre os dois aposentos. Sozinho no quarto

    mantive duas velas acesas sobre a mesa ao lado de minha cabeceira. Colo-

    quei meu relgio junto s armas e calmamente retomei meu Macaulay. A

    minha frente, o lume estava alto e, no tapete da lareira, provavelmente a-

    dormecido, jazia o co. Cerca de vinte minutos depois, senti um ar extre-

    mamente frio passar pelo rosto, como uma brisa sbita. Imaginei que a por-

    ta minha direita, que dava para o corredor, se abrira; mas no, ela estava

    fechada. Voltei ento os olhos minha esquerda e vi as chamas das velas

    balanarem com fora, como que sob a ao de uma golfada de vento. No

    mesmo instante, o relgio ao lado do revlver deslizou suavemente da mesa

    muito lentamente, sem que qualquer mo o tocasse e desapareceu.

    Pulei da cama, agarrando o revlver com uma mo e o punhal com a outra:

  • ~ 21 ~

    eu no estava disposto a deixar que minhas armas tivessem o mesmo desti-

    no do relgio. Assim armado, olhei o cho em torno: nenhum sinal do rel-

    gio. Trs batidas lentas e ntidas ouviram-se cabeceira da cama; meu criado

    disse em voz alta: O senhor chamou?

    No; fique atento.

    O co ento levantou e sentou-se, movendo rapidamente as orelhas

    para trs e para frente. Ele mantinha os olhos fixos em mim com um olhar

    to estranho que no pude afastar dele os meus. Levantou-se devagar, os

    plos eriados, e ficou totalmente imvel e com o mesmo olhar fixo e feroz.

    No tive tempo, contudo, de observar atentamente o co, pois meu criado

    surgiu porta; se vi alguma vez o terror estampado em um rosto humano,

    foi essa. Eu no o teria reconhecido, caso nos encontrssemos na rua, to

    alteradas estavam suas feies. Ele passou por mim rapidamente, dizendo

    em um sussurro que mal me chegou aos ouvidos: Corra, corra! Ele est

    atrs de mim! Ele ganhou a porta para o corredor, abriu-a e precipitou-se

    por ela. Segui-o at o corredor sem pensar, pedindo-lhe que parasse; mas,

    sem me dar ateno, dirigiu-se escada, agarrando-se ao balastre e pulando

    vrios degraus de cada vez. Ouvi, de onde estava, a porta da rua abrir-se e

    tambm se fechar. Eu estava s na casa assombrada.

    Apenas por um instante fiquei indeciso quanto a seguir ou no meu

    criado; orgulho e curiosidade, ao mesmo tempo, impediram-me de fugir

    covardemente. Retornei ao meu quarto, fechando atrs de mim a porta, e

    examinei cautelosamente o aposento. Nada encontrei que justificasse o ter-

    ror de meu criado. Examinei-o novamente com todo cuidado, para ver se

    havia alguma porta oculta. No encontrei nenhum indcio disso nem

    mesmo uma costura no papel de parede marrom desbotado com o qual o

    cmodo estava revestido. Como, ento, a COISA, ou seja l o que fosse,

    que tanto o assustara, conseguira entrar, exceto pelo meu prprio aposento?

    Retornei ao meu quarto, fechei e tranquei a porta que abria para o inte-

    rior da casa e postei-me prximo lareira, expectante e alerta. Percebi ento

    que o co se atirara a um ngulo da parede e colara-se a ela, como se esti-

    vesse se esforando por abrir caminho atravs dela. Aproximei-me dele e

  • ~ 22 ~

    dirigi-lhe algumas palavras; o pobre animal estava visivelmente fora de si

    pelo terror. Ele mostrava todos os seus dentes, a mandbula gotejava saliva e

    certamente teria me mordido se eu o tocasse. Ele no pareceu me reconhe-

    cer. Quem quer que tenha visto no jardim zoolgico um coelho fascinado

    por uma serpente, agachado em um canto, pode fazer uma idia da angstia

    que o co mostrava. Procurando por todos os meios e em vo acalmar o

    animal e temendo que sua mordida pudesse ser venenosa naquele estado,

    tanto quanto na raiva hidrofbica, afastei-me dele, coloquei minhas armas

    sobre a mesa ao lado do fogo, sentei-me e retomei meu Macaulay.

    Talvez, para no parecer em busca de crdito por coragem, ou antes

    frieza, que o leitor possa julgar exagerada, eu possa ser perdoado se fizer

    uma pausa para, em meu favor, fazer uma ou duas observaes de cunho

    pessoal.

    Como julgo que a presena de esprito, ou aquilo que chamam de co-

    ragem, seja exatamente proporcional familiaridade com as circunstncias

    que levaram a ela, tambm devo dizer que h muito tempo conhecia todos

    os experimentos que dizem respeito ao Excepcional. Eu testemunhara mui-

    tos fenmenos extraordinrios em diversas partes do mundo fenmenos

    a que no se daria absolutamente nenhum crdito se eu os contasse, ou seri-

    am atribudos a entes sobrenaturais. Ora, minha teoria que o sobrenatural

    impossvel, e que aquilo que chamam de sobrenatural somente algo nas

    leis da natureza que at ento ignorvamos. Portanto, se um fantasma surge

    minha frente, no tenho o direito de dizer: Ento, o sobrenatural pode

    existir, mas antes, Ento, a apario de um fantasma, ao contrrio da opi-

    nio corrente, est conforme as leis da natureza isto , no sobrenatu-

    ral.

    Ora, em tudo que at ento eu havia testemunhado, e na verdade em

    todos os prodgios que os diletantes do mistrio em nossa poca registram

    como fatos, sempre se faz necessria a interveno material pela qual, em

    virtude de algumas caractersticas constitutivas, certos fenmenos estranhos

    so percebidos pelos sentidos naturais.

  • ~ 23 ~

    Alm disso, at mesmo o fato de se admitirem como verdadeiras as

    narrativas de manifestao espiritual na Amrica sob a forma de msica

    ou outros sons, registros em papel, produzidos por nenhuma mo visvel,

    peas de moblia que se movem sem uma interveno humana visvel, ou a

    viso ou toque de mos concretos, aos quais no parecem pertencer quais-

    quer corpos exige que se encontre o MEIO ou ser vivo, com caracters-

    ticas constitutivas capazes de produzir tais sinais. Enfim, em todos esses

    casos extraordinrios, at mesmo na suposio de que no se trata de im-

    postura, deve haver um ser humano como ns pelos quais, ou por meio dos

    quais, os efeitos apresentados a seres humanos so produzidos. assim

    com o agora familiar fenmeno mesmerismo1, ou eletrobiologia: a mente da

    pessoa atingida influenciada por um agente vivo material. Nem, supondo

    verdade que um paciente mesmerizado possa responder vontade ou passe

    de um mesmerizador uma centena de quilmetros distante, a resposta me-

    nos ocasionada por um fluido material chame-o Eltrico, chame-o di-

    co2, ou o que seja que tem o poder de atravessar o espao e obstculos,

    que o efeito material comunicado de um para o outro. Conseqentemente,

    eu acreditava que tudo quanto at aquele instante testemunhara, ou esperava

    testemunhar naquela estranha casa, era criado mediante alguma interveno

    ou meio to mortal quanto eu prprio. E essa idia necessariamente me li-

    vrara de ser tomado pelo assombro em razo das aventuras daquela noite

    extraordinria ao qual esto sujeitos aqueles que consideram sobrenatu-

    rais coisas que no se conformam s foras da natureza.

    1 Mesmerismo, Magnetismo, Magnetismo Animal, Eletrobiologia: termos que foram cunhados

    por Franz Anton Mesmer (1734-1815), mdico, criador da teoria do Mesmerismo ou Magnetismo

    Animal. De todos os corpos da Natureza, o prprio homem que com maior eficcia atua sobre

    o homem, afirma. Apesar de muito combatido em sua poca, registrou desde 1773 inmeras

    curas e experincias com a movimentao de objetos inanimados. O magnetismo aceita a existn-

    cia de um fluido especial, que projetado pelo magnetizador influenciando a pessoa que o recebe.

    De certa forma, precursor do moderno Hipnotismo e de grande influncia na vulgarizao do

    Kardecismo. (N.E.) 2 dic force: denominao dada em meados do sculo XIX para uma hipottica energia-vital ou

    fora da vida pelo Baro Carl von Reichenbach (1788-1869), famoso qumico. (N.E.)

  • ~ 24 ~

    Como, ento, minha conjectura era de que tudo que se mostrara, ou

    seria mostrado aos meus sentidos, devia ter origem em algum ser humano,

    dotado por constituio do poder para faz-lo e tendo algum motivo para

    tal, senti um interesse em minha teoria que, ao seu modo, era antes filosfi-

    ca do que supersticiosa. E posso sinceramente dizer que meu nimo estava

    to calmo e propcio observao quanto o de qualquer verdadeiro experi-

    menta-lista, a aguardar o resultado de alguma combinao qumica rara, em-

    bora talvez perigosa. claro que, quanto mais impassvel e distante da fan-

    tasia eu mantinha minha mente, quanto mais apropriado observao fica-

    ria meu estado de esprito; portanto fixei olhos e pensamentos no forte teor

    cotidiano das pginas do meu Macaulay.

    Ento percebi que algo se interpunha entre a pgina e a luz uma

    sombra toldava a pgina. Levantei os olhos e vi o que encontro muita difi-

    culdade e talvez me seja impossvel faz-lo descrever.

    Eram as prprias Trevas a tomar forma no ar, em um contorno bas-

    tante vago. No posso dizer que era humana, contudo parecia ter forma

    humana, ou antes uma sombra de um ser humano, do que qualquer outra

    coisa. Assim parada, completamente separada e distinta do ar e da luz a sua

    volta, suas dimenses pareciam gigantescas e seu topo chegava ao teto. En-

    quanto eu a fitava, uma sensao de frio intenso invadiu-me. Um iceberg di-

    ante de mim no poderia ter-me enregelado mais; nem poderia o frio de um

    iceberg ter sido mais material. Estou convicto de que no era o frio causado

    pelo medo. Enquanto ainda estava a fit-la, julguei mas no posso afir-

    m-lo com preciso distinguir dois olhos olhando-me do alto. Por um

    momento, imaginei distingui-los claramente; no seguinte, pareceram desfa-

    zer-se; mas mesmo ento dois raios de luz azul clara luziram em meio s

    trevas, como que da altura em que eu meio acreditara, meio duvidara ter

    visto os olhos.

    Tentei falar, minha voz emudecera completamente; eu conseguia ape-

    nas pensar com meus botes: Isso medo? Isso no medo! Tentei le-

    vantar-me, em vo; senti como se uma fora irresistvel me empurrasse para

    baixo. Na verdade, minha impresso era a de um imenso e supremo Poder a

  • ~ 25 ~

    se opor a qualquer ato voluntrio aquela sensao de total impotncia

    para lidar com uma fora superior de qualquer homem, que se pode sentir

    fisicamente em uma tempestade no mar, em uma conflagrao ou at mes-

    mo quando nos deparamos com algum animal feroz, ou antes, talvez, com

    um tubaro no oceano era esse o sentimento moral que me tornara. O-

    posta minha vontade havia uma outra, to superior minha quanto so

    materialmente superiores fora humana uma tempestade, um incndio ou

    um tubaro.

    E ento, enquanto essa impresso crescia em mim veio, por fim, o

    terror um terror tal que nenhuma palavra pode descrever. Ainda assim

    mantive meu orgulho, se no coragem; e em minha prpria mente dizia: Is-

    so terror, mas no medo; se eu no sentir medo, ele no poder me fazer

    mal; minha razo rejeita essa coisa, trata-se de uma iluso no sinto me-

    do. Com um esforo violento consegui por fim estender a mo para a arma

    sobre a mesa; quando o fiz, recebi no brao e no ombro um estranho golpe,

    e meu brao caiu ao lado, inerte. E ento, para aumentar meu terror, a luz

    comeou a diminuir lentamente nas velas; elas no foram, por assim dizer,

    apagadas, mas sua chama parecia recuar gradualmente; o mesmo ocorreu

    com o fogo a luz era extrada das labaredas; em poucos minutos, o quar-

    to estava em completa escurido.

    O pavor que se abateu sobre mim, pavor de estar assim na escurido

    com aquela Coisa escura, cujo poder era sentido de modo to intenso, pro-

    vocou uma reao de coragem. Na verdade, o terror alcanara aquele clmax

    no qual todas as minhas faculdades me abandonariam ou eu romperia o en-

    cantamento. Eu o rompi. Consegui finalmente emitir um som, no obstante

    este fosse um grito. Lembro-me de ter jorrado de minha boca algo como:

    No tenho medo, minha alma no teme; e ao mesmo tempo encontrei

    foras para levantar-me. Ainda naquelas densas trevas, corri para uma das

    janelas, com um repelo abri a cortina e empurrei as venezianas; meu pri-

    meiro pensamento foi: LUZ. E quando vi a luz no alto, clara e calma, senti

    uma alegria que quase contrabalanou o terror anterior. Havia lua, havia

    tambm a luz dos lampies de gs na rua deserta e silenciosa. Voltei-me pa-

  • ~ 26 ~

    ra olhar o quarto; o luar penetrava sua sombra de modo muito fraco e par-

    cial mas ainda assim havia luz. A Coisa escura, fosse o que fosse, dissi-

    pou-se salvo pelo fato de que eu ainda conseguia ver uma sombra vaga,

    que parecia uma sombra daquela nuvem escura, junto parede oposta.

    Meus olhos ento pousaram na mesa, e debaixo dela (que no estava

    coberta por toalha ou cobertura uma velha mesa redonda de mogno)

    levantou-se uma mo, visvel somente at o punho. Era, aparentemente, de

    carne e osso como a minha, mas a mo de uma pessoa velha magra, en-

    rugada e pequena, tambm; a mo de uma mulher. Aquela mo muito sua-

    vemente fechou-se em volta das duas cartas que jaziam sobre a mesa; mo e

    cartas desaparecem. Soaram ento as mesmas trs batidas fortes que eu ou-

    vira na cabeceira, antes do incio daquela extraordinria cena. Quando aque-

    les sons lentamente cessaram, senti que o quarto todo vibrava; e na extremi-

    dade do quarto levantaram-se, como que do cho, centelhas e glbulos co-

    mo bolhas multicores de luz verdes, amarelas, rubras, azuis. Para cima e

    para baixo, para c e para l, aqui e ali, aparentando fogos-ftuos, as cente-

    lhas moviam-se aleatoriamente, ora lentas, ora rpidas. Uma cadeira (repe-

    tindo o ocorrido com a da sala de estar no andar debaixo) moveu-se de jun-

    to parede, sem qualquer interveno material visvel e colocou-se no lado

    oposto da mesa. Subitamente, da cadeira brotou uma forma uma forma

    feminina. Era to ntida quanto um ser vivente espectral como uma for-

    ma morta. O rosto era de uma jovem, com uma estranha beleza enlutada; o

    pescoo e os ombros estavam nus, o resto vestia um manto largo de um

    branco nebuloso. Ela comeou a alisar seus longos cabelos dourados, que

    lhe caam aos ombros; seus olhos no estavam voltados para mim, mas para

    a porta; pareciam tentar ouvir, observar, esperar. A sombra da nvoa escura

    no fundo tornou-se mais intensa; e novamente julguei ver os olhos brilhan-

    do do alto da sombra olhos que miravam fixamente aquela forma.

    Como que da porta, embora ela no estivesse aberta, brotou uma outra

    apario, igualmente ntida, igualmente espectral a forma de um homem,

    um homem jovem. Estava vestido moda do sculo passado, ou antes de

    um modo semelhante (pois tanto a forma masculina quanto a feminina, em-

  • ~ 27 ~

    bora ntidas, eram obviamente imateriais, impalpveis, simulacros, fantas-

    mas); e havia algo de incongruente, grotesco, at mesmo amedrontador no

    contraste entre o requinte elaborado, a preciso gentil daquela vestimenta

    fora de moda, com seus franzidos, suas rendas e fivelas, e o aspecto cadav-

    rico e a imobilidade espectral de seu portador flutuante. Exatamente quando

    a forma masculina aproximava-se da feminina, a sombra escura avanou de

    junto parede, todas trs, por um momento, envoltas em escurido. Quan-

    do a luz plida retornou, os dois fantasmas que estavam ocultos na sombra

    surgiram lado a lado; e, no peito da viso feminina, via-se uma mancha de

    sangue; o fantasma masculino apoiou-se em sua espada espectral, o sangue a

    gotejar rapidamente dos franzidos, da renda; e o negrume da Forma inter-

    mediria engoliu a ambos e desapareceram. E novamente as bolhas de

    luz moveram-se rapidamente, adejaram e flutuaram, tornando-se cada vez

    mais densas e, seus movimentos, mais desordenados.

    A porta do mvel direita da lareira abriu-se ento e da fresta surgiu a

    figura de uma mulher idosa. Ela portava cartas na mo as mesmas cartas

    sobre as quais eu vira a Mo se fechar; e atrs dela ouvi passos. Ela virou-se

    como se a ouvir e ento abriu as cartas e pareceu l-las; e sobre seu ombro

    vi um rosto lvido, o rosto semelhante a um homem h muito tempo afoga-

    do inchado, esbranquiado, com algas entrelaadas em seus cabelos en-

    sopados; e a seus ps jazia uma forma semelhante a um cadver, e atrs do

    cadver escondia-se uma criana, uma criana terrivelmente esqulida, de

    rosto encovado e olhos amedrontados. E enquanto eu olhava para o rosto

    da mulher idosa, as rugas e as linhas desapareceram e ele transformou-se em

    um rosto jovem de olhos duros, opacos, mas ainda assim jovens; e a

    Sombra precipitou-se e envolveu em escurido aqueles fantasmas, como

    havia feito com os anteriores.

    Ento, nada restou seno a Sombra, e sobre ela meus olhos fixaram-se

    at que novamente os olhos brotaram da Sombra olhos maus, olhos de

    serpente. E as bolhas de luz novamente surgiram e caram, e em seus mo-

    vimentos desordenados, irregulares, turbulentos, fundiram-se com o plido

    luar. E ento, desses mesmos glbulos, como que da casca de um ovo, jor-

  • ~ 28 ~

    raram coisas monstruosas; o ar encheu-se delas; larvas to exangues e to

    horrendas que no consigo absolutamente descrev-las, exceto para lembrar

    o leitor da vida fervilhante que o microscpio solar pe diante de seus olhos

    em uma gota dgua coisas transparentes, flexveis, geis, caando-se mu-

    tuamente, devorando-se mutuamente formas nunca antes contempladas

    a olho nu. Assim como as formas eram assimtricas, tambm seus movi-

    mentos eram desordenados. Em suas errncias nada havia de jovial; contor-

    navam-se incessantemente, cada vez mais densas e velozes, pululando sobre

    minha cabea, rastejavam sobre meu brao direito, distendido em uma or-

    dem involuntria contra todos os seres vis. Por vezes eu sentia um toque,

    no da Sombra, mas de mos invisveis. Senti uma vez o aperto como de

    dedos frios e macios em meu pescoo. Eu ainda estava igualmente consci-

    ente de que, se cedesse ao medo, correria perigo fsico e concentrei todas as

    minhas faculdades unicamente na vontade obstinada de resistncia. E desvi-

    ei meus olhos da Sombra sobretudo daqueles estranhos olhos de serpen-

    te olhos que agora haviam se tornado totalmente visveis. Pois ali, e em

    nada mais do que me rodeava, eu sabia existir uma VONTADE, e uma

    vontade do mal em ao, intenso, original, que poderia esmagar a minha.

    A atmosfera opaca do quarto comeou ento a avermelhar-se, como

    que aproximao de uma conflagrao. As larvas tornaram-se vividas co-

    mo as coisas que vivem no fogo. O quarto novamente vibrava; novamente

    ouviram-se as trs batidas espaadas; e novamente todas as coisas foram

    engolidas pelas trevas da Sombra escura, como se daquela escurido tudo

    surgira e a ela tudo retornasse.

    Quando a penumbra diminuiu, a Sombra desapareceu completamente.

    To lentamente quanto seu recuo, as chamas levantaram-se de novo nas

    velas sobre a mesa e tambm na lareira. O quarto todo se tornou, uma vez

    mais, calmo e sadiamente visvel.

    As duas portas ainda estavam fechadas, e a porta que se comunicava

    com o quarto do criado, ainda trancada. No canto da parede ao qual ele to

    convulsivamente se colara, jazia o co. Chamei-o; ele no se moveu. Apro-

    ximei-me. O animal estava morto, os olhos proeminentes, a lngua de fora,

  • ~ 29 ~

    as mandbulas espumantes. Peguei-o nos braos, levei-o para junto da lareira.

    Eu estava desolado pela perda de meu predileto e censurei-me severamente;

    sentia-me culpado por sua morte. Supus que ele morrera de pavor. Mas qual

    foi minha surpresa ao descobrir que, na verdade, seu pescoo estava que-

    brado. Isso fora feito no escuro? No teria isso sido feito por uma mo to

    humana quanto a minha? No haveria necessariamente uma interveno

    humana durante todo o tempo naquele quarto? Havia bons motivos para

    achar que sim. No tinha certeza. Posso apenas registrar fielmente o fato; o

    leitor tirar suas prprias concluses.

    Uma outra circunstncia surpreendente: meu relgio de pulso fora de-

    volvido mesa da qual fora retirado to misteriosamente; mas parar no

    mesmo instante em que desaparecera e, a despeito dos esforos do fabrican-

    te, desde ento no voltou a funcionar normalmente. Isto , funciona de

    modo errtico por algumas horas e depois pra. Ficou inutilizado.

    Nada mais aconteceu no resto da noite. Na verdade, logo amanheceu.

    Deixei a casa somente quando j ia adiantado o dia. Antes disso, inspecionei

    a pequena sala vazia na qual meu criado e eu havamos sido aprisionados

    por algum tempo. Eu tinha uma forte impresso no sei explicar por qu

    de que nela se originara o mecanismo dos fenmenos por assim dizer

    que vivenciara em meu quarto. E embora eu entrasse nele agora, em ple-

    na luz do dia, com o sol a penetrar pela janela embaada, ainda sentia subir

    pelos ps o terror que sentira pela primeira vez na noite anterior e que fora

    to exacerbado pelo que se passara em meu prprio quarto. No consegui,

    com efeito, permanecer mais do que meio minuto dentro daquelas paredes.

    Desci a escada e novamente ouvi um passo minha frente; e quando abri a

    porta da rua julguei ouvir distintamente uma risada bem baixa. Fui at mi-

    nha casa, contando em encontrar l meu criado fujo. Mas ele no aparecera

    e por trs dias no deu notcias, quando ento recebi uma carta sua, datada

    de Liverpool e que dizia:

    Prezado Senhor, humildemente peo desculpas, embora poucas espe-

    ranas tenha de que o senhor me julgar merecedor delas, a menos Deus

    no permita que o senhor tenha visto o mesmo que eu. Sinto que anos se

  • ~ 30 ~

    passaro antes que eu me recupere, e acho que no conseguirei trabalhar

    nunca mais. Portanto, vou ficar com meu cunhado em Melbourne. O navio

    parte amanh. Talvez a longa viagem me cure. Fico assustado e tremo o

    tempo todo, pensando que AQUILO est me perseguindo. Humildemente

    lhe peo, prezado senhor, que envie minhas roupas e o salrio a que fao jus

    casa de minha me, em Walworth. O John sabe meu endereo.

    A carta terminava com outros tantos pedidos de desculpas, um tanto

    incoerentes, e detalhes quanto aos objetos de uso sob a custdia do missi-

    vista.

    Essa fuga talvez d margem a suspeita de que ele queria ir para a Aus-

    trlia e de que matreiramente usara o pretexto dos acontecimentos da noite

    para isso. No tenho como refutar essa conjectura; ao contrrio, considero

    que essa seja uma soluo que pareceria a muitas pessoas a mais provvel

    para acontecimentos improvveis. A crena em minha prpria teoria per-

    manece inabalada. Retornei a casa na noite seguinte para trazer em uma car-

    ruagem de aluguel as coisas que l deixara e o corpo de meu pobre co. No

    fui perturbado, nem qualquer incidente digno de nota me ocorreu, exceto

    que ainda, ao subir e ao descer a escada, ouvi o mesmo som de passos

    frente. Ao deixar o local, dirigi-me casa do sr. J. Ele estava l. Devolvi-lhe

    as chaves, disse-lhe que minha curiosidade fora plenamente satisfeita e,

    quando estava para relatar rapidamente o que se passara, ele me interrom-

    peu e disse, embora com muita delicadeza, que no tinha mais nenhum inte-

    resse por um mistrio que ningum jamais solucionara.

    Eu estava decidido a inform-lo pelo menos das duas cartas que lera,

    assim como do modo extraordinrio pelo qual haviam desaparecido, e ento

    indaguei se ele julgava que elas haviam sido endereadas mulher que mor-

    rera na casa e se havia algo em seu passado que pudesse confirmar as sus-

    peitas sombrias que elas haviam levantado. O sr. J. pareceu assustado e, a-

    ps ponderar por alguns momentos, respondeu: No sei muito a respeito

    do passado da mulher, salvo, como lhe disse anteriormente, que sua famlia

    era conhecida da minha. Mas o senhor reaviva algumas vagas reminiscncias

    desfavorveis a ela. Farei algumas investigaes e o informarei do resultado.

  • ~ 31 ~

    Mesmo assim, ainda que pudssemos aceitar a superstio popular de que

    uma pessoa que fora ou o criminoso ou a vtima de crimes terrveis em vida

    conseguisse revisitar, como um esprito inquieto, o palco no qual esses cri-

    mes haviam sido cometidos, preciso observar que a casa estava infestada

    de estranhas aparies e sons antes da morte da velha senhora... O senhor

    sorri! O que o senhor diz?

    Eu diria o seguinte: que estou convencido de que, se consegussemos

    chegar ao fundo desses mistrios, encontraramos uma interveno huma-

    na.

    O qu! O senhor cr que seja tudo uma fraude? Com que finalidade?

    No uma fraude no sentido comum da palavra. Se eu subitamente ca-

    sse em um sono profundo, do qual o senhor no pudesse me acordar, mas

    nesse sono pudesse responder a perguntas com uma exatido que no pode-

    ria fingir quando acordado, dizer-lhe quanto em dinheiro o senhor tem no

    bolso; mais ainda, descrever seus prprios pensamentos; isso no necessa-

    riamente uma fraude, tanto quanto no necessariamente algo sobrenatural.

    Eu estaria, inconscientemente, sob a mesma influncia hipnotizante, que me

    foi comunicada distncia por um ser humano que havia adquirido poder

    sobre mim mediante uma ligao anterior.

    Mas se um hipnotizador pudesse causar um efeito assim sobre um

    outro ser vivo, o senhor pode imaginar que um hipnotizador conseguiria

    afetar tambm objetos inanimados, mover cadeiras, abrir e fechar portas?

    Ou provocar em nossos sentidos a crena em tais efeitos, embora

    nunca tivssemos tido uma ligao com a pessoa que age sobre ns? No. O

    que comumente chamado hipnotismo no conseguiria faz-lo; mas pode

    haver um poder afim ao hipnotismo e mais forte do que ele: o poder que

    em pocas passadas era chamado de Mgico. Se esse poder pode se estender

    a todos os objetos materiais inanimados, no sei dizer; mas se assim fosse

    no seria contrrio natureza. Seria apenas um poder raro na natureza que

    pode-ria ser dado a constituies com certas peculiaridades e desenvolvido a

    um grau extraordinrio mediante a prtica. Que esse poder possa ser esten-

    dido sobre os mortos isto , sobre certos pensamentos e memrias que o

  • ~ 32 ~

    morto ainda possa conservar e obrigar, no aquilo que deveria mais pro-

    priamente ser chamado ALMA e que est muito alm do alcance humano,

    mas antes um fantasma do que foi mais terreno neste mundo, a se tornar

    visvel aos nossos sentidos, uma teoria muito antiga, embora obsoleta, so-

    bre a qual eu no me arriscaria a emitir opinio. Mas no creio que o poder

    seja sobrenatural. Permita-me exemplificar o que quero dizer com um expe-

    rimento que Paracelso descreve como mais ou menos fcil e que o autor das

    Curiosidades da Literatura cita como crvel. Uma flor perece; incinerada. Se-

    jam quais forem os elementos daquela flor quando viva, eles desaparecem,

    dispersam-se, no se sabe para onde; no se consegue nunca encontr-los

    ou reuni-los. Mas pode-se, por meios qumicos, das cinzas dessa flor criar

    um espectro dela, com a aparncia que ela possua quando viva. O mesmo

    pode ocorrer com o ser humano. A alma saiu dele tanto quanto a essncia

    ou os elementos da flor. Ainda assim possvel obter um espectro dela.

    E esse fantasma, embora na superstio popular seja considerado a

    alma daquele que partiu, no deve ser confundido com a verdadeira alma;

    trata-se apenas de um eidolon da forma morta. Por conseguinte, como as his-

    trias mais bem confirmadas de fantasmas ou espritos, o que mais nos im-

    pressiona a ausncia do que consideramos alma; isto , da inteligncia su-

    perior e liberta de preconceitos. Essas aparies surgem com pouco ou ne-

    nhum objetivo; elas raramente falam quando surgem; se falassem, no co-

    municariam idias acima das de uma pessoa comum na terra. Os videntes

    norte-americanos publicaram muitos livros sobre comunicaes em prosa e

    em verso, que afirmam ter sido dados sob os nomes dos mortos mais ilus-

    tres Shakespeare, Bacon e sabe-se l mais quem. Essas comunicaes,

    mesmo as melhores, de forma alguma so superiores s que se obtm dos

    vivos de grande talento e educao; so imensamente inferiores ao que Ba-

    con, Shakespeare e Plato disseram ou escreveram quando na Terra. Tam-

    pouco o que mais notvel elas jamais contm uma idia que no

    houvesse na Terra antes. Por espantosos, portanto, que tais fenmenos pos-

    sam ser (a crer que sejam verdadeiros), admito que muito possa ser questio-

    nado pela filosofia, mas nada que cabe filosofia negar, isto , nada que seja

  • ~ 33 ~

    sobrenatural. Trata-se apenas de idias manifestadas de um modo ou de ou-

    tro (ainda no descobrimos como) de um crebro mortal para outro. Se, ao

    faz-lo, mesas movem-se sozinhas, ou formas malignas aparecem em um

    crculo mgico, ou mos sem corpos levantam e escondem objetos materiais,

    ou uma Filha das Trevas, como a que me apareceu, gela nosso sangue

    ainda assim estou convencido de que so apenas intervenes comunicadas,

    como que por fios eltricos, ao meu prprio crebro pelo crebro de um

    outro. Em algumas constituies h uma qumica natural, e essas constitui-

    es podem produzir prodgios qumicos; em outras, um fluido natural

    ou eletricidade , e estes podem produzir prodgios eltricos.

    Mas os prodgios diferem da Cincia Normal nisto: so igualmente

    sem objetivo, sem finalidade, pueris, incoerentes. No conduzem a resulta-

    dos grandiosos; e portanto o mundo no os nota, e os verdadeiros sbios

    no refletiram sobre eles. Mas estou certo, de tudo que vi ou ouvi, que um

    homem, to humano quanto eu, foi sua origem primeira; e acredito que sem

    conscincia dos efeitos pontuais produzidos, pelo seguinte motivo: o senhor

    disse que duas pessoas jamais vivenciaram a mesma coisa. Ora, veja bem;

    nunca houve duas pessoas que vivenciassem exatamente o mesmo sonho.

    Em uma fraude comum, o mecanismo funcionaria com vistas a efeitos qua-

    se semelhantes; em uma interveno sobrenatural concedida por Deus To-

    do-Poderoso, eles certamente teriam um motivo definido. Esses fenmenos

    no pertencem a nenhuma dessas categorias; na minha opinio, eles provm

    de algum crebro agora distante; que esse crebro no produziu voluntaria-

    mente nada do que ocorreu; que o que realmente ocorre reflete apenas seus

    pensamentos errantes, heterogneos, mutveis, incompletos; em suma, que

    se trata de sonhos que esse crebro ps em ao e dotou de uma semi-

    substncia. Que esse crebro possui um poder imenso, que pode mover ob-

    jetos materiais, que maligno e destrutivo nisso eu acredito. Alguma for-

    a material deve ter matado meu co; a mesma fora poderia, pelo que sei,

    ser suficiente para me matar, tivesse eu sido subjugado pelo terror como o

    co, no tivesse meu intelecto ou meu esprito apresentado uma resistncia

    compensadora em minha vontade.

  • ~ 34 ~

    Ele matou seu co! Que coisa terrvel! De fato, estranho que no se

    possa obrigar animal algum a ficar naquela casa; nem mesmo um gato. No

    se acham nem ratos nem camundongos l.

    Os instintos das criaturas irracionais detectam ameaas letais a sua e-

    xistncia. A razo humana tem uma percepo menos sutil, porque possui

    um poder de resistncia muito superior. Mas basta. O senhor compreende

    minha teoria?

    Sim, embora no inteiramente e aceito qualquer extravagncia

    (com perdo da palavra), embora esquisita, de preferncia a aceitar de pron-

    to a idia de fantasmas e duendes que absorvemos em nossos beros. Ainda

    assim o mal feito a minha casa continua. Que diabos posso fazer com a ca-

    sa?

    Direi o que eu faria. Estou intimamente convencido de que o peque-

    no quarto vazio contguo porta do quarto que ocupei forma um ponto de

    partida ou receptculo para as influncias que assombram a casa; e aconse-

    lho-o a que derrube as paredes e remova o soalho. Mais do que isso: derru-

    be o quarto todo. Observei que ele est separado do corpo da casa e est

    construdo sobre o pequeno quintal e poderia ser removido sem prejuzo do

    resto do edifcio.

    E o senhor julga que, se eu o fizesse...

    O senhor cortaria os fios do telgrafo. Tente. Estou convencido de

    que estou certo, que quase valer as despesas, se o senhor permitir que co-

    mande os trabalhos.

    No importa, posso arcar com os custos; quanto ao resto, permita-me

    que o comunique por escrito. Cerca de dez dias depois, recebi uma carta

    do sr. J., dizendo que havia visitado a casa desde minha visita a ele; que en-

    contrara as duas cartas que eu dissera ter recolocado na gaveta de onde as

    tirara; que ele as lera com pressentimentos semelhantes aos meus; que pro-

    cedera a uma investigao cuidadosa sobre a mulher a quem eu acertada-

    mente imaginara terem elas sido escritas. Ao que parece, trinta e seis anos

    atrs (um ano antes da data das cartas) ela se casara, contra a vontade de

    seus parentes, com um americano de carter suspeito na verdade, acredi-

  • ~ 35 ~

    tava-se que ele era um pirata. Ela, por sua vez, era filha de comerciantes

    muito respeitveis e servira como bab antes de casar-se. Tinha um irmo

    vivo, que era tido por rico, com um filho de cerca de seis anos. Um ms

    antes do casamento, o corpo desse irmo foi encontrado no Tmisa, perto

    da Ponte de Londres; havia, ao que parece, algumas marcas de violncia em

    sua garganta, mas elas no foram julgadas suficientes para se instaurar um

    inqurito e o caso foi encerrado com uma declarao de encontrado afoga-

    do.

    O americano e sua mulher ficaram responsveis pelo garoto, em virtu-

    de de ter o falecido deixado sua irm a guarda de seu nico filho e se a

    criana morresse a irm seria a herdeira. A criana morreu cerca de seis me-

    ses depois; houve suspeitas de negligncia e maus-tratos. Os vizinhos teste-

    munharam hav-la ouvido gritar a noite toda. O mdico legal que fez o e-

    xame post-mortem disse que a criana estava emaciada, como se estivesse mal-

    nutrida, e o corpo estava coberto de contuses lvidas. Parece que, em uma

    noite de inverno, a criana tentou fugir arrastou-se at o quintal, tentou

    escalar o muro, caiu exausta e foi encontrada sobre as pedras pela manh,

    agonizante. Porm, no obstante houvesse algumas provas de crueldade,

    no se pde alegar assassinato; e a tia e seu marido procuraram dissimular a

    crueldade pela alegao de extrema teimosia e mau gnio da criana, que se

    declarou ser retardada. Seja como for, com a morte do rfo, a tia herdou a

    fortuna do irmo. Antes de um ano de casados, o americano deixou subita-

    mente a Inglaterra e nunca mais retornou. Ele adquiriu uns navios cruzeiros,

    que se perderam no Atlntico dois anos depois. A viva ficou rica; mas re-

    veses de diversos tipos lhe sobrevieram; um banco faliu, um investimento

    deu prejuzo, ela envolveu-se em um negcio de pouca monta e ficou insol-

    vente. Ento, buscou empregos, afundando-se cada vez mais, de governanta

    a faxineira, nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar, embora

    nada se tenha jamais alegado contra seu carter. Apesar de considerada equi-

    librada, honesta e particularmente tranqila em suas atividades, nada dava

    certo para ela. Assim foi que acabou no asilo, do qual o sr. J. a tirara, para

  • ~ 36 ~

    ser encarregada da mesma casa da qual fora senhora nos primeiros anos de

    sua vida de casada.

    O sr. J. acrescentou que passara uma hora sozinho no quarto vazio que

    eu lhe aconselhara destruir, e que seus sentimentos de pavor enquanto l

    permanecera foram to grandes, no obstante no ouvisse nem visse nada,

    que apressou-se em derrubar as paredes e remover o assoalho como eu lhe

    sugerira. Ele contratara pessoas para o trabalho e comearia qualquer dia

    que me aprouvesse marcar.

    Marcou-se, assim, o dia. Retornei casa assombrada, entrei no lgubre

    quarto vazio, tirei os lambris e depois o assoalho. Sob as vigas, coberto com

    entulho, encontrou-se um alapo, grande o suficiente para um homem. Ele

    estava bem pregado, com parafusos e rebites de ferro. Depois de remov-

    los, descemos a um quarto abaixo, de cuja existncia nunca se havia suspei-

    tado. Nesse quarto, houvera uma janela e um fumeiro, mas eles haviam sido

    cobertos de tijolos, aparentemente muitos anos atrs. Com o auxlio de velas,

    examinamos esse lugar; ele ainda conservava alguns mveis deteriorados

    trs cadeiras, um banco de carvalho, uma mesa todos no estilo de cerca

    de oitenta anos antes. Havia uma cmoda contra a parede, na qual encon-

    tramos, meio rodas, peas de vestimenta masculina antigas, do tipo que se

    usava oitenta ou cem anos antes por um cavalheiro de posses fivelas ca-

    ras e botes de ao, como os que ainda se usam em vestes de corte, uma

    bela espada. Em um colete que no passado fora adornado de renda dourada,

    mas que agora estava enegrecida e suja de umidade, encontramos cinco gui-

    nus, umas poucas moedas de prata e um ingresso de marfim, provavelmen-

    te para um lugar de entretenimento h muito desaparecido. Mas nossa prin-

    cipal descoberta foi em uma espcie de cofre de ferro fixado parede, cuja

    fechadura muito nos custou arrombar.

    Nesse cofre havia trs prateleiras e duas gavetas pequenas. Alinhadas

    nas prateleiras havia vrias garrafas de cristal hermeticamente fechadas. Elas

    continham essncias volteis incolores, de cuja natureza direi somente que

    no era venenosa havia fsforo ou amnia na composio de algumas

    delas. Havia tambm alguns tubos de vidro muito estranhos e uma haste

  • ~ 37 ~

    pequena e pontuda de ferro, com uma protuberncia de cristal de rocha e

    uma outra de mbar tambm uma magnetita de grande poder.

    Em uma das gavetas, encontramos um retrato miniatura com moldura

    de ouro, cujas cores se conservavam admiravelmente vividas, apesar do

    grande espao de tempo que provavelmente permanecera l. O retrato era

    de um homem j na meia-idade, talvez quarenta e sete ou quarenta e oito.

    Era um rosto notvel, impressionante. Se pudssemos imaginar uma

    serpente poderosa transformada em homem e que conservasse nos traos

    humanos as caractersticas anteriores do rptil, teramos uma idia melhor

    daquela fisionomia do que podem dar longas descries: a largura e achata-

    mento da testa, o elegante afilamento do contorno, que disfarava a fora da

    mandbula letal, os olhos longos, grandes e terrveis a brilhar, verdes como

    esmeraldas, e contudo uma certa calma implacvel, como que nascida da

    conscincia de um imenso poder.

    Mecanicamente virei a miniatura para examinar seu verso e nele estava

    gravado um pentagrama; no meio deste, uma escada, cujo terceiro degrau

    era formado pela data 1765. Examinando-o mais detalhadamente, descobri

    uma mola que, ao ser pressionada, abriu o verso da miniatura, como uma

    tampa. Dentro dela estava gravado: Marianna, para ti. S fiel na vida e na

    morte a... Aqui seguia um nome que no mencionarei, mas que no me era

    desconhecido. Ouvira-o da boca de pessoas idosas, em minha infncia, co-

    mo o nome de um charlato fascinante que fizera sensao em Londres du-

    rante mais ou menos um ano e que fugira do pas sob a acusao de duplo

    homicdio dentro de sua prpria casa: a de sua amante e de seu rival. Eu

    nada disse sobre isso ao sr. J., a quem relutantemente entreguei a miniatura.

    No tivemos dificuldade em abrir a primeira gaveta dentro do cofre de

    ferro; encontramos grande dificuldade em abrir a segunda: ela no estava

    trancada, mas resistiu a todos os esforos, at que inserimos nas frestas a

    lmina de um formo. Quando assim a havamos puxado, encontramos um

    instrumento muito singular, de grande refinamento. Sobre um livro peque-

    no e fino, ou antes um bloco, estava colocado um pires de cristal; esse pires

    estava cheio de um lquido claro, e nele flutuava uma espcie de bssola,

  • ~ 38 ~

    com uma agulha que girava rapidamente; mas em vez dos pontos usuais de

    uma bssola havia sete caracteres estranhos, no muito diferentes dos usa-

    dos por astrlogos para indicar planetas.

    Um odor singular, mas no forte nem desagradvel, veio dessa gaveta,

    que estava forrada de uma madeira que depois descobrimos ser aveleira.

    Esse odor, qualquer que fosse sua origem, produziu um grande efeito sobre

    os nervos. Todos ns o sentimos, at mesmo os dois operrios que estavam

    no quarto uma sensao de formigamento e de arrepio que subia das

    pontas dos dedos da mo at as razes do cabelo. Impaciente por examinar

    o bloco, removi o pires. Quando o fiz, a agulha da bssola girou com ex-

    trema rapidez, e eu senti um choque que percorreu todo meu corpo e me

    fez deixar cair ao cho o pires. O lquido derramou-se, o pires quebrou, a

    bssola rolou pelo quarto e naquele instante as paredes oscilaram para fren-

    te e para trs, como se um gigante as balanasse e agitasse. Os dois oper-

    rios ficaram to apavorados que subiram a escada pela qual havamos desci-

    do do alapo; mas, vendo que nada mais acontecia, foram facilmente con-

    vencidos a retornar.

    Entrementes, eu abrira o bloco: ele estava encadernado de pele verme-

    lha lisa, com um fecho de prata; continha apenas uma folha de velino espes-

    so, e nessa folha estavam escritas dentro de um pentagrama duplo palavras

    em antigo latim monacal, que poderiam ser traduzidas literalmente como se

    segue: Sobre todos aqueles que adentrarem estas paredes sensveis ou

    inanimados, vivos ou mortos e moverem a agulha, ser exercida a minha

    vontade! Maldita seja a casa e desinquietos sejam os seus habitantes.

    Nada mais encontramos. O sr. J. queimou o bloco e seu antema. Ele

    demoliu a parte do edifcio que continha o quarto secreto e o compartimen-

    to sobre ele. Teve ento a coragem de habitar ele prprio a casa durante um

    ms, e casa mais tranqila e mais saudvel no havia em toda Londres. Pou-

    co tempo depois, ele a alugou bem, e seu inquilino no fez quaisquer quei-

    xas.

  • ~ 39 ~

    O QUARTO VERMELHO

    H.G. Wells

    Posso assegurar-lhe, disse eu, que somente um fantasma bem tan-

    gvel poder me assustar. E postei-me diante da lareira, com meu copo na

    mo.

    A escolha sua, disse o homem do brao mirrado e lanou-me um

    olhar de soslaio.

    Vinte e oito anos, disse eu, j vivi e nunca vi um fantasma.

    A velha senhora estava sentada, olhando fixamente para o fogo, os o-

    lhos opacos bem abertos. , disse subitamente, e h vinte e oito anos

    voc vive e nunca viu uma casa como esta, verdade. H muitas coisas para

    ver quando ainda se est com vinte e oito anos. Ela balanou vagarosa-

    mente a cabea de um lado para o outro. Muitas coisas para ver e lamen-

    tar.

    Eu tinha uma leve suspeita de que os dois velhos estavam tentando a-

    centuar os horrores espirituais de sua casa mediante seu zunido insistente.

    Coloquei meu copo vazio na mesa e dei uma olhada volta da sala; tive um

    vislumbre de mim mesmo, diminudo e disformemente alargado, no antigo

    e estranho espelho no extremo da sala. Bem, disse eu, se eu vir algo esta

    noite, ficarei mais sbio. Pois vim tratar do caso com esprito aberto.

    A escolha sua, disse o homem do brao mirrado novamente.

    Ouvi o som de uma bengala e passos trpegos nas lajes do corredor

    externo, e a porta rangeu nas dobradias quando um segundo velho entrou,

    mais curvado, mais enrugado, mais idoso ainda do que o primeiro. Ele se

  • ~ 40 ~

    apoiava em uma nica muleta, seus olhos estavam cobertos por uma som-

    bra e seu lbio inferior, meio repuxado, pendia plido e estriado de rosa de

    seus dentes estragados e amarelados. Ele dirigiu-se imediatamente para uma

    poltrona no lado oposto da mesa, sentou-se desajeitadamente e comeou a

    tossir. O homem do brao mirrado lanou ao recm-chegado um breve o-

    lhar de total averso; a velha ignorou sua chegada e permaneceu com os o-

    lhos fixos no fogo.

    Eu disse: a escolha sua, disse o homem do brao mirrado, quando

    o outro velho parou de tossir por um momento.

    A escolha minha, respondi.

    O homem da sombra pela primeira vez deu-se conta de minha presen-

    a e pendeu momentaneamente sua cabea para trs e para os lados, para

    observar-me. Pude ver, por um instante, os seus olhos, pequenos, brilhantes

    e avermelhados. Ento ele comeou a tossir e a cuspir novamente.

    Ora, por que voc no bebe alguma coisa?, disse o homem do brao

    mirrado, empurrando a cerveja em direo ao outro. O homem da sombra

    encheu um copo com um brao trmulo que derramou a metade do lquido

    na mesa de pinho. Uma sombra monstruosa dele rastejava na parede e fazia

    troa de seus gestos enquanto se servia e bebia. Devo confessar que no

    imaginava encontrar esses curadores grotescos. Para mim, existe algo de

    inumano na senilidade, algo de rastejante e atvico; as qualidades humanas

    parecem abandonar imperceptivelmente os velhos, dia aps dia. Aqueles

    trs fizeram-me sentir pouco vontade, com seus silncios sombrios, seus

    corpos encurvados, sua clara hostilidade tanto com relao a mim quanto

    entre si.

    Se, disse eu, vocs me levarem ao seu quarto mal-assombrado, eu

    me instalarei confortavelmente l.

    O velho da tosse atirou a cabea para trs, to subitamente, que dei um

    salto, e lanou-me um outro olhar de seus olhos inflamados por debaixo da

    sombra; mas ningum me respondeu. Esperei um minuto, fitando-os um a

    um.

  • ~ 41 ~

    Se, disse eu, um pouco mais alto, se vocs me levarem a esse seu

    quarto mal-assombrado, eu os livrarei do trabalho de me fazerem sala.

    H um candeeiro na prancha do lado de fora da porta, disse o ho-

    mem do brao mirrado, olhando para meus ps enquanto falava. Mas se

    voc for ao quarto vermelho esta noite...

    Justamente esta noite!, disse a velha.

    Voc ir sozinho.

    Muito bem, respondi. E onde fica?

    V pelo corredor, disse ele, at chegar a uma porta, e alm dela h

    uma escada em caracol e na metade dela h uma plataforma e outra porta

    coberta com uma baeta. Atravesse-a e siga pelo corredor at o fim. O quarto

    vermelho fica esquerda, logo adiante.

    Entendi direito?, disse eu, repetindo as instrues. Ele me corrigiu

    em um ponto.

    E voc vai mesmo?, disse o homem da sombra, olhando novamente

    para mim, pela terceira vez, com aquele estranho, bizarro repuxo no rosto.

    (Justamente esta noite!, disse a velha.)

    Foi para isso que vim, disse eu e me dirigi para a porta. Enquanto o

    fazia, o velho da sombra levantou-se e cambaleou em volta da mesa, para

    aproximar-se dos outros e do fogo. Na porta, virei-me, olhei para eles e vi

    que haviam se juntado, escuros, contra o fogo da lareira, encarando-me so-

    bre seus ombros, com uma expresso concentrada em seus rostos envelhe-

    cidos.

    Boa noite, disse eu, abrindo a porta.

    A escolha sua, disse o homem do brao mirrado.

    Deixei a porta aberta at que a chama da vela ficasse bem acesa e ento

    a fechei e caminhei pelo corredor gelado e ressonante.

    Devo confessar que a singularidade desses trs velhos pensionistas a

    quem a proprietria encarregara de cuidar do castelo e a moblia antiquada

    da sala do zelador na qual eles haviam anteriormente se reunido afetou-me,

    a despeito de meus esforos em manter minha frieza de esprito. Eles pare-

    ciam pertencer a uma outra era, uma era remota, quando as coisas espirituais

  • ~ 42 ~

    eram diferentes das nossas, menos claras; uma era em que se acreditava em

    pressgios e em bruxas e acima de tudo em fantasmas. Sua prpria exis-

    tncia era espectral; o corte de suas roupas, estilos nascidos de crebros

    mortos. Os ornamentos e objetos teis da sala a sua volta eram fantasmti-

    cos pensamentos de homens desaparecidos, que ainda assombrav