VELHO, Otavio. Entrevista.

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114 Entrevista com Otávio Velho Santuza Naves – Gostaria de saber por que razão você optou por uma carreira na área de ciências sociais e principalmente em antropologia. Otávio Velho – No caso das ciências sociais em geral, talvez tenha sido uma influência forte do meu pai. Isso pode parecer paradoxal pelo fato de ele ter sido militar, mas era um militar desse tipo militar-intelectual, que era um subgrupo dos militares que havia. Santuza Naves – Ele era tradutor de ensaios, não é mesmo? Otávio Velho – Ele traduziu mais de cem livros. Muita coisa ele traduziu, inclusive de sociologia, como, por exemplo, Mannheim e Raymond Aron; muita coisa de psicanálise, sobretudo Erich Fromm. Eu acho que ele foi quem mais traduziu Erich Fromm no Brasil. Também era uma pessoa muito interessada em história. Então o ambiente familiar era um ambiente de interesse pelas ciências sociais, particularmente pela história. Mas na es- tante dele tinha Donald Pierson, muito Gilberto Freyre, então eu acho que isso foi uma influência forte. E como os nossos nomes são parecidos, até hoje por vezes recebo elogios imerecidos por “minhas” traduções, por vezes bastante precoces, digamos. E depois tem sempre aquele esforço autobiográfico para tentar estabelecer o que tem de determinado e o que é circunstancial. Eu fui aluno do Colégio Militar [do Rio de Janeiro] e, a princípio, 9 de dezembro de 2008. Entrevistadores: Maria Isabel Mendes de Almeida, Tatiana Bacal, Octavio Bonet, Valter Sinder e Santuza Cambraia Naves. Otávio Guilherme Velho graduou-se em Ciências Políticas e Sociais pelo Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em 1964. Fez parte da primeira turma do PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social), Museu Nacional, UFRJ, que teve início em 1968, e sua dissertação de mestrado foi a primeira a ser defendida pelo Progra- ma. Doutorou-se em Sociologia pela University of Manchester, Inglaterra (1973), e fez o pós-doutorado pela Stanford University (1981). Atualmente é pesquisador associado, categoria Emérito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição cujo corpo do- cente integra desde 1972 junto ao PPGAS. Atua em várias instituições acadêmicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, da qual atualmente é vice-presidente; e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisas em Ciências Sociais. Publicou vá- rios livros, entre os quais Mais realistas que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2007); Besta-fera: recriação do mundo — ensaios críticos de antropologia (Rio de Janeiro, Attar Editorial, 2003); e Capitalismo autoritário e campesinato (São Paulo: Difel, 1976).

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VELHO, Otavio. Entrevista.

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    Entrevista com Otvio Velho

    Santuza Naves Gostaria de saber por que razo voc optou por uma carreira na rea de cincias sociais e principalmente em antropologia.

    Otvio Velho No caso das cincias sociais em geral, talvez tenha sido uma influncia forte do meu pai. Isso pode parecer paradoxal pelo fato de ele ter sido militar, mas era um militar desse tipo militar-intelectual, que era um subgrupo dos militares que havia.

    Santuza Naves Ele era tradutor de ensaios, no mesmo?

    Otvio Velho Ele traduziu mais de cem livros. Muita coisa ele traduziu, inclusive de sociologia, como, por exemplo, Mannheim e Raymond Aron; muita coisa de psicanlise, sobretudo Erich Fromm. Eu acho que ele foi quem mais traduziu Erich Fromm no Brasil. Tambm era uma pessoa muito interessada em histria. Ento o ambiente familiar era um ambiente de interesse pelas cincias sociais, particularmente pela histria. Mas na es-tante dele tinha Donald Pierson, muito Gilberto Freyre, ento eu acho que isso foi uma influncia forte. E como os nossos nomes so parecidos, at hoje por vezes recebo elogios imerecidos por minhas tradues, por vezes bastante precoces, digamos. E depois tem sempre aquele esforo autobiogrfico para tentar estabelecer o que tem de determinado e o que circunstancial. Eu fui aluno do Colgio Militar [do Rio de Janeiro] e, a princpio,

    9 de dezembro de 2008. Entrevistadores: Maria Isabel Mendes de Almeida, Tatiana Bacal, Octavio Bonet, Valter Sinder e Santuza Cambraia Naves.

    Otvio Guilherme Velho graduou-se em Cincias Polticas e Sociais pelo Departamento de Sociologia e Poltica da PUC-Rio, em 1964. Fez parte da primeira turma do PPGAS (Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social), Museu Nacional, UFRJ, que teve incio em 1968, e sua dissertao de mestrado foi a primeira a ser defendida pelo Progra-ma. Doutorou-se em Sociologia pela University of Manchester, Inglaterra (1973), e fez o ps-doutorado pela Stanford University (1981). Atualmente pesquisador associado, categoria Emrito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituio cujo corpo do-cente integra desde 1972 junto ao PPGAS. Atua em vrias instituies acadmicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, da qual atualmente vice-presidente; e a Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisas em Cincias Sociais. Publicou v-rios livros, entre os quais Mais realistas que o rei: ocidentalismo, religio e modernidades alternativas (Rio de Janeiro: Topbooks, 2007); Besta-fera: recriao do mundo ensaios crticos de antropologia (Rio de Janeiro, Attar Editorial, 2003); e Capitalismo autoritrio e campesinato (So Paulo: Difel, 1976).

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    eu ia seguir a carreira militar. Mas o Colgio Militar teve para mim essa grande vantagem: depois de oito anos, eu no aguentava mais militar. Com isso, desisti da carreira. Nessa poca, governo Juscelino, a alternativa, em geral, era engenharia, e eu tentei me preparar para engenharia, mas vi que no era o caso. E eu no me lembro exatamente como eu sou-be da Escola de Sociologia e Poltica da PUC. Eu j gostava de cincias sociais, de histria, embora de uma maneira muito amadorstica. Ento inventei para mim mesmo e para a famlia que, como eu achava que no estava preparado para fazer engenharia naquele ano e para no ficar parado, eu faria o exame para a Escola de Sociologia e Poltica da PUC e depois, no prximo ano, veria o que ia acontecer.

    Santuza Naves Quando foi isso?

    Otvio Velho Isso foi no comeo de 1961. Naquela poca era realmente assustador para as famlias dizer que voc ia fazer um curso de sociologia ou alguma coisa desse tipo. Mas a minha famlia era relativamente liberal em relao a isso. Papai nunca fez questo alguma que ns fssemos para o Exrcito. Desse modo, eu acabei fazendo circunstancial-mente... Eu me lembro que arrastei o Machado [Luiz Antonio Machado da Silva], que era meu amigo de Copacabana, de praia. Ele soube que eu ia fazer e resolveu fazer tambm. Recentemente ele declarou em pblico que foi para a sociologia por causa disso. Agora, deve haver essa questo familiar sim, porque, no por acaso, Gilberto [Velho] tambm acabou indo para as cincias sociais. Quanto antropologia, eu tambm acho que foi um pouco circunstancial, porque no curso de Sociologia e Poltica da PUC onde eu, inclu-sive, fui aluno do Prof. Candido Mendes tive o convite do professor Manuel Digues Ju-nior para ser seu assistente. Eu no percebia nenhum interesse particular pela antropologia em detrimento da sociologia ou da cincia poltica, mas teve o convite do Digues e eu o aceitei e comecei a dar aula como seu assistente. Com isso, passei a fazer um esforo maior na direo da antropologia, descobri e li O ndio e o mundo dos brancos, de Roberto Cardo-so de Oliveira. Alm disso, eu tambm estava trabalhando como assistente de pesquisa no Centro Latinoamericano de Pesquisas em Cincias Sociais, que tambm era dirigido pelo Digues. Um dia encontrei Roberto l e conversei com ele, que me sugeriu ir ao Museu Nacional para conversar mais. O resultado foi que acabei indo para l como seu auxiliar de pesquisa, na mesma poca em que Wagner Neves Rocha tambm foi. Isso aconteceu dois anos antes de comear o PPGAS, no segundo semestre de 1966. Ento eu fiquei traba-lhando l como auxiliar de pesquisa do Roberto, na poca em que ele comeou a montar o Programa junto com o David Maybury-Lewis, em articulaes com a Fundao Ford. Foi quando conheci aquela turma e ajudei o Roberto como intrprete, porque ele no falava ingls. Ento fiquei envolvido como auxiliar de pesquisa do projeto Colonialismo in-terno no Brasil. Participei de toda essa pr-histria do PPGAS. Quando o Programa co-meou, fui aluno da primeira turma e o primeiro mestre formado pelo Programa. Talvez eu devesse voltar atrs s um instantinho para dizer que uma experincia importante que

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    tive, no somente eu, mas a minha turma na Escola de Sociologia e Poltica da PUC, foi o fato de que, nesse comeo, estava iniciando o IUPERJ l na Praa XV. Comeou, salvo engano pode ser que haja detalhes a que eu, como estudante, no alcanava , com uma srie de pesquisas sobre a formao de profissionais em vrias reas que foram feitas para o Ministrio da Educao do governo militar em um perodo mais aberto. O ministro da Educao, se eu no me engano, era o Muniz de Arago, e o Candido Mendes tinha boas relaes com ele. Ento ns fomos contratados. O IUPERJ foi contratado para fazer uma srie de pesquisas sobre essa demanda de profissionais em vrias reas. Ento o Candido chamou um grupo grande dos alunos dele da PUC, que inclua a mim, o Moacir [Moacir Palmeira] e o Machado, para fazer essa pesquisa. Tambm havia professores nossos, por exemplo, a Ana Judith de Carvalho, eu no sei se voc a conhece.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Amiga da Marta Bebiano.

    Otvio Velho Amiga da Marta Bebiano, que tambm foi minha colega de turma na PUC. Depois escreveram um livro de culinria juntas.

    Maria Isabel Mendes de Almeida O Mil e umas receitas. Eu lembrei porque eu sou f desse livro delas.

    Otvio Velho Exatamente. Ento a gente fez essa pesquisa no embrio do IUPERJ. A nica pessoa do atual IUPERJ que fazia parte desse grupo era o Csar Guimares. Essa foi uma experincia de trabalho de pesquisa interessante em uma rea que no tem nada a ver com o que eu depois fui fazer. Mas eu queria registrar isso a porque tem a ver com a Escola de Sociologia e Poltica da PUC-Rio. Eu queria registrar tambm um trabalho de campo que desenvolvemos na Escola de Sociologia e Poltica da PUC, com um grupo que a gente formou por iniciativa prpria. Ns convencemos o padre vila a nos dar respaldo. Ele ficou formalmente como o responsvel. ramos eu, Moacir, Machado e alguns outros co-legas que no continuaram nessa linha, e fomos fazer uma pesquisa em Alagoas, em 1962, utilizando a infraestrutura da famlia Palmeira. Esse material infelizmente se perdeu e a gente tambm nunca publicou nada, mas hoje, pelo menos, teria um valor histrico. Foi uma pesquisa sobre reimigrao de nordestinos, ou seja, de gente que tinha vindo para o Sul e tinha retornado. Ns circulamos por todo o estado de Alagoas. Foi a minha primeira experincia realmente de trabalho de campo e me marcou muito.

    Valter Sinder As reas de economia, sociologia e poltica eram separadas?

    Otvio Velho No. Houve a separao enquanto estvamos l, e eu fui um dos res-ponsveis, porque era o representante dos alunos no Conselho que, se no me engano, chamava-se CTA. A proposta do sistema de crditos que redundava nessa separao entre

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    a economia e a sociologia foi feita por ns numa poca em que o sistema de crditos ainda no existia. Mas na minha formao na Escola de Sociologia e Poltica eu tinha muitas cadeiras de economia, inclusive com uma pessoa que depois se tornou muito querida e amiga, e depois eu at voltei para a PUC como assistente dele quando ele se tornou deca-no: Isaac Kerstenetzky.

    Valter Sinder Voc se lembra da primeira turma do PPGAS?

    Otvio Velho Ns ramos treze, sendo que eu e o Wagner j estvamos l antes de comear o Programa. Depois ento entrou esse grupo: a Alice Rangel de Paiva Abreu, sociloga do IFCS; a Claudia Menezes de Oliveira, que trabalhou com ndio e depois foi para o exterior... Hoje em dia eu no sei dela. Ela foi casada com o Paulo Thiago.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Exatamente, o cineasta. Ela est no Rio.

    Otvio Velho Eles se casaram durante o nosso curso.

    Santuza Naves Por falar em cineasta, Manuel Digues pai do Cac Diegues.

    Otvio Velho Claro, pai do Cac Diegues. Voltando lista, fez parte da turma tam-bm o Luiz Antnio Machado da Silva (a quem j me referi), a Elizabeth Mercadante, que era de fora do Rio e de quem tambm no tenho notcias h muito tempo... Quem deve saber de todo mundo o Roque Laraia. Tambm teve a Lcia Ramos Camara, filha do professor Mattoso Camara, que j faleceu, e a Eurpedes da Cunha Dias, que foi para a UnB.

    Santuza Naves Ela foi minha professora na UnB nos anos 1970.

    Otvio Velho Parece que ela est se aposentando agora j na compulsria. Mas tinha tambm a Lygia Maria Sigaud, a Maria Andreia Rios Loyola... Ela tambm j tinha tido relaes com o Museu antes do PPGAS atravs da arqueologia. Ela foi assistente de pes-quisa da famosa Madame Emperaire, uma arqueloga francesa que andava l pelo Museu.1 E a Maria Madalena Diegues Quintela, filha do professor Digues. Faz tempo que eu no tenho notcias da Madalena.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Eu tenho. Hoje em dia ela casada com o Mar-cito [Mrcio Moreira Alves].

    1 Annette Laming-Emperaire (1917-77). Bastante reconhecida como arqueloga, principalmente por ter desenterrado o mais antigo fssil humano do Brasil, que viria a ser conhecido mais tarde como Luzia. (N. da org.)

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    Otvio Velho Exatamente. Ela trabalhou durante muitos anos na FINEP e na buro-cracia da rea de Cincia e Tecnologia do governo. No me lembro mais em que rgo exatamente; no sei se foi no CNPq. Maria Rosilene Barbosa Alvim tambm fez parte da primeira turma. O Jos Srgio [Leite Lopes] veio em uma turma posterior. A Rosilene da minha turma. Ela era um caso muito interessante, porque vinha de uma outra trajet-ria. Eu acho que naquela poca ela era funcionria da Varig. Alm desses, tinha a Neide Esterci, o Paulo Marcos Amorim, que acho que foi professor do IFCS, e o Wagner Neves Rocha. Essa foi a primeira turma. J que estamos falando de PUC, interessante dizer que temos aqui dessa instituio: a Alicinha Rangel, que hoje Paiva Abreu, a Lygia e eu. Somos os puqueanos dessa turma. Depois vieram outros. A PUC teve muita presena nas primeiras turmas do Museu.

    Santuza Naves E quem eram os professores do Museu?

    Otvio Velho Era uma turma muito heterognea, porque, na verdade, a nossa ps-graduao comeou com quase nenhum apoio da universidade. Isso foi o comeo da ps-graduao. O Programa do Museu foi um dos primeiros que entrou em funo da nova regulamentao do famoso Sucupira [Newton Lins Buarque Sucupira], que formulou o Parecer Sucupira que, em 1968, regulamentou a ps-graduao nesses novos moldes, di-ferentes dos da USP, por exemplo. O nosso foi um dos primeiros. Ento a universidade no tomava muito conhecimento da gente e o Museu tambm no. Inclusive no havia aluno nenhum pelo Museu. Com isso, ns ramos um corpo estranho l dentro. O apoio foi basicamente da Fundao Ford e do Centro Latinoamericano de Pesquisa em Cincias Sociais, CLAPCS, que era um rgo muito importante ligado UNESCO. Esse Centro realmente foi muito importante. Eu fui aluno, por exemplo, do renomado socilogo me-xicano Rodolfo Stavenhagen. Primeiramente funcionou na Urca e depois na rua Dona Mariana, em Botafogo. Diegues foi o diretor desse Centro durante muito tempo. Foi um lugar importante para as Cincias Sociais no Rio de Janeiro. Tinha uma biblioteca exce-lente que teve um final extremamente melanclico. Vocs j devem ter ouvido falar disso. Foi uma causa trabalhista que um ex-funcionrio ganhou e, para pag-lo, eles simplesmen-te venderam como papel velho a biblioteca maravilhosa de cincias sociais. Voltando ao assunto do corpo de professores dessa ps-graduao em Antropologia Social, na verdade no era um grupo de professores do Museu Nacional ou da UFRJ. No comeo o Roque Laraia participou, antes de ele ir para Braslia, o David MayburyLewis... Havia muita circulao de antroplogos e socilogos americanos e brasileiros no Museu. Ns tivemos, por exemplo, a Neuma Aguiar, que depois foi para o IUPERJ, e o Roger Walker, que era o marido dela na poca. Tambm a Francisca Isabel Schurig Vieira, depois Keller. Era um grupo bem heterogneo e de qualidade varivel tambm, digamos assim.

    Valter Sinder O que se estudava em antropologia nessa poca?

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    Otvio Velho Havia uns cursos obrigatrios, como o de Organizao Social, que era basicamente sobre parentesco e etnologia, e o de Sociedade Camponesa. O primeiro a dar Sociedade Camponesa foi o Roberto [Cardoso de Oliveira] e mais tarde eu e Moacir [Palmeira] assumimos. A entrada da questo do campesinato que foi uma influncia que Roberto sofreu dos autores latinoamericanos interessante em termos da histria da Antropologia no Brasil.

    Valter Sinder E qual era a temtica das dissertaes dessa primeira turma?

    Otvio Velho Bom, deixa eu ver, a Alice [Rangel de Paiva], se eu no me engano, fez um trabalho sobre trabalhadoras na indstria txtil, mas eu no tenho certeza; a Claudia [Menezes de Oliveira] fez com ndio; a Lygia [Sigaud] com trabalhadores rurais no Nor-deste; a Madalena [Diegues] enveredou pela Antropologia da Educao e a sua disserta-o um dos poucos trabalhos nessa rea.

    Santuza Naves A Eurpedes [da Cunha Dias] trabalhou com a Fraternidade Ecltica Espiritualista Universal, um movimento messinico de Braslia.

    Otvio Velho A Eurpedes de Gois. A Rosilene alagoana e ela trabalhou com um tema nordestino, e eu fiz aquela dissertao sobre Frentes de expanso e estrutura agrria, que resultou em livro. O Paulo Marcos [Pires Amorim] trabalhou com ndios-camponeses na Paraba, e o Wagner [Neves Rocha] trabalhou com religio.

    Valter Sinder O Wagner foi para a UFF e eu fui monitor dele, ento eu conheo a dissertao dele, chamada O sbado e o tempo, em que ele trabalhou com a Igreja Ad-ventista do Stimo Dia.

    Otvio Velho O Wagner uma grande figura. Ele trabalhou muito tempo na UFF como professor na antropologia e depois virou psicanalista. Mas quero falar uma coisa interessante sobre essa primeira turma: o incio do Programa estava acoplado a um projeto de pesquisa, apresentado pelo Roberto Cardoso e pelo David Maybury-Lewis Fundao Ford, que ti-nha a ver com um estudo comparativo do Nordeste com o Brasil Central. Ento boa parte das pesquisas foi centrada no Nordeste ou no que na poca era chamado de Brasil Central. Hoje essa expresso pouco usada, mas inclua, por exemplo, a rea onde eu fiz pesquisa, o Tocantins maranhense e sobretudo paraense, onde gente do Museu j havia trabalhado, por exemplo, o Roque Laraia, o Roberto DaMatta, o Melatti [ Julio Cezar Melatti], todos j haviam feito pesquisa com ndios dessa regio. Eu comecei indo ao campo, antes do PPGAS comear, como auxiliar de pesquisa do Roque, que trabalhou com os Suru.

    Santuza Naves Ento voc chegou a fazer campo com ndio tambm?

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    Otvio Velho , a minha experincia foi essa: auxiliar de pesquisa do Roque. Eu s voltei a ter experincia com ndio de novo entre os Apurin como marido da Stela [Aze-vedo de Abreu]. Foram as minhas duas experincias com ndio. Ento, a partir do projeto dos estudos comparativos, a turma foi dividida em um grupo do Nordeste e um outro do Brasil Central. Isso envolveu uma ida coletiva ao campo. Foi uma equipe para o Nordeste e uma outra para o Brasil Central. Nessa poca, por volta de 1969, 1970, Roque j estava em Braslia, e devido a isso tivemos como base de apoio a Universidade de Braslia, no comeo de Braslia. O PPGAS comeou no segundo semestre de 1968 e a gente fez essa excurso em 1969, 1970. Eu j tinha feito campo antes. A Eurpedes, que era de Gois, deu muito apoio para a gente.

    Santuza Naves O que voc tem a dizer sobre a sua experincia na Inglaterra?

    Otvio Velho A ida para a Inglaterra fez parte desse projeto da Fundao Ford de financiar algumas bolsas para o exterior. Eu mal terminei o mestrado, eu ainda nem tinha defendido; a minha defesa foi escrita, no foi presencial. Interessante! Eu no sei quem mais chegou a ter esse esquema. Os pareceres da banca foram por escrito. Os membros da banca foram Francisca Keller, que j faleceu e d nome biblioteca do PPGAS hoje por ter sido uma presena muito importante no incio do Programa, David e Roberto, que era o meu orientador (alis, fui seu primeiro orientando). Ento eu j tinha terminado a dis-sertao, mas ainda no tinha feito essa defesa e me beneficiei dessas bolsas que o Progra-ma tinha. Foram dois os beneficiados: eu e o Gilberto [Velho]. Gilberto foi para o Texas, junto com a Yvonne [Maggie]. Ele ficou um perodo l. Eu fui para Manchester porque o Roberto tinha uns contatos l e tambm porque, na poca, era um departamento conjun-to antropologia e sociologia , o que me interessava e tambm ao Roberto. Por isso fui para l em 1970. O meu curso e a minha defesa foram ultrarrpidos. Eu gosto de brincar com os alunos quando reclamam dos prazos. O fato que eu j tinha comeado o trabalho de campo antes de iniciar o curso. Ento o programa comeou no segundo semestre de 1968 e em 1970 eu j estava indo para a Inglaterra, o que coincidiu com motivos polticos. Eu estava precisando sair, ento juntaram os dois motivos.

    Santuza Naves 1970 foi o pior perodo. Foi uma boa hora para sair.

    Otvio Velho Eu viajei e uma semana depois saiu no jornal um negcio do IPM [In-qurito Policial Militar] me mandando comparecer.

    Santuza Naves Voc estava ligado a qual movimento na poca?

    Otvio Velho Ao PCB. Ento eu sa daqui em 1970 para Manchester. Essa bolsa da Ford no era uma bolsa para doutorado. Era uma bolsa para passar um ano no exterior.

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    Ento eu fui l para passar um ano. Mas l o principal contato do Roberto era um profes-sor que depois esteve aqui como visitante, o socilogo Brian Robert, que achou que eu de-via me inscrever para o doutorado. Ento a minha bolsa, que era mais solta, mais informal, virou bolsa de doutorado por iniciativa deles. Eu acabei assim fazendo o doutorado l.

    Tatiana Bacal Voc morou o perodo todo do doutorado l?

    Otvio Velho No. No caso do doutorado eu fiquei um ano, de 1970 para 1971, de-pois eu retornei ao Brasil para fazer o trabalho de campo. De fato, o que tinha a ver com trabalho de campo para o doutorado j estava feito, porque eu continuei a trabalhar com Amaznia, com reas de frentes de expanso. Mas voltei ao campo e continuei a fazer o trabalho, depois redigi boa parte da tese e retornei em 1973, quando fiquei mais um per-odo. E defendi a tese no final de 1973.

    Tatiana Bacal E quem era o seu orientador?Otvio Velho Era o Peter Worsley, um antroplogo de certa importncia na poca. Ele tem vrios livros publicados, mas o mais conhecido o The trumpet shall sound, so-bre movimentos messinicos na Melansia. Fui aluno do Gluckman, do Clyde Mitchell e dessa turma toda.

    Santuza Naves Eu queria tambm que voc falasse sobre as suas opes em sua tra-jetria. Voc falou de uma srie de mudanas, no s de orientao terica a partir do marxismo, mas tambm de objeto de estudo do campesinato ao atual fenmeno da globalizao.

    Tatiana Bacal Dentro dessa trajetria, pautada por descontinuidades, gostaria de saber se voc verifica continuidades nessas viradas tericas. Enfim, talvez seja bom voc responder essa pergunta e, na sequncia, a gente fazer uma questo mais ampla. Se voc considera que o mundo que voc vive pautado historicamente por continuidades ou por descontinuidades.

    Otvio Velho Eu acho interessante voc chamar ateno em sua pergunta para o fato de que as descontinuidades no so s minhas. O mundo est mudando. Ento, em certo sentido, quem no muda que muda, porque o mundo est mudando. De fato, o mar-xismo e uma militncia de esquerda eram referncias muito importantes para mim nesse comeo. Alis, interessante, quando eu sa daqui e fui para Manchester, eu estava achan-do que eu estava indo para uma universidade burguesa, que no tinha nada a ver com os meus interesses marxistas. Mas na verdade aquele grupo de l era um grupo de esquerda, embora no estritamente marxista, salvo Peter Worsley, que era claramente uma pessoa da esquerda e se colocava como uma espcie de rebelde da cincia social britnica. Mas o Max

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    Gluckman era uma pessoa fortemente de esquerda. Era uma esquerda de outro tipo. Por exemplo, me chamava a ateno o Max Gluckman, de quem eu me tornei amigo pessoal por uma razo extra academia: ns tivemos a mesma psicanalista.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Vocs se encontravam na sala do consultrio?

    Otvio Velho No, no. Ele j tinha terminado. Eu fiz um apoio na primeira vez que estive l. J na segunda vez, ento, j era amigo dessa psicanalista, que acabou vindo ao Brasil me visitar. Era uma senhora velhinha e, atravs dela, eu acabei tendo relaes sociais com Gluckman fora da academia.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Foi no circuito social dela que voc o encontrou?

    Otvio Velho Exatamente, sendo que psicanlise na Inglaterra no era popular como era na poca no Brasil, em que todo mundo fazia anlise, uma coisa meio moda. Na In-glaterra no, era um mundo muito fechado. At acho que no era muito sabido que o Gluckman tinha feito anlise. Mas o Gluckman, por exemplo, coisa que um esquerdista brasileiro no teria, no pisava na Espanha por causa do Franco; era outro tipo de com-portamento tico-poltico. Eu fui Espanha vrias vezes e fiquei meio humilhado quando ele me contou que no pisava na Espanha enquanto Franco estivesse vivo. Ento, de qual-quer forma esse comportamento de esquerda continuou forte na Inglaterra e esse perodo na Europa foi interessante porque eu tambm era uma espcie de semiexilado. Eu estava respondendo a um processo aqui e vrios companheiros meus de processo j tinham se colocado claramente como exilados e ficaram muito tempo fora, embora eu tenha resolvi-do voltar mesmo enquanto ainda respondia ao processo. Alis, teve um episdio cmico quando tive que retornar Inglaterra, em 1973, porque ainda rolava o processo e eu tive que ter autorizao do juiz para sair.

    Valter Sinder Nesse perodo em que voc voltou, voc chegou a ter algum problema?

    Otvio Velho Eu vivia sob ameaa, mas na verdade o que aconteceu foi que durante a fase do inqurito policial militar, em que a polcia est atrs, procurando e torturando, eu estava fora. Quando eu cheguei ao Brasil o processo j havia sido enviado para a Justia Militar. Ento ficou mais tranquilo, embora tranquilo em termos. A gente vivia sem saber exatamente o que ia acontecer. O ambiente era esse e a minha estadia na Inglaterra e na Europa em geral foi muito sob a gide do clima poltico, que era o clima da poca. Eu pego o rescaldo de 1968 e de tudo mais. Eu convivia o tempo todo com exilados, no somente brasileiros, mas tambm de outros pases. Um dos meus melhores amigos em Manches-ter era um exilado portugus. Enfim, era esse o clima. Mas a eu quis ter a influncia da Antropologia Social Britnica. Eu achava que dava para compatibilizar mais ou menos

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    com as coisas. Eu acho que vivi e nisso eu no sou to inslito a crise da esquerda, que fez com que eu, de fato, me afastasse relativamente do marxismo e comeasse a descobrir outras coisas. Na descontinuidade, que do mundo tambm, h tambm certas continui-dades. Por exemplo, eu acho que talvez o meu primeiro trabalho maior, de mais flego, que tem a ver com outras questes que passaram a me interessar, tem a ver com cultura, com simbolismo e com religio, uma re-anlise do meu material de campo feito na Ama-znia. Aquele artigo longo O cativeiro da besta-fera uma continuidade, porque eu estou fazendo uma reanlise, e me impressionou muito porque, mesmo mudando de perspectiva, eu descobria coisas que antes eu deixava completamente opacas. No s eu, mas a maioria dos analistas, porque a maioria das pessoas que trabalhava com a rea rural no Brasil era militante, marxista, comprometida com sindicato, com movimento sindical. Eu acho que esse deslocamento foi interessante, mas em cima do mesmo material. Feito esse deslocamento, eu passei a me interessar pela questo da religio de uma maneira mais geral, passei a orientar pessoas que trabalhavam com grupos religiosos variados.

    Santuza Naves Isso foi nos anos 1980?

    Otvio Velho Sim. Foi basicamente nos anos 1980. Tambm teve certa importncia o perodo que eu passei como professor-visitante na Universidade de Stanford a convite do Richard Morse, em 1981. Da religio para essas questes mais gerais, que podem ser fala-das sob esse rtulo da globalizao, eu acho que h uma descontinuidade e tambm uma continuidade. Uma das coisas que a religio aponta justamente para esses fenmenos que no so fenmenos estritamente localizados. No s por causa das grandes religies, que tm uma vocao de converso e uma vocao expansionista, como tambm porque, no quadro do mundo atual voc pode dizer que por causa da globalizao a prpria distino entre as religies de converso e as mais tnicas e mais localizadas vai se relativi-zando. No toa que hoje voc tem o afrobrasileiro na Argentina ou se espalhando por a, em Portugal. Enfim, esse tipo de distino vai se relativizando. E tambm tem a ver com o fato de que eu nunca deixei de ser muito socilogo. Essa formao inicial na graduao me marcou. Eu sempre fui um antroplogo, mas voltado para essas questes mais gerais e interessado por essa direo.

    Santuza Naves Gostaria tambm de colocar uma questo importante, relativa construo do seu perfil de intelectual. Acredito que um dos motivos pelos quais escolhe-mos voc para entrevistado pelo fato de voc ser um intelectual no sentido de integrante de uma intelligentsia, e no apenas um acadmico que conforma a sua identidade apenas atravs do currculo Lattes.

    Otvio Velho Eu acho que, quanto a esse ponto, eu talvez tenha criado uma descon-tinuidade, porque esse tipo de intelectual mais amplo era muito comum na poca que eu

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    comecei. Depois que a coisa foi se estreitando, embora eu tenha sempre brigado um pou-co contra isso. Agora, briguei de uma maneira esquizofrnica, porque ao mesmo tempo em que eu me colocava dessa forma, digamos, mais ampla, politicamente interessada, eu tambm fui uma pessoa que batalhou pela construo das instituies. No caso especfico do PPGAS, eu fui o terceiro coordenador do Programa, posterior ao Roberto Cardoso de Oliveira e ao Roberto DaMatta. Foi um trabalho grande de montagem de instituio, de articulao com os demais, na criao da ANPOCS, por exemplo, da qual eu tambm fui presidente. Ento tem esse lado assim...

    Santuza Naves Aquele do homem pblico, do homem que atua no mundo.

    Otvio Velho , do homem pblico, mas tambm com a questo do institution-buil-ding.

    Santuza Naves Um lado construtivo.

    Otvio Velho , mas com um lado destrutivo tambm.

    Santuza Naves Eu fiquei pensando em alguns modelos de intelectual, j que voc passou do marxismo para outras configuraes.

    Otvio Velho Alis, eu estou voltando um pouco ao marxismo agora.

    Santuza Naves O que eu acho surpreendente. Eu estava pensando num perfil de intelectual que seria gramsciano, ou sartriano. Gostaria de saber se Sartre teve alguma influncia em sua formao. Ou se seria um perfil nietzschiano. Eu me lembro de minha poca de mestrado no Museu Nacional, em que voc passava por uma fase nietzschiana.

    Otvio Velho Mas essa fase j era um distanciamento do marxismo. Eu tenho dois textos dessa transio: o Cativeiro da besta-fera e um outro que tem at um carter pio-neiro porque tenho sido chamado para bancas que tocam nesse assunto , relativo a uma comparao entre Nietzsche e Weber. Foi um trabalho que me envolveu muito e que tambm foi escrito nessa passagem. Agora, veja como interessante a passagem do tempo, pois voc falou em Gramsci e em Sartre e, bem no comeo do PPGAS, quando no s eu era marxista, mas tambm boa parte das pessoas que estavam ali, como por exemplo, a Ly-gia Sigaud, a grande influncia era Althusser. No foi a primeira influncia para mim, mas nessa poca foi tambm uma maneira de tentar combinar o marxismo com a antropologia num suposto estruturalismo. Mas eu acho que passei por esses todos, embora nunca te-nha sido gramsciano, sartriano ou althusseriano, embora no comeo da antropologia um determinado rigor acadmico levasse um pouco a essa nfase em Althusser. Interessante

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    foi que, nessa ida Inglaterra, ainda no terreno do marxismo, eu descobri o Trotski e isso ficou bem forte na minha tese de doutorado. Isso no foi um afastamento propriamente do marxismo, mas do Partido Comunista.

    Santuza Naves Claro, um afastamento do marxismo-leninismo.

    Otvio Velho Essa descoberta do Trotski me encantou muito, inclusive como um literato.

    Santuza Naves O Trotski, a meu ver, a figura mais interessante do socialismo sovi-tico, mais voltado para a arte, para a cultura.

    Otvio Velho Exatamente.

    Santuza Naves Nesse aspecto, ele era mais intelectualizado.

    Otvio Velho Exatamente. Agora, o Gramsci interessante para vrias pessoas da minha gerao. A propsito, eu li a autobiografia do Leandro Konder, que tem um captulo dedicado ao Comit Cultural do Partido Comunista, em que ele cita alguns comunistas conhecidos, uns inclusive j falecidos, e deixa de citar outros, porque no teve a oportunidade de consultar se queriam que soubessem que tiveram essa ligao, embora j tenha passado muito tempo. Eu acho que o Gramsci ajudou gente como o Leandro a continuar dentro do marxismo. Eu no achei que fosse o caso. Pensei o seguinte: se j se chegou a esse ponto, com o Gramsci, por que continuar a ficar nisso, que acaba sendo uma certa priso? Ento eu no parei no Gramsci, mas acho que, para certas pessoas, como o Leandro e o Carlos Nelson Coutinho, ele foi um ancoradouro importante dentro do marxismo.

    Santuza Naves Estava pensando nesse perfil do intelectual no Brasil hoje, se levamos em conta as novas agendas polticas e sociais. A propsito, em texto que voc publicou em 2008 na Revista Brasileira de Cincias Sociais, voc argumenta que a democracia j est consolidada no Brasil, o que implica uma mudana no papel dos intelectuais, entre os quais os cientistas sociais. E voc acrescenta: No somos mais os mentores da demo-cracia. De um lado, surgiram outros mediadores e, de outro, os prprios grupos e mo-vimentos sociais assumiram em larga medida os seus destinos. E nesse processo fomos canibalizados. [...] A meu ver, isto est trazendo srios problemas de identidade para a nossa classe. Problemas cuja face tal como para ns se apresenta no caso da antropolo-gia tem at nomes, como neondios, ndios emergentes, quilombolas, pentecostais, sem terra etc. Voc poderia retomar aqui esta questo?

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    Otvio Velho Primeiramente, eu preciso situar: esse texto resulta de uma conferncia na ANPOCS de 2007, em comemorao de seus 35 anos, para a qual eles convidaram trs ex-presidentes, um de cada uma das disciplinas formadoras da ANPOCS. Mas os outros dois, Werneck e Weffort, tiveram problemas de sade, ento eu acabei sendo o nico con-ferencista. Desse modo, era uma situao em que todas as minhas ambiguidades, todos os meus paradoxos tinham que estar presentes. Ns estvamos comemorando a ANPOCS; entretanto, eu no queria fazer um discurso laudatrio. Ao contrrio, queria trazer uma opinio mais atual e um pouco crtica em relao a isso. Na verdade, eu no me lembro exatamente o que eu disse em relao a esse trecho que voc citou. Eu acho que queria chamar a ateno para o fato de que, no regime militar, ou na abertura, ns tnhamos uma posio que um aspecto da inteligncia que caducou um pouco segundo a qual os intelectuais eram os mediadores privilegiados. Alis, quando eu comecei nas cincias sociais os intelectuais tinham uma importncia pblica em seus manifestos, nas suas de-claraes, que em boa parte se perdeu e que, pessoalmente, eu no acho ruim. Talvez por um lado seja ruim, mas por outro seja bom. Mas o fato que hoje os grupos e os movimen-tos sociais falam, em certo sentido, por si mesmos.

    Santuza Naves No precisam de porta-vozes.

    Otvio Velho . No precisam de porta-vozes. Eu acho que era para isso que eu queria chamar a ateno, pois observo que h uma certa resistncia dos cientistas sociais ou dos antroplogos em reconhecer isso e tirar as suas consequncias. Por exemplo, uma das coi-sas que eu falei numa conferncia semana passada em Belo Horizonte que eu sempre fui alimentado pela minha ignorncia, quer dizer, eu no gosto de ficar circulando em torno daquilo que eu j sei. Eu sempre tenho vontade de ir adiante e enfrentar coisas que eu ainda no sei. Agora, ao fazer isso, s vezes eu fico mesmo no papel de ignorante, porque s vezes eu descubro coisas que j foram descobertas h muito tempo. Ultimamente eu tenho feito uma descoberta tardia do pensamento social latinoamericano, que meio pa-radoxal para mim, e que deve ser o tema do ensaio que eu devo apresentar na conferncia principal da RAM, em setembro. paradoxal porque, como eu disse inicialmente, eu co-mecei no Museu Nacional como auxiliar de pesquisa do Roberto Cardoso de Oliveira em um projeto sobre estudos do colonialismo interno no Brasil. Essa ideia de colonialismo interno tinha a ver com o pensamento latinoamericano que estava sendo gerado naquela poca, mas eu no percebi exatamente o que estava em jogo com isso. Ento essa desco-berta tardia do pensamento social crtico latinoamericano uma certa descontinuidade, mas tambm uma tentativa de retomada de coisas que j tinham uns fios atravs dessa li-gao com o Roberto e atravs do marxismo, embora eu pense que esse pensamento social latinoamericano atual seja tambm um desafio para o marxismo atravs de gente como o Rodolfo Stavenhagen, que tambm uma figura importante desse movimento e que, na ltima reunio da ABA, estava presente. Foi timo rev-lo depois de tantos anos. Ele

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    foi meu professor na Escola de Sociologia e Poltica da PUC. Ns fizemos naquela poca pesquisas em favela como alunos de metodologia em pesquisa do Rodolfo Stavenhagen. Ento essa redescoberta desse pensamento social latinoamericano a minha ltima novi-dade. um pensamento que eu acho que comeou basicamente l pelos anos 1960, mas que eu acho que continua forte e se desenvolvendo. Esse desligamento do Brasil em rela-o Amrica Latina realmente espantoso e faz parte desse meu esforo tentar ajudar em uma articulao no contexto da Amrica Latina. Isso, por exemplo, junta vrios fios. A gente ainda no falou da SBPC, da qual sou vice-presidente. Eu estou participando de vrios comits, e um deles de um programa chamado Pr-Sul, do Ministrio de Cincia e Tecnologia, que tem a ver com o intercmbio cientfico na Amrica do Sul. Ento estou tentando colaborar.

    Valter Sinder A quem voc se refere quando voc fala da Amrica Latina?

    Otvio Velho Eu no sou conhecedor, mas eu acho que a prpria cincia social aca-dmica latinoamericana, no s a brasileira, como a argentina, tambm no navega muito nesses terrenos. Eu acho que h um certo distanciamento. Mas eu acredito que a gente deva fazer certo esforo para tentar reverter esse quadro. Desde os anos 1960 uma figura importante o socilogo peruano Anbal Quijano, que desenvolveu ideias como a de co-lonialismo interno, que o Roberto [Cardoso] pegou, e que tambm no s do Quijano, tambm do Pablo Gonzlez Casanova. Uma outra ideia que eles trazem, entre eles o Quijano, a da colonialidade, ou seja, no o colonialismo como um perodo histrico, mas sim uma espcie de estrutura e mentalidade coloniais, sobretudo das elites dos pases colonizados. Isso interessante porque a descoberta dessa ideia de colonialidade poste-rior a essa utilizao que deu ttulo ltima coletnea: Mais realista do que o rei (onde, alis, est publicado o memorial que apresentei quando fiz concurso para professor titular e onde esto desenvolvidos vrios dos assuntos desta entrevista). No fundo, a mesma ideia. Ento essa crtica ao eurocentrismo, que hoje um movimento bem geral, que tem a sua vertente latinoamericana forte. Para dar um exemplo, eu acabei de participar de uma coletnea sobre essa cincia social Sul-Sul, organizada pelo colombiano Arthur Escobar e pelo Gustavo Lins Ribeiro, da UnB, que vai sair em portugus e j foi publicada em ingls e em espanhol. Nessa crtica ao eurocentrismo, eu utilizo o Jack Goody, um expoente hoje nesse debate e que da linha clssica da Antropologia Social britnica. Ele o ltimo de uma gerao importante que hoje est investindo muito nessa crtica ao eurocentrismo. Nessas conferncias, eu utilizei o seu ltimo livro, publicado em 2007, que se chama The theft of history, ou seja, O roubo da histria, que assinala que a histria foi apropriada e roubada pelos europeus, impondo as suas categorias. Atravs dessa colonialidade nos con-venceram de todas essas categorias. Isso inclusive envolve uma reviso da prpria histria europeia e da ideia de um excepcionalismo europeu. Eu acho que isso vira de cabea para baixo toda a nossa formao, porque as cincias sociais so europeias em suas bases for-

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    madoras. Assim, para voc comear a mexer com isso, mexe em tudo, inclusive em como a gente fica em relao ideia de alteridade, das diferenas, quando a gente descobre que de alguma maneira essa construo da diferena foi eurocntrica, para marcar o excepcio-nalismo europeu. Isso significa mais uma vez uma politizao... Essa minha preocupao poltica nem sempre foi to uniforme; ela fez parte dessa crise do marxismo, dessa crise da esquerda, que tambm foi um ponto despolitizador em meu prprio trabalho durante algum tempo. Agora eu acho que ele est se politizando novamente. Ento nesse sentido uma certa retomada. Essas questes que esto sendo colocadas pelo pensamento social latinoamericano so desafios srios para o prprio marxismo, que tambm eurocntrico. Eu acho que uma questo que o marxismo realmente no conseguiu lidar a questo tnica. Hoje eu vejo essa questo no como um detalhe ou anedtica, que s cabe a pases como Bolvia ou Peru, mas como uma questo-piv para se repensar a histria desse pas e ver como isso se encaixa, dentro dessa imensa dificuldade que a Amrica Latina tem em lidar com esse problema.

    Octavio Bonet sobre esse fechamento da antropologia brasileira em relao ao pensamento latinoamericano. Pelo que entendi, na Argentina tambm se daria esse fe-chamento, no ? Mas aqui no Brasil isso se daria por uma preocupao da antropologia brasileira de pensar o Brasil?

    Otvio Velho Eu acho que tem a ver com o eurocentrismo, ou seja, as nossas refern-cias eram o Primeiro Mundo e a gente achava que no tinha nada a aprender com o que estivesse fora dele. E penso que tem a ver tambm com um certo brasilocentrismo, no sentido de que o objeto da cincia social brasileira o Brasil. E h um certo estranhamen-to e h muitas razes para isso, as quais no alcano, mas que merecem ser discutidas desse distanciamento, que no s da intelectualidade, com relao ao resto da Amrica Latina. Eu no sei bem, mas acho que a Argentina deve ter um pouco disso tambm, de-vido a preconceitos eurocntricos da intelectualidade, mas ainda assim eu sinto que l h mais laos com o resto da Amrica Latina do que no Brasil.

    Octavio Bonet Eu tenho uma pergunta com relao a esse trecho do seu artigo lido pela Santuza sobre os novos mediadores sociais: como esses novos mediadores (neon-dios, quilombolas, etc.) so um desafio para a prtica da antropologia?

    Otvio Velho Eu acho que esses movimentos se constituem loci de produo de co-nhecimento, no em nossa linguagem ou em nossos termos. Ento eu acho que o nosso desafio tentar algum tipo de comunicao pelo qual a gente consiga entender o que est sendo dito. um desafio grande. Eu me lembro, por exemplo, que teve uma reunio da SBPC em Altamira em que eu fiz um tipo de observao meio de passagem em relao ao que me parecia equivocado nesses movimentos sociais dos ndios, essa nfase na ideia de

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    tradio de uma maneira reificada, a ideia de uma tradio milenar, eles usam esse tipo de expresso. Houve uma reao de um grupo de advogados e advogadas de grupos indgenas contra o que eu falava. Ento eu senti que o que estava em jogo era outra coisa para alm dessas palavras de tradio milenar, que uma linguagem, um conceito poltico. Voc no vai desarmar o movimento social, fazer com que ele abra mo da arma ou do patrimnio que tem para que ele se encaixe naquilo que voc acha que academicamente deva ser dito. Mas voc deve tentar entender o que est sendo dito com isso. E assim tambm a expro-priao do nosso conceito. Nessa conferncia eu me lembro de ter visto um programa na TV sobre um tipo de dana indgena, sobre a qual uma reprter pergunta: Mas como se chama essa dana de vocs?. E o indgena responde: Essa dana se chama ritual. Ento, nessa expropriao dos nossos conceitos, vemos que ns no temos mais o monoplio sobre eles, o que representa desafios. Recentemente eu estava lendo um trabalho sobre a Bolvia, no qual a autora tentava chamar a ateno para a insistncia na folha de coca como referncia dos movimentos indgenas na Bolvia. Ela procura mostrar como isso emblemtico de um determinado tipo de referncia justamente porque tudo est mu-dando. As coisas no esto paradas. No existe estritamente tradio milenar, o que tem a ver com a prpria legislao de ter que mostrar a ocupao imemorial do territrio, tem a ver com isso tudo. Entretanto, isso acaba criando outras coisas. A tradio no significa exatamente a ideia reificada de tradio, embora signifique utilizar-se politicamente des-ses elementos tradicionais. o caso, por exemplo, do Sul da Bahia. Eu acho que no Brasil hoje no h ndios com mais cara de ndios do que no Sul da Bahia, porque esto de certa forma se fantasiando de ndios. Isso faz sentido. Ao contrrio da antropologia clssica, que tenderia a ver isso como esprio, eu acredito que a gente deve, de alguma maneira, tentar entender isso mais profundamente. H algumas coisas do politicamente correto que ainda no chegaram aqui, mas que provavelmente vo chegar, por exemplo, o fato de voc ter que reconhecer a autoridade do nativo, de voc tomar certos cuidados que podem parecer contrrios nossa liberdade de pesquisa. Eu acho que so coisas que vo aconte-cer em outros pases e que provavelmente vo chegar aqui. Eu acho que na prtica desses grupos existe um tipo de antropologia que est sendo gestada, e que eu acho interessante. No ms passado eu estive em outra reunio da SBPC, em Oriximin, na qual tambm se encontravam os ndios Wai-wai vendendo umas coisas.

    Santuza Naves Esses ndios so de onde?

    Otvio Velho Esse grupo que eu conheci fica em Oriximin, que fica no rio Trombe-ta, um afluente do Amazonas, quase no limite com o estado do Amazonas. Tinha l uma pea de pano, uma tanga, sobre a qual eu perguntei a um Wai-wai: E essa tanga aqui, quem usa essa tanga? Ele respondeu: So as mulheres. Fez uma pausa e continuou: Mas quando ns quer mostrar cultura, ns tambm usa. Essa situao to paradoxal e to interessante! E tudo isso um desafio.

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    Santuza Naves Eu gostaria de saber como voc pensa o significado de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos.

    Otvio Velho Interessante, eu acho que o Barack Obama uma figura que d para voc enxergar do jeito que voc quiser. Por exemplo, h quem enxergue nele um negro, h quem veja um mestio. Correndo o risco de uma possvel ingenuidade, eu acho que deva ser um fato interessante para eles e talvez para ns tambm. Agora, quanto aos limites de sua atuao, se ele vai fazer ou no, at que ponto isso irreversvel ou no, ainda preciso ver. Isso tudo uma conjuntura muito especial de desgaste poltico grande dos republi-canos, no s em funo do governo Bush e o consequente desastre da poltica externa, mas tambm por todos os desgastes econmicos. E h essa retrica de que eles que so os racistas e ns no somos, mas eu acho que no Brasil seria difcil que surgisse um Barack Obama. Isso d um pouco o que pensar para ns aqui.

    Santuza Naves claro que teramos que comentar aqui aquele seu texto que se tor-nou cult, o Relativizando o relativismo. Trata-se de um trabalho dos anos 1980 e eu gos-taria de saber como voc o v hoje. Eu queria que voc comentasse um argumento que muito importante nesse texto em que voc diz que o relativismo deveria ser tomado como um mtodo e no como uma viso de mundo.

    Otvio Velho Nesse ponto eu estou mais dentro da tradio antropolgica. Quan-do os antroplogos falam em relativismo, no uma posio filosfica, metafsica que est sendo colocada. Lendo essa biografia do Leandro Konder que mencionei, eu fiquei impressionado em ver que a grande briga dele continua sendo contra o relativismo. E apesar de nesse texto eu falar sobre relativizar o relativismo, eu acho que eu sou bastante relativista nesse sentido. Eu acho fora de propsito o sujeito decidir combater o relati-vismo. Eu no vejo muito sentido nisso, porque eu acho que no um relativismo que pretenda se colocar em uma posio metafsica relativista. Agora, o meu pensamento hoje de que essa ideia do relativismo se associa mais quilo que hoje mais claro para mim, que a crtica a um determinado tipo de universalismo, que tende a no reconhe-cer que os universais no existem abstratamente; eles existem, digamos assim, enquanto capacidade de se impor como universal. Isso tem a ver com a crtica do eurocentrismo. Todas as categorias europeias foram eleitas, ganharam status de categorias universais em funo do fenmeno histrico-poltico muito definido, que o fato de que as catego-rias europeias tiveram condies de se impor enquanto categorias universais. Ento essa crtica ao universalismo que hoje muito atual em funo dessa discusso sobre o eurocentrismo. Eu acho que uma certa retomada do relativismo. Hoje eu estaria rela-tivizando menos o relativismo e apostando mais no relativismo nesse sentido da crtica aos supostos universais abstratos.

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    Octavio Bonet H um tempo discutia-se a oposio entre a representao e a expe-rincia. E isso vinha associado a uma perspectiva pragmtica da antropologia. Hoje tem outra discusso que gira em torno da categoria identidade. Para alguns antroplogos essa categoria seria obsoleta e para outros continuaria sendo uma chave analtica importante. Eu gostaria de saber qual a sua opinio nesse debate.

    Otvio Velho Eu no conheo to bem a literatura, mas, primeira vista, eu fico com esse segundo grupo. Eu acho que essa nfase na identidade e essa nfase no embodiment no sentido do Csordas [Thomas Csordas] ainda fazem parte de um tipo de quadro de referncia da cincia social que est associado ao eurocentrismo e ao privilegiamento de uma ideologia individualista. No fundo uma nfase no indivduo que est colocada a. Eu acho que essa crtica ao eurocentrismo tenta de uma maneira retirar a ideia de que o indivduo uma inveno europeia e exclusiva daquele continente. Eu acho que uma das coisas da crtica ao eurocentrismo sugerir que na constituio da cincia social houve um exagero em uma srie de dicotomias constitutivas daquela cincia, entre elas o individua-lismo e o holismo. Houve um exagero no sentido de que no existe essa exclusividade do indivduo na Europa. Hoje em dia h pessoas que trabalham com sociedades indgenas e falam sobre indivduo, e esse indivduo europeu est associado necessariamente a algo complexo. Por exemplo, tem a ver com democracia, tudo isso como exclusivismo europeu. Eu acho que tudo isso est sendo contestado com essa crtica ao eurocentrismo. Nesse sentido eu seria favorvel a um deslocamento, que no implica deixar de pensar em identi-dade, ou em embodiment, nos termos do Csordas, mas talvez no dar a essas questes uma posio to central. Nesse ponto, Bateson [Gregory Bateson] muito importante, devido ideia do relacional. Na linha de Bateson e de Tim Ingold, a sugesto seria a de pensar o embodiment como uma questo relacional e no como a dos corpos tomados assim como entidades reificadas.

    Octavio Bonet Voc coloca ainda naquele texto esses dois autores, Ingold e Bateson, como engajados nessa construo de um paradigma ecolgico. Essa perspectiva ecolgica permitiria questionar posies gerais sobre natureza e cultura, e aqui cito uma frase sua do texto A religio, um modo de conhecimento: a possibilidade de dilogos positivos entre as humanidades e as cincias naturais. Mas tem uma questo no Tim Ingold que me incomoda: ele radical. Ele diz que as nossas caractersticas individuais so produtos da nossa relao com o ambiente, que ele chama de habitat. Portanto, seria anterior ao pro-cesso de desenvolvimento. Ele diz assim: Assim, as diferenas culturais seriam biolgicas. Para concordar com essa proposio do Ingold no teramos que abrir mo da antropolo-gia e da biologia como disciplinas independentes? Voc v um caminho possvel?

    Otvio Velho Talvez o Ingold imagine isso. No me parece que isso seja possvel dentro do horizonte praticvel. Mas acho que o fato de isso no ser possvel dentro do horizonte

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    praticvel, eu acho que no significa que voc no possa dizer nos termos do Ingold que a cultura biologia. Eu acho que voc pode dizer isso e continuar a trabalhar como antro-plogo. S que isso d s suas categorias um outro tipo de referencial. Em meu horizonte de vida, eu no vejo como isso pudesse acontecer sem que isso significasse uma rendio da cincia social a um dado imperialismo da cincia biolgica. Agora, estou na SBPC e estou impressionadssimo com a fora poltica dos bilogos, ento, desse ponto de vista no desejvel. Mas eu tambm acho que quando o Ingold ou o Bateson dizem isso, no esto querendo essa rendio. Eles acham que, na verdade, possvel, de alguma maneira, o oposto, ou seja, se a cultura biolgica, a biologia cultural. O movimento deles bem complexo. Na prtica do campo intelectual difcil voc realizar isso terminando com as disciplinas. Mas voc pode utilizar isso possibilitando uma liberdade maior. Acho que os antroplogos e nesse caso eu me incluo so muito ignorantes a respeito de outras reas do campo cientfico, inclusive a biologia. Acho que isso no bom. Isso estreita as nossas observaes ou ento nos torna indefesos quando, por exemplo, alguns colegas decidem agora dizer que no existe problema racial no Brasil porque voc prova pelo DNA que todos ns somos mestios e com isso est encerrado o assunto. Nesse ponto, sim, me pa-rece uma rendio biologia totalmente despropositada, pois a questo dita racial deixa de ser vista como social, cultural, o que nada tem a ver com DNA. Eu no sei se voc tem que tirar do Ingold e do Bateson essa ideia da fuso das disciplinas. Eu no tenho certeza. Eu acho que depende da leitura, porque esses autores so muito complexos, eles colocam nfases diferentes conforme o texto. Proximamente no vejo isso sendo realizvel e nem acho isso desejvel. Mas uma abertura de comunicao maior eu acho fundamental para ns e para eles.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Voc disse que est restaurando as suas razes marxistas e, por coincidncia, me ocorreu de lhe perguntar sobre o filsofo esloveno Sla-voj iek. Ele faz duras crticas ao que ele chama de liberalismo multicultural e toleran-te da sociedade contempornea. O foco de sua crtica incide sobre o grave processo de despolitizao da economia. Eu perguntaria qual seria a sua viso desse diagnstico do iek, sobretudo quanto crtica que ele faz ao que seria uma verso tolerante do multi-culturalismo. Ele diz contundentemente que o respeito por essa noo de universal passa justamente pela ideia de que eu no tenho que conhecer o outro, eu no tenho que exp-lo sobre a mesa e abrir as suas vsceras, porque no interessa.

    Otvio Velho Exatamente. No tenho como falar a partir do iek, porque no o conheo direito. Mas com base no que voc disse, eu concordaria com ele. Tambm nessa ltima reunio l em Oriximin percebi uma coisa interessante. Em uma conferncia mi-nha, havia uns estudantes secundaristas locais extremamente bem informados. Eu estava falando sobre questes interreligiosas e eles sabiam sobre os curdos, sobre as guerras, sobre o Saddam Hussein, sobre a Turquia. Eu fiquei impressionadssimo. Outra pessoa da pla-

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    teia, que estava com um colar Wai-wai disse assim: Essa semente aqui do colar dos ndios, voc sabe de onde vem? E um dos estudantes disse: No tenho a menor ideia. Esse tipo de ignorncia em relao ao seu ambiente imediato faz com que, por exemplo, na Ama-znia, seja muito forte uma espcie de reao do tipo regionalista, como algo assim: Ns temos que ser Amaznia. Isso a inclusive tem uma sofisticao muito grande, no estou subestimando. Eu tive uma discusso sobre isso com o Enio Candotti, que atualmente est l em Manaus e que dizia, por exemplo: um absurdo que os livros didticos daqui este-jam falando de coisas do Sul do pas ou sobre elefantes e no estejam falando da capivara e das coisas daqui. Mas, no mbito dessa discusso, a minha resposta foi a seguinte: Bom, tudo bem. Meu neto que est no Rio de Janeiro, eu no quero que ele conhea apenas o Rio de Janeiro. Ao contrrio, eu quero que ele conhea tambm a Amaznia. Ento essa ideia dos mundos estanques, do mundo multicultural, eu seria completamente contra, embora eu entenda que, de certa maneira, no s uma questo liberal. Eu vejo que isso faz sentido como reao, por exemplo, na Amaznia, que sofre esse tipo de invaso de fora. Mas eu acho que a resposta no essa no mbito dessas discusses do pensamento social latinoamericano, pois embora alguns falem em multiculturalismo, outros falam em interculturalidade.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Canclini [Nstor Garca Canclini], por exem-plo.

    Otvio Velho Sim. Eu sou mais favorvel a isso. Mas a tambm voc tem que tomar certo cuidado, porque a ideia de que voc tem que ter interculturalidade, se mal aplicada, pode disfarar as assimetrias das relaes e a permitir, digamos assim, um outro tipo de dominao.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Uma dominao tolerante.

    Otvio Velho No tolerante, mas que signifique mesmo uma invaso. Ento eu diria que a resposta seria a interculturalidade, mas que o desafio seja garantir as condies de simetria dessa interculturalidade, o que no um problema pequeno.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Canclini diz que a prpria ideia de multicultu-ralismo implica impasses que no so resolvveis.

    Otvio Velho Eu concordaria tambm com isso. Quanto minha volta ao marxismo, em parte tem a ver com essa politizao, mas em parte tem a ver tambm com uma crtica ao marxismo enquanto eurocntrico. Ultimamente uma coisa mais especfica que eu estava querendo retomar, uma coisa que eu acho que eu sempre quis fazer... Eu sempre fui muito crtico das posies do intelectual, dos cientistas sociais, do antroplogo, quanto

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    a uma determinada onipotncia e uma tendncia de sempre objetivar aquilo que ele est observando, do tipo eu sou o sujeito e o outro objeto. Por exemplo, em relao aos trabalhos sobre religio, eu sempre tentei mudar essa relao. Eu tenho um artigo cujo ttulo O que a religio pode fazer pela cincia social?, ou seja, o que ns podemos aprender com esse nosso objeto? Isso significa, na relao com as pessoas, lev-las re-almente a srio e no trat-las como objeto, como ignorantes, assim como, no caso atual dos movimentos sociais, levar a srio que eles so produtores de conhecimento. A mesma coisa eu digo em relao teologia. Eu acho que se deve sempre levar a srio o outro como produtor de conhecimento. Antes de eu me dar conta totalmente do que estava fazendo essa crtica ao eurocentrismo , andei me interessando nos ltimos anos pelo cristianismo ortodoxo, que ajuda a voc a deseuropeizar o cristianismo, que tambm foi roubado pelos europeus. O cristianismo surgiu no Oriente Mdio. Ele se desenvolveu durante sculos a partir de Bizncio e no era um fenmeno europeu. E impressionante como a gente se deixa a levar por esse roubo da histria, para utilizar a expresso do Goody. Ento eu me interessei muito pelo pensamento, sobretudo da patrstica, dos primeiros sculos do cristianismo ortodoxo, do cristianismo a partir de Bizncio. E nesse ponto de extrema sofisticao o que voc pode discutir da linguagem religiosa. Eu cheguei a escrever um texto em que tento aproximar a ideia do duplo vnculo do Bateson com a discusso de an-tinomia e paradoxo na linguagem religiosa. Isso saiu em uma revista eletrnica chamada Rever, da PUC de So Paulo. Ento essa coisa do paradoxo e da antinomia me fez a voltar a pensar nos usos que Marx faz da dialtica. Hoje a minha hiptese, embora eu esteja apenas no comeo da minha explorao, de que a dialtica, tal como Marx a trabalhou, tinha muito a ver com essa ideia do paradoxo e da antinomia que eu estou vendo na lin-guagem religiosa. E existem, de fato, algumas fontes que permitem pensar isso. Ento, no momento, o meu interesse maior no marxismo no tive tempo ainda de me aprofundar principalmente epistemolgico.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Nos atuais cenrios contemporneos em que se verifica a clara dissociao entre noes de identidade e de territrio, como pensar as diferentes dimenses da interculturalidade que esto no mago dos processos de globa-lizao? Como repensar hoje a identidade latinoamericana no quadro de uma abertura internacional?

    Otvio Velho Eu acho que eu no sei responder plenamente a isso que voc est di-zendo. Talvez a minha primeira reao seja em direo a essa politizao. Eu acho que s vezes a antropologia despolitizada e um pouco ingnua. A identidade latinoamericana no uma coisa que surge espontaneamente ou que existe essencialmente. Isso so jogos em movimento da vida social e a gente, de antemo, no sabe o que vai predominar. E isso complexo, porque esses jogos so contextuais. Eu acho que isso pode ser traduzido pela linguagem da poltica, na medida em que so movimentos polticos. Isso tem a ver com

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    outra vertente, que a crtica da modernidade, sendo que a minha posio frente a isso nunca foi antimoderna, ou ps-moderna, mas antes disso uma ideia de pluralidade de mo-dernidade que eu precisaria investigar. Desse modo, eu consigo ver um certo aporte com o passado, pois eu acho que o que eu chamava, nos anos 70, de capitalismo autoritrio, em contraposio ao que seria um capitalismo burgus, hoje eu chamaria de modernidades. Nessa crtica da modernidade, um dos pontos fortes a questo da soberania nacional e do Estado-nao. Esses so pontos nos quais a cincia social ficou muito aprisionada, sobretudo a cincia poltica. Essa questo da soberania aparece muito, por exemplo, nesse caso da Raposa Serra do Sol, que a questo luz do dia. H uma dificuldade em lidar com ambiguidades, paradoxos, antinomias, no que diz respeito a essa questo. Assim, essa tendncia a reificar o Estado-nao tambm um fenmeno que me chama a ateno. interessante, porque a partir dessa conduta se relativiza as posies de esquerda e direita, por exemplo. Um dos grandes defensores dessa questo da nacionalidade e que se colocou contra a demarcao da terra indgena Raposa Serra do Sol inclusive respondeu na Folha de So Paulo a um artigo do Carlos Caroso presidente da ABA, o Aldo Rebelo, deputa-do do PC do B que leva ao paroxismo esse negcio do Estado nacional. Esse foi um outro ponto que eu tentei desenvolver em Belo Horizonte em relao interculturalidade. Eu acho que um relativo fracasso da antropologia no sentido de preparar a nossa sociedade para uma realidade intercultural. Isso cria um paradoxo curioso, porque a antropologia no Brasil assim to desenvolvida, to sofisticada, to respeitada, inclusive internacio-nalmente, mas voc v como a sociedade brasileira absolutamente provinciana e des-preparada para encarar as questes de interculturalidade. Ento eu estou provocando um pouco os antroplogos e dizendo que isso o fracasso da antropologia. Eu acredito que de alguma maneira a gente deveria acordar para isso e tentar ver o que podemos fazer nesse sentido. Isso coincide com o fato de que est havendo no momento eu vejo isso atravs da SBPC um grande despertar das comunidades cientficas para as questes da educa-o. E de repente, essa comunidade nossa, que to sofisticada e que tanto se orgulha de seus currculos Lattes, descobre que est em um pas com srios problemas. Est havendo um movimento que tenta colaborar; no toa que a CAPES agora resolveu enfrentar a questo da formao dos professores secundaristas, criando o que est sendo chamado de CAPES do B, e que tenta fazer a ponte entre a academia e o ensino de uma maneira mais geral. A gente se acostumou a esse descalabro. Ento eu acho que a antropologia tem que buscar a sua contribuio para esse processo e, nesse ponto, eu acho que a questo da inter-culturalidade central. Os ndios tm uma expresso apropriada para esse caso: amansar o branco. No ensinar o ndio, mas sim ensinar o branco. Eu diria at que h uma misso em jogo para a antropologia. O fato de voc no conseguir resolver o problema no sig-nifica que no possa, de alguma maneira, lidar com a questo. Por exemplo, o racismo. Eu acho que no nosso objetivo mexer na cabea do sujeito fazendo com que ele deixe de ser racista, mas que o racismo, enquanto poltica de Estado, no prevalea, e a sociedade, as-sim, possa avanar. Os Estados Unidos, por exemplo, no resolveram a questo do racismo

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    com a eleio do Barack Obama, mas nem por isso no deixa de ser significativo o fato de isso ter acontecido. Mas eu concordo com voc de que h coisas que no h soluo, mas nem por isso devemos ficar parados. Eu acho que h algo que se deva fazer.

    Maria Isabel Mendes de Almeida O que eu vou lhe propor tem a ver com um antigo texto seu que foi muito elucidativo para mim, A representao em antropologia, que resultou de uma conferncia e foi publicado no Besta-fera. Queria recuperar o seu ar-gumento para pensar a ideia do Bruno Latour sobre a ideia do texto e do contexto, ou seja, a sua convico de que h certas categorias que so impossveis de serem descontextualiza-das porque elas acontecem in acto. Para Bruno Latour, os laboratrios de alta tecnologia constituem hoje lugares privilegiados de investigao etnogrfica para uma antropologia das cincias, corao de uma antropologia da modernidade. Metodologicamente, trata-se de seguir as coisas atravs das redes em que elas se transportam, descrev-las em seus enredos. Ele nos reitera: preciso estud-las no a partir dos polos da natureza ou da sociedade, com suas respectivas visadas crticas sobre o polo oposto, e sim, simetricamen-te, entre um e outro. Como voc pensaria hoje essas questes luz de Antropologia e representao, em que voc, ao se referir crise da representao (e ali empreender uma crtica das excessivas substancializaes de categorias que, de fato, s ganham sentido in acto) discute a ideia de contextualizao, no no sentido de uma localizao sociologica-mente dada, mas de contextos (diversos) construdos conforme o propsito e a recepo? E acrescenta: tambm no no sentido de reproduzir as dicotomias ou de imaginar nveis ou instncias fundamentais, e sim no sentido de substitu-los todos por uma nica opera-o (ativa), em que o significado apenas sinnimo de movimento e causao no interior da narrao (e re-narrao) do texto.

    Otvio Velho Eu no tenho o texto na cabea. Eu me lembro que uma das coisas que me chamou a ateno na poca foi a defesa do Amir Geiger; no s a dele, mas muitas outras, em que houve cobrana de contextualizao. E me pareceu que se falava de con-textualizao num sentido reificado, como se ela fosse uma coisa que est dada e que voc, ento, teria que pensar em funo de algo pr-existente. Eu achava isso extremamente empobrecedor, porque assim as coisas ficavam todas muito repetitivas. Esse contexto era sempre o mesmo contexto. Havia pouco estmulo criatividade, possibilidade de voc pensar a partir de ngulos diferentes, de recontextualizar, como uma operao ativa. Eu tenho a impresso de que continuo concordando com isso.

    Maria Isabel Mendes de Almeida E isso no tem conexes com o Latour?

    Otvio Velho Acho que sim. Esse texto anterior s discusses que eu fiz sobre La-tour.

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    Maria Isabel Mendes de Almeida Muito anterior.

    Otvio Velho Ento eu fico satisfeito que voc tenha percebido isso.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Acho que sua intuio foi avant la lettre.

    Otvio Velho interessante que coisas assim sejam mais percebidas fora de seu con-texto imediato, mas acho que poucas pessoas so capazes de perceber isso de maneira criativa. Alis, a propsito das continuidades e das descontinuidades, eu no tenho como movimento ficar buscando coerncias; ento as eventuais continuidades s podem ser verificadas ex post. E s um exerccio como este que pode revelar mais do que eu mesmo. Eu tento no fazer esse exerccio permanentemente. S de vez em quando que eu perce-bo uma coisa ou outra. Nessa ltima coletnea eu coloquei algumas observaes e alguns comentrios introdutrios a alguns textos, porque eu fao pouco esse exerccio de verificar algumas pontes.

    Maria Isabel Mendes de Almeida Tendo em vista o contemporneo, o prprio Latour aponta a necessidade de a gente unir termos tradicionalmente opostos, como o discurso da autonomia, referenciado modernidade, e o do attachment, eliminando essa dicotomia.

    Otvio Velho Eu acho que isso tem a ver com o que eu estava falando anteriormente sobre a crtica ao eurocentrismo, associada crtica aos pressupostos das cincias sociais, incluindo essa crtica ideologia individualista que, de alguma maneira, est como pres-suposto na cincia social. Eu acho que o Latour vai nessa direo.

    Valter Sinder Retomando a discusso sobre contexto, o Amir coloca a possibilidade de recontextualizar, e no de ser obrigado a refazer a histria das cincias sociais ou da antropologia em termos da ideia de nao, de identidade.

    Otvio Velho Sem dvida. Na conferncia que fiz em Belo Horizonte, eu prestei uma homenagem ao Matta [Roberto DaMatta], porque eu acho que a discusso dele sobre os rituais nacionais vai nessa direo de uma possvel contribuio da antropologia a uma desreificao da ideia de nao, que no est dada como um contexto permanente. A ideia do ritual ajuda a pensar nessa nao desreificada. Eu acho que o Matta pode ser apropria-do dessa maneira. Eu acho isso interessante.

    Tatiana Bacal Vou sair um pouco do tema e fazer uma pergunta que talvez se relacione com as questes iniciais. Eu j vi muito voc perguntar aos alunos sobre as caractersticas estritamente antropolgicas de algum trabalho em questo. O que marcaria a diferena na

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    qualidade especificamente antropolgica de um trabalho? Isso seria possvel de identificar dentro desse contexto de interdisciplinaridade?

    Otvio Velho interessante, porque eu no tinha conscincia de fazer esse tipo de questo. Eu s vezes me irrito com um certo triunfalismo dos antroplogos, ento no tinha conscincia de fazer isso. Cada um tem a sua antropologia, mas para mim o que eu extraio dela essa ideia da desreificao, de nunca se deixar levar por um quadro de referncia fixo a priori, mas estar sempre tentando mexer. Seria fazer uma m sociologia utilizar todos os conceitos j construdos e enquadrar tudo naqueles conceitos. Isso tem a ver com o fato de que na antropologia, ao menos na retrica, ns falamos tanto em etnografia, em trabalho de campo, o que eu acho que sinaliza para uma espcie de prima-zia dessa relao com o real, que no se deixa domesticar pelos quadros conceituais e de referncias j dados. Ento por isso que eu me divirto cada vez que consigo desafiar a minha prpria ignorncia e vejo como fui e continuo sendo extremamente eurocntrico, aceitando acriticamente uma poro de coisas. Isso um exerccio permanente. Eu gosto tambm do exerccio permanente, ou seja, a ideia de no ser preguioso intelectualmente. Quer dizer, para mim o caminho foi por a. E acredito que outros intelectuais possam chegar por outros caminhos ao que se pode chamar de antropologia.Santuza Naves Otvio, eu acho que o que eu mais aprendi com voc foi esse exerccio recorrente no sentido de evitar reificaes. Eu, na verdade, s fiz um curso com voc, mas observei muito a sua postura, digamos assim, antirreificadora, em bancas, palestras e, evi-dentemente, em textos. Ento sempre que eu estou escrevendo ou falando com os alunos, estou sempre preocupada em no incorrer em armadilhas desse tipo, no sentido de reificar um texto, um autor, uma teoria.

    Valter Sinder Deixa eu colocar uma questo teoricamente provocativa. O que voc estava falando me lembra um texto de uma autora ligada a esse pessoal que lida com o ps-colonial. A autora se chama Spivak [Gayatri Chakravorty Spivak] e tem um tex-to muito consumido, cujo ttulo Pode o subalterno falar?. um texto imensamen-te provocativo, porque ela aborda essa questo da relao sujeito-objeto falando sobre o momento em que ns, marxistas ou qualquer outro ista, falamos pelos outros. E ns, enquanto intelectuais, colocamos a questo de at que ponto podemos falar por eles, com eles, atravs deles. Isso uma questo que me parece fundamental dentro do nosso papel de intelectual, de antroplogo. Mas ao mesmo tempo esse texto dela me incomoda pro-fundamente, porque ela coloca o que voc disse sobre a questo do eurocentrismo, das categorias eurocntricas, no momento que a gente consegue perceber o que a gente estava fazendo, ou seja, falar pelos outros. Estou me lembrando de um texto do Pierre Clastres, de 1968, chamado Entre o silncio e o dilogo, no qual ele diz: Entre o silncio e o dilogo, finalmente atingimos o dilogo com o estruturalismo do Lvi-Strauss. Ele su-pe que naquele momento ns ultrapassamos o estar falando pelos outros e que ns

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    estamos atingindo o nvel do inconsciente de estar falando com os outros. Bom, depois a gente percebe que no foi exatamente isso que aconteceu. Ento, a Spivak pergunta em um determinado momento que, uma vez colocada todas as questes considerando que hoje em dia temos conscincia disso, da nossa relao de sujeito-sujeito e no mais sujeito-objeto , ao dar a palavra ao outro, quando o outro finalmente fala, ser que ele j no est falando da maneira que a gente espera que ele se manifeste? Ser que eles tambm no viraram eurocntricos como ns? Ser que h uma possibilidade de no ser ou ser que a cincia possvel dando a voz ao outro? Essa uma questo minha, que me preocupa.

    Otvio Velho Perfeito. Em relao ao ps-colonial, foi boa a sua lembrana, porque essa discusso latinoamericana pode ser considerada uma vertente dessas discusses ps-coloniais. Eu acho muito interessante, porque quando eu comecei a ler esses autores ps-coloniais eu sentia sempre que, para adequarmos isso Amrica Latina, seria exigido certo esforo, sobretudo porque eram indianos ou, eventualmente, paquistaneses. Era tudo muito interessante e pertinente, mas faltava alguma coisa para fazer o deslocamento. Ento, a des-coberta de que existe um pensamento latinoamericano que tem parentesco com esse pen-samento ps-colonial muito boa, porque que acho que h certas coisas do pensamento latinoamericano que so mais enfatizadas do que nessa discusso do ps-colonial feita pe-los indianos ou paquistaneses. Por exemplo, essa ideia da colonialidade eu acho que mais pertinente para ns, porque eles eram colnia at quarenta anos atrs, e no o nosso caso. Desse modo, eu acho que a ideia de colonialidade abre uma discusso para ns muito im-portante, que no est dada necessariamente por esse pessoal do ps-colonialismo asitico. Eu acho tambm que o pensamento latinoamericano talvez, em termos de nfase, demarque um pouco mais a questo do territrio, do que se passa aqui, ao passo que esse pensamento ps-colonial asitico est muito ligado aos fatos do Primeiro Mundo, mesmo que seja pela presena do Terceiro no Primeiro Mundo, nas grandes metrpoles mundiais. J o pensa-mento latinoamericano enfatiza mais a Bolvia, a Venezuela, a Amaznia. H umas variantes que realmente acrescentam a essa literatura. Agora, quanto a essa questo que voc colocou, que de certo modo uma variante de uma questo mais geral que a cincia social ou mesmo a filosofia sempre se coloca at que ponto possvel realmente esse respeito ao outro , eu acho que primeiramente a gente deve aprender a fazer uma crtica a essa alteridade. Essa ideia do completamente outro est ligada, no caso da cincia social, do pensamento ocidental, ao orientalismo, em que voc exotiza o outro. Ento no se trata de pensar o outro absolu-tamente como o outro; ao contrrio, deve-se fazer uma crtica a isso. O outro ponto, que eu vejo como uma feliz coincidncia, digamos assim, o fato de que esto acontecendo coisas no panorama global da poltica e da economia que esto colocando em cheque o eurocen-trismo. Apesar de a gente gostar muito da autonomia do campo intelectual, essa autonomia muito pequena. Eu gosto muito da ideia de que de fato a coruja de Minerva s ala voo ao entardecer; somente quando as coisas comeam a acontecer realmente que voc comea a mexer. Ento hoje possvel voc fazer uma crtica. Estou lendo agora um livro interessante,

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    que uma crtica a oito historiadores eurocntricos, ou seja, uma crtica viso da histria da Europa que eles tiveram em funo do que est acontecendo hoje no mundo. O Goody argumenta que Weber achava que o capitalismo e a modernidade eram coisas europeias. Ento, nessa linha de raciocnio, se diz assim: Surgiu na segunda metade do sculo XX um problema, uma exceo, que era o Japo. O Japo comeou a se desenvolver. Portanto o problema explicar o Japo. Mas, no entanto, o Japo era tratado como uma exceo, dada a essa incapacidade do capitalismo e da modernidade se instaurarem fora da Europa. Ele mostra como o Perry Anderson, em 1974, explicava isso dizendo que era porque o Japo conheceu o feudalismo. Nisso ele foi semelhante Europa, mas completamente diferente da China, que no conheceu o feudalismo, s conheceu o despotismo oriental. Assim, a Chi-na, por causa disso, jamais poder se desenvolver, ser moderna, ser capitalista, etc. E agora, como voc vai lidar com essa ideia diante do que est acontecendo na China? Eu acho que o eurocentrismo est sendo minado em suas bases materiais. Eu acho que nisso que se abre essa possibilidade de superar o eurocentrismo.

    Valter Sinder Voc falou em Perry Anderson, e eu estou me lembrando do irmo dele, o Benedict Anderson, que escreve sobre comunidades imaginadas. H um paquistans chamado Partha Chatterjee, que escreveu um artigo em cima do Imagined communities que se chama Comunidades imaginadas por quem? Ele diz assim: Vem c, voc quer que ns nos pensemos enquanto comunidades imaginadas por vocs europeus? o mes-mo tipo de provocao.

    Otvio Velho Essa categoria do despotismo oriental, por exemplo, que o Marx as-sumiu, sofre uma crtica arrasadora pelo Goody e outros tericos. impressionante o anacronismo disso tudo, porque essa ideia do despotismo oriental estava associada a uma ideia do pensamento liberal e talvez eventualmente neoliberal, atravs do qual o Estado era sempre visto como empecilho ao desenvolvimento social. Hoje eu vi no New York Ti-mes que o Barack Obama est propondo algo considerado perigoso porque vai significar uma espcie de nacionalizao da indstria automobilstica americana. Ento todos esses tabus do pensamento dominante esto sendo colocados em questo. Voc descobre as bases em que esses conceitos foram construdos, como, por exemplo, o de despotismo oriental, que resulta de uma espcie de estadofobia radical do imperialismo do sculo XIX e que se prolongou. Tudo isso me parece que est sendo sacudido.

    Valter Sinder Isso seria a sua releitura do marxismo?

    Otvio Velho Ah, a questo do Estado. , pode ser, embora eu ache que ainda se tenha muito o que se discutir no marxismo, como o despotismo oriental, o modo de produo asitico, tudo isso dentro dos moldes europeus. Ento, como diria Marx, a sociedade s se coloca os problemas que est em condies de resolver. De certa maneira, eu acho que

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    esse eurocentrismo est colocado em cheque. claro que um pensamento outro que no este no surge da noite para o dia. Eu estou impressionado com o volume de bibliografia que vai nessa direo j h algum tempo. H um livro muito interessante da Janet Abu-Lughod, que tia da Lila Abu-Lughod, uma historiadora. Ela tem um livro muito interes-sante sobre o que seria um sistema mundial anterior ao sistema mundial que o Wallerstein estudou no sculo XVI. Seria um sistema mundial que teria havido nos sculos XII e XIII. Ela se centra do sculo XII ao XIV. Seria um sistema mundial equilibrado, no haveria uma hegemonia europeia; ao contrrio, existiria um equilbrio. E foi justamente a quebra desse equilbrio que fez surgir esse sistema moderno com essa hegemonia europeia. E por razes circunstanciais, e no o contrrio, como sustenta todo o pensamento eurocntrico, seja ele marxista ou weberiano, de que por uma razo endgena a Europa estaria predesti-nada a ganhar uma predominncia. A Janet Abu-Lughod uma das referncias mais an-tigas dessa discusso, no latinoamericana, mas dos prprios europeus e americanos. Esse livro da dcada de 1980. Eu tambm tenho as minhas dvidas, mas acho que alguma coisa est se mexendo em relao a isso eppur si muove, e acho um privilgio estar viven-do em uma poca como esta. No pensei que a gente fosse viver uma poca como essa. Eu achava que as coisas fossem permanecer muito cristalizadas por muito tempo. Acho que elas esto sendo sacudidas. Impressionante!