Velho, trôpego e anacrónico

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O agregador da advocacia 36 Maio de 2011 www.advocatus.pt A lei processual civil e o código que em grande medida a acolhe são responsáveis por parte leonina da insatisfação generalizada com o comportamento do sistema. Trata-se de um corpo velho, trôpego, anacrónico e fossilizado, que rejeita todas as tentativas feitas para lhe implantarem genes de mudança A Justiça nunca pode ser feita à pressa, mas deve ser feita depres- sa. Depressa e bem. Para o povo, em nome do qual é administrada, a lentidão constitui marca de água do sistema, zénite do desespero e máximo fundamento da crítica. Quem espera desespera e quem muito espera, mais ainda deses- pera. A lei processual civil e o código que em grande medida a acolhe são responsáveis por parte leo- nina da insatisfação generalizada com o comportamento do siste- ma. Trata-se de um corpo velho, trôpego, anacrónico e fossilizado, que rejeita todas as tentativas fei- tas para lhe implantarem genes de mudança. Mas não só da Lei vive a culpa. Neste caso a dita não morre soltei- ra, porque vive, no mínimo, em pa- tente bigamia. Com efeito junta-se à letra dos preceitos uma mentali- dade terrivelmente conservadora, que contagia, sem excepção, a generalidade dos que operam no sistema. Clamamos sistematicamente por reformas, mas assim que estas entram em vigor, passamos a re- cordar, com inclemente saudade, aquilo de que tanto nos queixáva- mos. Este conservadorismo, feito de acomodação e receio, é, tam- bém ele muitíssimo responsável pela rejeição ontológica de todas as boas alterações que se tenta- ram introduzir no velho paradigma processual. Recordemos algumas, como exemplo, e efeméride: a aposta decisiva numa audiência preli- minar rica em decisões e capaz de projectar um julgamento mais célere e mais escorreito (artigo 508-A do CPC); o princípio da “Não só da Lei vive a culpa. Neste caso a dita não morre solteira, porque vive, no mínimo, em patente bigamia. Com efeito junta-se à letra dos preceitos uma mentalidade terrivelmente conservadora, que contagia, sem excepção, a generalidade dos que operam no sistema” “Clamamos sistematicamente por reformas, mas assim que estas entram em vigor, passamos a recordar, com inclemente saudade, aquilo de que tanto nos queixávamos” Rogério Alves Licenciado em Direito pela Católica de Lisboa (84). Bastonário no triénio 200-07. Professor convidado da Católica. Desde 2007 preside à União dos Advogados de Língua Portuguesa Velho, trôpego e anacrónico do percurso entre o pedido e a decisão. Não há adequação pro- cessual sem esta supervisão per- manente. O terceiro consiste na revaloriza- ção dos recursos, com a consa- gração, efectiva, de uma segunda instância de revisão da matéria de facto, suportada na gravação em suporte áudio e vídeo das audiên- cias. Simplificar, garantir o exercício es- correito de direitos e assegurar um recurso efectivo, eis o bom cami- nho. E, já agora, não se esqueça, a reforma de permitir que as partes falem, sem ser para se confessa- rem. Já é mais do que tempo. adequação formal com o qual se pretenderia desbloquear o con- creto caminho de acesso à de- cisão (artigo 265 – A do CPC); a apresentação conjunta da petição pelas partes, que morreu sem ter verdadeiramente vivido (artigo 464 – A do CPC entretanto revogado); a inquirição por acordo das partes da qual estamos absolutamente alheados (artigo 638 – A do CPC); o sancionamento efectivo da liti- gância de má-fé (artigo 447 – B do CPC); a timidez com que se previu e implementou o regime proces- sual experimental (DL 108/2006 de 8 de Junho), ele próprio já conde- nado ao ostracismo e à mais ab- soluta falta de entusiasmo. Quer-se a moral da história? É simples: a velha letra, o velho es- pírito e os velhos hábitos resistem, derrotando, de forma implacável, todas as tentativas de verdadeira reformatação. Este estado de coi- sas não pode continuar. Impõe-se uma reforma corajosa, assente em três vectores fundamentais: O primeiro consistindo na simplifi- cação dos procedimentos. Imple- mentar a adequação formal, mas não só. Já é tempo de extinguir - mos todas as acções especiais e as suas tramitações privativas. Defendo isto há anos, aplicado, aliás, aos processos principais e aos procedimentos cautelares. Preserve-se a causa de pedir, o pedido, a produção de prova, a garantia da igualdade das partes e do contraditório. Acabe-se com as distinções que complicam mui- to mais do que aquilo que ajudam, criando, aliás, incidentes sem fim. O processo deve ser comum e a tramitação semelhante. O segundo analisa-se num maior poder dos juízes na conformação Debate

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A lei processual civil e o código que em grande medida a acolhe são responsáveis por parte leonina da insatisfação generalizada com o comportamento do sistema. Trata-se de um corpo velho, trôpego, anacrónico e fossilizado, que rejeita todas as tentativas feitas para lhe implantarem genes de mudança

A Justiça nunca pode ser feita à pressa, mas deve ser feita depres-sa. Depressa e bem. Para o povo, em nome do qual é administrada, a lentidão constitui marca de água do sistema, zénite do desespero e máximo fundamento da crítica. Quem espera desespera e quem muito espera, mais ainda deses-pera. A lei processual civil e o código que em grande medida a acolhe são responsáveis por parte leo-nina da insatisfação generalizada com o comportamento do siste-ma. Trata-se de um corpo velho, trôpego, anacrónico e fossilizado, que rejeita todas as tentativas fei-tas para lhe implantarem genes de mudança. Mas não só da Lei vive a culpa. Neste caso a dita não morre soltei-ra, porque vive, no mínimo, em pa-tente bigamia. Com efeito junta-se à letra dos preceitos uma mentali-dade terrivelmente conservadora, que contagia, sem excepção, a generalidade dos que operam no sistema.Clamamos sistematicamente por reformas, mas assim que estas entram em vigor, passamos a re-cordar, com inclemente saudade, aquilo de que tanto nos queixáva-mos. Este conservadorismo, feito de acomodação e receio, é, tam-bém ele muitíssimo responsável pela rejeição ontológica de todas as boas alterações que se tenta-ram introduzir no velho paradigma processual. Recordemos algumas, como exemplo, e efeméride: a aposta decisiva numa audiência preli-minar rica em decisões e capaz de projectar um julgamento mais célere e mais escorreito (artigo 508-A do CPC); o princípio da

“não só da lei vive a culpa. neste caso a

dita não morre solteira, porque vive, no mínimo,

em patente bigamia. Com efeito junta-se à letra dos preceitos

uma mentalidade terrivelmente conservadora, que contagia,

sem excepção, a generalidade dos que operam no sistema”

“Clamamos sistematicamente por reformas, mas assim

que estas entram em vigor, passamos

a recordar, com inclemente saudade,

aquilo de que tanto nos queixávamos”

Rogério Alves

Licenciado em Direito pela Católica de Lisboa (84). Bastonário no triénio 200-07. Professor convidado da Católica. Desde 2007 preside à União dos Advogados de

Língua Portuguesa

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do percurso entre o pedido e a decisão. Não há adequação pro-cessual sem esta supervisão per-manente. O terceiro consiste na revaloriza-ção dos recursos, com a consa-gração, efectiva, de uma segunda instância de revisão da matéria de facto, suportada na gravação em suporte áudio e vídeo das audiên-cias. Simplificar, garantir o exercício es-correito de direitos e assegurar um recurso efectivo, eis o bom cami-nho. E, já agora, não se esqueça, a reforma de permitir que as partes falem, sem ser para se confessa-rem. Já é mais do que tempo.

adequação formal com o qual se pretenderia desbloquear o con-creto caminho de acesso à de-cisão (artigo 265 – A do CPC); a apresentação conjunta da petição pelas partes, que morreu sem ter verdadeiramente vivido (artigo 464 – A do CPC entretanto revogado); a inquirição por acordo das partes da qual estamos absolutamente alheados (artigo 638 – A do CPC); o sancionamento efectivo da liti-gância de má-fé (artigo 447 – B do CPC); a timidez com que se previu e implementou o regime proces-sual experimental (DL 108/2006 de 8 de Junho), ele próprio já conde-nado ao ostracismo e à mais ab-soluta falta de entusiasmo. Quer-se a moral da história? É simples: a velha letra, o velho es-pírito e os velhos hábitos resistem, derrotando, de forma implacável, todas as tentativas de verdadeira reformatação. Este estado de coi-sas não pode continuar. Impõe-se uma reforma corajosa, assente em três vectores fundamentais: O primeiro consistindo na simplifi-cação dos procedimentos. Imple-mentar a adequação formal, mas não só. Já é tempo de extinguir-mos todas as acções especiais e as suas tramitações privativas. Defendo isto há anos, aplicado, aliás, aos processos principais e aos procedimentos cautelares. Preserve-se a causa de pedir, o pedido, a produção de prova, a garantia da igualdade das partes e do contraditório. Acabe-se com as distinções que complicam mui-to mais do que aquilo que ajudam, criando, aliás, incidentes sem fim. O processo deve ser comum e a tramitação semelhante. O segundo analisa-se num maior poder dos juízes na conformação

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