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VENDENDO ILUSÕES A QUEM NÃO PODE PAGAR – ANÁLISE DA CANÇÃO “TEVE” E “DATENA DA RAÇA” DE
ZECA BALEIRO. MONTEIRO, Érica, LEMOS, Anna, FRAZAO, Idemburgo
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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VENDENDO ILUSÕES A QUEM NÃO PODE PAGAR – ANÁLISE
DA CANÇÃO “TEVE” E “DATENA DA RAÇA” DE ZECA
BALEIRO
MONTEIRO, Érica Qualificação acadêmica (Licenciada em letras e psicopedagoga, mestranda no Programa de
pós-graduação em Humanidades, culturas e artes – UNIGRANRIO
LEMOS, Anna
(Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, culturas e artes -
UNIGRANRIO)
FRAZAO, Idemburgo
(Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, culturas e artes -
UNIGRANRIO
RESUMO:
Esse artigo se dividirá em duas seções e pretende investigar as representações do homem urbano
em relação ao seu comportamento veiculado ou mediado pelas mídias, mais especificamente pela
Tevê. Na primeira seção “Vendendo ilusões a quem não pode pagar” analisaremos a canção “Teve”. Na
segunda seção intitulada “A ética na comunicação e a miséria como produto da cultura midiática
urbana - análise de “Datena da raça” proporemos provocações e reflexões sobre a ética na
comunicação, e a miséria como produto urbano. Buscaremos analisar cada uma das canções apontando as relações que se estabelecem entre elas
e as representações do homem urbano em relação as novas e velhas formas de interagir, consumir
e viver em diálogo com a mídia. Vivemos uma midiatização da cultura, utilizamos de celulares, computadores, câmeras, buscamos estar conectados, e informados, interagindo em “rede”
constantemente. Mesmo a aparentemente antiga tevê ainda transforma o cotidiano, alterando
nossos processos de subjetivação e interferindo nas práticas culturais, nos valores éticos e até estéticos.
Palavras chave: Canção, homem urbano e culturas
RESUME: This article will be divided into two sections and aims to investigate the role of urban man in
relation to his behavior or aired mediated by the media, specifically the TV.
In the first section "Selling illusions to those who can not afford" to analyze "had" song. In the second section titled "Ethics in communication and misery as a product of urban media culture -
analysis"Datena race"propose provocations and reflections on ethics in communication, and
poverty as an urban product. We seek to analyze each of the songs pointing out the relationships established between them and
the representations of the urban man in relation to old and new ways to interact, consume and live
in dialogue with the media. We live in an media coverage of culture, use of mobile phones,
computers, cameras, seek to be connected and informed, interacting in "Network" constantly. Even the seemingly old TV still makes daily life, changing our subjective processes and
interfering in cultural practices, the ethical and even aesthetic values. Keywords: Song, urban man and cultures
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ZECA BALEIRO. MONTEIRO, Érica, LEMOS, Anna, FRAZAO, Idemburgo
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1.VENDENDO ILUSÕES A QUEM NÃO PODE PAGAR
Nessa seção analisaremos a canção “Teve”. Nela, Baleiro apresenta um homem
estagnado diante da TV, enquanto ele consome as imagens e ideias que se veicula vendo
a vida passar. O hábito de assistir tevê é uma das práticas sociais mais comuns que
ocorrem na vida urbana contemporânea.
A canção “Teve” foi lançada em 2008 no álbum O coração do homem_bomba,
vol.2. Apesar da época ser predominantemente do crescimento das redes de
computadores, a tevê, meio de comunicação de massa, ainda prevalece como um
poderoso instrumento popular de informação, comunicação e alienação. Ela hoje é mais
um dos meios que tem como papel veicular um fluxo enorme de informações e produtos
que tentam “seduzir” ou atender as necessidades do homem contemporâneo. No Brasil,
temos apenas um canal público e todos os outros privados, o que contribui para uma
programação voltada prioritariamente para o consumo de produtos e programas da moda.
Com a economia de mercado, o formato da Teve é, na maioria das vezes, determinado
por ela mesma, mas como os espectadores não são somente passivos, é claro que a
programação se alia àquilo que os cidadãos desejam consumir. Em tempos de tevê digital
e popularização dos canais por assinatura, o aparelho concorre com a internet, ambos
fazem parte das práticas sociais da vida urbana, contribuindo para a difusão de produtos
culturais diversos. É pela tela que muitas pessoas “lêem” o mundo, recebem informação
e usufruem de lazer.
Na canção “Tevê”, Baleiro mostra uma pessoa que assiste a Tevê e vê a vida
passar. Nos dois primeiros versos ele nos conta/canta a cena vivenciada por um cidadão
que se equipara hierarquicamente a televisão. Quando ele afirma “um filme na tevê/um
corpo no sofá” ambos os elementos, corpo e tevê, interagem numa mesma sintonia, ou
seja, estáticos: o filme passando na tevê, o corpo no sofá. Não há verbos designando
ações, apenas subentendido o verbo de ligação estar que semanticamente indica apenas
um estado e não uma ação.
Os próximos versos revelam a relação do tempo com o ver, ou com o que se faz.
O tempo moe o vidro do olhar. Uma metáfora que demonstra como o olhar humano fica
frio e estagnado diante da tevê. E quanto o tempo, quase personificado, ganha um status
de agente, ao moer o olhar. O olhar equipara-se a uma tela, já que ele é de vidro. A
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expressão “O vidro do olhar” pode representar a frieza desse olhar. O moer manifesta a
facilidade de se “quebrar” aquilo que perpassa pela vida do homem pós-moderno nas
cidades, onde os fragmentos são as marcas das identidades.
O refrão canta o homem de olhar passivo sem perceber o tempo que passa,
representando o espectador diante da vida: “e a vida a passar/a vida sempre a
passar/passar”. A passagem do tempo na canção é lenta assim como propõe o seu ritmo e
melodia, iniciado por um acordeon e mesclado de sons eletrônicos emitidos pelo sampler
e teclado, acompanhado ainda por uma bateria que mantem o ritmo até o fim da canção.
As rimas da primeira estrofe são cruzadas (A, B, A, B, B, B, B) porém nos três
últimos versos há uma sequência rimática (B) que repete o ritmo lento e a semântica
arrastada, assim como ocorre na segunda estrofe. Esse ritmo que se opõe ao ritmo das
cidades representa a passividade do homem diante das imagens e programas. Ainda nessa
estrofe, Zeca põe uma imagem poética para revelar as paisagens vistas pelo homem
estagnado diante da Tevê: “Olhando a estrela azul/azul da cor do mar”. A imagem ratifica
o tom passivo do personagem diante da tevê, pois céu e mar são elementos de
contemplação e o azul na nossa cultura associa-se a paz e tranquilidade. Assim, o homem
em paz contempla as belezas que são veiculadas pela Tevê.
As tecnologias eletrônicas e as mídias no espaço e lugares urbanos são
fundamentais na vida do cidadão. Para Canclini (2000, p: 290):
A “cultura urbana” é reestruturada ao ceder o protagonismo do espaço
público às tecnologias eletrônicas. Como quase tudo na cidade
“acontece” porque a mídia o diz e como parece que ocorre como a mídia
quer, acentua-se a mediatização social (...)”
A partir da terceira estrofe as rimas são mistas, dando um novo tom fonético-
ritmico à canção e quebrando um pouco a monotonia, mas ainda mantendo a repetição no
refrão. Nos versos dessa estrofe, a voz-lírica traz imagens em antíteses (comédia e drama)
qualificadas como comum e vulgar. Elas aparecem na tela, mas podem também ser
enredos da vida desse espectador. A sequência de elementos vistos pelo homem dá a
sensação que o tempo cronológico passa e o personagem fica estagnado sem agir na vida,
somente vendo-a passar. Surgem os comerciais e ele permanece sentado no sofá, vendo
e crendo nos modelos ideais que a propaganda vende.
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Nos versos: “Comercial de xampu Cerveja e celular/Modelos para crer (Mentiras
para crer) e Credicard/A consumir a consumir/ A consumir o olhar/O olhar”, a voz lírica
que descreve a cena vivenciada pelo homem diante da tevê, ganha uma conotação crítica
ao colocar a relação entre propaganda, consumo e consumidor. Na canção há uma
inversão em que a passividade do homem diante da tevê o faz um objeto de consumo,
numa tríade em que o olhar humano passa a ser consumido pelos comerciais e
propagandas. Os modelos são mentiras para crer, os produtos são os símbolos de poder e
o consumidor um ser sendo consumido pela tevê e seus comerciais. A inversão
despersonaliza o homem, tornando-o um objeto e corrompendo com sarcasmos a sua
subjetividade. Ao final do verso “modelos para crer” num enjabement Zeca lança o
vocábulo “Credicard” associando a estrutura fonética semelhante entre a palavra crer e
Credicard, na busca de uma aproximação semântica que ironiza o crédito e a crença de
poder que um cartão nos concede. Beatriz Sarlo aborda a ideia da “mercadoria como
celebridade” e afirma: “Existe uma espécie de zona em que a frustação pode ser
neutralizada. O espetáculo da abundância de mercadorias, em muitos casos inacessíveis,
cria o atrativo provavelmente menor das mercadorias compradas de fato e as enobrece”
(SARLO, 2014, p. 18)
Os versos provocam uma reflexão sobre a identidade do homem contemporâneo,
inventada e reinventada também pelo consumo, principalmente pelos bens que são
vendidos como símbolos do urbano e civilizado. São produtos cujo consumo remete aos
homens das cidades, entre elas a tecnologia (celular), a beleza (xampu) e o lazer (cerveja).
As identidades e a cidadania estão cada vez mais sendo constituídas pelo consumo,
principalmente por escolhas influenciadas pelas propagandas. Segundo Canclini (2006)
assim como os aspectos históricos, sociais e culturais constituem a identidade e a
cidadania, o consumo também é essencial para essa constituição. As relações de consumo
fazem parte de um processo que reflete e internaliza as características das identidades do
homem. Consumir, então, é mais que uma relação comercial de compra e venda, é algo
que pode estabelecer significados na vida do sujeito. Para Canclini (2006, p. 60) consumo
é:
o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a
apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consumimos como algo mais do que
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simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais.
Na estrofe seguinte, Baleiro inicia com uma oração reduzida de gerúndio,
provocando o sentido de continuidade na ação do olhar (“olhando a estrela azul/ um
quadro a cintilar”). O homem urbano guiado pelo olhar, assiste a vida numa tela, o homem
que vê, mas que pouco compreende. A observação do indivíduo é apenas no nível passivo,
representando o fascínio do indivíduo por ver o agradável e que se concilia com os seus
desejos. A imagem exerce um poder sobre o homem, esse se mostra num estado de
contemplação quase hipnótico. Diante dos estímulos, ele “consome” o que vê. A cultura
urbana é impregnada de estímulos visuais. Para Simmel (1973, p. 12) “A base psicológica
do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos
nervosos que resulta da alteração brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e
interiores”.
A cultura urbana consumida é aquela que o próprio homem ajuda (re)criar, mas
que também o modela intensificada pelos estímulos. O personagem da canção assistindo
à tevê, passivamente, também escolheu estar ali. Para Barbero (1987) as relações de
emissão e recepção são mediadas pelos próprios homens que também produzem
significado para o que está sendo veiculado. Para Hall, há um “governo da cultura”, ou
seja, uma governança da maneira como são regulados os meios de comunicação (rádio,
TV entre outros) e suas instituições o que exerce sobre nós fortes influências. Essas
diversas influências e sentidos criados perpassam pelas identidades do homem urbano e
“regulam” nossas condutas. Hall (1997, p. 18) reflete e questiona até que ponto há essa
regulação e como acontece:
(..) a cultura, por sua vez, nos governa — “regula” nossas condutas,
ações sociais e práticas e, assim, a maneira como agimos no âmbito das
instituições e na sociedade mais ampla. Mas o que isto significa? Como
a cultura “regula” as práticas sociais? Como a cultura faz para governar?
No caso da canção analisada, esse homem está no espaço privado olhando a
Tevê. Essa regulação ocorre mediada pelo meio de comunicação, levando ideologias,
símbolos e atrações que atuam sobre aquele que observa, mas sem a percepção crítica
desse observador sobre isso. Isso se revela pela voz da canção ao falar que está olhando
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“um quadro a cintilar”. A polissemia do vocábulo quadro contribui para o jogo entre o
que está enquadrado na Tevê e as imagens que nela passam, demonstrando uma das
formas de “enquadramento” ou “regulação” descritas por Hall. Além de evidenciar mais
um dos estímulos que o homem urbano recebe, conforme proposto por Simmel.
Nos versos seguintes, afirma-se: “Vendendo ilusões/ a quem não pode pagar”. Um
dos versos mais contundentes quanto ao tom crítico expresso na canção, já que nele,
Baleiro, expressa o homem refém daquilo que consome. A tevê e suas propagandas vende
ilusões ao homem que não pode pagar por ela. O homem devedor que vê a vida passar
encerra a sua narrativa na letra da canção com o refrão que ratifica a passagem do tempo
e a estagnação diante da vida: “e a avida a passar/ a vida sempre a passar/ passar”. Essa
conclusão nos dá a noção de continuidade da relação estagnada entre o homem e sua
Tevê. O adverbio “sempre” inserido no segundo verso, ratifica a imprecisão de quanto
tempo o homem fica diante da Tevê.
Na canção, a cidade é um cenário quase oculto, mas que está nas entrelinhas das
mercadorias e propagandas veiculadas na Tevê. Por esse meio midiático os espectaodrs
diferentes co-participam de múltiplas temporalidades e espaialidades. O que para
CANCLINI (1997, p. 289)
Em uma escala mais ampla, é possível afirmar que o rádio e a televisão, ao relacionar patrimônios históricos, étnicos e regionais diversos, e
difundi-los maciçamente, coordena as múltiplas temporalidades de
espectadores diferentes
As temporalidades e espectadores coordenados pela Tevê e representados na
canção nos coloca questões-problemas tais como: o que vemos, o que consumimos, o que
somos e no que cremos? A prática social de assistir Tevê tem quais impactos sobre a
cultura e as nossas identidades?
A própria Tevê é cultura, tendo em vista que todas as práticas sociais produzem
significados e são relevantes para o grupo que a produzem (Hall, 1997). Assim a Tevê
torna-se a cultura do ver, do consumir e do estar mentalmente em diversos lugares. A tevê
amplia as fronteiras das cidades e dos cidadãos, contudo não é certo que ela amplie o
olhar. Talvez o condicione...
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Tevê - Zeca Baleiro e Kléber Albuquerque – O coração do homem bomba vol. 2,
MZA, 2008
Um filme na tevê
Um corpo no sofá Um tempo pra moer o vidro
do olhar E a vida a passar A vida sempre a passar Passar
Olhando a estrela azul azul da cor do mar
Comédia comum ou um drama vulgar E a vida a passar A vida sempre a passar Passar
Comercial de xampu Cerveja e celular Modelos para crer (Mentiras para crer) e credicard A consumir a consumir A consumir o olhar
O olhar
Olhando a estrela azul Um quadro a cintilar Vendendo ilusões a quem não pode pagar E a vida a passar A vida sempre a passar Passar
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2. A ética na comunicação e a miséria como produto da cultura midiática urbana - análise de “Datena da raça”
Essa seção pretende verificar as representações da miséria e da realidade social
como produto cultural que a mídia vende. Versará ainda sobre a ética (ou antiética) nos
processos de comunicação
Em “Datena da Raça” (Álbum “O coração do homem_ bomba, volume 2, 2008) a
letra apresenta a temática da informação veiculada nos programas de Tevê,
principalmente abordando a miséria e a pobreza como um produto que gera graça e
audiência (“A miséria grita/ a miséria dança/ a miséria é pop”). A canção trata da
veiculação de informações de forma trágica e sensacionalista, contribuindo para a
alienação do homem diante dos noticiários. Ao espectador é emitido um processo de
comunicação e informação de maneira extremamente apelativo com características
tragicômicas.
No mundo contemporâneo, principalmente no contexto de polarizações políticos-
ideológicas, migrações e crise econômica mundial, uma aparente veiculação inocente de
uma notícia pode contribuir para um comportamento discriminatório, desrespeitoso e até
desumano. Segue a letra da canção:
Datena da raça – Zeca Baleiro
Eu quero ser o Datena da raça
O poeta da dor
O cantor da desgraça do mundo
A miséria grita
A miséria dança
A miséria canta A miséria é pop
Tanta dor na vida Da dor se
duvida O sangue a ferida
é que dão ibope
Datena da raça, o título da canção, traz uma referência a um comunicador da Tevê
Brasileira que já apresentou “Cidade alerta”, “Repórter cidadão” e atualmente “Brasil
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urgente”. Dois desses programas são classificados como policiais e visam noticiar os
crimes e desastres que ocorrem nas grandes cidades. O comunicador, ao anunciar as
notícias, performatiza o drama e a dor o que contribui para ampliar a miséria e popularizá-
la como uma tragédia e em produto.
A voz lírica da canção coloca-se como um poeta, cantor da dor e apresenta a
manifestação da sua consciência diante do espetáculo que é veiculado sobre a dor e a
miséria na Tevê. A Tevê, especificamente na canção “Datena da raça” espetaculariza a
dor. A etimologia de espetacular revela que ela deriva do Latim spectaculum, “vista, algo
para se observar visualmente”, de spectare, ligado a specere, “ver”, do Indo-Europeu
spek-, “observar”. Ou seja, a dor e a miséria são enquadradas em cenas em que o ver e
observar servem para realçar e sensacionalizar os fatos sociais em que o cidadão apenas
assiste mas não participa.
Na canção representa-se os pobres e miseráveis que são os invisíveis nas grandes
metrópoles, mas tornam-se visíveis ao aparecerem no espetáculo dos programas da tevê.
Os pobres, para Sarlo, ( 2014, p.61) “São o imprevisto e o não desejado da cidade, o que
se quer apagar, afastar, desalojar, transferir, transportar, tornar invisível” Diante da
invisibilidade que tem a miséria nas ruas da cidade, no cotidiano, os programas de tevê
se colocam como o salvador que a mostram e denunciam, contudo, eles usam a miséria
para ter IBOPE (“O sangue a ferida/ e que dão Ibope”). Não há, no geral, um objetivo
solidário, humano, por parte dos apresentadores, porém, um objetivo comercial.
Outro fato importante de ser mencionado é que a pobreza é um fenômeno social
tipicamente urbano. Para shwartzman ( 2004, p. 34)
Parte da pobreza que existe ainda é rural, localizada sobretudo nos
estados do Nordeste e em zonas agrícolas deprimidas em Minas Gerias,
Rio de janeiro e outras regiões, constituídas por pessoas que não
conseguem produzir para o mercado, sobrevivendo, no máximo, em uma economia de subsistência extremamente precária. Em sua maioria,
no entanto, a pobreza é urbana.
Na canção, a voz-lírica expressa os sentimentos, e percepções de um outro sobre
a pobreza, é a voz do não pobre, do não miserável. Na primeira estrofe da canção, Baleiro
põe a voz em primeira pessoa para dizer o ela quer ser (“Eu quero ser o Datena da raça/
O poeta da dor/ o cantor da desgraça do mundo”). Poeta da dor e cantor da desgraça
ironizam a maneira como se veicula a notícia, cheia de pieguice e desgraça. As cidades e
seus cidadãos aparecem como locais e personagens violentos e caricatos, constituindo o
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que Canclini denominou de “sentido público da cidade”, ou seja, as notícias sobre as
ações do governo, acidentes e misérias urbanas nos chegam pela mídia que simula um
imaginário urbano desagregado e caótico. As cidades são locais marcados pela violência,
sabemos, mas esta violência torna-se terror e tragicomédia diante da maneira como são
veiculadas nos noticiários, criando o sentido público da cidade.
Na segunda estrofe, a miséria é o sujeito da oração e ela grita, dança, canta e, por
fim, é pop. Assim o destaque é para a miséria encenada como se estivesse em um show e
não para os fatos ou causas. O que é representado na canção é a performance, a miséria
como produto e não a informação em si. O jornalista e apresentador Datena mostra
fragmentos estigmatizados das consequências da desigualdade socioeconômica,
limitando a reflexão para as causas e criando um estereótipo do que é ser pobre, marginal,
periférico... O destaque dado teatraliza o real, a dor e induz o espectador a entrar na
emoção trágica. E no teatro da dor tudo é cena na tela que se transforma em palco. Se a
notícia se revela como cena de drama, logo da dor se duvida (“Tanta dor na vida/ da dor
se duvida”), tendo em vista que é percebida como cena/show e não como um fato histórico
social. Apesar da dúvida, isso gera prazer, pois dá IBOPE (“O sangue a ferida/ é que dão
Ibope”). Os programas semelhantes ao do Datena preocupam-se não apenas em
denunciar, mas em ter IBOPE e ganhar um público fiel, assim a dor vira produto cultural
pop. O espectador envolvido na dor do outro expressa pelo “show”, nega a sua própria
dor. O outro passa a ser o “coitadinho”, enquanto o espectador é o que por trás da tela
observa e torce para uma solução simplificada dos fatos violentos. No geral, os discursos
inflamados de Datena estimulam mais violência e transmitem ideologias preconceituosas.
Para acabar com o criminoso, só resta a morte. Para acabar com a violência e a miséria
propõe-se soluções simplificadas e tão violentas quanto as noticiadas.
A letra mostra o descompromisso com a ética e a imagem daquele que está sendo
revelado na notícia. Se alguém morre assassinado, os programas de jornalismo policial
mostram da maneira mais fria e feia possível a cena do crime pois “o sangue e a ferida/ é
que dão Ibope”. Não há a preocupação com a imagem de quem foi assassinado e com os
familiares que assistirão aquela notícia.
Além disso, esse tipo de jornalismo transforma em vilão alguns e vitimiza outros.
Não estou afirmando que não haja vítimas, responsáveis e criminosos, estou afirmando
que antes mesmo da investigação iniciar, os programas já escolhem quem serão as vitimas
e os vilões, bem como determina quem são os heróis. A linguagem usada acentua as
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polaridades e as relações entre hegemônicos e subalternos, desconsideram os
cruzamentos que há entre essas classificações e discriminam algumas culturas.
A voz da canção representa a visão de um poder midiático atrativo, consumido
por diversas classes sociais, mas predominantemente por aquelas consideradas
subalternas. Essa visão encena a dor e a miséria como tragédias e não como um processo
complexo elaborado socialmente. Uma tragédia que acontece com os negros, moradores
de periferia das grandes cidades, e em que na maioria dos casos eles são mostrados como
criminosos ou vilões. Assim a cultura dos suburbanos, negros, subalternos vai sendo
discriminada, negativada e marginalizada. Essa prática social veiculada em programas
como Datena estimula a criação de pensamentos e ideologias radicais e preconceituosos,
acentua os conflitos e o não diálogo, além de regular inúmeras práticas sociais. Os meios
de comunicação detêm certo poder para manipular e regular a cultura. Segundo Hall
(1997, p. 18):
Se a cultura, de fato, regula nossas práticas sociais a cada passo, então, aqueles que precisam ou desejam influenciar o que ocorre no mundo ou
o modo como as coisas são feitas necessitarão — a grosso modo — de
alguma forma ter a “cultura” em suas mãos, para moldá-la e regulá-la
de algum modo ou em certo grau.
Na canção “Datena da raça” representa-se essa regulação mas na vida ela não é
unilateral, pois os homens das cidades também produzem cultura e exercem suas
regulações sobre outros grupos ou instituições. Porém nos programas de noticiário
policial, o homem urbano é representado como um coitadinho violentado ou um
violentador/criminoso e endemoniado. O homem urbano é um ou outro na voz-lírica da
canção. Ele não é o homem complexo, hibridizado que transita por vários lugares e
espaços físicos e simbólicos. Ele representa um ser passivo que foi vestido com o figurino
da miséria (essa é a estrela pop) e que sofre sem poder reagir às regulações. É como se a
miséria e a violência se apossassem do corpo e mente do cidadão fazendo-o encenar o
papel de pobre. Para Canclini (1997, p. 4):
A ‘cultura urbana’ é reestruturada ao ceder o protagonismo do espaço público às tecnologias eletrônicas. Como quase tudo na cidade
“acontece” porque a mídia o diz e como parece que ocorre como a mídia
quer, acentua-se a mediatização social, o peso das encenações, as ações políticas se constituem enquanto imagens da política. Daí que Eliseo
Verón afirme, de forma radical, que participar é hoje relacionar se com
uma ‘democracia audiovisual’, na qual o real é produzido pelas
imagens geradas na mídia.
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Essas representações são percebidas e estimuladas também pela forma da canção,
pelas rimas e estrutura sintática. Na primeira estrofe, duas rimas internas fazem ressoar
os sentidos entre os vocábulos raça e desgraça e dor com cantor. Nas estrofes seguintes,
as rimas A, A, A, B trazem sonoridades semelhantes entre as palavras “grita”, “dança”,
“canta” e “vida”, “duvida” e “ferida”. E entre pop e Ibope.
A sintaxe é simples, as orações coordenadas na ordem direta e com sequências
de verbos contribuem para a fluidez de sentido e rapidez da canção que, como num
noticiário, revela algo complexo em pouco tempo. O ritmo pop da canção ganha mais
intensidade no refrão, pois na primeira estrofe é cantado com um tom dramático que
acentua a semântica do discurso do poeta da dor e cantor da desgraça.
Baleiro, criou em três estrofes o discurso que revela as cenas urbanas nos
noticiários, criticando por meio da ironia e de metáforas a fala e a conduta de
apresentadores como Datena. Mostrou sinteticamente as distorções, dramas e
ridicularizações que alguns programas e noticiário de Tevê fazem com a pobreza, miséria
e a violência nas cidades com o objetivo escuso de ter Ibope. Representa a miséria como
um produto cultural, quase um pop star.
REFERÊNCIAS
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VENDENDO ILUSÕES A QUEM NÃO PODE PAGAR – ANÁLISE DA CANÇÃO “TEVE” E “DATENA DA RAÇA” DE
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