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Vera Nilda Neumann

QUALIDADE DE VIDA NO TRABALHO: Percepes da Equipe de Enfermagem na Organizao Hospitalar

Belo Horizonte 2007

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Vera Nilda Neumann

QUALIDADE DE VIDA NO TRABALHO: Percepes da Equipe de Enfermagem na Organizao Hospitalar

Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Enfermagem. rea de concentrao: Enfermagem Orientadora: Prof Dr Maria dila Abreu Freitas Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte Escola de Enfermagem da UFMG 2007

N492q

Neumann, Vera Nilda Qualidade de vida no trabalho: percepes da equipe de enfermagem na organizao hospitalar/Vera Nilda Neumann. Belo Horizonte, 2007. 164f. Dissertao.(mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Enfermagem. rea de concentrao: Enfermagem Orientadora: Maria dila Abreu Freitas 1.Equipe de enfermagem 2.Enfermeiras/psicologia 3.Auxiliares de enfermagem/psicologia 4.Sade do trabalhador 5.Condies de trabalho 6.Jornada de trabalho 7.Hospitais 8.Qualidade de vida 9.Estresse 10.Existencialismo I.Ttulo NLM: WY 125 CDU: 616-083

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DedicatriaAo meu pai, Guilherme Frederico Neumann (in memorian), por tudo que fez por mim durante a sua presena neste mundo. minha me, Nilda Schaper, que no mediu esforos para encaminhar os oito filhos rumo a uma formao profissional. Grande exemplo de coragem e determinao na vida. Grata pela dedicao ao meu pequeno Bernardo durante os momentos em que precisei estar ausente. Ao meu querido filho, Bernardo, luz de minha vida. Apesar de seis anos de idade, ensina-me a cada segundo o valor imensurvel da existncia humana.

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AgradecimentosA Deus, por Sua infinita graa, por conceder sabedoria, proteo e luz em todos os momentos de minha vida. Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais, pela oportunidade a mim concedida. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela concesso de bolsa de estudo. Diretoria da Organizao Hospitalar, por ter gentilmente cedido o seu espao. Coordenao de Enfermagem da referida organizao, pelo apoio e acolhimento to significativo. Aos sujeitos participantes desse estudo e aos profissionais da equipe de enfermagem, que cruzaram meu caminho, pelos quais tenho um carinho especial, e queles com quem ainda espero conviver. Ao Roosevelt, pelo apoio, pacincia e compreenso, durante esse momento importante. Grata por ajudar no meu crescimento. s minhas irms, Dora e Elisabeth, pela competncia, sabedoria e pelo exemplo de coragem diante de tantos desafios que a vida nos impe. Ao meu sobrinho, Gustavo, pelo carinho e cuidado dispensados a Bernardo em tantos momentos. minha sobrinha Lase, grata pelas palavras de estmulo sempre to significativas.

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Lda, pelo grande incentivo e amizade. minha amiga Wilma, que tanto me apoiou nos momentos de angstias e alegrias vividos ao longo dessa caminhada. Grata por ter destinado seu precioso tempo e por trazer sempre um novo nimo. Grata pela amizade sincera. Aos colegas, Ellen, Genilton, Letcia, pela amizade construda durante o mestrado. s professoras Anzia, Beth, Matilde, Tereza, pelo incentivo sempre presente. enfermeira Lliam, pela amizade que demonstrou, pelo carinho, ateno e empenho ao formatar esse trabalho, por ser ntegra e atenciosa, por ser um exemplo de pessoa. pastora Anete, pelo apoio imensurvel, por sua sensibilidade e disponibilidade para ouvir-me em vrios momentos, por fortalecer-me espiritualmente, mostrando caminhos repletos de possibilidades. Elisabeth, voc sabe o quanto tem me ajudado, grata pela pacincia em me ouvir. Agradeo a todas as pessoas que, de alguma maneira, me apoiaram neste percurso.

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Agradecimento especial Professora Dra Maria dila Abreu Freitas, Muito obrigado por ter cuidado de mim durante este tempo. O seu apoio, dedicao, carinho, pacincia, acolhida e amizade foram muito importantes, voc no imagina o quanto. Grata por entender minhas limitaes e ensinar-me a respeitar o meu tempo. Por reanimar-me a cada encontro com suas palavras fortalecedoras e motivadoras. Voc um ser humano mpar, que privilgio em t-la na minha caminhada. Serei sempre grata por ter acreditado em mim e me compreendido. Neste encontro, caminhamos juntas.

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Epgrafe

Este poema, aqui transcrito na letra de meu pai (in memorian), foi escrito pelo poeta Sr. Adail Barbosa (in memorian), natural de Crislita/MG. Eles eram muito amigos e meu pai foi presenteado com estes versos na poca em que eu era estudante do curso de graduao e repassou-os para mim. Nos ltimos anos de sua vida, meu pai precisou muito dos cuidados da equipe de enfermagem e sempre dignificou e valorizou esses profissionais. Por isso quis compartilhar com os leitores, especialmente, os profissionais da equipe de enfermagem, pelos quais tenho grande admirao, por tudo que representam, e que, s vezes, nem tm tempo de perceber o quanto so importantes e abenoados por aqueles que passam por suas mos.

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RESUMO

NEUMANN, V. N. Qualidade de vida no trabalho: percepes da equipe de enfermagem na organizao hospitalar. 2007. 163 f. Dissertao (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. Este estudo objetivou compreender o significado de qualidade de vida no trabalho sob a ptica da equipe de enfermagem no cotidiano do trabalho hospitalar. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, fundamentada no referencial da fenomenologia. Os sujeitos compreenderam 15 profissionais da equipe de enfermagem que trabalham em uma organizao hospitalar, situada na cidade de Tefilo Otoni, Minas Gerais. As informaes foram coletadas em junho de 2006, atravs de entrevista aberta, respeitando-se os aspectos ticos. As questes norteadoras foram as seguintes: O que para voc, Qualidade de Vida no Trabalho?; Descreva situaes em que voc vivenciou Qualidade de Vida no Trabalho no seu ambiente de trabalho. Para a anlise compreensiva dos dados, seguiram-se os momentos metodolgicos citados por Martins (1992), que incluram: a descrio, a reduo, a compreenso e interpretao fenomenolgica. Aps a extrao e a transformao das unidades de significado, procedemos convergncia de sentido, emergindo trs categorias: Qualidade de vida e condies de trabalho, que se dividiu em trs sub-categorias: A gente ser humano tambm, Qualidade de vida no trabalho e a realidade vivenciada, Qualidade de vida no trabalho e a realidade sonhada; Reconhecimento: fora que move o trabalho e Ser-no-mundo do trabalho com o outro. Compreendemos que Qualidade de Vida no Trabalho para os sujeitos do estudo ter a oportunidade de serem ouvidos pelos gestores e demais profissionais da equipe de sade da organizao hospitalar, podendo expressar idias e aspiraes em relao s questes que envolvem o cotidiano de trabalho. Propomos a criao de grupos de suporte nas organizaes hospitalares, acompanhamento com o profissional psiclogo para a equipe de enfermagem, melhores estruturas fsicas para o trabalho, criao de ambientes apropriados para os recolhimentos espiritual e social que possibilitem o lazer e atividades fsicas, conforme as salas de ginstica. Percebemos a carncia de polticas que trabalhem a temtica Qualidade de Vida no Trabalho na organizao hospitalar e sugerimos que a contemplao dessa se d atravs da realizao de oficinas que envolvam outros profissionais da equipe de sade e tambm os gestores. Percebemos ainda a necessidade de investimentos em prticas pedaggicas que incorporem a temtica Qualidade de Vida no Trabalho nos cursos destinados formao dos trabalhadores que compem a equipe de enfermagem. Palavras-chave: qualidade de vida no trabalho, equipe de enfermagem, trabalho, organizao hospitalar, fenomenologia.

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ABSTRACT

NEUMANN, V. N. Quality of life at work: perceptions of the nursing team in the nosocomial organization. 2007. 163 f. Dissertation (Mastership in Nursing) Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais [Nursing School, Federal University of Minas Gerais], Belo Horizonte, 2007. This study aimed at understanding the meaning of the quality of life at work under the optics of the nursing team in the hospital everyday work. This is a quality research, based on the referential of phenomenology. The individuals were 15 professionals of the nursing team who work at a nosocomial organization located in the city of Tefilo Otoni, Minas Gerais. The information have been collected in June, 2006, through open interview, respecting the ethical aspects. The guiding issues were the following: To you, what is Quality of Life at Work?; Describe situations in which you have experienced the Quality of Life at Work in your work environment. For the comprehensive analysis of the data, it were followed the methodological moments cited by Martins (1992), which included: the description, the reduction, the understanding and phenomenological interpretation. Upon extraction and transformation of the meaning units we have proceeded to the convergence of meaning, emerging three categories: Quality of life and work conditions, which is split into three sub-categories: We also are human beings, Quality of life at work and in the experienced reality, Quality of life at work and the dreamed of reality; Acknowledgement: a power that moves the work and Being in the world of work with the other. We understand that the Quality of Life at Work, for the individuals in this study, is to have the opportunity of being heard by the administrators and other professionals of the health team in the nosocomial organization, being allowed to express ideals and aspirations with regard to the issues that involve the everyday life at work. We propose the creation of supporting groups in the nosocomial organizations, follow up with the psychologist for the nursing team, better physical structures for the work, creating of environments appropriate for the spiritual and social contemplations that enable the leisure and the physical activities, as the gymnastics rooms. We have noticed the lack of policies that work the subject of Quality of Life at Work in the nosocomial organization and we suggest that its contemplation occurs via the realization of workshops that involve other professionals of the health team and also the administrators. We have also noticed the need for investments in pedagogic practices that incorporate the subject of Quality of Life at Work to the courses dedicated to the formation of workers that compose the nursing team. Key Words: quality of life at work, nursing team, work, nosocomial organization, phenomenology.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ANVISA CLT COFEN EPI FHEMIG LEP LER PCI PCIt PCM PSSI QV QVT SCP TCLE UFMG

- Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria - Consolidao das Leis Trabalhistas - Conselho Federal de Enfermagem - Equipamentos de Proteo Individual - Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - Lei do Exerccio Profissional - Leses por Esforos Repetitivos - Paciente de Cuidados Intermedirios - Paciente de Cuidados Intensivos - Paciente de Cuidado Mnimo - Paciente de Cuidados Semi-Intensivos - Qualidade de Vida - Qualidade de Vida no Trabalho - Sistema de Classificao de Pacientes - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - Universidade Federal de Minas Gerais

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SUMRIO

INTRODUO.......................................................................................................................12 CAPTULO 1 1.1 1.2 1.3 O trabalho humano: processo permanente de inveno e re-inveno da vida.............21 Qualidade de vida no trabalho: algumas concepes tericas......................................26 O trabalho na organizao hospitalar e a equipe de enfermagem.................................30

CAPTULO 2 2.1 2.2 Referencial terico metodolgico.................................................................................38 Trajetria metodolgica................................................................................................44

CAPTULO 3 3.1 3.1.1 Anlise compreensiva dos depoimentos.......................................................................51 Qualidade de vida e condies de trabalho...................................................................51

3.1.1.1 A gente ser humano tambm..................................................................................51 3.1.1.2 Qualidade de vida no trabalho e a realidade vivenciada...............................................62 3.1.1.3 Qualidade de vida no trabalho e a realidade sonhada...................................................66 3.1.2 3.1.3 Reconhecimento: fora que move o trabalho................................................................69 Ser-no-mundo do trabalho com o outro.....................................................................75

CAPTULO 4 4.1 Reflexes finais: um recomeo.....................................................................................84

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................88 ANEXOS..................................................................................................................................97 APNDICE............................................................................................................................102

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INTRODUOO mesmo frgil princpio faz-nos viver e d ao que fazemos um sentido inesgotvel.Merleau-Ponty

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Ao longo de nossa experincia profissional, trabalhamos vrios anos, em diferenteshospitais, primeiramente durante sete anos na cidade de Tefilo Otoni, situada no Vale do Mucuri, Minas Gerais e depois, durante seis anos, na cidade de Nova Serrana, situada na regio oeste de Minas Gerais. Atuamos nesses locais, como coordenadora e chefe do servio de enfermagem, na maioria das vezes como nica profissional graduada e vivenciamos diversas situaes conflitivas, principalmente relacionadas ao processo de trabalho da equipe de enfermagem. No cotidiano, junto s equipes de enfermagem, percebamos que era exigida grande produtividade, mas, em contrapartida, as condies de trabalho eram adversas em relao aos recursos fsicos e materiais, entre outros. Observvamos problemas relativos ao nmero insuficiente de profissionais de enfermagem que, diante disso, se esforavam para realizar o atendimento aos pacientes, geralmente em nmero superior ao adequado para aquela rea fsica. Inquietvamo-nos ao ver a sobrecarga de trabalho que era demandada a esses profissionais e indagvamos as conseqncias dessa situao para a vida dos mesmos. Dentre as realidades vivenciadas, chamava tambm a nossa ateno a equipe de enfermagem submetida a duplas jornadas de trabalho, fato esse j bastante enfocado na literatura, atribudo escassez de recursos humanos e tambm aos baixos salrios. Ressaltamos que essa uma realidade ainda freqente nos dias atuais e que resulta em maior esforo fsico e mental desses profissionais, comprometendo, conseqentemente, a qualidade de vida dos mesmos. Corroborando com essas vivncias, Pitta (2003, p. 59) relata que:[...] o regime de turnos e plantes abre a perspectiva de duplos empregos e jornadas de trabalho, comum entre os trabalhadores de sade, especialmente num pas onde os baixos salrios pressionam para tal. Tal prtica potencializa a ao daqueles fatores que por si s danificam suas integridades fsica e psquica.

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De fato, a sobrecarga de atribuies contribua para que esses profissionais se apresentassem com um semblante cansado e assim muitas vezes permanecessem durante toda a jornada de trabalho. Dessa forma desenvolviam precariamente as suas funes e a assistncia prestada ao paciente deixava a desejar. Percebamos que se esforavam, buscavam disfarar o cansao, mas eram surpreendidos por seus limites fsicos, psquicos e emocionais. Como agravante, em diversas ocasies, observvamos ainda que alguns integrantes da equipe de enfermagem enveredavam para o uso de psicotrpicos no horrio de suas atividades, provavelmente, na tentativa de suavizar o sofrimento psquico advindo das precrias condies de trabalho e possivelmente devido ao processo dirio de tarefas vivenciadas. Essa realidade nos inquietava e levava-nos a questionar como esses sujeitos poderiam cuidar dos outros sem estarem cercados dos cuidados necessrios sua sade e bem-estar nesse ambiente. Nesse sentido, Pitta (2003) afirma que de maneira geral o hospital reconhecido como um recinto insalubre, penoso e perigoso para os que ali trabalham sendo considerado como um local privilegiado para o adoecimento. Essa autora relata ainda que, alm dos riscos de acidentes e doenas de ordem fsica, o sofrimento psquico tambm bastante comum e est em crescimento diante da presso social e psicolgica a que esto expostos os que ali atuam. Segundo Lima e sther (2001), as condies de trabalho s quais a enfermagem est submetida propiciam danos sua sade. Sem escolha, sujeitam-se a relaes, organizaes, condies e espaos que contribuem significativamente para um sofrimento inevitvel, que idealmente deveria ser gerenciado pelos trabalhadores visando sua sade e qualidade de vida. Cabe, pois, aqui questionar: que conseqncias teriam essas situaes na vida desses profissionais e no atendimento prestado? De acordo com Freitas (1999), a qualidade da assistncia de enfermagem est intrinsecamente ligada qualidade das condies de trabalho sendo necessrias mudanas efetivas no gerenciamento do sistema de sade como um todo.

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Ainda

neste

contexto,

os

profissionais

de

enfermagem

so

confrontados

cotidianamente com situaes que exigem vigilncia, controle, avaliao, interao em diferentes nveis, gesto de um grande volume de informao e mltiplos eventos. Segundo Pitta (2003, p. 28), esses profissionais so guardies nem sempre esclarecidos da sua penosa e socialmente determinada misso enquanto trabalhadores da sade. Na viso de Alves (1996), a equipe de enfermagem, enquanto categoria majoritria, quantitativamente, responsvel por grande parte do trabalho final da organizao hospitalar junto clientela e sofre o impacto das polticas organizacionais, configurando, portanto, um quadro de desestmulo, altamente incompatvel com as funes diretas de assistncia ao cliente. O trabalho da equipe de enfermagem numa organizao hospitalar estabelece um confronto com a dor, o sofrimento e a morte do outro. Apesar de lidar com um objeto de trabalho sensvel, singular, subjetivo, que o ser humano, o que se observa nessas organizaes que so exigentes, competitivas, burocratizadas e, no entanto, deveriam prestar servios de forma diferenciada e mais humanizada. Pautados nessa realidade e preocupados com a humanizao das aes no contexto hospitalar, o Ministrio da Sade criou, em maio de 2000, o Programa Nacional de Humanizao da Assistncia Hospitalar, posteriormente Poltica Nacional de Humanizao que tem como objetivo fundamental aprimorar as relaes entre profissionais e profissionais/usurios, visando melhoria da qualidade e a eficcia dos servios prestados por essas instituies, alm de favorecer as condies de trabalho da rea de sade (BRASIL, 2004). Diante disso, Deslandes (2004, p. 13) ressalta que humanizar a assistncia humanizar a produo dessa assistncia. A implementao da Poltica Nacional de Humanizao pressupe vrios eixos de ao, dentre os quais o eixo da gesto do trabalho, que prope a promoo de aes que

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assegurem a participao dos trabalhadores nos processos de discusso e deciso, fortalecendo-os e valorizando-os, bem como sua motivao, seu autodesenvolvimento e crescimento profissional (BRASIL, 2004). Segundo Nogueira (1997), o processo de trabalho no contexto hospitalar apresenta especificidades, ele se distingue de outros setores da economia, na medida em que seu produto final um servio resultante da ao compartilhada de vrios profissionais. O resultado depende das relaes interpessoais entre beneficirios e executores reunindo um conjunto de atividades programadas e normalizadas que se realizam de forma coletiva em um cenrio dinmico e instvel. O trabalho em sade essencial para a vida humana e parte do setor de servios, porm no tem como resultado um produto material, o produto final do trabalho em sade a prpria prestao da assistncia de sade que produzida no mesmo momento em que consumida (PIRES, 2000). Os diversos problemas e dificuldades frente s condies laborais da equipe de enfermagem levaram-nos a refletir na relao dialgica entre cuidar e ser cuidado: de um lado, encontrava-se o paciente que necessitava de assistncia pela equipe de forma integral, nas suas necessidades bio-psico-scio-espirituais; de outro, encontravam-se os profissionais que tambm deveriam ser vistos na integralidade de suas necessidades. Segundo nosso entendimento, necessrio que o profissional de enfermagem tambm se sinta cuidado para melhor cuidar. Certamente nenhuma tecnologia jamais conseguir substituir o cuidado humano, razo pela qual importante resguardarem-se os trabalhadores da equipe de enfermagem. Alm disso, o cuidador deveria ser visto como um ser humano que tem a sua subjetividade devendo lhe ser dada a oportunidade de expor seus pensamentos e suas expectativas em relao ao trabalho, alm de condies apropriadas para o desempenho do mesmo.

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No decorrer dos ltimos anos, surgiram diversas interrogaes sobre o bem-estar do homem no trabalho, e os pesquisadores, cujo objeto de estudo o trabalho humano, vm insistindo para o duplo carter da atividade, como meio e como finalidade em si. Como meio, o trabalho d recursos ao homem para adquirir os bens necessrios vida, e como fim, socializa-o, coloca-o defronte do outro e, portanto, diante de si (SAMPAIO, 1999). De acordo com Antunes (2000, p. 125), o trabalho mostra-se como momento fundante de realizao do ser, condio para sua existncia. Sendo assim, ele tem um significado muito importante na vida do ser humano que sujeito, dono de percepes e vivncias nicas, que permeiam toda a sua vida dentro e fora do ambiente de trabalho. Esse mesmo autor afirma que necessrio que o homem se realize naquilo que faz, sinta-se satisfeito com a atividade escolhida, de modo que a mesma possa atender expectativa de cada um. A busca pela satisfao do trabalhador e tambm pela tentativa de reduo do malestar e do excessivo esforo fsico no trabalho, (SAMPAIO, 1999, p. 20), levou muitos autores reflexo acerca dessa temtica, o que culminou na expresso Qualidade de Vida no Trabalho (QVT). So inmeras as interpretaes para a conceituao de QVT e, segundo Fernandes (1996), no existe uma definio de consenso sobre a expresso, porm, nos diferentes enfoques, observa-se algo em comum: a busca da conciliao dos interesses dos indivduos e das organizaes, que se traduzem no desejo pela melhoria da satisfao do trabalhador em consonncia com a melhoria da produtividade da empresa. Dessa forma a idia de QVT procura amalgamar interesses diversos e contraditrios, presentes nos ambientes e condies de trabalho, em empresas pblicas ou privadas que no se resumem aos do capital e do trabalho, mas tambm aos relativos ao mundo subjetivo

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(desejos, vivncias, sentimentos), aos valores, crenas, ideologias e aos interesses econmicos e polticos (LACAZ, 2000). Assim, inquieta em nossas vivncias frente s condies laborais da equipe de enfermagem e reconhecendo a necessidade de se cuidar dos cuidadores, manifestamos a vontade de desenvolver esse estudo no sentido de compreender o significado de Qualidade de Vida no Trabalho, para a equipe de enfermagem na organizao hospitalar. Alguns autores constatam a importncia de se realizarem estudos que enfoquem os cuidadores e, nesse sentido, Campos (2005) afirma a necessidade de apoio e suporte aos profissionais de sade e conclui que h uma extensa literatura sobre grupos de suporte que so criados para apoiar pessoas em situaes de adoecimento, mas que, em relao aos cuidadores, existem poucos trabalhos. Costenaro e Lacerda (2002, p. 31) tm realizado estudos sobre a temtica cuidado com os cuidadores e relatam que no podemos esquecer a equipe de enfermagem [...] necessrio e urgente que algo seja feito em favor dos cuidadores. Radnz (1998) organizou um estudo estimulando as enfermeiras a estabelecer uma relao mais amorosa consigo mesmas e a refletir sobre sua situao no sentido de se cuidarem durante o desempenho do seu trabalho. Aps realizarmos uma reviso de literatura sobre a temtica QVT, voltada para a enfermagem na organizao hospitalar no Brasil, encontramos alguns estudos que abordam a descrio e anlise de critrios relevantes para a QVT de enfermeiros de um Hospital Universitrio (VIEIRA, 1993); que visam oferecer subsdios para a reflexo da temtica QVT (HANH; CAMPONOGARA, 1997); que propem a implantao de um Programa Interdisciplinar de Apoio ao Trabalhador de Enfermagem e enfocam a promoo e a manuteno de QVT (HADDAD, 2000); que buscaram obter subsdios para elucidar a situao do enfermeiro no ambiente de trabalho com o objetivo de fornecer dados para

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contribuir na reestruturao organizacional e conseqente melhoria da QVT desses profissionais (PIZZOLI, 2005), entre outros. Encontramos tambm um estudo cujo objetivo foi de ter cincia sobre os processos desgastantes e potencializadores da QVT no trabalho do docente em enfermagem (ROCHA; FELLI, 2004); e outro com a finalidade de conhecer e avaliar a Qualidade de Vida (QV) dos estudantes do curso de graduao em enfermagem (SAUPE et al., 2004). Esses autores desenvolveram suas pesquisas utilizando variadas abordagens metodolgicas, embasando-se em tericos e seus respectivos mtodos, que enfocam a temtica Qualidade de Vida no Trabalho tais como: Walton; Guest; Flanagan; Bergeron, Petit e Blanger; Meeberg; Fernandes, entre outros. No evidenciamos, entretanto, no Brasil, pesquisas que trabalhassem a percepo dos membros da equipe de enfermagem acerca da QVT no contexto hospitalar, fundamentadas numa abordagem que enfocasse a subjetividade do sujeito, estudos que tratassem da temtica do fazer cotidiano desses profissionais. Assim, o nosso estudo possibilitou uma aproximao com o mundo de significaes dos trabalhadores de enfermagem acerca da QVT na realidade hospitalar. E, para compreender o significado de QVT para os integrantes da equipe de enfermagem, tornou-se necessrio buscar estudiosos que tivessem como foco o trabalho humano.

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CAPTULO 1Oh, as estranhas exigncias da sociedade burguesa que primeiro nos confunde e nos desencaminha, para depois exigir de ns mais que a prpria natureza!Goethe

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1.1 O trabalho humano: processo permanente de inveno e re-inveno da vida1

Este um tema muito vasto e devido sua relevncia, vem sendo mundialmentepesquisado nos ltimos anos por psiclogos, socilogos, administradores, antroplogos, entre outros. No temos a pretenso de elencar aqui todos os pensamentos desses estudiosos a respeito do tema, principalmente pela vastido do mesmo. Faremos, contudo, algumas consideraes sobre o que o trabalho na vida do ser humano, lembrando a subjetividade de cada um. O homem, desde os primrdios da humanidade, busca meios e estratgias para vencer os desafios de sua sobrevivncia. Por isso, compartilha com os demais seres vivos a atividade de agir sobre a natureza transformando-a, para melhor satisfazer suas necessidades. O trabalho, como todos os processos vitais e funes do corpo, uma propriedade inalienvel do indivduo humano (BRAVERMAN, 1981, p. 56). Unido existncia da humanidade, o trabalho tem variado historicamente de forma e de contedo. Durante muitos anos foi desenvolvido de forma primitiva especialmente para fins de subsistncia, atravs do extrativismo. A seguir, veio o descobrimento da agricultura e os produtos cultivados comearam a ser trocados entre as pessoas. Do trabalho sobre a terra se origina a riqueza que vai incentivar o desenvolvimento do trabalho artesanal [...]. E da primitiva troca de espcies passa-se ao comrcio mediado pela moeda (ALBORNOZ, 1986, p. 20). Essa autora relata, ainda, que posteriormente surge a burguesia composta por comerciantes bem sucedidos que empregavam artesos, carregadores, marinheiros, entre

Frase retirada do texto de: OSRIO, C. Labirintos do trabalho: interrogaes e olhares sobre o trabalho vivo. In: FIGUEIREDO, M.; ATHAYDE, M.; BRITO, J.; ALVAREZ, D. (Org.) Plur(e)al, 2005. v. 1, n. 1, p. 61-62. Recenso crtica.

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outros. Dessa forma foi se instalando aos poucos uma hierarquia baseada no dinheiro. A burguesia foi o bero do capitalismo, sistema econmico vigente que determina em muitos pases as formas pelas quais o trabalho deve realizar-se. Para Braverman (1981, p. 54-55),A produo capitalista exige intercmbio de relaes, mercadorias e dinheiro, porm sua diferena especfica a compra e venda de fora de trabalho [...]. O processo de trabalho comea, portanto, com um contrato ou acordo que estabelece as condies da venda da fora de trabalho pelo trabalhador e sua compra pelo empregador.

Outra caracterstica muito marcante nesse sistema a diviso tcnica do trabalho, que se resume na especializao do trabalhador em tarefas cada vez mais segmentadas no processo produtivo. Para o capitalista, essa tambm uma caracterstica importante, uma vez que proporciona aumento de produtividade. Essa diviso se deve ao Taylorismo, movimento de racionalizao do trabalho com incio no final do sculo XVIII e implantado e difundido em todo o mundo no limiar do sculo XIX. Tal modelo trabalhista, no entanto, individualiza os trabalhadores em atividades parciais e afasta-os da compreenso global do processo de produo. Taylor2 reduziu o homem a gestos e movimentos, sem capacidade de desenvolver atividades mentais, que, depois de uma aprendizagem rpida, funcionava como uma mquina. O homem, para Taylor, poderia ser programado, sem possibilidades de alteraes, em funo da experincia, das condicionantes ambientais, tcnicas e organizacionais (MOTTA, 1991). No sistema capitalista das grandes indstrias, o processo de trabalho baseado na produo em massa das mercadorias, estruturado em uma produo mais homogeneizada e

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Frederick Winslow Taylor (1856-1915), considerado o Pai da Administrao Cientfica por propor a utilizao de mtodos cientficos cartesianos na administrao de empresas. Seu foco era a eficincia e eficcia operacional na administrao industrial (http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Frederick_Taylor&oldid=3688850).

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verticalizada. Essa atividade reduzida a uma ao mecnica e repetitiva, cabendo aos gerentes e aos administradores a direo intelectual do trabalho (ANTUNES, 2000). ANTUNES (2000, p. 126) prossegue em sua anlise:[...] na sociedade capitalista, o trabalho degradado e aviltado. Torna-se estranhado. O que deveria se constituir na finalidade bsica do ser social - a sua realizao no e pelo trabalho - pervertido e depauperado. O processo de trabalho se converte em meio de subsistncia. A fora de trabalho tornase, como tudo, uma mercadoria, cuja finalidade vem a ser a produo de mercadorias. O que deveria ser a forma humana de realizao do indivduo reduz-se nica possibilidade de subsistncia do despossudo. Esta a radical constatao de Marx: a precariedade e perversidade do trabalho na sociedade capitalista.

Nesse contexto que est inserida a grande maioria dos trabalhadores nos dias de hoje. O trabalho se tornou alienado, impondo-se vida das pessoas como algo que os reduz mquina de produzir riquezas. A fora de cada pessoa traduzida em trabalho e o desgaste de energia fsica exigido como se fosse normal em busca da subsistncia. No tocante a isso, o trabalhador se torna expropriado. De acordo com Codo et al. (1993), as funes sociais e as necessidades humanas desaparecem no sistema capitalista. No lugar delas se destacam a fora de trabalho aplicada ao produto, o tempo dedicado produo, o salrio e a jornada de trabalho negociados no mercado. Segundo Enriquez (1990, p. 174), os trabalhadores inseridos no sistema capitalista so reconhecidos como instrumentos necessrios produo, porm so tratados como mercadorias manipulveis, vassalos, vendveis e desviados da cidadania, includos no trabalho produtivo e excludos da esfera do que vivo. Percebemos que nesse sistema os trabalhadores so levados a realizar um trabalho no sentido quantitativo, o que as empresas exigem a produtividade, porm a subjetividade de cada trabalhador est camuflada, pois ele tem que se submeter a rotinas, seguir ordens e, na

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grande maioria dos casos, no pode expressar seus sentimentos, sua criatividade em relao quela atividade exercida. So notveis os reflexos positivos do capitalismo em muitos aspectos da vida humana. Assistimos, principalmente nas duas ltimas dcadas do sculo XX, acelerao da taxa de acumulao de conhecimentos cientfico e tecnolgico. Surgem, diariamente, novos investimentos divulgados em segundos atravs dos vrios meios de comunicao, destacando a evoluo dos satlites, informtica, entre outros. Essas transformaes continuaro a existir a partir da capacidade de idealizao do homem. Em meio a inmeros avanos tecnolgicos, entretanto, torna-se relevante a valorizao dos sujeitos que, como seres pensantes, planejam essas invenes e executam-nas atravs do seu trabalho. Essa valorizao consiste principalmente no reconhecimento e no resgate do humano, nas relaes e no processo de trabalho. A despeito dos avanos do capitalismo, Clot (1999, p. 5), estudioso na rea de psicologia do trabalho, faz uma considerao muito importante sobre as conseqncias do modelo capitalista e taylorista para o trabalhador:As molas vitais da atividade so deixadas vazias e, em conseqncia, aquilo que existe de realmente irredutvel no fator humano, a saber, a solidariedade do ser inteiro em relao ao esforo que lhe exigido, no se tornou o mais evidente.

Esse autor afirma que as modificaes demandadas pelo mundo do trabalho, em resposta s lacunas deixadas pela produo sob a gerncia taylorista, incluem um novo olhar para dimenses do ser humano esquecidas, ou mesmo extirpadas por esse modelo de gerenciamento. Refora a importncia da subjetividade na ao profissional e relata que essa no um adereo nem decorao da atividade, pelo contrrio, est no princpio do seu desenvolvimento, , portanto, a base da prpria atividade. Dejours (2004) vem realizando estudos interpretando as vivncias subjetivas dos trabalhadores nos seus ambientes de trabalho, no os considerando como corpos biolgicos

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dentro de uma organizao, mas sim como sujeitos de mudana no seu processo de trabalho. Sujeitos que tm a sua percepo sobre situaes no trabalho, que so capazes de criar, de elaborar transformaes que os beneficiariam na sua vida em geral, mas que so alijados desse processo. O trabalho tem um significado muito importante na vida das pessoas, conforme nos relata Antunes (2000, p. 125):O ato de produo e reproduo da vida humana realiza-se pelo trabalho [...] o trabalho mostra-se como momento fundante de realizao do ser, condio para sua existncia; o ponto de partida e motor decisivo do processo de humanizao do homem.

O mesmo autor menciona que o trabalhador sujeito, dono de percepes e vivncias nicas, que permeiam toda a sua existncia e refletem-se na sua vida integralmente. Por isso, necessrio que o homem se realize com seu trabalho, sinta-se satisfeito com a atividade escolhida e que a mesma possa atender expectativa de cada um. Acrescentamos que a vida deve continuar a acontecer no ambiente de trabalho e fora dele, tendo o trabalhador a possibilidade de um tempo de descanso apropriado, de lazer, enfim de estar ao lado de seus familiares desfrutando tudo de bom que o mundo oferece. fato, entretanto, que o sistema capitalista est enraizado no mundo contemporneo, no havendo como fugir dessa realidade, porm necessrio um olhar para o sujeito que executa o trabalho, que ele possa ter mais chances de se manifestar, questionar e de contribuir para o seu crescimento dirio. Essa viso deve partir daquelas pessoas que detm o poder nas organizaes, que o lucro necessrio assim o sabemos, mas que seja conseguido com trabalhadores satisfeitos naquilo que executam. Grande parte da vida do ser humano ocupada pelo trabalho, antes de desenvolv-lo, o homem idealiza-o em sua conscincia. H sempre uma finalidade, esta faz com que o homem utilize suas potencialidades para alcanla. O trabalho , portanto, um momento efetivo de colocao de finalidades humanas (ANTUNES, 2003, p. 168).

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Que essa realidade esteja presente em todos os segmentos de trabalho, que a valorizao da vida seja constante. Um sonho impossvel? No, uma esperana constante e a crena incansvel na grandiosidade presente no interior de cada ser humano, na fora que brota a cada dia e no anseio freqente de melhorar a vida a cada instante. Surge, assim, o anseio de trabalhar a QVT, valorizando o humano e buscando reduzir o espao entre a produtividade e o sujeito que o produz.

1.2 Qualidade de vida no trabalho: algumas concepes tericas

O tema Qualidade de Vida no Trabalho foi representado inicialmente pela busca desatisfao do trabalhador e pela tentativa de reduo do esforo fsico no trabalho. Pode-se dizer que, nas primeiras civilizaes, j se tem notcia de que teorias e mtodos eram desenvolvidos no sentido de alcanar tais objetivos, como exemplo o desenvolvimento da geometria para melhorar o trabalho dos agricultores s margens do rio Nilo (RODRIGUES, 1995). A partir dos sculos XVIII e XIX, as condies de trabalho passaram a ser estudadas de forma cientfica, primeiramente pelos economistas liberais Adam Smith, Malthus, depois pelos tericos da Administrao Cientfica, Frederick Taylor e Henri Fayol. Esses estudiosos introduziram na sociedade uma melhor estrutura de trabalho centrada principalmente na eficincia e na produtividade, porm as conseqncias dessas mudanas para os trabalhadores foram negativas no sentido de que houve a separao entre o pensar e o executar, levando-os a conhecer somente uma parte do todo, retirando-lhes a capacidade de utilizar seu pensamento, perdendo, pois, a identidade e o significado do trabalho (SAMPAIO, 1999).

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Em funo das marcas deixadas pela Escola Clssica, muitos pesquisadores comearam a desenvolver estudos sobre a satisfao do indivduo no trabalho, destacando-se Elton Mayo que, na dcada de 30, iniciou a Escola de Relaes Humanas. Foram desenvolvidos estudos de moral e de produtividade, os quais trouxeram contribuies significativas o que mais tarde foi chamado de movimento de QVT. A abordagem humanstica dessa Escola fez uma verdadeira revoluo conceitual e o destaque, antes colocado na tarefa e na estrutura organizacional, foi transferido para as pessoas que trabalham e participam nas organizaes (VIEIRA, 1993). Para Rodrigues (1995) e Sampaio (1999), a expresso Qualidade de Vida no Trabalho apareceu na literatura no incio dos anos 50, sculo XX, na Inglaterra, com Eric Trist. Este, juntamente com seus colaboradores, estudava um modelo para tratar os assuntos relacionados ao indivduo, seu trabalho e organizao na qual se encontrava inserido, surgindo, ento, uma abordagem social do trabalho que tinha como base a satisfao do trabalhador no trabalho e com o trabalho. Ainda na dcada de 50 e no decorrer da dcada de 60, destacam-se os estudos de Abraham Maslow e Frederick Herzberg relacionados ao trabalho humano. Maslow desenvolveu a teoria das necessidades humanas composta de cinco necessidades fundamentais: fisiolgicas, segurana, amor, estima e auto-realizao. Herzberg realizou estudos em que abordou aspectos de satisfao e insatisfao no trabalho a partir da teoria dos dois fatores: higinicos e motivacionais (RODRIGUES, 1995). De acordo com Vieira (1993), no final da dcada de 60, observa-se o termo QVT na literatura com mais freqncia, devido a estudos realizados nos Estados Unidos, Canad e Frana. A formao de centros com essa linha de pesquisa alcanou considervel desenvolvimento, o que assegurou, inclusive, um apoio na prpria legislao francesa.

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Segundo essa autora, na dcada de 70, na Frana, foi aprovada, sob forma de lei, a obrigatoriedade de as organizaes desenvolverem um planejamento pela melhoria da QVT. Huse e Cummings3, (apud RODRIGUES, 1995 e SAMPAIO, 1999), avaliaram estudos, realizados nos Estados Unidos na dcada de 60, cujo objetivo era tornar o trabalho mais agradvel nas linhas de montagem. Segundo aqueles autores, durante essa dcada, que o movimento de melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores ganhou impulsos devido aos aspectos da reao individual dos trabalhadores s experincias de trabalho. Explicitaram em sua obra os pontos de maiores convergncias e preocupaes sobre as dimenses que trariam ao indivduo uma melhor qualidade de vida no trabalho. Os principais aspectos abordados foram a segurana e sade no trabalho, o desenvolvimento das capacidades humanas, a adequada e satisfatria recompensa pelo trabalho, a integrao social, entre outros. Segundo Lacaz (2000), na dcada de 80, consolida-se uma tendncia que baseia a QVT na maior participao do trabalhador na empresa, na perspectiva de tornar o trabalho mais humanizado. Os trabalhadores so vistos como sujeitos, estando sua realizao calcada no desenvolvimento e aprofundamento de suas potencialidades. A QVT tem sido definida de diferentes formas por diversos estudiosos, no entanto, praticamente todas as definies tm em comum o entendimento de que a mesma objetiva propiciar uma maior humanizao do trabalho, o aumento do bem-estar dos trabalhadores e uma maior participao dos mesmos nas decises e problemas do trabalho (BOM SUCESSO, 1997; FERNANDES, 1996; LACAZ, 2000). Para Walton4, (apud RODRIGUES, 1995, p. 81), a expresso Qualidade de Vida tem

HUSE, E.; CUMMINGS, T. Organization development and change. Minn: West Publishing, 1985. WALTON, R. E. Quality of working life: what is it? Sloan Management Review, Cambridge, v. 15, n. 1, 1973.4

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sido usada com freqncia para descrever certos valores ambientais e humanos, negligenciados pelas sociedades industriais em favor do avano tecnolgico, da produtividade e do crescimento econmico. Esse autor prope oito categorias conceituais incluindo critrios de QVT assim definidas: compensao justa e adequada; condies de trabalho; uso e desenvolvimento de capacidades; oportunidade de crescimento e segurana; integrao social na organizao; constitucionalismo; trabalho e o espao total da vida. Bergeron, Petit e Blanger5, (apud VIEIRA e HANASHIRO, 1990), utilizam a expresso QVT para reagrupar todas as experincias de humanizao do trabalho sob dois aspectos: a reestruturao dos cargos e o estabelecimento de grupos de trabalho semiautnomos, uma vez que o arranjo dos postos de trabalho de grupo gera participao. Segundo Bom Sucesso (1997), a QVT refere-se satisfao das necessidades do trabalhador afetando suas atitudes pessoais, sua capacidade de inovar ou aceitar mudanas no ambiente de trabalho e seu grau de motivao interna para o trabalho. Assim, so inmeras as interpretaes para a QVT e, apesar da falta de consenso acerca do seu conceito, a mesma tm sido entendida como a aplicao de uma filosofia humanista, que visa alterar aspectos do e no trabalho, com o desejo pela melhoria da satisfao do trabalhador em consonncia com a melhoria da produtividade da empresa (FERNANDES, 1996). A partir das consideraes anteriores, nota-se que a QVT fundamental para a sade do trabalhador, especialmente para a enfermagem, que tem o cuidado, como essncia, em sua prtica profissional.

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BERGERON, J. L., PETIT A., BLANGER, L. Gestion des ressources humaines: une approche global et integre. Quebec: Gaetan Morin diteur, 1984.

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1.3 O trabalho na organizao hospitalar e a equipe de enfermagem

O

contexto hospitalar apresenta peculiaridades no mundo do trabalho e rene

diversos profissionais que esto direta ou indiretamente ligados assistncia aos pacientes. O primeiro grupo composto por profissionais de enfermagem e mdicos e o segundo, por trabalhadores com diferentes qualificaes que desenvolvem atividades no-especficas do trabalho em sade, mas que tm influncia nessa assistncia. A incorporao de novos trabalhadores no espao hospitalar ainda acontece em funo da complexidade das atividades a estabelecidas. O trabalho realizado nas organizaes hospitalares majoritariamente um trabalho coletivo6; composto por diversos profissionais cujo propsito o desenvolvimento de atividades destinadas a atingir o produto final que a assistncia ao paciente (PIRES, 1999). O trabalho coletivo exige a comunicao entre os membros da equipe e tambm entre esses e os que recebem seus cuidados. Por isso, a organizao hospitalar estabelece uma rede de relaes sociais que produzida e reproduzida pelas vrias estratgias dos profissionais e dos pacientes. Nesse espao, concentram-se os recursos humanos e materiais que do forma ao processo de cuidar. Apesar dessa rede de relaes, h nessa organizao uma linha divisria que coloca, de um lado, os que cuidam diretamente dos doentes e, do outro, os que do sustentao ao processo de cuidar. Os profissionais atuam de forma complementar, porm nem sempre o trabalho se desenvolve de forma harmoniosa. Segundo Pires (2000, p. 89), o trabalho compartimentalizado, cada grupo profissional se organiza e presta parte da assistncia de sade separado dos demais, muitas vezes duplicando esforos e at tomando

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Designa o modo de produzir que emerge com a diviso manufatureira do trabalho e encontra-se no trabalho industrial, no setor de servios e tambm no trabalho assistencial em sade, que parte do setor de servios (PIRES, 2000).

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atitudes contraditrias. De acordo com Pea et al. (2006), o processo de trabalho em sade engloba o trabalho vivo7 e o trabalho morto8. Na relao trabalhador de sade/paciente necessrio que se predomine o trabalho vivo que se realiza atravs do vnculo, do encontro to necessrio com o outro. O acolhimento muito significativo para os sujeitos que recebem o tratamento e da mesma forma para aqueles que o executam. O trabalho morto, que a utilizao dos equipamentos e materiais destinados assistncia, tem a sua importncia, porm os momentos de acolhimento e de escuta que necessitam sobressair, pois a partir das relaes que se formam entre os profissionais de sade que a assistncia se concretiza. Segundo Pires (2000, p. 85),O trabalho em sade um trabalho essencial para a vida humana e parte do setor de servios. um trabalho da esfera da produo no-material, que se completa no ato da sua realizao. No tem como resultado um produto material, independente do processo de produo. O produto indissocivel do processo que o produz: a prpria realizao da atividade.

O contexto hospitalar apresenta outras caractersticas muito prprias tais como: atividades ininterruptas, apesar de haver diferenciao entre os diferentes servios, turnos e dias da semana; tem-se uma concentrao do maior contingente de atividades no perodo da manh e h uma predominncia de trabalhadores do sexo feminino, principalmente na enfermagem. Essa particularidade explicada por Melo (1986), em funo do arqutipo, atribudo s mulheres, em vrias culturas, a assistncia e higienizao dos doentes como se fossem as extenses dos trabalhos familiar e domstico. A enfermagem representa a maior fora de trabalho do hospital e fazem parte dessa equipe as enfermeiras, que so as profissionais cuja formao de nvel superior; os tcnicos

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Significa trabalho em ao que se produz dando-se no ato de sua relao, se realiza atravs das relaes, de encontros entre subjetividades (PEA et al., 2006). 8 Refere-se s ferramentas ou matrias primas que resultam de um trabalho humano anterior. Por exemplo: materiais, normas, rotinas, protocolos de ateno, etc (PEA et al., 2006).

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de enfermagem, que possuem formao tcnica aps completar o ensino mdio, e os auxiliares de enfermagem so aqueles que fazem o curso especfico ao conclurem o ensino fundamental. Essa equipe divide o trabalho, seja atravs da prestao de cuidados integrais, cujas atividades so ampliadas e possibilitam uma viso mais global das necessidades dos pacientes ou de cuidados funcionais, que so desenvolvidos por tarefas de acordo com os nveis de complexidade e de competncia profissional. O enfermeiro detm controle do processo de trabalho da enfermagem, aos demais trabalhadores dessa equipe, cabe o papel de executores de tarefas delegadas (PIRES, 1999). A dicotomia entre a concepo e a execuo uma caracterstica da diviso tcnica do trabalho e ainda a diviso em classes sociais e essas marcaram a forma de estruturao da equipe de enfermagem. Esse princpio taylorista se reproduz na Lei 7.498/86 do Exerccio Profissional da Enfermagem (LEP) a qual mantm as caractersticas bsicas de ciso entre o saber e o fazer, que surgem com a organizao da Enfermagem, enquanto profisso, no final do sculo passado (PIRES, 1999, p. 40). A equipe de enfermagem responsvel pelo cuidado direto aos pacientes e cabe ao enfermeiro, alm de prestar o cuidado, desenvolver as aes administrativas, de pesquisa e ensino. As aes administrativas visam criar condies materiais e de pessoal para que o processo de cuidar se desenvolva. Essas aes so realizadas com a finalidade de organizar e controlar o processo de trabalho, conseqentemente favorecendo a ao do cuidado para permitir a cura. As atividades assistenciais cuidativas so aquelas que incluem a prestao de cuidados decorrentes de avaliaes realizadas pelos enfermeiros tais como higiene e conforto dos pacientes ou delegadas pelos mdicos, como a administrao de medicamentos. Essas devem ser realizadas pela equipe de enfermagem. Sobre as aes delegadas pelos mdicos, Almeida e Rocha (1997, p. 20) afirmam que esta subordinao do trabalho de enfermagem

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no se d em relao ao profissional mdico, mas ao trabalho mdico. As aes de pesquisa se destinam ao aprimoramento cientfico dos enfermeiros e as de ensino viabilizam as trocas do conhecimento e as prticas educativas em sade. No contexto da organizao do trabalho, a enfermagem sofreu a influncia de duas correntes de pensamento: a Escola Clssica da Administrao de Frederick Taylor e Henry Fayol e a Escola das Relaes Humanas de Elton Mayo. Ressaltamos trs aspectos da Teoria de Taylor que influenciaram o processo de trabalho da enfermagem: primeiro, a diviso do trabalho em especialidades, de modo que o trabalhador saberia cada vez mais da parte que lhe coubesse e menos do todo. Segundo, a separao entre a concepo e a execuo do trabalho e terceiro a utilizao do monoplio do conhecimento pelo gerente (no caso o enfermeiro) e a delegao de funes e atividades; assim, o trabalho de cada pessoa passa a ser planejado por outro profissional e executado pelos tcnicos e auxiliares de enfermagem. Sobre esse fato Pitta (2003, p. 48) relata: a diviso do trabalho no hospital a reproduo no seu interior da evoluo e diviso do trabalho no modo de produo capitalista. As contribuies de Henry Fayol relacionam-se aos cinco princpios bsicos introduzidos na administrao e que so vivenciados no cotidiano de trabalho da enfermagem, que so: planejamento, organizao, coordenao, comando e fiscalizao (MELO, 1986). Da Escola de Relaes Humanas, a enfermagem herdou a organizao do trabalho em equipe e, conseqentemente, a unio das categorias profissionais, constituindo-se assim a equipe de enfermagem (MELO, 1986). As aes da equipe de enfermagem ainda so freqentemente marcadas pela diviso fragmentada e reproduzem em seu interior as caractersticas da organizao do trabalho industrial proposto por Taylor. Muitos hospitais ainda mantm uma rgida estrutura hierrquica e exigem da equipe de enfermagem o cumprimento de rotinas, normas e

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regulamentos. Sobre esse fato Murofuse (2004, p. 74) relata:A valorizao da enfermagem pelo como fazer em detrimento do por que fazer evidencia-se pelos inmeros manuais de normas, rotinas e procedimentos tcnicos que especificam detalhadamente os passos a serem seguidos, bem como por quem as atividades devem ser desenvolvidas.

A equipe de enfermagem se submete a esse processo de onde lhe tirada a capacidade de agir de maneira mais integral, de opinar no sentido de obter melhorias, de questionar enfim. O enfermeiro raramente participa das discusses que envolvam mudanas na dinmica do trabalho, que possibilitem melhores condies de trabalho, atua basicamente em questes de compra de materiais e equipamentos necessrios para a assistncia hospitalar. No obstante, a equipe de enfermagem que interage, de modo mais direto e contnuo, com os pacientes, permanecendo por mais tempo na organizao. A sua jornada de trabalho muito exaustiva, principalmente pelo fato de uma grande parte trabalhar em mais de um emprego, o que sobrecarrega integralmente a vida desses profissionais, conforme j mencionamos na introduo. Percebemos que a equipe de enfermagem enfrenta, em sua grande maioria, condies de trabalho geralmente insatisfatrias. Os profissionais submetem-se ao trabalho em organizaes cuja hierarquia verticalizada, sujeitam-se a jornadas duplas pela necessidade de melhorar a renda familiar e, conseqentemente, a sua vida fora do trabalho, alm de trabalharem em ambientes intensamente insalubres. O espao hospitalar tambm um local onde se concentram pacientes acometidos por diferentes problemas de sade cujo sofrimento eminente o que exige uma assistncia de diversas categorias de trabalhadores. Os profissionais de enfermagem, sendo a maioria nessas organizaes, alm de estarem expostos a cargas psquicas que solicitam um preparo adequado e um suporte para o desenvolvimento das atividades cotidianas, ainda so os que

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mais enfrentam as piores condies de trabalho e, diante disso, ficam expostos a situaes nas quais a manuteno da sade est prejudicada (PITTA, 2003). Lima e sther (2001, p. 21) afirmam que nesse tipo de organizao, dificilmente existe a preocupao em proteger, promover e manter a sade de seus funcionrios. O hospital, cuja misso tratar e curar os doentes, favorece o adoecimento dos que nele trabalham. Estudos mostram que os ndices de adoecimento desses profissionais tm aumentado consideravelmente, justificando-se assim um olhar mais atento para a equipe de enfermagem. Essa equipe necessita ser cuidada para melhor cuidar. So pessoas que cuidam de outras pessoas. Diante, portanto, de uma situao de adoecimento h necessidade de uma ateno maior, principalmente, por ser relevante o trabalho da enfermagem na vida do ser humano, no desenvolvimento da arte de cuidar. Collire (1989, p. 155) afirma que: cuidar aprender a ter em conta os dois parceiros dos cuidados: o que trata e o que tratado. A equipe de enfermagem, assim como o paciente, tambm necessita de uma maior ateno, em todos os sentidos e s a observao a esse requisito faz acontecer a assistncia na sua essncia. Esse movimento no pode ser unilateral. Cuidar, do latim cogitare, significa pensar, meditar. Tratar de zelar. tambm o que se ope ao descuido e ao descaso. Representa uma atitude de ocupao, preocupao, de responsabilizao e de envolvimento afetivo com o outro (BOFF, 2004, p. 33-34). O cuidar no pode ser uma ao mecnica, no intencional, neutra, exclusivamente tcnica. Cuidar significa estar aberto a receber o outro na sua integralidade, ter tempo para o outro, para apreender o significado de seu olhar, de sua fala, de sua expresso facial e corporal. O cuidado representa o que pensado, previsto; diz respeito, tambm, aplicao do esprito a uma coisa, ateno zelosa, incumbncia, responsabilidade (BOFF, 2004). Assim, todo ser humano, a partir do momento em que concebido, necessita de cuidado e esse

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necessrio at que se complete o ciclo da vida. Do ponto de vista existencial, o cuidado achase, a priori,antes de toda atitude e situao do ser humano, o que sempre significa dizer que ele se acha em toda atitude e situao de fato. Quer dizer, encontra-se na raiz primeira do ser humano, antes de que ele faa qualquer coisa. um modo-de-ser essencial (HEIDEGGER9, apud BOFF, 2004, p. 34).

Os cuidadores trazem a marca da diversidade de saberes, fazeres, interesses. No h como propor um projeto para que o cuidar se realize de forma homognea. O que possvel propor os princpios norteadores e os aspectos metodolgicos coerentes com este ou aquele projeto de cuidar. De acordo com Collire (1989, p. 152), a relao com o doente que se torna o eixo dos cuidados, no sentido em que , simultaneamente, o meio de conhecer o doente e de compreender o que ele tem, ao mesmo tempo que detm em si prpria um valor teraputico.

Segundo essa autora, a base do trabalho da enfermagem est nas relaes entre a pessoa que trata e a que tratada. Torna-se imprescindvel conhecer o outro, perceber alm de suas necessidades visveis, e para isso necessrio dedicao, criatividade, reflexo, questionamento. O trabalho no hospital, na medida em que priva as necessidades bsicas dos profissionais da equipe de enfermagem, no se realizar na sua totalidade. Ser fonte de adoecimento quando na verdade deveria ser uma fonte de estmulo para o desenvolvimento de multiplicadores do cuidado. Aps termos apresentado o discurso terico presente na literatura acerca do trabalho humano, Qualidade de Vida no Trabalho e o trabalho na organizao hospitalar e a equipe de enfermagem, buscamos o referencial terico metodolgico que fundamentar, na seqncia, nosso estudo.9

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Traduo de Mrcia de S Cavalcante. Petrpolis: Vozes, 1989. cap. 6, p. 243-300.

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CAPTULO 2Uma longa viagem comea com um nico passo. Lao-Ts

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2.1 Referencial terico metodolgico

A fenomenologia surgiu no mundo contemporneo com o filsofo alemo EdmundHusserl (1859-1938), que iniciou seus primeiros trabalhos nos ltimos anos do sculo XX, sendo o primeiro a propor o mtodo fenomenolgico de investigao filosfica (MOREIRA, 2002). Segundo esse autor, Husserl, matemtico e lgico, concebeu a fenomenologia como uma forma totalmente nova de fazer filosofia, deixando de lado especulaes metafsicas abstratas e entrando em contato com as prprias coisas, dando destaque experincia vivida (p. 62). O mesmo autor ainda afirma que a cincia pedia por uma filosofia que a pusesse em contato com as preocupaes mais profundas do ser humano. Para Husserl a fenomenologia deveria cumprir esse papel (p. 81). De acordo com Freitas (1999, p. 46),No mbito das cincias prevaleciam as matemticas e a psicologia. As primeiras calcadas no raciocnio lgico e analtico distanciavam-se dos dados intuitivos e a segunda, buscava constituir-se como cincia exata em detrimento dos aspectos subjetivos, tidos na poca como no cientficos.

Husserl reconhece no ser possvel encontrar respostas para os problemas do homem, sem que se saiba de que modo este homem tem conscincia, como um ser situado, pertencente histrico e culturalmente a um determinado grupo social. Defende a construo de uma cincia voltada para o estudo das experincias vividas, constituindo-se um saber no sobre o sujeito, mas do sujeito. Assim, de acordo com Moreira (2002, p. 67), a experincia vivida do mundo da vida10 de todo dia o foco central da investigao fenomenolgica.

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o mundo quotidiano em que vivemos, agimos, fazemos projetos, entre outros o da cincia, em que somos felizes ou infelizes (DARTIGUES, 1973, p. 78).

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Neste sentido, Capalbo (1983) ressalta a tentativa da fenomenologia husserliana em questionar a aplicao dos mtodos das cincias naturais aos fenmenos humanos. Essa autora afirma que Husserl constitui a fenomenologia como um dos mtodos vlidos para a abordagem das cincias humano-sociais, que dizem respeito ao vivido, conscincia, ao ego, intencionalidade, intersubjetividade, ao mundo da vida (p. 5). Intencionalidade no sentido fenomenolgico refere-se a uma direo da conscincia, isso porque a conscincia est sempre voltada para algo, ela , portanto, uma atividade constituda de atos como os de significar, perceber, imaginar, desejar, pensar, querer, agir, etc (CAPALBO, 1983, p. 5). Essa mesma autora relata que atravs da atitude intencional, o sujeito volta-se para o objetivo visando descrev-lo (p. 58). Assim, os atos humanos so intencionais e essa intencionalidade sempre direcionada para alguma coisa no mundo. Segundo Socolowski (2004, p. 17)O termo mais proximamente associado com fenomenologia intencionalidade. A doutrina nuclear em fenomenologia o ensinamento de que cada ato da conscincia que ns realizamos, cada experincia que ns temos, intencional: essencialmente conscincia de ou uma experincia de algo ou de outrem.

Moreira (2002, p. 71) afirma que Husserl prope uma fenomenologia que estude no o ser, nem a aparncia do ser, mas o ser tal como se apresenta no prprio fenmeno. Para esse autor fenmeno no necessariamente coisa. As reaes psicolgicas das pessoas, quando apreendidas por outrem, so tambm fenmenos. Qualquer fato, seja de natureza fsica ou psicolgica que dado contemplao de uma conscincia, um fenmeno (p. 140). Busca-se, ento, compreender o fenmeno como ele se mostra para uma conscincia, que o que Husserl chamou de intencionalidade (DARTIGUES, 1973; CAPALBO, 1983; MARTINS, 1992).

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Quando nos orientamos pela abordagem fenomenolgica necessrio uma aproximao e um olhar profundo em direo ao fenmeno a ser compreendido. Segundo Bello (2004, p. 100),O esforo da fenomenologia o de procurar entender qual a origem mais profunda de um fenmeno cultural, ou seja, ir at o fundo. Muitas vezes Husserl utiliza a palavra escavar, significando o caminho de perguntar-se acerca das origens de um fenmeno, voltando para trs e indo cada vez mais ao fundo. Ele afirma tambm que a fenomenologia uma arqueologia.

Ao fazermos essa escavao, estaremos buscando a essncia do fenmeno. E o que a essncia? Segundo Dartigues (1973, p. 23), as essncias constituem como que a armadura inteligvel do ser, tendo sua estrutura e suas leis prprias. Isso quer dizer que cada sujeito dono de uma percepo sobre determinado fenmeno e ir descrev-lo de acordo com a sua viso de mundo e conseqentemente as suas vivncias. Para Moreira (2002, p. 71), a Fenomenologia ser, pois, o estudo dos fenmenos puros, ser uma Fenomenologia pura, cuja tarefa o estudo da significao das vivncias da conscincia. Para se chegar essncia de um fenmeno, necessrio olhar as coisas como elas se manifestam, a partir dos atos da conscincia. Por isso, na fenomenologia proposta por Husserl ,pe-se a pergunta: eu vejo algo, mas o que esse algo que eu vejo? Aborda, portanto, a questo da essncia. Interessa o que o objeto e no apenas a sensao de v-lo (BELLO, 2004, p. 107). Quando questionado sobre determinado fenmeno, o sujeito volta o pensamento para dentro de si e explicita-o conforme a sua maneira de ver o mundo e a sua experincia de vida. A essncia do fenmeno ser apreendida pelo pesquisador, na medida em que esse se entregar de corpo e alma na realizao de uma anlise rigorosa das vivncias descritas pelos sujeitos e colocar-se em suspenso, que o que Husserl chamou de reduo

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fenomenolgica11, com a inteno de aproximar-se da autenticidade presente nas descries dos sujeitos. Conforme nos relata Moreira (2002, p. 88), mediante a suspenso, a conscincia fenomenolgica pode ater-se ao dado enquanto tal, quer seja fornecido pela percepo, intuio, recordao, quer seja pela imaginao ou julgamento e descrev-lo em sua pureza. Essa suspenso no significa abandonar totalmente o que se conhece sobre o fenmeno, mas, sim, afastar-se por algum momento, para tentar compreend-lo como se mostra para aquele sujeito. At aqui procuramos delinear alguns pontos da fenomenologia proposta por Edmund Husserl tambm chamada fenomenologia da essncia. Alguns filsofos, alicerados em Husserl, aprofundaram seus estudos sobre essa cincia com o enfoque na existncia humana, surgindo uma nova vertente conhecida como a fenomenologia existencialista. Segundo Bello (2004, p. 74), os filsofos Heidegger, Merleau-Ponty e Sartre retomam o sentido da existncia, do ser humano como existente, devido tambm ao clima cultural em que eles vivem aps a 2 Guerra Mundial, perante a grave ameaa para a vida humana que essa representava. Dentre esses filsofos, buscamos, ainda que de forma tmida, o referencial de MerleauPonty para embasar as reflexes do nosso estudo, pois este enfoca grandes questes da existncia humana tais como a subjetividade, o tempo, o corpo, o espao, a liberdade, a intersubjetividade, entre outros. Segundo Freitas (2005, p. 2), temas como o corpo, a linguagem e a relao homem-mundo revelam um movimento espiral [...] em que a interrogao e a investigao devem permanecer em aberto. Merleau-Ponty (1994), ao refletir sobre o tema corpo, afirma que todo nosso corpo

Consiste em colocar o mundo natural tal como o apreendo entre parnteses, isto , procurar v-lo sem pressuposies antencipadas. o que, em fenomenologia, de forma cannica, se conhece como epoch (MARTINS, 1992 , p. 52).

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est voltado para intencional e no somente a conscincia. Para esse filsofo,A fenomenologia uma filosofia que repe as essncias na existncia [...] uma filosofia para a qual o mundo est sempre ali, antes da reflexo, como uma presena inalienvel, e cujo esforo todo consiste em reencontrar este contato ingnuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosfico [...]. a ambio de uma filosofia que seja uma cincia exata, mas tambm um relato do espao, do tempo, do mundo vividos (p. 1).

Dessa maneira, o conhecimento do homem e do seu mundo consiste num entrelaamento com o mundo-vivido utilizando como veculo a experincia perceptiva num contexto espao-temporal (FREITAS, 1993, p. 41). E o filsofo em questo nos diz: Portanto, no se deve dizer que nosso corpo est no espao nem tampouco que ele est no tempo. Ele habita o espao e o tempo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 193). Outra questo importante para esse filsofo a percepo, que se constitui como o alicerce e o fundamento de todo conhecimento do homem sobre o mundo. Isso se torna evidente quando ele diz: porque pela experincia perceptiva eu me afundo na espessura do mundo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 275). Suas reflexes se referem percepo e de como esta se relaciona diretamente ao corpo que percebe e percebido. Segundo Capalbo (2002, p. 22), a percepo para Merleau-Ponty o encontro do ente significante e do ente por ele significado. Em sua obra, Fenomenologia da Percepo, Merleau-Ponty (1994, p. 6) afirma: a percepo no uma cincia do mundo, no nem mesmo um ato, uma tomada de posio deliberada; ela o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela pressuposta por eles. A fenomenologia no v o homem separado do mundo, mas busca focalizar a forma pela qual o mundo se apresenta ao homem. Assim, o mundo pode ser considerado como fenmeno, como ele se mostra ao homem. De acordo com Madeira (1998, p. 36), a fenomenologia existencial fala de um sujeito inextricavelmente ligado ao mundo. impossvel referir-se ao sujeito sem remeter-se ao mundo porque no mundo que ele se ilumina, desvela-se em seu existir.

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O enfoque desse filsofo , pois, para o corpo-sujeito inserido no mundo e que necessita ser-consigo e ser-com-os-outros. Por isso Merleau-Ponty (1994, p. 278) nos diz: [...] retomando assim o contato com o corpo e com o mundo tambm a ns mesmos que iremos reencontrar, j que, se percebemos com nosso corpo, o corpo um eu natural e como que o sujeito da percepo. Essa tentativa de compreender o homem situado no mundo e sua coexistncia com os outros homens, a partir do entrelaamento de suas vivncias, que caracteriza a vertente existencial de Merleau-Ponty. Segundo esse filsofo, no atingimos o universal abandonando nossa particularidade, mas fazendo dela um meio de atingir as outras, em virtude desta misteriosa afinidade que faz com que as situaes se compreendam entre si (MERLEAU-PONTY12, apud DARTIGUES, 1973, p. 68). A fenomenologia , portanto, uma cincia que se prope a estudar a significao das vivncias da conscincia do sujeito estando sempre voltada para algo. Ela se preocupa com a mostrao do fenmeno e isso significa o que surge ou manifesta para uma conscincia como resultado de uma inquietao ao sujeito interrogador, e no com sua demonstrao ou relao causal; um refletir a partir do retorno ao j vivido (DARTIGUES, 1973; FRANA, 1989; MARTINS, 1992; BOEMER, 1994). Assim, a fenomenologia no procura as condies sobre as quais o juzo verdade, e sim qual o significado daquilo que o sujeito tem na conscincia quando ama, sente felicidade, sente tristeza, adoece, vive, trabalha e que expresso pelo discurso, mundo da linguagem, da totalidade das palavras, dos gestos, do silncio, do tom de voz, da fisionomia e do discurso escrito (LOPES et al., 1995).

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MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1950.

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2.2 Trajetria metodolgica

Escolhemos a fenomenologia como uma abordagem de pesquisa porque esta nospossibilitou trabalhar com o significado expresso pelos sujeitos da pesquisa, em suas vivncias cotidianas e ainda pela valorizao das experincias subjetivas que esses mesmos sujeitos descreveram. Assim, os sujeitos, quando indagados acerca da Qualidade de Vida no Trabalho no cotidiano hospitalar, trouxeram o fenmeno irrefletido para a reflexo. A abordagem escolhida possibilitou-nos ainda construir um caminho e fundamentar a anlise compreensiva, embasada nas concepes tericas de filsofos como Merleau-Ponty e outros, nem sempre fenomenlogos. A pesquisa no referencial qualitativo e fenomenolgico no conclusiva, mas to somente o olhar, a perspectiva dos sujeitos envolvidos, possibilitando que outros estudiosos do assunto avancem, no sentido de contribuir para a compreenso do fenmeno, por isso que nessa modalidade de pesquisa estabelecemos generalidades e no generalizaes. Este estudo foi realizado em um hospital situado na cidade de Tefilo Otoni, Minas Gerais, cidade natal onde trabalhei durante sete anos. A pesquisa teve incio aps a autorizao das diretorias administrativa e de enfermagem da organizao (ANEXO A), s quais nos dirigimos com a carta de apresentao da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (ANEXO B) e com o projeto previamente autorizado pelo Comit de tica em Pesquisa da referida universidade (ANEXO C). O fato de ter desenvolvido nossas atividades profissionais naquele hospital, estimulou-nos a nele desenvolver este estudo. Os sujeitos do estudo so profissionais da equipe de enfermagem que trabalham h dois anos no mnimo no referido hospital. Esse critrio de incluso foi considerado, por

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acreditar que esse tempo necessrio para que esses profissionais tivessem vivenciado situaes que lhes possibilitem falar com mais profundidade acerca de QVT no cotidiano hospitalar. Em junho de 2006, contactamos com os profissionais da equipe de enfermagem e onde conversamos um pouco sobre a pesquisa. Realizamos as entrevistas na primeira quinzena do referido ms e, na oportunidade, lembramos que no teriam despesas decorrentes de sua participao. Esclarecemos, ainda, que suas identidades seriam preservadas. Aps uma breve apresentao do projeto, convidamo-los a participar do estudo e queles que aceitavam, informava sobre o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), baseado nas normas da Resoluo 196/1996 (BRASIL, 1996), que versa sobre pesquisas com seres humanos (ANEXO D). Explicvamos, tambm, sobre a necessidade da utilizao do gravador durante a entrevista para obter relatos mais fidedignos, o que foi aceito pelos profissionais que se disponibilizaram a participar da pesquisa. Assim, procedemos entrevista aberta conforme recomenda a pesquisa na modalidade fenomenolgica, que orienta criar uma relao emptica entre pesquisador e sujeito pesquisado. necessrio que se construa um vnculo entre o entrevistador e o entrevistado, de modo a estabelecer a interao e favorecer a confiana. Segundo Minayo (1994), a entrevista no significa uma conversa despretensiosa e neutra, pois contm fatos relatados pelos sujeitos da pesquisa e que vivenciam uma determinada realidade que est sendo focalizada. Iniciamos o agendamento das entrevistas observando atentamente um horrio que no prejudicasse a rotina de trabalho dos participantes. As mesmas transcorreram em uma sala reservada, cedida pela diretoria de enfermagem, nos horrios diurno e noturno. Antes de iniciar, trocvamos idias com cada profissional, alguns deles j conhecidos e relembrvamos o tempo em que trabalhamos juntos. Percebemos que esse contato foi muito significativo e possibilitou estabelecer um elo to necessrio durante uma entrevista e, principalmente,

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porque a pesquisa qualitativa necessita desse mergulho, para compreendermos o vivido, o experienciado por esses sujeitos. A partir dessa interao, resgatvamos o tema do estudo, sem mencionar de forma explcita o objetivo do mesmo, para que os sujeitos evitassem procurar referncias bibliogrficas e produzir respostas prontas. Segundo Carvalho (1987, p. 35), a entrevista uma maneira acessvel ao cliente de penetrar a verdade mesma de seu existir, seja ela qual for, sem qualquer falseamento ou deslize, sem qualquer pr-conceito ou impostura. A seguir procedemos leitura do TCLE e, aps a concordncia, solicitamos a assinatura do participante e iniciamos a entrevista indagando: O que para voc, Qualidade de Vida no Trabalho? e aps o relato, pedimos que descrevessem situaes em que tinham vivenciado Qualidade de Vida no seu ambiente de trabalho. Percebemos que alguns profissionais tinham um certo constrangimento devido ao uso do gravador, ento procurvamos tranqiliz-los, explicando que, somente atravs da gravao, as suas falas estariam sendo registradas integralmente e que, se fssemos anotar, poderamos perder ricos e significativos detalhes. Durante as entrevistas ficvamos atentas s expresses faciais, gestos, sorrisos, ao choro que esteve presente em alguns momentos e, em outros, ao olhar triste, s vezes at lacrimejante. Atentvamo-nos tambm aos suspiros, s cabeas baixas e ao silncio carregado de sentido. Segundo Carvalho (1987, p. 40) para escutar a palavra do cliente, faz-se necessrio imbuir-se e impregnar-se de seus gestos e de toda a sua forma de dizer as coisas. Como relatamos anteriormente, sentimos uma aproximao com o profissional, sujeito do nosso estudo, talvez por termos vivenciado, tantas vezes, situaes semelhantes, fatos que nos falavam tanto. Naquele momento procuramos estar com ele e realizar a intersubjetividade to enfatizada na modalidade fenomenolgica de pesquisa.

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Aps o trmino de cada entrevista, ouvimos com interesse os depoimentos e quando percebemos que as falas se tornaram repetitivas, encerramos a coleta dos dados, totalizando 16 depoimentos, que foram transcritos integralmente. Ao ouvirmos novamente esses depoimentos, sentimos que um dos entrevistados no falou da sua vivncia, mas referiu-se aos outros, manteve-se distante e no se envolveu com a indagao, por isso retiramos sua fala do nosso trabalho. Assim prosseguimos na anlise com 15 depoimentos, sendo 05 de enfermeiros, 07 de tcnicos de enfermagem e 03 de auxiliares de enfermagem. Os sujeitos do estudo receberam pseudnimos e essa escolha se deu a partir de uma idia das iniciais das palavras Qualidade de Vida, e, para nossa alegria, essas palavras so formadas por um total de 15 letras, representando o total de sujeitos do nosso estudo. Por isso os pseudnimos foram os seguintes: Qusia; rsula; Amanda; Lorena; Ian; Dbora; Arlete; Dinamara; Elizngela; Davina; Ester; Valria; Iara; Diana e Andrine. Na anlise compreensiva dos depoimentos, seguimos os momentos metodolgicos citados por Martins (1992). Segundo esse autor, quando o pesquisador interroga, ele traa uma trajetria em direo ao fenmeno que constituda de trs momentos: a descrio, a reduo e a compreenso com a interpretao fenomenolgica, que no so passos ou seqncias estanques, mas momentos que se interpenetram. A descrio compe-se de trs elementos: a percepo que assume uma primazia no processo reflexivo, uma relao do sujeito com o mundo exterior, uma maneira fundamental de os seres humanos estarem no mundo; a conscincia que se direciona para o mundo-vida, conscincia esta que a descoberta da subjetividade e da intersubjetividade e o sujeito; em sntese so as percepes do sujeito que definem os limiares expressos de troca deste com o mundo (MARTINS, 1992). Na reduo fenomenolgica, o pesquisador, ao interrogar o fenmeno, deve recusar todos os conceitos, as teorias, as explicaes prvias a respeito da situao vivenciada pelo

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sujeito e no deixar que influenciem o seu interrogar. Essa postura preconizada pela fenomenologia significa ir ao mundo cotidiano, onde as pessoas vivenciam vrios fenmenos importantes em situaes reais e colocam entre parnteses os discursos, as opinies, juzos ou preconceitos referentes a um fenmeno especfico (FRANA, 1989). A compreenso surge sempre em conjunto com a interpretao, um momento de tentativa de especificar o significado que essencial na descrio e na reduo, como uma maneira de investigao da experincia; o pesquisador precisa de cuidados especiais para proceder anlise a fim de identificar os significados nela contidos (MARTINS, 1992; BICUDO, 1994). Ao transcrevermos os depoimentos, sentimos como se estivssemos re-visitando cada momento das entrevistas, ouvimo-los vrias vezes antes de iniciar a digitao e procuramos no omitir nenhum detalhe. Nesse momento, como nos demais, percebemos a riqueza de cada depoimento, de cada vivncia ali relatada. O prximo passo foi realizar leituras exaustivas para extrair as unidades de significado e coloc-las em negrito, alm de numer-las seqencialmente. Mantivemo-nos atentas s falas que traduziam o significado de Qualidade de Vida no Trabalho expresso pelos interlocutores. Posteriormente procedemos transformao das unidades de significado e utilizamos a linguagem do pesquisador, para preservarmos a autenticidade do sentido (APNDICE). Aps esse momento, retomamos a leitura de todas as unidades de significado transformadas agrupando-as e extraindo o que era mais significativo, buscando expresses que traduzissem essencialmente o que os profissionais revelavam em relao ao fenmeno estudado. Em outras releituras das unidades de significado transformadas, procedemos convergncia e divergncia de sentidos que deram origem a oito grandes temas: QVT e condies de trabalho; Importncia de se ter satisfao com o trabalho que se realiza;

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Comunicao: imprescindvel para a QVT; Necessidade de lazer e atividade fsica; QVT ser reconhecido, receber ateno, ser valorizado e cuidado; Adoecimento dos profissionais, realidade muito presente; Psiclogo: suporte amplamente desejado; Apoio espiritual: refgio e alvio. Esses temas convergiram, posteriormente, para trs grandes categorias abertas, nas quais o fenmeno QVT se estruturou: Qualidade de Vida e condies de trabalho, A gente ser humano tambm, Qualidade de Vida no Trabalho e a realidade vivenciada, Qualidade de Vida no Trabalho e a realidade sonhada; Reconhecimento: fora que move o trabalho; Ser-no-mundo do trabalho com o outro. Essa composio do fenmeno denota a nossa perspectiva de trabalho e dos sujeitos do estudo. Na anlise utilizamos fragmentos dos depoimentos originais e buscamos preservar o jeito prprio de cada um se expressar. A anlise compreensiva dessas categorias encontra-se descrita no captulo a seguir.

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CAPTULO 3E digo-vos que a vida de fato obscuridade exceto onde h arrebatamento, E todo arrebatamento cego onde h saber, e todo o saber vo exceto onde h trabalho e todo o trabalho vazio exceto onde h amor. E o que trabalhar com amor? pr em todas as coisas que fazeis um sopro do vosso esprito.Khalil Gibran

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3.1 Anlise compreensiva dos depoimentos

Delimitadas as trs grandes categorias referentes Qualidade de Vida no Trabalho(QVT) e as respectivas subcategorias, passamos agora a expor nossas consideraes sobre cada uma.

3.1.1 Qualidade de vida e condies de trabalho

Essa categoria abrange trs subcategorias, conforme citado anteriormente. Para a equipe de enfermagem, QVT significa ter condies de trabalho adequadas, expressas ao longo dos depoimentos que passamos a explicitar. Alguns relatos reforam essa percepo:Voc tem condies de trabalho que no so as ideais e isso te deixa frustrado como profissional, como pessoa, como mulher, ento isso compromete (Qusia - enfermeira). Para mim, qualidade de vida no trabalho em primeiro lugar, condies para eu exercer o meu trabalho (Dinamara - auxiliar de enfermagem).

Segundo Farias et al. (2000), as condies de trabalho e sade da equipe de enfermagem tm sido denunciadas mundialmente, por isso a luta pela melhoria dessas condies tem sido alvo de debate no meio acadmico e no contexto geral das organizaes.

3.1.1.1 A gente ser humano tambm

A expresso a gente ser humano tambm revela que os profissionais da equipe de enfermagem reforam a necessidade de serem vistos como seres que cuidam de pessoas, que apresentam questes importantes que devem ser contempladas, para que possam desempenhar

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um trabalho de qualidade na organizao hospitalar. Pereira (2006, p. 23), aps estudo realizado enfocando a temtica corpo, afirma que considerando as relaes de trabalho no capitalismo, esse corpo no se humanizou no trabalho, pelo contrrio, tornou-se automatizado e cada vez mais exigido. A equipe de enfermagem tem sido expropriada devido ao processo de trabalho assoberbado ao qual se submete devido cobrana de uma produtividade bem caracterstica do sistema capitalista no qual a organizao hospitalar se encontra inserida, por isso tem necessidade de um novo enfoque em alguns aspectos visando QVT desses profissionais. Um dos aspectos a serem enfocados o dimensionamento de pessoal condizente com a realidade, a fim de que a sobrecarga de trabalho no venha a ser uma constante na vida desses sujeitos. Nas expresses que seguem, podemos observar a percepo dos trabalhadores que vivenciam essa situao:[...] tudo difcil [...] por causa do sistema, porque eles no querem contratar mais funcionrios [...] (Amanda - tcnica de enfermagem). Ter gente que possa trabalhar, s vezes uma s no d conta [...] nesse setor aqui a mo de obra pouca [...]. Hoje voc chega aqui t bacana, mas tem dia que o prprio funcionrio precisa de uma ajuda aqui, que parece que ele vai surtar [...] aqui agora t tudo bem, mas de repente aqui enche tanto e um grita e grita, a gente ser humano tambm, voc fica louco [...]. Eu acho que a mo de obra hoje em dia muito pouca, eles no tm viso dessa mo de obra (Lorena - auxiliar de enfermagem).

Os depoentes referem-se a eles, que, significa, segundo o nosso entendimento, a direo da organizao hospitalar, no sentido de que no se mostram sensveis a essa situao. Percebemos que as organizaes hospitalares, em geral, apresentam um discurso acerca de uma assistncia de qualidade, porm o quantitativo de pessoal da enfermagem quase sempre insuficiente. A Resoluo do COFEN n 293/2004 (p. 1) fixa e estabelece parmetros para o dimensionamento do quadro de profissionais de enfermagem nas unidades assistenciais das instituies de sade e assemelhados. Essa Resoluo enfoca o clculo de pessoal de acordo com o Sistema de Classificao de Pacientes (SCP), ou seja: Paciente de Cuidado Mnimo

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(PCM); Paciente de Cuidados Intermedirios (PCI); Paciente de Cuidados Semi-Intensivos (PCSI) e Paciente de Cuidados Intensivos (PCIt) (COFEN, 2004). Alguns depoentes relatam avanos no aspecto relacionado ao nmero de profissionais para realizar o trabalho, conforme observamos nos seguintes trechos:Antes a qualidade de vida era muito mais difcil, hoje t melhorando, t te dando espao [...] isso qualidade de vida, a empresa estar oferecendo cada dia mais melhoras. O nmero de funcionrios aumentou e j aumentou a qualidade. Quando eu comecei trabalhar, pra fazer o mesmo servio que hoje uma equipe de cinco, eram duas, a qualidade j melhorou (rsula - tcnica de enfermagem). Melhorou muito [...] era muito paciente pra uma pessoa s cuidar, hoje diminuiu. Eu trabalhava [...] passava medicao, eu sozinha, trinta e cinco pacientes. Hoje se no me engano, sete ou oito pacientes pra uma pessoa s atender. Eu s dava medicao, mas era trinta e cinco pacientes, se eu ficasse nos cuidados, era eu e mais um rapaz pra tomar conta (Amanda tcnica de enfermagem). O servio era mais tumultuado, poucos funcionrios [...] depois que comeou colocar mais funcionrios o atendimento ficou melhor. Ento no sobrecarregou muito a gente, isso ficou bom porque a gente conseguiu dar mais assistncia ao paciente (Valria - auxiliar de enfermagem).

Pela anlise desses depoimentos, observamos que a depoente Amanda descreve situaes vividas em setores onde trabalhou cujo nmero de profissionais era insuficiente e hoje essa realidade j foi alterada o que denota avano nesse sentido. Outra situao aqui retratada por Ian (tcnico de enfermagem) diz respeito ao absentesmo, muito comum entre os profissionais da equipe de enfermagem. Assim ele explicita essa situao:Outros colegas cansado das doze horas, ainda faziam vinte e quatro e ficavam a noite. Sempre aqui tem faltas, chega a noite falta um, dois, os colegas do dia seguem.

De acordo com a Resoluo do COFEN n 293/2004, absentesmo so ausncias no programadas ao trabalho, em um determinado perodo/ms (COFEN, 2004). Conforme nos mostra o estudo realizado por Alves (1996), as faltas ao trabalh