Verbete Filosofia III
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Verbete FILOSOFIA1 -
A disparidade das Filosofias tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de “Filosofia”, o que
não impede reconhecer nelas algumas constantes. Destas, a que mais se presta a relacionar e articular os
diferentes significados desse termo é a definição contida no Eutidemo de Platão: Filosofia é o uso do saber em
proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de transformar pedras em ouro a
quem não soubesse utilizar o ouro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse
utilizar a imortalidade, e assim por diante. É necessária, portanto, uma ciência em que coincidam fazer e saber
utilizar o que é feito, e esta ciência é a Filosofia. Segundo esse conceito, a Filosofia implica: lº posse ou
aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível; 2º uso desse
conhecimento em benefício do homem. Esses dois elementos recorrem frequentemente nas definições de
Filosofia em épocas diversas e sob diferentes pontos de vista. São reconhecíveis, por exemplo, na definição de
Descartes, segundo a qual “esta palavra significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria não se entende
somente a prudência nas coisas, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode
conhecer, tanto para a conduta de sua vida quanto para a conservação de sua saúde e a invenção de todas as
artes”. Encontram-se igualmente na definição de Hobbes, segundo a qual a Filosofia é, por um lado, o
conhecimento causal e, por outro, a utilização desse conhecimento em benefício do homem, bem como na de
Kant, que define o conceito cósmico da Filosofia (o conceito que interessa necessariamente a todos os homens)
como o de “ciência da relação do conhecimento à finalidade essencial da razão humana”. Essa finalidade
essencial é a “felicidade universal”; portanto, a Filosofia “refere tudo à sabedoria, mas através da ciência”.
Não tem significação diferente a definição de Filosofia dada por Dewey, como “crítica dos valores”, no sentido
de “crítica das crenças, das instituições, dos costumes, das políticas, no que se refere seu alcance sobre os
bens”. Estas definições (aqui citadas apenas como exemplos) podem ser remetidas à fórmula de Platão, citada
no início, cuja vantagem é nada estabelecer sobre a natureza e os limites do saber acessível ao homem ou sobre
os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Portanto pode-se entender esse saber tanto como revelação ou
posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a salvação
ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de
retificações ou mudanças no mundo. Portanto, essa fórmula revela-se igualmente apta a exprimir as diferentes
tarefas que a Filosofia foi assumindo ao longo de sua história. Por exemplo, exprime igualmente bem tanto a
tarefa das Filosofias positivas ou dogmáticas quanto a das Filosofias negativas ou cépticas. Quando o
cepticismo antigo se propõe realizar a imperturbabilidade da alma pela suspensão do assentimento, não faz
senão entender a Filosofia como uso de determinado conhecimento para conseguir uma vantagem.
Analogamente, quando, na Filosofia Contemporânea, Wittgenstein afirma que o propósito da Filosofia é levar
ao desaparecimento dos problemas filosóficos, eliminar a própria Filosofia ou se “curar” dela, não está
recorrendo a conceito diferente de Filosofia: libertar dá Filosofia é a utilidade que o uso do saber (neste caso a
retificação linguística deste) pode proporcionar.
Os dois elementos encontrados na definição de Filosofia considerada apta a constituir o quadro das principais
articulações dos significados desse termo constituem por si mesmos a primeira dessas articulações. Em outras
palavras, é possível distinguir os significados historicamente dados desse termo: 1º com relação à natureza e
validade do conhecimento ao qual a Filosofia se refere; 2º com relação à natureza do alvo para o qual a
Filosofia pretende dirigir o uso desse saber; 3º com relação à natureza do procedimento que se considera
próprio da filosofia.
1 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Pág. 442-457.
I. A Filosofia e o Saber:
O uso do saber ao qual o homem tem acesso de algum modo é, em primeiro lugar, um juízo sobre a origem ou a
validade desse saber. E a propósito do juízo sobre a validade do saber surgem imediatamente duas alternativas
fundamentais, que estabelecem a distinção entre dois tipos diferentes e opostos de filosofia. A primeira
alternativa estabelece a origem divina do saber: para o homem, ele é uma revelação ou um dom. A segunda
alternativa estabelece a origem humana do saber: ele é uma conquista ou uma produção do homem. A primeira
alternativa é a mais antiga e a mais frequente no mundo, prevalecendo de há muito nas filosofias orientais. A
segunda alternativa surgiu na Grécia e foi herdada pela civilização ocidental.
A) De acordo com a primeira alternativa, o saber é uma revelação ou iluminação divina, com que se
privilegiaram a um ou mais homens, transmitida por tradição num grupo também privilegiado de homens
(casta, seita ou igreja). Portanto, não é acessível aos mortais comuns, a não ser através daqueles que são seus
depositários; tampouco é possível aos mortais, comuns ou não, aumentar seu patrimônio ou julgar de sua
validade. Faz parte integrante dessa interpretação da origem do saber a crença de que seu uso em benefício do
homem — neste caso a “salvação” — também é ditado ou prescrito pela revelação ou iluminação divina.
Portanto, esta interpretação parece eliminar ou tornar supérfluo o “trabalho” filosófico, que versa precisamente
sobre esse uso. Mas na prática isso é raro. A exigência de aproximar a verdade revelada da compreensão
humana comum, de adaptá-la às circunstâncias e de fazer que ela atenda aos problemas novos ou modificados
que os homens se propõem, de defendê-la de negações, desvios, incredulidades declaradas ou ocultas, faz que o
trabalho filosófico encontre nesse conceito do saber um vasto campo para desenvolver-se e tarefas multiformes
para enfrentar. Contudo, esse trabalho é subalterno e ancilar: não é nem pode ser decisivo quando se trata de
interpretações fundamentais e de instâncias últimas. Na revelação e na tradição, encontra limites
intransponíveis que vedam qualquer possibilidade de desenvolvimento em direções diferentes das já
determinadas. Não pode combater e destruir as crenças estabelecidas, opor-se frontalmente à tradição,
promover ou planejar transformações radicais. Sua função é conservar as crenças estabelecidas, e não renová-
las ou aperfeiçoá-las, portanto, sua função é subordinada e instrumental, destituída de autonomia e da dignidade
de força diretiva.
Já se disse que quase todas as Filosofias orientais são dessa natureza, o que por vezes levou a duvidar de que
pudessem ser chamadas de filosofias. Mas, na verdade mesmo o mundo ocidental muitas vezes oferece
exemplos de Filosofia desse tipo, ainda que nenhuma delas apresente os caracteres ora expostos em todo o seu
rigor. A partir do nome do mais importante desses exemplos, as formas que esse tipo de Filosofia assumiu no
mundo ocidental podem ser chamadas de escolásticas, Uma escolástica, ao contrário de uma filosofia de puro
tipo oriental, pressupõe uma Filosofia autônoma e vale-se dela para a defesa e a ilustração de uma verdade
religiosa para confirmar ou defender crenças cuja validade se julga estabelecida de antemão,
independentemente de confirmações ou defesas. Uma escolástica, como a própria palavra diz, é essencialmente
um instrumento de educação: serve para aproximar o homem, na medida do possível, de um saber considerado
imutável em suas linhas fundamentais, portanto não susceptível de aperfeiçoamento ou renovação. Entre as
tarefas — aliás, múltiplas, assim como são múltiplos os caminhos de acesso do homem à verdade, bem como os
obstáculos encontrados nesse caminho — assumidas por uma Filosofia escolástica, não está o eventual
abandono das crenças de que ela é intérprete. As seitas filosófico-religiosas do séc. II a.C. (p. ex., os essênios),
as doutrinas de Fílon de Alexandria (séc. I d.C.) e de muitos neoplatônicos, a Filosofia islâmica e judaica, a
Patrística e a Escolástica, bem como, no mundo moderno, o ocasionalismo, o imaterialismo, a direita
hegeliana e boa parte do espiritualismo contemporâneo são escolásticos no sentido ora esclarecido: Filosofia
que consistem em utilizar determinada doutrina (platonismo, aristotelismo, cartesianismo, empirismo,
idealismo, etc.) para a defesa e a interpretação de crenças que não podem ser postas em dúvida, corrigidas ou
negadas por esse trabalho. Certamente, essas diferentes escolásticas possuem graus diferentes de liberdade e
esses graus às vezes variam, em cada uma delas, de uma época para outra. Por exemplo, Santo Tomás, apesar
de conferir à “Filosofia humana” certa autonomia, na medida em que lhe atribui a consideração e o estudo das
coisas criadas como tais, ou seja, sua natureza e suas próprias causas, considera impossível que ela possa
contradizer as afirmações da fé cristã, que deve ser tomada como norma do procedimento correto da razão.
Ainda que as Filosofias desse tipo possam conseguir resultados importantes, que passam a fazer parte do
patrimônio filosófico comum, seu campo é rigidamente limitado pelo problema em torno do qual elas giram, de
defesa de crenças tradicionais: suas possibilidades não se estendem à correção e renovação de tais crenças.
B) Para a segunda alternativa, o saber é uma conquista ou uma produção do homem. O fundamento desta
concepção é que o homem é um “animal racional” e, portanto, como diz Aristóteles no início da Metafísica,
“todos os homens tendem, por natureza, ao saber”: “tendem” significa que não somente desejam o saber, mas
também podem obtê-lo. O saber, sob esse ponto de vista, não é privilégio ou patrimônio reservado a poucos;
qualquer um pode contribuir para sua aquisição e para seu enriquecimento, tendo, por isso, direito de julgá-lo,
aprová-lo ou rejeitá-lo. Sob esse ponto de vista, a tarefa fundamental da Filosofia é a busca e a organização do
saber. Quando Tucídides atribui a Péricles a frase “Amamos o belo com moderação e filosofamos sem timidez”,
certamente está expressando a atitude e o espírito grego, do qual nasceu a Filosofia nesta segunda acepção do
termo. Péricles não fazia alusão a uma disciplina específica, mas à busca do saber conduzida sem
compromissos preconcebidos ou com um único compromisso de experimentar e pôr à prova toda crença
possível. Neste sentido, a Filosofia é uma criação original do espírito grego e uma condição permanente da
cultura ocidental. É um compromisso no sentido de que qualquer investigação, em qualquer campo, deve
obedecer somente às limitações ou às normas que ela mesma reconheça como válidas em função de suas
possibilidades ou de sua eficácia em descobrir ou confirmar. Neste sentido, Filosofia opõe-se a tradição,
preconceito, mito e, em geral, à crença infundada que os gregos chamavam de opinião. É na diferença entre
opinião e ciência, entre amor à opinião e amor à sabedoria, que Platão mais insiste ao esclarecer o conceito de
Filosofia. A Filosofia como investigação é contraposta por Platão, por um lado, à ignorância e, por outro, à
sabedoria. A ignorância é ilusão de sabedoria e destrói o incentivo à investigação. Por outro lado, a sabedoria,
que é a posse da ciência, torna inútil a investigação: os Deuses não filosofam. A investigação é o que define o
status de Filosofia. Já Heráclito dissera: “É necessário que os homens filósofos sejam bons investigadores de
muitas coisas”. Enquanto investigação, a Filosofia é “conquista”, como dizia Platão, ou “esforço”, como
diziam os estóicos, ou “atividade", como diziam os epicuristas.
Mas se a Filosofia é o compromisso de fazer do saber investigação, condiciona o saber efetivo, que é
“conhecimento” ou “ciência”. No juízo que a própria filosofia emite sobre ele, esse condicionamento pode
assumir três formas que definem três concepções fundamentais da Filosofia, a metafísica, a positivista e a
crítica. 1ª. Para a primeira delas, a Filosofia é o único saber possível, e as outras ciências, enquanto tais,
coincidem com ela, são partes dela ou preparam para ela. 2ª. Para a segunda delas, o conhecimento cabe às
ciências particulares, e à Filosofia cabe coordenar e unificar seus resultados. 3ª. Para a terceira delas, Filosofia é
juízo sobre o saber, ou seja, avaliação de suas possibilidades e de seus limites, em vista de seu uso pelo homem.
1ª. A primeira concepção da Filosofia é a metafísica, que dominou na Antiguidade e na Idade Média,
distinguindo ainda hoje muitas correntes filosóficas. Sua característica principal é a negação de qualquer
possibilidade de investigação autônoma fora da Filosofia. Um conhecimento ou é filosófico ou não é
conhecimento. Admite-se muitas vezes que, fora da Filosofia, existe um saber imperfeito, provisório e
preparatório, mas nega-se que tal saber possua validade cognoscitiva própria. Assim, Platão, por um lado,
chama a geometria e as outras ciências de Filosofia, referindo-se em especial à sua função educativa, e por
outro lado considera tais ciências (aritmética e geometria, astronomia e música) simplesmente propedêuticas
para a Filosofia propriamente dita, ou seja, para a dialética, que teria, entre outras, a tarefa de “descobrir a
comunhão e o parentesco entre as ciências e de demonstrar as razões pelas quais estão interligadas”.
Aristóteles define a Filosofia como “ciência da verdade”, no sentido de que ela compreende todas as ciências
teóricas, ou seja, a Filosofia primeira, a matemática e a física, e exclui somente a atividade prática: mas também
esta deve recorrer à Filosofia para esclarecer sua natureza e seus fundamentos. Tanto Platão quanto Aristóteles
admitem como ciência primeira uma disciplina determinada, que para Platão é a dialética e para Aristóteles a
Filosofia primeira ou teologia, mas para eles essa disciplina determinada também é a mais geral. Com efeito,
conforme já se viu, a dialética permitia compreender a ligação e a natureza comum das ciências, e a Filosofia
primeira, como ciência do ser enquanto ser, tem por objetivo específico a essência necessária ou substância que
a cada ciência cabe indagar em seu campo particular. Outras vezes, ao contrário, a Filosofia resolve-se nas
disciplinas particulares, sem privilégio de nenhuma delas. Era o que faziam os epicuristas, que a dividiam em
canônica, física e ética, e os estóicos, que a dividiam em lógica, física e ética, considerando que essas três
partes eram interligadas como os membros de um animal.
Esta concepção, que identifica o saber integral com a Filosofia e se recusa a reconhecer que haja ou possa haver
um saber autêntico fora dela sobreviveu à constituição das ciências particulares como disciplinas autônomas e
conservou-se substancialmente inalterada em certas correntes filosóficas até nossos dias. A definição que
Fichte deu da Filosofia como uma “ciência da ciência em geral” não deixa qualquer autonomia às ciências
particulares, uma vez que, segundo essa definição, a doutrina da ciência “deve dar sua forma não só a si
mesma, mas também a todas as outras ciências possíveis”, e constituir assim o “sistema acabado e único do
espírito humano”. Essa pretensão manteve-se inalterada em todas as definições que o idealismo romântico deu
da filosofia. Não é outro o significado das observações de Schelling, para quem a tarefa da Filosofia é aclarar a
concordância (que finalmente é identidade) entre objetivo e subjetivo, ou seja, entre natureza e espírito,
cumprindo, assim, a “tendência necessária de todas as ciências naturais”. Hegel afirmaria explicitamente que
“as ciências particulares se ocupam dos objetos finitos e do mundo dos fenômenos”; e que “uma coisa são o
processo de origem e os trabalhos preparatórios de uma ciência e outra coisa é a própria ciência”, na qual eles
desaparecem para serem substituídos pela “necessidade do conceito”. Isso significa que só a Filosofia, é
ciência, porque só ela demonstra “a necessidade do conceito”, utilizando e manipulando a seu modo (como
Hegel realmente fez) o material preparado pelas chamadas ciências empíricas. Portanto, Hegel reservava para a
Filosofia o privilégio de ser a “consideração pensante dos objetos”. O conhecimento preliminar ou preparatório
assenta em representações; tem-se conhecimento propriamente dito quando, com a Filosofia, “o espírito
pensante através das representações e trabalhando sobre elas progride para o conhecimento pensante e o
conceito”. Está claro que, expresso desta maneira, o conceito de Filosofia como totalidade do saber é uma
manifestação de arrogância filosófica, inexistente nesse mesmo conceito no período clássico. Naquela época,
com efeito, esse conceito agia como compromisso específico das disciplinas científicas, que graças a ele
ingressavam na esfera da investigação desinteressada, recebendo dele incentivo e sustentação em sua
constituição conceitual. Mas na concepção do idealismo romântico, as ciências específicas eram rebaixadas à
função de trabalho braçal destituído de validade intrínseca. A essa mesma função a ciência é reduzida tanto pelo
idealismo quanto pelo espiritualismo. A definição de Filosofia como “teoria geral do espírito” leva Gentile a
considerá-la como a consciência que o Eu absoluto tem de si mesmo: dessa consciência, os conhecimentos
empíricos, baseados na distinção entre objeto e sujeito e entre os próprios objetos, são uma falsa abstração.
Outrossim, apesar da formulação menos berrante, a definição dada por Croce de Filosofia como “metodologia
da historiografia” implica a mesma arrogância filosófica. Para Croce, o conhecimento histórico é o único
possível, visto que a história é a única realidade: portanto, a redução da Filosofia a metodologia desse
conhecimento equivale a negar que o saber científico seja conhecimento; de fato, para CROCE, ele não é um
saber, mas um conjunto de expedientes práticos. Por outro lado, o espiritualismo contemporâneo segue, em sua
maior parte, esse mesmo caminho. Para Bergson, a intuição é o órgão da Filosofia por ser a intuição a “visão
direta do espírito por parte do espírito”, ou seja, o instrumento para atingir, imediata e infalivelmente, a
“duração real” que é a realidade absoluta. Seu reconhecimento da ciência como conhecimento adequado ao
mundo material ou das “coisas” é puramente fictício: para Bergson, nem a matéria nem as coisas têm realidade
como tais, porque não são senão consciência, e a consciência só pode ser autenticamente conhecida pela própria
consciência: “Ao sondar sua própria profundidade, a consciência não estaria penetrando também no íntimo da
matéria, da vida, da realidade em geral? Isso só poderia ser contestado se a consciência se acrescentasse à
matéria como um acidente, mas nós acreditamos ter demonstrado que essa hipótese é absurda ou falsa,
conforme o lado pelo qual é considerada, contraditória em si mesma e desmentida pelos fatos”. O conceito de
Filosofia como conhecimento privilegiado (seja qual for o aspecto em que assente o privilégio) nada mais é que
uma das tantas expressões do antigo conceito de Filosofia como saber único e absoluto. As tendências do
pensamento moderno que costumam ser chamadas de “metafísicas” caracterizam-se precisamente por esse
conceito de filosofia. Husserl expõe assim o ideal cartesiano da Filosofia que ele declara adotar: “Lembremos a
ideia diretiva das Meditações de Descartes. Ela visa a uma reforma total da Filosofia, para torná-la uma
ciência de fundamentos absolutos. Isto implica, para Descartes, uma reforma paralela de todas as ciências,
visto serem estas membros de uma ciência universal que outra não é senão a própria Filosofia É só na unidade
sistemática desta que elas realmente podem tornar-se ciências”. Em sua última obra, Husserl estabelecia como
primeira condição da Filosofia “uma ‘epoché’ de qualquer pressuposto das ciências objetivas, de qualquer
tomada de posição crítica em torno da verdade ou da falsidade da ciência, uma ‘epoché’ até da ideia diretiva
da ciência, da ideia do conhecimento objetivo do mundo".
Não obstante o amplo reconhecimento da validade do método científico, as considerações de Jaspers sobre a
natureza da Filosofia redundam na mesma negação da ciência, uma vez que negam autonomia estrutural e
validade às ciências específicas. Uma desvalorização ainda mais radical das ciências específicas é realizada por
Heidegger, para quem os pressupostos da ciência moderna são o esquecimento do ser, a redução do homem a
sujeito e do mundo a representação.
2ª. A segunda concepção de Filosofia como juízo sobre o saber é a que tende a resolvê-la nas ciências
específicas, atribuindo-lhe às vezes a função de unificar as ciências ou de reunir seus resultados numa “visão de
mundo”. A origem desta concepção pode ser vista em Bacon, que concebeu a Filosofia como uma ciência que,
em primeiro lugar, dividiria e classificaria as ciências particulares e depois conferiria a tais ciências a posse de
seus métodos, do material de que elas disporiam e das técnicas para a utilização desse material em proveito do
homem. Esboçando o plano de uma enciclopédia das ciências em bases experimentais, Bacon atribuía à
“Filosofia primeira”, por ele considerada como “ciência universal e mãe das outras ciências”, a tarefa de reunir
“os axiomas que não são próprios das ciências particulares, mas comuns a várias ciências”. Hobbes, por sua
vez, identificava a Filosofia com o conhecimento científico: “A Filosofia é o conhecimento adquirido através
do raciocínio correto, dos efeitos ou fenômenos, a partir de suas causas ou origens; ou, reciprocamente, o
conhecimento adquirido sobre as origens possíveis a partir dos efeitos conhecidos”. Deste conceito de
Filosofia coincidente com o conhecimento científico, e no esforço de esclarecê-la e estendê-la, proveio o
sentido do termo em inglês, para o qual Hegel já chamava a atenção: segundo ele, esse termo não se aplicava
somente à ciência da natureza, mas ainda a certos instrumentos, como termômetros, barômetros, etc., além dos
princípios gerais da política; este último uso conservou-se nos países anglo-saxônicos. Para o próprio
Descartes, a Filosofia compreendia “tudo aquilo que o espírito humano pode saber”, e assim coincidia em
grande medida com as pesquisas científicas, que, aliás, para Descartes deveriam ser remetidas a certos
princípios fundamentais. Todo o Iluminismo participou do conceito de filosofia como conhecimento científico.
“Filósofo, amante da sabedoria, da verdade”, dizia Voltaire. E Wolff mesmo admitia, ao lado das ciências
“racionais” em que dividia a Filosofia, ciências empíricas correspondentes, dotadas de um método autônomo,
que é o experimental. Por exemplo, ao lado da cosmologia geral ou científica, Wolff admite uma cosmologia
experimental “que haure das observações a teoria que é estabelecida ou que deve ser estabelecida na
cosmologia científica”, e reconhece que é possível, embora difícil, que toda a teoria da cosmologia geral derive
dessas observações.
Dentro desse significado, o positivismo deu destaque à função da filosofia de reunir e coordenar os resultados
das ciências específicas com vistas a criar um conhecimento unificado e generalíssimo. Esta é a tarefa atribuída
à Filosofia por Comte e Spencer. Comte acha que, ao lado das ciências particulares, deve haver um “estudo
das generalidades científicas”, que, para ele, corresponde à “Filosofia primeira” de Bacon. Esse estudo deveria
“determinar exatamente o espírito de cada ciência, descobrir as relações e a concatenação entre as ciências,
resumir talvez todos os princípios dessas ciências no menor número possível de princípios comuns, sempre em
conformidade com as máximas fundamentais do método positivo”. O conceito de Filosofia como ciência
generalizadora e unificadora dos resultados das outras ciências foi e continua sendo corrente na filosofia
moderna e contemporânea. Foi aceito não só por correntes positivistas, mas também por doutrinas
espiritualistas; estas últimas acrescentaram-lhe em certos casos uma determinação ou condição limitadora: a
generalização e a unificação devem corresponder a uma imagem do mundo que satisfaça às necessidades do
coração. Essa é precisamente a definição de Filosofia dada por Wundt, que reconheceu como função sua a
“síntese dos conhecimentos específicos em uma intuição do mundo e da vida que satisfaça as exigências do
intelecto e as necessidades do coração”. Desse ponto de vista, a Filosofia “é a ciência universal que deve
unificar num sistema coerente os conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares”: conceito
muito frequente na literatura filosófica das últimas décadas do séc. XIX e das primeiras do séc. XX, porquanto
permite que a Filosofia aproveite amplamente os resultados obtidos pela investigação positiva tanto no campo
das ciências naturais quanto no das ciências do espírito. Por vezes, tende-se a acentuar, nesse sentido, o caráter
unitário e totalitário desta ciência universal; nesse caso, assim como na definição de Wundt, ela é considerada
intuição ou visão do mundo. Tal conceito é uma determinação ulterior do conceito de Filosofia como “ciência
universal”, unificadora e generalizadora. Mach diz: “O filósofo tenta orientar-se no conjunto de fatos de um
modo universal, o mais completo possível... Somente a fusão das ciências especiais mostrará a concepção do
mundo para a qual tendem todas as especializações”. Dilthey demonstrou bem esta conexão entre Filosofia e
ciências especiais quando escreveu: “A história da Filosofia transmite ao trabalho filosófico sistemático os três
problemas da fundamentação, justificação e conexão das ciências específicas, juntamente com a tarefa de
enfrentar a necessidade inexaurível de reflexão última sobre o ser, o fundamento, o valor, a finalidade e suas
interconexões na intuição do mundo, sejam quais forem a forma e a direção em que tal tarefa é realizada”.
Para Simmel, a relação entre fundamentação/unificação das ciências e intuição do mundo (em que consiste
propriamente a metafísica) configura-se como a distinção entre os dois limites que definem o campo da
investigação filosófica. “Um deles compreende as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da
pesquisa específica, que não podem ser satisfeitos nesta porque, de certo modo, já constituem a sua base; no
outro, essa pesquisa específica é levada a cabo em conexão e em relação com questões e conceitos que não têm
lugar na experiência e no saber objetivo imediato. Aquela é a teoria do conhecimento, esta é a metafísica do
campo específico em questão”. Ora, a primeira destas tarefas é aquela que a filosofia crítica havia atribuído à
Filosofia (v. adiante); a segunda delas é a que havia sido atribuída à Filosofia pela corrente positivista que
remonta a Bacon. A última manifestação deste conceito de Filosofia no pensamento contemporâneo é a noção
de “ciência unificada”, própria do neo-empirismo, à qual é dedicada a Enciclopédia internacional da ciência
unificada. Contudo, nesta obra o próprio conceito de unificação é dúbio, sendo defendido de maneiras diversas
pelos diferentes adeptos. Neurath entende-a como a combinação dos resultados das várias ciências e a
axiomatização deles num sistema único; Dewey, como exigência de estender a posição e a função da ciência à
vida humana; Russell, como unidade de método; Carnap, como unidade formal ou linguística; Morris, como
doutrina geral dos signos. Apesar de tudo, o conceito de filosofia como unificação e generalização do saber
científico continua sendo proposto no mundo contemporâneo; é defendido, por exemplo, por Whitehead.
3ª. A terceira concepção de Filosofia como juízo do saber pode ser chamada de crítica e consiste em reduzir a
Filosofia, sob esse ponto de vista, a doutrina do conhecimento ou a metodologia. Segundo esta concepção, a
filosofia não aumenta a quantidade do saber, portanto, não pode ser chamada propriamente de “conhecimento”.
Sua tarefa é verificar a validade do saber, determinando seus limites e condições, suas possibilidades efetivas.
O iniciador desse conceito de Filosofia foi Locke. Todo o Ensaio nasceu — como ele adverte na “Epístola ao
Leitor”, que o precede — da necessidade de “examinar a capacidade da mente humana e ver que objetos estão
ao seu alcance e quais os que estão acima de sua compreensão”. Mais exatamente ainda, a Filosofia tende a
descobrir quais são as possibilidades da inteligência, qual a magnitude dessas possibilidades, a que tipo de
coisas elas se ajustam e onde nos falta seu socorro. Os limites das capacidades humanas são resumidos
claramente por Locke no terceiro capítulo do IV livro do Ensaio. Mas é no último capítulo da obra, dedicado à
divisão das ciências, que esses limites ficam mais claros. Distinguem-se três ciências principais: a Filosofia
natural ou física, cuja tarefa é “o conhecimento das coisas como elas são em seu ser próprio, sua constituição,
suas propriedades e operações”; a Filosofia prática ou ética, que é “a arte de bem dirigir nossos poderes e
nossos atos para a consecução das coisas boas e úteis”; e a doutrina dos sinais, semiótica ou lógica, cuja tarefa
é “considerar a natureza dos signos utilizados pelo espírito para o entendimento das coisas ou para transmitir
a outrem seu conhecimento”. Nesta divisão das ciências falta a Filosofia: isto quer dizer que, para Locke, a
Filosofia não é uma ciência no mesmo sentido da física, da ética ou da lógica, ou seja, conhecimento de objetos,
mas é juízo sobre a ciência, é crítica. Esse ponto de vista constitui um dos filões principais da filosofia moderna
e contemporânea. Hume identificava a tarefa da Filosofia acadêmica ou cética, por ele professada, com a
“limitação de nossas investigações às matérias que mais se adaptam à limitada capacidade da inteligência
humana”. Em Kant, a limitação do conhecimento é considerada fundamento da validade do próprio
conhecimento, segundo conceito já utilizado por Locke. Com efeito, para Kant, tanto as condições a priori do
conhecimento (intuições puras, categorias) quanto suas condições a posteriori (dado empírico ou intuição)
determinam e limitam as possibilidades cognoscitivas no sentido de que não só excluem certos campos de
indagação, mas também fundamentam a validade ou a efetividade das próprias possibilidades. Kant expressava
o campo da Filosofia com as seguintes perguntas: 1ª o que posso saber?; 2a que devo fazer?; 3a o que posso
esperar?; 4a o que é o homem? E acrescenta: “A metafísica responde à primeira questão; a moral, à segunda; a
religião, à terceira; a antropologia, à quarta. Mas, no fundo, poder-se-ia reduzir tudo à antropologia, uma vez
que as três primeiras questões remetem à última. Consequentemente, o filósofo deve poder determinar: 1ª a
fonte do saber humano; 2ª o campo de aplicação possível e útil do saber; 3ª os limites da razão”. A objeção de
Hegel a esse ponto de vista — “querer conhecer antes de conhecer é tão absurdo quanto o prudente propósito
de certo aluno, que queria aprender a nadar antes de entrar na água” — é pura boutade, uma vez que a
Filosofia como crítica supõe que já se saiba nadar, que já exista um saber constituído (o da ciência), a partir do
qual se podem investigar as possibilidades de conhecer e determinar seus limites. Na doutrina kantiana, o
neocriticismo contemporâneo modificou o tópico referente à religião e, mantendo inalterado o conceito de
Filosofia como crítica do saber, reconheceu três disciplinas filosóficas, quais sejam, lógica, ética e estética;
entendeu, por lógica, na maioria das vezes, a teoria do conhecimento. Essa doutrina foi defendida pela chamada
escola de Marburgo (Cohen, Natorp, Cassirer) e também pelo criticismo francês (Renouvier,
Brunschvicg). A posição de destaque de que a gnosiologia ou teoria do conhecimento tem gozado na filosofia
contemporânea (e não só entre as correntes neocriticistas) é consequência do conceito de filosofia como crítica
do conhecimento. A gnosiologia ou teoria do conhecimento, todavia, é caracterizada por pressupostos e
problemas particulares; portanto, o conceito de Filosofia como crítica do saber não implica a identificação da
Filosofia com a doutrina do conhecimento ou gnosiologia. De fato, mesmo depois da crise e do abandono da
gnosiologia oitocentista, esse conceito continua na forma da análise dos procedimentos efetivos do
conhecimento científico e de determinação de seus limites e de sua validade. Esta análise é tema característico
da metodologia. Portanto, a metodologia pode ser considerada a última encarnação da Filosofia como crítica do
saber. Como parte da metodologia, ou como restrição de seu objetivo, pode-se entender a definição de Filosofia
como “análise da linguagem”, proposta pela primeira vez por Wittgenstein, em Tractatus logico-philosophicus
(1922). Atribuindo “a totalidade das proposições verdadeiras” à ciência natural, Wittgenstein nega que a
Filosofia seja uma ciência natural: esta palavra, diz ele, “deve significar alguma coisa que está acima ou abaixo
das ciências da natureza, não ao lado delas”. Torna-se então tarefa da Filosofia o aclaramento lógico da
linguagem. “A Filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente
em elucidações. Os frutos da Filosofia não são proposições filosóficas, mas o aclaramento das proposições. A
Filosofia deve aclarar e delimitar com precisão as ideias que, de outro modo, seriam turvas e confusas”.
II. A Filosofia e o Uso do Saber:
O segundo ponto de vista sob o qual se podem buscar constantes nos significados historicamente atribuídos à
Filosofia, para em seguida realizar divisões ou articulações de tais significados, é o que ficou expresso na 2ª
parte da definição usada como ponto de partida deste artigo, qual seja, a Filosofia como uso do saber pelo ser
humano. Ao longo da história têm sido dadas duas interpretações fundamentais desse conceito de Filosofia: a)
Filosofia é contemplativa e constitui uma forma de vida que é fim em si mesma; b) a Filosofia é ativa e
constitui o instrumento de modificação ou de correção do mundo natural ou humano. Segundo a primeira
interpretação, a Filosofia exaure-se no indivíduo que filosofa; para a segunda interpretação, a Filosofia
transcende o indivíduo e concerne às relações com a natureza e com os homens, portanto à vida humana social.
Para usar um termo de clara significação histórica, pode-se chamar de “iluminista” esta segunda interpretação
da filosofia.
a) A conceito de Filosofia como contemplação é típico, em primeiro lugar, das Filosofia de tipo oriental, que
estabelecem como objetivo da Filosofia a salvação do homem. Com efeito, a salvação é a libertação de
qualquer relação com o mundo, portanto a realização de um estado em que qualquer atividade é impossível ou
sem sentido. No Ocidente, o conceito de Filosofia como contemplação não foi a primeira forma assumida pelo
trabalho filosófico (que foi, ao contrário, o da “sabedoria”, da Filosofia ativa e militante), mas foi a primeira
caracterização explícita desse trabalho. Seu fundamento é a natureza “desinteressada” da investigação
filosófica. Quando em Heródoto o rei Creso diz a Sólon: “Ouvi falar das viagens que, filosofando, tens
empreendido a fim de ver muitos países”, obviamente está aludindo ao caráter desinteressado dessas viagens,
que não foram realizadas com objetivos lucrativos ou políticos, mas visando apenas ao conhecimento. O
próprio Platão contrapõe o espírito científico dos gregos ao amor e ao lucro, típico dos egípcios e dos fenícios.
E que a busca do saber não pode ser subordinada ou submetida a finalidades alheias a ela é fato que resulta da
própria noção dessa busca, a maneira como ela se foi configurando na Grécia antiga. Mas já na narração
atribuída a Pitágoras, que provém de um texto de Heráclides Pôntico com que se pretende justificar o nome de
Filosofia, há algo mais que a simples exigência de desinteresse na investigação. Segundo essa tradição,
transmitida por Cícero em Tusculanae, Pitágoras comparava a vida com as grandes festas de Olímpia, aonde
alguns se dirigem a negócio, outros para participar das competições, outros para divertir-se e, finalmente,
alguns somente para ver o que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui se evidencia a distinção entre o
filósofo, interessado apenas em ver, e o comum dos homens, dedicado a suas ocupações. Portanto, a
superioridade da contemplação sobre a ação está implícita nessa narração, que, provavelmente, tinha o objetivo
de enobrecer, pela alusão a Pitágoras, o conceito de Filosofia que se ia formando na escola de Aristóteles. O
caráter contemplativo da Filosofia (que nada tem a ver com o caráter desinteressado da investigação em geral),
como uma das possíveis respostas ao problema do uso do saber pelo ser humano, foi afirmado e justificado pela
primeira vez por Aristóteles. Esse caráter funda-se na natureza necessária do objeto da Filosofia, aquilo que
“não pode ser senão o que é”. Sob este ponto de vista, a Filosofia é saber e não sabedoria, já que a sabedoria
consiste em bem deliberar, porém nada há que deliberar a respeito de coisas que não podem ser de outra
maneira. Com base nisso, Aristóteles estabelece uma oposição entre sabedoria e sapiência. Homens como
Anaxágoras e Tales são sapientes, mas não sábios: não indagam acerca do bem humano, não conhecem o que
é útil a eles mesmos, mas apenas coisas excepcionais, maravilhosas, raras e divinas. “Ninguém”, diz
Aristóteles, “delibera sobre aquilo que não pode ser de outra maneira ou sobre coisas que não têm um fim ou
cujo fim não é um bem realizável”. Mas, desse ponto de vista, qual é o uso possível do saber? Somente um: a
realização de uma vida contemplativa, dedicada ao conhecimento do necessário. Portanto, para Aristóteles, a
atividade contemplativa é a mais alta e beatífica das atividades: faz do homem algo superior ao próprio homem
porque se conforma ao que de divino existe nele. Assim, a doutrina de Aristóteles fixou os seguintes pontos no
que se refere ao uso do saber pelo ser humano: 1º a Filosofia, tendo como objeto o necessário, não propicia ao
homem nada a fazer; portanto, é contemplação; 2º a contemplação é uma forma de vida individual privilegiada,
pois é a bem-aventurança. As duas teses são típicas desta concepção da Filosofia, que aparece com frequência
na história do pensamento ocidental e domina em toda a Filosofia grega pós-aristotélica, que cultiva o ideal do
“sapiente”, ou seja, daquele em quem se realiza a vida contemplativa. Epicuristas, estóicos, céticos e
neoplatônicos concordam em julgar que só o sapiente pode ser feliz, porque só ele, como contemplador puro, é
auto-suficiente. A finalidade que esses filósofos atribuem à Filosofia é individual e pessoal: a realização de uma
forma de vida que fecha o sapiente em si mesmo e na sua contemplação solitária. Também desse ponto de vista
obviamente a Filosofia é um esforço de transformação ou de retificação da vida humana; portanto, não se deve
tomar ao pé da letra a afirmação de Aristóteles de que ela não dá o que fazer. Essa afirmação significa apenas
que ela não modifica a estrutura do mundo, do conhecimento concernente ao mundo e das formas de vida
social, mas pode modificar a vida do indivíduo, tornando-o sapiente e bem-aventurado.
A partir dessas características, é fácil conhecer a atitude contemplativa em filosofia. Quando Spinoza diz: “O
homem forte considera principalmente que todas as coisas procedem da necessidade da natureza divina e que,
portanto, tudo o que ele julga molesto e ruim e tudo aquilo que aparenta ser ímpio, horrível, injusto e torpe
nasce do fato de ele conceber as coisas de maneira obscura, parcial e confusa”, está expressando o conceito
contemplativo da Filosofia em sua forma clássica. E quando Hegel afirma que a Filosofia, assim como a coruja
de Minerva que começa a voar ao cair da noite, sempre chega quando tudo já está feito, portanto demasiado
tarde para dizer como deve ser o mundo, está expressando o mesmo conceito. Com efeito, para Hegel, assim
como para Aristóteles e Spinoza, o objetivo da Filosofia é o necessário; sua tarefa é precisamente mostrar a
necessidade do que existe, ou seja, a racionalidade do real. Sob esse ponto de vista, a Filosofia é a justificação
racional da realidade, entendendo-se por realidade não só a da natureza, mas também a das instituições
histórico-sociais, a do mundo humano. Sob esse prisma, não era muito diferente o conceito que Schopenhauer
tinha de Filosofia: “Espelhar em conceitos, de modo abstrato, universal e límpido toda a essência do mundo e
assim, qual imagem reflexa, depositá-la nos conceitos da razão, permanentes e sempre assentados: isso é
Filosofia, não outra coisa”.
Na Filosofia Contemporânea, o conceito de Filosofia como contemplação permanece na fenomenologia e no
espiritualismo. A fenomenologia é o esforço de realizar, por meio da “epoché”, o ponto de vista do “espectador
desinteressado”, do sujeito que não esteja submetido às mesmas condições limitativas que toma em
consideração. Husserl diz: “O eu da meditação fenomenológica pode tornar-se o espectador imparcial de si
mesmo, não só nos casos particulares, mas em geral; esse ‘si mesmo’ compreende qualquer objetividade que
exista para ele, tal qual existe para ele”. E na última obra Husserl vê a filosofia como “movimento histórico da
revelação da razão universal, inata como tal na humanidade”, atribuindo-lhe a tarefa de levar a razão “à
autocompreensão, a uma razão que se compreenda concretamente a si mesma, que compreenda que é um
mundo, um mundo que é, em sua própria verdade, universal”. Por outro lado Bergson, ao distinguir a Filosofia
como intuição ou consciência da duração temporal (do devir da consciência) da ciência como conhecimento
dos fatos, vê a ciência como “auxiliar da ação” e a Filosofia como atividade contemplativa. “A norma da
ciência”, diz ele, “é a que foi proposta por Bacon: obedecer para comandar. O filósofo não obedece nem
comanda: procura simpatizar”. A idolatria do “sapiente”, como condição humana privilegiada ou perfeita, e da
Filosofia, como forma final e conclusiva do ser, são dois traços característicos para se conhecer a concepção da
Filosofia como contemplação. A esta concepção pertencem as formas do ceticismo antigo e moderno. Quando
Sexto Empírico aponta como finalidade da Filosofia cética a imperturbabilidade que ela permite realizar, ou
quando Hume reduz o motivo de seu filosofar — que ele julga incapaz de agir sobre as crenças mais arraigadas
no homem — ao prazer que dele extrai, ambos estão atribuindo à Filosofia uma função contemplativa que se
exaure no âmbito da vida individual. E nesse mesmo âmbito exaure-se a função da Filosofia como “terapia” da
Filosofia, isto é, como libertação das dúvidas filosóficas, de que falam Wittgenstein e alguns filósofos ingleses,
seus seguidores. De fato, não parece que esses filósofos atribuam à terapia filosófica outra função a não ser a de
libertar o indivíduo de suas dúvidas filosóficas permitindo que ele se “sinta melhor”, do mesmo modo que
Hume se sentia melhor com suas dúvidas céticas.
b) O conceito de Filosofia como atividade diretiva ou transformadora já está presente na lenda dos Sete Sábios,
que foi citada pela primeira vez por Platão. Os Sete Sábios foram moralistas e políticos, e seus ditados referem-
se à conduta de vida e às relações com os homens. Mas o primeiro grande exemplo de Filosofia explicitamente
concebida com a finalidade de transformar o mundo humano é a de Platão, destinada a modificar a forma da
vida social e a baseá-la na justiça. Para ela, a educação do filósofo não culmina na visão do bem, mas no
“retorno à caverna”: porquanto o filósofo deve colocar à disposição da comunidade os resultados de sua
especulação e utilizá-los para a direção e a orientação da mesma. “Cada um de vós”, diz Platão, “deve descer
para a habitação comum e acostumar-se a contemplar os objetos nas trevas: porque, acostumando-se a elas,
verá bem melhor que aqueles que sempre estiveram lá e reconhecerá os caracteres e o objeto de cada imagem,
porque viu os verdadeiros exemplares da beleza, da justiça e do bem. Assim, nós e vós constituiremos e
governaremos a cidade despertos, e não sonhando, como acontece agora na maior parte das cidades por culpa
daqueles que guerreiam por causa de sombras e disputam o poder como se fosse um bem”. A Filosofia
platônica é totalmente dominada por esse compromisso educativo e político: para Platão, a tarefa da Filosofia
não é dar a certo número de homens a bem-aventurança da contemplação, mas dar a todos a possibilidade de
viver segundo a justiça. Esta concepção ativa da Filosofia permaneceu inoperante por muito tempo. Foi só no
Renascimento que os humanistas a retomaram, entendendo Filosofia como sabedoria. Em De nobilitate legum
et medicinae, Coluccio Salutati (1331-1406) dizia: “Muito me admira afirmares que a sabedoria consiste na
contemplação, cuja serva seria a prudência, havendo entre elas a mesma relação que há entre o administrador
e o senhor, e dizeres que a sapiência é a maior das virtudes, pertencente à melhor parte da alma, que é do
intelecto, e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiência. E acrescentas que, sendo a metafísica a
única ciência livre, o filósofo quer que a especulação preceda em tudo a ação... Mas a verdadeira sapiência
não consiste, como crês, na especulação pura. Se tirares a prudência, não acharás nem sapiente nem
sapiência... Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse conhecido coisas celestes e divinas, sem que
houvesse provido a si mesmo, sem que houvesse sido útil aos amigos, à família, aos parentes e à pátria?” No
mesmo espírito, Leonardo Bruni, em Isagogicon moralis disciplinae (1424), afirmava a superioridade da
Filosofia moral sobre a Filosofia teórica. Posteriormente, a consolidação desta concepção ativa da Filosofia
caracteriza o início da Idade Moderna. Os humanistas acreditavam que só a Filosofia moral era ativa; para
Bacon também é ativa a Filosofia que tem por objeto a natureza, porque se destina a dominar a natureza. E
Bacon não hesitou em chamar de “pastoral” a Filosofia de Telésio, que muito apreciava e em parte seguia, por
parecer-lhe que ela “contemplava o mundo placidamente e quase por ócio”. Hobbes insistia na mesma função
da Filosofia. Descartes, por sua vez, julgava-a apta a obter sabedoria e ciência de tudo aquilo que é útil e
vantajoso para o homem. A mesma finalidade diretiva e corretiva foi atribuída à Filosofia por Locke e pelos
iluministas. Com Locke, a Filosofia torna-se crítica do conhecimento e esforço de libertação do homem de
ignorâncias e preconceitos. A mesma concepção se mantém no Iluminismo do séc. XVIII, que vê a Filosofia
como esforço da razão para assenhorear-se do mundo humano, libertá-lo dos erros e fazê-lo progredir.
D'Alembert descrevia assim a ação que a Filosofia exercia em seu tempo: “Dos princípios das ciências
profanas aos fundamentos da revelação, da metafísica às questões de gosto, da música à moral, das disputas
escolásticas dos teólogos, aos objetos de comércio do direito dos príncipes ao direito dos povos, da lei natural
às leis arbitrárias das nações, numa palavra, das questões que mais nos preocupam às que menos nos
interessam, tudo foi discutido e analisado, ou pelo menos cogitado. Nova luz sobre alguns objetos, nova
obscuridade sobre outros foram os frutos ou o resultado dessa efervescência geral dos espíritos, assim como o
efeito do fluxo e do refluxo do oceano é levar para a margem alguns objetos e dela afastar outros”. O conceito
iluminista de Filosofia era compartilhado por Kant, para quem a Filosofia, determinando as possibilidades
efetivas do homem em todos os campos, deve iluminar e dirigir o gênero humano em seu obrigatório progresso
rumo à felicidade universal.
Ao insistir no caráter necessário, porque racional, do ser, o Romantismo constituiu, em seu conjunto, um
retorno à concepção contemplativa da Filosofia. O próprio positivismo, que pretendia explicitamente remeter-
se à doutrina de Bacon, do saber como possibilidade de domínio da natureza, nem sempre se mantém fiel ao
reconhecimento do caráter ativo da Filosofia. Se para o positivismo de cunho social (Simon, Proudhon,
Comte, Stuart Mill) a Filosofia é principalmente um meio de transformação da sociedade humana, para o
positivismo evolucionista a Filosofia tem mais caráter contemplativo do que ativo. A defesa do mistério, que
Spencer coloca entre as tarefas da Filosofia, ou seja, o reconhecimento da insolubilidade dos chamados
problemas últimos, põe a Filosofia no mesmo plano contemplativo da religião. A discussão sobre a solubilidade
ou insolubilidade dos chamados “enigmas do mundo” incide inteiramente no plano da Filosofia contemplativa.
O positivismo de Ardigò, o monismo materialista (Haeckel) e o evolucionismo espiritualista (Wundt,
Morgan, etc.) são igualmente contemplativos. Na realidade, o clima romântico está presente tanto no
positivismo quanto no idealismo e orienta tanto àquele como a este para o conceito de Filosofia como
contemplação de uma realidade necessária. Contra tal conceito insurge-se o “novo materialismo” de Marx, que,
ao mesmo tempo, opõe-se ao materialismo teórico de Feuerbach. “Os filósofos”, dizia ele, “até agora só
fizeram interpretar o mundo de diversas maneiras: trata-se agora de transformá-lo” (Tese sobre Feuerbach).
Mas por mais que Marx insista no esforço de transformação que deve caracterizar a Filosofia como tal, o
próprio fundamento da Filosofia como contemplação permanece firme em sua doutrina. Esse fundamento é,
com efeito, a necessidade do real; para Marx, a transformação da sociedade, ou seja, a passagem da sociedade
capitalista para a sociedade sem classes, acontecerá “com a mesma fatalidade que caracteriza os fenômenos da
natureza”. Desse ponto de vista, a tarefa da Filosofia apresenta-se como a de uma profética Cassandra, não de
promover e orientar a transformação. Nesse aspecto, é o neocriticismo que por vezes escapa ao clima
romântico. Em Uchronie, Renouvier propôs-se eliminar “a ilusão da necessidade preliminar, segundo a qual o
fato consumado seria o único, entre todos os outros imagináveis, que poderia realmente acontecer”. Segundo
ele, a “Filosofia analítica da história” tem a tarefa de determinar as concatenações gerais dos fatos históricos
para dirigir o desenvolvimento da história. Por outro lado, a determinação de “visão do mundo”, imposta à
Filosofia na segunda metade do séc. XIX por pensadores de procedência neocriticista ou positivista, tem claro
significado contemplativo. Foi contra a interpretação contemplativa da Filosofia que o pragmatismo, desde a
origem, assestou suas armas, como se pode ver no ensaio Como tornar claras nossas idéias (1878) de C. S.
Peirce. Nesse ensaio, Peirce afirmava que toda a função do pensamento é produzir hábitos de ação (ou crenças)
e que, portanto, o significado de um conceito consiste exclusivamente nas possibilidades de ação que ele define.
Mas essas afirmações de Peirce são importantes também de outro ponto de vista. Peirce negava explicitamente
o pressuposto da Filosofia como contemplação, vale dizer, o caráter necessário do real. Mostrava que a
regularidade e a ordem dos acontecimentos, bem como suas interrelações condicionais, nada têm a ver com a
necessidade, o que implicaria a possibilidade de previsão infalível. A definição dada por Dewey de Filosofia
como “crítica dos valores” expressa, precisamente sobre pressupostos estabelecidos por Peirce, a função
diretiva da filosofia. Segundo Dewey, a tarefa da Filosofia é a antiga, que está inscrita no próprio significado
etimológico da palavra: procura da sabedoria, em que sabedoria difere de conhecimento por ser “a aplicação
daquilo que é conhecido pela conduta inteligente das ações da vida humana”. Não tem significado diferente a
definição dada por Morris: “Uma Filosofia é uma organização sistemática que compreende as crenças
fundamentais: crenças sobre a natureza do mundo e do homem, sobre o que é bem, sobre os métodos a seguir
no conhecimento, sobre o modo como a vida deve ser vivida”. Para Morris, assim como para todo o
pragmatismo, crença não passa de norma de comportamento: a Filosofia, como organização das crenças
fundamentais, constitui por isso aquilo que Sartre chamou de “projeto fundamental de vida”. Na própria obra
de Sartre pode-se perceber a passagem da concepção contemplativa de Filosofia para a concepção ativa ou
iluminista. Sartre projetava uma investigação chamada “psicanálise existencial”, cuja finalidade era
“evidenciar, de maneira rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva graças à qual cada pessoa se faz pessoa,
ou seja, se faz anunciar a si mesma aquilo que é”. O resultado de uma investigação desse gênero deveria ter
sido, segundo Sartre, a classificação e a comparação dos vários tipos possíveis de conduta, portanto o
esclarecimento definitivo da realidade humana como tal. É evidente o caráter contemplativo de semelhante
disciplina. Mas em sua segunda obra Sartre entende por Filosofia a “totalizaçâo do saber, método, ideia
reguladora, arma ofensiva e comunidade de linguagem”, e ao mesmo tempo como instrumento que age sobre
as sociedades decadentes para transformá-las, podendo constituir a cultura e até mesmo a natureza de uma
classe inteira. No primeiro caso, a Filosofia não dava o que fazer ao homem, porque o homem nada podia fazer:
Sartre definia o homem como “paixão inútil” como paixão impossível de ser Deus. No segundo caso, a
Filosofia insere-se no mundo como força humana finita, mas eficaz, e tende a transformá-lo. Subtraída ao
destino de fracasso e de sucesso, a noção de projeto presta-se a expressar o caráter diretivo e operante atribuído
à Filosofia pelas correntes neo-iluministas contemporâneas. Com efeito, um projeto parte dos conhecimentos
disponíveis e determina seu uso possível, a fim de garantir a existência e a coexistência dos homens. Uma
Filosofia que projete neste sentido (aliás, já esclarecido por Platão) o uso humano do saber obviamente é a
determinação de técnicas de vida que podem ser postas à prova, corrigidas ou rejeitadas.
III. A Filosofia e seus Procedimentos:
O terceiro ponto de vista para identificar constantes de significado que permitam reconhecer articulações
fundamentais nas interpretações do conceito de Filosofia, ao longo da história, é o que se refere ao
procedimento ou método atribuído à Filosofia. Desse ponto ele vista, as Filosofias podem ser divididas em a)
Filosofia sintéticas ou criativas, que produzem conceptualmente seu objeto, sem impor limites ou condições a
esse trabalho de construção; e b) Filosofia analíticas, que reconhecem a existência de dados, que elas
descrevem ou analisam. A característica das Filosofias analíticas é a limitação a que elas se julgam submetidas
por parte do dado, seja qual for a maneira como o concebem. A característica das Filosofias sintéticas, ao
contrário, consiste em não reconhecer essa limitação e em pretender que seu método seja inteiramente
construtivo, capaz de exaurir todo o objeto da filosofia.
a) O procedimento sintético não pode lançar mão da verificação de situações, fatos ou elementos que sejam
independentes dele; sua característica, portanto, é valer como verificação de si mesmo. Sempre que uma
filosofia pressupõe que a validade de seus resultados depende exclusivamente de sua própria organização
interna, podendo, pois, ser reconhecida e estabelecida de uma vez por todas, sem necessidade de que esses
resultados sejam postos à prova e confirmados por técnicas ou procedimentos independentes dela, seu método
pode ser considerado sintético. Com efeito, neste caso, seu modo de proceder equivale à criação ou composição
ex novo de seu objeto, de forma que não exige confirmações nem teme desmentidos. A Filosofia de Hegel
constitui a encarnação mais pura desse tipo. Quando Hegel diz: “A Filosofia não tem a vantagem de que gozam
as outras ciências, de poder pressupor que seus objetos são dados imediatamente pela representação e (de
poder pressupor) como já admitido seu método de conhecer no ponto de partida e no procedimento seguinte”,
está afirmando precisamente a exigência de que a Filosofia construa seu objeto e seu método por si mesma e
inteiramente. Mas, produzindo por si mesma tanto o objeto quanto o método, ela não tem de prestar contas de
seus resultados, quaisquer que sejam, a outras ciências ou a outros pontos de vista eventuais. Hegel insiste no
caráter absolutamente independente ou incondicionado de seu método. “O método”, diz ele, por exemplo,
“assim como o conceito na ciência, desenvolve-se por si mesmo e é apenas uma progressão imanente e uma
produção de suas determinações”. E ainda: “A mais elevada dialética do conceito é produzir e entender a
determinação não só como limite ou posição, mas haurindo dela conteúdo e resultado positivos, pois
unicamente com isso ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética não é um fazer externo do
pensamento objetivo, mas a própria alma do conteúdo, que faz brotar seus ramos e seus frutos
organicamente”. A diferença entre esse método produtor, ou melhor, criador de seu objeto e o método analítico,
que Hegel identifica nas ciências depois de Descartes, é expressa por ele da seguinte maneira: “O método
iniciado por Descartes rejeita todos os métodos interessados em conhecer aquilo que, por natureza, é infinito;
entrega-se, portanto, ao desenfreado arbítrio das imaginações e asserções, à presunção de moralidade, ao
orgulho de sentimentos ou ao excesso de opiniões e raciocínios, veementemente assestados contra a Filosofia e
os filosofemas”.
Essa concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto, tomando como objeto o infinito, o
Absoluto ou Deus, que resolve ou anula em si todos os fatos ou todas as coisas finitas. Antes de encontrar em
Hegel sua forma típica, essa concepção havia sido exposta por Fichte como exigência de que a Filosofia, como
doutrina da ciência, confira forma sistemática não só a si mesma, mas também a todas as outras ciências
possíveis e garanta para todas a validade dessa forma. Com efeito, Fichte considerava que, juntamente com a
forma, a doutrina da ciência deveria produzir também o conteúdo e que o conteúdo da doutrina da ciência
deveria encerrar qualquer possível conteúdo, que seria, portanto “o conteúdo absoluto”. Retrocedendo um
pouco mais, vemos que a concepção do método sintético pode ser encontrada em Spinoza, para quem o
procedimento filosófico (que denomina conhecimento intuitivo, terceiro gênero de conhecimento ou amor
intelectual a Deus) é o que tem por objeto a necessidade com que todas as coisas resultam da natureza divina. O
amor intelectual a Deus é o mesmo amor com que Deus se ama a si mesmo e isso significa que o conhecimento
da necessidade com que as coisas provêm de Deus é o conhecimento mesmo que Deus tem de si. Desse ponto
de vista, o procedimento matemático da Ética assume importância fundamental na filosofia de Spinoza: não é
um artifício expositivo, mas a adequação do método da Filosofia ao procedimento necessário com que as coisas
provêm de Deus. Assim considerado, o método sintético revela-se em sua característica mais evidente: a
pretensão de valer como uma vista d'olhos divina sobre o mundo, como o conhecimento que Deus tem de si e
dos seus efeitos criados. E fácil perceber, então, por que essa pretensão foi tão frequente em Filosofia.
Aristóteles dizia: “Somente esta ciência é divina, e em sentido duplo: porque própria de Deus e porque
concernente ao divino. Só a ela couberam esses dois privilégios; Deus aparece como a causa e o princípio de
todas as coisas e só uma ciência semelhante, ou sobretudo ela, pode ser própria de Deus”. Aristóteles
chamava de teologia a Filosofia primeira. Verdade é que a Filosofia primeira é tal por sua universalidade e que
ela é universal somente na medida em que é ciência do ser enquanto ser. Mas a ciência do ser enquanto ser é
teologia porque é a ciência da causa ou razão de ser a esta causa ou razão de ser é Deus. Por isso, a Filosofia
aristotélica possui caráter declaradamente sintético e, aliás, pode ser considerada o primeiro e clássico exemplo
do procedimento sintético. Obviamente, não é sintética só porque tem Deus como objeto de sua investigação,
mas também porque se considera coincidente com o conhecimento que Deus tem de si. E por essa característica
pode-se reconhecer facilmente uma Filosofia sintética.
b) O procedimento analítico da Filosofia reconhece-se negativamente pela ausência de pretensão de valer como
conhecimento divino do mundo e, positivamente, pelo reconhecimento de limites para suas possibilidades e de
verificação de seus resultados. O procedimento analítico não é, por conseguinte, a construção ex novo do seu
objeto, mas a resolução dele nos elementos que permitem sua compreensão, ou seja, em suas condições. Nestes
termos, a determinação do procedimento filosófico por Kant foi feita primeiramente num texto de 1764, Sobre
a distinção dos princípios da teologia natural e da moral, e depois na segunda parte principal da Crítica da
Razão Pura. No primeiro texto, Kant contrapunha o método analítico da Filosofia ao método sintético da
matemática: “Aos conceitos gerais pode-se chegar por dois caminhos: pela ligação arbitraria dos conceitos ou
isolando os conhecimentos que foram esclarecidos por subdivisão. A matemática sempre chega às definições
seguindo o primeiro caminho... As definições filosóficas, ao contrário, são completamente diferentes. Nelas, o
conceito das coisas já foi dado, mas de maneira confusa e não suficientemente determinada. É preciso
subdividi-lo, comparar nos vários casos as notas que foram separadas com o conceito dado, para depois
determinar e levar a termo a ideia abstrata”. Na Crítica da Razão Pura, Kant distinguiu o conhecimento
filosófico, como conhecimento por conceitos, do conhecimento matemático, que consiste na construção de
conceitos. Kant diz que a matemática pode construir conceitos porque dispõe de uma intuição pura que é a do
espaço-tempo. A Filosofia, porém, não dispõe de uma intuição pura, mas somente de uma intuição sensível: os
objetos da Filosofia devem, pois, ser dados e por isso só podem ser analisados, e não construídos, pelo
procedimento filosófico. Kant, portanto, acautela os filósofos contra a pretensão de querer organizar sua
ciência segundo o modelo matemático. Em Filosofia, não há propriamente definições (que sejam construções de
conceitos), nem axiomas, que são verdades evidentes, nem demonstrações, que são provas apodíticas. Em
relação a estas últimas Kant diz: “A experiência nos ensina o que existe, mas não que isso não pode ser de
outra maneira. Princípios empíricos de prova não podem dar-nos nenhuma prova apodítica. De conceitos a
priori (no conhecimento discursivo) nunca pode nascer uma certeza intuitiva, uma evidência, mesmo que o
juízo possa ser apoditicamente certo”. Deste ponto de vista, o procedimento da Filosofia está bem longe da
possibilidade de dar ao homem um conhecimento comparável ao possuído por Deus. “A determinação dos
limites de nossa razão só pode ser feita segundo princípios a priori, mas a limitação da razão, que vem a ser o
conhecimento, mesmo que indeterminado, da ignorância que nunca pode ser completamente eliminada,
também pode ser conhecida aposteriori; vale dizer que, em todo conhecer, sempre nos resta o que conhecer”.
A Filosofia nunca é uma ciência perfeita, que se possa ensinar ou aprender. “Pode-se apenas aprender a
filosofar, a exercitar o talento da razão na aplicação dos seus princípios universais a determinadas
investigações, mas sempre com a ressalva de que é direito da razão investigar esses princípios em suas fontes,
para confirmá-los ou recusá-los”.
Essas considerações de Kant constituem um conceito relativamente acabado ou maduro do procedimento
analítico em filosofia. Seu precedente imediato é Locke, que disse: “Não nos cabe neste mundo conhecer todas
as coisas, mas sim as que concernem à nossa conduta de vida. Se pudermos então achar as normas graças às
quais um ser racional como o homem, considerado no estado em que se encontra neste mundo, possa e deva
conduzir suas opiniões e as ações que dela dependam, se pudermos chegar a tanto, não devemos ficar aflitos se
outras coisas escapam ao nosso conhecimento”. O conceito de Filosofia como procedimento analítico, com
vistas a determinar as condições e, assim, os limites das atividades humanas, inspirou todo o Iluminismo
setecentista. Mas nesse aspecto, ressalvadas as diferenças devidas aos meios culturais disponíveis, o
Iluminismo setecentista retomava o ideal ao Iluminismo antigo dos Sofistas e de Sócrates, para os quais a
Filosofia visava à formação do homem na comunidade. O próprio conceito que Platão tem da Filosofia pode
ser considerado manifestação desse Iluminismo, segundo o qual a Filosofia é instrumento do homem. Platão de
fato negava que a Filosofia pudesse pertencer à divindade. Tanto quanto o amor, ela é falta, porque desejo de
sabedoria por parte de quem não possui a sabedoria pela própria natureza. O homem é filósofo porque “está no
meio, entre aquele que sabe e aquele que ignora”, ao passo que a divindade, que já possui o saber, não precisa
filosofar. Por outro lado, a dialética, método da Filosofia, é concebida por Platão como análise, como um
procedimento que permite distinguir o discurso verdadeiro do falso, mostrando as coisas que podem combinar-
se e as que não podem combinar-se. Para mostrar quais são as coisas que podem e quais não podem combinar-
se, a dialética procede compondo várias determinações em um único conceito e depois dividindo esse conceito
nas suas articulações como faz um hábil trinchador. Portanto, a cada passo, supõe a escolha oportuna das
determinações, a serem compostas num único conceito, e dos aspectos segundo os quais dividir esse conceito;
essa escolha, como qualquer outra, supõe uma utilização de elementos, pelo que o método platônico foi, com
justiça, considerado empírico.
A concepção analítica tem como característica considerar a Filosofia como atividade humana, ou seja, limitada
em termos de alcance e validade, cuja função é fazer escolhas, e não construir in totó seu objeto. Destas duas
características provém a terceira, talvez a mais óbvia e visível: que consiste em ser esse método, entre outras
coisas e em primeiro lugar, reconhecimento e utilização de dados, ou seja, de fatos, elementos ou condições,
que não são produzidos pelo próprio método. A escolha dos dados e sua elaboração com vistas a uma solução
possível constitui o problema. As Filosofia analíticas são, em geral, marcadas pelo fato de que nelas a noção de
problema é fundamental, ao passo que não existe ou é considerada secundária e negligenciável nas Filosofia
sintéticas (como acontece nas de Aristóteles e Hegel). Outra determinação dessa concepção (que ela só adquire
no mundo contemporâneo) é a que concerne ao campo do qual a F. pode ou deve tirar seus dados e com o qual
a interpretação desses elementos pode e deve ser confrontada. É recente a ideia de que os resultados da
Filosofia, assim como os de qualquer outra investigação, não são definitivos, mas precisam ser provados e
experimentados. Devido a isso, Dewey chamou a Filosofia de crítica das críticas. Disse: “A alguns pode
parecer uma traição conceber a Filosofia como o método crítico para desenvolver os métodos da crítica. Mas
até esse conceito de Filosofia espera ser provado, e a prova que o confirmará ou condenará consiste no
resultado final. A importância do conhecimento que adquirimos e da experiência que foi revivificada pelo
pensamento consiste em evocar e justificar a prova”.
Entretanto, essa exigência torna-se operante só quando se determina o campo do qual a Filosofia extrai seus
dados e no qual encontra possibilidades de confirmação. A determinação deste campo constitui a característica
da Filosofia analítica dos nossos tempos. Ora, os campos aos quais podemos referir-nos são apenas dois: 1º
existência individual; 2º existência social.
1º As Filosofias que recorrem à existência individual para a busca de dados e eventual prova das soluções
consideram habitualmente a existência individual como consciência e vêem a consciência como domínio da
filosofia. No mundo contemporâneo, a mais conhecida e típica Filosofia desse tipo é a de Bergson, que se
organiza explicitamente como busca dos “dados imediatos da consciência” e utiliza esses dados para soluções
que, por sua vez, só podem ser postas à prova no âmbito da consciência. A esse tipo de Filosofia liga-se
também a fenomenologia concebida por Husserl como “um retorno radical ao ego cogito puro, para fazer
reviverem os valores eternos que dele procedem”. O defeito metodológico desse tipo de Filosofia consiste no
fato de que nelas o dado, que deve servir como limitação ou verificação do procedimento analítico, na verdade
não é independente desse procedimento, porque só pode ser descoberto ou assumido com base nos pressupostos
que o inspiram.
2º Filosofia que recorrem à existência social têm como precursora a Filosofia de Platão, que pretendia provar
os resultados da Filosofia na vida social. Ao mesmo gênero pertence a Filosofia de Kant, segundo a qual os
resultados da Filosofia devem ser provados no domínio moral e político, ou seja, no campo das relações
humanas em geral, e devem constituir um instrumento de progresso nesse campo. É também à experiência
inter-humana que Dewey se refere para submeter à prova resultados da Filosofia, ou seja, propostas que ela
formula para a conduta de vida inteligente. Por outro lado, o existencialismo de Heidegger, embora não planeje
pôr à prova os resultados de suas análises, toma os dados desta análise na existência cotidiana comum, naquilo
que acontece entre os homens “acima de tudo e na maioria das vezes”. Finalmente, podemos inserir nesse
mesmo panorama a Filosofia considerada como análise da linguagem, que discerne nesta o fato intersubjetivo
fundamental e, portanto, na aclaração e na retificação da linguagem o instrumento mais apto a eliminar
equívocos e a retificar relações intersubjetivas. Esta pelo menos pareceria a significação mais importante de tal
Filosofia. Mas não se tem essa significação quando ela é entendida simplesmente como “terapia”, cujo objetivo
é livrar das dúvidas (consideradas fictícias) produzidas pela filosofia. Neste caso, uma vez que ninguém, salvo
o interessado, pode julgar se está suficientemente “curado”, a prova a que se submeteria a Filosofia teria como
campo a vida privada do indivíduo.