Verdades claras e perfeitas, nenhum homem as vê ou … · muita ciência para matar tantos homens,...

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Palas Athena Rua Leôncio de Carvalho, 99 – Paraíso - São Paulo - SP - Tel (11) 3266 6188 www.palasathena.org.br O Paradigma 1 “Ocidental e Cristão” Verdades claras e perfeitas, nenhum homem as vê ou as conhece. Tudo é questão de opinião. Xenófanes (560-478 a.C.) Durante a antiguidade clássica, a civilização grega utilizou o termo Paidéia 2 para designar o conjunto de virtudes que deviam ser cultivadas pelos homens que aspiravam ao bem para si e para o mundo. A Paidéia grega habilitava os indivíduos a viver juntos, respeitando as diferenças e possibilitando a soma de excelências para realizar o bem comum. Com esse mesmo espírito o mundo latino cunhou o termo Humanitas 3 para designar a conduta do homem que, combinando virtudes e conhecimentos, manifestava bondade e cortesia, demonstrando esmero e elegância no seu agir 4 . Revelando alguém que é senhor de suas paixões e tudo quanto faz, o faz com medida e beleza. De forma semelhante, o termo Cultura é utilizado na modernidade para fixar na memória o que cada sociedade produziu de significativo e perdurável, determinando identidades pelas quais as reconhecemos, e designa o complexo conjunto de códigos e padrões que regulamentam as relações coletivas de um grupo específico e suas interações sociais. A palavra cultura possui a mesma raiz que culto e cultivar, circunscrevendo o agir de homens que cultivam valores, que prestam culto ao que é alto 5 . Nesse sentido quando se fala da cultura “ocidental e cristã”, está se designando o conjunto de valores que são utilizados por nosso tempo para sentir e pensar o mundo. Este paradigma foi se constituindo através de duas vertentes principais. A primeira delas teve suas raízes na Grécia, e posteriormente, na conseqüente matriz greco-romana, sendo chamada de “ocidental” por firmar sua identidade tendo como referência os valores sustentados nas culturas orientais 6 . É importante sinalizar que o termo “ocidente” não sinaliza uma região geográfica relativa, e sim, uma cosmovisão incorporada por uma comunidade, isto é, um particular estado de espírito. 1 Do gr, parádeigma. Modelo, padrão, que por períodos orientam o desenvolvimento dos modos de pensar e de agir. Um paradigma é uma estrutura que gera modos de pensar que por sua vez gera filosofias, crenças religiosas, ciências e artes. 2 Inicialmente a palavra “paidéia” (de paidos, criança) significava “educação de meninos”, muito longe do elevado sentido que a palavra adquiriu mais tarde, no sentido de valores que caracterizavam o humano por excelência, tendo no conceito de Justiça sua fundamentação final. 3 Humano, isto é, feito de húmus, de solo, barro, terra, de pó, origem do termo humildade. 4 Mostrando refinamento nos modos e gestos. 5 Daí, palavras como altar, lugar onde se cultua o alto, e exaltar, isto é, mostra fora o que possui dentro. 6 Negando-os ou afirmando-os.

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Rua Leôncio de Carvalho, 99 – Paraíso - São Paulo - SP - Tel (11) 3266 6188 www.palasathena.org.br

O Paradigma1 “Ocidental e Cristão”

Verdades claras e perfeitas, nenhum homem as vê ou as conhece. Tudo é questão de opinião. Xenófanes (560-478 a.C.)

Durante a antiguidade clássica, a civilização grega utilizou o termo Paidéia2 para designar o

conjunto de virtudes que deviam ser cultivadas pelos homens que aspiravam ao bem para si e para

o mundo. A Paidéia grega habilitava os indivíduos a viver juntos, respeitando as diferenças e

possibilitando a soma de excelências para realizar o bem comum.

Com esse mesmo espírito o mundo latino cunhou o termo Humanitas3 para designar a

conduta do homem que, combinando virtudes e conhecimentos, manifestava bondade e cortesia,

demonstrando esmero e elegância no seu agir4. Revelando alguém que é senhor de suas paixões

e tudo quanto faz, o faz com medida e beleza.

De forma semelhante, o termo Cultura é utilizado na modernidade para fixar na memória o

que cada sociedade produziu de significativo e perdurável, determinando identidades pelas quais

as reconhecemos, e designa o complexo conjunto de códigos e padrões que regulamentam as

relações coletivas de um grupo específico e suas interações sociais.

A palavra cultura possui a mesma raiz que culto e cultivar, circunscrevendo o agir de

homens que cultivam valores, que prestam culto ao que é alto5.

Nesse sentido quando se fala da cultura “ocidental e cristã”, está se designando o conjunto

de valores que são utilizados por nosso tempo para sentir e pensar o mundo. Este paradigma foi se

constituindo através de duas vertentes principais. A primeira delas teve suas raízes na Grécia, e

posteriormente, na conseqüente matriz greco-romana, sendo chamada de “ocidental” por firmar

sua identidade tendo como referência os valores sustentados nas culturas orientais6. É importante

sinalizar que o termo “ocidente” não sinaliza uma região geográfica relativa, e sim, uma

cosmovisão incorporada por uma comunidade, isto é, um particular estado de espírito.

1 Do gr, parádeigma. Modelo, padrão, que por períodos orientam o desenvolvimento dos modos de pensar e de agir. Um paradigma é uma estrutura que gera modos de pensar que por sua vez gera filosofias, crenças religiosas, ciências e artes. 2Inicialmente a palavra “paidéia” (de paidos, criança) significava “educação de meninos”, muito longe do elevado sentido que a palavra adquiriu mais tarde, no sentido de valores que caracterizavam o humano por excelência, tendo no conceito de Justiça sua fundamentação final. 3 Humano, isto é, feito de húmus, de solo, barro, terra, de pó, origem do termo humildade. 4 Mostrando refinamento nos modos e gestos. 5 Daí, palavras como altar, lugar onde se cultua o alto, e exaltar, isto é, mostra fora o que possui dentro. 6 Negando-os ou afirmando-os.

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A segunda vertente introduziu os princípios sapienciais do Cristianismo7, contribuindo com

seus valores para conformar o Espírito de Ocidente.

As fantásticas qualidades dessas duas vertentes alicerçaram o progresso das inúmeras

culturas que compõem a Civilização Ocidental, no entanto, a razão de Atenas e fé de Jerusalém se

excederam prontamente nas suas competências, exigindo obediência absoluta para suas

respectivas leituras da realidade8.

As conseqüências dos abusos e excessos da razão deram lugar a falsas idéias de

progresso, enquanto que os da fé geraram crenças mal assimiladas.

Os “racionalismos” e “sacerdotalismos9” decorrentes dessas posturas abusivas gestaram

conflitos infindáveis que se perpetuam até o presente.

A gênese dos racionalismos tem sua origem na tendência de inferir que os discursos

construídos pela razão são as únicas explicações possíveis e aceitáveis sobre a realidade do

mundo.

Por sua vez, dando destaque aos aspectos exteriores da religiosidade, em detrimento da

interioridade e da espiritualidade, configuram os sacerdotalismos que substituem os valores da fé

por crenças históricas. Um exemplo ilustrativo sobre as falsas idéias de progresso, ou do “contínuo

progresso” da humanidade pode ser avaliado pelo número de pessoas mortas durante conflitos

bélicos:

7 Seria mais correto dizer, os valores das tradições judaico-cristãs. 8 Como continua acontecendo até os dias de hoje. 9 Ou “clericalismos”.

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Do século I ao século XV, foram mortas quatro milhões de pessoas. No século XVI, dois milhões.

No XVII, seis milhões. No XVIII, sete milhões.

No XIX, 19 milhões. No século XX, 111 milhões (até agosto de 2000).

Fonte: Washington Post – Ilustração: Quino

Jacques Derrida10, manifestando sua preocupação pelo mau uso da razão, afirmou que

deveríamos multiplicar esforços para “salvar sua honra”, no sentido de impedir sua utilização para

justificar o injustificável11.

Paul Valéry12, desiludido com o mau uso da inteligência escreveu: “...sem dúvida foi preciso

muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens e aniquilar tantas cidades em tão

pouco tempo13”.

10 Filósofo argelino desconstrutivista. (1930-2004) 11 Einstein, utilizando sua fina ironia diz: “Existem dois infinitos, o Universo e a estupidez humana, mas não estou seguro enquanto ao Universo”. 12 Pensador e poeta. (1871-1945) 13 Em sua opinião, dois eram os perigos que ameaçavam o mundo: o racionalismo impondo sua ditadura, tanto quanto a desordem que o dilui.

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Hannah Arendt14, observando a utilização da razão como algo totalmente desligado de

qualquer instância superior a ela mesma, diz que vivemos tempos em que “os maus perderam seus

temores e os bons suas esperanças”, sinalizando que pelo fato de participarmos duma sociedade

de massas, delegamos nossas responsabilidades individuais para um coletivo impreciso e

medíocre. Segundo ela, quando os avanços tecnológicos não estão acompanhados por avanços

semelhantes no campo da ética, se transformam em regressos.

A racionalidade, quando mal utilizada, age como uma sombra tenebrosa que obscurece a

inteligência, provocando fontes de violência, de terror e coerção. As brutalidades perpetuadas em

nome da paz, o imagético da guerra justa, a “batalha final”, os estados de exceção, são alguns

exemplos entre muitos outros, dos mecanismos pelo qual o mal e o sofrimento se perpetuam.

Veríssimo – Estadão

O mal intelectual se infiltra como um veneno silencioso, e se transforma em um mal da alma,

facilmente reconhecido por se manifestar como insensibilidade para o sofrimento dos “outros”, para

finalmente se transformar em um mal social.

Definições... Filantropo é quem esta bem unicamente se ou outros também estão bem. Misantropo é aquele que só está bem quando os outros estão mal. Egoísta é quem não se importa se os outros estão bem o mal, contanto que ele esteja bem.

14 Filósofa contemporânea. (1906-1975)

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Expressando seu próprio desconforto, Walter Benjamin15 escreveu: “Existe um quadro de

Klee16 chamado Angelus Novus representando um anjo que parece querer afastar-se de algo que

encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo

da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde nós vemos uma

cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre

ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os

fragmentos. Mas uma tempestade sopra no céu e prende-se em suas asas com tanta força que ele

não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira

as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos

de progresso”.

Herbert Marcuse17 também manifestou seu desagrado em Cultura e Psicanálise, afirmando

que “á dois tipos de conceito de progresso que caracterizam o período moderno da civilização

ocidental. De acordo com um deles, o progresso é definido quantitativamente, devendo ser

entendido como o desenvolvimento que possibilitou o aumento dos conhecimentos e as

capacidades humanas, visando à dominação da Natureza. O resultado dessas iniciativas foi o

aumento das necessidades humanas e também dos mecanismos para satisfazê-las. A questão que

permanece em aberto é se esse progresso contribui igualmente para o aperfeiçoamento humano,

possibilitando uma existência mais livre e feliz. A esse conceito quantitativo de progresso chamado

de técnico podemos opor-lhe o conceito qualitativo, tal como foi elaborado nas filosofias idealistas

(...).

Nelas, o progresso consiste na realização da liberdade humana e da moralidade. (...) O

resultado do progresso, neste sistema, consiste na humanização progressiva dos homens, no

desaparecimento da escravidão, do arbítrio, da opressão e do sofrimento. (...) Mas, por outro lado,

existe uma conexão intima entre o quantitativo e o conceito qualitativo do progresso, em vista que o

conhecimento de técnicas parece ser precondição de todo avanço humanitário. Dito com outras

palavras, a ascensão da humanidade pressupõe o progresso técnico, isto é, um alto grau de

domínio da Natureza por meio do qual as necessidades humanas poderiam ser satisfeitas de

maneira cada vez mais completas. No entanto, o progresso técnico não leva automaticamente ao

progresso humanitário. Para uma correta avaliação, precisaríamos saber de que modo à riqueza

social é distribuída e a serviço de quem são empregados os crescentes conhecimentos adquiridos”.

15 Filósofo, crítico literário e ensaísta. (1892-1940) 16 Paul Klee, pintor alemão nascido em Suíça de estilo abstrato. (1879-1940) 17 Sociólogo e filósofo alemão pertencente à Escola de Frankfurt. (1898-1979)

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Para um observador imparcial, as feiúras do “progresso” são mais que evidentes e os

poderes pretensamente infalíveis da racionalidade são cada vez mais questionados. O sonho de

poder ter controle total sobre os acontecimentos se esfuma, pois sem um herói messiânico para

nos salvar, ou sem encontrar a quem culpar por nossos males, os acontecimentos parecem

incontroláveis, exatamente o que mais teme a razão.

Considerações sobre as crenças “mal assimiladas”:

Nunca encontrei um único caso – em pessoas com mais de trinta anos – em que o problema não

tivesse suas raízes numa questão religiosa mal resolvida. Carl Jung

O filósofo espanhol Ortega y Gasset diz que “Nas crenças nós vivemos, movemo-nos e

somos18”, pois a seu entender, a superfície racional mascara infinidade de crenças. Também é

importante observar que a modernidade utiliza à religião como um adorno exterior, atendendo

necessidades ou conveniências psicológicas, e que na maioria dos casos, a identidade religiosa é

o resultado de heranças histórico-culturais19.

O termo “religião” é comumente utilizado para circunscrever práticas ritualísticas que

obedecem ao sentido expresso pela palavra latina religare, isto é, na função de re-ligar, de voltar

a unir o que está separado20. No entanto, desde um ponto de vista transcendentalista21, qualquer

pretensão de unir o Ser com o Não-ser, o finito com o infinito, o tempo com a eternidade, o

contingente com o necessário, o aparente com o absoluto, etc., beiraria com o mais completo dos

absurdos. Todavia, desde um ponto de vista imanentista22, não haveria nenhuma necessidade de

unir o que nunca esteve separado, portanto, também seria uma tarefa inútil.

“Julgando as árvores pelos frutos que produzem”, as páginas da História testemunham o

fracasso sistemático das religiões em unir o que for, pois a maioria delas são exemplos de

fragmentação e de dissidências infindáveis23.

18 Pondo em dúvida a definição aristotélica que afirmava ser os homens “animais racionais”. 19 Isto é, por fideismo. Do latim fide, fé. Por anteposição da fé aos argumentos que constrói a razão. 20 Deus e os homens, o espírito e a matéria, etc. 21 Considera o mundo sobrenatural como a extrema realidade e o natural como uma mera ilusão destinada ao nada. 22 Considera que a divindade está presente em todas as coisas visíveis e invisíveis. 23 A título de exemplo, existem mais de 1400 igrejas cristãs, todas elas autodenominadas “autenticas e verdadeiras”.

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O filósofo Marco Túlio Cícero, (106-46 a.C.) afirmou que o termo religio deriva de relegere,

com o significado de “consideração cuidadosa24”. A discussão etimológica gira sobre se a palavra

religio derivaria de religare ou de relegere, pois ambas têm a mesma raiz: legere. No latim, o termo

legere possui o significado de “escolher”, “eleger”, “juntar”, “apanhar”, assim, o termo legere tem a

conotação de “ler25”. Se a observação de Cícero é procedente, o significado correto do termo

religião seria “atenção escrupulosa, consciência, alta consciência, dever importante, sentimento

religioso, piedade, veneração”.

Quino

As conseqüências da falsa idéia de progresso e das religiões mal assimiladas

O sentimento de crise

Se a miséria da nossa pobreza for devida,

não às razões da natureza mas de nossas instituições, grande é nosso pecado. Charles Darwin

24 Conjunto de obrigações que nenhum homem em nenhuma circunstancia deveria negligenciar. 25 As pessoas juntam, escolhem ou reúnem as letras de um texto, uma a uma, é assim lêem.

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A palavra “crise” é utilizada para designar declínio, desgaste, conflito, perda de energia,

decadência, e é desde os tempos de Heráclito até o presente, estando associada à maioria dos

juízos feitos sobre a sociedade e o mundo, impregnando o ar com uma desagradável sensação de

dolo, de dilaceramento, de intranqüilidade, de viver tempos difíceis.

Dadas as enormes distâncias que existem entre o que cada ser humano é capaz de idealizar e

os fatos concretos, as crises são uma presença constante que agem como indesejáveis

acompanhantes.

A capacidade de poder imaginar a todo momento circunstâncias melhores às vividas, e a não

aceitação passiva das contingências do destino são reveladoras da grandeza do espírito humano

que, imaginando constantemente alternativas superiores, produzem as necessárias corretivas dos

rumos26.

Faz 2500 anos atrás, Confúcio ensinava:

“Se o indivíduo está mal, estará mal sua família; se as famílias estão mal, estarão mal as províncias. Quando as províncias andam mal, estará mal o Estado, se o Estado está mal, a sociedade toda encontrará dor e inquietação. Mas, se o indivíduo estiver bem, as famílias também estarão bem. Estando bem as famílias, assim estarão as províncias. Estando bem as províncias, o Estado também estará bem, então os homens encontrarão a felicidade e o progresso”.

26 Nesse sentido, as crises agiriam como avisos para a consciência, requerendo os cuidados pertinentes. Assim como a dor de um dente é um aviso que leva a tomar providências e salvar o dente, as dores da alma, quando devidamente atendidas, podem “salvar” a existência, obrigando a revisar as premissas com as quais nesse momento se interpreta o sentido da vida.

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Mas, como fazer para que os indivíduos estejam bem?

Em vista das experiências históricas, poderia se afirmar que de nada valem as mudanças

externas quando não são acompanhadas de mudanças internas. Para que elas aconteçam, o

socrático “Conhece-te a ti mesmo” continua vigente, sendo necessário e de extremo valor para

dizer quem é que está em crise. Ao mesmo tempo é conveniente ponderar que não existe um método único, idêntico e válido

para todas as pessoas. Cada indivíduo deve realizar sua singularidade pelo caminho que lhe é

próprio, tomando consciência de que viver significa estar no humano. Nesse entorno, cada

indivíduo não é apenas ele mesmo, pois ele participa dos outros, e de um modo misterioso, carrega

consigo uma parte dos que vivem, dos que já viveram, e ainda, dos que virão.

Também é importante ponderar que o que costumeiramente chamamos de civilização está

constituído por fatos absurdos, e que quiçá é tempo de renunciar à clássica definição aristotélica

que agrupava todos os seres humanos como sendo de “natureza racional”, reconhecendo que

nossa espécie faz esporádicos usos dela, mas não o faz sempre, nem continuamente.

Um dos elementos distintivos da racionalidade é refletir sobre o que se refletiu, “prestando

contas” sobre a lógica de nossas atitudes e comportamentos. A conduta racional se caracteriza pelo

exercício da disjunção, isto é, dividindo em duas partes o que se examina para determinar as

diferenças entre os componentes, ajustando oposições, procurando o divergente e o coincidente,

impondo a análise27 das questões apresentadas. Nesse sentido, a espécie humana é a única capaz

de dividir as coisas em boas e más, isto é, de escolher e outorgar um valor as coisas que examina

por distinções que ela mesma cria28.

No entanto, pelo fato que toda vez que se consegue cortar a cabeça de uma pergunta, no

lugar nascem duas, é muito difícil chegar a um conhecimento definitivo. De fato, a Vida sempre

troca às respostas por novas perguntas, e a aparente “solução” para uma determinada questão traz

consigo outras perguntas que se desdobram, constituindo os infindáveis labirintos da

racionalidade29.

27 Do grego, análysis, dividir, separar, desagregar em partes. 28 O Bem e o Mal, tal qual são concebido pelos juízos da razão não existem na Natureza. 29 A título de exemplo, quando Arquimedes diz: “Dai-me um ponto fixo e moverei o mundo”, esta questão hipotética sugere que não é impossível mover o mundo, mas isso “oculta” a impossibilidade de se encontrar um único ponto fixo num Universo em que tudo flui.

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Quino

A crise vivida por Eça de Queiros em 1871

“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja des-

mentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens

públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na

miséria. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas idéias

aumenta a cada dia. A ruína econômica cresce, cresce, cresce... A agiotagem explora o juro. A

ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga po-

lítica alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação.

Diz-se por toda a parte: O país está perdido!”

A crise vista por Roberto DaMatta30 em 2007

O enfraquecido otimismo do “progresso continuo” prometido para o século XX, o fracasso do

“céu que seria construído na terra”, volta a ser vigoroso no alvorecer do século XXI. Um novo

messianismo ressurge transvestido nas promessas da globalização financeira. Finalmente, todas as

mazelas serão derrotadas pelo neoliberalismo capitalista. No entanto, o que já se entrevê, é a

Terra deixando de ser mãe generosa para ser a propriedade privada de Estados nacionais e de

companhias multinacionais. O planeta inteiro devastado pela nova religião do consumismo está

dividido entre dois blocos representativos do bem e do mal, isto é, entre ricos e pobres, entre

liberdade e submissão, entre “nosso” Deus e o “deles”, deixando em todo lugar, o rasto inigualável

da morte e da destruição reinando absolutamente.

30 Roberto DaMatta, é antropólogo e colunista do jornal Estado de São Paulo.

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Caro leitor: Por vezes, o que costumamos chamar de progresso está muito mais perto de uma

lógica de poder que de uma demanda de universalidade, corroborando que os avanços cognitivos

não são proporcionais ao progresso da sociedade. É importante participar, refletir e dialogar em

torno das experiências com que nos oferta a vida, criando antídotos contra tudo o que nos

desumaniza, lutando sempre por uma cultura comprometida com a convivência, com a legitimação

da diversidade e com o espírito da solidariedade.

Sem dúvidas que seria prazeroso dizer “que Deus escreve certo por linhas tortas”, como

gostaria a Fé, mas é muito importante perceber que a partir do momento em que os homens foram

“expulsos” da terra pelos excessos do transcendentalismo, e também do céu, pelo materialismo

existencialista, não restou outra opção a não ser viver acuados em si mesmos.

Sem conseguir transitar com segurança pela terra do sensível, nem pelos caminhos de

esperança que prometia o céu, o solipsismo (estar só consigo mesmo) é o único refugio disponível.

Com plena consciência dos perigos que encerram todas as generalizações, é lícito observar

que as religiões se transformaram em crenças que retiram as poucas alegrias do mundo,

“celebrando” ritos que proclamam a ausência da divindade, jamais a sua presença.

Por sua vez, a razão excedida, teima em justificar o injustificável, dividindo o mundo com linhas

imaginárias chamadas “fronteiras, nacionalidades, raças, mundos, condições sociais,” e tudo isso

permeado por práticas predatórias e suicidas. Em definitiva, racionalismos e clericalismos

envolvem as inteligências com suas grandes mentiras, e como já não sabemos o que perdemos,

também não sabemos o que devemos procurar.

Questionar o monopólio desses dois extremos, principalmente quando se percebe que ambos

são incapazes de suportar divergências em relação a seus pontos de vista, pode ser um corajoso

passo na conquista da liberdade no pensar.

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Fale sobre estas coisas com sua família, com seus colegas de escola, do trabalho, do clube,

no bar, ao final, todos são bons interlocutores daquilo que faz crescer internamente e enobrece.

Só é bom o conhecimento que nos torna melhores.

Sócrates

Para onde nos leva o progresso?

Excesso de conhecimento e técnica - que costumamos atribuir ao progresso - pode

significar, paradoxalmente, a debilidade de nossa orgulhosa civilização global. Nietzsche fala do

homem como um animal em contínuo acabamento, através da produção de cultura. Diante do re-

lâmpago, em alguns milênios, ele foi capaz de passar da oração ao pára-raios. A técnica inventou

maravilhas na eletrônica, no transporte e na comunicação, mas também nos tornou dependentes

de próteses sem as quais não sabemos mais viver.

Na Antiguidade Grega, a filosofia competia com a arte da tragédia. Platão não apreciava a

tragédia, pois a sabedoria dessa arte consistia em deixar certas coisas na penumbra. Afinal, para

os platônicos, só se chega à tragédia por insuficiência de conhecimento e lógica. No entanto, não

teria Édipo vivido melhor sem conhecer seu terrível passado? O mito de Prometeu fala que ele

trouxe o fogo ao homem, possibilitando sua escalada cultural. Na versão de Eurípides, porém, os

homens ficavam inativos em suas cavernas porque conheciam a hora de suas morte. Prometeu

resgatou-lhes o esquecimento, permitindo que - ainda que soubessem que iriam morrer - ig-

norassem quando. Além de livrá-los daquele paralisante conhecimento, deu-lhes o fogo para ajudar

a florescer seu espírito de trabalho.

Na verdade, filósofos contemporâneos como Rüdiger Safranski e Roger Shattuck se per-

guntam até que ponto o homem pode afastar-se de sua primeira natureza por ação da cultura, sua

segunda natureza, sem entrar em oposição autodestruidora com a primeira. A tecnologia, por

exemplo, permitiu transformar nosso potencial agressivo numa força destruidora do equilíbrio

econômico e ambiental do planeta, gerando a sensação da angústia de um potencial catastrófico

de dimensões globais, que tem como agente o próprio homem.

Se, de um lado, não podemos negar os benefícios da difusão contemporânea das ciências e

da medicina no prolongamento da vida humana, o excesso de tecnologia abala o delicado sistema

de proteção que envolve a psique humana. Antes, o ocorrido em lugar distante tinha tempo de

revestir-se com interpretações e elaborações. As notícias da queda da Bastilha e do trágico

terremoto de Lisboa foram sabidas meses após em outros países.

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Hoje, tudo é instantâneo Mas como bem lembra Safranski, “quem se dirige depressa demais

a qualquer lugar não está em nenhum lugar”. Quando terminavam longas marchas a pé, os

primitivos da Austrália sentavam-se por algumas horas para dar tempo à alma de chegar. Em

outros tempos, viajar era uma experiência da qual se retornava transformado. Hoje, parece que

ficamos no mesmo lugar. A mobilidade global uniformiza aeroportos, hotéis, redes de lanchonetes

e outdoors. O local também se pasteuriza em global.

Próximo e distante se mesclam, as coordenadas individuais de espaço e tempo se

perturbam. O cenário global de ameaças, --o aquecimento global, a manipulação genética, a

propagação da AIDS, a camada de ozônio ou o equilíbrio dos fundos de pensão-- tudo invade

nosso mundo imediato, crescendo dramaticamente a distância entre nossa intimidade com o global

e nossas possibilidades de atuação. O superego freudiano parece insignificante em comparação

com esse outro imenso superego que nos responsabiliza diretamente pelo futuro do planeta.

Antigamente, sacerdotes e ideologias nos ajudavam a suportar essa situação. Hoje, sobram-

nos o esoterismo vazio e os contraditórios especialistas globais. Uns provam que o homem é

responsável pelo aquecimento global, outros garantem que não; uns dizem que telefone celular

pode causar câncer e problemas de DNA; outros juram que é bobagem. O mesmo para os efeitos a

médio prazo dos alimentos transgênicos e dos raios X. Enquanto isso, John Abramson,

conceituado médico americano professor de Harvard, denuncia as manipulações da indústria

farmacêutica para induzirem a população a consumir remédios desnecessários e que podem fazer

mal. Agora nossa vida depende totalmente das próteses tecnológicas. Um médico não mais diag-

nostica sem sofisticados equipamentos que, por custarem muito caro, inviabilizam os planos de

saúde da maioria.

O indivíduo não sabe mais viver sem telefone celular e Internet. Temos saídas? Usando as

antigas metáforas das florestas, há que criar clareiras na mata. Os gigantes de Giambattista Vico

moravam em bosques cerrados até que terríveis relâmpagos abriram um claro; com um pedaço de

céu aberto, puderam começar a se integrar na cultura.

Em Discurso do Método, Descartes dá o sábio conselho ao viajante que se perdeu na flores-

ta: caminhe sempre em linha reta; por mais longa que seja a direção, em algum momento você se

livrará dela.

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Hoje a segunda natureza do homem é que se transformou numa densa floresta e o processo

se inverte; para sobreviver e não se tomar totalmente dependente o homem precisa manter-se

crítico e lúcido: ao mesmo tempo em que abre constantemente clareiras para poder respirar, deve

manter um senso de direção que lhe permite achar uma saída. O segredo está em utilizar os

aparatos tecnológicos com inteligência, mas nunca transformar-se em escravo deles.

Só poderemos aproveitar das tecnologias com sabedoria se soubermos viver sem elas; e se - na

contramão do globalismo - soubermos cultivar menos rapidez, espaço para o capricho, sentido do

local, capacidade para desconectar e para não estar sempre de prontidão. Em suma, cercados

pelo bosque do progresso, temos de manter um olhar no claro do céu. Texto de Gilberto Dupas publicado no Estado de São Paulo, 8 de Janeiro de 2005

Ocidente Oxímoro31

Há uma coisa neste mundo que você jamais deve esquecer-se de fazer. Cada ser

humano vem a este mundo com uma missão específica. Essa missão é seu propósito e cada um

tem a sua. Se você se esquecer de tudo o mais, menos disto, não há com que se preocupar. Se

você se lembrar de tudo o mais e se esquecer de sua verdadeira missão, então não fará nada em

sua vida.

Rumi

31 Figura da linguagem que reúne duas preposições antagônicas, por exemplo: “covarde valentia”, “culpa inocente”, “silêncio eloqüente”, etc. para chegar a um terceiro sentido (paradoxismo) que exige entender além do que se entende comumente por essas palavras.

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“Quisera que estas vacas me pudessem ensinar suas sabedorias”. Com este estranho

pensamento, Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, admite que todos os animais são sábios e

razoáveis, perfeitos em seu gênero, não precisando ser de um modo diferente, pois agem duma

maneira que não é possível censurar, não precisando progredir nem se transformar em outra

coisa. Mas, contrariando esses modos de ser, a espécie humana se mostra incompleta e

insuficiente em todo momento, se auto-exigindo condutas e comportamentos para finalizar-se

plenamente.

Assim, enquanto os animais são, os homens procuram desesperadamente como ser, alimentado à esperança de conseguir se realizar totalmente. As tartarugas, por exemplo, apenas

nascem e já sabem o que fazer, correndo para o mar. Os homens nascem e correm para a morte

sem saber por que e para que nasceram, ao mesmo tempo, detestando um encontro com ela. No

mesmo livro, Nietzsche fala das metamorfoses pelas quais deve passar a consciência para

alcançar a perfeição desejada e a sabedoria subseqüente.

A primeira mudança consiste em se descobrir como homem camelo, como alguém que

assumidamente carrega o peso de suas responsabilidades em todas as circunstancias de sua

vida. Esporadicamente, se rebela tentando fugir delas, mas aonde ele for, continuará carregando o

peso dos compromissos aos quais está atrelado, mantendo sua sujeição.

Em um segundo momento, transitando por outro patamar, nasce na consciência do individuo

o homem leão. Neste estagio o espírito “devora os falsos mestres”, isto é, os arquitetos das

morais de fachada, da mediocridade, conquistando a liberdade de ser e de pensar segundo sua

própria singularidade.

No final, sempre segundo Nietzsche, a terceira é última mudança transformadora sinaliza o

nascimento do super-homem no homem ou o homem criança, encarnando a superação de tudo

quanto foi falsamente dado à consciência como certo, restabelecendo neste estagio a inocência no

pensar e no agir.

Durante a primeira metamorfose, a insensatez do mecanicamente repetitivo toma conta de

tudo produzindo fracassos sucessivos e ruínas históricas. No segundo momento, há libertação

dos sistemas tranqüilizadores, das anestesias da consciência, de tudo quanto produz torpor e

letargia, libertando o olhar para ver sem as estreitezas dos lugares comuns da existência.

No último estagio, correspondendo à iluminação dos místicos, o pensamento deixa de ser

cumulativo e desagregador. A partir desse momento da consciência, a sabedoria e o sábio não se

distinguem entre si.

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Caro leitor, a vida não é significativa, nem insignificante. Os significados, ou sua falta, são

concedidos e determinados pelos valores que lhe atribuímos. Habitamos uma realidade em que

faz sentido fazer sentido, mas para que a vida tenha sentido precisa de um propósito. Como não

nascemos com sabedoria, nos mesmos temos de encontrá-la numa jornada que ninguém pode

fazer em nosso lugar.

Com freqüência, quem encontra a “ponta” de um caminho costuma recomendá-lo

prontamente antes haver-lo percorrido na sua totalidade. É assim que nascem os exércitos dos

autoritários, dos que sem ser exemplos de moral, se arbitram como juizes da moral alheia.

Cada ser humano tem o direito de buscar o sentido da vida, a alegria de viver, de ser feliz, e

é louvável querer que os outros também sejam felizes. No entanto, quando para conseguir esses

fins se utilizam ameaças apocalípticas, cuspindo sentenças com ar pontifical, cria-se uma enorme

distancia entre o desejar o bem do próximo e o “profetismo”, vanguarda da insensatez e da

intolerância. Catequizar, manipular, seduzir, ameaçar, seja isto por meio de crenças religiosas,

das terapias alternativas, das promessas do liberalismo capitalista ou pelo “mundo justo” das

esquerdas, mostram a obsessão dos que confessam suas carências, pretendendo dar por esse

meio, um sentido ao que por momentos pode parece absolutamente sem sentido.

Na mitologia grega, os deuses olímpicos reunidos deliberaram sobre o pior castigo que

poderia ser aplicado aos homens em conseqüência de suas sucessivas desobediências, para por

fim concluir que não haveria nada pior que fazê-los ver as coisas apenas como elas parecem ser.

Quando as cegueiras psicológicas acontecem se “padece” de escuridão, isto é, da falta de

discernimento. Dito com as palavras de Adélia Prado, isto é, como somente os poetas

conseguem dizer -- “Às vezes Deus me tira a poesia. Olho pedra e vejo pedra”, ou nas palavras

de Otto Lara Resende: “Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um

poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê

não vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas

não é. O que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como

um vazio. (...) O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tanto visto, ninguém vê. Nossos

olhos se gastam no dia-a-dia e ficam opacos. “É por aí que se instala no coração o monstro da

indiferença”.

“Multipliquei-me para sentir. Para sentir, precisei sentir tudo. Transbordei, não fiz senão extravasar-me. Despi-me, entreguei-me e há em cada canto de minha alma, um altar a um deus diferente”.

Fernando Pessoa

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A mitologia grega, a poetisa Adélia Prado, e também o escritor Otto Lara Resende,

priorizam a necessidade de desenvolver a capacidade de aprender a ver com um olhar que

propicie a compreensão do que se observa32.

A Dualidade: nota fundamental da Criação

“Todo o visível repousa sobre um fundo invisível;

o que se entende, sobre o que não se entende; “

“o que é tangível, sobre um fundo intangível.”

Novalis

Uma das questões mais difíceis de responder é o entendimento do modo pelo qual Física e

Metafísica seriam nada mais que os dois aspectos da mesma realidade33.

“Sem as polaridades não haveria condição humana. Todas as grandes cosmologias foram

permeadas por dualismos, e as sociedades as usam para compreender o mundo. Dia e noite,

inverno e verão, paraíso e inferno, mortos e vivos, natureza e cultura, homem e mulher, sagrado e

profano, esquerda e direita, alto e baixo, dentro e fora, preto e branco, pureza e impureza, velho e

novo, feio e bonito. A lista de alternâncias, cuja característica principal e a complementaridade e a

interdependência, não tem fim. A polaridade indica que um termo não existe sem o outro, que é o

seu exato oposto, ao passo que a complementaridade revela a interdependência34”.

Nas tradições judaico-cristãs, a “Árvore do conhecimento do bem e do mal” simboliza o

desenvolvimento dessa consciência dual, cujas decorrências psicológicas se ramificam até o

presente. Na prática, pensar é praticar maniqueísmo mental que consiste em “santificar” ou

“satanizar” cada uma dessas partes, produzindo os germens das consciências esquizofrênicas, (do

grego esquizo, separar e phrenos, mente) auspiciando as condutas que pretendem que um único

chapéu sirva para todas as cabeças.

32 Isto é, vendo-as como se fosse a primeira e a última vez. 33 Seguindo esse raciocínio, qualquer par de opostos também poderia ser interpretado como as duas faces da mesma moeda, isto é, o que aparece dá destaque ao que se ausenta; o fugaz, ao que permanece; o tempo, a eternidade; o fundo escuro, ao que é luminoso; o vazio a plenitude, e assim subsequentemente. 34 Roberto Damatta, Estadão, Caderno 2, 25/2/2009

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É importante destacar que esses comportamentos, nada inclusivos, são tão perniciosos

como os daqueles que vivem em estado de “independência” em relação ao corpo social, como se

fossem corpos estranhos dentro do organismo comunitário, não se firmando nem a favor nem

contra nada.

No clássico O Medo a Liberdade, Erich Fromm destaca como o entusiasmo das lutas para

viver sem constrangimentos, é trocado posteriormente pela agonia de uma liberdade que exige

compromissos e responsabilidades, que exige sair ao encontro dos outros e reconhecer-se como

parte da pluralidade humana.

Na direção contrária, nas tradições védicas, o termo Satsanga (Sat, verdade, sanga,

comunidade) designa as pessoas que somam suas forças para criar conexões capazes de reunir o

que a mente separa, estabelecendo pontes entre a ciência e a espiritualidade, entre o

conhecimento e a sabedoria, entre o moderno e o tradicional.

Este último modo inclusivo de ser e de estar no mundo, se origina da percepção de que os

afetos são mais importantes que os conceitos, pois agem como o Sol que derrama sua luz para

todos, ou ainda, como as flores matinais que perfumam o ar sem se perguntar se o caminhante

merece ou não o perfume...

Ocidente Oxímoro35

Nas crenças nós vivemos, movemo-nos e somos. Ortega y Gasset

A Cultura Ocidental foi chamada de oxímora, por possuir uma fase luminosa e uma outra

sombria, uma extraordinária capacidade inventiva, e ao mesmo tempo, um niilismo destrutivo, e por

ter todos seus valores atrelados a anti-valores, de tal modo que nenhum deles sobreviria sem a

existência do outro. Sabemos também que o próprio ato de pensar exige esses conceitos

opositivos, não sendo possível processar mentalmente nada que não tenha também sua

contraparte.

Assim, a “medida” da Cultura Ocidental “exige” a desmedida, protagonizando a proeza de

causar problemas para si mesmos e para os outros. Poderia se afirmar que nenhuma época reuniu

tanta fartura e ao mesmo tempo tanta fome, tanta violência e tantos desejos de paz, tanta

informação e tanta ignorância, tantas religiões e tantas desesperanças.

35 Figura da linguagem que reúne duas preposições antagônicas, por exemplo: “covarde valentia”, “culpa inocente”, “silencio eloqüente”, “profundamente superficial” para assim chegar a um terceiro sentido (Paradoxismo) que exige entender além do que se entende comumente por essas palavras.

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Todos os pares opositivos, raízes do devir, “obrigam” a escolher um lado das coisas, em

detrimento de outra, mas em todos os casos, as escolhas feitas coexistiram com o que não foi

escolhido, por estarem às dualidades tão intimamente ligadas entre si, como as sombras aos

objetos que as projetam.

Um dos traços mais característicos da condição humana é a capacidade de se distanciar de si

mesmo, de fazer referencias a si próprio, de se auto-pensar. A esta possibilidade, Sócrates

chamou de “dois em um”, no entendimento de existir uma consciência que permite que

dialoguemos com nós mesmos, podendo concordar ou não com o que pensamos. Sócrates

alertava que por essa condição estávamos condenados a viver em nossa própria companhia, e

que estar de acordo com nós mesmos era fundamental, pois, ao final, quem suportaria viver uma

vida em companhia de alguém com quem não se concordasse?