Verger

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PIERRE VERGER, O PAI DO SEGREDO  Agnes Mariano Sozinho, preparando a bagagem, ele olhou para os objetos caros à sua volta, as roupas elegantes, o seu carro esporte, e percebeu que não precisava de nada daquilo para ser feliz. Partiu levando apenas uma velha Rolleiflex - para relembrar das imagens que veria -, uma pequena Olivet ti - para contar as histórias - e a capacidade de enxergar beleza e digni dade em cada ser humano que atravessasse o seu caminho. E assim, querendo ser nada, tornou -se muito: um grande fotógrafo e pesquisador dedicado, autor de uma obra imortal. A sua longa  jornada começou aos 30 anos, quando ele abandonou a vida de playboy parisiense e saiu pelo mundo em busca de algo que não sabia o que era. Atravessou todos os continentes, passando por 38 países, mas foi quando desembarcou numa pequenina cidade da América do Sul que a sua vida errante começou a ganhar um rumo. Nesse lugar, ele fez grandes amigos, que se tornaram seus companheiros de farra, fé e estudos. Para nossa sorte, foi Salvador a cidade escolhida por Pierre Verger como seu novo lar e foi nós, o povo negro e mestiço da Bahia, os escolhidos por ele como sua nova família, a quem ele devotou, incansavelmente, seu trabalho e seu afeto.  Verger abandonou a escola aos 17 anos, mas como antropólogo e historiador autodidata, foi o mais importante pesquisador das relações África -Brasil do século XX. Não teve ambições artísticas, mas seu trabalho fotográfico até hoje impressiona. Abdicou do luxo parisiense pelo "ventinho" e tranqüilidade da Ladeira da Vila América, na Vasco da Gama, e nunca se arrependeu. Apesar de jurar que era agnóstico, tornou-se também um respeitado babalaô, um adivinho através do jogo do Ifá. A sua contribuição ao candomblé não tem paralelos: transportou de um lado ao outro do Atlântico tradições, objetos, mensagens. Guiou e orientou dezenas de pessoas. Para outros tantos, que conheceram suas fotos e livros, tornou - se um guru.  A receita de tanta produtividade e competência é simples. Como diz o escultor Mário Cravo Júnior, que o conheceu desde os primeiros anos na Bahia, "Verger fazia o máximo com o mínimo de recursos". Morava em pensões, comia em botecos, só dispunha de meia dúzia de peças de roupas, revelava seus geniais negativos num penico. Quando adquiriu uma casinha  

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pequena num bairro popular de Salvador, a mobiliou com uma cama rústica, um guarda-

roupa e estantes improvisadas com tábuas. Aí, vivia cercado por seus livros e papéis, seus

negativos e fotos, recebendo conhecidos e desconhecidos que o procuravam em busca de

informações, dinheiro, favores, sabedoria, orientação. 

Para ele, vida e trabalho eram a mesma coisa, pois conquistou o direito de só fazer o que

queria. Como ele mesmo dizia: "Tenho a faculdade de ver só as coisas que me interessam e

não ver as que não me interessam". Na verdade, ele nem gostava da palavra trabalho, pois

extraía muito prazer do que fazia e não perdia de vista que estava apenas tentando devol ver

aos seus amigos - o povo negro da África e da Bahia - o conhecimento que eles haviam lhe

conf iado. Amizades conquistadas ao longo de anos em que se alternava entre a Baía de

Todos os Santos e o Golfo do Benim (de onde veio a última grande leva de escravos para a

Bahia), ajudando a aproximar esses dois mundos. Pessoas que, para Verger, foram muitomais do que apenas modelos ou objeto de estudo. Foram seus amigos, vizinhos,

companheiros, os grandes amores da sua vida. Mas a sua lista de amigos e colaboradores é

eclética e inclui também artistas, intelectuais, empresários, pessoas de várias idades, raças e

países. 

A sua morte, em 1996, silenciou a todos que o cercavam. Afinal, a Fundação Pierre Verger

(FPV) era a sua própria casa e, os seus colaboradores, a sua família mais próxima. Em

2001, a hibernação terminou. A partir daí, a FPV começou a organizar uma série de eventos

e iniciativas que se prolongaram até o dia 4 de novembro de 2002 - quando Verger

completaria 100 anos, se estivesse vivo. De lá para cá, as exposições, palestras e

lançamentos de livros não pararam mais. Para quem não conhece ainda a obra e a vida de

Pierre Verger, é uma boa oportunidade de descobrir uma figura, no mínimo, intrigante. E,

para quem pensa que já conhece este misterioso intelectual, artista, viajante e místico, uma

boa chance de descobrir novas facetas de um homem descrito como desconfiado, reservado,

esquisito, mas que também sabia ser falante, gentil e brincalhão.  

VIVER VIAJANDO 

Semanas a bordo de um barco, enfrentando o oceano, dentro de vagões, carros, ou até no

lombo de um camelo. Verger experimentou o máximo do luxo e do desconforto para

aplacar a sua inquietude e encontrar uma razão para continuar vivendo. Foram 14 anos

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consecutivos em que viveu em busca de rostos, sons, sabores, histórias e lugares novos. O

mais impressionante é que nada foi programado, ele apenas seguia em frente, estava sempre

disponível e uma viagem ia abrindo as portas para a outra. Paris era a sua base, seu quartel-

general, onde ele fazia contatos e dispunha de um pequeno sotão para guardar seus

negativos. Até que veio a Segunda Guerra Mundial e, então, tudo mudou. 

Naqueles loucos anos da virada do século XX, nasceu Pierre Verger: 1902, em Paris. Seu

pai era empresário, dono de uma tipografia, o que proporcionava à sua família, de origem

belga, uma ótima situação financeira. Num ambiente burguês, cercado de primos, tios e

dois irmãos, vivia o inquieto Pierre, que foi duas vezes expulso da escola, por indisciplina:

do Liceu Janson de Sailly, em 1917, e da Escola Bréguet, em 1920. A partir daí, trabalhou

algum tempo na tipografia da família e prestou serviço militar durante um ano e meio.

Entre 1914 e 1918, a Europa viveu a Primeira Guerra Mundial. Na década de 20, o nosso herói levava uma autêntica vida de playboy, com direito a

corridas de carro, pilotando seu Amilcar esporte e férias em Deauville. Mas, conta o

próprio Verger, não se satisfazia com os valores desse ambiente: Nele me tinham ensinado

que havia duas categorias de pessoas. Aquelas cuja amizade era desejável cultivar, pois

representavam um capital-relação e aquelas cujo convívio e ligações deviam ser

desencorajados, devido ao pouco proveito moral ou material que delas se poderia esperar.

Tudo era sacrificado ao status aparente .

O ano de 1932 é um grande marco na vida de Verger. Ele perde sua mãe, o último parente

próximo que lhe restava: seu irmão Louis havia morrido em 1914, seu pai, em 1915, e seu

irmão Jean, em 1929. Não saí de casa, porque já não tinha mais casa , define ele. É

também nesse ano que Verger consegue a sua primeira Rolleiflex em troca de um

verascópio e um taxifoto da família - e que inicia as suas viagens. Dá a volta completa na

ilha de Córsega, à pé, com o fotógrafo Pierre Boucher, que o ensina a fotografar. Depois

visita a Rússia, junto com outros turistas que iam ao 15º aniversário da Revolução. No dia

do seu aniversário, quando completou 30 anos, decide que só viveria até os 40, para evitar

tornar-me um velho caduco . Em dezembro, a bordo de um cargueiro, parte para os mares

do sul, como passageiro da quarta classe.

A estréia de Verger como viajante foi bem ao estilo francês: a longínqua, exótica e colorida

Polinésia Francesa, no Oceano Pacífico. Ali, passou por várias ilhas, demorando-se mais no

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Taiti: Fiz a volta da ilha a pé , contou. A sua Rolleiflex já trabalha a pleno vapor, com um

interesse especial pelas figuras humanas e também dedicando atenção a objetos e texturas.

Verger descobre a beleza dos trópicos, os cheiros, sabores e cores da natureza exuberante,

mas encontra a todo instante os efeitos nocivos da ocupação francesa. Tenta um estilo ainda

mais radical e vai com um amigo - o pintor suiço Eugène Huni para a Ilha de Rurutu,

onde convivem com os nativos e moram numa choupana que eles mesmos constroem com

folhas de coqueiro.

Passado um ano, ele decide voltar à França, porque a sensação de que existia um vasto

mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo e fotografá-lo me levava em direção a

outros horizontes . Ao que tudo indica, o vasto mundo também desejava ser visitado por

Verger, pois tudo conspirava a seu favor. Paris torna-se um local estratégico onde faz

contatos que lhe possibilitam novas viagens. Em janeiro de 1934, quando volta do Taiti,procura o Museu de Etnografia do Trocadero (atual Museu do Homem), em busca de

permissão para fotografar objetos na Oceania e lá encontra parceria profissional, grandes

amigos (Métraux, Leiris) e um laboratório fotográfico à sua disposição. A partir daí 

iniciam-se também as parcerias com jornais, revistas (Paris-Soir, Daily Miror, Match) e a

participação em livros. 

Ainda em 1934, em fevereiro, numa rápida conversa com um jornalista que estava de

partida para realizar reportagens turísticas, Verger é convidado a unir-se ao grupo e dar a

volta ao mundo. Em três dias, já está em pleno Oceano Atlântico, a caminho dos Estados

Unidos. Atravessam o país inteiro de trem: ele assombra-se com os arranha-céus,

decepciona-se com a ausência de índios. Tomam outro barco rumo ao Japão, onde

encontram as casas de bambus com tatames, as mulheres cobertas de maquiagem com seus

tamancos de madeira, mas são constantemente vigiados e não podem vislumbrar a potência

industrial que começa a surgir. O próximo destino é a China. Encanta-se com Pequim:

largas avenidas, ruelas estreitas, seus templos, vários estrangeiros vivendo à maneira

chinesa , mas já é hora de voltar.

Infelizmente, não há espaço para narrar aqui todas as incríveis aventuras de Verger nesses

anos. Mas, quem estiver interessado, tem à disposição o livro 50 anos de fotografia , com

as fotos e comentários do próprio autor. Um aspecto interessante dessa fase da sua vida é o

modo como ele consegue passar de uma empreitada a outra: criatividade, iniciativa,

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despojamento, intuição e um bom anjo da guarda. Suas viagens nascem de encontros

casuais, desloca-se de bicicleta, oferece fotografias em troca de transporte, trabalha

temporariamente para jornais, museus, empresas e recebe ajuda até de um casal de

mecenas.

A fonte de renda mais constante era a Alliance Photo, uma cooperativa criada por ele e

mais quatro fotógrafos. Quem administrava e vendia as fotos do grupo era Maria Eisner.

Verger tinha a capacidade de conseguir espaço nos melhores lugares possíveis. Ele

publicava em revistas onde publicavam os melhores fotógrafos da sua época , explica a

pesquisadora Cláudia Possa, que está preparando uma tese de doutorado sobre essa época

da vida de Verger, na Universidade de Barcelona. Ela conta ainda que, quando estava em

Paris, além do grupo do Museu do Trocadero, Verger saía com os surrealistas, o grupo de

Jacques Prévert, que escrevia para o grupo Octobre, de teatro de vanguarda. Verger,inclusive, foi um dos poucos que fotografaram esse grupo . Cláudia lembra que Verger

estava dialogando com o desejo de uma época: Foram anos experimentais, todos eles se

dispuseram a experiências radicais. Faziam muitos esportes, arte, praticavam nudismo.

Todos viajavam, muitos foram à África. Viajar era uma religião, mas Verger foi o que mais

viajou: ele fez a opção de viver viajando .

Assim, de 1935 a 1946, Verger viaja e fotografa no interior da França, Itália (que o deixa

maravilhado), Espanha, Norte da África. Percorre a Argélia, Mali, Togo, Benim, retornando

por Níger, com direito a uma turnê em lombo de camelo na região dos tuaregues. Depois

Londres, Antilhas, Cuba, México, Estados Unidos (de novo) e China, testemunhando os

efeitos do conflito com o Japão. Segue para as Filipinas e a Indochina, onde hoje estão

Camboja, Laos e Vietnã. Lá, ficou tentado a tornar-se um monge budista e esquiou com o

imperador Bao Dai. No México, fotografou Trotsky morando na casa de Frida Kahlo, e foi

para Guatemala, Equador. No Senegal é apresentado a Théodore Monod, do Instituto

Francês da África do Norte- IFAN, em Dakar. Depois vem ao Rio de Janeiro, vai à

Argentina, Peru e Bolívia.

Surpresas desagradáveis também aconteciam, mas ele não desistia. Foi preso em Sevilha,

confundido com um espião alemão; roubaram sua mala num trem no México e quase

passou fome na Argentina. Com uma situação financeira freqüentemente precária; teve suas

fotos sabotadas no departamento fotográfico de um jornal e foi obrigado a servir ao exército

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francês em duas ocasiões. Mas ele não desistiu das viagens e nem da vida. Antes de

completar 40 anos, quando tinha decidido morrer, comprou um metro-de-costura e a cada

dia cortava um dos milímetros que marcavam o tempo de vida que lhe restava. No dia e

horário marcado, entretanto, ele estava providencialmente lendo A importância de viver ,

de Lin Yutang, e se deixou seduzir pela vontade de chegar ao final do capítulo. Assim,

suave e discretamente o momento fatídico havia passado , conta Verger.

CHEGAR À BAHIA 

Andando a pé ou pendurado em algum bonde, a qualquer hora do dia ou da noite, lá ia

Pierre Verger com sua Rolleiflex em punho. Pero Vaz, Itapuã, Pedra Furada, São Gonçalo,

Matatu. Nenhum bairro foi esquecido por ele, sempre interessado em conhecer mais um

beco, um bairro distante ou uma ladeira da sua adorada Salvador. Desde o primeiro dia emque desembarcou aqui, Verger começou a tecer uma profunda intimidade com a cidade. Até

o final da vida, gostava de desafiar seus amigos a lhe mostrarem um caminho que não

conhecesse. Desde o início ficou fascinado também com o povo que habitava esta cidade,

com a acolhida gentil, o carinho, a facilidade de se comunicar dos baianos. 

Estamos agora no ano de 1946. Depois de viver por quatro anos no Peru - período em que a

Europa vivia a Segunda Guerra Mundial -, Verger resolve tentar novamente vir ao Brasil,

que conhecia só de passagem. A Europa e Paris já não eram mais as mesmas. A guerra

mudou a visão de mundo das pessoas, fez com que todos se redirecionassem. Maria Eisner,

por exemplo, foi para os Estados Unidos. Ela era judia e quase tinha ido parar num campo

de concentração , relata a pesquisadora Cláudia Possa. Foi então, nesse momento de

redefinições para o mundo inteiro e principalmente para os europeus, que Verger chegou ao

nosso país, no dia 13 de abril. Ele ainda não sabia, mas sua vida estava prestes a ganhar um

rumo. 

De Corumbá, ele seguiu de barco e depois de trem para São Paulo. Na viagem tentam

roubá-lo novamente, mas o nosso herói já tinha aprendido a lição e livra-se do gatuno com

uma cotovelada no estômago. Em São Paulo, encontra-se com um conterrâneo, o

antropólogo Roger Bastide, que lhe fala da Bahia e sua influência africana, que ele já

conhecia através do livro Jubiabá, de Jorge Amado. O roteiro estava traçado então:

Salvador. Antes, foi necessário passar uns meses no Rio, em busca de emprego e visto de

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residência. Novamente teve sorte. Através de uma brasileira amiga de Métraux, Vera

Jordão, Verger consegue um contrato com a mais importante revista da época O Cruzeiro,

de Assis Chateaubriand. Uma colaboração que geraria cerca de 80 reportagens. As que

foram feitas na Bahia, com textos de Odorico Tavares.

Aquela foi a última viagem do Comandante Capela: cerca de dez dias, do Rio de Janeiro

para Salvador. As vantagens eram o preço da passagem - bem menor que a dos barcos mais

modernos - e a beleza do mar à noite, conta o antropólogo Waldeloir Rego, que também

chegou a viajar nesse barco. Mas ele era muito lento, movido a lenha. Eu paguei todos os

meus pecados quando fiz a viagem. E ainda tinha o exercício salva-vidas: vestindo coletes,

todos os homens saltavam dentro de um bote de borracha, em pleno oceano, pra treinar,

caso houvesse um acidente , conta ele, sem ter certeza se Verger passou ou não pelo tal

exercício. No dia 5 de agosto, o velho barco chega à cidade e uma euforia se espalha abordo. Na época, Verger não compreendeu o que acontecia, mas, anos depois, conta ele,

também passou a ser tomado pela mesma alegria toda vez que retornava de viagem à Bahia. 

Um companheiro de viagem fez questão de guiá-lo pelas vielas da cidade desconhecida até

o hotel mais simples o Chile onde Verger encontrou o quarto dos seus sonhos . Um

pequenino cômodo no topo do edifício, de onde descortinava toda a baía, as igrejas, casario,

porto, fortes. Encanta-se com a paisagem, os vizinhos, o samba-de-roda nas ruas, a cpoeira,

os passeios de bonde, os novos amigos. Dedicado, inteligente e discreto, numa cidade

hospitaleira e provinciana, em pouco tempo Verger já sabia mais sobre Salvador do que a

maioria dos baianos. 

Quem não viveu aquela época não pode imaginar o que era essa cidade: o paradeiro. Eram

só 450 mil habitantes, tinha uma meia dúzia de carros, que nós sabíamos quem eram os

donos. Nenhum prédio furava a linha do horizonte. Ela era compacta , explica o escultor

Mário Cravo Júnior, que conheceu Verger logo que ele chegou por aqui. E foi participando

de cada uma das festas populares, andando sem rumo pela cidade, fazendo amizades em

cada esquina e flagrando os detalhes cotidianos que Verger produziu algumas das suas

melhores fotos. Para o fotógrafo Mário Cravo Neto, o trabalho fotográfico de Verger foi um

dos mais importantes do século XX por dois motivos: Ele fazia essas imagens ao bel

prazer, pra ele mesmo, como uma criança que brincava. A outra coisa importante é a

dignidade que ele colocava na figura humana: a postura e elegância que deve estar presente

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em toda imagem de um ser humano . Quem ganhou fomos nós, que podemos conhecer,

através dessas fotos uma deliciosa Bahia, que quase já não existe mais.

Em Salvador, Verger encontrou também o seu tema principal: os negros e a sua cultura.

Um interesse que já tinha nascido há muito tempo, ainda em Paris, no bar negro da Rua

Blomét, freqüentado pelos choferes e empregadas domésticas antilhanos: Era um lugar

maravilhoso, bebia-se ponche da Martinica, dançava-se o biguine. Fora do domínio dos

patrões eles podiam se expandir dançando, cantando, se alegrando. Era um lugar a que

íamos muito, eu e meus amigos , conta Verger.

No final dos anos 40 e início dos 50, muitos artistas e intelectuais baianos estavam

redescobrindo a cidade, buscando aproximar-se da cultura popular, das ruas, e transpunham

isso para os seus trabalhos. Verger f icou amigo de muitos deles. Íamos aos domingos ver a

capoeira na Rua Pero Vaz, às festas populares, aos candomblés. Verger freqüentava oatelier que nós tínhamos na Barra, num prédio inacabado. Ele também chegou a viajar de

carro com a gente pelo interior , relembra o escultor Cravo Júnior. Segundo ele, o convívio

com o fotógrafo francês foi uma lição para a sua geração: Era um representante vivo e

crítico da supercivilização européia, que negava as suas raízes, não falando, mas vivendo. E

a sua modéstia, o amor à tarefa criativa: ele só tinha duas camisas brancas, duas calças de

brim cáqui, não tinha dinheiro e usava um penico pra revelar as fotos. Fazia o máximo com

o mínimo .

Verger nunca mais deixou de ter um cantinho próprio em Salvador, mas continuou

viajando. Ainda na década de 40, foi ao Maranhão, Pernambuco, Pará, para O Cruzeiro, e

encontrou com seu amigo Métraux no Haiti e Guiana Holandesa. Depois do Hotel Chile,

mudou-se para um sótão no Taboão, que ele igualmente descreve como um lugar

maravilhoso. Afinal, o seu interesse principal eram as pessoas e, ali, estava a um pulo da

Cidade Baixa e da Cidade Alta, do Pelourinho, onde usava o laboratório fotográfico do

Instituto Nina Rodrigues, graças a um amigo, e do Mercado do Ouro, onde ia almoçar

hábito que manteve até o final da vida e encontrar os estivadores e o povo de santo. Estava

perto também do barco para Itaparica (onde ia ao candomblé dos Eguns, em Ponta de

Areia) e do bonde que o levava aos candomblés da Vasco da Gama e às caminhadas em

Amaralina. 

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Não demorou muito para que Verger descobrisse a íntima relação entre a alegria e o amor-

próprio dos negros pobres - que tanto o impressionava - e o candomblé. Com sua

delicadeza de trato, foi ficando amigo das pessoas, que o admiravam por já ter ido à África,

e aprendendo várias coisas. Como ele mesmo diz, foi se encantando com a beleza das

cerimônias, a riqueza das tradições orais, a capacidade de manter viva a identidade, a auto-

estima e a fé, é claro, de gostar do convívio com aquelas pessoas. Verger não perguntava,

apenas observava e aprendia. 

Nas viagens, além das fotos, Verger tinha uma nova preocupação: encontrar novos dados

sobre a religião afro-brasileira, para dividir com seus novos amigos e saciar a sua

curiosidade. Visitou a Casa das Minas e a Casa dos Nagôs em São Luis, os xangôs em

Recife e registrou peças africanas num museu de Belém. Através de um portador que

sempre ia a Dakar, mandou para Monod, diretor do Instituto Francês da África do Norte(Ifan), fotos de cerimônias e algumas perguntas sobre deuses africanos cultuados no Brasil.

A resposta foi um convite para trabalhar lá, com bolsa de estudos. Uma grande

oportunidade, aceita de imediato.

Pouco antes de partir, em 1948, ele visitou o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, acompanhado

do francês Gilbert Rouget. Quando soube que Verger estava de partida para a África e o

que ia fazer, Mãe Senhora se ofereceu para garantir-lhe a proteção dos orixás. Dias depois

ele voltou, passou a noite no terreiro e sua cabeça foi consagrada a Xangô. Segundo Cravo

Neto, na noite anterior ao encontro com Verger, a famosa sacerdotisa teria tido um sonho

sobre um estrangeiro que iria fazer a ligação entre a África e a Bahia. E assim foi feito. 

RENASCIDO PELO IFÁ 

Cada vez que subia ou descia os 16 degraus da escada da sua casa, na Vila América, Verger

recitava os 16 odus do Ifá. Era uma forma de não esquecê-los. Ifá é o nome de uma

divindade que só se manifesta através do jogo do Ifá. Somente um babalaô, o pai-do-

segredo, tem conhecimento e poder para consultar esse sistema de adivinhação. Quando

retornou à África, nos anos 50, Verger foi iniciado como babalaô, ganhou uma nova

profissão e um novo nome: Fatumbi, que significa nascido de novo graças ao Ifá . Como

iniciado, Verger adquiriu novos deveres e direitos. Pôde participar de rituais, teve acesso a

conhecimentos secretos, a informações sobre o uso de plantas. Só que não bastava

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fotografar, era preciso registrar e divulgar com responsabilidade tudo o que estava

aprendendo. Nascia, então, o Verger pesquisador. 

Chegando à África, Verger iniciou sem demora o seu trabalho. Senegal, Benim, Zaire,

Nigéria. Cada detalhe que tinha aprendido no Brasil e, principalmente, seu colar de contas

vermelhas e brancas lhe serviram como um passaporte. Teve acesso a grandes sacerdotes,

reis, cerimônias importantes, conhecimentos, ganhou títulos. Foi iniciado em Ketu, a cidade

sagrada dos yorubás. O que Verger não imaginava é que Monod, seu protetor do Ifan, não

se contentasse apenas com as duas mil de fotos que ele havia produzido. Para nossa sorte,

Verger recebeu um ultimato: ou escrevia sobre os costumes que vinha testemunhando ou

não teria mais bolsa. A contragosto e com muito esforço, surge o seu primeiro livro.

Começa, aos poucos, o contato com arquivos, documentos e as publicações, de artigos e

livros como Dieux d Afrique , em 1954, e Notes sur le culte des Orisha et Vodoun, àBahia, la Baie de tous les Saints au Brésil, et à l'ancienne côte des Esclaves , em 1957,

além daqueles em que ele já havia participado como fotógrafo. O livro principal será

Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os

Santos; dos séculos XVII a XIX , apresentado na Sorbonne, em 1966, como tese de

doutorado. A pesquisa começou quando ele tomou contato com cartas do século XIX,

guardadas por Tibúrcio dos Santos, em Uidá, sobre o tráfico clandestino de escravos para a

Bahia. Uma pesquisa sobre as relações entre a Bahia e a África Ocidental, sobre trocas

materiais e simbólicas, que causariam profundo impacto em ambos os lados.

Verger continua fotografando, mas a pesquisa já era um caminho sem volta: estava

seduzido pelos estudos e extraía daí o seu sustento. Recebe outras bolsas de estudo, trabalha

como pesquisador visitante para universidades africanas e museus. Em 1966, é nomeado

diretor de um centro de pesquisas na França, graças ao afastamento voluntário do seu

amigo Rouget. Em 1974, foi contratado como professor visitante pela Universidade Federal

da Bahia. O objetivo não era dar aulas, mas apoiá-lo como pesquisador e representar o

Ministério das Relações Exteriores do Brasil na África, na aquisição de peças que

comporiam o Museu Afro-Brasileiro, inaugurado em 1982, que funciona na Antiga

Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus, em Salvador. Em 1980, novamente torna-se

professor visitante da Ufba e, em 1985, é contratado em caráter permanente. 

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Durante 31 anos, de 1948 até 1979, Verger se dividiu entre a África e Salvador, com

passadas também por arquivos da França, Inglaterra e Portugal. Ele costumava criticar

duramente os intelectuais e lamentar o abandono da sua agradável vida de fotógrafo, mas

confessou para seu amigo Métraux, numa carta, que ficava na porta dos arquivos de

Salvador, aguardando ansioso a hora da abertura. Seus amigos confirmam o quanto ele era

meticuloso: Verger fazia suas próprias agendas, em folhas de papel. Todo dia ele escrevia

o que ia fazer e quando cumpria, ia lá e riscava. Quando me deu um de seus primeiros

livros, foi logo explicando que eu ia ver algumas palavras em espanhol ou inglês porque ele

não acertou botar em português , conta o antropólogo Waldeloir Rego.

Outro papel importante de Verger foi o de facilitar as pesquisas e contatos de estudiosos

baianos que foram para a África e de africanos que vieram para a Bahia. O projeto de

cooperação cultural com a África era de Agostinho da Silva, o criador do Centro de EstudosAfro-Orientais (CEAO). No final dos anos 50 e início dos 60, foram para lá Vivaldo da

Costa Lima, Yeda e Guilherme de Sousa Castro, Pedro Moacyr Maia e Júlio Braga, que

chegou a hospedar-se na casa de Verger. Da África, vieram professores de língua e cultura

yorubá e estudantes. 

Entretanto, o envolvimento de Verger não se limitava à pesquisa: ele já era um babalaô, um

amigo, um membro. Na Bahia, quem selou esse pacto foi novamente Mãe Senhora, que lhe

deu o importante título de Oju Obá, o olho do rei . Para ela, Verger trazia da África

presentes, produtos litúrgicos para serem vendidos e até objetos endereçados a ela por

sacerdotes. Mas Verger freqüentava todas as casas e gostava de todos. Quem o conheceu de

perto sempre recebeu um presentinho: Tia Massi, da Casa Branca, ganhou muitos - como o

papagaio que falava yorubá -, o designer Enéas Guerra mereceu um Exu de ferro, um colar

de Xangô e um jogo de ayô (esculpido na madeira, existe um exemplar no Museu Afro-

Brasileiro) e o vizinho Tourinho ficou com um machado de Xangô. 

Durante as décadas de 50, 60 e 70, Verger se dividia entre as suas pesquisas, seu trabalho

fotográfico, seu mergulho no candomblé e, é claro, diversão. A pedido de O Cruzeiro,

voltou a Cuba e ao México, mas seu interesse pela fotografia foi progressivamente

diminuindo, ainda que ele nunca tenha perdido o carinho pelos negativos. Quando viajava,

eles ficavam, por exemplo, na casa de Mário Cravo Júnior, dentro dos seus famosos baús

metálicos, em baixo da cama da empregada, relembra o filho do escultor, o fotógrafo Cravo

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Neto. Os negativos que tinham ficado em Paris sumiram durante a guerra, mas uma parte

foi reencontrada por seu amigo Boucher, num porão úmido.

Amigos, Verger tinha em toda parte e sempre manteve intensa correspondência com eles.

Na Bahia, um dos mais próximos era o artista plástico Carybé. Se viam quase diariamente,

Verger ia muito tomar café na casa dele. Eram tão amigos, que até brincavam de brigar,

como dois meninos , relembra Waldeloir. Entre os franceses, os mais próximos eram

Métraux e Leiris, que o visitaram em Salvador: Saímos com eles, fomos ao Solar do

Unhão , conta Waldeloir. Ele explica que, parcimoniosamente, Verger também participava

da boemia baiana: Ele ia conosco ao Bar Triunfo, ao Anjo Azul e ao Unhão. Íamos em

grupo, pra curtir a lua, o caminho era mato e ladeira de barro. Almoçávamos muito juntos:

eu, Verger, José Pedreira e Vivaldo. Ninguém conhecia mais a Bahia do que nós . Sobre a

vida amorosa de Verger, seus amigos afirmam que ele era extremamente discreto,principalmente sobre sua opção pelo homossexualismo, afinal, era um homem de 1902.

Não há dúvida que existiram alguns poucos e grandes amores, mas essa é mais uma das

histórias que ele preferia guardar para si mesmo. 

Depois do sótão no Taboão, Verger se mudou em 1960 para a casa vermelha da Vila

América, antigo Morro do Corrupio. Na época, moravam ao lado dois grandes amigos, os

franceses Michel Etienne e Paul Brevia, conta o filho adotivo dos dois, Paulo Gonzaga dos

Reis. Além da amizade com os franceses, o vizinho César Tourinho dá outra pista sobre a

escolha desse local: Isso aqui era um pedaço da África: árvores, mato e muitos

candomblés . O próprio Verger dá a lista: 12 casas religiosas nas imediações, que ele,

evidentemente, freqüentava. Aliás, ir aos candomblés era um dos seus principais prazeres:

Ele não ia a teatro, não gostava de música, nada que dispersasse , explica Waldeloir.

Afável e gentil, Verger era também reservado e seletivo nas suas escolhas de amigos e

ambientes. Só via quem ele queria e quando queria. A editora Arlete Soares, que conviveu

com ele nos anos 70, conta um pouco da sua rotina: Em Paris, ele era um profundo

conhecedor da cidade, do caminho mais fácil, mais bonito. Ia aos sebos e livrarias

especializadas em cultura negra, onde era conhecido. Comia sempre no restaurante grego

na esquina do hotel e tomava café em Montparnasse. Tinha muitos amigos, como Rouget,

professor da Sorbonne. Havia um ponto de reunião dos amigos, no sábado. Aqueles

senhores todos aposentados, de cabeça branca .

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Na África, Verger adorava os mercados, que são móveis, como as nossas feiras. Ele tinha

muitos amigos nos mercados. Ficava muito no hotel também, fazendo pesquisas e

recebendo visitas, que duravam horas. Eram velhos amigos, filhos de amigos, pessoas do

culto. Tomava café no hotel na praia, porque, ele dizia, se traçasse uma linha reta ia dar na

Bahia. Lá, ele dirigia um fusquinha. Só que dava ré sem olhar pra trás , conta Arlete.

NAGÔ BRANCO

Apesar de tudo o que já tinha feito, Verger ainda era quase desconhecido no Brasil.

Algumas exposições de fotos, livros publicados na Europa e amigos famosos como Roger

Bastide e Jorge Amado, tinham ajudado a torná-lo conhecido, mas em círculos restritos. A

maioria dos baianos e brasileiros nada sabia sobre aquele velhinho exótico, sempre vestido

com batas africanas. No final dos anos 70, ele já estava chegando perto dos 80 anos,quando conhece uma jovem que iria finalmente tirá-lo do anonimato. Arlete Soares estava

na França, fazendo um doutorado, quando foi apresentada ao autor do livro que, com

esforço, ela lia diariamente na biblioteca. Verger se ofereceu para dar-lhe uma cópia e daí 

nasceu a amizade. Quando entendeu a importância da obra daquele senhor misterioso,

Arlete desistiu da sua pesquisa e definiu duas metas urgentes: trazer para o Brasil os

negativos de Verger que ainda estavam na França e publicar em português o magistral

Fluxo e Refluxo .

Ninguém sabia quem era Verger, eu tinha que explicar. Fui ao presidente da Varig e

consegui que liberassem 100 quilos de bagagem para trazer os negativos, mas nas editoras

do Sul ninguém se interessava em publicar. Resolvi então criar a Editora Corrupio. A idéia

era publicar o livro e seguir o meu caminho, mas foram surgindo idéias, outros livros foram

sendo lançados Retratos da Bahia , Orixás , Notícias da Bahia , Oxossi , Lendas dos

Orixás e, então, Fluxo e Refluxo , conta ela. Somente aí, estupefacto, o Brasil descobriu

quem era aquele homem e o que ele tinha feito todos aqueles anos. 

Foi um tremendo sucesso, que nos pegou de calças curtas. Fomos descobrindo que

precisava colocar em circuito. Naquela época não tinha fax, internet. Verger estava no

embalo de publicar, nem dava tempo de republicar , conta Arlete. O designer Enéas Guerra

conheceu Verger nessa época: Ficávamos da manhã até a noite, eu, Verger e Cida. Ele

tinha muito na cabeça o que queria. As fotos que ele queria colocar. Queria se atualizar

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sobre o lado técnico, o planejamento gráfico. Sempre oferecia um mau chá ou mau café e

tomava muita sopa: cozinhava as verduras, jogava fora e tomava o caldo , lembra Enéas,

que trabalhou em vários livros de Verger, fazendo ilustrações e o projeto gráfico.

A partir dos anos 80, Verger se concentra integralmente em escrever e publicar ele já

tinha deixado a fotografia desde o final dos anos 70 - e as viagens tornam-se raras. Ele ia

todo dia na sede da Corrupio, de taxi. Organizava o que íamos fazer antes, demarcava tudo,

mas trabalhava em equipe, aceitava palpites. Ele se interessava muito que a sua obra fosse

conhecida pelo povo de santo, queria mostrar para as pessoas e ser gentil. Dava muitos

livros de presente. Era desesperador , brinca a editora Rina Angulo, que, ao lado de Arlete

Soares e Cida Nóbrega, compõem a Corrupio. 

Com a divulgação do seu trabalho, multiplicam-se as entrevistas, convites para palestras,

exposições, homenagens. Verger cumpria tudo, mesmo reclamando - Eu me prostituí -, eseguia em frente: envolveu-se na criação da Casa do Benin, participou de documentários.

Num deles, em que fez o roteiro e dirigiu, Verger mostra os lugares que freqüentava na

África, Paris e Salvador, conta histórias e até dança. A Corrupio espera finalizar esse

trabalho em breve. 

A vantagem dessa nova fase da sua vida é que ele estava permanentemente em Salvador e

aproveitava isso. Verger gostava muito de ir em Monte Serrat, Itapuã, Água de Meninos,

nos sábados nós íamos na Liberdade, Largo do Tanque. Ele ficava comentando as

semelhanças com a África, no sotaque, na maneira de carregar as coisas. Gostava muito da

batida de coco do Deolindo, no Rio Vermelho, chamava de dose de optimismo : na

segunda dose, já está tudo ótimo , conta Arlete.

Estreitavam-se os laços também com os vizinhos. A garotada daqui estava sempre na casa

de Verger, perturbando, pedindo coisas , conta o vizinho César. Alguns eram mais

próximos, como Vermelho, que aprendeu com Verger sobre plantas; Ferreti, que lhe

ajudava a abastecer-se da fonte, antes da água encanada chegar por lá e Gonzaga, filho dos

amigos franceses. Estava sempre olhando as plantas, perguntando pra que servia e pedindo

uma mudinha , relembra Gonzaga. Verger pesquisou o tema durante décadas e até planejou

criar um horto no quintal. Entre o povo de santo, uma das visitantes freqüentes era a ebomi

Ajikutu, da Casa Branca, recebida sempre por ele com uma saudação cantada em yorubá.

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Eu comecei a vir pra comprar búzios, sabão da costa, orobô, obi, efum. Muita gente vinha

comprar, porque era confiável. Fomos f icando amigos , conta ela.

No final dos anos 80, já se aproximando dos 90 anos, Verger começou a pensar numa

forma de preservar o seu imenso acervo. A solução foi criar a Fundação Pierre Verger

(FPV), que passa a existir legalmente em 1989. O acervo era dele, a casa era dele e ele era

o mantenedor. Doou tudo o que tinha à Fundação. Todo o acervo pertence a ela

eternamente, não pode ser vendido, só trocado, com autorização do Ministério Público ,

explica o empresário Gilberto Sá, atual presidente da FPV. No acervo, documentos

diversos (correspondências, manuscritos, relatórios), objetos (107), mais de 62 mil

negativos, fotos, livros (2.800), fitas de música (130 horas gravadas) , explica Alex

Baradel, um dos atuais colaboradores da FPV. 

Além de Gilberto, muitas pessoas estiveram por lá nos últimos anos, cuidando do acervo edo bem-estar de Verger. Eliana Miranda, Carybé e Solange Bernabó, como diretores, Dione

Baradel, Dona Cici, Negrizu e Jorge como colaboradores diários, viabilizando a pesquisa, o

cuidado com as fotos e a própria sobrevivência de Verger, que se tornou diabético e teve

problemas de saúde. Ele era muito agradável, jamais se pode dizer que era mal-educado ou

grosseiro. Só gostava que as pessoas tivessem um objetivo real, que não viessem aqui em

busca de um mito. Pela idade, ele se cansava rápido, mas trabalhava diariamente , conta

Dione. Durante muito tempo, seus negativos só eram confiados ao laboratorista Popó ou a

Negrizu, o vizinho Antonio fazia pequenos serviços na casa e o etnomusicólogo Ricardo

Souza também estava sempre por lá, fazendo companhia e revezando-se com as outras

pessoas para não deixá-lo dormir sozinho. A lista de amigos é extensa. 

Em 1988, a etnomusicóloga Angela Luhning entrou na vida de Verger. Interesses comuns

os aproximaram e ela foi morar na casa em frente, onde está até hoje. Carinho e

profissionalismo se misturaram: Eu tinha a chave da casa, ficava aqui até tarde. Saíamos

pra caminhar de manhã. Ele não gostava muito das parafernálias da civilização , não tinha

telefone durante muito tempo. Nós agendávamos exposições em outros países trabalhando

aqui na Fundação e correndo pra atender ao telefone quando tocava na minha casa. Quando

tinha que atender, Verger se ajeitava rápido, pegava a bengala, o sapato, a calça, ou ia

mesmo com o pano amarrado , conta Angela, que é professora da Ufba. O pano

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amarrado era a indumentária caseira básica: um saiote africano, também adotado por

alguns de seus amigos. 

Contando com mais funcionários e um conselho de curadores mais amplo, a partir de 2002

a FPV iniciou uma série de mudanças. O objetivo principal era comemorar a altura o

centenário de nascimento de Verger, em novembro de 2002. Estamos saindo da

hibernação. O nosso plano de ação é reordenar esse espaço, que será o núcleo de pesquisa;

criar postos avanços, em outros locais, para popularização do acervo; reequipar a fundação

e regularizar as parcerias, como a que temos com o Ministério das Relações Exteriores da

França e as editoras. Para o centenário, vamos fazer uma exposição itinerante de fotos,

lançamento de livros, eventos no exterior, celebrações nos terreiros , explicou Gilberto Sá

na época. 

Tudo o que estava planejado foi realizado e muito mais continua ocorrendo. Entre abril de2002 e junho de 2003, a mega exposição O olhar viajante de Pierre Fatumbi Verger

percorreu seis capitais brasileira, mas fez um sucesso tão grande que conseguiu patrocínio

para continuar na estrada e passar por outras cidades. Ocorreram exposições também na

França e no Benin. No Portal da Misericórdia, entrada do centro histórico de Salvador, foi

inaugurada a Fundação Pierre Verger Galeria, facilitando o acesso dos interessados às

fotografias de Verger. De lá para cá, vários livros sobre Verger também foram relançados

ou lançados, como a volumosa biografia Pierre Verger, um retrato em preto e branco , de

Cida Nóbrega e Regina Echeverria. E foi criado ainda o site oficial da FPV

(www.pierreverger.org), em português, francês e inglês, com informações sobre a vida e a

obra de Verger, eventos promovidos pela fundação e centenas de fotos. 

Até os seus últimos instantes, Verger conservou-se apaixonado pela vida. Pouco tempo

antes de falecer, o médico Angelo Decanio proporcionou a ele alguns bons momentos,

hospedando-o em sua casa por quatro meses, na praia de Paripe, Subúrbio de Salvador, para

cuidar da sua saúde. Tratei ele com ervas, com acupuntura. Ele melhorou, fechamos a

úlcera, começamos a caminhar na praia, a fazer ginástica com peso. Aquele velho tinha

orgulho de ser gente. Conversava o dia todo, contava histórias incríveis, lembrava o dia, o

horário em que tinha acontecido. Quando saía de carro, reparava nas cores das árvores, do

mar , diz Decanio. 

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Até o final, ele manteve também uma ambígua relação com a espiritualidade. Dizia que não

acreditava em candomblé, que admirava o transe como uma forma das pessoas

manifestarem sua verdadeira natureza , mas sempre conservou com um bom cadeado a

maleta onde estava o jogo do Ifá, que alguns o viram consultar em raras ocasiões. Retardou

o quanto pôde a finalização de Ewé , o livro sobre o uso litúrgico de plantas, pois os

orixás já tinham avisado que este seria o seu último trabalho. Dizia que nunca deixou de ser

um francês racionalista , mas criou com o babalorixá Balbino Daniel de Paula o terreiro

do Aganju, em Lauro de Freitas, que já é uma grande casa. Também pediu à ebomi Ajikutu

que, após a sua morte, providenciasse uma certa oferenda para ele, na Casa Branca, no

lugar onde estão os ancestrais. Para ebomi Ajikutu, que providenciou tudo como Verger

pediu, o motivo dele ter vivido tanto tempo e morado tantos anos na Bahia é simples: Os

orixás gostaram dele, viram que ele podia levantar um pouco a cultura negra nessa terra ,avalia ela, que gosta de definir seu velho amigo como um nagô branco .

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