76535068 o Uso Das Plantas Na Sociedade Yoruba Pierre Verger (2)
Verger
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pequena num bairro popular de Salvador, a mobiliou com uma cama rústica, um guarda-
roupa e estantes improvisadas com tábuas. Aí, vivia cercado por seus livros e papéis, seus
negativos e fotos, recebendo conhecidos e desconhecidos que o procuravam em busca de
informações, dinheiro, favores, sabedoria, orientação.
Para ele, vida e trabalho eram a mesma coisa, pois conquistou o direito de só fazer o que
queria. Como ele mesmo dizia: "Tenho a faculdade de ver só as coisas que me interessam e
não ver as que não me interessam". Na verdade, ele nem gostava da palavra trabalho, pois
extraía muito prazer do que fazia e não perdia de vista que estava apenas tentando devol ver
aos seus amigos - o povo negro da África e da Bahia - o conhecimento que eles haviam lhe
conf iado. Amizades conquistadas ao longo de anos em que se alternava entre a Baía de
Todos os Santos e o Golfo do Benim (de onde veio a última grande leva de escravos para a
Bahia), ajudando a aproximar esses dois mundos. Pessoas que, para Verger, foram muitomais do que apenas modelos ou objeto de estudo. Foram seus amigos, vizinhos,
companheiros, os grandes amores da sua vida. Mas a sua lista de amigos e colaboradores é
eclética e inclui também artistas, intelectuais, empresários, pessoas de várias idades, raças e
países.
A sua morte, em 1996, silenciou a todos que o cercavam. Afinal, a Fundação Pierre Verger
(FPV) era a sua própria casa e, os seus colaboradores, a sua família mais próxima. Em
2001, a hibernação terminou. A partir daí, a FPV começou a organizar uma série de eventos
e iniciativas que se prolongaram até o dia 4 de novembro de 2002 - quando Verger
completaria 100 anos, se estivesse vivo. De lá para cá, as exposições, palestras e
lançamentos de livros não pararam mais. Para quem não conhece ainda a obra e a vida de
Pierre Verger, é uma boa oportunidade de descobrir uma figura, no mínimo, intrigante. E,
para quem pensa que já conhece este misterioso intelectual, artista, viajante e místico, uma
boa chance de descobrir novas facetas de um homem descrito como desconfiado, reservado,
esquisito, mas que também sabia ser falante, gentil e brincalhão.
VIVER VIAJANDO
Semanas a bordo de um barco, enfrentando o oceano, dentro de vagões, carros, ou até no
lombo de um camelo. Verger experimentou o máximo do luxo e do desconforto para
aplacar a sua inquietude e encontrar uma razão para continuar vivendo. Foram 14 anos
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consecutivos em que viveu em busca de rostos, sons, sabores, histórias e lugares novos. O
mais impressionante é que nada foi programado, ele apenas seguia em frente, estava sempre
disponível e uma viagem ia abrindo as portas para a outra. Paris era a sua base, seu quartel-
general, onde ele fazia contatos e dispunha de um pequeno sotão para guardar seus
negativos. Até que veio a Segunda Guerra Mundial e, então, tudo mudou.
Naqueles loucos anos da virada do século XX, nasceu Pierre Verger: 1902, em Paris. Seu
pai era empresário, dono de uma tipografia, o que proporcionava à sua família, de origem
belga, uma ótima situação financeira. Num ambiente burguês, cercado de primos, tios e
dois irmãos, vivia o inquieto Pierre, que foi duas vezes expulso da escola, por indisciplina:
do Liceu Janson de Sailly, em 1917, e da Escola Bréguet, em 1920. A partir daí, trabalhou
algum tempo na tipografia da família e prestou serviço militar durante um ano e meio.
Entre 1914 e 1918, a Europa viveu a Primeira Guerra Mundial. Na década de 20, o nosso herói levava uma autêntica vida de playboy, com direito a
corridas de carro, pilotando seu Amilcar esporte e férias em Deauville. Mas, conta o
próprio Verger, não se satisfazia com os valores desse ambiente: Nele me tinham ensinado
que havia duas categorias de pessoas. Aquelas cuja amizade era desejável cultivar, pois
representavam um capital-relação e aquelas cujo convívio e ligações deviam ser
desencorajados, devido ao pouco proveito moral ou material que delas se poderia esperar.
Tudo era sacrificado ao status aparente .
O ano de 1932 é um grande marco na vida de Verger. Ele perde sua mãe, o último parente
próximo que lhe restava: seu irmão Louis havia morrido em 1914, seu pai, em 1915, e seu
irmão Jean, em 1929. Não saí de casa, porque já não tinha mais casa , define ele. É
também nesse ano que Verger consegue a sua primeira Rolleiflex em troca de um
verascópio e um taxifoto da família - e que inicia as suas viagens. Dá a volta completa na
ilha de Córsega, à pé, com o fotógrafo Pierre Boucher, que o ensina a fotografar. Depois
visita a Rússia, junto com outros turistas que iam ao 15º aniversário da Revolução. No dia
do seu aniversário, quando completou 30 anos, decide que só viveria até os 40, para evitar
tornar-me um velho caduco . Em dezembro, a bordo de um cargueiro, parte para os mares
do sul, como passageiro da quarta classe.
A estréia de Verger como viajante foi bem ao estilo francês: a longínqua, exótica e colorida
Polinésia Francesa, no Oceano Pacífico. Ali, passou por várias ilhas, demorando-se mais no
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Taiti: Fiz a volta da ilha a pé , contou. A sua Rolleiflex já trabalha a pleno vapor, com um
interesse especial pelas figuras humanas e também dedicando atenção a objetos e texturas.
Verger descobre a beleza dos trópicos, os cheiros, sabores e cores da natureza exuberante,
mas encontra a todo instante os efeitos nocivos da ocupação francesa. Tenta um estilo ainda
mais radical e vai com um amigo - o pintor suiço Eugène Huni para a Ilha de Rurutu,
onde convivem com os nativos e moram numa choupana que eles mesmos constroem com
folhas de coqueiro.
Passado um ano, ele decide voltar à França, porque a sensação de que existia um vasto
mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vê-lo e fotografá-lo me levava em direção a
outros horizontes . Ao que tudo indica, o vasto mundo também desejava ser visitado por
Verger, pois tudo conspirava a seu favor. Paris torna-se um local estratégico onde faz
contatos que lhe possibilitam novas viagens. Em janeiro de 1934, quando volta do Taiti,procura o Museu de Etnografia do Trocadero (atual Museu do Homem), em busca de
permissão para fotografar objetos na Oceania e lá encontra parceria profissional, grandes
amigos (Métraux, Leiris) e um laboratório fotográfico à sua disposição. A partir daí
iniciam-se também as parcerias com jornais, revistas (Paris-Soir, Daily Miror, Match) e a
participação em livros.
Ainda em 1934, em fevereiro, numa rápida conversa com um jornalista que estava de
partida para realizar reportagens turísticas, Verger é convidado a unir-se ao grupo e dar a
volta ao mundo. Em três dias, já está em pleno Oceano Atlântico, a caminho dos Estados
Unidos. Atravessam o país inteiro de trem: ele assombra-se com os arranha-céus,
decepciona-se com a ausência de índios. Tomam outro barco rumo ao Japão, onde
encontram as casas de bambus com tatames, as mulheres cobertas de maquiagem com seus
tamancos de madeira, mas são constantemente vigiados e não podem vislumbrar a potência
industrial que começa a surgir. O próximo destino é a China. Encanta-se com Pequim:
largas avenidas, ruelas estreitas, seus templos, vários estrangeiros vivendo à maneira
chinesa , mas já é hora de voltar.
Infelizmente, não há espaço para narrar aqui todas as incríveis aventuras de Verger nesses
anos. Mas, quem estiver interessado, tem à disposição o livro 50 anos de fotografia , com
as fotos e comentários do próprio autor. Um aspecto interessante dessa fase da sua vida é o
modo como ele consegue passar de uma empreitada a outra: criatividade, iniciativa,
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despojamento, intuição e um bom anjo da guarda. Suas viagens nascem de encontros
casuais, desloca-se de bicicleta, oferece fotografias em troca de transporte, trabalha
temporariamente para jornais, museus, empresas e recebe ajuda até de um casal de
mecenas.
A fonte de renda mais constante era a Alliance Photo, uma cooperativa criada por ele e
mais quatro fotógrafos. Quem administrava e vendia as fotos do grupo era Maria Eisner.
Verger tinha a capacidade de conseguir espaço nos melhores lugares possíveis. Ele
publicava em revistas onde publicavam os melhores fotógrafos da sua época , explica a
pesquisadora Cláudia Possa, que está preparando uma tese de doutorado sobre essa época
da vida de Verger, na Universidade de Barcelona. Ela conta ainda que, quando estava em
Paris, além do grupo do Museu do Trocadero, Verger saía com os surrealistas, o grupo de
Jacques Prévert, que escrevia para o grupo Octobre, de teatro de vanguarda. Verger,inclusive, foi um dos poucos que fotografaram esse grupo . Cláudia lembra que Verger
estava dialogando com o desejo de uma época: Foram anos experimentais, todos eles se
dispuseram a experiências radicais. Faziam muitos esportes, arte, praticavam nudismo.
Todos viajavam, muitos foram à África. Viajar era uma religião, mas Verger foi o que mais
viajou: ele fez a opção de viver viajando .
Assim, de 1935 a 1946, Verger viaja e fotografa no interior da França, Itália (que o deixa
maravilhado), Espanha, Norte da África. Percorre a Argélia, Mali, Togo, Benim, retornando
por Níger, com direito a uma turnê em lombo de camelo na região dos tuaregues. Depois
Londres, Antilhas, Cuba, México, Estados Unidos (de novo) e China, testemunhando os
efeitos do conflito com o Japão. Segue para as Filipinas e a Indochina, onde hoje estão
Camboja, Laos e Vietnã. Lá, ficou tentado a tornar-se um monge budista e esquiou com o
imperador Bao Dai. No México, fotografou Trotsky morando na casa de Frida Kahlo, e foi
para Guatemala, Equador. No Senegal é apresentado a Théodore Monod, do Instituto
Francês da África do Norte- IFAN, em Dakar. Depois vem ao Rio de Janeiro, vai à
Argentina, Peru e Bolívia.
Surpresas desagradáveis também aconteciam, mas ele não desistia. Foi preso em Sevilha,
confundido com um espião alemão; roubaram sua mala num trem no México e quase
passou fome na Argentina. Com uma situação financeira freqüentemente precária; teve suas
fotos sabotadas no departamento fotográfico de um jornal e foi obrigado a servir ao exército
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francês em duas ocasiões. Mas ele não desistiu das viagens e nem da vida. Antes de
completar 40 anos, quando tinha decidido morrer, comprou um metro-de-costura e a cada
dia cortava um dos milímetros que marcavam o tempo de vida que lhe restava. No dia e
horário marcado, entretanto, ele estava providencialmente lendo A importância de viver ,
de Lin Yutang, e se deixou seduzir pela vontade de chegar ao final do capítulo. Assim,
suave e discretamente o momento fatídico havia passado , conta Verger.
CHEGAR À BAHIA
Andando a pé ou pendurado em algum bonde, a qualquer hora do dia ou da noite, lá ia
Pierre Verger com sua Rolleiflex em punho. Pero Vaz, Itapuã, Pedra Furada, São Gonçalo,
Matatu. Nenhum bairro foi esquecido por ele, sempre interessado em conhecer mais um
beco, um bairro distante ou uma ladeira da sua adorada Salvador. Desde o primeiro dia emque desembarcou aqui, Verger começou a tecer uma profunda intimidade com a cidade. Até
o final da vida, gostava de desafiar seus amigos a lhe mostrarem um caminho que não
conhecesse. Desde o início ficou fascinado também com o povo que habitava esta cidade,
com a acolhida gentil, o carinho, a facilidade de se comunicar dos baianos.
Estamos agora no ano de 1946. Depois de viver por quatro anos no Peru - período em que a
Europa vivia a Segunda Guerra Mundial -, Verger resolve tentar novamente vir ao Brasil,
que conhecia só de passagem. A Europa e Paris já não eram mais as mesmas. A guerra
mudou a visão de mundo das pessoas, fez com que todos se redirecionassem. Maria Eisner,
por exemplo, foi para os Estados Unidos. Ela era judia e quase tinha ido parar num campo
de concentração , relata a pesquisadora Cláudia Possa. Foi então, nesse momento de
redefinições para o mundo inteiro e principalmente para os europeus, que Verger chegou ao
nosso país, no dia 13 de abril. Ele ainda não sabia, mas sua vida estava prestes a ganhar um
rumo.
De Corumbá, ele seguiu de barco e depois de trem para São Paulo. Na viagem tentam
roubá-lo novamente, mas o nosso herói já tinha aprendido a lição e livra-se do gatuno com
uma cotovelada no estômago. Em São Paulo, encontra-se com um conterrâneo, o
antropólogo Roger Bastide, que lhe fala da Bahia e sua influência africana, que ele já
conhecia através do livro Jubiabá, de Jorge Amado. O roteiro estava traçado então:
Salvador. Antes, foi necessário passar uns meses no Rio, em busca de emprego e visto de
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residência. Novamente teve sorte. Através de uma brasileira amiga de Métraux, Vera
Jordão, Verger consegue um contrato com a mais importante revista da época O Cruzeiro,
de Assis Chateaubriand. Uma colaboração que geraria cerca de 80 reportagens. As que
foram feitas na Bahia, com textos de Odorico Tavares.
Aquela foi a última viagem do Comandante Capela: cerca de dez dias, do Rio de Janeiro
para Salvador. As vantagens eram o preço da passagem - bem menor que a dos barcos mais
modernos - e a beleza do mar à noite, conta o antropólogo Waldeloir Rego, que também
chegou a viajar nesse barco. Mas ele era muito lento, movido a lenha. Eu paguei todos os
meus pecados quando fiz a viagem. E ainda tinha o exercício salva-vidas: vestindo coletes,
todos os homens saltavam dentro de um bote de borracha, em pleno oceano, pra treinar,
caso houvesse um acidente , conta ele, sem ter certeza se Verger passou ou não pelo tal
exercício. No dia 5 de agosto, o velho barco chega à cidade e uma euforia se espalha abordo. Na época, Verger não compreendeu o que acontecia, mas, anos depois, conta ele,
também passou a ser tomado pela mesma alegria toda vez que retornava de viagem à Bahia.
Um companheiro de viagem fez questão de guiá-lo pelas vielas da cidade desconhecida até
o hotel mais simples o Chile onde Verger encontrou o quarto dos seus sonhos . Um
pequenino cômodo no topo do edifício, de onde descortinava toda a baía, as igrejas, casario,
porto, fortes. Encanta-se com a paisagem, os vizinhos, o samba-de-roda nas ruas, a cpoeira,
os passeios de bonde, os novos amigos. Dedicado, inteligente e discreto, numa cidade
hospitaleira e provinciana, em pouco tempo Verger já sabia mais sobre Salvador do que a
maioria dos baianos.
Quem não viveu aquela época não pode imaginar o que era essa cidade: o paradeiro. Eram
só 450 mil habitantes, tinha uma meia dúzia de carros, que nós sabíamos quem eram os
donos. Nenhum prédio furava a linha do horizonte. Ela era compacta , explica o escultor
Mário Cravo Júnior, que conheceu Verger logo que ele chegou por aqui. E foi participando
de cada uma das festas populares, andando sem rumo pela cidade, fazendo amizades em
cada esquina e flagrando os detalhes cotidianos que Verger produziu algumas das suas
melhores fotos. Para o fotógrafo Mário Cravo Neto, o trabalho fotográfico de Verger foi um
dos mais importantes do século XX por dois motivos: Ele fazia essas imagens ao bel
prazer, pra ele mesmo, como uma criança que brincava. A outra coisa importante é a
dignidade que ele colocava na figura humana: a postura e elegância que deve estar presente
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em toda imagem de um ser humano . Quem ganhou fomos nós, que podemos conhecer,
através dessas fotos uma deliciosa Bahia, que quase já não existe mais.
Em Salvador, Verger encontrou também o seu tema principal: os negros e a sua cultura.
Um interesse que já tinha nascido há muito tempo, ainda em Paris, no bar negro da Rua
Blomét, freqüentado pelos choferes e empregadas domésticas antilhanos: Era um lugar
maravilhoso, bebia-se ponche da Martinica, dançava-se o biguine. Fora do domínio dos
patrões eles podiam se expandir dançando, cantando, se alegrando. Era um lugar a que
íamos muito, eu e meus amigos , conta Verger.
No final dos anos 40 e início dos 50, muitos artistas e intelectuais baianos estavam
redescobrindo a cidade, buscando aproximar-se da cultura popular, das ruas, e transpunham
isso para os seus trabalhos. Verger f icou amigo de muitos deles. Íamos aos domingos ver a
capoeira na Rua Pero Vaz, às festas populares, aos candomblés. Verger freqüentava oatelier que nós tínhamos na Barra, num prédio inacabado. Ele também chegou a viajar de
carro com a gente pelo interior , relembra o escultor Cravo Júnior. Segundo ele, o convívio
com o fotógrafo francês foi uma lição para a sua geração: Era um representante vivo e
crítico da supercivilização européia, que negava as suas raízes, não falando, mas vivendo. E
a sua modéstia, o amor à tarefa criativa: ele só tinha duas camisas brancas, duas calças de
brim cáqui, não tinha dinheiro e usava um penico pra revelar as fotos. Fazia o máximo com
o mínimo .
Verger nunca mais deixou de ter um cantinho próprio em Salvador, mas continuou
viajando. Ainda na década de 40, foi ao Maranhão, Pernambuco, Pará, para O Cruzeiro, e
encontrou com seu amigo Métraux no Haiti e Guiana Holandesa. Depois do Hotel Chile,
mudou-se para um sótão no Taboão, que ele igualmente descreve como um lugar
maravilhoso. Afinal, o seu interesse principal eram as pessoas e, ali, estava a um pulo da
Cidade Baixa e da Cidade Alta, do Pelourinho, onde usava o laboratório fotográfico do
Instituto Nina Rodrigues, graças a um amigo, e do Mercado do Ouro, onde ia almoçar
hábito que manteve até o final da vida e encontrar os estivadores e o povo de santo. Estava
perto também do barco para Itaparica (onde ia ao candomblé dos Eguns, em Ponta de
Areia) e do bonde que o levava aos candomblés da Vasco da Gama e às caminhadas em
Amaralina.
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Não demorou muito para que Verger descobrisse a íntima relação entre a alegria e o amor-
próprio dos negros pobres - que tanto o impressionava - e o candomblé. Com sua
delicadeza de trato, foi ficando amigo das pessoas, que o admiravam por já ter ido à África,
e aprendendo várias coisas. Como ele mesmo diz, foi se encantando com a beleza das
cerimônias, a riqueza das tradições orais, a capacidade de manter viva a identidade, a auto-
estima e a fé, é claro, de gostar do convívio com aquelas pessoas. Verger não perguntava,
apenas observava e aprendia.
Nas viagens, além das fotos, Verger tinha uma nova preocupação: encontrar novos dados
sobre a religião afro-brasileira, para dividir com seus novos amigos e saciar a sua
curiosidade. Visitou a Casa das Minas e a Casa dos Nagôs em São Luis, os xangôs em
Recife e registrou peças africanas num museu de Belém. Através de um portador que
sempre ia a Dakar, mandou para Monod, diretor do Instituto Francês da África do Norte(Ifan), fotos de cerimônias e algumas perguntas sobre deuses africanos cultuados no Brasil.
A resposta foi um convite para trabalhar lá, com bolsa de estudos. Uma grande
oportunidade, aceita de imediato.
Pouco antes de partir, em 1948, ele visitou o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, acompanhado
do francês Gilbert Rouget. Quando soube que Verger estava de partida para a África e o
que ia fazer, Mãe Senhora se ofereceu para garantir-lhe a proteção dos orixás. Dias depois
ele voltou, passou a noite no terreiro e sua cabeça foi consagrada a Xangô. Segundo Cravo
Neto, na noite anterior ao encontro com Verger, a famosa sacerdotisa teria tido um sonho
sobre um estrangeiro que iria fazer a ligação entre a África e a Bahia. E assim foi feito.
RENASCIDO PELO IFÁ
Cada vez que subia ou descia os 16 degraus da escada da sua casa, na Vila América, Verger
recitava os 16 odus do Ifá. Era uma forma de não esquecê-los. Ifá é o nome de uma
divindade que só se manifesta através do jogo do Ifá. Somente um babalaô, o pai-do-
segredo, tem conhecimento e poder para consultar esse sistema de adivinhação. Quando
retornou à África, nos anos 50, Verger foi iniciado como babalaô, ganhou uma nova
profissão e um novo nome: Fatumbi, que significa nascido de novo graças ao Ifá . Como
iniciado, Verger adquiriu novos deveres e direitos. Pôde participar de rituais, teve acesso a
conhecimentos secretos, a informações sobre o uso de plantas. Só que não bastava
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fotografar, era preciso registrar e divulgar com responsabilidade tudo o que estava
aprendendo. Nascia, então, o Verger pesquisador.
Chegando à África, Verger iniciou sem demora o seu trabalho. Senegal, Benim, Zaire,
Nigéria. Cada detalhe que tinha aprendido no Brasil e, principalmente, seu colar de contas
vermelhas e brancas lhe serviram como um passaporte. Teve acesso a grandes sacerdotes,
reis, cerimônias importantes, conhecimentos, ganhou títulos. Foi iniciado em Ketu, a cidade
sagrada dos yorubás. O que Verger não imaginava é que Monod, seu protetor do Ifan, não
se contentasse apenas com as duas mil de fotos que ele havia produzido. Para nossa sorte,
Verger recebeu um ultimato: ou escrevia sobre os costumes que vinha testemunhando ou
não teria mais bolsa. A contragosto e com muito esforço, surge o seu primeiro livro.
Começa, aos poucos, o contato com arquivos, documentos e as publicações, de artigos e
livros como Dieux d Afrique , em 1954, e Notes sur le culte des Orisha et Vodoun, àBahia, la Baie de tous les Saints au Brésil, et à l'ancienne côte des Esclaves , em 1957,
além daqueles em que ele já havia participado como fotógrafo. O livro principal será
Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos; dos séculos XVII a XIX , apresentado na Sorbonne, em 1966, como tese de
doutorado. A pesquisa começou quando ele tomou contato com cartas do século XIX,
guardadas por Tibúrcio dos Santos, em Uidá, sobre o tráfico clandestino de escravos para a
Bahia. Uma pesquisa sobre as relações entre a Bahia e a África Ocidental, sobre trocas
materiais e simbólicas, que causariam profundo impacto em ambos os lados.
Verger continua fotografando, mas a pesquisa já era um caminho sem volta: estava
seduzido pelos estudos e extraía daí o seu sustento. Recebe outras bolsas de estudo, trabalha
como pesquisador visitante para universidades africanas e museus. Em 1966, é nomeado
diretor de um centro de pesquisas na França, graças ao afastamento voluntário do seu
amigo Rouget. Em 1974, foi contratado como professor visitante pela Universidade Federal
da Bahia. O objetivo não era dar aulas, mas apoiá-lo como pesquisador e representar o
Ministério das Relações Exteriores do Brasil na África, na aquisição de peças que
comporiam o Museu Afro-Brasileiro, inaugurado em 1982, que funciona na Antiga
Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus, em Salvador. Em 1980, novamente torna-se
professor visitante da Ufba e, em 1985, é contratado em caráter permanente.
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Durante 31 anos, de 1948 até 1979, Verger se dividiu entre a África e Salvador, com
passadas também por arquivos da França, Inglaterra e Portugal. Ele costumava criticar
duramente os intelectuais e lamentar o abandono da sua agradável vida de fotógrafo, mas
confessou para seu amigo Métraux, numa carta, que ficava na porta dos arquivos de
Salvador, aguardando ansioso a hora da abertura. Seus amigos confirmam o quanto ele era
meticuloso: Verger fazia suas próprias agendas, em folhas de papel. Todo dia ele escrevia
o que ia fazer e quando cumpria, ia lá e riscava. Quando me deu um de seus primeiros
livros, foi logo explicando que eu ia ver algumas palavras em espanhol ou inglês porque ele
não acertou botar em português , conta o antropólogo Waldeloir Rego.
Outro papel importante de Verger foi o de facilitar as pesquisas e contatos de estudiosos
baianos que foram para a África e de africanos que vieram para a Bahia. O projeto de
cooperação cultural com a África era de Agostinho da Silva, o criador do Centro de EstudosAfro-Orientais (CEAO). No final dos anos 50 e início dos 60, foram para lá Vivaldo da
Costa Lima, Yeda e Guilherme de Sousa Castro, Pedro Moacyr Maia e Júlio Braga, que
chegou a hospedar-se na casa de Verger. Da África, vieram professores de língua e cultura
yorubá e estudantes.
Entretanto, o envolvimento de Verger não se limitava à pesquisa: ele já era um babalaô, um
amigo, um membro. Na Bahia, quem selou esse pacto foi novamente Mãe Senhora, que lhe
deu o importante título de Oju Obá, o olho do rei . Para ela, Verger trazia da África
presentes, produtos litúrgicos para serem vendidos e até objetos endereçados a ela por
sacerdotes. Mas Verger freqüentava todas as casas e gostava de todos. Quem o conheceu de
perto sempre recebeu um presentinho: Tia Massi, da Casa Branca, ganhou muitos - como o
papagaio que falava yorubá -, o designer Enéas Guerra mereceu um Exu de ferro, um colar
de Xangô e um jogo de ayô (esculpido na madeira, existe um exemplar no Museu Afro-
Brasileiro) e o vizinho Tourinho ficou com um machado de Xangô.
Durante as décadas de 50, 60 e 70, Verger se dividia entre as suas pesquisas, seu trabalho
fotográfico, seu mergulho no candomblé e, é claro, diversão. A pedido de O Cruzeiro,
voltou a Cuba e ao México, mas seu interesse pela fotografia foi progressivamente
diminuindo, ainda que ele nunca tenha perdido o carinho pelos negativos. Quando viajava,
eles ficavam, por exemplo, na casa de Mário Cravo Júnior, dentro dos seus famosos baús
metálicos, em baixo da cama da empregada, relembra o filho do escultor, o fotógrafo Cravo
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Neto. Os negativos que tinham ficado em Paris sumiram durante a guerra, mas uma parte
foi reencontrada por seu amigo Boucher, num porão úmido.
Amigos, Verger tinha em toda parte e sempre manteve intensa correspondência com eles.
Na Bahia, um dos mais próximos era o artista plástico Carybé. Se viam quase diariamente,
Verger ia muito tomar café na casa dele. Eram tão amigos, que até brincavam de brigar,
como dois meninos , relembra Waldeloir. Entre os franceses, os mais próximos eram
Métraux e Leiris, que o visitaram em Salvador: Saímos com eles, fomos ao Solar do
Unhão , conta Waldeloir. Ele explica que, parcimoniosamente, Verger também participava
da boemia baiana: Ele ia conosco ao Bar Triunfo, ao Anjo Azul e ao Unhão. Íamos em
grupo, pra curtir a lua, o caminho era mato e ladeira de barro. Almoçávamos muito juntos:
eu, Verger, José Pedreira e Vivaldo. Ninguém conhecia mais a Bahia do que nós . Sobre a
vida amorosa de Verger, seus amigos afirmam que ele era extremamente discreto,principalmente sobre sua opção pelo homossexualismo, afinal, era um homem de 1902.
Não há dúvida que existiram alguns poucos e grandes amores, mas essa é mais uma das
histórias que ele preferia guardar para si mesmo.
Depois do sótão no Taboão, Verger se mudou em 1960 para a casa vermelha da Vila
América, antigo Morro do Corrupio. Na época, moravam ao lado dois grandes amigos, os
franceses Michel Etienne e Paul Brevia, conta o filho adotivo dos dois, Paulo Gonzaga dos
Reis. Além da amizade com os franceses, o vizinho César Tourinho dá outra pista sobre a
escolha desse local: Isso aqui era um pedaço da África: árvores, mato e muitos
candomblés . O próprio Verger dá a lista: 12 casas religiosas nas imediações, que ele,
evidentemente, freqüentava. Aliás, ir aos candomblés era um dos seus principais prazeres:
Ele não ia a teatro, não gostava de música, nada que dispersasse , explica Waldeloir.
Afável e gentil, Verger era também reservado e seletivo nas suas escolhas de amigos e
ambientes. Só via quem ele queria e quando queria. A editora Arlete Soares, que conviveu
com ele nos anos 70, conta um pouco da sua rotina: Em Paris, ele era um profundo
conhecedor da cidade, do caminho mais fácil, mais bonito. Ia aos sebos e livrarias
especializadas em cultura negra, onde era conhecido. Comia sempre no restaurante grego
na esquina do hotel e tomava café em Montparnasse. Tinha muitos amigos, como Rouget,
professor da Sorbonne. Havia um ponto de reunião dos amigos, no sábado. Aqueles
senhores todos aposentados, de cabeça branca .
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Na África, Verger adorava os mercados, que são móveis, como as nossas feiras. Ele tinha
muitos amigos nos mercados. Ficava muito no hotel também, fazendo pesquisas e
recebendo visitas, que duravam horas. Eram velhos amigos, filhos de amigos, pessoas do
culto. Tomava café no hotel na praia, porque, ele dizia, se traçasse uma linha reta ia dar na
Bahia. Lá, ele dirigia um fusquinha. Só que dava ré sem olhar pra trás , conta Arlete.
NAGÔ BRANCO
Apesar de tudo o que já tinha feito, Verger ainda era quase desconhecido no Brasil.
Algumas exposições de fotos, livros publicados na Europa e amigos famosos como Roger
Bastide e Jorge Amado, tinham ajudado a torná-lo conhecido, mas em círculos restritos. A
maioria dos baianos e brasileiros nada sabia sobre aquele velhinho exótico, sempre vestido
com batas africanas. No final dos anos 70, ele já estava chegando perto dos 80 anos,quando conhece uma jovem que iria finalmente tirá-lo do anonimato. Arlete Soares estava
na França, fazendo um doutorado, quando foi apresentada ao autor do livro que, com
esforço, ela lia diariamente na biblioteca. Verger se ofereceu para dar-lhe uma cópia e daí
nasceu a amizade. Quando entendeu a importância da obra daquele senhor misterioso,
Arlete desistiu da sua pesquisa e definiu duas metas urgentes: trazer para o Brasil os
negativos de Verger que ainda estavam na França e publicar em português o magistral
Fluxo e Refluxo .
Ninguém sabia quem era Verger, eu tinha que explicar. Fui ao presidente da Varig e
consegui que liberassem 100 quilos de bagagem para trazer os negativos, mas nas editoras
do Sul ninguém se interessava em publicar. Resolvi então criar a Editora Corrupio. A idéia
era publicar o livro e seguir o meu caminho, mas foram surgindo idéias, outros livros foram
sendo lançados Retratos da Bahia , Orixás , Notícias da Bahia , Oxossi , Lendas dos
Orixás e, então, Fluxo e Refluxo , conta ela. Somente aí, estupefacto, o Brasil descobriu
quem era aquele homem e o que ele tinha feito todos aqueles anos.
Foi um tremendo sucesso, que nos pegou de calças curtas. Fomos descobrindo que
precisava colocar em circuito. Naquela época não tinha fax, internet. Verger estava no
embalo de publicar, nem dava tempo de republicar , conta Arlete. O designer Enéas Guerra
conheceu Verger nessa época: Ficávamos da manhã até a noite, eu, Verger e Cida. Ele
tinha muito na cabeça o que queria. As fotos que ele queria colocar. Queria se atualizar
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sobre o lado técnico, o planejamento gráfico. Sempre oferecia um mau chá ou mau café e
tomava muita sopa: cozinhava as verduras, jogava fora e tomava o caldo , lembra Enéas,
que trabalhou em vários livros de Verger, fazendo ilustrações e o projeto gráfico.
A partir dos anos 80, Verger se concentra integralmente em escrever e publicar ele já
tinha deixado a fotografia desde o final dos anos 70 - e as viagens tornam-se raras. Ele ia
todo dia na sede da Corrupio, de taxi. Organizava o que íamos fazer antes, demarcava tudo,
mas trabalhava em equipe, aceitava palpites. Ele se interessava muito que a sua obra fosse
conhecida pelo povo de santo, queria mostrar para as pessoas e ser gentil. Dava muitos
livros de presente. Era desesperador , brinca a editora Rina Angulo, que, ao lado de Arlete
Soares e Cida Nóbrega, compõem a Corrupio.
Com a divulgação do seu trabalho, multiplicam-se as entrevistas, convites para palestras,
exposições, homenagens. Verger cumpria tudo, mesmo reclamando - Eu me prostituí -, eseguia em frente: envolveu-se na criação da Casa do Benin, participou de documentários.
Num deles, em que fez o roteiro e dirigiu, Verger mostra os lugares que freqüentava na
África, Paris e Salvador, conta histórias e até dança. A Corrupio espera finalizar esse
trabalho em breve.
A vantagem dessa nova fase da sua vida é que ele estava permanentemente em Salvador e
aproveitava isso. Verger gostava muito de ir em Monte Serrat, Itapuã, Água de Meninos,
nos sábados nós íamos na Liberdade, Largo do Tanque. Ele ficava comentando as
semelhanças com a África, no sotaque, na maneira de carregar as coisas. Gostava muito da
batida de coco do Deolindo, no Rio Vermelho, chamava de dose de optimismo : na
segunda dose, já está tudo ótimo , conta Arlete.
Estreitavam-se os laços também com os vizinhos. A garotada daqui estava sempre na casa
de Verger, perturbando, pedindo coisas , conta o vizinho César. Alguns eram mais
próximos, como Vermelho, que aprendeu com Verger sobre plantas; Ferreti, que lhe
ajudava a abastecer-se da fonte, antes da água encanada chegar por lá e Gonzaga, filho dos
amigos franceses. Estava sempre olhando as plantas, perguntando pra que servia e pedindo
uma mudinha , relembra Gonzaga. Verger pesquisou o tema durante décadas e até planejou
criar um horto no quintal. Entre o povo de santo, uma das visitantes freqüentes era a ebomi
Ajikutu, da Casa Branca, recebida sempre por ele com uma saudação cantada em yorubá.
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Eu comecei a vir pra comprar búzios, sabão da costa, orobô, obi, efum. Muita gente vinha
comprar, porque era confiável. Fomos f icando amigos , conta ela.
No final dos anos 80, já se aproximando dos 90 anos, Verger começou a pensar numa
forma de preservar o seu imenso acervo. A solução foi criar a Fundação Pierre Verger
(FPV), que passa a existir legalmente em 1989. O acervo era dele, a casa era dele e ele era
o mantenedor. Doou tudo o que tinha à Fundação. Todo o acervo pertence a ela
eternamente, não pode ser vendido, só trocado, com autorização do Ministério Público ,
explica o empresário Gilberto Sá, atual presidente da FPV. No acervo, documentos
diversos (correspondências, manuscritos, relatórios), objetos (107), mais de 62 mil
negativos, fotos, livros (2.800), fitas de música (130 horas gravadas) , explica Alex
Baradel, um dos atuais colaboradores da FPV.
Além de Gilberto, muitas pessoas estiveram por lá nos últimos anos, cuidando do acervo edo bem-estar de Verger. Eliana Miranda, Carybé e Solange Bernabó, como diretores, Dione
Baradel, Dona Cici, Negrizu e Jorge como colaboradores diários, viabilizando a pesquisa, o
cuidado com as fotos e a própria sobrevivência de Verger, que se tornou diabético e teve
problemas de saúde. Ele era muito agradável, jamais se pode dizer que era mal-educado ou
grosseiro. Só gostava que as pessoas tivessem um objetivo real, que não viessem aqui em
busca de um mito. Pela idade, ele se cansava rápido, mas trabalhava diariamente , conta
Dione. Durante muito tempo, seus negativos só eram confiados ao laboratorista Popó ou a
Negrizu, o vizinho Antonio fazia pequenos serviços na casa e o etnomusicólogo Ricardo
Souza também estava sempre por lá, fazendo companhia e revezando-se com as outras
pessoas para não deixá-lo dormir sozinho. A lista de amigos é extensa.
Em 1988, a etnomusicóloga Angela Luhning entrou na vida de Verger. Interesses comuns
os aproximaram e ela foi morar na casa em frente, onde está até hoje. Carinho e
profissionalismo se misturaram: Eu tinha a chave da casa, ficava aqui até tarde. Saíamos
pra caminhar de manhã. Ele não gostava muito das parafernálias da civilização , não tinha
telefone durante muito tempo. Nós agendávamos exposições em outros países trabalhando
aqui na Fundação e correndo pra atender ao telefone quando tocava na minha casa. Quando
tinha que atender, Verger se ajeitava rápido, pegava a bengala, o sapato, a calça, ou ia
mesmo com o pano amarrado , conta Angela, que é professora da Ufba. O pano
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amarrado era a indumentária caseira básica: um saiote africano, também adotado por
alguns de seus amigos.
Contando com mais funcionários e um conselho de curadores mais amplo, a partir de 2002
a FPV iniciou uma série de mudanças. O objetivo principal era comemorar a altura o
centenário de nascimento de Verger, em novembro de 2002. Estamos saindo da
hibernação. O nosso plano de ação é reordenar esse espaço, que será o núcleo de pesquisa;
criar postos avanços, em outros locais, para popularização do acervo; reequipar a fundação
e regularizar as parcerias, como a que temos com o Ministério das Relações Exteriores da
França e as editoras. Para o centenário, vamos fazer uma exposição itinerante de fotos,
lançamento de livros, eventos no exterior, celebrações nos terreiros , explicou Gilberto Sá
na época.
Tudo o que estava planejado foi realizado e muito mais continua ocorrendo. Entre abril de2002 e junho de 2003, a mega exposição O olhar viajante de Pierre Fatumbi Verger
percorreu seis capitais brasileira, mas fez um sucesso tão grande que conseguiu patrocínio
para continuar na estrada e passar por outras cidades. Ocorreram exposições também na
França e no Benin. No Portal da Misericórdia, entrada do centro histórico de Salvador, foi
inaugurada a Fundação Pierre Verger Galeria, facilitando o acesso dos interessados às
fotografias de Verger. De lá para cá, vários livros sobre Verger também foram relançados
ou lançados, como a volumosa biografia Pierre Verger, um retrato em preto e branco , de
Cida Nóbrega e Regina Echeverria. E foi criado ainda o site oficial da FPV
(www.pierreverger.org), em português, francês e inglês, com informações sobre a vida e a
obra de Verger, eventos promovidos pela fundação e centenas de fotos.
Até os seus últimos instantes, Verger conservou-se apaixonado pela vida. Pouco tempo
antes de falecer, o médico Angelo Decanio proporcionou a ele alguns bons momentos,
hospedando-o em sua casa por quatro meses, na praia de Paripe, Subúrbio de Salvador, para
cuidar da sua saúde. Tratei ele com ervas, com acupuntura. Ele melhorou, fechamos a
úlcera, começamos a caminhar na praia, a fazer ginástica com peso. Aquele velho tinha
orgulho de ser gente. Conversava o dia todo, contava histórias incríveis, lembrava o dia, o
horário em que tinha acontecido. Quando saía de carro, reparava nas cores das árvores, do
mar , diz Decanio.
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Até o final, ele manteve também uma ambígua relação com a espiritualidade. Dizia que não
acreditava em candomblé, que admirava o transe como uma forma das pessoas
manifestarem sua verdadeira natureza , mas sempre conservou com um bom cadeado a
maleta onde estava o jogo do Ifá, que alguns o viram consultar em raras ocasiões. Retardou
o quanto pôde a finalização de Ewé , o livro sobre o uso litúrgico de plantas, pois os
orixás já tinham avisado que este seria o seu último trabalho. Dizia que nunca deixou de ser
um francês racionalista , mas criou com o babalorixá Balbino Daniel de Paula o terreiro
do Aganju, em Lauro de Freitas, que já é uma grande casa. Também pediu à ebomi Ajikutu
que, após a sua morte, providenciasse uma certa oferenda para ele, na Casa Branca, no
lugar onde estão os ancestrais. Para ebomi Ajikutu, que providenciou tudo como Verger
pediu, o motivo dele ter vivido tanto tempo e morado tantos anos na Bahia é simples: Os
orixás gostaram dele, viram que ele podia levantar um pouco a cultura negra nessa terra ,avalia ela, que gosta de definir seu velho amigo como um nagô branco .
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