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R EVISTA DO MUSEU DE A RQUEOLOGIA E ETNOLOGIA U NIVERSIDADE DE SÃO PAULO Suplemento n. 18 2014 I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial “Representações da romanização no mundo provincial romano” Coordenadora Maria Isabel D’Agostino Fleming

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REVISTA DO MUSEU

DE

ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Suplemento n. 18 2014

I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial“Representações da romanização no mundo provincial romano”

CoordenadoraMaria Isabel D’Agostino Fleming

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SÃO PAULO, BRASIL

REVISTA DO MUSEU

DE

ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial“Representações da romanização no mundo provincial romano”

CoordenadoraMaria Isabel D’Agostino Fleming

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I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial“Representações da romanização no mundo provincial romano”

27 a 29 de novembro de 2013Faculdade de Educação – USP

Coordenadora

Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino Fleming

Comissão Organizadora

Alessandro Mortaio GregoriAlex da Silva MartireTatiana Bina

Comissão Científica

Carlos Augusto MachadoFábio Faversani

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Apresentação

O I Simpósio do LARP “Representações da romanização no mundo provincial romano”, realizado de 27 a 29 de novembro de 2013, no auditório da Faculdade de Educação da USP, foi uma reunião exclusivamente sobre Roma no Brasil, de forma a abrir espaço para discussões mais aprofun-dadas relativas às temáticas do imperialismo romano; exército; romanização; alteridade/identidade; identidade e discurso; religião e política; urbanismo/urbanização; transformação dos espaços públi-cos; monumentalidade; iconografia; espaço doméstico: tecnologia, produção e consumo; território e paisagem, entre outros. Consistiu, pois, numa oportunidade única de estabelecer debates entre especialistas para aprimorar o desenvolvimento desta área no Brasil. Foi o primeiro evento com uma representatividade expressiva de treze pesquisadores docentes de universidades brasileiras (UFRJ, UFES, UFPE, UFRN, UFPR, UFOP, UNICAMP e USP), que proferiram palestras de 45 minutos, e três do exterior (Universidade de Lisboa, Duke University e Universidade do Minho), que proferiram conferências de uma hora. Entre os demais participantes, em número de 14 e que contribuíram com comunicações de 20 minutos, estiveram presentes doutores e doutorandos da USP, UFRJ e UERJ.

Os trabalhos apresentados foram de extremo interesse para a comunidade que pôde acompanhar pesquisas em andamento e/ou com resultados mais consolidados, o que permitiu inclusive propostas de cooperação em temas transversais que incluíram outros especialistas do público ouvinte, como, por exemplo, pesquisas desenvolvidas no Norte da África de dominação romana e de contexto púnico.

Agradecemos nesta oportunidade o apoio financeiro da FAPESP, da Pró-Reitoria de Pesquisa e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, além do apoio logístico da Faculdade de Educação-USP.

Maria Isabel D’Agostino Fleming

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Sumário

PALESTRAS

COMUNICAÇÕES

3

11

19

29

37

49

59

69

79

91

99

109

119

127

135

141

Maria Isabel D’Agostino Fleming

Gilvan Ventura da Silva

Pedro Paulo A. Funari

Renato Pinto

Marcia Severina Vasques

Norma Musco Mendes

Silvana Trombetta

Regina Maria da Cunha Bustamante

Vagner Carvalheiro Porto

Fábio Augusto Morales

Marcio Teixeira Bastos

Alessandro Mortaio Gregori

Uiran Gebara da Silva

Irmina Doneux Santos

Alex da Silva Martire

Airan dos Santos Borges

A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise

A cidade representada pelo poder imperial:Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon

Considerações sobre a contribuição da Arqueolo-gia da Bética para o estudo da economia romana

O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia

Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade

A província da Lusitania: sistema econômico global e local

O ritual da morte entre os celtiberos

A construção romana das representações sociais da África através das moedas

A cidade como discurso ideológico: monumen-talidade nas moedas do Império Romano

Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia

A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco

Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V)

Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio

Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial

ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensio-nais interativos do LARP

“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa

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Contents

CONFERENCES

COMUNICATIONS

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19

29

37

49

59

69

79

91

99

109

119

127

135

141

Maria Isabel D’Agostino Fleming

Gilvan Ventura da Silva

Pedro Paulo A. Funari

Renato Pinto

Marcia Severina Vasques

Norma Musco Mendes

Silvana Trombetta

Regina Maria da Cunha Bustamante

Vagner Carvalheiro Porto

Fábio Augusto Morales

Marcio Teixeira Bastos

Alessandro Mortaio Gregori

Uiran Gebara da Silva

Irmina Doneux Santos

Alex da Silva Martire

Airan dos Santos Borges

The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsu-la and the Roman presence: perspectives of analysis

The city represented by the imperial gover-nment: Julian and his rebukes against the Antio-chene population in the ‘Misopogon’

The role of archaeology of Baetica in studying the Roman economy

The interest in the violence of ‘Romanisation’. A brief archaeological study of the first uprisings in Roman Britain

Territorial spaces and networks of power in Roman Egypt: imperialism, religion and identity

The province of Lusitania: global and local economic systems

The death ritual among the Celtiberian People

The Roman construction of social representa-tions of Africa by means of coins

The city as ideological discourse: monumentality in the coins of the Roman Empire

Graecia capta, again: some thoughts on the limits of the romanization of Greece

The industry of light in Roman Palestine: production, consumption and distribution of discus oil lamps

Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V)

The peasants and the land of northern Gaul in the Late Roman Empire

The Roman provincial fora: local identity represen-tation inside a typically imperial place of power

ROMA 360 and DOMUS: LARP’s three-dimen-sional interactive projects

“Among spaces, representations and agents: the imperial landscape in cities of the Roman Lusitania”: a research proposal

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Palestras

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

Introdução

A questão que nos interessa situa-se em duas frentes, a primeira refere-se à

produção da cerâmica doméstica e sua duração no contexto castrejo do noroeste da Península Ibérica, a segunda, atrelada à primeira, investiga o significado e alcance sociocultural e tecnológi-co de uma mudança extremamente importante, ou seja, a passagem da mão-de-obra feminina à masculina, como ponto de inflexão de uma tradição milenar e que indica um dos caminhos de integração das populações locais nas redes comerciais e culturais do Império romano.

Tendo em vista o maior ou menor contato entre essas comunidades e os elementos externos, os dados necessários para estimar o nível de con-tato e a variação nas técnicas utilizadas na produ-ção cerâmica no contexto castrejo esbarram em dificuldades, como a diferença entre os sítios e os diferentes tempos e condições desse processo. A esses aspectos devem ser acrescentados outros enfatizados por alguns estudiosos, como Manue-la Martins (1990: 29), referentes à valorização deficiente dos materiais arqueológicos – habitat indígena e ocupação do espaço rural – correspon-dentes à época romana. Segundo a autora, “Com exceção dos achados de natureza numismática, mais fáceis de datar, e nos quais repousam algu-mas cronologias da ocupação de povoados e de necrópoles, ou das cerâmicas importadas (cam-panienses, ânforas, sigillatas), os outros achados têm sido pouco estudados. Estão nesse caso as cerâmicas comuns, que constituem afinal o

A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise

Maria Isabel D’Agostino Fleming*

FLEMING, M.I.D’A. A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 3-9, 2014.

Resumo: O longo processo de passagem da produção cerâmica pré-romana para a romana, que durou praticamente dois séculos e meio em alguns centros castrejos do noroeste da Península Ibérica, espelha a dificuldade de romper tradições estruturais, fortemente arraigadas no interior de populações domi-nadas e que estabelecem os limites da romanização no contexto doméstico. Esta comunicação visa discutir as formas de análise específicas desse tipo de produção comparativamente às realizadas comumente para as cerâmicas de grande difusão produzidas em oficinas especializadas, como a cerâmica sigillata, e que evidenciam a integração das populações locais nas redes comerciais e culturais do Império romano.

Palavras-chave: Cerâmica castreja – Tecnologia cerâmica – Mão-de-obra feminina e masculina.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial. <[email protected]>

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A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

contradas nos contextos de escavação. Ao longo dessa convivência, que pode ser estimada por volta dos finais do séc. I a.C. em diante, podem--se prever mudanças gradativas nas formas de produção da cerâmica doméstica com mão-de--obra feminina na perspectiva de atingir a plena inserção da mão-de-obra masculina no processo produtivo especializado de modelo romano.

O contexto castrejo: cerâmica e metalurgia

A cerâmica e a metalurgia, de tradições milenares, se opõem e ao mesmo tempo se complementam, assim como o mundo feminino e o masculino no contexto da Idade do Ferro castreja. Segundo Marín Suarez (2007: 157), “Se atendermos à complementaridade das tecnolo-gias de cada sociedade, um de nossos objetivos deve ser conhecer o modo em que as sociedades castrejas estruturaram simbólica e espacialmente um artesanato metalúrgico em mãos masculi-nas, que reforça a ideologia guerreira, com um artesanato cerâmico em mãos femininas”. Nesse sentido, é nosso objetivo investigar a mudança

material mais abundante, quer nos castros, quer nos sítios arqueológicos. O desconhecimento da cronologia destas produções cria com frequência graves distorções interpretativas, favorecendo uma deficiente valorização dos achados e das esta-ções e consequentemente uma errada perspectiva do povoamento da região. A datação tardia da maior parte das necrópoles romanas do Norte de Portugal, escavadas em condições deficientes, forneceu uma imagem deformada da romani-zação. Com efeito, a abundância de necrópoles datadas dos sécs. III e IV levou à asserção de que a ocupação rural romana só teria sido um facto pleno já no Baixo Império, pelo que se valorizou excessivamente o habitat castrejo nos primeiros séculos de nossa era. Os estudos mais recentes, sobretudo incidentes nas cerâmicas comuns de Bracara Augusta, permitem hoje aceitar que mui-tos dos materiais daquelas necrópoles poderão ser datados do Alto Império, ainda que possam ter tido perdurações em época tardia”. (Fig. 1 )

Essas são informações valiosas para estimar o período de convivência entre a produção cerâ-mica doméstica castreja e a da grande produção especializada testemunhada pelas vasilhas en-

Fig. 1. Cerâmica pré-romana ( sécs. II-I a.C.). Bracara Augusta. Museu Arqueológico D. Diogo de Sousa, Braga. Foto da autora.

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Maria Isabel D’Agostino Fleming

neste binômio através da análise da cerâmica, na medida em que esta passou a ser um produto do trabalho masculino.

Ainda segundo Martins (1990: 29-30), foi grande a influência romana na cultura castreja nos primeiros séculos da nossa era, além de uma intensa ocupação rural, juntamente com a sobrevivência dos povoados fortificados, de acordo com os resultados das prospecções e interpretação dos dados epigráficos. Especial-mente os dados epigráficos têm uma relação estreita com a manufatura de vasilhas cerâmicas diferenciadas de confecção masculina, conforme será visto adiante.

O método de análise

Se desejarmos alcançar o processo de mudança por que passou a produção cerâmica castreja no período de dominação romana é pre-ciso que seja através de um distanciamento dos métodos de análise tradicionais, aplicados a ce-râmicas finas, com datações precisas e de grande difusão.(1) Esses métodos normalmente visam o estudo das formas em detrimento do uso ou função. É grande o peso dos estudos iconográfi-cos e o vaso, frequentemente decorado, é visto como um objeto cultural em sentido completa-mente diferente do das vasilhas comuns que são nosso foco de estudo. Tais estudos de cerâmica de grande produção voltam seu interesse para a distribuição e adoção de certas formas cerâmicas e decorações para identificar elementos de or-dem cultural, socioeconômica, ou ainda tecno-lógica, apenas para citar os domínios principais a que se associa este material. Por outro lado, para a cerâmica que nos interessa, é necessário

o conhecimento das funções e usos das vasilhas, das cadeias operatórias de sua fabricação para se chegar a informações mais precisas sobre o contato entre culturas. Nesse sentido, são detectáveis as alterações nas fases que compõem a confecção das vasilhas, eventualmente decor-rentes de interferências externas. O método de análise mais adequado para essa categoria cerâ-mica de cozinha e de armazenamento se apoia nos instrumentos da antropologia das técnicas, como os conceitos de sistema técnico ou de cadeia operatória (CO) (Leroi-Gourhan 1943, 1945; Lemonnier 1986). Nesse caso, a cerâmica comum proporciona o acesso a dois campos diferentes, o do uso das cerâmicas na economia doméstica e o da fabricação dos recipientes. A cerâmica é vista como um conjunto que encerra a relação entre os modos de produção e modos de consumo, ou seja, a fabricação dos vasos propriamente dita e a preparação e conservação dos alimentos, que são o índice de duas cadeias operatórias.

Quanto ao uso, a abordagem funcional tem a preocupação maior com os sistemas técnicos, apesar de dificuldades que se apresentam: no estudo do mobiliário observa-se a presença de várias técnicas e existência simultânea de vários ceramistas, sem que seja possível evidenciar o sistema de produção desses objetos, pois excep-cionalmente são conhecidas as estruturas das oficinas cerâmicas.

Mudança na produção cerâmica castreja

Podemos avaliar bastante insuficiente o nível de informações sobre o contexto de pro-dução da cerâmica castreja: resultados geral-mente parciais sobre as oficinas, assim como as atividades dos artesãos ceramistas, com raras evidências das estruturas de produção, além de esporádicas informações fornecidas pelas fontes literárias sobre a organização social das oficinas. A passagem da mão-de-obra feminina para a masculina na produção da cerâmica castreja em período de dominação romana será analisada através de dois trabalhos sobre acervos cerâmicos provenientes de castros do noroeste da Península Ibérica, cujos dados produzidos

(1) Sobre o método utilizado nesta comunicação veja-se espe-cialmente o resumo da mesa redonda Fabrication et fonctions: les “cultures en contact” et la céramique commune, organizada por Julien Zurbach (Ecole française d’Athènes) e Arianna Esposito (Université de Lille), apresentada no XVII Congresso da AIAC, Roma, 2008, programa: pp. 20-21. A publicação relativa a esta pesquisa encontra-se no prelo: Esposito, A; Zurbach, J. (Éds.) Fabrication et fonctions : les “cultures en contact” et la céramique commune dans la Méditerranée grecque et romaine. Paris: Presses de la MAE, Maison René Ginouvès.

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A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

contribuíram para o encaminhamento de nossa hipótese sobre a forma de como se deu esse processo: “Los materiales del castro de San L. Luis (Allande, Asturias)”, publicado por Carlos Marín Suarez (2007) e A Cerâmica Castreja da Citânia de Briteiros, publicado por Maria Antó-nia Dias da Silva (1997).

Martins Suarez (2007) apresenta o material cerâmico, em sua maior parte inédito, resultan-te das escavações dos anos 1960. Propõe uma reflexão teórica sobre o estudo da tecnologia cerâmica, com a aplicação de conceitos antropo-lógicos, tais como as cadeias operatórias (CO) e a superação definitiva das análises tipologistas, o que permite propor hipóteses de processos sociais, que são apresentados em chave de gêne-ro. Enfatiza que o estudo das técnicas permite aproximações sociológicas porque as técnicas são, sobretudo, produções sociais, sendo a cultura, e não a natureza, a principal limitação da técnica (Martins Suarez 2007: 139). Dias da Silva (1997), por sua vez, realizou um levanta-mento exaustivo da cerâmica de produção local, escavada em cerca de quarenta campanhas des-de o século XIX (1875-1884) à década de 1960 e depositada no Museu da Sociedade Martins Sarmento. São analisadas as transformações que marcam o período cronológico-cultural, do final do I milênio a.C. e século I d.C., sendo a cerâmica que serve de base ao estudo integrada cronologicamente a esta fase.

No contexto castrejo de ambos os estudos são detectadas variações na cadeia operatória, com diferentes fases, sendo apontadas modifica-ções nas estruturas habitacionais no castro San Luis (Astúrias). Neste sítio, no último estágio da CO pré-romana verifica-se a presença de peças da CO de tradição local do período romano (“comum romana”), de peças de Terra Sigillata e de vasilhas de paredes finas. Nos estratos mais recentes é recorrente a associação das diversas CO: a) CO pré-romana, que perdurou até a passagem do séc. I ao II d.C., b) sua substitui-ção completa pela cerâmica de tradição local de período romano e pelas “vasilhas de luxo”, sem possibilidade de diferenciação entre a fase pré-romana e a romana. Não se sabe até que ponto continuaram a ser feitos vasos com orelhas (forma muito típica pré- romana), os

quais foram substituídos pelos vasos de borda perfurada (Fig. 2). Outras formas continuaram (bordas facetadas, curvas e retas). Novas formas aparecem (travessas), e talvez reflitam mudan-ças gastronômicas, pois podem ser usadas para panificação, substituindo presumivelmente os mingaus de cereais (Martins Suarez 2007: 155-56). Esse exemplo de introdução e evolução de certas formas em repertórios cerâmicos de produção local dá a dimensão das dinâmicas, continuidades e transformações culturais dessas populações, e responde a necessidades relati-vas às práticas da mesa, como também aponta Michel Bats (1985; 1988).

Fig. 2. Vaso de borda perfurada. Forma que substituiu os vasos com orelhas, forma típica pré-romana. Museu Arqueológico da Citânia de Sanfins. Foto da autora.

Segundo Marín Suarez (2007: 158), o uso das Cadeias Operatórias nos revela a impro-dutividade de categorias clássicas nos estudos cerâmicos – como a oposição mão/torno, análises tipológicas baseadas nas formas finais – e possibilita reconhecer tradições tecnológicas historicamente situadas. O estudo das vasilhas do Castro San Luis indicou que a mudança fundamental na Cadeia Operatória pré-romana não se produziu tanto nas formas e decorações, mas na rotação empregada e na sequência de montagem, sendo esta a chave que no nível social pode ter levado ao fim do controle tec-nológico feminino de uma tradição milenar e o fim das produções locais ou autossuficiência tecnológica.

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Maria Isabel D’Agostino Fleming

Se por um lado a pesquisa da cerâmica do castro San Luis possibilitou identificar as trans-formações no controle tecnológico feminino na produção doméstica, o estudo do vasilhame cerâmico da Citânia de Briteiros apresentou um elemento interessante para investigar a inovação neste binômio masculino / feminino, condizente com a introdução da especialização masculina na produção cerâmica. No acervo cerâmico de Briteiros, assim como no do castro San Luis, a presença da Terra Sigillata do sé-culo II d.C. revela a integração desses sítios no circuito comercial. Em Briteiros essa integração é acompanhada pela presença de vasilhas de produção local, do século I d.C., com marcas de fabricação e inscrições votivas (Figs. 3 e 4). São vasos votivos, isto é, com uma função espe-cífica. Apesar de seu de grande porte, são feitos

com pasta mais depurada, contrariamente à usada para grandes vasilhas de armazenamen-to. Seu acabamento é esmerado e a decoração diferenciada. Essas características indicam uma produção que extrapola o nível local e se des-tina à circulação entre os demais castros da re-gião, confirmada pela identificação do artesão, que atingiu muito provavelmente uma posição de prestígio social. Forma-se um contexto que contrasta nitidamente com o da produção da cerâmica comum, doméstica, com poucas varia-ções e restrita ao uso interno (Quadro 1). Este é o início da passagem da produção feminina para a masculina e que posteriormente seguirá o modelo da produção cerâmica em oficinas fora do âmbito doméstico, com artesãos espe-cializados, voltadas para a exportação, típicas do mundo romano.

Fig. 3. Vaso com inscrição votiva. Museu da Citânia de Briteiros. Foto da autora.

Fig. 4. Reprodução do mesmo vaso. Silva (1997: Est. LXI, 4).

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A cerâmica castreja do noroeste da Península Ibérica e a presença romana: perspectivas de análise. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 3-9, 2014.

Quadro 1. Contexto de circulação, para além do castro de origem, de vasos castrejos com inscrições votivas e nome do artesão.

FLEMING, M.I.D’A. The castro pottery of Northwestern Iberian Peninsula and the Roman presence: perspectives of analysis. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 3-9, 2014.

Abstract: The long process of transition from pre-Roman pottery produc-tion to the Roman one, during practically two and a half centuries in some cas-tro centers in the Northwest of the Iberian Peninsula, mirrors the difficulty in breaking structural traditions, strongly rooted in the interior of the dominated populations which establish the limits of romanization in the domestic con-text. This communication aims at discussing the specific forms of analysis of this type of production as compared to those commonly done for potteries of large diffusion produced in specialized workshops, as the sigillata pottery, and that evince the integration of local populations in the commercial and cultural networks of the Roman Empire.

Keywords: Castro pottery – Pottery technology – Feminine and masculine labor.

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Maria Isabel D’Agostino Fleming

BATS, M. 1985 La vaisselle céramique d’Olbia de Provence

(Hyères, Var), milieu du IVe-milieu du Ier s. av. J.-C., Recherches sur l’alimentation et les manières de table. Thèse de IIIème Cycle, Aix-en-Pro-vence, 1985, 2 vol., 360 p.+ 186 pl.

1988 Vaisselle et alimentation à Olbia de Provence (v.350-v.50 av.J.-C.).Modèles culturels et catégories céramiques. Paris (18e Suppl. à la RevArchNarb).

LEMONNIER, P. 1986 The Study of Material Culture

Today: Toward an Anthropology of Tech-nical Systems. Journal of Anthropological Archaeology, 5: 147-186.

LEROI-GOURHAN, A. 1943 L’Homme et la Matière. Sciences

d’aujourd’hui. Paris: Albin Michel.1945 Milieu et Techniques. Sciences

d’aujourd’hui.Paris: Albin Michel. MARTINS, M.

1990 O Povoamento Proto-Histórico e a Ro-manização da Bacia do Curso Médio do Cávado. Cadernos de Arqueologia, Monografias. Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho.

MARÍN SUAREZ, C.2007 Los materiales del castro de San L. Luis

(Allande, Asturias). Complutum 18: 131-160.

SILVA, M.A.D.da 1997 A Cerâmica Castreja da Citânia de Bri-

teiros. Gimarães: Sociedade Martins Sarmento.

Referências bibliográficas

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

A transição da cidade clássica para a cida-de pós-clássica, e isso tanto no Oriente

quanto no Ocidente, foi marcada por um complexo jogo de rupturas e de permanências, de estímulo à inovação e de apego à tradição que pode ser acompanhado mediante a inves-tigação dos repertórios artísticos e dos arranjos arquitetônicos, pois muito da arte e arquitetura cristãs é tributário dos modelos clássicos, fato sobejamente conhecido, mas que nunca é exces-sivo recordar. Do ponto de vista simbólico, no

entanto, vemos se esboçar, no século IV, uma imagem da cidade que contrasta agudamente com tudo aquilo que até então se pensava a respeito do assunto. No torvelinho das transfor-mações operadas a partir da segunda metade do século III e que culminaram com a redefinição de muitos elementos da sociedade romana, emerge uma representação da vida urbana, das suas atividades e entretenimentos, calcada, por um lado, num profundo pessimismo e, por outro, no pressuposto segundo o qual a cidade não é mais um ambiente consagrado aos deuses, um território colocado sob a proteção divina e, portanto, imune aos perigos e calamidades, tanto as do corpo quanto as da alma. Se, no decorrer de todo o Mundo Antigo, a cidade nunca foi tida a priori como uma ameaça aos

A cidade representada pelo poder imperial:Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon

Gilvan Ventura da Silva*

SILVA, G.V. A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à popula-ção de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 11-18, 2014.

Resumo: Antioquia, a metrópole da província da Síria, era, na Antiguidade Tardia, uma cidade célebre pela exuberância dos seus festivais lúdicos e reli-giosos e pela intensa mobilização dos seus habitantes, que dia e noite frequen-tavam a avenida das colunatas ladeada por pórticos e monumentos, numa interação que por vezes resultava em manifestações verbais de descontentamen-to contra as autoridades romanas ou mesmo em rebelião aberta. Neste artigo, temos por finalidade refletir sobre o estranhamento de Juliano com a popula-ção de Antioquia quando o imperador aí se instalou, entre 362 e 363, a fim de preparar a expedição contra os Sassânidas. Para tanto, exploramos como fonte principal o Misopogon, sátira na qual Juliano dirige severas críticas ao estilo de vida dos antioquenos, que considera licenciosos e indolentes, permitindo-nos assim captar sua representação acerca da cidade.

Palavras-chave: Antiguidade Tardia – Representação – Antioquia – Juliano – Misopogon.

(*) Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História e Programa de Pós-graduação em Letras da Universi-dade Federal do Espírito Santo (Ufes). <[email protected]>

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A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

de foi reportado por Amiano Marcelino (22.9) como um mau presságio. Antioquia, àquela altura, encontrava-se imersa em uma grave crise de abastecimento, resultado de uma longa es-tiagem durante os anos de 361 e 362 que havia arruinado a colheita do trigo (Liebeschuetz 1972: 126 e ss.). A despeito da conjuntura desfavorável, o imperador foi bem recebido pela população reunida no hipódromo para saudá-lo. Em pouco tempo, no entanto, sua relação com os antioquenos tornou-se conflituosa, e isso por diversos motivos. Em primeiro lugar, os esforços de Juliano para contornar a crise foram vãos, pois o trigo importado, vendido a preço fixo, era adquirido pelos atravessadores e pelos grandes proprietários tendo em vista a especu-lação. Os comerciantes urbanos, culpando os grandes proprietários pela carestia, decidiram cruzar os braços, em protesto. O tabelamento do preço do pão, expediente destinado a confe-rir algum alívio à população urbana, não surtiu o efeito desejado, pois os camponeses afluíram em massa à cidade para se beneficiar do subsí-dio. Já o aquartelamento de um extenso con-tingente de soldados em Antioquia aumentava a demanda por víveres. Por fim, a campanha da Pérsia era tida como um erro de estratégia e carecia, portanto, de apoio popular (Downey 1961: 390 e ss.). À parte todas essas variáveis de ordem econômica e militar, bastante influentes por sinal, é necessário atentar para o fato de que o “ruído” entre Juliano e os antioquenos foi agravado também pela política religiosa do imperador, que desencadeou uma série de atri-tos, não apenas com os adeptos do cristianismo, como seria de se esperar, mas igualmente com os pagãos.

Nos meses em que residiu em Antioquia, Juliano dedicou-se a uma autêntica peregrinação pelos templos e santuários em sinal de reverên-cia às divindades cívicas, dentre as quais Zeus, Deméter, Hermes, Pan, Ares, Calíope, Apolo, Ísis e a Tyche. Uma peculiaridade da devoção de Juliano era o seu apego aos sacrifícios san-grentos, com o abate de um grande número de vítimas prontamente consumidas pelos soldados de sua comitiva, atitude um tanto ou quanto acintosa diante de uma crise de abastecimento então em curso. O palácio imperial da ilha do

seus habitantes, como um ambiente inóspito, degradado, privado de carisma e que merecesse ser regenerado, reformado ou mesmo purifica-do, no século IV parece pouco a pouco tomar forma uma representação que, ao converter a cidade numa realidade potencialmente nociva, uma heterotopia, como certa vez sugeriu Lefebvre (2004: 45), engendra um conjunto de discursos e de práticas que visam à sua reabilitação, segun-do uma lógica na qual prevalece a obsessão pela pureza, de modo a se obter, ao término da ope-ração, uma cidade coesa, una, solidária e isenta de qualquer agente que a coloque em risco.

Quando refletimos sobre as múltiplas imagens da cidade na Antiguidade Tardia, de imediato se impõe o estranhamento entre os cristãos e o modus vivendi urbano que desembo-ca, ao fim e ao cabo, numa proposta de reforma social bastante ambiciosa, como é possível cons-tatar por intermédio da consulta aos autores da Patrística. Mas, e quanto aos pagãos? Teriam eles, no século IV, alguma alternativa a propor ao discurso cristão no que se refere à imagem de cidade que gostariam de ver concretizada? No caso de Antioquia, cujo processo de cristiani-zação vimos investigando há alguns anos, um exame da literatura pagã disponível nos permite captar alguns pontos de interseção absoluta-mente insuspeitos entre a representação pagã e a cristã acerca da cidade antiga. Nesse aspecto, uma obra emblemática e até certo ponto des-concertante é o Misopogon, de Juliano, sátira na qual o imperador, sob o pretexto de se defender da intensa zombaria da qual foi vítima durante a estada em Antioquia, esboça os contornos da sua concepção de cidade, concepção esta que, acreditamos, não deva ser tomada como mero produto de um desacordo trivial entre os súdi-tos e Juliano, mas como parte do programa de governo que este almeja implementar após a sua proclamação como Augusto, em 361.

Juliano permaneceu em Antioquia cerca de oito meses, entre julho de 362 e março de 363, após uma breve passagem por Constantinopla, onde celebrou as exéquias de Constâncio II, morto em novembro de 361. Sua entrada sole-ne na cidade ocorreu em 18 de julho de 362, no segundo dia do festival de Adonis, quando se pranteava a morte da divindade, o que mais tar-

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Orontes, por sua vez, foi convertido num tem-plo, erigindo-se altares nos jardins, sob as árvo-res, onde o imperador poderia acompanhar os sacrifícios com maior comodidade (Soler 2006: 44). Crítico contumaz dos jogos, dos mimos e pantomimas, Juliano se afasta deliberadamente do teatro e do anfiteatro, proibindo inclusive que os sacerdotes pagãos compareçam aos espe-táculos ou recebam a visita de atores, dançarinos e aurigas (Ep. 89b, 304). Agindo com singular audácia, decide suprimir a Maiuma, um antigo festival orgiástico celebrado a cada três anos em honra a Dioniso e Afrodite (Soler 2006: 39). Inclinado a uma postura rigorista e altaneira, Juliano se apresenta, na cidade, como um filó-sofo, evitando o contato com a população nos espaços de lazer, censurando suas modalidades de entretenimento e acusando-a de indiferença para com os deuses. Irritados, os antioquenos não tardam a lançar mão da irreverência e do deboche contra o imperador. De acordo com Gleason (1986: 108), no início de janeiro de 363, quando da comemoração das Calendas, que anunciavam o Ano Novo, o desconforto da população com o imperador teria se tornado insustentável, pois a festa, ao assumir um tom claramente jocoso, forneceu aos antioquenos o pretexto para exercitar amplamente a sua verve satírica, sendo Juliano comparado a um macaco, a um anão, a um bode barbado e mesmo a um victimarius, um açougueiro, devido à pletora de sacrifícios que promoveu (Am. Marc. 22,14). Não obstante a indignação pelo ultraje sofrido, Juliano evitou o uso da força contra a cidade, preferindo responder aos insultos mediante a redação de uma obra sui generis, o Misopogon, na qual recorria à ironia para justificar suas ações como imperador, ao mesmo tempo em que cen-surava asperamente os habitantes de Antioquia pela sua leviandade e indisciplina.

O Misopogon, em tradução literal, o “ini-migo da barba”, foi composto entre a segunda quinzena de janeiro e o mês de fevereiro de 363, num momento em que Juliano se preparava para partir rumo à Babilônia, onde daria com-bate aos persas. O título é uma alusão direta à sua barba de filósofo que tanto desconforto causava aos antioquenos. Os manuscritos registram, no entanto, um outro título pelo qual

a obra também era conhecida: Antiochikos, o que reforça o teor satírico do texto, pois Antiochikos evocaria um panegírico em louvor à cidade, como aquele pronunciado por Libânio por ocasião dos Jogos Olímpicos de 356. Inverten-do os cânones literários dos panegíricos cívicos, nos quais era de praxe se exaltar a nobreza do fundador da cidade, a reverência dos habitantes para com os deuses, a temperança dos cidadãos na vida pública e a correta educação dispensada à juventude, Juliano faz do Misopogon um anti-panegírico (Marcone 1984: 233-4), um discurso decerto dirigido à cidade, mas não para a enal-tecer e sim para denunciar as suas imperfeições, permitindo-nos captar, nas entrelinhas, a repre-sentação da cidade ideal que pretendia erigir. Sendo o Misopogon uma obra que se aproxima muito mais do psogos, da inventiva, do que dos textos legislativos, é muito difícil enquadrá-la nos assim denominados “editos de castigo” que desde o Principado os imperadores de quando em quando promulgaram contra uma cidade ou outra devido ao mau comportamento da população, o que nos obriga a refutar a hipótese de Gleason (1986: 116) sobre os antecedentes jurídicos do texto. Como argumentam Van Hoof e Van Nuffelen (2011), em contraposição a Gleason, o Misopogon se distingue dos “editos de castigo” por duas características que lhe conferem uma inequívoca singularidade. A pri-meira delas diz respeito à forma, uma inventiva extensa e erudita de um imperador contra o “de-satino” dos súditos. A segunda, ao conteúdo, pois, no Misopogon, Juliano se propõe a aclarar a sua própria interpretação acerca do conflito que o opôs aos antioquenos e que foi suscitado, ao que tudo indica, por uma grave falha de comu-nicação entre o poder imperial e a população.

Um exemplar do Misopogon foi afixado no Tetrapilo dos Elefantes, arco triunfal que supor-tava uma quadriga puxada por tais mamíferos. Segundo o relato de Malalas, o monumento situava-se na Regia, a avenida que conduzia à en-trada do complexo palacial do Orontes (Chroni-con, 13, 19). De fácil acesso, o Tetrapilo ade-quava-se bastante bem à publicidade que Juliano desejava conferir à obra (Downey 1961: 393-4). Cópias do Misopogon foram certamente enviadas às principais cidades do Império, de maneira

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A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

que o texto era de amplo conhecimento, tendo sido citado por Amiano Marcelino, Gregório de Nazianzo, Eunápio, Sócrates e Sozomeno, além de Libânio. Sobre a sua repercussão, logo após Juliano deixar a cidade, Libânio escreveu duas orações, uma destinada ao imperador (Or. XV) e outra aos seus concidadãos (Or. XVI), nas quais os exortava à reconciliação. Receosos da deci-são de Juliano de não mais retornar a Antioquia após a campanha da Pérsia, a cúria se apressa em enviar uma embaixada a Litarba a fim de demover o imperador, que já teria eleito Tarso como sua nova residência (Van Hoof & Van Nuffelen 2011). Os antioquenos, ou ao menos a elite local, pareciam assim tomar consciência do quanto haviam desagradado o imperador, que os deixou à mercê de Alexandre de Heliópo-lis, o recém-nomeado consularis da Síria, perso-nagem reputado como irascível e implacável na cobrança dos impostos (Petit 1955: 117).

Sócrates, um cronista cristão do século V, menciona, na sua História Eclesiástica (III, XVII), que por meio do Misopogon Juliano teria lançado um “estigma indelével” sobre Antioquia e seus habitantes, sugerindo assim que o texto teria gerado ou ao menos reforçado uma imagem de-preciativa da cidade. Mas qual seria o teor dessa imagem contida no Misopogon? Numa aprecia-ção geral, é possível perceber que a principal censura de Juliano refere-se ao apego excessivo dos antioquenos a tudo aquilo que diz respeito às modalidades de entretenimento público, um dos pressupostos da vida urbana sob o Império Romano. Em sua opinião, Antioquia constituía um exemplo extremo de polis tryphosa (Mis. 6), ou seja, de uma polis refém da tryphè, vocábulo que pode ser traduzido como “moleza”, “de-licadeza”, “voluptuosidade”, “indolência” ou mesmo “humor desdenhoso e altivo”, traços da personalidade de indivíduos inclinados à calú-nia, à insolência e à devassidão, tais como os histriões, os bêbados e os glutões (Saliou 2011: 153). Muito embora, em algumas circunstân-cias, a tryphè pudesse adquirir uma conotação positiva, exprimindo a alegria de se viver numa cidade plena de conforto e de bem-estar, como celebra Libânio em seu panegírico de 356 (Silva 2011), a tryphè, de modo geral, era empregada como um rótulo contra aqueles que se deixavam

seduzir pelos prazeres da cidade e que, portanto, careciam de autocontrole, de sobriedade e de decência. Acerca disso, uma das críticas mais ácidas de Juliano versa sobre a predileção dos antioquenos pelas performances cênicas e pelas competições do hipódromo. Fazendo o elogio da própria austeridade, o imperador se gaba de sempre ter evitado o teatro (Mis. 4) e de detestar os ludi circenses (Mis. 5), lições que teria aprendi-do com o seu preceptor, Mardônio, responsável por instruí-lo no gosto pelos clássicos, afastando--o assim das pantomimas (Mis. 21), ou seja, dos solos de dança dramática bastante apreciados à época pelos habitantes de Antioquia, que se repartiam em claques ruidosas para torcer pelos bailarinos. Tomando o teatro como expoente da tryphè, Juliano compara a conduta dos antioquenos à dos celtas e germanos, com os quais havia convivido durante a campanha das Gálias. Afeitos à frugalidade e à simplici-dade (rusticitas), assim como o imperador, esses povos não poderiam, naturalmente, apreciar os ludi theatralis, que reputavam como grotescos e indecentes, principalmente devido à encenação do cordax (Mis. 30-31), um estilo de dança lasciva em louvor a Ártemis que teria sido incorporado pelos bailarinos às apresentações de pantomima (Jiménez Sánchez 2003: 117).

A principal razão pela qual Juliano comba-tia com tanta veemência o teatro, tendo inclu-sive se recusado a comparecer, em Antioquia, às encenações, como ele mesmo declara (Mis. 38), era de fundo religioso. Juliano desprezava o teatro não apenas pelo fato de este corromper a personalidade dos indivíduos, incentivando-os à prática de atos indecorosos, mas de atentar contra a dignidade dos deuses, pois nele os atores zombavam publicamente de Héracles e de Dioniso. Na avaliação do imperador, o teatro de seu tempo havia sido esvaziado por completo do ethos sagrado que outrora possuía, desconec-tando-se do culto aos deuses e adquirindo um matiz sacrílego, ímpio. Numa carta ao sacerdote Teodoro, escrita em janeiro de 363, quando ainda se encontrava em Antioquia, Juliano con-fessa que, se fosse possível banir dos teatros a indecência de modo a restituí-los, purificados, à tutela de Dioniso, não hesitaria em o fazer, mas, diante das circunstâncias, recomendava expres-

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samente aos sacerdotes pagãos que evitassem os espetáculos teatrais (Ep. 89b, 304). Consideran-do o teatro uma atividade ofensiva aos deuses, Juliano o transformava em algo que, ao menos em meios pagãos, ele nunca havia sido, ou seja, um vetor de poluição capaz de romper os liames entre os deuses e a polis. Aqui não se trata mais de apenas qualificar os atores e atrizes como infames, tendência já bem consolidada entre os juristas romanos do período imperial (Perea Yébenes 2004: 33-34), mas de condenar os ludi theatralis e o recinto que os abrigava como uma ameaça à sacralidade do solo urbano.

No intento de demonstrar como Antioquia era a antítese das hierai poleis, ou seja, das cida-des sagradas que veneravam as divindades, a exemplo de Emesa (Mis. 28; 33), Juliano acusa os antioquenos de negligenciar o cuidado com os cultos e os templos. Ao longo de toda a obra, vemos assim delinear-se uma tensão permanente entre as aspirações ascéticas de Juliano, imbuído da missão de edificar espiritualmente a polis, e a predileção dos antioquenos pela pândega, pelos mimos e espetáculos, sinais explícitos de degradação (Mis. 8; 14; 27). Nessa tarefa de reintroduzir a cidade na esfera do sagrado, Juliano se apresenta como um devoto obstinado dos deuses, alguém que não perde a oportuni-dade de frequentar os templos, mesmo quando a população se encontra em festa. O fervor da sua devoção ultrapassava a do simples crente, aproximando-o do estatuto de hierofante, mais um motivo de zombaria por parte dos antioque-nos, que o censuravam pela excessiva satisfação com que portava os objetos do culto, em vez de delegar a tarefa a um sacerdote de status infe-rior, como registra Amiano Marcelino (22, 14). Ambicionando incutir nos antioquenos uma rigorosa disciplina espiritual, exercitá-los numa ascese coletiva, poderíamos mesmo acrescentar, Juliano se recusava a patrocinar os jogos e os festivais, impedindo assim o congraçamento de todos os setores que compunham a polis. Den-tre os excluídos da cidade de Juliano contavam--se os cristãos, e isso por um motivo bastante peculiar. Sendo a priori um espaço de convívio entre homens e deuses, Antioquia não poderia comportar um culto como o dos adeptos de Cristo, responsáveis por profanar, com seus

ritos em honra aos mortos, o solo consagrado da cidade. Talvez por influência de Máximo de Éfeso, um dos seus principais conselheiros, Ju-liano se posiciona abertamente contra o hábito, que começa a se tornar corrente em seu tempo, de se realizar cortejos fúnebres durante o dia, o que não apenas expõe os espectadores ao risco de contaminação pelos cadáveres, mas também profana os templos, neutralizando a eficácia dos rituais (Ep. 136b).

Contrapondo-se à cosmovisão cristã segun-do a qual não haveria nenhuma incompatibili-dade entre os cadáveres e a vida urbana, a ponto de santos e mártires terem sido entronizados como protetores espirituais da polis, o que lhes permitia habitar o território intra muros, Juliano busca reforçar os antigos códigos do paganismo, que proibiam o livre trânsito dos defuntos. Tal constatação poderia nos induzir a supor, como querem alguns, que Juliano desejasse em certa medida “reviver”, “restaurar” ou “reabilitar” um paganismo moribundo diante de um cristianis-mo já consolidado. Todavia, uma leitura mais atenta da imagem de Antioquia que ressalta do Misopogon e de outros textos contemporâneos nos desautoriza a concluir que Juliano tenha sido tão somente um restaurador dos cultos ancestrais. Na avaliação de Soler (2006: 43) e Limberis (2000: 378), Juliano teria sido antes um inovador em assuntos religiosos, uma vez que, por intermédio da sua atuação político--filosófica, pretendeu oferecer uma nova face ao paganismo. Para tanto, não hesitou sequer em recorrer a elementos extraídos do cristianismo, o que explica, em diversos momentos, a proxi-midade entre as concepções do imperador e as dos cristãos. Nesse sentido, como argumenta com propriedade Bowersock (1996), ao lidarmos com o paganismo tardio não nos encontramos, a princípio, diante de um sistema religioso ineficaz, obsoleto e destinado a desaparecer por conta do avanço do cristianismo, nem muito menos diante de um sistema religioso refratário à inovação, à renovação e às adaptações reque-ridas pelo seu tempo. Antes, devemos estar atentos para captar a própria historicidade das crenças e práticas que costumamos reunir sob a categoria de “pagãs”, pois não raro a unidade sugerida pelo vocábulo tende a ocultar a extre-

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A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

ma diversidade e plasticidade daquilo que foi o paganismo antigo, um sistema religioso aberto a toda a sorte de empréstimos, inclusive de natu-reza cristã, como a reforma religiosa de Juliano nos permite concluir. Dentre tais empréstimos, um dos mais evidentes foi a noção de philanthro-pia, ou seja, o exercício da caridade para com os pobres, tema que o imperador desenvolve extensamente na carta ao sacerdote Teodoro (Ep. 89b). Num contexto em que as autorida-des episcopais, ao liderar as redes de assisten-cialismo, começavam a controlar uma massa anônima de pobres e indigentes, uma poderosa base de apoio para o trabalho de cristianização da cidade, Juliano propõe uma contraofensiva em moldes pagãos, exortando os sacerdotes ao cuidado com os pobres e prisioneiros, que deve-riam ser protegidos da ganância alheia.

A conexão entre o pensamento de Juliano e a doutrina cristã aflora, igualmente, na maneira pela qual o imperador se refere a Antioquia, como vemos no Misopogon. Em sua opinião, Antioquia não seria apenas uma cidade tryphosa, como tantas outras do Império, mas uma cidade marcada pela impiedade, pela falta de respeito para com os deuses. Juliano condena o estilo de vida dos antioquenos, sua frequência ao teatro e ao hipódromo, seus festivais, seu gosto pelas comemorações em praça pública, não como um desvio moral próprio de indivíduos de categoria inferior, mas como uma afronta à majestade divina. Para Juliano a cidade deveria aspirar à santidade, à elevação espiritual, o que exigia a rejeição a tudo aquilo que até então a caracterizava em prol da autopurificação. Talvez não fosse incorreto supor que, diante da cristia-nização da cidade antiga, processo cada vez mais nítido em meados do século IV, a reforma do paganismo idealizada por Juliano comportasse a

“helenização” da cidade, desde que esta heleni-zação não seja compreendida tão somente como um bloqueio à atuação dos cristãos no recinto urbano, como uma reabilitação dos cultos an-cestrais da polis ou como o restauro dos templos e santuários. De fato, pensar nos termos de uma helenização da cidade greco-romana sob Juliano é pensar na configuração da polis como uma cidade hierática e ascética na qual as redes tradicionais de sociabilidade urbana tendem a ser suplantadas por um estilo de vida calcado na frugalidade, na simplicidade, no autocontrole, mas, acima de tudo, numa atitude de permanen-te veneração. Levando em conta que Juliano buscava erodir a influência cristã sobre a vida pública e reatar os laços que uniam a cidade ao mundo divino, tal reverência não poderia restar oculta no interior dos templos. Por esse motivo, a devoção de Juliano assume uma dramaticidade hiperbólica, com a multiplicação de procissões, rituais e sacrifícios na expectativa de mobilizar a população em prol da causa dos deuses (Limbe-ris 2000: 380). Antioquia, no entanto, parecia resistir às investidas reformadoras do impe-rador, do mesmo modo que resistirá, alguns anos depois, às pretensões de João Crisóstomo. Permanecendo unidos a tudo aquilo que, sob o Império, havia caracterizado o modus uiuendi urbano, os antioquenos se recusavam a abando-nar a praça pública para se recolher, em oração, nos templos. Por meio da dança, da algazarra e, em especial, do deboche, a população desafiava as propostas de enquadramento autoritário do seu cotidiano, preferindo prestar culto aos seus deuses como por séculos havia feito, ou seja, com alegria e espontaneidade, o que a levava a ignorar o fervor religioso nutrido por um imperador-filósofo atormentado pela busca da pureza, da simplicidade e da perfeição.

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SILVA, G.V. The city represented by the imperial government: Julian and his rebukes against the Antiochene population in the ‘Misopogon’. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 11-18, 2014.

Abstract: Antioch, the metropolis of the Syrian province, was, in the Later Roman Empire, a noticeable city due to the exuberance of its religious festivals, the quality of its theatrical performances and the intense movement of its in-habitants, who night and day attended the avenue of the colonnades surround-ed by porticoes and monuments, in a kind of interaction which sometimes resulted in demonstrations against the local and imperial authorities. In this article, we intend to analyze the clash between Julian and the Antiochenes dur-ing his sojourn in the city between 362 and 363, when he organized the Persian campaign. In order to do that, we exploit as main source the Misopogon, a satire in which Julian admonishes fiercely the Antiochenes, considered by him lustful and indolent people. By means of such rebukes, we can recreate to a certain

extant the Julian’s representation regarding the city and its population.

Keywords: Later Roman Empire – Representation – Antioch – Julian – Misopogon.

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Referências bibliográficas

Documentação primária impressaDocumentação primária impressa

Obras de apoio

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A cidade representada pelo poder imperial: Juliano e a censura à população de Antioquia no Misopogon. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 11-18, 2014.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

Introdução

Este artigo inicia-se com a apresentação do ponto de vista adotado, numa

perspectiva de História da Ciência que enfatiza suas ligações com as circunstâncias sociais e políticas (pace Thomas Patterson). Em seguida, são explicitados os contextos de investigação, em particular como parte de um projeto apoia-do pelo CNPq (bolsa de produtividade) de estudo da economia romana e com apoio do Centro de Estudos da Interdependência Pro-vincial na Antiguidade Clássica, em parceria com o Professor José Remesal, assim como a colaboração com Airton Pollini e que resultou na publicação de Mercato, Le commerce dans les

mondes grec et romain (Paris, Belles Lettres, 2012). O estudo da economia antiga remonta ao século XIX e está inserido nas discussões resultantes do capitalismo, mas também do nacionalismo e do imperialismo (pace Bruce Trigger (2004) e Margarita Díaz-Andreu 2007). A admiração pela racionalidade capitalista levou à identificação do mundo antigo ao moderno (modernismo) ou à sua dissociação (primitivismo).

Muito embora vários conceitos empregados por Rostovtzeff (1926) tenham sido duramente criticados por se aproximarem muito do moder-no capitalismo, sua ênfase na Arqueologia sem-pre chamou atenção daqueles que discordam dos modelos de Finley (1973) desenvolvidos a partir do conceito de “cidade consumidora”, proposto por Max Weber (1976). Estes modelos, de matriz weberiana, partem de uma concepção normativa e homogeneizadora das sociedades antigas e, nos últimos anos, no contexto do

Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana

Pedro Paulo A. Funari*

FUNARI, P.P.A. Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 19-27, 2014.

Resumo: O artigo inicia-se ao propor o uso do estudo arqueológico da Bética para discutir como a Arqueologia é relevante para discutir os modelos interpretativos. Em seguida, volta-se para a província romana desde a conquista romana inicial, passando pelo período republicano tardio e, depois, pelo Princi-pado. Ressalta o papel das descobertas arqueológicas na observação de relações econômicas complexas. Isto é possível pelas pesquisas de campo na Espanha meridional, mas também alhures, em particular pelo estudo de evidências ma-teriais como as ânforas encontradas em todo o Império. Conclui-se ao enfatizar o papel central da Arqueologia para o estudo da economia antiga.

Palavras-chave: Bética – Economia antiga – Modelos interpretativos.

(*) Universidade Estadual de Campinas.<[email protected]>

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Considerações sobre a contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 19-27, 2014.

sincrônico das diversas atividades econômicas – mineração, oleicultura, triticultura e assim por diante – como parte de um sistema articulado de exploração de recursos. Em outro nível, com-preende a observação e explicação das transfor-mações na esfera produtiva, o que implica uma periodização das principais alterações estrutu-rais. Ambos os momentos, portanto, envolvem uma análise das relações sociais de produção e apropriação de excedentes a nível regional e, igualmente, no contexto da dicotomia política e econômica entre periferia e centro do domínio romano.

O contexto ambiental

A região produtora insere-se na extensa planície do Guadalquivir, o mais meridional dos grandes rios atlânticos da Península Ibérica, delimitado pelas cadeias montanhosas de Sierra Morena, Sierra Nevada e Sub-Bética. Este vale, de formação terciária, estende-se por cerca de 680 km, desde sua nascente na Sierra de Segura até sua foz dupla, próxima a Cádiz. Navegável na antiguidade por barcos de grande calado até Sevilha e daí até Córdoba por barcos fluviais, o Guadalquivir possui 806 afluentes, a maioria dos quais na margem esquerda, proveniente da cadeia Sub-Bética e de Sierra nevada. Tal fato explica a assimetria da planície, estreita ao Norte, onde a Sierra Morena se aproxima do rio, e ampla ao sul, atingindo uma largura entre 40 e 55 km. O vale, formado por solos argilosos miocênicos, é favorável ao cultivo de cereais, vinhedos e olivais. Estes últimos, em particular, são favorecidos pelo relevo colinar da campina ao sul, tornando a região o maior produtor mundial de azeite da atualidade.

As estratégias da implantação romana

A ocupação romana do vale do Guadal-quivir, em especial da região entre Sevilha e Córdoba, apresenta estratégias diferenciadas de exploração de recursos, relacionadas com fatores diacrônicos e sincrônicos. Em primeiro lugar, a exploração de recursos da região vincula-se a

pós-modernismo, têm sido muito criticados por sua falta de atenção à heterogeneidade e diversidade. A economia antiga, neste contexto, é encarada como uma totalidade, homogênea, caracterizada por relações pessoais (face a face), fundadas na ética contrária ao esforço, conside-rado como ponos, a partir de um ethos urbano, masculino, de elite e, no limite, representado por alguns pensadores antigos. A insatisfação com esses modelos normativos deriva tanto de considerações epistemológicas como empíricas.

No século XX, desde Mikhail Rostovtzeff em particular, o estudo da cultura material para a compreensão da economia antiga agregou ao debate, de forma decisiva, a Arqueologia. Os modelos primitivistas ancorados na tradição literária, como em Moses Finley, foram contras-tados a partir da década de 1960, com a profu-são de estudos arqueológicos e no contexto da contestação crescente aos modelos normativos de cultura e sociedade, que sustentavam e sustentam modelos que enfatizam a oposição entre racionalidade capitalista moderna e a irracionalidade econômica dos antigos, envolvi-dos apenas nas relações de status e num mundo de imprecisões (Koyré 1967). O estudo arqueo-lógico da Bética fornece elementos para ques-tionar essas visões, em dois âmbitos: o padrão de assentamento de fazendas, olarias, fábricas de salações; e o estudo das ânforas na própria Bética e nos lugares aos quais chegaram, seja no Mediterrâneo, seja no Limes. As publicações a respeito multiplicaram-se desde os seus princí-pios, na década de 1970, com uma produção imensa e variada.

A Bética e sua economia

A economia da Espanha Meridional Roma-na tem sido abordada com particular destaque nos últimos anos (Remesal 2011). Uma maior atenção foi dada, devido à própria situação dos estudos a respeito, à compilação, crítica e des-crição detalhada dos testemunhos disponíveis. Podemos, a partir dos resultados já alcançados, propor o deslocamento da questão da apresen-tação dos dados para sua articulação e estrutura-ção. Isto significa estudar o inter-relacionamento

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estratégias decorrentes de penetração romana que apresenta ritmos e características diferentes no correr do tempo. Em seguida, e como fenô-meno paralelo, a apropriação de recursos efetua--se num contexto de relações sociais específicas, cujas contradições assumem formas particulares no processo contínuo de incorporação do vale do Guadalquivir no mundo romano.

A implantação romana desenvolveu-se em duas fases com características distintas. De iní-cio, a ocupação foi extrativa, apresentando uma dualidade constante entre o elemento externo e explorador romano e a população indígena. A partir da ampliação do mercado mundial no final da República e início do Principado, predomina, aos poucos, um processo de coloni-zação que desloca a oposição ao eixo romano/indígena para o eixo proprietário/expropriado. O estudo desse processo permite observar as características essenciais das estratégias específi-cas de apropriação e exploração dos recursos da região.

A exploração de recursos

A primeira fase de ocupação romana tem início em fins do século III a.C., no contexto da luta contra os púnicos. Num primeiro momen-to, a atuação militar dos romanos explica-se pela necessidade de retirar uma importante retaguar-da para as tropas de Aníbal, impossibilitando o recrutamento de soldados e, principalmente, apropriando-se das minas que constituíam uma significativa fonte de financiamento da guerra. Assim, o início da penetração romana, voltada para o controle militar das minas andaluzas, fornece a chave para a compreensão das ca-racterísticas básicas dessa larga primeira fase, ressaltando o caráter impositivo e extrativo da estratégia romana de ocupação.

Desde o início a presença romana apresenta uma dupla estratégia de obtenção de recursos, visando, ao mesmo tempo, a apropriação direta e indireta de matérias-primas e produtos agríco-las. O avanço romano tinha por objetivo, antes de tudo, a obtenção de metais, único produto citado regularmente pela tradição textual como tributo exigido (vejam-se os dados de Tito Lívio

entre 206 e 168 a.C.). A exploração das minas da Prouincia Hispania ulterior, constituída em 197 a.C. (Tito Lívio, 32, 28, 11) estava sob a direção de elementos romanos e itálicos que consti-tuíam o núcleo da população imigrante. Em termos de ocupação espacial do vale do Gua-dalquivir, apenas a margem direita concentrava esses primeiros núcleos ligados, de uma forma ou de outra, à extração e exportação de metais provenientes de Sierra Morena. Outra caracte-rística marcante da colonização romana neste período é seu aspecto castrense, relacionado diretamente com a proteção das minas contra os ataques de lusitanos e celtiberos. O primeiro núcleo de ciues romani, Itálica (atual Santiponce) foi resultado da reunião de soldados feridos na batalha de Ilipa (Alcalá del Rio, ao norte se Sevilha) em 206 a.C., por Cipião.

Um segundo aspecto da exploração de recursos por parte dos romanos diz respeito à apropriação indireta do excedente de produção indígena, que é efetuado pela tributação (stipen-dium – desde 206 a.C.) sem alterações profun-das no aparato produtivo local, cristalizado pela diferenciação ideológica e jurídica entre o ele-mento indígena e o romano. A persistência de formas de organização social local nas cidades e comunidades manifesta-se bastante tardiamen-te (cf. César, Bell. Ciu., 50: Interim Oscenses et Calagurritani, qui erant com Oscensibus contributi, mittendi ad eum (sc. Caesarem) legatos...).

Tal fato explica a contínua importância da criação de gado e de culturas locais, como a de grãos, cuja produção não era prioritariamente destinada ao mercado. Em termos de implanta-ção na paisagem, isto implicava a continuidade da ocupação local na margem esquerda, domi-nada pela planície bética e que fornecia condi-ções ideais para o exercício da transumância (em combinação com a Sierra Morena ao Norte) e para o cultivo de trigo nos fundos do vale.

Ambas as formas de exploração de recur-sos – direta nas minas e indireta pelos tributos – condicionavam as outras esferas de atividade social levando a uma polarização colonizador/indígena. Em termos políticos, dois fenômenos paralelos e contraditórios separavam e uniam os grupos étnicos presentes. A divisão da região em núcleos de romanos e itálicos localizados na

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margem direita do Guadalquivir opunha-se ao vazio jurídico dos indígenas da planície bética. Essa oposição de estatuto legal refletia-se dire-tamente na forma de apropriação do excedente (uectigal certum = tributo fixo, Cícero, Pro Balbo, 41), igualando os espanhóis ao tradicional inimigo púnico (Cícero, In Verrem, 2, 3, 13, 6: ceteris (sc. Prouinciis) aut impositum uectigal est certum, quod stipendiarium dicitur, ut Hispanis et pleerisque Poenorum quasi uictoriae praemium ac poena belli).

Por outro lado, desde o início da penetra-ção romana uma aliança entre os grupos sociais dominantes indígenas e o colonizador opunha--se a essa diferenciação étnico/política. Já com a fundação da primeira colônia romana no vale do Guadalquivir, em 152 a.C., podemos perce-ber a comunhão de interesses entre os coloni-zadores e a elite, que é admitida em Córdoba (Estrabão, 3, 2, 1). Os interesses econômicos e militares comuns uniam nativos e romanos. A presença e atuação dos exércitos romanos pos-sibilitavam a defesa da região das incursões de lusitanos e celtiberos e a ligação com o mercado mediterrâneo permitia uma crescente dissolução das formas de produção de subsistência, fortale-cendo a aristocracia local. Essa aliança de gru-pos sociais mostra-se, com clareza, no período das Guerras Civis, com a formação dos partidos cesaristas (BC, 2, 20, 1-8) e pompeiano (BC, 2, 20, 4: B. Hisp., 1) na região, dos quais participa-va a aristocracia indígena. Outro exemplo é o número crescente de cavaleiros andaluzes (BC, 2, 22; B. Hisp., 39). Elementos dominantes nati-vos identificam-se cada vez mais com o coloniza-dor romano, como afirma Estrabão (3, 2, 15).

A integração do vale do Guadalquivir no mercado mundial

A primeira fase caracteriza-se, portanto, por uma integração constante das diversas esferas da vida social, dominada, por um lado, pela aliança entre romanos e elite indígena e, por outro, pela crescente integração da região no mercado mediterrânico. Esta última tendência dependia da estabilidade do setor comercial, empreendi-da por Pompeu, no combate à pirataria e, de

forma mais abrangente, por Augusto. Além do estabelecimento da paz interna, a ação estatal teve grande importância no favorecimento do comércio interprovincial. De um lado, construi--se uma infraestrutura, formada pelo sistema de uillae – destinadas à proteção do território – e pelo desenvolvimento dos transportes maríti-mos e fluviais (construção de diques e eclusas que asseguravam a navegação no Guadalquivir, a partir de Júlio César, atendendo ao crescimen-to dos mercados urbanos. Esta política visava, em particular, o bom funcionamento do abas-tecimento urbano e militar, que compunha o principal consumidor de mercadorias no Impé-rio. De outra parte, a oposição étnica e política entre romanos e provinciais atenuou-se durante todo o primeiro século d.C., até a ascensão ao principado de elementos provinciais béticos a partir de Trajano. Tal política de integração fa-voreceu o desenvolvimento da comercialização, em larga escala, de produtos como vinho, azeite e salmouras.

Mudanças na produção

Na Prouincia Romana ulterior Baetica ocorre, como consequência, uma transformação da exploração de recursos, acompanhada de uma forte imigração itálica, de caráter eminentemen-te civil concentrando-se desde cedo, em empre-endimentos agrícolas voltados para a produção de bens de consumo, antes de tudo azeite e vinho.

Embora as minas de ouro, prata (Estrabão, 3, 2, 3), cobre, ferro (Estrabão, 3, 2, 8), chumbo e estanho continuassem ativas, é possível que parte do capital aplicado em investimentos na Sierra Morena se dirigisse para a planície bética, propícia ao cultivo da oliveira. De qualquer forma, a importância relativa do metal no total das exportações béticas decai de frente ao azeite, vinho e salmouras.

Também a criação de gado adquire caracte-rísticas diversas a partir do Principado, devido à intensificação da comercialização de cavalos, já numerosos em fins da República (Júlio César, bel. Afric., 501; Bel. Hisp., 2) e de lã, de exce-lente qualidade (Juvenal, 12, 40-42; Marcial, 5,

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37, 3; 8, 28, 26; Estrabão,2, 26). Nas regiões ao norte de Córdoba o gado poderia fornecer, para as uillae rusticae da região (que não produziam ânforas) couro para a confecção de odres desti-nados ao azeite. Em termos gerais, o movimento transumante de gado de Sierra Morena para a planície bética adquire uma ligação orgânica com o desenvolvimento agrícola e urbano da região, integrando-se, em certa medida, no ciclo do mercado regional (cf. os artesãos, ligados ao trabalho de matérias-primas provindas da pe-cuária e encontrados nas cidades: centonarii em Hispalis, CIL, II 1167; uestiarius em Corduba, CIL, II, 2240; lanificus em Tucci, CIL II, 1699).

O cultivo de cereais, em particular de trigo, mas também de cevada (Estrabão, 2, 26) às margens do Guadalquivir, devia obedecer a dois delimitados fisiograficamente. A planície bética, em particular a Veja de Carmona, conhecia uma plantação monocultora que abastecia de cereais os mercados urbanos da Província (Dio Cássio, 43, 33 – Carmona; Júlio César, B.B., 2, 18) e exportava mesmo, em certa quantidade, para algumas regiões do Império (D. Cássio, 60, 24, 15 – Mauritânia). Varrão, que conhecia em detalhe a triticultura da Bética, refere-se a dois instrumentos utilizados, provavelmente, no cul-tivo de trigo na região, o tribulum e o plostellum punicum (RR, 1, 52, 1). Nas pequenas elevações da mesma planície, entre o vale do Corbones e a margem direita do Genil ocorria outro sistema de exploração. O cultivo de trigo (Plínio, 18, 95) nestas terras férteis, em conjunção com o plan-tio de olivais, é atestado pela tradição textual (Plínio, 17,94) e pelos restos de mós encontra-dos nesta região e relacionava-se ao abastecimen-to do mercado local ou aldeão da planície como uma atividade subsidiária à atividade agrícola exportadora.

Das duas principais culturas voltadas para o comércio, a viticultura tem sido menos estudada e, como resultado, sua distribuição na província permanece, em grande parte, desconhecida. Todo o vale do Guadalquivir é propício ao cultivo da vinha, como atesta sua expandida distribuição contemporânea. Cádiz é a única região mencionada pela documentação epigráfica (CIL, XV, 4570) e apenas nesta área surgiram, nos últimos anos, evidências materiais

de produção vinária. A tradição textual limita-se a mencionar a qualidade (Columella, 3, 2,19 – vinho de segunda qualidade) e quantidade de vinho bético (Estrabão, 3, 4, 16; Justino, 44, 1). Um estudo da distribuição dos restos de ânforas vinárias béticas, Haltern 70 e Dressel 28 no vale do Guadalquivir permitiria precisar a localização dessa cultura. O mesmo pode ser dito quanto à exportação do vinho bético que, embora pouco estudado, permite entrever uma distribuição ocidental do produto, abrangendo Roma e o Limes renano.

A oleicultura, em contrapartida, apresenta uma abundância de testemunhos textuais e ar-queológicos que permite precisar suas principais características. Embora o zambujeiro estivesse presente na região, o cultivo da oliveira, durante a primeira fase de colonização, era praticado apenas em pequena escala (Júlio César, B. Hisp., 27,1). A exportação do azeite bético desenvol-veu-se, durante o Principado, graças à criação de um mercado internacional e às transformações na forma de exploração das províncias pelos romanos. O vale Guadalquivir é favorável à oleicultura (Columella, 5, 8, 5) e esta adquiriu a primazia de toda a produção agrícola da região já em meados do século I a.C. (Plínio, 17, 93: non alia maior in Baetica arbor). A qualidade do azeite bético, mencionada por Plínio (15, 3, 8) e por Pausânias (10, 32, 19), deriva da adequação do solo (Plínio, 17, 31), do relevo (Columella, 5, 8, 5) e de outros fatores geográficos à olei-cultura, permitiu sua penetração nos mercados internacionais com rapidez e facilidade.

As variações na concentração de olivais, pre-sentes em todo o vale do Guadalquivir (Estácio, 2, 7, 28), relaciona-se com mudanças fisiográ-ficas regionais. Apenas ao sul de Sevilha, com a presença de pântanos, e na Sierra Morena, devido às suas cristas relativamente abruptas, as condições não se apresentavam propícias à oliva [Columella, 5, 8, 5: neque depressa loca, neque ardua amat (sc. Olea)]. As pequenas elevações da planície bética, especialmente entre o rio Cor-bones e Córdoba, com seu solo pesado, cons-tituíam um terreno favorável à olivicultura. Os vestígios arqueológicos de época romana confir-mam a presença de lagares desde a província de Jaén, passando pelo vale do Genil, até Sevilha,

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e uma concentração de olarias anforárias entre esta última e Córdoba. A ausência de oficinas cerâmicas de Dressel 20 na região ao norte de Córdoba. Em uma região produtora e, provavel-mente, exportadora de azeite (Marcial, 12, 631-632; 981-988) explica-se pela não navegabilidade do Guadalquivir, em época romana, a partir de Córdoba. Nosso conhecimento das caracte-rísticas da produção oleícola apresenta certas limitações, sobretudo no que se refere às áreas não prospectadas por Ponsich (Remesal 2011). Além disso, foram escavadas apenas duas olarias anforárias e nenhuma uilla rustica, enquanto a tradição literária refere-se de forma apenas fragmentária ao cultivo e feitura do azeite bético (Isidoro, Etym., 11, 1 ,68).

Possuímos, por outro lado, evidências textu-ais e, principalmente, materiais da distribuição e comercialização de azeite da região. A documen-tação epigráfica é abundante, referindo-se aos diffusores olearii ex Baetica (CIL, II, 1481; CIL, VI, 29722; CIL, XII, 714, atuantes em Astigi (Ecija), na Gália e em Roma; negotiatores olearii ex Baetica (CIL, VI, 1625 b; Pancieira, 1980:244 – negotiatrix) em Roma; um mercator olei hispani ex prouincia Baetica (CIL, VI, 1943) em Roma; e um adiutor praefecti annonae ad oleum afrum et his-panum rescensendum (CIL, II, 1180) em Sevilha. A profusão de referências (nove inscrições) a elementos ligados ao comércio do azeite bético, bem como sua distribuição, permitem observar não apenas de sua distribuição (ocidental) como sua importância qualitativa.

Sobre a extensão das exportações, entretan-to, as evidências materiais fornecem elementos ainda mais significativos. Os mercados poten-ciais de azeite bético eram de três tipos: Roma, abastecida pela annona urbana; o Limes renano, britânico e mauritâneo, ligados à annona mili-taris, e os centros urbanos do Ocidente. Nos três casos a distribuição de achados de ânforas Dressel 20 comprova sua penetração maciça, em particular em Roma (restos do M. Testaccio, Rodríguez-Almeida 1972) e nos acampamentos castrenses no Reno e no Danúbio.

As pesquisas dos últimos anos têm de-monstrado que as esparsas informações textuais referentes à presença do azeite espanhol na parte oriental do Império (Luciano, Nau., 23)

e em particular a documentação papirológica egípcia (Pap. Oxyr, 1924), devem ser considera-das dignas de crédito. As recentes escavações na Iugoslávia e, sobretudo, a publicação de material epigráfico das ânforas Dressel 20 encontradas em sítios orientais (em particular Alexandria, Antioquia, Atenas e Corinto) por E. Lyding Will (1984) têm ressaltado a necessidade de uma reconsideração sobre a tradicional dicoto-mia entre mercados ocidentais e orientais no Alto Império, tanto para produtos agrícolas como para a própria definição de áreas de difusão cerâmica. De qualquer forma, embora não possamos definir quantitativamente a im-portância desses mercados, deve-se reconhecer que a difusão do azeite bético abrangia uma área imensa, com uma presença significativa em todo o Ocidente romano.

Na própria província, essa produção para exportação em larga escala exigiu a criação, ou favoreceu o desenvolvimento, de suas atividades artesanais subsidiárias, cuja localização pode ser precisada. Por um lado, as olarias anforárias, que se concentraram às margens do Guadal-quivir e do Genil pela facilidade de transporte (as ânforas pesam até 80 kg) e pela abundância de matéria-prima. A significação econômica e social destas manufaturas no quadro do assenta-mento romano na região pode ser avaliada pelos resultados obtidos pela escavação de um forno em La Catria (Remesal 2011). Sua capacidade de produção, bastante significativa, permite atestar a importância desse artesanato para a região nos meses de atividade da olaria (maio-setembro). A demanda de mão-de-obra para o trabalho nas figlinae coloca a questão da movimentação sazo-nal dos trabalhadores, provavelmente liberados das atividades ligadas à oleicultura ou ao cultivo de trigo nas pequenas propriedades, ou mesmo provenientes das áreas de corte madeireiro ou de criação de gado na Sierra Morena ou dos estaleiros. Quando a estes, possuímos evidências epigráficas e textuais sobre a existência, no vale do Guadalquivir, de scapharii, lintrarii e nauicu-larii (CIL, II, 1163; 1168-9). No primeiro caso trata-se da construção naval de grande enverga-dura, predominante na região de Sevilha, onde penetravam os navios mediterrâneos (Estrabão, 3, 2, 3;), e atestado já por César (B. Ciuile, 2,

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18, 1: Naues longas... complures in Hispali facien-das (Varro) curauit). Rio acima localizavam-se os estaleiros de menor porte, destinados à constru-ção de barcos pequenos, semelhantes a barcaças fluviais (Estrabão, 3, 2, 3).

As atividades da região entre Sevilha e Córdoba, delimitada pela Sierra Morena e pela Sierra Nevada, oferecem um quadro complexo em termos de sua implantação na paisagem. As principais características da margem direita são a presença de agrupamentos humanos com estatuto político de cidade, e em consequência da pouca extensão da planície marginal, a con-vivência da agricultura com atividades ligadas à Sierra Morena, como a mineração, criação de gado, abate de árvores e construção naval. Esta margem do rio, menos atacada pela erosão, abriga os principais portos da região. A planície bética ou campiña domina a margem oposta, possibilitando uma vida agrícola interior mais intensa, articulada em aldeias que se relacionam com as uillae rusticae de seu território e com o exterior.

Duas questões interligadas, de importância capital para a compreensão da economia e da cultura material do mundo romano, merecem um comentário particular. A primeira delas refere-se à estrutura econômica da agricultura romana durante o Principado.

Ao nível da documentação material, um estudo que efetuamos da região de La Campana

permite constatar uma grande estabilidade no assentamento desde meados do primeiro sécu-lo (sigillata hispânica), de forma ininterrupta, até a antiguidade tardia (sigillata clara D). Esse assentamento é caracterizado pelo predomínio de uillae oleicultores com um território hipo-tético – calculado pela aplicação dos polígonos de Thiessen – considerável (de 500 à 1500 ha). Parece não se tratar, contudo, de latifúndios, com características de exploração extensiva e autárquica, nem muito menos de pequenas uni-dades geridas por colonos; estas grandes proprie-dades deviam ser trabalhadas por esquadrões de escravos e dirigidas por uilici (Columella, 1, 1, 20), pois apenas dessa forma explica-se a ausên-cia de elementos de luxo nas uillae da Campina e a contínua vinculação de sua produção com o mercado externo (documentada pela presen-

ça de lagares). Esta suposição é reforçada pelo assentamento marginal do Guadalquivir, domi-nado por uillae providas de lagares, luxuosas, de pequenas e médias demissões prováveis, cuja função intermediária entre as olarias anfóricas e as uillae oleiculturas da Campiña apresenta-se bastante clara.

Este predomínio de relações mercantis, caracterizado pela criação de um marcado pan-mediterrâneo desde Augusto, encontra correspondência na cultura material em geral e na constituição, em particular, de um merca-do unificado para os produtos transportados em ânforas. Isto leva-nos à segunda questão, referente à constatação de Remesal (2011, com literatura anterior) de uma diferença entre a estabilidade morfológica do tipo Dressel 20 em comparação com a multiplicidade de formas de ânforas destinadas ao transporte do azeite bético no Baixo-Império (Dressel 23 A e B, El Tejarillo 1, 2, 3). Este fenômeno pode ser compreendido caso observemos a ligação necessária entre a existência de um mercado pan-mediterrâneo e a estabilidade formal dos diversos recipientes. A existência, por cerca de três séculos, de um comércio estável possibilitou e favoreceu a ma-nutenção de uma tradição artesanal (nas olarias) e de transmissão de mensagens (a respeito do conteúdo do vaso) para os usuários e consumi-dores.

A desagregação desse mercado pan-medi-terrâneo e o enfraquecimento das estruturas imperialistas de concentração de recursos em centros urbanos, resultado do fortalecimento da autarquia agrícola de diversas regiões do Império, ocasionou o desaparecimento de um público consumidor unificado. Dessa forma pode-se explicar o surgimento de diversos tipos concomitantes das ânforas destinadas ao mesmo produto e a relativa instabilidade na transforma-ção morfológica dos mesmos. A existência de públicos consumidores desconectados permite que formas sejam destinadas a mercados locais (caso, talvez, das ânforas El Tejarillo 1, 2, 3) e outras a mercados ultramarinos, cada qual com um universo de ânforas particular. A existência de uma forte autoridade estatal interessada no controle rigoroso do comércio em ânforas, pre-sente e atuante durante o Principado, permitia

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a manutenção de formas anfóricas determina-das, procedimento necessário para o controle do transporte e armazenamento desses vasos--recipientes. Estas amarras rompem-se quando a dicotomia centro-periferia se transforma em descentralização política e econômica na Anti-guidade tardia.

Conclusão

Os estudos arqueológicos revolucionaram o conhecimento do mundo antigo, em geral, e das relações econômicas, em particular. As descobertas arqueológicas multiplicaram-se, de forma exponencial, tanto por meio de pesquisas temáticas, como pela atuação da legislação patri-monial e a explosão da Arqueologia preventiva. O sul da Espanha, a antiga Bética, testemunhou

uma multiplicação das pesquisas de campo, seja em cidades, seja no campo. Estudos arqueoló-gicos das exportações béticas para Roma e para todo o mundo romano também contribuíram, de forma espetacular, para o conhecimento da economia bética e romana. Os modelos inter-pretativos e suas discussões ganham muito com esse manancial crescente de informações.

Agradecimentos

Agradecemos a Margarita Díaz-Andreu, Airton Pollini e José Remesal e mencionamos, ainda, o apoio institucional do CNPq, FAPESP, Departamento de História e Nepam/Unicamp, Universidad de Barcelona e Stanford University. A responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor.

FUNARI, P.P.A. The role of archaeology of Baetica in studying the Ro-man economy. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 19-27, 2014.

Abstract: The paper starts by proposing to use the archaeological study of Baetica to discuss how archaeology is useful for discussing interpreting models. It then turns to presenting the Roman province from the early Roman con-quest through the late Republican and early imperial periods. It highlights the role of archaeological findings in enabling us to observe the complex economic relations. This is due to archaeological fieldwork in southern Spain itself, but also elsewhere, particularly studying such material evidence as amphorae found throughout the empire. It then concludes emphasizing archaeology as key to

study the ancient economy.

Keywords: Baetica – Ancient economy – Interpretive models.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.

Introdução1

Com notável frequência surgem notícias sobre novas descobertas arqueológicas de res-

tos mortais humanos do período de presença romana nas ilhas britânicas. A maioria de tais achados está concentrada nos sites noticiosos britânicos, é verdade, mas não parece ser muito

O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia*

Renato Pinto**

PINTO, R. O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.

Resumo: Poucos podem negar que a violência seja um tema de grande importância para o estudo de nossa sociedade, e não é algo novo. A violência no mundo romano já é velha conhecida para os arqueólogos, e pode mesmo ter sido vista como óbvia e esgotada há algumas décadas. Todavia, o advento do pós-colonialismo ajudou a deslocar o foco das respostas binárias – i.e.: ‘Roma saqueia as províncias, as províncias se rebelam contra os invasores’ – para abor-dagens mais multifacetadas e nuançadas. No caso da Britannia, o uso romano de violência na invasão, ocupação e repressão pode ter se misturado à religião nativa existente e às práticas funerárias/mortuárias de maneira que desafia as análises simplistas. Para os arqueólogos da Britannia, os indícios de execuções e de sacrifícios ritualísticos não são sempre facilmente discerníveis, o que levanta questões desafiadoras a respeito das interações entre a intolerância religiosa contra os druidas, a Revolta de Boudica, e práticas ainda obscuras, como o culto às cabeças decepadas. Ademais, é relevante avaliarmos o quanto tais interações afetam a forma como vemos a violência no passado, comparamo-la com episó-dios no presente, e como a mídia divulga os achados arqueológicos de possíveis massacres, a fim de envolver suas audiências e seus leitores.

Palavras-chave: Violência – Britannia – Boudica – Romanização.

(*) Segmentos desta apresentação foram enviados para comporem parte do dossiê sobre “Representações da Morte no Mediterrâneo Ocidental e Oriental”, sob organização de Luciane Munhoz de Omene e Pedro Paulo A. Funari, a ser publicado no periódico Clássica – Revista Brasileira de Estudos Clássicos. No prelo. (**) Professor de História Antiga da UFPE; membro asso-ciado do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial

– LARP MAE/USP. <[email protected]>(1) Optou-se, aqui, por não divulgar imagens dos restos humanos aos quais o texto faz referência. Trata-se de uma escolha baseada em questões éticas, sem consenso, a respeito da exibição de restos humanos, e que ainda podem ser mais bem ponderadas pelo meio acadêmico.

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O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.

to mesmo para os antigos, como nos faz pensar Cícero em um arrazoado sobre as formalidades diplomáticas que antecedem as guerras. Aqui, a violência é uma opção, vencida a etapa do deba-te e da proclamação da guerra. Ainda que algum comedimento possa ser esperado, Roma poderia muito bem abrir mão dos limites do homem civilizado e devastar todo um país em nome de uma pretensa guerra justa. Tudo dependeria de como o Império interpretasse a disposição dos ocupados em resistir ao seu comando (Cícero, De Officiis, I, 11.33-6, passim).

Quando nos lembramos da prática da cru-cificação, não é possível ignorarmos o quanto a própria forma de um instrumento de tortura, amplamente usado para aterrorizar e dissuadir os inimigos, afetou nosso modo de pensar o Im-pério Romano em seus momentos mais coerci-tivos. A imagem da cruz está marcada pela ideia do perdão em boa parte das crenças cristãs, mas não conseguiria afastar de nossas mentes, in totum, a violência usada contra suas vítimas (Horsley 2004: 19). Chega a ser surpreendente que os arqueólogos tenham encontrado tão pou-co material associado à prática da crucificação. O único esqueleto humano que tem sido des-crito sistematicamente como o de uma vítima desse tipo de execução foi encontrado em Giv’at ha-Mivtar, Israel (Zias & Sekeles 1985). Mesmo no Brasil, o tema da violência no Império roma-no vem sendo estudado há um bom tempo (ver, por exemplo: Silva & Mendes 2006; Garraffoni 2008). Qual o valor dos estudos sobre a violên-cia romana em suas províncias para o público

em geral, hoje em dia?

A violência na Britannia

Ao longo das últimas décadas, em um con-texto de autores pós-colonialistas, a percepção de que a construção do Império Romano se deu por meios violentos e autoritários aumentou consideravelmente. Em especial, no contexto dos revisionismos pós-coloniais, os estudiosos do mundo romano tendem a ressaltar as restri-ções e dificuldades das populações colocadas sob o controle das forças romanas. Muitos des-ses autores são britânicos, herdeiros de uma já

arriscado sugerir que há um amplo fascínio no mundo, ao menos o ocidental, pelo tema da morte nos tempos da Roma antiga. Se isso já não for tido como uma curiosidade lúgubre de-mais, saber, vez ou outra, que alguns dos corpos de homens, mulheres e crianças daquela longín-qua época permitem entrever sinais de sevícias, nem sempre cria algum esperado (ou desejado) sentimento de repulsa ao tema da morte violen-ta. Ler a respeito da morte, natural ou violenta, e de elementos ritualísticos e funerários dos ha-bitantes de uma província romana tão distante do Mediterrâneo pode se tornar uma atividade ainda mais fascinante quando as imagens das descobertas arqueológicas nos oferecem esque-letos, crânios (alguns decapitados), com alguma sorte, corpos com tecidos moles preservados, e ainda, algumas reconstruções faciais.

Ao nos depararmos com qualquer represen-tação cartográfica do Império Romano, pode-mos nos perguntar como teria alcançado tama-nha dimensão. O Império Romano, para além de sua grande influência cultural no Ocidente, também pode ser lembrado pelo uso que teria feito da violência para alcançar seus fins expan-sionistas, ao menos em algum momento do processo, se não durante todo ele. O tema da violência é central ao argumento de que foi pelo uso da força militar que os romanos dominaram tal território. Ainda que a presença militar não precisasse ser um fenômeno ubíquo, saber que o exército romano poderia intervir a qualquer momento poderia influenciar dramaticamente as decisões dos habitantes das províncias. Os romanos podem ter pensado no uso persuasi-vo dos elementos culturais que poderiam ser adotados pelos povos que almejavam subjugar, ou nas possibilidades dos acordos políticos, mas não teriam se eximido de outros meios menos diplomáticos, por assim se dizer. Em especial no processo primevo de expansão imperial, as crucificações e a escravização em massa teriam feito parte fundamental do arsenal de ações militares levadas a cabo nas regiões onde Roma enfrentava algum tipo de oposição à sua presen-ça ou influência (Horsley 2004: 20).

A destruição de grandes cidades da antigui-dade pelos romanos, e a dimensão da violência a elas dirigida, tornou-se um tema de difícil tra-

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longa tradição dos estudos sobre o processo de romanização, surgida e desenvolvida nas univer-sidades inglesas do final do séc. XIX e do início do séc. XX (ver: Mattingly 1997; Webster 1997; Hingley 2000; Mattingly 2006/7: 128).

O estudo da violência romana na província da Britannia pode ser um caminho profícuo para o tema em questão. Provida com um volume de contingente militar desproporcional ao restante do Império nos primeiros séculos depois de Cristo (Mattingly 2006/7: 128-31), a província da Britannia também colecionou algumas importantes revoltas contra o Impé-rio, inclusive com a nomeação de imperadores apóstatas. Uma das principais revoltas contra o poder romano durante o séc. I d.C. foi aquela liderada por Boudica (ou Bodiceia). Tal fato marcaria dramaticamente a maneira como os arqueólogos interpretariam os vestígios romanos na ilha.

A fundação oficial da província da Britannia se deu somente após a invasão das legiões co-mandadas pelo imperador Cláudio, em pessoa, no ano de 43 d.C., embora Júlio César já tivesse visitado a ilha em meados do séc. I a.C. por duas vezes consecutivas. Em algum momento, entre os anos de 60 e 61 d.C., as legiões roma-nas estacionadas na Britannia teriam enfrentado uma maciça rebelião organizada pelos bretões das tribos dos icênios e dos trinovantes. Lide-rados por uma mulher, – a rainha dos icênios, Boudica, ultrajada que ficara com o tratamento violento que recebera de oficiais romanos –, os bretões marcharam em grande número contra centros urbanos que pudessem ter habitantes romanos ou associados a eles. Em seu caminho, os revoltosos destruíram edificações romanas e outras ligadas a tribo dos catuvelaunios, tidos como um reino cliente dos romanos. O primei-ro alvo de Boudica foi Camulodunum (Colches-ter), em especial, o recém-construído templo dedicado ao Divino Cláudio, como parte do Culto ao Imperador, prática político-religiosa existente no Império desde a época de Augus-to. O templo foi completamente queimado e desmantelado pelos seguidores da rainha dos icênios. Lá também havia sido fundada uma ampla colônia de soldados veteranos, que teve o mesmo fim malfadado. Os saques e a violência

dos nativos teriam sido desastrosos à província e fizeram com que o governador Suetônio Paulino movesse suas tropas do extremo oeste da ilha para o leste, no encalço dos revoltosos, e que tentasse interceptá-los em Londinium (Londres), para onde a marcha dos bretões se dirigira após saquear Camulodunum.

Suetônio Paulino estava em campanha militar contra os druidas no oeste da ilha e não dispunha de todo o efetivo da província. Impossibilitado de proteger Londinium com um efetivo suficiente para a tarefa, o governador abandonou seus habitantes à própria sorte e procurou se fortalecer ao convocar outras legiões que, naquele momento, ocupavam áreas mais distantes do palco da revolta. Neste ínterim, Boudica, depois de saquear Londinium, teve ainda tempo de causar enormes estragos e carnificina em Verulamium (St. Albans). Quan-do as forças de Suetônio Paulino finalmente conseguiram paralisar as hordas de Boudica, a província já estava à beira do desastre. Contudo, o governador romano, em uma ação audaciosa e eficiente, destruiu a resistência bretã e derrotou os seguidores de Boudica em uma sangrenta (para os bretões) batalha. A rainha teria morrido em decorrência de alguma doença, ou tirado a própria vida, mais tarde, por envenenamento. Seguiu-se então uma campanha punitiva que, graças a sua violência, deixou alarmados o imperador Nero e Sêneca, a ponto de enviarem à Britannia um procurador, Caio Júlio Alpino Classiciano, a fim de investigar e apaziguar os ânimos. A partir de então, a província não mais teria se rebelado com tal intensidade contra a presença romana e seus habitantes teriam vivido suas vidas calmamente, adotando a toga e os costumes romanos. Ao menos, é assim que nos contam sobre a revolta e suas consequências os autores romanos Tácito (Anais, Vida de Agrícola) e Díon Cássio.

Escritos muito tempo depois dos eventos dos quais tratam, algumas décadas ou mais de cem anos, os relatos de Tácito e de Díon Cássio foram, por vezes, tomados como verdade inquestionável por estudiosos do passado. No que diz respeito à revolta de Boudica, coube aos arqueólogos ultrapassarem os antiquários na busca de vestígios da marcha dos rebeldes

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e da batalha final. Parece claro que os propósi-tos que moviam as buscas eram tão ambíguos quanto a representação de Boudica. Os achados poderiam reforçar a ideia de que os historiado-res romanos eram confiáveis e que a província reergueu-se “romanizada”, para usarmos um termo moderno e controverso. Por outro lado, em especial após o surgimento dos estudos pós-coloniais, os sinais de violência romana po-deriam demonstrar a força da resistência nativa contra os invasores do continente, quase sempre visto como uma fonte de ameaças à integridade insular dos britânicos.

Druidas e o “culto das cabeças decepadas”

No contexto religioso, os sacrifícios huma-nos teriam sido uma prática muito mal vista pelos romanos, podendo ocasionar severas punições aos infratores (Salway 1984: 665; 680). Das características da religião dos bretões, que eram também, em alguma medida, compartilha-das em outros locais do Império, inclusive pelos próprios romanos e gregos, merece destaque o culto a céu aberto, sem templos: uma religião “natural”. Tácito (Ann. XIV, 30) ressalta que os druidas estavam praticando sacrifício humano nas clareiras de Mona (Anglesey) quando o go-vernador romano Suetônio Paulino lá chegou. Díon Cássio faz referência à clareira onde Bou-dica teria sacrificado seus prisioneiros e buscado convencer seu exército a continuar a luta contra os romanos por meio de um vaticínio da deusa Andata/Andraste (epítome, LXII, 7). Temos, con-tudo, muito poucos dados a respeito do tema, em especial, no caso dos druidas. Também eram tidos como sagrados os locais marcados pela presença de água, como nascentes, lagos, rios, pântanos, turfeiras e poços (Henig 1984: 17-8; Salway 1984: 672; Ottaway 2013: 88-9).

Nas escavações de cemitérios do período romano na Grã-Bretanha, são, por vezes, encontrados corpos com as cabeças decepadas. No cemitério de Curbridge, foram encontrados três esqueletos com suas cabeças entre os pés (Salway 1984: 706). A prática da decapitação oferece um fértil campo de estudo, ainda que esteja longe de oferecer respostas. Os autores

tratam do fenômeno como o “culto da cabeça decepada”.

Por sua vez, um enterramento em Driffield Terrace, merece destaque por conter cinquenta e três homens adultos em meio a somente sete não adultos. Entre os adultos, ao menos trinta estavam decapitados, tendo sido os crânios de-positados entre os pés, as pernas ou na região da pélvis (Ottaway 2013: 224). Uma questão fun-damental que se apresenta aos especialistas é a capacidade de discernir quando a decapitação se dá em um contexto ritualístico religioso e quan-do se trata de uma pena capital, inclusa aqui a possibilidade da prática de empalar em estacas os crânios para exibição pública, em alguns casos. Na maior parte dos casos em que se en-contram corpos decapitados do período romano na ilha, as cabeças nem mesmo estão presentes, talvez usadas para algum tipo de ritual, ou para exposição pública, no caso de execuções, por exemplo (Ottaway 2013:225). Tácito (Ann. I, 61) nos fala dos crânios dos romanos vencidos pelos Germanos na derrota de Quintilo Varo, em 9 d.C., pregados aos troncos de árvores, mas, também, dos altares de sacrifício, locais onde teriam se dado as decapitações. As fontes clássi-cas fazem silêncio sobre exemplos na Britannia, o que poderia, num primeiro momento, indicar a ausência da prática. Contudo, cada vez mais surgem indicações do contrário disso na própria Britannia (cf. Salway 1984: 692).

Em um contexto de militarização da ilha, uma série de sepultamentos foi achada em Colchester, nas escavações de Balkerne Lane, quando seis corpos foram achados perto de um fosso da fortaleza dos legionários romanos. Dois crânios e alguns ossos mostram sinais de violência, sendo que ao menos um deles parece ter sido executado, por decapitação. Podem ter sido corpos deixamos à porta decumana, uma passagem de soldados para execuções e punições (Johnson 1983: 41; Gascoyne 2013: 73).2 Não se pode assegurar se são os corpos de soldados romanos ou de bretões, punidos, em qualquer um dos casos, se confirmada a execução marcial.

(2) Sobre a possibilidade de nunca ter existido uma porta decumana, ver Gascoyne 2013: 75.

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O arqueólogo David Radford (2013b: 96), por sua vez, indaga se os corpos teriam sido exe-cutados em Balkerne Lane, possíveis vítimas de Boudica. O especialista em arqueologia de Colchester, Paul Sealey (2004: 19), acredita, por sua vez, que tenham sido vítimas dos romanos, e que suas cabeças teriam sido penduradas em postes para execração pública, mas antes de 55 d.C., não estando, portanto, envolvidas com a revolta de Boudica (60 ou 61 d.C.).

Massacres e mídia

Em algumas ocasiões, os arqueólogos se deparam com uma grande quantidade de cor-pos depositados em poços, fossos, lagos, rios, ou em situação de aparente descuido funerário, como no exemplo de Driffield Terrace, onde corpos foram inumados sem caixões. Esses casos são costumeiramente tratados como indícios de “massacres”. No caso da Britannia, os mo-mentos de maior convulsão social são quase que imediatamente associados aos achados, em especial o da Revolta de Boudica em 60/61 d.C. (Sealey 2004). Uma vez que os autores antigos nos relatam a crueldade empregada pelos nativos contra os romanos, e, mais tarde, quando de sua derrota para Suetônio Paulino, em local desconhecido, da revanche não menos sangrenta do governador sobre os vencidos, há um grande interesse em encontrar os vestígios humanos de tamanho embate. Tais vestígios seriam encontrados no chamado “horizonte de Boudica”, uma camada estratigráfica referente ao período da revolta (Sealey 2004: 22; Hingley & Unwin 2006: 69). Essas aproximações diretas podem, contudo, levar a conclusões precipitadas (ver Hingley & Unwin 2006: 64-5). Este parece ter sido o caso do suposto vandalismo à lápide de Longino Spadeze, um oficial de cavalaria das tropas auxiliares que teria vindo da Trácia para lutar na Britannia. A peça foi achada em Col-chester, em 1928 (Hingley & Unwin 2006: 64), e durante muito tempo se afirmou que partes do relevo da lápide haviam sido destruídas pelos seguidores de Boudica, dada a temática da ima-gem: o cavalo de Longino pisa sobre um bretão, indefeso, nu. Quando achada, a lápide estava

em seis pedaços e caída de frente, e a vingança dos rebeldes diante da imagem explicaria a fúria liberada (Sealey 2004: 26). Todavia, os danos causados à lápide, envolvendo uma suposta “decapitação” da imagem de Longino, sua face removida, não parecem ter sido causados na antiguidade, como antes se supunha. Ao con-trário, teriam sido causados pelos escavadores braçais no momento da descoberta do artefato, no início do séc. XX. De fato, o restante do rosto de Longino foi achado bem no local da retirada da lápide, em 1996 (Hingley & Unwin 2006: 66). Não está descartada a derrubada da lápide por alguma comoção de revoltosos, mas fica o alerta contra as conclusões precipitadas.

Ainda sobre os massacres ligados à revolta de Boudica ou às retaliações romanas, o ataque de Suetônio Paulino contra os habitantes de Anglesey (Mona, para os romanos), no País de Gales, e a subsequente execução daquelas pessoas e dos druidas envolvidos em ações tidas como ilícitas pelos romanos (Tácito, Ann, XIV, 30; Díon Cássio, Hist. LXII, 1-11) ficou conhe-cido como o “Massacre de Menai”, nome do estreito que separa Anglesey do resto da ilha.3 O interesse da mídia em relatar e difundir tais descobertas se abre como um novo campo de estudo para os próprios pesquisadores, que po-dem se debruçar sobre o impacto causado pelo conhecimento de aspectos da violência ou de práticas mortuárias distintas de nosso tempo.

De grande impacto midiático, também, foi a descoberta do “Massacre de Somerset” (Yeovil), local do maior oppidum (hill fort) da Idade do Ferro na Bretanha: Ham Hill. O jornal britâni-co The Independent publicou em seu site de notí-cias,4 no dia 4 de setembro de 2013, uma repor-tagem sobre a descoberta de dezenas de corpos, datados dos séc. I d.C., em período romano, cujos ossos mostravam cortes estratégicos indica-tivos de remoção da carne a partir de juntas do

(3) O incidente foi tema de uma reportagem no site British His-tory Net: http://british-history.net/roman-britain/the-menai-massacre-and-boudica-52-59-a-d/. Acessado em 06/02/2014.(4) Disponível em: http://www.independent.co.uk/news/science/archaeology/exclusive-slaughtered-bodies-stripped-of-their-flesh--a-gruesome-glimpse-of-ironage-massacre-at-uks-largest-hill-fort-8798680.html . Acessado em 06/02/2014.

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O interesse pela violência da “romanização”. Um breve estudo arqueológico das primeiras revoltas na Britannia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.

corpo humano. A “escarnação” (ou o desposte-jamento), pode ter sido feita pelos nativos, em uma associação com o culto das cabeças decepa-das, por exemplo, embora as mortes em si sejam atribuídas a algum tipo de execução em massa feita pelos romanos contra os bretões da região daquela fortaleza. Ao menos, assim interpreta o arqueólogo responsável pela escavação, Marcus Brittain, da Universidade de Cambridge.

O caso dos mais de cem crânios de Wal-brook, em Londres, é também significativo no contexto de massacres (Sealey 2004: 34). Os achados fazem parte de uma campanha de escavação que se intensificou em 1952, sob os cuidados do Roman and Medieval London Excava-tion Council, liderados por W. F. Grimes e Au-drey Williams.5 Os restos humanos, na maioria crânios, encontrados acumulados no leito do antigo riacho (agora subterrâneo), Walbrook, na área que teria sido central na antiga cidade ro-mana de Londinium, estariam associados à revol-ta de Boudica. Pertenciam a adultos, na maioria dos casos, homens de meia idade. Enquanto é comum associar esses crânios a possíveis vítimas de Boudica, Tácito (Ann. XIV, 32-3) nos diz que os mais jovens e capazes teriam fugido de Londi-nium antes do ataque, ficando para trás apenas os velhos e incapacitados. Assim, a idade dos indivíduos não combina com o relato clássico (Henig, 1984: 207). Teriam, então, sido vítimas da vingança do governador romano Suetônio Paulino? Os crânios achados no leito do rio estavam sem as mandíbulas, tendo a correnteza levado, de imediato, tais partes, menos pesadas do que o resto do crânio. Isso parece indicar que as cabeças foram lá depositadas depois de “escarnadas” (Sealey, 2004: 34), aproximando os depósitos muito mais ao culto das cabeças de-cepadas do que às possíveis execuções romanas. Com o que sabemos das práticas religiosas dos bretões e dos locais favorecidos para as deposi-ções de corpos, em corpos d’água, a presença de água no contexto de Walbrook não pode nos passar despercebida. Há ainda, a possibilidade

tafonômica de os corpos pertencerem a uma necrópole localizada a montante, inundada pelas águas do Walbrook, quando, então, os crânios e outras partes dos corpos teriam sido deslocados corrente abaixo.6 Uma nova inter-pretação para os crânios do Walbrook seria o da presença de caçadores de cabeças, pessoas que se dedicariam a recolher as cabeças de executados, para depositá-las, na sequência, em locais tidos como sagrados.

Paralelo ao caso de Walbrook, está a desco-berta de trinta e nove crânios de adultos mas-culinos, com idade média entre 26 e 35 anos, descobertos ao longo do Muro de Londres, em 1988. A biorqueóloga Rebecca Redfern indica que mostram sinais de extrema violência, com inúmeras cicatrizações. Isso poderia indicar que teriam vivido em contextos sociais muito vio-lentos, como o de gladiadores, ou de escravos, talvez. Sabe-se que os restos humanos foram depositados ao longo do muro na primeira metade do séc. I d.C.. Podem ter sido vítimas da retaliação dos romanos que, no período, lutavam contra os invasores da região da atual Escócia. Independentemente da forma como morreram, a presença dos crânios alí poderia estar associada à coleta das cabeças para algum fim ritualístico, mais um lado obscuro do culto das cabeças decepadas, talvez.7

O cenário é de incerteza. Mais uma vez, um grande mistério ainda cerca tais práticas e os motivos para as deposições dos corpos deca-pitados nessa região do Império, ao longo dos séculos, desde a Idade do Ferro. As investigações continuam e seria muito produtivo estudarmos como a população no presente recebe e interpre-ta as notícias dos achados arqueológicos ligados ao uso da violência no mundo romano. Roma

(5) Disponível em: http://walbrookdiscovery.wordpress.com/2012/12/19/historic-walbrook-excavations-pt-1-a-life-of-grimes/. Acessado em: 12/04/2014.

(6) Ver a notícia: http://walbrookdiscovery.wordpress.com/2012/10/05/a-watery-grave-the-walbrook-crania-a-taphonomic-explanation/. Acessado em 05/03/2014. (7) Ver as notícias: http://theconversation.com/barbarians--gladiators-and-head-cults-roman-london-uncovered-22127 e http://www.independent.co.uk/news/science/archaeology/news/gladiators-or-roman-battle-trophies-stateoftheart-forensic-techniques-solve-mystery-of-39-skulls-discovered-in-the-city-of-london-over-a-quarter-of-a-century-ago-9059925.html. Acessado em 13/04/2014.

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e seu poderio imperial, em especial, o militar, ainda são fontes de fascínio, gerando séries de TV, vídeo games, e filmes. De que maneira os arqueólogos podem contribuir para visões

mais polissêmicas da violência do passado e o que isso significaria para o nosso presente, são questões em aberto, mas que parecem ser instigantes.

PINTO, R. The interest in the violence of ‘Romanisation’. A brief archaeological study of the first uprisings in Roman Britain. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 29-36, 2014.

Abstract: Few can deny that violence is a theme of great concern to the study of our society today, and it is nothing new. Violence in the Roman World is ‘known of old and long familiar’ to archaeologists and it may even have been seen by some as jaded and matter-of-fact some decades ago. However, the ad-vent of post-colonialism helped to shift the focus from binary responses – i.e.: ‘Rome ransacks provinces, provinces rebel against invaders’ – to more multifac-eted and nuanced approaches. In the case of Roman Britain, the Roman use of violent invasion, settlement and repression may have mixed with existing native religion and funerary/mortuary practices in ways that defy simplistic analysis. To Roman Britain archaeologists, the evidence of executions and ritual sacrifices are not always easily distinguishable, posing some challenging questions about the possible interactions between religious intolerance towards the druids, the Boudican Revolt and still obscure mortuary practices such as the severed head-cult. Also, it is worth pondering how much such interactions affect the way we see violence in the past, compare it to present episodes, and how the media reports archaeological finds of possible massacres to appeal to its audiences and readership today.

Keywords: Violence – Roman Britain – Boudica – Romanisation.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.

Introdução

Os estudos sobre imperialismo e centro e periferia, fundamentais à análise

da relação entre Roma e suas províncias, esti-veram, durante muito tempo, atrelados a uma concepção dualista, no sentido de considerar a existência de um centro, a sede do poder im-perial, e as periferias a ele subordinadas. Atual-mente, a visão dicotômica deste modelo tem se desdobrado em outras possibilidades de análise, que permitem a observação de um leque de conexões ou redes de poder de um território. Este é o caso, por exemplo, dos estudos sobre o Império Romano.

Quando não privilegiamos apenas a divisão binária entre centro e periferia podemos anali-sar a existência de redes de poder variadas, co-nectadas via sistemas de transportes marítimos, fluviais e terrestres, que interligavam cidades e aldeias da costa ao interior dos territórios. As trocas – de mercadorias, mas também de ideias, hábitos e costumes – circulavam por essas redes, essas tramas, esses emaranhados não apenas econômicos mas, sobretudo, culturais. A partir desta perspectiva podemos discutir também uma temática bastante usual nos estudos cultu-ralistas, que é a questão da identidade. Como iremos abordar este conceito para o mundo antigo? Como definir “identidade”? Quando pensamos em redes de conexão podemos enten-der também que a identidade ou as identidades locais estariam mais arraigadas a uma tradição nativa ou mias propensa aos “emaranhamen-

(*) PPGH/Dep. de História/CCHLA/UFRN. <[email protected]>

Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade

Marcia Severina Vasques*

VASQUES, M.S. Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 37-48, 2014.

Resumo: Propomos abordar alguns conceitos comumente empregados nos estudos arqueológicos quando consideramos a relação entre Roma e suas províncias. Em primeiro lugar, o conceito de centro e periferia e a proposta de ampliação desta visão dicotômica para uma visão espacial mais geral, associada às redes de poder dos espaços territoriais. Em seguida, discutimos a aplicabili-dade do termo Romanização e a sua relação com a temática da identidade. O terceiro ponto apontado diz respeito ao uso do termo emaranhamento cultural, proposto pelo arqueólogo alemão Stockhammer em substituição ao conceito de hibridização. Finalizamos citando alguns exemplos da utilização do conceito de emaranhamento e das redes de poder romanas no território egípcio, tendo como documentação material artefatos funerários do Egito Romano.

Palavras-chave: Espaços territoriais – Imperialismo – Identidade – Egito romano.

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Espaços territoriais e redes de poder no Egito Romano: imperialismo, religião e identidade. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 37-48, 2014.

Em outras palavras, o conceito de Romanização estava muito próximo ao de aculturação, no sen-tido de que as populações indígenas adotariam o modo de vida romano, mais civilizado.

Originalmente, o uso do termo Romani-zação foi influenciado pela política britânica (um outro Império) de dominação mundial no decorrer dos séculos XIX e XX e vinha embu-tido da ideia de que os romanos civilizaram os bárbaros da mesma maneira que os britânicos então faziam em relação aos povos primitivos do planeta. Um segundo momento adveio com o decréscimo do poder britânico, quando se passou a considerar que não houve propriamen-te uma imposição do modo de vida romano nas províncias e sim uma adoção deste pelas elites locais em um processo de aculturação. Final-mente, o terceiro modelo de Romanização veio romper com a ideia de certa forma “positiva” que o termo até então preconizava. Os estudos de pós-colonialismo postulavam que existiram várias respostas ao domínio colonial, que a sim-ples dicotomia entre “nativos” e “colonizadores” não correspondia de fato à realidade, sendo que o papel ativo da periferia em relação ao centro passou a ser destacado (Hingley 2010).

David Mattingly, por exemplo, é um dos autores que se coloca, atualmente, contra a uti-lização deste conceito, por considerar que não havia uma política romana deliberada de Ro-manização. No entanto, o mesmo autor, no seu livro Imperialism, power, and identity. Experiencing the Roman Empire (2011), defende a continuação do uso do conceito de Imperialismo. Segundo ele (2011: 22), império “é uma manifestação geopolítica das relações de controle impostas por um estado sobre a soberania de outros”. O Império geralmente combina um centro, territó-rio metropolitano, e as periferias, os territórios periféricos multiétnicos ou multinacionais.

Acreditamos, como Mattingly que, em mui-tos aspectos, quando tratamos de um Império e sua ação imperialista sobre as áreas colonizadas, este modelo pode ser utilizado, com as devidas precauções, em relação às especificidades locais. Um modelo teórico mais abrangente seria, neste caso, calibrado com a análise de estudos de caso que podem, ou não, comprovar a hipótese cen-tral da pesquisa. Quando observamos o Império

tos”, conforme a distância em relação aos pon-tos conectados às redes de poder romanas. São essas questões que discutiremos neste artigo. Apresentaremos, inicialmente, uma introdu-ção a respeito dos conceitos de imperialismo e centro e periferia. Em seguida, trataremos do uso do termo identidade ou identidades para o mundo antigo e, por fim, discutiremos também os termos hibridização ou hibridismo e emara-nhamento. Encerraremos, por fim, com alguns estudos de caso do Egito Romano.

Imperialismo, Romanização e Centro e Periferia no Mundo Antigo

A utilização de conceitos como Im-perialismo, Romanização e Centro e Periferia para o Mundo Antigo, vem de longa data na academia e tem sido, atualmente, motivo de debate e discussão nos estudos sobre o Império Romano, já que a aplicação desses conceitos e as formas de análise de nossas fontes acompanham o desenvolvimento das teorias do conhecimento no campo das Ciências Humanas, o qual tem tido novos desdobramentos na atualidade. Uma publicação como a editada por Rowlands, Lar-sen e Kristiansen, em 1987, Centre and periphery in the Ancient World, pela Cambridge, apresen-tava o tema voltado para a análise das relações de poder díspares entre impérios e suas áreas de dominação, suas periferias, suas colônias ou áreas conquistadas. Esta relação desigual seja política, econômica e, sobretudo, militar criava relações de dependência entre áreas dominadas ou colonizadas e suas metrópoles. Desta forma, a preocupação principal estava voltada para a exploração da periferia pelos centros de poder.

Dentro dos debates sobre centro e periferia e imperialismo os estudos sobre Romanização estavam pautados pelas questões relativas às relações de poder entre Roma e suas províncias e tentavam explicar a influência que a metrópo-le, Roma, centro do Império, exercia sobre áreas periféricas. Esta dominação poderia ser compro-vada pela presença de edifícios e construções romanas como fóruns, anfiteatros, estradas, aquedutos etc., os quais seriam exemplos de que os nativos estavam se tornando “romanizados”.

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na longa duração podemos perceber as mudan-ças em termos diacrônicos. Por outro lado, as abordagens sincrônicas permitem a percepção das relações sociais no âmbito local ou regional.

Um critério básico para analisar o Impe-rialismo seria, portanto, explorar as redes de poder que o sustentam. Este seria o elo que une todas as épocas e locais do Império, já que a dominação de uns pelos outros é uma carac-terística premente em toda sociedade humana, mas somente um Império atua neste sentido em larga escala (Mattingly 2011: 7). A conside-ração de que não existe um Imperialismo e sim Imperialismos vem ao encontro às novas discus-sões decorrentes dos estudos pós-coloniais. A preocupação com as respostas das populações locais ao Império foi um fenômeno que se deu, sobretudo, após o processo de libertação dos países africanos e asiáticos do jugo europeu, no decorrer do século XX. Nos estudos a respeito do Império Romano e suas províncias notamos uma nova abordagem a respeito do uso do conceito de Romanização ou mesmo, em alguns casos, o seu abandono.

De certo modo, as ideias de David Mattin-gly assemelham-se àquelas defendidas por Lou-ise Revell (2009), quando propõe uma análise do aspecto global combinado às especificidades da identidade local. Revell aplica a teoria de Antony Giddens ao buscar conciliar a análise do local, da questão do indivíduo, à totalidade das estruturas sociais. Enquanto a preocupação com o indivíduo, com o agente, é uma prerrogativa da Arqueologia Pós-processual quando conside-ra as identidades permeadas pelas relações de poder, envolvidas em um discurso que envolve, por exemplo, as questões de status social, a análise das estruturas sociais permite uma visão do conjunto da sociedade.

Identidade ou identidades

O tema “identidade” tem sido motivo de debate na academia nos últimos tempos, estan-do presente com frequência nas teses e disser-tações desenvolvidas nas universidades dentro e fora do país. Sua atualidade advém da crise mundial que vivemos decorrente de um mundo

globalizado pós-Guerra Fria, quando a extinção da União Soviética permitiu o surgimento de inúmeras identidades locais com o fim da bi-polaridade entre soviéticos e norte-americanos. Sabemos que as preocupações dos historiadores caminham com a sua época e com a História Antiga nunca foi diferente.

A partir dos anos de 1970 teve início uma nova perspectiva de abordagem para os estudos históricos com as chamadas teorias pós-colo-niais. Com a descolonização da África e da Ásia, a Europa deixou de ser o centro do mundo e a ideia de Ocidente entrou em crise. De Michel Foucault a Edward Said vemos a crítica contun-dente ao discurso estabelecido, é chegada, então a época da “desconstrução”. Os povos coloni-zados passaram a ter voz, assim como os grupos antes excluídos da história, como as mulheres e os homossexuais.

Na década de 1980 a Nova História Cul-tural, de viés pós-moderno, colocou o foco dos estudos históricos na esfera cultural e simbólica. A chamada “virada cultural” (Cultural Turn) acarretou modificações importantes como a discussão do conceito de identidade. O antigo conceito de classe da historiografia marxista foi substituído por aquele de identidade (Guari-nello 2013: 40). As reivindicações dos grupos não se fazem mais pelo conceito de classe (a luta de classe) e sim por organizações de minorias que reivindicam maior participação política, além de direitos civis.

A definição do que vem a ser identidade foi (e continua sendo) motivo de amplos debates na academia. Os essencialistas ou primordialistas reivindicam que a identidade étnica é natural, que advém de uma herança biológica comum, que determinado grupo compartilha entre si, além da língua e de costumes. Outros, os instrumentalistas, acreditam que a ênfase deve ser dada às necessidades que o grupo tem, em um determinado momento, de reivindicar uma dada identidade. Esse é um debate que tem acontecido entre os teóricos da etnicidade, no campo da antropologia, e que tem se desdobra-do também nos estudos históricos.

A formação da identidade se dá pelo em-bate de um grupo contra outro, ou seja, pelo critério da alteridade. Essas ideias aparecem em

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obras de importantes helenistas como Jonathan Hall (1997) e François Hartog (1999). Também os historiadores da Roma Antiga, e arqueólogos, têm se dedicado a este estudo. Os critérios do que era ser romano e não romano estão sendo redefinidos ou, melhor dizendo, colocados em xeque. Richard Hingley, David Mattingly e Louise Revell, por exemplo, têm se dedicado a essa discussão. O que era ser grego ou bárbaro? Romano ou não romano no mundo antigo? As mesmas questões que debatemos atualmente em um mundo globalizado servem para questionar-mos a Antiguidade.

Segundo Mattingly (2011: 206), a identida-de está relacionada com a questão do poder na sociedade romana e a criação das identidades provinciais não pode ser tomada isoladamente da negociação de poder entre o Império Ro-mano e os povos conquistados. A etnicidade seria uma forma de identidade que a sociedade constrói (Jones apud Mattingly 2011: 206). Consideramos aqui a identidade étnica como sendo assumida em casos de dominação colo-nial como estratégia de manutenção de poder e de status social. No entanto, como próprio Mattingly (2011: 210) sugere, a etnicidade não era uma constante no tempo e no espaço, pois nem sempre a marcação de identidade era necessária.

Mattingly prefere usar o termo “identida-de discrepante”, de autoria de Edward Said, para discorrer a respeito da heterogeneidade de respostas a Roma. O termo “discrepante” indica “discordância”, “desarmonia”. Na verdade, as sociedades coloniais poderiam, conforme o contexto, demonstrar similari-dades ou discordâncias culturais em relação ao modelo imperial romano (Mattingly 2011: 213). A identidade pode ser múltipla e redefi-nida a cada momento. Mattingly não considera que a identidade possa ser considerada apenas pelo viés da resistência ao colonizador (mo-delo pós-colonial), pois acredita que existiam várias respostas em relação ao poder romano. Sua “identidade discrepante” ou “identidade da diferença” não indica, segundo ele, neces-sariamente um confronto entre “romanos” e “nativos”, duas categorias, segundo ele, não aplicáveis ao estudo dos contextos coloniais

Emaranhamentos

Uma outra possibilidade de análise nos é colocada por Philipp Stockhammer em Con-ceptualizing Cultural Hybridization: a transdiscipli-nary approach (2012), publicação resultado de um workshop organizado pela Universidade de Heidelberg. Nesta obra Stockhammer (2012b: 47-56) discute sobre a validade do termo hibridi-zação e a possibilidade de substituí-lo por outro termo: emaranhamento (entanglement). Segundo este autor (2012: 1), o conceito de hibridização tem sido usado nos estudos pós-coloniais, mas ainda permanece não definido totalmente. O termo é utilizado para caracterizar fenômenos que são facilmente detectados como borderline, nas “margens” ou “fronteiras”, mas que não são facilmente explicáveis.

Como definir “hibridização”? Estudiosos do campo da literatura, sobretudo Edward Said, Gayatri Spivak e Homi Bhabha, se preocuparam com problemas de representar o “outro” nos estudos literários e desenvolveram um renovado interesse pelo hibridismo. Eles argumentaram que desde que nenhuma cultura tem permane-cido intocável pela circulação global de pesso-as, artefatos, signos e informação, a cultura é essencialmente híbrida constituindo um local de conflito entre representações de identidade e diferença (Ackermann 2012: 12). As teorias pós--coloniais estão mais interessadas nas transições e rupturas do que nas origens e homogeneida-de, mais afeitas a procurar a diferença do que a identidade. Este foco de estudo é resultado das análises de desconstrução, mas também da biografia desses autores. Said era palestino que viveu a maior parte da vida em Nova Iorque, Spivak se mudou de Calcutá para Nova Iorque e Bhabha de Bombaim para Oxford e, depois, Chicago.

As teorias pós-coloniais baseiam-se nas ideias desenvolvidas pelo linguista e filósofo Michail Bakhtin (1895-1975), que usou o termo “hibridismo” no sentido filosófico, a fim de descrever sua teoria particular. Bakhtin apresen-ta duas ideias para hibridismo: o primeiro é o hibridismo intencional e, o segundo, o orgâni-co. A hibridização “orgânica” refere-se ao não intencional, não consciente, à mistura e fusão

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da vida diária de diversos elementos culturais, como, por exemplo, na linguagem. Isto pode ser culturalmente produtivo, porque a hibridi-zação não consciente tem potenciais para novas visões de mundo, com novas formas internas para perceber o mundo em palavras. Aplicando esta ideia para a cultura e a sociedade, em geral, podemos dizer que apesar da ilusão da fronteira, a cultura está envolvida historicamente através de empréstimos não reflexivos, apropriações miméticas, trocas e invenções.

Contrariamente à visão anterior (de hibridi-zação “orgânica”), a hibridização “intencional” é o resultado de um contraste consciente e oposi-ções em um único discurso, quando uma voz é capaz de desmascarar o discurso da autoridade. Na hibridização intencional os dois pontos de vistas não estão misturados, mas estão um contra o outro dialogicamente.

Enquanto na hibridização orgânica a mis-tura emerge e se funde em uma nova linguagem e visão de mundo, na hibridização intencional estão reunidos diversos pontos de vista contra outros em uma estrutura conflituosa. Isto seria a dupla forma de hibridização postulada por Bakhtin. Bhabha utilizou o conceito de Bakhtin de “hibridização intencional” na sua interpreta-ção dos textos coloniais (Ackermann 2012: 12).

Em relação à arqueologia e ao estudo da cultura material como poderemos lidar com esta questão da hibridização? As relações de poder precisam ser levadas em consideração, pois nor-malmente alguns indivíduos participam mais do processo do que outros. Também alguns locais são mais propícios às trocas culturais do que outros como, por exemplo, as metrópoles, o porto e a fronteira. Grandes cidades como Nova Iorque, Londres ou São Paulo constituem cruzamentos de comércio e cultura. É a presen-ça de um grande número de habitantes que faz com que a metrópole seja um importante local para trocas culturais. As fronteiras são outras áreas para troca e hibridização. Por exemplo, a fronteira entre o Islã e cristianismo na Europa Oriental, a Espanha medieval e a relação com o mundo islâmico (Ackermann 2012: 19-20).

Os estudos de contextos de globalização não podem vir separados da preocupação com o local. Tanto a homogeneização quanto a hetero-

geneidade são simultâneas e complementares, assim como as apropriações e a resistência. Devemos sempre analisar o global e o local.

Stockhammer (2012b: 43) acredita que existe um hiato entre a discussão sobre os fenô-menos de hibridização cultural na antropologia e as abordagens metodológicas da arqueologia e suas interpretações. O autor chama o processo de hibridização de processo de emaranhamento (processes of entanglement), que existe em estágios distintos e cada estágio pode ser percebido na cultura material. A palavra “híbrido” teria uma conotação biológica na origem enquanto “hibri-dização” está atrelada ao contexto político nos estudos pós-coloniais. Stockhammer defende, portanto, o uso do termo emaranhamento no lugar de “hibridização cultural”. Este seria a versão despolitizada do conceito pós-colonial.

Qual a metodologia a ser usada, neste sentido, para a cultura material? Qual o método adequado para verificarmos o processo de apro-priação que emerge da relação dialética entre aceitação e resistência? A cultura material pode sofrer um processo de “emaranhamento” ou ter apenas o seu uso, ou seja, as práticas sociais emaranhadas.

Para definirmos se um objeto é “emara-nhado”, precisamos criar, elaborar um modelo do que é uma entidade, no sentido de cultura arqueológica. Por exemplo, definir o que é um objeto micênico, egípcio, cananeu etc. A defi-nição de tais entidades sempre coloca o risco de cairmos na ideia de essencialismo e pureza. Segundo Stockhammer (2012b: 49), estamos considerando-as do ponto de vista ético (exter-no), do pesquisador. Então, estas entidades são modelos mentais, usados como modelo analíti-co.

A percepção ética da diferença significa que, provavelmente, no passado os indivídu-os também a perceberam. Este momento do encontro, da construção e percepção da alte-ridade e da diferença, é o impulso central que tem lugar nos espaços liminares, que o autor visualiza como situações e espaços que não estão limitados a uma área geográfica. Podemos ter o que Stockhammer chama de processo de “ema-ranhamento relacional” e o “emaranhamento material” (2012b: 50). No primeiro caso, um

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objeto estrangeiro pode ser usado em outra cultura, sendo ressignificado. Ele não mudou, o que foi alterada foi a prática social em relação a ele. Não é este um procedimento, uma escolha individual apenas, pois depende das regras e rituais da sociedade. Essas regras e rituais foram criados para negociar com a alteridade e o novo. Stockhammer (2012b: 54-55) cita o exemplo da cerâmica egeia (do Período do Bronze) encontra-da no Levante. Objetos utilizados em banquete foram utilizados de outra maneira. Por exemplo, os vasilhames originalmente fabricados para conter vinho foram usados no armazenamento de cerveja.

No processo de “emaranhamento material” temos o desenvolvimento dos objetos ema-ranhados, que está associado ao processo de “criação material”. Um objeto é criado, novo, combinando o familiar com o estrangeiro. Ele não é o resultado de uma continuidade local, mas das trocas com o outro. Mesmo que um objeto tenha perdido seu contexto de origem, e, portanto, perdemos a informação da prática social, ele pode ser identificado como um objeto emaranhado, uma evidência de emaranhamento na arqueologia. É importante sabermos qual o processo final de apropriação e criação. Esse processo pode resultar em contínuas reinterpre-tações, incorporações, manipulações e criações.

Caso de estudo: Egito Romano

Onde se situariam, então, os estudos sobre o Egito Romano neste contexto? Na verdade, a historiografia do Egito Romano mais tradicio-nal o considerava como algo à parte no mundo romano. Os estudos de Romanização se con-centraram, sobretudo, na análise das províncias ocidentais do Império então consideradas mais “atrasadas” em relação ao Oriente helenizado. Dois conceitos pejorativos dominavam, então, esta historiografia oriunda do ideal civilizatório do século XIX. Em primeiro lugar, a ideia de barbárie associada ao mundo celta e germânico e a consideração de que o Oriente Próximo teria sido helenizado após a conquista de Alexandre e a formação de seu império no período helenís-tico. Hoje sabemos que o Egito Romano não

foi uma exceção no mundo romano. Mesmo não utilizando o conceito de Romanização, por seu caráter reducionista, um aspecto importante deve ser realçado em relação ao Egito e este diz respeito às ações preconizadas pelos imperado-res romanos para controlar a província e tentar integrá-la à política imperial.

As diversas respostas a Roma devem ser testadas no âmbito local. No caso do Egito Romano dependendo da localidade teremos determinadas atitudes em relação à presença de elementos culturais de origem grega e romana. Quanto mais próximos do poder central mais direta é a influência: em primeiro lugar de Alexandria e evidentemente do Delta egípcio; em segundo lugar, do Fayum e, em terceiro, do Médio Egito. Estamos considerando que houve adaptações da cultura autóctone em resposta à ação romana. Trocas e reciprocidades culturais e mesmo atitudes de resistência podem ser observadas nos aspectos da cultura material por todo o Egito. No entanto, acreditamos que as redes de conexão ao poder central devam ser consideradas. Assim, ao mesmo tempo em que analisamos em nossa abordagem a capacidade de atuação do sujeito e de suas escolhas, defen-demos que, no caso de sistemas imperiais, há uma limitação nesta escolha. Então, é preciso balancear o conceito de agência com um exame mais detalhado das influências estruturais.

Neste sentido, no contexto colonial, preci-samos estar atentos à questão das relações de po-der conforme estipulado no modelo de análise de Mattingly. O conceito de emaranhamento de Stockhammer nos é útil para refletirmos sobre os lugares mais propícios ao contato e às trocas culturais. Assim, a análise do espaço e das redes de conexão no território egípcio é essencial para nossa proposta de pesquisa.

Podemos considerar o Egito Romano como dividido em áreas que servem como redes de conexão. Segundo o modelo teórico utilizado, as áreas mais propícias ao contato e às trocas culturais são aquelas situadas próximas ao Mar Mediterrâneo, na costa marítima, portanto, na região do Delta egípcio. Evidentemente, que se tratando do período ptolomaico e romano a cidade de Alexandria tem um destaque especial sendo a grande metrópole, a pólis por excelência.

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No entanto, exemplificaremos aqui com exemplares da cultura material de cunho funerário, de quatro áreas do Egito: Delta (Baixo Egito), Fayum, Médio Egito e Alto Egito. Veremos que a religião egípcia, ainda que tradi-cional, sofreu no âmbito icono-gráfico adaptações que, segundo nossa hipótese, se relaciona com as influências recebidas por meio das redes territoriais estabeleci-das e, em certos casos, mantidas pelo poder romano instituído em Alexandria.

O Delta evidentemente mais próximo ao Mar Mediterrâneo era, essencialmente, mais propício aos emaranhamentos do que ou-tras áreas do Egito. Além da proxi-midade da costa marítima, era no Delta que se situava Alexandria, a sede do poder imperial romano no Egito, embora fosse conside-rada como estando “ao lado” do Egito e não propriamente fazen-do parte do mesmo. As estelas funerárias de Terenuthis (Kom Abu Billo), cidade do Delta, são interessantes como exemplos de emaranhamento material (Fig. 1). O tipo de representação mescla elementos egípcios tradicionais, como a figura do deus Anúbis, com elementos próprios da região mediterrânica, como o uso da kliné na qual a figura feminina está reclinada. Este tipo de icono-grafia da estela se assemelha às representações de sepultamentos na necrópole de Kom el-Chugafa, em Alexandria, que data dos séculos I-II d.C. Na Grande Catacumba (nicho central), por exemplo, há a representação de um sarcófago tipicamente romano, com a iconografia de uma figura femini-na reclinada (Venit 2002: 135).

A região do Fayum tem seu nome derivado do copta Pa-youm, que significa “o mar” ou “o lago”, nome dado no Novo Império a uma depressão ocupada por um lago alimentado pelo Bahr Yussuf (Canal de José), um braço natural

do Nilo. No período ptolomaico o Fayum foi uma importante área de colonização macedô-nica e grega. A presença de habitantes descen-dentes de gregos e macedônicos foi um fator importante na época romana. Por exemplo, para fundar a cidade de Antinoópolis, no Médio Egito, o imperador Adriano levou como colo-nizadores membros de famílias de status étnico “grego” que habitavam o Fayum.

Existem vários exemplos de emaranhamen-to da cultura material do Fayum. Talvez os mais conhecidos sejam os retratos do Fayum (Fig. 2), pintados sobre madeira ou tela de linho e colocados no lugar da máscara funerária nas múmias da época romana.

Fig. 1. Estela funerária. Terenuthis. Walker, S. (Ed.). Ancient faces: mummy portraits from Roman Egypt. The Metropolitan Museum of Art, New York, Routledge, 2000, p. 142, fig. 95.

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Ao sul do Fayum começava o Médio Egito, região que teve um papel importante no perío-do romano, por estar em um local estratégico intermediário entre o Delta e o Egito meridio-nal. Possuía ligações mais estreitas com o Fayum e também com o Alto Egito. Influências destes emaranhamentos podem ser observadas na cultura material funerária de cidades como Her-mópolis Magna e sua necrópole (Tuna el-Gebel)

e Antinoópolis. Semelhanças com o Fayum po-dem ser apontadas em relação, por exemplo, aos modelos dos retratos funerários como é o caso do retrato de mulher de Antinoópolis (Fig. 3).

Na Fig. 4 observamos uma máscara de gesso de Tuna el-Gebel, necrópole de Hermópolis Magna. São muitos os tipos de máscaras dessa região, mas alguns modelos assemelham-se àque-les produzidos no Alto Egito. O cabelo típico egípcio, em tranças, é recorrente entre várias máscaras femininas da região e associam a figura feminina às deusas Nut, Háthor e Ísis. Portan-to, quando consideramos as máscaras de gesso notamos as influências de Meir e Akhmin (Alto Egito), que serviam como ponte intermediária com a região da Tebaida, mais ao sul.

Fig. 2. Retrato de oficial romano. Fayum. Walker, S. (Ed.). Ancient faces: mummy portraits from Roman Egypt. The Metropolitan Museum of Art, New York, Rout-ledge, 2000, p. 72, fig. 31.

Fig. 3. Retrato de mulher. Antinoópolis. Walker, S. (Ed.). Ancient faces: mummy portraits from Roman Egypt. The Metropolitan Museum of Art, New York, Rout-ledge, 2000, p. 89, fig. 49.

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No Alto Egito a presença de elementos egíp-cios tradicionais se faz constante, ainda que as influências culturais provenientes da região me-diterrânica também apareçam, embora de forma mais atenuada. O material funerário da família Sóter, um oficial romano que administrava a Te-baida no decorrer do século II d.C. é um exem-plo disso (Fig. 5). Tanto as máscaras funerárias feitas de cartonagem quanto as representações dos caixões apresentam as figuras femininas de maneira semelhante. A figura da deusa Nut no fundo do caixão remonta à tradição faraônica revitalizada com acessórios próprios do período romano como é o caso, por exemplo, da repre-sentação do bracelete em forma de serpente, artefato comum não somente no Egito mas em todo o Mediterrâneo Oriental.

Fig. 4. Máscara feminina de gesso. Necrópole de Tuna el-Gebel. Grimm, G. Die Römischen Mumienmasken aus Ägypten. Deutsches Archäologisches Institut. Wies-baden, Franz Steiner Verlag GMBH, 1974, pr. 66, fig. 1.

Fig. 5. Deusa Nut. Parte interna do caixão de madeira de Petamenophis. Família Sóter. Tebas Ocidental. Séc. II d.C. Riggs, Ch. The beautiful burial in Roman Egypt: art, identity, and funerary religion. Oxford, Oxford University Press, 2005, p. 192, fig. 92.

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Considerações finais

Neste artigo propomos apresentar, de forma sucinta, determinadas discussões acadêmicas a respeito do uso de conceitos utilizados pelos arqueólogos que estudam o Império Romano e se dedicam a analisar a relação de Roma com as suas províncias em seus mais variados aspectos, sejam econômicos, sociais, religiosos e, sobretu-do, culturais.

O debate sobre centro e periferia para o mundo romano, por exemplo, tem ultimamente se ampliado para considerarmos a existência de redes de conexão territoriais que não implicam, necessariamente, a relação entre um centro (Roma) e as províncias e sim priorizam as inter-conectividades entre variados centros e áreas periféricas que, por sua vez, a outras se associam em redes. Também o uso do termo Romanização tem sido muito discutido desde que os estudos pós-coloniais trouxeram a ideia de resistência ao poder estabelecido, sendo que os colonizados não puderam mais ser considerados como passivos e aculturados. A consideração de que existiram várias respostas ao Império Romano predomina atualmente ainda que a questão das relações de poder devam ser consideradas quando tratamos de Impérios e ações imperialistas. Estudos como os desenvolvidos por David Mattingly (2011), por exemplo, tentam produzir uma mediação entre uma abordagem geral e, outra local, a fim de não perder a noção global da sociedade sem deixar de averiguar o âmbito regional.

O uso do termo Romanização traz à tona a discussão sobre o conceito de identidade, que envolve considerar o que era ser romano no mundo antigo, a fim de estabelecermos a separação entre romanos e não romanos ou entre romanos e nativos (habitantes das provín-cias ocupadas). Como ficou difícil estabelecer critérios de identidade não cabe mais atual-mente falarmos que alguém foi “romanizado”. Houve apropriações de elementos romanos pelas diversas culturas em contato com Roma e a dicotomia entre romanos (colonizadores) e nativos (colonizados) se tornou reducionista como critério de análise da relação entre Roma e as suas províncias.

Um conceito que vem sendo aplicado à arqueologia é o de emaranhamento cultural, que pode ser utilizado também na análise de casos de colonização, embora seu uso seja mais amplo e não esteja restrito aos contatos decorrentes de relações de poder. Emaranhamento foi proposto pelo arqueólogo alemão Stokhammer (2012) no lugar de hibridismo cultural com o objetivo de se desvincular da teoria pós-colonial, para a qual hibridismo tem uma conotação política, de opo-sição entre colonizadores e colonizados, sendo a ênfase na questão da diferença e do conflito entre os grupos envolvidos. Segundo este autor, podemos considerar, em relação aos dados ar-queológicos, a existência de um emaranhamento relacional e outro material. O relacional é quan-do em contextos de contatos culturais um objeto, por exemplo, de uma dada cultura é utilizado de outra maneira, com outros propósitos, por outra cultura. Desta forma, houve uma apropriação de um elemento material externo, que recebeu novas ressignificações de uso. Já o emaranha-mento material é quando temos a fabricação de um novo objeto, que reúne elementos de uma ou mais culturas sendo resultado, portanto, do contato cultural. Enquanto que, para o primeiro caso, precisamos do contexto arqueológico para sabermos como o objeto foi utilizado, no segun-do, as próprias características físicas do objeto nos informam sobre o emaranhamento.

Ao refletirmos sobre os conceitos expostos acima, esboçamos no estudo de caso uma análise de elementos da cultura material do Egito Ro-mano. Os exemplares materiais escolhidos dizem respeito a artefatos funerários, portanto, da esfera religiosa, que normalmente são considerados como pouco afeitos à mudança. Acreditamos que uma abordagem metodológica que considere as redes de conexão de poder romanas no Egito nos ajuda a esclarecer as trocas e influências culturais que encontramos no território egípcio durante o domínio romano e que são reproduzidas na documentação material. O objetivo aqui não foi expor uma análise completa dos artefatos sele-cionados, uma tarefa por si só muito complexa, mas sim apresentar algumas das discussões atuais sobre os conceitos e as formas de abordagem que podem ser aplicados aos estudos sobre o Império Romano, tendo o Egito como exemplificação.

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VASQUES, M.S. Territorial spaces and networks of power in Roman Egypt: imperia-lism, religion and identity. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 37-48, 2014.

Abstract: We propose to approach some common concepts in archaeologi-cal studies when we consider the relationship between Rome and its provinces. Firstly, the concept of center and periphery and the proposal to expand this dichotomy to a more general spatial vision, combined with the power networks of territorial spaces. Then, we discuss the applicability of the term Romaniza-tion and its relation to the theme of identity. The third point concerns the use of the term cultural entanglement, proposed by the German archaeologist Stockhammer replacing the concept of hybridization. We end by quoting some examples of the use of the concept of entanglement and networks of Roman power in Egyptian territory, using the burial artifacts from Roman Egypt.

Keywords: Territorial spaces – Imperialism – Identity – Roman Egypt.

ACKERMANN, A. 2012 Cultural hybridity: between metaphor

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.

Considero este evento o local apropriado para divulgar e debater sobre os pressupostos e hipóteses de trabalho do Projeto Coletivo de Pesquisa, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, intitulado: “Império: te-oria e prática imperialista Romana”, sob minha orientação, no Laboratório de História Antiga e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada, ambos do Instituto de História da UFRJ. O projeto é dividido em subprojetos que correspondem a um conjunto de problemas sobre a experiência imperialista de Roma na Antiguidade. Os projetos individuais de pesquisa dos “experimentadores” do Império Romano são norteados pelos mesmos pressupostos, a saber:

1- Afirmar que a formação, manutenção, reprodução e colapso do Império Romano de-

pendeu de uma dinâmica marcada pela conexão entre cultura e poder;

2- Pressupor que as tensões causadas pelas guerras de conquista e o impacto da presença e posteriormente da colonização modificou as comunidades subjugadas, dando início a varia-das formas de interação social e cultural entre grupos de pessoas, cuja ação possibilitou a cons-tante recriação e definição do Império Romano e do ideal de ser romano;

3- Repensar o conceito de romanização como algo flexível o bastante para abarcar as distintas formas de experimentação da presença romana pelas comunidades conquistadas, ou seja, devemos pensar que ser romano representa algo repleto de possibilidades, ou seja, um dis-curso que pode ter várias interpretações (Revell 2009);

4- Utilizar este termo diante do seu valor paradigmático para expressar a construção de um império de proporções mundiais e extensa durabilidade;

A província da Lusitania: sistema econômico global e local

Norma Musco Mendes*

MENDES, N.M. A província da Lusitania: sistema econômico global e local. R. Museu

Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 49-58, 2014.

Resumo: O objetivo da presente intervenção é divulgar os projetos de pesquisa individuais que integram o projeto coletivo de investigação histórica, intitulado: “Império: teoria e prática imperialista romana”, sob minha orienta-ção e em realização no Laboratório de História Antiga/ Instituto de História da Universidade do Rio de Janeiro. Nosso segundo objetivo é refletir sobre a aplicação da New Institutional Economics para o estudo da economia do Império Romano, através das pesquisas em andamento sobre a província da Lusitania.

Palavras-chave: Império Romano – Lusitânia – Economia – New Institu-tional Economics.

(*) Laboratório de História Antiga. Programa de Pós-Gradua-ção em História Comparada. Instituto de História da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro. <[email protected]>

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A província da Lusitania: sistema econômico global e local. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.

O objeto central de estudo do Projeto Co-letivo de Pesquisa é analisar o valor da inserção da Lusitânia e da Tarraconense no sistema de economia imperial romano, preocupando-nos em criar argumentos explicativos para analisar de forma independente a existência numa so-ciedade agrária de ambos os fenômeno: império e mercado, sem recorrer a comparações com a economia capitalista (Bang 2002: 5).

Somos conscientes de que nas últimas dé-cadas os estudos privilegiam temas relacionados com a história cultural, principalmente, volta-dos para a questão das identidades. No entan-to, se considerarmos que o estudo do imperia-lismo romano tem se voltado atualmente para o estudo dos processos de interação e construção da convivência no âmbito de uma estrutura imperial, a análise do comportamento econômi-co das comunidades subjugadas também apre-senta grande valor para a pesquisa histórica. Isto porque compartilhamos com Ciro Flamarion (2011: 15-36) no sentido de que o uso do termo economia para a Antiguidade deve significar “as realidades e processos que foram os que mais afetaram de algum modo (mesmo se em graus extremamente variáveis) – do ponto de vista das atividades de produção e troca, da taxação, do acesso a produtos e técnicas, da liberdade pessoal ou de sua perda, etc. –, as populações variadas englobadas no vasto Império Romano, ou mesmo, eventualmente, fora dele”. Trata-se, portanto, de atividades que são mantidas e re-produzidas pela vivência cotidiana dos diversos tipos de romanos e não romanos existentes nas comunidades provinciais. Ademais, deve ser res-saltado que o estudo da história econômica do mundo romano teve um grande desenvolvimen-to a partir da segunda metade do século XX.

O surgimento de metodologias interdiscipli-nares possibilitou novas formas de abordagens para o estudo da economia romana que se preo-cuparam em ir além dos debates entre primitivis-tas e modernistas. A tendência atual é ultrapassar o debate sobre estas correntes historiográficas e se concentrar nas especificidades dos desempenhos econômicos das distintas regiões que compu-nham o Império Romano sem a preocupação comparativa com o mundo capitalista. Estrutu-ram-se, portanto, tipos de abordagens integradas

5- Olhar o Império Romano como uma experiência histórica e específica de globalização cultural. Porém, ampliando as conotações de Hingley (2005), entender globalização como processos infinitos de contradições, no sentido de que a sua aplicação ao Império Romano é uma forma de ressaltar o caráter ambíguo do Império Romano; e

6- Entender por globalização os processos infinitos de contradições dinâmicas e heterogê-neas que caracterizaram a lógica cultural inclu-siva das experiências colonialista e imperialista romanas, possibilitando a criação de novas e híbridas identidades locais, um fenômeno conhecido pelo termo globalização (Gardner 2013: 1-25).

Aplicação destes conceitos não como uma analogia entre o passado e o presente, mas como um conceito heurístico que nos ajuda a abarcar em uma mesma estrutura ambos os fenômenos: um império como um todo e a experiência local e a fazer comparações sobre temas recorrentes, tais como: transformações na velocidade do rit-mo dos meios de comunicação para as mercado-rias, informações e pessoas; formação de novas redes de interações; crescimento do consumo e da economia; formação de novas identidades híbridas marcadas pela interação entre padrões globais e locais.

No entanto, conforme afirma Nevile Mor-ley (2007: 90) é preciso considerar os limites da globalização, observando os parâmetros pró-prios do mundo antigo em relação à tecnologia, à capacidade de fluxo de informações, ao de-senvolvimento da contabilidade, à previsão das condições climáticas que sem dúvida influencia-vam nas escolhas e decisões.

A nossa atividade de pesquisa nos últimos anos tem sido caracterizada pelo desenvolvimen-to de estudos periféricos e interdisciplinares, marcados principalmente pelo diálogo entre a História e a Arqueologia e pela aplicação das nossas hipóteses de trabalho, particularmente às províncias da Lusitânia e, agora à Terraconense, graças ao intercâmbio mantido há vários anos com os pesquisadores vinculados ao Centro de Estudos das Universidades de Coimbra e Porto (CEAUCP), Universidade de Lisboa e Universi-dade Autónoma do Minho.

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que combinam evidências, teorias e comparações para a construção de modelos críveis para o desempenho das economias no mundo romano. Tais abordagens valorizam a interdisciplinaridade e o diálogo entre a História e as demais Ciências Sociais, principalmente com a Arqueologia e apresentam um caráter intertextual baseado em dados provenientes de documentação textual e de vestígios materiais – mercadorias consumidas, contentores, técnicas, restos de assentamentos, evidências de uso da terra, materiais de constru-ção, ossos humanos, restos de animais e plantas, moedas, naufrágios, traços de poluição do ar preservado no gelo e em outros tipos de sedi-mentos –, os quais são cada vez mais amplos em decorrência do desenvolvimento metodológico advindo da ampliação do diálogo entre a Ar-queologia (Greene 1986) e as Ciências Naturais. Estas análises se afastam ou reinterpretam os pressupostos básicos sobre o caráter da economia greco-romana que dominou os debates, desde meados do século passado e, se distanciam da tendência historiográfica de se privilegiar temas relacionados com a história cultural (Hopkins 2002; Bang 2006; Sheidel 2010). Por outro lado, criam novas agendas de estudo sobre a procedên-cia de mercadorias ou pessoas, extração mineral, bem estar humano e sobre o contexto ecológico que interagia com o comportamento econômico das regiões mediterrâneas (Purcell 2000).

Todas estas questões justificam as problemá-ticas de pesquisa que apresentaremos a seguir, visto que os nossos estudos complementares atestam que o Império Romano, considerando--se a duração e tamanho, oferece uma das melhores oportunidades para se estudar o de-senvolvimento econômico num contexto de um império agrário, visto que apresenta muitas de suas características, tais como: produção agrícola era a sua principal fonte de renda; a base de sus-tentação do Estado era o sistema tributário; exis-tência de rígido sistema de taxação ou extração de excedente; o centro da atenção do sistema econômico é examinar a natureza do relaciona-mento entre sistema tributário e a produção eco-nômica; formação de um estado poderoso e de redes informais de poder, dominado pela corte e aristocracia imperiais, burocracia e o exército; existência de crescente estratificação social.

No entanto, o fato de o Império Romano ter sido o único a possibilitar a fusão da bacia mediterrânea numa entidade politicamente organizada levanta questões sobre o quanto o crescimento da economia, durante os séculos II a.C. e II d.C. interagiu com a guerra, a conquis-ta e a unificação imperial.

A análise da documentação textual e de cultura material demonstra que o impacto do domínio romano sobre o território interagiu com as condições do meio ambiente e o grau de complexidade da comunidade nativa anterior aos processos que possibilitaram a consolidação da conquista de acordo com o contexto histó-rico de formação de cada província. Significou uma mudança gradual seja nos padrões de assentamento, na natureza da exploração dos recursos regionais e na forma como os seus habitantes passaram a perceber e pensar sobre o mundo ao seu redor. Isto fica bem evidente no estudo realizado por Ph. Leveau (2008: 651-670), ao longo do qual aplicam as quatro catego-rias espaço/tempo construídas por John Fried-mann (1973) para a sociedade industrial, com o intuito de classificar o desempenho econômico das regiões das províncias ocidentais durante o Alto Império, a saber:

1- “região Cêntrica”, identificada com a cidade de Cartago;

2- “regiões de transição ascendente”, o caso das províncias do noroeste;

3- “regiões de recurso de fronteira”, o caso das regiões a oeste da Gália;

4- “região de transição descendente” com-preende as regiões que já eram urbanizadas ou estavam no caminho da urbanização na época da conquista e viu um declínio durante o Alto Império, ou seja, a Gália Narbonense e a Itália.

O autor cria uma quinta categoria para incluir as regiões em que as formas de vida econômica da pré-história persistiram durante o domínio roma-no, em decorrência de fatores geoecológicos, tais como: regiões altas banhadas pelo Mar Mediterrâ-neo; as estepes da P. Ibérica e da África, as partes altas dos Alpes e dos Pirineus, as grandes florestas da Gália e do noroeste e os pântanos, existentes nas áreas do interior, da costa ou dos deltas.

Esta categorização nos parece pertinente para embasar a ideia das escalas locais de desen-

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volvimento econômico, pois os meios técnicos, novas formas de exploração da terra, novas for-mas de organização do trabalho e da produção foram utilizados por Roma para dominar eco-nomicamente. No entanto, interagiram com a tradição, com as potencialidades e os interesses das elites nativas locais, possibilitando o desen-volvimento de sistemas econômicos embebidos na cultura imperial compartilhada (global e local). Por outro lado, ao considerar o desenvol-vimento das províncias ocidentais reforça a tese de que a economia apresentou um desempenho econômico sem precedentes na Antiguidade, ao longo dos séculos I e III, caracterizado pela uni-ficação política do mundo mediterrâneo, pela assimilação das práticas econômicas (economia de mercado e comércio impessoal) e políticas dos reinos helenísticos; pela anexação de ampla área produtora do noroeste continental e atlân-tico e pela interação dos sistemas de economia mediterrâneo e atlântico.

Portanto, foi possível a estruturação do sis-tema econômico imperial romano, conceituado por Schiavone (2005: 100) como uma economia romana agrário-mercantil de base escravista que envolvia amplos circuitos comerciais pelas regi-ões mediterrâneas, sustentada por uma vigorosa circulação monetária e dependente da “confi-guração mundial” proporcionada pelo domínio romano. No entanto, ressalta que existia mesmo nas regiões mais significativas, uma economia natural ou de “subsistência” voltada para o auto-consumo ou para o comércio local.

As economias das regiões das províncias da Lusitânia e Tarraconenses, ao longo do Alto Império, representam um importante campo de pesquisa para a validação das afirmações acima. Além disto, apresentaram grande diversidade de escalas do desempenho econômico, em decor-rência das diferenças regionais.

O Imperador Augusto deu continuidade à política de Júlio César de ampliar e consolidar o domínio romano nas Hispânias ao reorganizar a região, através da criação de três províncias: Bética, Lusitânia e Tarraconense, em 27 a. C. e consolidar a conquista, vencendo as tribos do noroeste peninsular nas guerras Cantâbrias (24-16 a.C). Neste contexto também foi muito importante a fundação das colônias de Bracara

Augusta (Braga), em 16 a. C, sobre um povoado indígena e de Asturica Augusta (Astorga), em 14 a. C, como um acampamento da Legio X Gemina. Esta última adquiriu, ainda, grande importância administrativa como um centro de controle da produção aurífera da Galícia e de seu transporte. O ouro partia de Asturica, seguia pela estrada conhecida como Caminho da Prata até as cidades de Augusta Emérita (Mérida), Hispalis (Sevilha) e Cádis, de onde por mar alcançava Roma. Em troca, os vestígios de ânforas demonstram que a cidade importava alimentos provenientes do Guadalquivir, prin-cipalmente, os condimentos preparados com peixe (liquamen, muria, garum) e azeite; vinhos de boa qualidade da Itália e da região do Mar Egeu (Carreras 2010: 239-246).

Braga tornou-se um importante mercado, estimulado pela densidade populacional do território e pela proximidade da costa. Certa-mente, estas condições atraíram comerciantes de várias regiões, tais como: Bética, Itália, Gália, África, Egeu.

A apreciação do grupo de ânforas encontra-das em Braga, principalmente, as do tipo Haltern 701 que denota a ligação com a produção do Vale do Guadalquivir, nos leva a concluir que esta cidade foi um importante mercado de importa-ção e redistribuição de alimentos (azeite, vinho, preparados de peixe) e produtos manufaturados (variados tipos de instrumenta, necessários para a agricultura e para a vida doméstica; lucernas; cerâmica de mesa simples e de luxo; mortaria e alum2). Acredita-se, ainda, que representou um eixo de circulação interprovincial regular para o suprimento do noroeste da península Ibérica, da

(1) Tipo de ânfora associada à fachada atlântica. Apresenta boa distribuição pela costa da Lusitânia e pelo noroeste da P. Ibérica, principalmente nos sítios militares. Deve ter surgido na época de Augusto. O centro de fabricação foi o Vale do Rio Guadalquivir e era utilizada como contentor de vários produtos alimentícios, vinho, mosto cozido, azeitonas, muria (salmora feita da gordura do atum).(2) Mortarium era um instrumento doméstico utilizado por gregos e romanos, em forma de uma bacia que pode ser me-nos ou mais profunda, como um pilão. Servia para socar os grãos, de modo que se transformassem em farinha e alum era uma espécie de verniz para dar acabamento final às pinturas (Gaffiot 1989).

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Britânia e dos sítios militares do limes germânico (Moraes 2010: 213-221). Neste contexto deve ser ressaltada a importância de Olisipo (Lisboa) que se transformou, ao longo do domínio romano num centro do sistema marítimo atlântico, pois o estuário do Tejo fornecia segurança aos navios, propiciava o acesso de embarcações de amplo calado e o rio permitia a comunicação com o interior peninsular. Ademais, a conexão da rota marítima Cádis/Lisboa possibilitou o transporte para as regiões do norte e do interior da produ-ção agrícola do Vale do Guadalquivir e reforçava os contatos entre o mundo mediterrâneo e o Atlântico. Citamos, apenas a título de exemplo, a inscrição de M. Cassius M.f.Gal / Sempronianus encontrada no vale do Guadalquivir e datada do século II d.C. (MANTAS, 2007:183-208). Cas-sius era um que diffusor olearius3 – agente estatal que intermediava os produtores e comerciantes relacionados com a annona –, oriundo de Olisipo e, portanto, esta epígrafe demonstra as relações comerciais entre a cidade de Olisipo, a província da Bética e a Itália.

Os vestígios de cultura material indicam que a rota atlântica para a navegação de longa--distância partia de Cádis, fazia uma primeira parada em Olisipo (Lisboa) e seguia para Bri-gantium. Desta localidade o norte podia ser alcançado pela costa até a foz do Rio Garona ou desbravando a Baia de Biscaia,4 até o sudeste da Armorica (Normandia).

Dentre as mercadorias comercializadas de-vem ser destacadas a produção dos preparados de peixe que nos estuários do Tejo (a “fábrica” da Casa do Governador da Torre de Belém) e do Rio Sado (complexo de Tróia); da costa do Alentejo (Sines e Ilha do Pessegueiro) e ao longo do litoral algarvio eram produzidos para a ex-portação, juntamente com a extração do sal e o fabrico de contentores cerâmicos (Fabião 2009).

A conquista da Lusitânia e do restante da Península Ibérica, portanto, permitiu unir ao

domínio romano a área da Gália e do Norte da África. Ademais, a inserção desta região no sistema de economia imperial romano corres-pondeu à necessidade de abastecer as tropas situadas no limes reno-danubiano e na Britania, assim como a atração para a obtenção de metais provocou uma valorização das rotas ocidentais, sejam marítimas ou fluviais. Teve início uma política atlântica centralizada no porto de Cádis e na cidade de Hispalis (Sevilha), a qual deve ser inserida no florescimento da província da Bética, ao longo do I° e II° séculos.

Estes estudos preliminares propiciaram o desenvolvimento de seis subprojetos de pesqui-sa, a saber:

“Entre espaços, representações e gentes: a paisagem imperial nas cidades da Lusitânia Romana”, em desenvolvimento pela doutoranda Airan Borges, cujo enfoque principal é atuação de benemerência dos grupos sociais ligados à realização do culto imperial durante o Alto Império;

“Os Espetáculos do Gládio e a Economia Romana: uma abordagem comparativa sobre a inter-relação da cultura, do mercado e do traba-lho em Roma e Augusta Emérita”, em realização pelo doutorando Kimon Speciale Ferreira. Apresenta como objetivo principal analisar a re-lação entre o significado simbólico e ideológico da realização e, consequentemente, da difusão desta pratica cultural e o desenvolvimento das atividades econômicas correspondentes ao seu empreendimento, principalmente o comércio, e a especialização do trabalho.

“Economia e Romanização em Bracara Augusta: uma reflexão comparativa”, em desen-volvimento pelo mestrando Paulo Duprat, cujo objetivo é analisar o desenvolvimento econô-mico registrado na região de Braga, através dos vestígios arqueológicos que sugerem a ampliação das linhas de comércio e da divisão do trabalho e da urbanização;

“Contribuição de Olisipo para o estudo da economia romana no Alto Império”, em de-senvolvimento pela graduanda Thaísa Cristina Valentino Almeida Michailowsky;

5- “Espaços produtivos rurais do litoral sul da Lusitânia: villae e vici durante os séculos III e IV d. C.”, em desenvolvimento pelo graduando

(3) Agentes contratados pelo Estado para envasar o azeite comprado pelo Estado e colocá-lo a disposição dos navicularii para o transporte. Membros das elites que em troca recebiam pagamentos em metal e privilégios fiscais.(4) Também conhecido como Mar Cantábrico.

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Rômulo Coimbra do Nascimento, cujo objetivo é a análise das villae de Quinta de Marim, de São Cucufate e de Milreu para demonstrar um padrão de monumentalização crescente dessas villae, entre os séculos I e IV A.D., o qual se mostrou contraditório com a noção de “de-cadência” do Império Romano do Ocidente, durante o IV século. Sugere, por outro lado, o desenvolvimento das atividades de produção agrícola, piscícola e do comércio, ao longo do domínio romano.

Parece-nos evidente que a temática dos projetos mencionados acima está associada às condições geradas pelo estabelecimento do Principado que possibilitou à economia romana obter índices de desempenho sem iguais na Antiguidade.

Posto isto, julgo fundamental a busca de um instrumental teórico para embasar a análise do estudo do comportamento econômico que nos permita entender a relevância da institucio-nalização desta nova forma de governo para a manutenção e reprodução do crescimento eco-nômico já verificado ao longo dos dois últimos séculos do período republicano.

Sem dúvida este último foi impulsionado pela fusão da bacia mediterrânea numa entida-de politicamente organizada e, portanto, suscita o desenvolvimento de questões sobre o quanto o crescimento da economia interagiu com a guerra, a conquista e a unificação imperial. Todavia, sentimos a necessidade de buscar uma estrutura explicativa para entender a racionali-dade econômica que interagiu com as condições acima mencionadas. Neste sentido, construímos um sexto subprojeto de investigação, intitulado “Repensando a Economia Romana através da Nova Economia Institucional”.

Buscar-se-á refletir com esta pesquisa a viabilidade de aplicação da New Institutional Economics (NIE)5 (Douglass 1977, 1990) que possibilita não somente uma revisão das tradi-cionais abordagens sobre a economia romana

como também permite analisar o papel das insti-tuições e do Estado no desempenho econômico da sociedade romana, num tipo de abordagem holística, visto que se preocupa com a interação dos fatores sociais, culturais e a economia.

É uma proposta teórica que segue a con-cepção marginalista de racionalidade econômi-ca, segundo a qual o comportamento humano é instrumental, no sentido de que busca sempre os melhores meios para atingir seus objetivos, ou melhor, aceita a existência de múltiplos tipos de racionalidade econômica na história, distin-tas da racionalidade capitalista.

No tocante ao mundo antigo, este tipo de abordagem que valoriza o papel das instituições na economia é muito bem representado pelos trabalhos de Neville Morley (2007) que defen-de o desenvolvimento de um comportamento econômico costumeiro para garantir o lucro possível pela diminuição dos riscos das incer-tezas baseados, portanto, numa racionalidade limitada.6 A Nova Economia Institucional de D. North apresenta uma proposta de renovação deste pensamento, através da criação de uma estrutura explicativa sob a ótica da análise da importância para a atuação da economia dos custos das transações, os quais são determina-dos, garantidos e protegidos pelas instituições (North 1977: 703 - 716).

Apresenta como objetivos principais anali-sar duas questões: como as instituições se trans-formam em resposta aos incentivos individuais, de grupos sociais, às estratégias e escolhas. E, como as instituições (regras formais, limitações informais, características compulsórias) afetam o desempenho dos sistemas político e econômico. As instituições determinam as “regras do jogo” de uma sociedade ou mais formalmente são definidas como barreiras construídas pela ação humana para estruturar a interação politica, econômica e social (North 1990: 3ss).

(5) Criada pelos trabalhos acadêmicos do economista norte-americano Douglass North que recebeu o Premio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1993, junta-mente com Robert Fogel.

(6) Um esclarecedor resumo sobre esta questão pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Knust, J.E.M. Senhores de Escravos, Senhores da Razão. Racionalidade, Ideologia e a Villa Escravista na Republica Romana (sec. II e I a.C.), orientação da Profa. Dra. Sonia Rebel, defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2011.

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Seguindo a linha de raciocínio de D. Nor-th a existência de mercado numa sociedade necessita de instituições específicas para poder existir, como por exemplo, a definição objetiva e garantida por lei dos direitos de propriedade de bens ou serviços a serem trocados e realizados. Por outro lado, a eficiência econômica depende da capacidade de suas instituições de diminuí-rem os custos das transações. Este aspecto está aliado com os agentes responsáveis pela criação e manutenção das instituições numa sociedade, os quais naturalmente são movidos mais pelos seus interesses de grupo do que no desempenho econômico como um fator de desenvolvimento social. Esta questão envolve a criação de institui-ções “imperfeitas” para o restante da sociedade, aumento dos custos das transações e, por con-seguinte, possibilitando tendências econômicas de estagnação e até de retração de crescimento econômico (North 1993: 246-265).7

Frente a isto, podemos afirmar que a uni-ficação do império mediterrâneo; o estabele-cimento da segurança nos mares; a ampliação da rede de estradas, a construção de canais e pontes que facilitavam o movimento das tropas e do comércio; a difusão da tecnologia para a agricultura e para a mineração; a criação de uma área monetária com regras legais comuns, especialmente no campo da lei do comércio permitiu a criação de um cenário institucional, responsável pela mudança no fluxo de informa-ções que ao reduzir as incertezas e dificuldades, propiciou a redução dos custos das transações.

O papel do Estado imperial se associou a forma pela qual o poder de Augusto foi estru-turado e seguido pelos seus sucessores. Concor-damos com Lo Cascio (2006: 224) que define a atuação do imperador romano como ambivalen-te. O imperador intervinha na economia através das suas prerrogativas legislativas e decisões, assim como, através dos gastos relacionados com os serviços públicos,8 visto que juntamente

com o seu patrimônio (Fiscus Caesaris), tam-bém controlava os tesouros públicos de Roma (Aerarium Saturni e Aerarium Militare) . Desta forma, definia “as regras do jogo” e atuava de forma privada para assegurar o suprimento das distribuições gratuitas à plebe frumentária de Roma. Este comportamento estava associado à ideologia de legitimação do Principado. Como patrono do Populus Romanus, o imperador agia como o mais rico evergeta, demonstrando a sua liberalitas e indulgencia em relação à plebe e, no caso do relacionamento particular com os mem-bros das elites pela concessão de privilegia.

Esta linha de raciocínio nos ajuda a enten-der o relacionamento de colaboração e compe-tição entre o imperador e as elites cêntricas e locais que foi essencial para a estruturação do sistema de economia imperial romano e sua co-nexão com princípios que regulavam as relações sociopolíticas, sejam no nível local, regional, provincial e imperial. Logo, a economia pode ser definida pelo conceito de uma economia política que não exclui a existência de uma economia de mercado como o principal modo de transação econômica. Apesar de o Estado representado pelos imperadores ter tido o con-trole de uma substancial parte da produção e da redistribuição, não se pode aplicar as noções de “redistribuição” e de um “comércio administra-do”, de acordo com a tese de K. Polanyi (1996). Isto porque a despeito da existência de mecanis-mos de redistribuição (frumentationes, congiaria e donativa)9 e do tamanho das propriedades imperiais, não existiu uma economia palaciana e, portanto, o imperador não controlava com-pletamente os recursos. Isto exclui a possibilida-de de uma completa redistribuição.

Com os projetos de pesquisa acima mencio-nados pretendemos demonstrar que o desenvol-vimento do desempenho da economia romana ao longo do Alto Império foi sustentado pela convivência de dois tipos de economia: uma economia de prestígio (Garcia 2009) ligada ao imperador e à aristocracia e uma economia de

(7) Um bom resumo pode ser encontrado em (Mäki 1993: 2-43).(8) Ressalto as medidas para a manutenção do preço dos grãos, negociações contraídas com as corporações dos navicularii e pistores e a política de construção de portos e armazéns para estocar os grãos.

(9) frumentationes (distribuição de trigo à plebe de Roma) e congiaria (distribuição de azeite, vinho, dinheiro ao povo de Roma) e donativa (aos soldados).

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A província da Lusitania: sistema econômico global e local. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 49-58, 2014.

mercado de abrangência local, regional e inter--provincial, impulsionada pela administração do Estado ou por interesses pessoais privados.

De acordo com esta linha de raciocínio e em se tratando das províncias da Lusitânia e Tarraconense, procuramos validar as seguintes hipóteses de trabalho:

1- o poder romano e a cultura romana foram ativamente reproduzidos no nível local pela agência – comportamento, atuação – da-queles que foram incorporados dentro desta área de influência. Isto porque concordamos com a ideia de que a “ação humana não apenas reproduz as condições materiais, as estruturas de significados herdadas e a consciência histórica, mas as modificam, as reinterpretam e as redefi-nem” (Renfrew e Bahn 2005: 2ss);

2- a existência de uma economia de merca-do, tanto no seu sentido concreto (espaço ou uma construção para a realização da troca de bens) como abstrato (zona geográfica no interior da qual uma determinada mercadoria segue as regras da oferta e da procura;10 e

3- compartilhar da ideia de Vasco Gil Man-tas (2003: 445-467) no sentido de que o Oceano

Atlântico representou para Roma uma fron-teira, destinada a ser ultrapassada. Ou ainda, o Império Romano, conforme argumenta este historiador, foi, sobretudo, um império maríti-mo, visto que para o controle das suas partes, o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico eram os espaços estratégicos fundamentais para a comunicação.

Podemos afirmar que o Estado romano, diante de finalidades bélicas e comerciais, rela-cionadas às necessidades de defesa, de obtenção de riqueza mineral e de garantir o abastecimen-to de Roma e dos exércitos, se interessou pelo controle das rotas comerciais atlânticas, se em-penhando para debelar as dificuldades (Mendes 2013: 47-68).

Em suma, à luz da Nova Economia Institucio-nal pretendemos contribuir para o estudo da visão desenvolvimentista da economia romana para o período de fins da República e Alto Império, pos-sibilitando a interação econômica e cultural das áreas do litoral atlântico da atual Península Ibérica com o mundo mediterrâneo, confirmando a ideia de que a experiência imperialista romana deve ser compreendida como global e local.

(10) Vide a conferência proferida na UNIRIO, em novembro de 2011, intitulada “A economia romana era uma economia de mercado?” pelo Prof. Jean Andreau, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.

MENDES, N.M. The province of Lusitania: global and local economic systems. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 49-58, 2014.

Abstract: The purpose of this interview is to divulge the individual researches that compose the common project of history investigation named “Empire: theory and practice of roman imperialistic”, under my orientation and realizing in the Laboratory of Ancient History/ History Institute of the Federal University of Rio de Janeiro (Brazil). Our second aim is to ponder over the application of the New Institutional Economics for the study of the economy of the Roman Empire, through the researches that has been done in the province of Lusitania.

Keywords: Roman Empire – Lusitania – Economy – New Institutional Economics.

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Norma Musco Mendes

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Os enterramentos celtiberos são fonte de muitas controvérsias entre os

pesquisadores no que se refere ao tipo de enterramento praticado, práticas ritualísticas, presença ou não de sacrifícios humanos.

É possível observar, por exemplo, através dos estudos de Lorrio (1997), Burillo Mozota (2005), So-peña (2005), Cerdeño (2005), Villa (2007) sobre os celtiberos, que os pesquisadores pontuam diferenças quanto aos objetos depositados, a presença ou não das estelas funerárias, a disposição dos túmulos, a existência ou não do sacrifício humano e o ritual de exposição de cadáveres. É preciso, portanto, obser-var atentamente cada um destes aspectos.

A disposição tumular e a documentação material dos sepultamentos

Quanto à disposição dos túmulos nos cemitérios celtiberos, vê-se que os mesmos

possuem evidentes particularidades. Embora o pesquisador Lorrio (1997) ressalte que em relação às necrópoles da Meseta Oriental, exista uma “peculiar organização interna do espaço funerário, que confere aos cemitérios celtiberos uma evidente personalidade” (1997: 12), isto “não pode em absoluto considerar-se uma prática generalizada em todas as necrópoles celtiberas. Muito pelo contrário, a maior parte das que têm oferecido este tipo de informação mostram uma distribuição anárquica à primeira vista, podendo--se detectar áreas com diferentes densidades de enterramentos que, em ocasiões, podem inclusive estar delimitadas por espaços estéreis, tendo-se observado em certos casos, como nas necrópoles de Altienza ou Carratiemes, a existência de uma autêntica estratigrafia horizontal” (1997: 21).

Não obstante a disposição tumular possa parecer não seguir nenhuma organização, em muitos cemitérios celtiberos verifica-se, em relação ao mobiliário funerário, que em alguns casos o mesmo encontra-se disposto de modo ordenado dentro da necrópole. No cemitério de La Merca-dera (Soria), as tumbas com espada aparecem em “quatro núcleos diferenciados, sendo que o con-junto mais numeroso encontra-se na zona central

O ritual da morte entre os celtiberos

Silvana Trombetta*

TROMBETTA, S. O ritual da morte entre os celtiberos. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 59-67, 2014.

Resumo: O presente texto analisa os aspectos ritualístico relacionados à morte entre os povos celtiberos: os objetos depositados nas tumbas femininas e a questão de gênero, a existência ou não de locais destinados especificamente à cremação dos corpos e a questão do sacrifício humano e dos rituais de funda-ção ou proteção das comunidades celtiberas.

Palavras-chave: Celtiberos – Rituais de morte – Cremação – Urnas cinerárias.

(*) Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP e pesquisadora associada ao Laboratório de Arqueologia Romana Provincial -LARP, MAE/USP <[email protected]>

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O ritual da morte entre os celtiberos. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.

bertas. “Estruturas e objetos até então desco-nhecidos trouxeram novas questões sobre os enterramentos celtiberos: vinte e cinco depósi-tos de cinza foram encontrados em associação com trinta tumbas paralelas. Elas continham cerâmica e restos faunísticos, um grande depósi-to de cinzas de 63m2 com fragmentos de vasos e plataformas que não continham enterramentos, alguns pertencendo aos ustrina e outros com oferendas, incluindo restos de animais não cremados. Quanto à datação, os enterramentos variam dos séculos VI/V a.C. até os séculos III/II a.C. Durante os primeiros estágios, os enter-ramentos apresentavam uma grande quantidade de oferendas e sacrifícios animais enquanto que nos estágios finais as oferendas tornaram-se raras.” (Burillo Mozota 2005: 457) (Fig. 1).

da necrópole. Em torno a este núcleo – até o norte e o leste – localiza-se a maior parte das tumbas carentes de mobiliário” (Lorrio 1997: 22). Para Bu-rillo Mozota (2005: 457), La Mercadera é um caso excepcional no mundo celtibero, pois possui um contexto fechado que possibilita melhor análise arqueológica. As tumbas com espadas têm sido interpretadas como manifestações de uma socie-dade socialmente hierarquizada. Porém, o próprio autor cita estudos que sugerem uma interpretação alternativa para a necrópole de La Mercadera que “poderia ter sido um cemitério de uma comunida-de camponesa estruturada em famílias estendidas, na qual os camponeses poderiam portar armas e os melhores conjuntos tumulares pertenceriam aos indivíduos de status social mais elevado ou aos chefes de famílias (Burillo e Ortega 1999, apud Burillo Mozota 2005: 457)”.

Outro sítio arqueológico importante é o de Numância onde “uma parte importante das 156 tumbas descobertas – algumas sinalizadas com estelas – concentram-se em dois grandes grupos, tanto no que se refere à localização espacial quanto ao conteúdo do mobiliário. O que ocupa a parte mais alta da necró-pole caracteriza-se majoritaria-mente por mobiliários providos de objetos de adorno e objetos de prestígio de bronze, enquanto que o outro, numa posição mais baixa, oferece, de forma mais generalizada, armas e objetos de ferro” (Lorrio 1997: 26). Burillo Mozota (2005: 458), igualmente chama a atenção para a distribui-ção espacial desses enterramen-tos, revelando que bem como os achados citados acima, a análise osteológica apontou uma desi-gualdade social observada pela dieta nutricional dissimilar entre os dois grupos.

Dentro do mundo celtibe-ro, as escavações na necrópole de Aragoncillo em Guadalajara, revelaram importantes desco-

Fig. 1. Urna cerâmica e armas de metal (século VI a.C ? ) provenientes da ne-crópole de Aragoncillo em Guadalajara. Fonte: Burillo Mozota (2005: 457).

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Silvana Trombetta

De um modo geral, nos sepultamentos celtiberos, os restos mortais eram depositados diretamente no solo ou dentro da urna cinerá-ria. Quanto ao mobiliário funerário, parece ser consenso entre os pesquisadores que as oferen-das eram mais frequentes nos estágios iniciais (do século VI a.C até o IV a.C) tornando-se menos opulentas durante os séculos II/I a.C. Particularmente em relação às armas, em alguns túmulos elas eram posicionadas ao lado da urna ou sob a estela, sendo que muitas eram propositalmente danificadas. A obra de Green (2001: 50) cita a danificação das armas no sítio celtibero de Numância e permite verificar que este rito era praticado igualmente por celtas da Bretanha e da Gália, sendo visto como um ato de “destruição sagrada” ou morte simbólica do objeto, no qual sua inutilização retirava-o do mundo dos vivos.

Os objetos depositados e a questão de gênero

A presença das armas, fusos, objetos de adorno encontrados nos sepultamentos celtibe-ros e sua conexão com o gênero são objeto de controvérsia entre os pesquisadores. Embora na maior parte das vezes a análise antropológica confirme que os indivíduos sepultados junta-mente com espadas, punhais e lanças sejam do sexo masculino e indivíduos enterrados com braceletes, pulseiras e anéis sejam mulheres adultas, há casos nos quais isto não ocorre.

No cemitério celtibero de Las Ruedas foi encontrada uma sepultura feminina com armamento militar, no de Siguenza foram encontradas quatro sepulturas femininas com armas e, no de La Yunta, seis sepultamentos femininos com mobiliário militar. Nos sepulta-mentos de Las Ruedas e Siguenza, a maior parte dos túmulos com armas eram masculinos, mas o caso de La Yunta é singular, pois de um número total de doze sepulturas com armamentos, a maior parte é feminina (seis), existindo quatro sepultamentos masculinos e outros dois cuja identificação do sexo não foi possível. Lorrio defende uma posição segundo a qual “a existên-cia de armas em sepulturas femininas não deve ser vista como um indício do pertencimento

de algumas mulheres ao estamento militar, mas que isto deve ser interpretado como uma prova da posição privilegiada que a morta possuía em vida, por seu matrimônio ou por pertencer a um grupo familiar destacado” (Lorrio 1997: 53). Com relação à particularidade da necrópole de La Yunta, o autor relata que “sua cronologia avançada e a localização geográfica a situam numa área marginal em relação aos focos mais ativos da Celtibéria, caracterizada pelo empobre-cimento dos mobiliários e praticamente o desa-parecimento das armas e, por isto, dificilmente pode-se extrapolar para o resto do território celtibero os resultados obtidos neste cemitério mediante as análises antropológicas” (Lorrio 1997: 54). Cerdeño (2005), além da preocupa-ção no que concerne aos dados obtidos nas ne-crópoles celtiberas, que podem ser incompletos, propõe outra interpretação para a concentração de armas em túmulos femininos: as armas do guerreiro morto em batalha seriam recolhidas e posteriormente enterradas com um membro da família, o qual poderia ser a sua esposa.

Embora as explicações de Lorrio (1997) e Cerdeño (2005) sejam bastante plausíveis e importantes, resta explicar porque em túmulos masculinos há a presença de fusos. Este objeto se distribui de forma equivalente na necrópole de La Yunta em sepultamentos de ambos os gêneros, é encontrado num túmulo masculino da necrópole de Siguenza e ocasionalmente associa-se a túmulos nos quais encontram-se armamentos. Assim como não sabemos de-terminar com certeza o motivo da escolha do fuso enquanto componente de enterramentos masculinos, creio que ainda não podemos saber com certeza o porquê da deposição de armas em túmulos femininos. Com relação às observações de Cerdeño (2005), podemos nos perguntar: por qual motivo as armas do guerreiro morto em batalha não seriam destinadas aos descen-dentes do sexo masculino (o filho do guerreiro) sendo retiradas de circulação e enterradas com a provável esposa, a qual provavelmente morreria de causa natural? Seriam essas armas utilizadas por outros membros do grupo (descendentes ou não descendentes) para posteriormente serem enterradas com a matriarca ? Ainda não temos respostas para essas perguntas e os cemitérios

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celtiberos revelam-se complexos em relação a esta questão.

A existência dos ustrina e os rituais de crema-ção e exposição de corpos

Outro ponto a ser respondido diz respeito à existência dos ustrina (locais específicos para a cremação dos cadáveres). Nos cemitérios celtiberos os ossos presentes no interior da urna cinerária eram previamente selecionados, tornando patente a prática do enterramento secundário. A observação desta prática coloca em pauta duas outras questões: a existência dos locais específicos para cremação (ustrina) e/ou a exposição do cadáver, do qual se recolheriam os ossos após a devoração da carne pelas aves. A existência da pira funerária é, em parte, atestada pela fonte textual através da descrição feita por Diodoro na Biblioteca da História dos funerais de Viriato, chefe dos lusitanos que lutou contra a dominação romana. Na descrição feita por Diodoro, Viriato foi queimado numa altíssima pira, enquanto seus soldados a pé ou a cavalo, portando armas, cantavam e corriam ao redor da pira até que o fogo se apagasse.

Quanto às evidências físicas relativas à pre-sença de locais específicos para cremação, cabe salientar que nos cemitérios celtiberos de Riba de Saelices e de Atienza foram encontrados locais com espessas camadas de cinza, sendo que em Riba de Saelice junto às cinzas também foram en-contrados fragmentos de cerâmica e de conchas e em Atienza registrou-se a presença em alguns dos ustrina de elementos metálicos com indícios de queima. Cabe lembrar que também no já citado cemitério de Aragoncillo em Guadalajara os gran-des depósitos de cinza nos quais se encontram vestígios de plataforma e ausência de enterramen-tos evidenciam a existência dos ustrina.

Embora nos cemitérios celtiberos sejam encontradas sepulturas que permitem avaliar a prática funerária da incineração, a questão dos enterramentos entre os celtiberos ainda gera muitas dúvidas. González relata que as concepções em vigor sobre o mundo funerário celtibero são de que o mesmo não deixa traços, ou seja, “sem inumações bem definidas e sem

enterramentos dos restos dos defuntos, o que conduz a avançar a hipóteses de que um dos procedimentos mais prováveis do tratamento do cadáver seria depositá-lo nas águas de um riacho ou nas suas bordas. Podemos testemunhar este fenômeno no Tâmisa, onde foram achados restos humanos associados a armamentos do Bronze Final. Outra hipótese, que poderá ser verificada, por exemplo, na área celtibera seria a exposição do cadáver ao ar livre de modo que eles fossem devorados pelas aves; existem, com efeito, representações deste método na cerâmi-ca celtibera (Fig.2). Seja como for, a realidade é que nas costas cantábrica e atlântica não se pode falar em tumbas propriamente ditas até a conquista romana” (González 2000:23).

As representações em cerâmicas da depo-sição do cadáver para ser devorado por abutres (citadas por González) aparecem em um artigo de Sopeña, no qual o autor faz uma análise sobre ideologia e religião celtibera. O ritual celtibero de exposição dos corpos seria uma “prática atávica, com suas raízes no substrato pré-histórico” (2005: 308). Sopeña também cita a importante fonte textual de Silio Itálico em relação aos celtiberos, a qual corrobora a prática da exposição do cadáver.

Os celtas, que acrescentaram a seus nomes aqueles dos Iberos, também vieram. Para estes homens a morte em batalha é gloriosa; e eles consideram um crime queimar o corpo de tal guerreiro; por causa que eles acreditam que a alma sobe junto aos deuses no paraíso se o corpo é devorado no campo por um abu-tre faminto (Silio Itálico, Punica., III, 340-343).

A conexão entre fonte textual e material faz--se presente no momento em que Sopeña (2005) visualiza na encosta sul do sopé da montanha do Cerro de La Muela (Garray), onde se localiza Numância (oppidum celtibero), treze pavimentos circulares feitos com pedras arredondadas nos quais os corpos ficariam expostos para serem devorados. Sopeña cita que a função mortuária desta estrutura tem sido confirmada pela desco-berta da já citada necrópole de Numância perto da região e pelo fato de existirem outras estrutu-ras similares em Montecillo-Dulla, El Arenal e Castro Del Zarranzano. Porém, o próprio autor relata que é necessário ter cautela em relação às interpretações destas descobertas.

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Em relação às figuras que retratam o morto sendo devorado por aves, Sopeña relata que elas são absolutamente explícitas, não deixando margem para dúvidas. Cabe lembrar que Almagro-Gorbea e Lorrio (2005) igualmente descrevem esta imagem da cerâ-mica numantina enquanto representação de um guerreiro sendo devorado por abutres (Fig.3).

Curiosamente, ao discorrer sobre as Ilhas Britânicas durante o período entre o final da Idade do Bronze e a Idade do Ferro, Sopeña (2005: 384) relata que a exposição dos corpos era a prática funerária dominante, visto que 95 % da população eram dispostos deste modo no momento da morte e que em Norfolk haveria uma plataforma sobre a água na qual os achados incluíram não somente restos humanos mas também armas. Especificamente neste caso, pressupõe-se que o corpo do guerreiro deveria ser levado pela ação das águas para o Outro Mundo enquanto a maior parte

da população ficaria sujeita a uma exposição do corpo em outros tipos de plataforma existentes nos oppida. Entretanto, não se pode afirmar, até o presente momento, a existência deste tipo de prática ritual entre os celtiberos, embora a água (tal qual o fogo da pira funerária) seja um elemento fundamental e conectado a ritos de transposição da vida para a morte.

Um fato extremamente importante é que os enterramentos celtiberos eram depositados diretamente no solo ou em uma urna funerária na qual estavam presentes ossos previamente selecionados. Isto torna patente a prática do enterramento secundário e a importância dada a algumas partes do corpo humano, particu-larmente ao crânio, aos ossos mais largos e às extremidades dos dedos.

Sopeña observa que muitos ossos encontra-dos nas urnas celtiberas foram queimados após o descarnamento do cadáver havendo, assim, um período intermediário entre a morte do defunto e a cremação dos ossos selecionados. Isto não significa que todos os corpos fossem expostos para serem devorados por aves, visto que este era um tipo de ritual destinado aos mais valorosos, mas que deveriam existir outras práticas que permitissem secar e descarnar os os-sos. Igualmente em relação aos ossos seleciona-dos, Sopeña diz que das 23 tumbas encontradas na necrópole de Numância 14 continham ossos

Fig. 3. Cerâmica numantina com representação de um guerreiro morto sendo devorado por abutres (séc. I a.C.). Fonte: Sopeña (2005: 381).

Fig. 2. Um dos treze pavimentos feitos com pedras circulares, nos quais o corpo do guerreiro seria exposto após a morte. Fonte: Sopeña (2005: 381).

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que correspondiam ao crânio e às extremidades dos dedos (2005: 285). Isto é particularmente significativo, pois para o autor e para outros pesquisadores como Green (2001), a cabeça era o local onde para os celtas residia a alma, existindo no santuário de Ribemont um pórtico no qual há cabeças (provavelmente de inimigos derrotados em batalhas) incrustadas em nichos previamente esculpidos para este propósito.

A questão do sacrifício humano e dos rituais de fundação e proteção da comunidade

É bem conhecido que as muralhas possuem significados simbólicos que estão além do sistema defensivo e que o pertencimento a uma comunidade também se faz observar com base em ritos ligados à delimitação do espaço.

Nesse sentido, as inumações existentes junto à torre próxima à muralha do sítio arqueológico de Bilbilis Itálica (Zaragoza), têm sido interpretadas como sacrifícios de fundação, nos quais o “propósi-to era o de ganhar a aprovação de poderes sobrena-turais, em particular daqueles nos quais o território

da construção era erigido” (Green 2001: 166). Assim, as vítimas imoladas tornavam-se protetoras da localidade. Villa (2007: 17) relata que junto à torre próxima à muralha foram encontrados três esqueletos humanos cuja disposição e demais obje-tos que os acompanham têm oferecido informações contraditórias. Na primeira inumação encontrada o corpo (com pernas e braços separados) parece ter sido jogado ao invés de depositado e junto à sua cabeça estava o crânio de uma pequena ave, a man-díbula de uma ovelha ou cabra e um osso de javali ou cervo. O segundo esqueleto encontrava-se em posição fetal e era provavelmente um enterramento secundário (os ossos foram descarnados previamen-te e alinhados em relação ao crânio), no qual junto ao corpo havia uma vasilha indígena sem ornamen-to, fragmentos cerâmicos decorados que pertenciam a uma jarra e também ossos de um corvo. A terceira inumação é mais problemática visto que somente se conservaram alguns ossos de um indivíduo de grande estatura. A datação dos enterramentos foi baseada nas cerâmicas encontradas, as quais perten-cem ao século I a.C. Infelizmente, não foram feitas análises que permitam identificar o sexo ou a idade dos indivíduos.

O grande problema, como bem aponta Villa (2007:20), é que não se sabe se estes enterramentos se vinculam diretamente com os níveis de fundação da torre, o que dificulta a caracterização dessas inumações como sacrifícios de fundação. Não obstante esta dúvida, é certo que o tratamento dado aos cadáveres pressupõe ritos que se não estão vincu-lados diretamente à fundação, podem ter caráter profilático para os habitantes da comunidade.

Por sua vez, três inumações infantis (século VI a.C.) encontradas em Atxa (Vitoria-Gas-teiz) evidenciam mais claramente o caráter de proteção da comunidade. Localizadas na zona perimetral próxima ao rio Zadorra, que serve como defesa natural do assentamento, elas se diferenciam das demais inumações infantis en-contradas em solo celtibero (nas quais o corpo era depositado no interior do espaço doméstico) indicando um fenômeno diferenciado no qual a deposição nos limites da comunidade conferia aos indivíduos sepultados um poder apotro-paico. Segundo Villa (2007:21), nenhum dos corpos era de neonatos, e os três sepultamentos eram de crianças de 6, 10 e 24 meses.

Fig. 4. Urna Cinerária do século I a.C. proveniente da necrópole de La Yunta (Guadalajara), decorada com um motivo geométrico em forma de ondas. Fonte: Sopeña (2005: 385).

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Mais reveladoras ainda são as duas inumações infantis do sítio de Peñahitero (século VI a.C ?) nas quais uma das crianças com idade entre quatro ou cinco anos foi enterrada com os pés apoiados contra o cinturão defensivo “debaixo do solo de um recinto junto à muralha, sendo que no enter-ramento havia também um dente de javali e uma galhada de cervo. O outro infante, um lactante de poucos meses de vida, possuía um pingente de osso e foi inumado com as pernas flexionadas den-tro do corpo da própria muralha” (Villa, 2007:22). O tipo de enterramento não deixa dúvidas quanto a um rito ligado diretamente à muralha, podendo ser um típico sacrifício de fundação.

Não obstante não seja possível saber se os infantes já se encontravam mortos quando foram depositados próximos à zona do povoado (Atxa) ou junto à muralha (Peñahierto) ou se se tratava da efetivação de um sacrifício humano, o caráter ritual relacionado à fundação e defesa da comunidade não pode ser negado.

Embora não haja inumações como as cita-das acima em Numância, a existência de urnas cinerárias junto à muralha também traz à tona questões relativas à proteção da localidade. Villa (2007) relata que, segundo Gonzalez de Simancas (1926), na parte Norte/Noroeste da muralha foram encontradas três vasilhas decoradas (século I a.C.) que continham ossos humanos e cinzas. Infelizmente, não temos hoje amostras que permitam identificar com certeza se se tratava realmente de ossos humanos. Por outro lado, não se pode simplesmente descartar esta hipótese, visto ser incomum tigelas com restos funerários junto à muralha que não possuam significado simbólico. Logicamente, não se pode atestar que o sepultamento seja resultante de um sacrifício humano, pois não é possível recuperar dados que permitam saber as circunstâncias da morte e a falta de informações sobre o tipo de ossos (humanos ou animais) inviabiliza maiores interpretações. Ademais, geral-mente nos sacrifícios humanos de fundação os corpos eram inumados e a própria disposi-ção corporal (em posição fetal, estendida, com partes do esque-leto suprimidas ou não) possuía

simbolismos ligados aos ritos da comunidade (como relatado no caso de Bilbilis, embora não possamos depreender claramente seu significa-do). Isto não pressupõe relevar a importância dos achados numantinos, visto que, como diz Sopeña (1995: 256-257) nos encontramos frente a “uma atividade funerário-ritual excepcional que parece responder a certas pautas, já que as vasilhas pintadas encontradas na zona NE esta-vam enterradas em solo nos ângulos das casas junto à muralha e, portanto, em direta associação com ela, coincidências que não parecem casuais, ainda que resulte mais complicado estabelecer as razões que justificam sua localização no interior da cidade”.

Por fim, ainda com relação ao sítio arqueoló-gico de Numância, foi descoberta uma estrutura funerária retangular de pedra calcária com um T inscrito (século I a.C.) e que cobria um buraco no solo no qual havia restos ósseos (embora não seja possível saber se eram humanos ou faunísticos). Segundo Villa (2007: 7), o T inscrito na estrutura possui várias interpretações: a representação de uma palmeira, de um crescente lunar ou o mar-telo da divindade celta Sucellus, que podia matar com a clava (utilizando o lado esquerdo) ou dar a vida (usando o lado direito).

Villa (2007: 8) relata que esta estrutura funerária intra-muros tem sido interpretada por arqueólogos, como Gonzalez de Simancas (1926) e Sopeña (1995), como um heroon, onde indivíduos destacados na comunidade eram sepultados em habitações próximas às muralhas com a função de proteger a população.

Assim, podemos dizer que embora o sepul-tamento não esteja relacionado a um sacrifício de fundação, o heroon igualmente visa à defesa e proteção da comunidade (Fig.5).

Fig. 5. Provável Heroon encontrado em Numância. Fonte: Villa (2007: 39).

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O ritual da morte entre os celtiberos. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 59-67, 2014.

Conclusão

Os enterramentos celtiberos suscitam insti-gantes debates. As plataformas encontradas em Numância e sua possível relação com a prática de exposição de cadáveres de guerreiros têm levado arqueólogos a procurarem estruturas semelhan-tes em outras localidades. Ao mesmo tempo, a existência no sítio de um provável heroon, revela um tipo de sepultamento no qual a presença de indivíduos valorosos para a comunidade seria perpetuada. A existência destas estruturas junta-mente com os achados encontrados nos túmulos de Numância revela uma sociedade hierarquizada e embora ainda não seja possível compreender todos os ritos entrelaçados com a questão fune-rária, a da proteção da comunidade surge como ponto importante, na medida em que há não somente a existência do heroon, mas também de vasilhas com a presença de cinzas e possíveis restos humanos junto à muralha, o que denota um simbolismo ligado ao apotropaico.

Outro ponto importante diz respeito aos sepultamentos encontrados em La Yunta, Ruedas e Siguenza, pois vêm reavaliar a rela-ção entre os objetos depositados nas sepul-turas e a questão de gênero. Embora muitos dados provenientes destas escavações sejam do início do século XX e, portanto, realizadas sem o estrito rigor arqueológico (o que difi-culta a exatidão dos resultados) é interessante notar que não há respostas conclusivas sobre o motivo das armas terem sido depositadas nos túmulos femininos.

Práticas mortuárias e enterramentos entre os celtiberos são, portanto, mais com-plexos do que poderia parecer à primeira vista, sendo necessário examinar mais deta-lhadamente cada um dos processos ritualís-ticos ligados à morte (exposição dos corpos, objetos encontrados nas tumbas, seleção de ossos depositados em urnas, inumações junto às muralhas) para melhor compreender suas práticas funerárias.

TROMBETTA, S. The death ritual among the Celtiberian People. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 59-67, 2014.

Abstract: The intention of this article is to analyse the information regard-ing Celtiberian burial rites: the objects found in women graves and the ques-tion of gender, the existence or not of specific places for cremation and the question of human sacrifice and rituals of foundation or protection of Celtibe-rian communities.

Keywords: Celtiberian – Death rituals – Cremation – Cinerary urns

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.

No mundo antigo mediterrâneo, Roma destacou-se por constituir um dos

maiores impérios, abarcando distintos povos, dentre eles, os norte-africanos. Empenhou-se, então, em construir uma identidade entre as múltiplas culturas sob seu domínio, formando uma comunidade de abrangência mediterrânea. A constituição desta comunidade demandou, dentre outros aspectos, a elaboração e a consoli-dação de significados e valores, que nortearam e organizaram ações e imagens de “si” e, concomi-tantemente, dos “outros”, gerando diferenciação

e hierarquização (Augé 1999; Hall 2002; Silva 2000). Os conceitos de identidade e alteridade rompem com a concepção de separação de culturas isoladas historicamente e se pautam por experiências relacionais sem deixar de serem reconhecidas as diferenças. Este processo caracteriza-se por negociações e conflitos e se insere no jogo de interesses políticos, sociais e econômicos. As identidades coletivas envolvem sistemas complexos de interpelações e reconhe-cimentos através dos quais os agentes sociais se inscrevem na ordem das formações sociais de diferentes formas.

No presente estudo, analisaremos uma das estratégias romanas de definição e reconheci-mento da África através de moedas cunhadas. Nosso recorte temporal vai de fins do período

A construção romana das representações sociais da África através das moedas

Regina Maria da Cunha Bustamante*

BUSTAMANTE, R.M. da C. A construção romana das representações sociais da África através das moedas. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 69-77, 2014.

Resumo: No mundo antigo mediterrâneo, Roma destacou-se por constituir um dos maiores impérios, abarcando distintos povos, dentre eles, os norte-af-ricanos. Para tanto, foram demandadas, dentre outros aspectos, a elaboração e a consolidação de significados e valores, que nortearam e organizaram as ações romanas e suas imagens de “si” e, concomitantemente, dos “outros”, gerando diferenciação e hierarquização. No presente estudo, analisaremos uma das estratégias romanas de definição e reconhecimento da África através de moedas cunhadas desde fins do período republicano até o início da dinastia imperial dos Severos. Optamos por trabalhar com a Teoria das Representações na ver-tente da Psicologia Social desenvolvida por Moscovici, centrando-nos processos de ancoragem e objetivação.

Palavras-chave: Roma Antiga – África do Norte – Representação social – Moeda.

(*) Laboratório de História Antiga (LHIA) do Instituto de História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).< [email protected]>

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A construção romana das representações sociais da África através das moedas. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.

os romanos iniciaram o domínio da região após a derrota dos cartagineses na 3ª Guerra Púnica em 146 a.C. Posteriormente, alguns autores lati-nos, como Salústio (Guerra de Jugurta XVIII) e Plínio, o Velho

(História Natural VII, 200), utilizaram Afri para designar todos os povos da África do Norte. Por sua vez, Pompônio Mela (Corografia I, 4, 20) uti-lizou o termo para designar todo o continente.

O interesse dos antigos romanos pela Africa vem desde o período da República Romana, quando houve a disputa pela hegemonia do Mediterrâneo Ocidental entre Roma e Cartago, que levou às Guerras Púnicas entre o século III e o II a. C. Com a vitória romana, fundou-se, em 146 a.C., a primeira província romana fora do continente europeu, a Africa Vetus, no antigo território cartaginês.

Em meados do século I a.C., com as Guer-ras Civis do 1º Triunvirato entre Pompeu e Júlio César (Apiano. História Romana XCIV) e o apoio do rei númida Juba I ao lado perdedor (Guerra da África XXV, XXXII, XXXVI e XLVII; Dion Cássio. História Romana LII; Apiano. História Romana II, 96-100), o Reino da Nu-mídia tornou-se a província romana da Africa Noua. No último terço do século I a.C., durante o governo de Augusto, a Africa Vetus, a Africa Noua e mais as quatro colônias de Cirta, que Júlio César concedera ao italiano P. Sítio, foram unificadas e formaram a África Proconsular, sob a administração de um procônsul, originário da ordem senatorial. A partir daí, o domínio roma-no foi se expandindo, no sentido leste-oeste, até as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), e, no sentido norte-sul, do litoral mediterrâneo às cadeias montanhosas do Atlas saariano.

2. A África pelos romanos

O elefante era um dos animais mais emble-máticos da fauna africana juntamente com o leão. Desde a Pré-História, os animais selvagens eram representados nas gravuras rupestres en-contradas ao sul de Orã (noroeste da Argélia) e estavam relacionados à atividade de caça (Gau-tier 1952: 27 e 161; Souville 1992: 52 e 57), bas-tante praticada entre os povos norte-africanos, segundo Salústio (Guerra de Jugurta XVIII). O

republicano, quando da implantação do do-mínio romano na região norte-africana, até fins do século II, que corresponde ao início da dinastia imperial dos Severos, de origem afro--síria. Optamos por trabalhar com a Teoria das Representações na vertente da Psicologia Social. Segundo Moscovici (2009: 60-61), as representa-ções sociais nos facultam analisar o processo de tornar familiar algo não familiar, isto é, classifi-car, categorizar e nomear novos acontecimentos e ideias com as quais inexistia contato anterior-mente, possibilitando, assim, a sua compreen-são e manipulação a partir de valores e teorias preexistentes e internalizados e amplamente aceitos pela sociedade romana. Para transformar o não-familiar em familiar, ou seja, transformar algo em senso comum, é necessário o funciona-mento de dois mecanismos: ancoragem e obje-tivação. O primeiro mecanismo busca ancorar ideias “estranhas”, reduzi-las a categorias e ima-gens comuns e colocá-las num contexto familiar. A objetivação significa descobrir a imagem de uma idéia, de um conceito, tornando-o concre-to. Transformar um ser impreciso em algo que pode ser visualizado é criar uma representação visando se apropriar do objeto estranho. Na medida em que estas representações se propa-gam, acabam por fazer parte da vida cotidiana das pessoas através do senso comum, pois são elaboradas socialmente e funcionam no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade a partir de um conteúdo simbólico e prático. As representações são dependentes da forma como são comunicadas, do poder derivado desta transmissão e de como esta realidade foi contro-lada no passado e veiculada posteriormente. A representação social só existe quando o objeto reúne “espessura” ou “relevância” suficiente para ser representado por um grupo social.

1. Os romanos na África

Segundo Decret e Fantar (1998: 20-25), os vocábulos Afer, Africa, Africanus foram emprega-dos somente em textos latinos. O termo latino Africa originou-se de Afri, nome dado pelos romanos a uma das tribos que habitavam o antigo território cartaginês, atual Tunísia, onde

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interesse pelos animais não se restringia apenas ao fornecimento da carne e da pele. No caso específico do elefante, deve-se destacar que o comércio do marfim já existia com a Península Ibérica desde 2000 a.C. (Desanges 1983: 431) e que o animal domesticado era utilizado nos exércitos cartaginês (Políbio. História I, 11; I, 18; I, 30; I, 34; I, 39; III, 1; Apiano. História Roma-na IX; Frontino. Estratagemas IV, 7, 18; Floro. Epítome de História Romana II, 13, 67; Plínio, o Velho. História Natural VIII, 8.) e númida (Salús-tio. Guerra de Jugurta XLIX e LII). Na 2ª Guerra Púnica, a presença de elefantes1 nas tropas de Aníbal, sua façanha de atravessar os Alpes com estes imensos e pesados animais e a grave ameaça da tomada de Roma pelos cartagineses marcaram o imaginário romano. Assim, entre os romanos, houve a forte associação entre África e elefante, constituindo sua representação social, que serviu para classificar e definir a “alterida-de” africana e colocá-la num contexto familiar.

Em 81 a.C., foi cunhado um denário2 cujo reverso apresentava o elefante. No seu exergo, há inscrição Q C M P, referência a Quintus Caecilius Metellus Pius Scipio, que recebeu o nome de Pius por sua piedade filial quando das suas gestões pelo regresso do seu pai, Cecílio Metelo Numí-dico, exilado em 99 a.C. Daí, no anverso deste denário, se apresentar a cabeça perfilada da Pietas com diadema, tendo, à sua direita, a cegonha, ave consagrada a Juno pelos romanos, simbolizando a piedade filial (CIRLOT, 1985: 130). O elefante fazia alusão à atuação paterna na guerra contra o númida Jugurta (112-104 a.C.), quando se des-tacou na reorganização das tropas romanas e na obtenção de importantes vitórias. Assim, em 107 a.C., quando regressou a Roma, foi celebrado um esplêndido triunfo e recebeu o epíteto de Numidi-cus por atuação na África.

Em moedas berberes3 do século I a.C., emitidas por Hiarba, rei massílio, e por Juba I, rei númida, figura o busto feminino adornado com uma coroa lembrando a cabeça de elefante: grandes orelhas, tromba e presas. Este tipo de coroa foi também utilizado em diferentes luga-res e períodos, como por exemplo, em moedas com Alexandre Magno, cunhadas por Ptolo-meu I no século IV a.C.; em representações de Agatócles de Siracusa, para comemorar a vitória sobre Cartago; e, em moedas do século II a.C., cunhadas por reis bactrianos, vitoriosos na campanha contra os indianos.

A representação da África pelos romanos como mulher com a coroa elefantina é o que encontramos no anverso de um raro4 áureo (Fig. 1), cunhado para comemorar o segundo triunfo de Pompeu em 71 a.C., quando da sua vitória sobre Sertório na Hispânia, conforme indicado, no reverso, pela quadriga triunfal (conduzida por um ginete, montado num dos cavalos) trazendo Pompeu, que segura uma palma com a mão direita, e a Vitória voando com a coroa.5 O anverso faria referência a uma vitória na África, como apontada pela coroa de louros que circun-da a representação da África, que se encontra ladeada por uma oenochoe (vaso), à esquerda, e um lituus (bastão augural), à direita, apetrechos religiosos. Como bem observado por Maricí Magalhães, estes dois objetos conferem o caráter de divindade à África.

(1) Durante o conflito entre Roma e o rei Pirro de Épiro, que invadiu a Itália em 280 a.C., houve o primeiro contato dos romanos com os elefantes compondo uma força militar. Um aes signatum, do início do século III a.C., tem, numa de suas faces, o elefante e, na outra, um porco, que pode ser uma referência à bizarra ocasião em que, numa das batalhas contra Pirro, os elefantes das suas tropas se assustaram com os grunhidos dos porcos, mantidos pelo exército de Roma para sua alimentação.(2) Norte da Itália; 81 a.C.; RCC 374/1.

(3) Um estudo sobre as emissões monetárias berberes foi realizado por Kormikiari (2001).(4) Há apenas quatro exemplares conhecidos.(5) No exergo, há a inscrição PRO·COS.

Fig.1. Aureus; Espanha; tradicionalmente, datado de 71 a.C.; RCC 402/1a (anv.) e 402/1b (ver.).

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Quando a Guerra Civil do 1º Triunvirato alcançou a África, foram cunhados denários para pagamento das tropas, que tinham elefan-tes como tipos monetários. Entre 47 e 46 a.C., Cecílio Metelo Pio Cipião liderou a resistência pompeiana contra as tropas de César na África. Filho de Públio Cipião Nasica, logo, descen-dente de Cipião Africano, que derrotou Aníbal pondo fim a 2ª Guerra Púnica, foi adotado por Quinto Metelo Pio, aliado de Sula contra Mário e seus partidários. Embora não fosse um patrício, sua riqueza e conexões familiares lhe deram influência política. Estabeleceu estreitas relações com Pompeu, que se tornou, em 53 a.C., marido de Cornélia (recém-viúva do filho de Marcos Licínio Crasso), filha de Cecílio Metelo. No ano seguinte, Pompeu o fez seu co-lega no consulado, convertendo-se, a partir de então, num aberto adversário de César. Assim, em 49 a.C., defendeu que César devia licenciar seu exército no rio Rubicão, se não quisesse ser declarado inimigo da pátria. Após a vitó-ria de Júlio César na Batalha de Farsália na Grécia em 48 a.C. e da morte de Pompeu no Egito, Cecílio Metelo se uniu a Pórcio Catão e demais partidários pompeianos na África para resistir às forças cesaristas.

Neste momento, foram cunhados denários com a figura do elefante, na medida em que a África se constituiu num bastião de resistência da facção dos nobilitas contra uma forma de poder pessoal que desestabilizaria a República oligárquica senatorial nos moldes, então, vigen-tes. Um dos denários (Fig. 2) reitera, no anver-so, a representação perfilada da África personifi-cada com a coroa elefantina, que teve acrescida a referência à sua fertilidade agrícola, mais especificamente, cerealífera, através da espiga de trigo, à direita, e do arado, embaixo. O anver-so completa-se com as inscrições SCIPIO IMP (à esq.) e Q METELL (à dir.). No seu reverso, Hércules em nu frontal, com a mão direita nos quadris, encosta-se na clava, sobre uma pedra, coberta por uma pele de leão. Assim, conjura a virtude guerreira – e a almejada vitória – e se faz também menção às Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), que separa África da Hispânia. À direita, há inscrição EPPIVS e, à esquerda, LEG F C.

Outro denário6 refere-se ao lendário Cipião, o Africano, vencedor do temível Aníbal e an-cestral de Cecílio Metelo. A imagem perfilada e laureada do Senhor do Olimpo, Júpiter, encon-tra-se no anverso do denário, acompanhada da legenda monetária Q METEL PIVS. No reverso, o elefante e, no seu exergo, SCIPIO IMP. Mes-mo com os seus ancestrais vitoriosos em campa-nhas na África, infelizmente para Cecílio Me-telo, a Vitória não lhe favoreceu. Foi derrotado na Batalha de Tapso em 46 a.C., mas conseguiu escapar. Quando fugia para Hispânia, uma tem-pestade arrastou seus navios para costa africana, sendo capturado por P. Sítio, general de César, e acabou por se suicidar em Hippo Regius.

No grupo das emissões monetárias de Cecí-lio Metelo na África, há um denário (Fig. 3) em que a África está representada de outra forma no seu anverso, enquanto, no reverso, há a tradi-cional imagem da Vitória alada, em pé, virada para a esquerda, segurando um longo caduceu numa das mãos e, na outra, um pequeno escudo redondo. Do lado direito da Vitória, a legenda P CRASSVS IVN (P. Crassus Junianus) e, do esquer-do, LEG PRO P R (legatus pro praetore). A “alteri-dade” africana se revela no anverso: uma figura frontal feminina em pé, com vestido comprido ricamente adornado, tendo a mão esquerda ao peito e, com a direita, segura um objeto, que foi identificado como um ankh, símbolo egípcio da vida. Maria Cristina Kormikiari, quando da apre-sentação deste estudo no evento do LARP, pro-pôs a possibilidade de outra leitura para o objeto – bem pertinente, ao nosso ver, por estar mais

Fig. 2. Denarius; oficina militar itinerante na África; 47-46 a.C.; RCC 461/1.

(6) Provavelmente, Útica; 47-46 a.C.; RCC 459/1.

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diretamente relacionada ao ambiente religioso púnico –: o objeto da mão direita poderia ser o “signo de Tanit”, símbolo antropomorfo, bastan-te presente em restos arqueológicos de origem púnica, composto de um triângulo, cujo vértice superior sustenta uma linha horizontal e, acima desta, um disco, representando a deusa púnica Tanit, protetora de Cartago e consorte de Baal Hamon (Nicolet 1997: 588). Na moeda, a cabeça do corpo feminino é leonina, assemelhando a deusa egípcia Sekhmet.7 Na extremidade superior da moeda, na altura da cabeça da figura antro-pozoomórfica, há inscrição GTA e, ladeando a figura feminina, SCIPIO IMP (à dir.) e Q METEL PIVS. (à esq.). Estamos frente ao Genius8 Tutelaris Africae ou Genius Terrae Africae: GTA.

romanos da África consultavam a deusa.9 Ela foi relacionada ao princípio feminino, que presidia a fecundidade da terra, o que se evidencia atra-vés de alguns de seus atributos, como a cornu-cópia,10 distanciando-a da destruidora Sekhmet. No final do século II, Tertuliano (Apologética XXIV, 7) citou Africae Caelestis11 como uma divindade da região norte-africana. Esta grande divindade feminina tornou-se a patrona da África e, notadamente, de Cartago, a principal cidade da região e uma das mais importantes do Mediterrâneo Ocidental. O célebre templo da deusa e seu oráculo persistiram em Cartago até 421 (Halsberghue 1984: 2207 et ss.; Le Glay 1966: 1233-1239).12 A deusa foi protegida e in-clusive privilegiada pelos romanos em Cartago, segundo Ulpiano (Regra XXII, 6). No início do século III, a imperatriz Júlia Domna,13 esposa do Septímio Severo, imperador de origem norte--africana, foi identificada com a divindade afri-cana numa inscrição de Mogontiacum (CIL XIII, 6171). Em 221, o então imperador Heliogábalo, também pertencente à domus severiana, deu-lhe um lugar em Roma junto com Sol Inuictus, o que, de acordo com Herodiano (História Romana V, 6, 4), foi aparentemente uma boa ocasião para transladar o tesouro cartaginês da deusa. Seu templo no Capitólio romano manteve-se até pelo menos 259 (ILS 4438). Entretanto, o

Fig. 3. Denarius; Útica; 47-46 a.C.; RCC 460/4.

Era a divindade protetora da África e estava associada à Tanit cartaginesa. A Dea Africa esta-va imbricada em todas as atividades da vida dos antigos africanos. No século I, Plínio, o Velho (História Natural XXVIII, 24) expressava a rele-vância da deusa para os africanos: “Na África, ninguém toma nenhuma resolução sem antes ter invocado a Dea Africa.” A História Augusta (Vida de Macrino III, 1) confirma a continuação desta deferência, pois informa que os governadores

(7) Na mitologia egípcia, Sachmet, Sakhet, Sekmet ou Sakhmet (“a poderosa”) é a deusa da vingança e das doenças. Muito temida no antigo Egito por ser o símbolo da punição de Rá, o Deus-Sol, que a enviou para destruir os humanos que conspiravam contra ele.(8) Varrão, segundo o bispo Agostinho (A Cidade de Deus VII, 13), definiu genius como um deus preposto a tudo que deve ser engendrado e que tem poder neste domínio. Esta ampla definição englobava, portanto, cada pessoa, família, província, colégio, unidade militar, lugar e coletividade. Simboliza, na cultura romana, a energia vital.

(9) Momogliano (1992: 212), entretanto, levanta dúvidas quanto ao valor desta afirmação da História Augusta.(10) Corno da abundância; símbolo dos inesgotáveis dons presenteados ao homem sem sua intervenção direta; espécie de corno do qual emanam sem cessar frutos e outras dádivas deleitáveis (Biedermann 1993: 124-125).(11) O termo Africae Caelestis aparece numa inscrição (AE 1976, 312 = 1973, 294) encontrada na Hispânia Tarraconesa e datada entre o final do século III e o início do seguinte.(12) Chastagnol (1994: CL), entretanto, embasando-se na História Augusta, considera que o oráculo do templo cartaginês foi fechado por intervenção de funcionários públicos em 399, antes de o santuário ser convertido em igreja cristã, aproxima-damente oito anos depois (Agostinho. A Cidade de Deus XVIII, 4; Quodvultdeus. Livro das promessas e predições de Deus III, 4).(13) Sobre esta imperatriz, ver Gonçalves (2013: 100-106) que, ao abordar a construção da imagem imperial em Septímio Severo e Caracala, faz uma análise cotejada entre a documen-tação escrita (literatura e epigrafia) e a imagética (moedas, estátuas, camafeus e pinturas) sobre Júlia Domna, importante elemento da domus imperial severiana por ser esposa de Severo e mãe de Caracala e Geta.

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A construção romana das representações sociais da África através das moedas. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.

culto a Dea Africa aparece em algumas ocasiões como hostil ao governo de Roma. Na História Augusta (Vida de Pertinace IV, 1-2), há referên-cia a rebeliões sufocadas na África por Pertinace em fins do século II, que foram inspiradas pelas profecias emanadas do templo da deusa.14

A representação antropozoomórfica da Dea Africa como uma mulher leontocéfala foi alterada. No período imperial, houve sua huma-nização e o leão se tornou seu atributo Foi assim que Dea Africa aparece no reverso do áureo (Fig. 4) do imperador Adriano, para comemorar sua visita à região: com sua coroa elefantina, um de seus braços está sobre uma cesta de frutas, tendo atrás duas espigas de trigo; reclinada, afaga com a outra mão a cabeça do leão; acima à esquerda, a legenda AFRICA. No anverso, o busto perfilado para esquerda com sua então titulação: HADRIANVS e AVG COS III PP.

Este mesmo imperador também cunhou um denário,15 em cujo reverso há a Dea Africa; sua mão esquerda segura a dobra do manto e o braço direito está coberto, provavelmente, com uma pele de leopardo; aos seus pés, o leão. No anverso, o perfil laureado do imperador voltado para a direita e sua identificação: SEVERVS PIVS AVG.

Dea Africa possuía outros atributos, além do leão, como por exemplo, cornucópia para enfatizar a riqueza agrícola da região. Esta prosperidade acentuou-se durante a ascensão da dinastia dos Severos (193-235), de origem africa-na e síria, ao poder imperial, quando houve um período de grande prosperidade para as provín-cias norte-africanas. Randsborg (1991: 128) nos apresenta um quadro com os percentuais de ânforas das várias partes do Império Romano para o porto italiano de Óstia, resultante dos trabalhos de arqueologia subaquática realizados por Anselmino e sua equipe, no qual se destaca a expressiva importação de produtos norte-afri-canos a partir de meados do século II (55%), alcançando seu apogeu na primeira metade do século III (71%).

Assim, encontramos, no reverso do denário (Fig. 6) do governo de Adriano, África sentada e recostada num monte de pedras, com a mão esquerda segura a cornucópia e tem aos seus pés um cesto com frutos. Na outra mão, há um enigmático escorpião. Tradicionalmente, o escorpião é considerando negativamente por ser um animal peçonhento devido às suas quelíceras e à cauda armada com um aguilhão venenoso (Lurker 1997: 232-233; Cirlot 1985:

(14) Há controvérsias quanto a esta passagem, pois há uma corrupção do texto. Picard (1959: 41-62) defende o emprego da palavra canum em lugar de earum para qualificar o oráculo fundamentando-se na comparação com outros textos. Momi-gliano (1992: 212) não aceita esta colocação. Chastagnol (1994: 260, n. 1), apesar de adotar a palavra canum com reticências, reconhece o caráter oracular do templo da deusa em Cartago, mas ressalta que a existência de sublevações não é certa. Ver também Zecchini (1983: 150-167).

Também acompanhada pelo leão, a vemos no reverso de um áureo (Fig. 5), emitido sob o governo de Septímio Severo. Mas, agora, ela está cavalgando o animal, que salta sobre um rio. Na mão esquerda, segura um longo cetro e, na direi-ta, raios. Circunda a legenda INDVLGENTIA AVGG e, no exergo, IN CARTH. No anverso, o perfil laureado do imperador para a direita com sua titulação: SEVERVS PIVS AVG.

Fig. 5. Aureus; Roma; 204; RIC 207.

(15) Roma; entre 202 e 210; RIC 253 S.

Fig. 4. Aureus; Roma; 134-138; RIC 298.

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Regina Maria da Cunha Bustamante

188; Biedermann 1993: 173). Entretanto, Bie-dermann (1993: 173) pontua que, para compen-sar sua ameaça mortífera, o escorpião também era associado a veracidade e ressurreição. Ele aparece ainda no mitraísmo, como observado por Maricí Magalhães.16 Lurker (1997: 233) informa que “em combinação com Mercúrio, o escorpião pode ser símbolo da abundância e da sorte”, o que estaria mais condizente com os outros elementos da moeda: a cornucópia e o cesto com frutos. A legenda da moeda não deixa dúvida sobre a identificação da personagem: AFRICA. No anverso, o busto perfilado e laure-ado do imperador e seus títulos: HADRIANVS AVG COS III P P.

CAE. No anverso, o perfil imperial laureado com seus títulos HADRIANVS AVG COS III PP.

Conclusão

As emissões monetárias romanas permi-tiram ancorar a ideia “estranha” – a África –, reduzindo-a a categorias e imagens comuns, como leão e, especialmente, o elefante, visan-do inseri-la num contexto familiar. O elefante tornou-se, assim, um dos atributos mais carac-terísticos da África. Contudo, ele foi sendo investido de um valor positivo, afastando-o da traumática memória do elefante como a arma aterrorizante dos exércitos de Pirro e Aníbal. África foi objetivada nas moedas como uma ter-ra exótica, rica e submissa; esta imagem mental permitiu sua apropriação pelos romanos. De selvagem e belicosa, a África foi “humanizada” e “domesticada”. Tornou-se mais uma região sob a égide do poder romano. Na apresentação oral deste trabalho, Gilvan Ventura da Silva lembrou a tradição clássica de personificação das regiões como figuras femininas. De fato, nomeava-se a terra com a forma feminina na medida em que nela se geravam os seus naturais, que eram sustentados através de sua exploração, similar-mente à mãe que dá a luz aos filhos e os ama-menta. A terra era vista como potência e reserva inesgotável de fecundidade, gerando filhos e riquezas. Huskinson (2000: 7-8) ressalta que havia também a questão de gênero para explicar a utilização da personificação feminina como entidades culturais e geográficas das províncias imperiais: representadas por mulheres, as pro-víncias possuíam outra característica associada ao feminino, a vulnerabilidade, situando-as, as-sim, numa posição inferior em relação a Roma.

As emissões monetárias romanas foram um dos meios privilegiados para efetivar o processo de ancoragem da “alteridade” africana. Obser-vamos que a representação social romana da África tornou-a concreta – objetivada – trans-formando o que era “exótico” e “ameaçador” em algo que pôde ser visualizado e apropriado. África era uma região estratégica em termos geopolíticos e econômicos, o que levou a inte-rações – pacíficas e bélicas – com os romanos.

Esta mesma representação da Dea Africa e seu enigmático escorpião encontram-se no denário17 cunhado por Septímio Severo, cuja titulação aparece no anverso (SEVERVS PIVS AUG) circundando seu perfil laureado.

Busca-se também reiterar o aspecto da submissão da região ao domínio romano. No reverso do sestércio18 – (SC: Senatus Consultum) – cunhado sob Adriano, a personificação da África encontra-se ajoelhada e estende uma das mãos ao imperador e com a outra segura uma cornucópia. A inscrição monetária enfatiza a situação de subjugação: RESTITUTORI AFRI-

Fig. 6. Denarius; Roma; 134-138; RIC II 299d; BMC 813.

(16) Na mitografia mitraica do sacrifício do touro por Mitra, da coluna vertebral do touro saiu trigo e o seu sangue tornou-se vinho, o seu semen, recolhido e purificado pela lua, gerou animais úteis ao homem. Ao local do sacríficio, chegaram: um cão, que comeu o trigo, um escorpião, que enfiou as suas pinças nos testículos do animal, e uma serpente (Turcan 1992: 218).(17) Roma; entre 202 e 210; RIC I 254 s.(18) Roma, 134-138, RIC 940 f.

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A construção romana das representações sociais da África através das moedas. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 69-77, 2014.

Logo, a região reunia “espessura” ou “rele-vância” suficiente para ser representada pelos romanos. Evidenciamos, nas moedas romanas, a transformação da África em algo que pôde ser visualizado e, asssim, houve uma apropriação romana do “outro”. A moeda constituiu-se num poderoso e eficaz instrumento de transmissão, divulgação, pois era utilizada cotidianamente e se caracterizava pela facilidade de transporte e, dependendo do tipo de moeda, pela ampla circulação. A leitura e a compreensão das moedas demandavam o compartilhamento de uma representação socialmente reconhecível, fundamentando-se, para tanto, no senso co-mum. Desta forma, os romanos controlavam o “outro”: passaram, então, do discurso imagético da moeda para uma prática política de domínio,

nomeando, classificando, pensando e traduzin-do posições e interesses hegemônicos romanos ao descrever a África tal como pensavam que ela era ou... como gostariam que fosse.

Agradecimentos

À Profª Drª Maria Isabel D’Agostino Fle-ming pelo convite para participar do I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provin-cial (LARP): Representações da Romanização no Mundo Provincial Romano. Aos colegas presentes no evento pelas suas observações que contribuíram para o aperfeiçoamento do pre-sente trabalho. À pesquisadora Profª Drª Maricí Martins Magalhães pela leitura crítica do texto.

BUSTAMANTE, R.M. da C. The Roman construction of social representations of

Africa by means of coins. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 69-77, 2014.

Abstract: In the Ancient Mediterranean, Rome was noteworthy for being one of the biggest empires, containing different peoples, among them, the North African ones. For that to happen, it was needed, among other things, the elaboration and consolidation of meanings and values, that based and organized the Roman actions and their “self” image, and concurrently, their image of “others”, generating a differentiation and constructing hierarchies. In this work, we will analyze the Roman strategies of definition and recognizing of Africa by means of coins minted since the end of the Republican period until the beginning of the Severus imperial dynasty. We chose to work with the Social Representation Theory in the school of Social Psychology as developed

by Moscovici, centering in the processes of anchoring and objectification.

Keywords: Ancient Rome – North Africa – Social representation – Coin.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.

Introdução

Neste texto apresentarei minhas refle-xões acerca da monumentalidade, dos

monumentos nas moedas, e trarei à tona – na medida do possível – questões relevantes que colegas apresentaram no I Simpósio do LARP.1

Antes de entrar na temática na monumen-talidade propriamente dita, gostaria de enfatizar

que as pesquisas do LARP - Laboratório de Arqueologia Romana Provincial MAE/USP, se pautam pelos debates em torno dos seguintes temas: imperialismo romano; exército; roma-nização; alteridade/identidade; identidade e discurso; religião e política; urbanismo/urba-nização; transformação dos espaços públicos; monumentalidade; iconografia; espaço domésti-co: tecnologia, produção e consumo; território e paisagem, entre outros. Nesse sentido, nosso Simpósio visou sistematizar as recentes questões teóricas a respeito da presença de Roma em suas áreas de dominação dentro e fora da esfera mediterrânica e analisá-las em conjunto com os documentos arqueológicos de suas províncias, de modo a entender a atuação do Império nas diversas localidades, assim como as respostas dadas a ele. Tal objetivo pressupõe a compreen-são dos processos de interação cultural multidi-recionais que se estabeleceram entre Roma e as províncias.

Assim, como preconiza o LARP, nossa apresentação teve a preocupação de se inserir no

A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano

Vagner Carvalheiro Porto*

PORTO, V.C. A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 79-87, 2014.

Resumo: É nosso objetivo neste trabalho introduzir e discutir a cidade como discurso ideológico evidenciando a monumentalidade presente nas moedas do Império Romano. A iconografia monetária será o veículo pelo qual pretendemos, neste espaço que nos é dedicado, identificar o monumento como suporte da memória, a cidade como suporte de um discurso construído. Tam-bém dedicaremos nossa atenção à forma como as moedas foram empregadas para fortalecer o culto imperial no contexto da ideologia imperial romana.

Palavras-chave: Monumentalidade – Império Romano – Iconografia monetária.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana provincial – LARP. <[email protected]> (1) Coube a mim proferir a Palestra de encerramento do I Simpósio do LARP. Desde já agradeço à Profa. Maria Isabel D’Agostino Fleming, coordenadora do Laboratório de Arqueo-logia Romana Provincial, e aos organizadores do evento pela excelente condução deste simpósio. Destaco a harmoniosa integração entre historiadores, arqueólogos e estudiosos da realidade virtual, assim como o comprometimento de todos os envolvidos pela ótima qualidade dos trabalhos apresentados e aqui publicados. Por fim, saliento as valiosas intervenções dos professores que compuseram este evento.

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A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.

ecos importantes em Henri Lefebvre que, em A revolução urbana (1999) nos diz que: “em toda parte a monumentalidade se difunde, se irradia, se condensa, se concentra. Um momento vai além de si próprio, de sua fachada (se tem uma), de seu espaço interno. A monumentalidade pertence, em geral, a altura e a profundidade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites materiais”.

Também Jacques Le Goff, em seu capítu-lo intitulado Documento/Monumento (1990), busca as origens etimológicas dessas duas palavras, e mostra as formas diferentes como esses termos têm sido utilizados pelos historia-dores ao longo do desenvolvimento da ciência histórica. Vejamos o que escreve este autor sobre monumento:

“A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-europeia men, que expri-me uma das funções essenciais do espí-rito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, donde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumen-tum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis (registros dessa ordem) [...], designa os atos comemorati-vos, quer dizer; os decretos do senado”. (Le Goff 1990: 535).

Le Goff afirma que desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar--se em dois sentidos: uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura, como arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico etc.; e como um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada, a morte (Le Goff 1990: 95).

Continuando nossa observação de como autores contemporâneos conceberam a monu-mentalidade, encontramos em Nietzsche, em seu trabalho Crepúsculos dos Ídolos (2006), uma reflexão importante em que o filósofo conside-rava a arquitetura como uma espécie de eloqu-ência do poder. Diz ele:

atual debate concernente à monumentalidade: procuramos observar a esfera do monumental pelo prisma tanto das estruturas arquitetônicas e estudos de espacialidade (formas construídas), como por um olhar que procura integrar grandes edifícios com o fluxo de pessoas, objetos, ideias e práticas (o conhecido ambiente construído de Amos Rapoport2). É nessa perspectiva, também, que Chris Gosden e Yvonne Marshall (1999) assinalam a agência dos objetos, na busca das interações sociais que envolvem pessoas e objetos, de modo a compreender como a mudança de sig-nificados destes é negociada e renegociada através da vida de um determinado objeto.

Outra autora importante para a nossa reflexão é Janet Huskinson, que em seu traba-lho Experiencing Rome: culture, identity, and Power in the Roman Empire (2000) também aponta o importante papel das construções públicas, cujas funções e formas estavam articuladas aos ideais romanos e à falta de homogeneidade que se revela nas construções arquitetônicas das províncias. E por falar em províncias, no caso das moedas, as emissões monetárias romanas serviam de referência para os tipos iconográficos nelas utilizados. As elites locais decidiam quais tipos imagéticos seriam cunhados nas moedas e em que momento, segundo o interesse da cidade. Durante o I Simpósio do LARP, Renata Garrafoni, lembrando Richard Hingley,3 em sua apresentação Pompeia e os romanos: algumas abordagens pós-coloniais nos apontou que os locais procuravam “imitar os povos romanos em diferentes escalas inclusive na escrita”. Seguindo na mesma direção, Fabio Faversani em sua fala A aristocracia “não-romana” em Tácito refere-se à opinião deste autor, segundo o qual os povos provinciais se quisessem romanizariam Roma.

Monumentalidade: ecos na historiografia

Ao analisarmos a monumentalidade sob uma perspectiva historiográfica encontramos

(2) Este tema pode ser aprofundado no trabalho de Amos Rapoport (1982).(3) Esta abordagem pode ser aprofundada em Hingley (2000).

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Vagner Carvalheiro Porto

Os homens mais poderosos sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto esteve continuamente sob a sugestão do poder. No edifício, o arrojo, a vitória sobre a gravidade, a vontade de potência devem ser tornadas visíveis: a arquitetura é uma espécie de eloquência do poder pelas formas, ora convincente e até acariciante, ora dando somente ordens. O sentimento mais elevado de potência e de segurança encontra sua expressão na-quilo que é de grande estilo. A potência que não necessita mais de demonstração, que desdenha o agradar, que dificilmen-te responde, que não vê testemunhas em torno de si, que, sem ter consciência delas, vive de objeções que lhe são feitas, que descansa sobre si mesma, fatalmen-te, uma lei entre as leis: aí está o que fala de si mesmo em grande estilo. (Nietzsche 2006: 26).

Nessa mesma linha, Michel Foucault, estudioso das práticas e relações de poder, em a Microfísica do Poder (1993) também apresenta a estreita vinculação entre arquitetura, espaço e poder. Segundo ele, seria preciso fazer uma ‘história dos espaços’ – que seria ao mesmo tempo uma ‘história dos poderes’ – que estudas-se desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar; passando pelas implantações econô-mico-políticas.

Foucault nos faz chegar a um ponto fulcral de nossa apresentação: do monumento como suporte da memória. Da cidade como suporte de um discurso construído. Para nós arqueólo-gos, historiadores, a cidade como um texto a ser lido.

Monumentalidade nas moedas do Império Romano

Os padrões arquitetônicos existentes nas províncias romanas podem ser examinados por meio da ótica da transformação dos espaços públicos, levando-se em consideração o modo

como foi realizada a interação entre romanos e populações locais. A inserção no espaço de um novo templo, terma ou a implantação de um fórum pressupõe mudanças significativas nas quais os habitantes entram em contato com novos ritos e costumes: é o caso do santuário de Sulis-Minerva em Bath, no qual Louise Revell (2009) analisa não somente o impacto do edi-fício público em si, mas também dos ritos a ele relacionados, que são evidenciados pelos objetos arqueológicos encontrados no local, tais como páteras e tabletes de maldição.

Tão logo conquistavam as províncias, seja do lado oriental seja do lado ocidental do Im-pério, os romanos tratavam de fazer do entorno urbano um lugar digno para viver, providen-ciando o que era necessário: esgoto, aquedutos, fontes, pontes, termas, banhos, pavimento, ser-viços de incêndios e de polícia, mercados e tudo aquilo que era preciso para que vivessem com todos os refinamentos possíveis para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Além disso, havia motivos de adornos e comemoração como as colunas e os arcos do triunfo. Tudo isso era reiteradamente propagandeado pelo Império, de várias formas, dentre elas, através das moedas. Como exemplo, apresentamos um sestércio produzido por Nero (Fig. 1) que traz em seu reverso o porto de Óstia visto de cima, rodeado por edifícios do porto e as galeras no centro. Acima, farol com estátua de Netuno; abaixo, personificação do rio Tibre. Esta moe-da comemora as ações de Nero para garantir um fornecimento estável de grãos para Roma. Mostramos também duas moedas (Fig. 2) que retratam imponentes aquedutos que simbolizam aqui o urbanismo romano. A primeira moeda traz um aqueduto, o Acqua Marcia, que foi finalizado em 140 a.C. por Q. Marcius Rex. A segunda moeda, um áureo de ouro de Claudio que foi cunhado para comemorar as vitórias de seus generais na Alemanha. Cláudio convertera um dos arcos de um aqueduto, o Acqua Virgo em um monumental arco do triunfo o Regio VII.

Roma causou impacto em todo o Império com suas bem marcadas formas de urbanismo. Na Judeia, por exemplo, o período romano em geral é caracterizado pela atitude ambivalente da comunidade judaica para com o governante: por

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A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.

um lado eles reconheciam construções e pro-jetos desenvolvimentistas, mas por outro lado, existiam atos negativos que provocavam uma constante apreensão dos judeus em relação às intenções adversas dos romanos. Uma passagem do Talmude possui uma boa explicação para a situação:

R. Judá inicia [a discussão] observan-do: “Como são finos os trabalhos do povo [romano]! Eles têm feito estradas, eles têm construído pontes, eles têm eri-gido banhos”. R. José fica em silêncio. R. Simão b. Yonai respondeu-lhe dizendo: “tudo o que eles fazem, eles fazem para eles mesmos; eles constroem mercados para colocar prostitutas para eles; banhos para rejuvenescê-los; pontes para levar ferramentas para eles” (Shabbat, 33b apud Meshorer 2001: 172).

A cooptação das elites locais ou a resistên-cia destas são elementos que contribuíram para o desenvolvimento da morfologia da cidade romana: pouco a pouco, edifícios públicos para o governo, fóruns e suas várias funções (religiosa, cívica e comercial), o culto e a diver-são: palácios, templos, foros, basílicas, teatros, anfiteatros, circos, mercados, portos, banho etc.; todos construídos a partir da planta que melhor se adequava aos anseios romanos na região, foram se conformando às múltiplas realidades, aos múltiplos anseios.

A propósito do caráter religioso da mo-numentalidade empreendida pelos romanos, Paul Zanker sugere algumas reflexões a respeito de como devemos ver as imagens do Império Romano. Segundo ele, nos derradeiros anos da República, diante das disputas entre facções

políticas, se acentuaram os excessos na forma de representação individual dos romanos, princi-palmente dos membros das elites (Zanker 1992: 41-42). Dessa forma, foi prioridade das lideran-ças políticas e dos grandes generais difundir seus cultos pessoais numa monumentalização triunfal de tipo religioso dedicado aos seus pró-prios feitos, às suas divindades patronais e/ou seus ancestrais. Zanker também dedica grande atenção ao culto Imperial. Ele nos diz que o cul-to ao Imperador acirrou rivalidades entre elites de Roma e de toda província.

A cidade no Império Romano constituiu uma imagem ou representação de ideias, ima-ginação e cosmologia, que era uma visão dos valores culturais associados com Roma naquele determinado lugar.

Em seu texto Habitação e cidade: ordenação do espaço no mundo clássico, Francisco Marshall (2000) nos lembra que edificar era um ato de poder. Templos, sepultamentos, altares e paisa-gem se articulam como nexos que são referên-cias da comunidade, organizando o espaço e assegurando a identidade das pessoas que vão morar naquele local.

Hoje sabemos com muito maior precisão o quanto a esfera do sagrado decide no proces-so de estabelecimento do espaço da área a ser habitada, e dos limites e fronteiras do território. Aqui abro parênteses para destacar a palestra

Fig. 1

Fig. 2

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Vagner Carvalheiro Porto

de Norberto Luiz Guarinello, Fronteiras. Nela, Guarinello expôs suas reflexões sobre a frontei-ra, destacando a fronteira política e culminan-do numa ideia de fronteira do tempo futuro. Incluo também a fala de Pedro Paulo Abreu Funari, A contribuição da Arqueologia da Bética para o estudo da economia romana, e as questões que podem ser pertinentes a uma fronteira eco-nômica. Consumo associado a uma rede militar (poder), mas que possui caráter econômico e extra-econômico.

No mundo romano, a fundação e refunda-ção das cidades dialogam com a questão da fron-teira. Os romanos substituíam as já existentes pólis por intermédio de um ritual de fundação da nova colonia. Bird, North e Price (1998: 313) comentam, a propósito da fundação das novas coloniae, que todas as estruturas simbólicas da colonia enfatizam seu status como ‘mini-Romas’ a partir do momento de sua fundação, condu-zida com ritos que ecoam a fundação mítica de Roma propriamente dita: “os auspícios foram tomados – como Rômulo no bem conhecido mito – o fundador arando em torno do lugar, suspendendo o arado onde os portões deveriam estar; dentro dessas fronteiras definidas, ne-nhum sepultamento poderia ser feito”. Roma, assim, estabelecia sua soberania e definia os territórios em torno dos quais se ordena a cida-de. Rito que funda a realeza romana e reiterado sucessivas vezes por vários imperadores diferen-tes, para vários lugares diferentes.

O ato de fundação de uma nova colonia por parte do imperador romano – que é, simbolica-mente, o fundador de todas as cidades – é recor-rentemente verificado nas moedas. Na moeda cunhada em Cesareia Marítima por magistrados locais à época do Imperador Adriano, vemos em seu anverso o busto laureado, drapejado, e couraçado de Adriano. O reverso apresenta a ce-rimônia de fundação: Adriano como fundador arando com dois bois, demarcando as fronteiras da nova colônia (Mattingly, Sydenham 1923: 465; Hendin 1996: 836) (Fig. 3).

Sabemos que a colonia romana originalmen-te era um assentamento de veteranos de alguma legião romana, que havia recebido terras como parte do pagamento por sua aposentadoria. Com o tempo, o termo tornou-se sinônimo de

grande status. Todos os cidadãos das coloniae eram considerados cidadãos romanos. As colo-niae – tal qual o exército – reproduziam o siste-ma religioso romano no exterior. O seguimento do calendário romano pelas novas cidades sugeria que a ordenação das práticas religiosas romanas ditasse o ritmo da vida nas coloniae. Os procedimentos sacerdotais também eram os mesmos que os de Roma (Porto 2010: 15-16).

Esta delimitação das fronteiras é o ato de estabelecimento do pomerium, o limite da cida-de. Um ato semelhante é também ritualizado na definição do centro da cidade: corta-se uma linha na direção norte-sul (o cardus), no meio do qual, espelhando a posição central do sol e divi-dindo o território em quatro partes, é estabele-cido o ponto de cruzamento em que se traça a segunda via (decumanus), no sentido leste-oeste. As outras ruas são mais estreitas e se inscrevem dentro de um dos quarteirões em que se divide o retângulo.

Marshall (2000: 123-124) nos lembra que é exatamente no local da intersecção das vias, em um local por vezes chamado umbilicus, que se enterravam oferendas em uma câmara sub-terrânea, o mundus, com que se apaziguavam os ânimos das divindades subterrâneas e se propi-ciava a bonança futura da cidade.

Também a “porta da cidade” que é produzi-da desde o momento de fundação da nova colonia refere-se, de acordo com Chaves Tristan et al. (2000), ao caráter plenamente urbano que desde o primeiro momento se pretendia dar às novasfundações provinciais romanas. De fato, trata-se de elementos muito representativos do urba-nismo romano, que raras vezes faltam em uma cidade que se pretende “civilizada”. Ainda segun-do esses autores, as cidades provinciais hispânicas representavam monumentos em suas produções

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monetárias porque estes, construídos efetivamen-te ou não, são significativos para a comunidade, em relação à política romana de municipalização da Hispânia. Isto significa aceitar a moeda como instrumento de uma propaganda oficial. A reali-dade provincial ora procura emular, ora procura contradizer a realidade de Roma.

Como disse Carlos Jorge Soares Fabião em sua palestra Representar graficamente as cidades da Lusitania: potencialidades, virtualidades e desafios, mas também perigos e armadilhas de um processo, “a Península Ibérica não é tão periferia assim”. Ele cita Quinto Sertório, partidário de Mario, que organiza uma oposição ao governo estabelecido de Roma na Península Ibérica, e finaliza: “não é uma guerra de romanos contra indígenas, é uma guerra de romanos contra romanos”. Entende-mos, assim, que a realidade provincial ou peri-férica, como queiramos chamar, diz muito mais respeito a uma leitura totalizante do Império Romano do que uma leitura simplista, tenden-ciosa, de mão única que procura sempre analisar o Império pela ótica centralista de Roma.

A arte estatuária também fez parte do discurso ideológico empreendido pelos romanos e está incluída entre os símbolos da monu-mentalidade presentes nas moedas do Império Romano. As estátuas informam muito a respeito do caráter monumental da cidade e Carlos Augusto Machado, em sua palestra Depois da Romanização: monumentos honoríficos e integração sócio-política no século IV d.C., afirmou que havia “um mundo de estátuas” e que as estátuas nas províncias consolidavam a expansão da ordem senatorial. Dedicar uma estátua era a forma de se declarar romano. Diz respeito ao poder expresso em Roma e das relações fluidas entre as províncias e Roma.

Os romanos foram os primeiros a erguer em bronze estátuas equestres de seus expoentes. Das muitas que o Império viu talvez a única rema-nescente seja a de Marco Aurélio, que pode não ter sido derretida porque teria sido confundida com a de Constantino, o primeiro imperador romano a seguir o cristianismo. Essa estátua foi retratada nas moedas romanas. Outras produ-ções monetárias batidas desde a época de Au-gusto em várias localidades do Império trazem a estátua do Imperador.

Outro elemento que compõe a monumen-talidade e que representa o discurso de poder romano são as estradas. Aqui, destacamos a Via Traiana. Essa estrada construída e financiada às expensas do Imperador Trajano, que ligava as cidades de Beneventum a Brundisium na costa do Adriático, tinha uma extensão de 205 mi-lhas terrestres e era completada por dezenas de viadutos e pontes, dos quais muitos chegaram até aos nossos dias.

A Via Traiana foi concluída em 109 d.C., informação contida nos marcos miliários. Em algumas moedas emitidas a partir de 112 d.C. a estrada é representada no reverso, a personi-ficação da Via Trajana (Fig. 4) é retratada como uma figura feminina que descansa em um trecho rochoso que poderia simbolizar as mon-tanhas dos Apeninos atravessados pela estrada, com a mão direita sobre uma roda apoiada em sua perna (uma clara referência a viajar por terra), enquanto a esquerda segura um pequeno ramo do tronco nodoso (provavelmente oleícola típico da região da Apúlia), com a legenda: S (enatus) P (opulus ) Q (ue) R (omanorum) Opti-mo Principi. Via Traiana.

A representação iconográfica desta moeda nos demonstra como esta serviu de veículo para a propaganda político-ideológica empreendida por Roma. O urbanismo romano, as estradas e marcos miliários, assim como seu modo de vida era levado para todas as províncias do Império: seja pela circulação dessas moedas por várias cidades, por suas inscrições, e pela monumenta-lidade nelas retratada.

Do lado oriental do Império, em Flavia Neápolis, a Shechem bíblica (atual Nablus), o Imperador Adriano construiu sobre o Mon-te Garizim, um grande templo dedicado à

Fig. 4

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adoração de Zeus-Hypsistos (“Júpiter, o deus supremo”), no lugar do templo samaritano que lá existia. O templo possuía uma enorme estrutura, que incluía um portentoso altar sobre o outro pico da montanha com um impres-sionante conjunto de escadarias em caracol que conduzia a ele, e com um enorme portão cerimonial. Todos esses elementos arquiteturais aparecem com riqueza de detalhes nas moedas de Antonino Pio em diante (Fig. 5). Podemos notar que Roma, mesmo nas províncias mais distantes do Império, causa impacto com sua monumentalidade (também em suas moedas), evidenciando seu caráter de instrumentalização política. Essas cinco moedas que compõem a Fi-gura 5 representam o Monte Garizim, de acordo com as descrições das fontes textuais. As duas moedas apresentadas na parte inferior, mostram um conjunto de elementos que nos convidam a uma reflexão. A moeda da esquerda mostra Zeus-Amon, um estandarte legionário (vexillum) uma espiga de trigo e um carneiro. A moeda da direita mostra dois columbários com pombas dentro e a representação da loba amamentando Rômulo e Remo.

A construção do templo de Zeus-Hypsistos por Adriano no local em que existia um templo samaritano acentuou a interação cultural e reli-giosa dos habitantes da cidade com os romanos. A introdução arbitrária de um templo dedicado a Zeus por Adriano (não seria a escolha de Zeus supremo parte de uma estratégica para conse-guir uma melhor assimilação da população da cidade?) transformou-se em um culto sincrético que combinava a crença oriental romano-hele-nística com a crença monoteísta dos samarita-nos. A representação desses elementos nas mo-edas produzidas pela cidade de Neápolis, vistos em conjunto, é a mais contundente expressão da interação cultural e religiosa que ocorreu depois da ocupação romana da cidade.

As moedas de Neápolis, com suas represen-tações e inscrições, possibilitam, não somente reconstruir a história da cidade (com as tradi-ções locais e intervenções romanas) e observar o antigo cenário do Monte Garizim com suas construções no cume da montanha, como tam-bém conseguir um melhor entendimento acerca da vida religiosa e cultural da cidade.

Conclusão

O I Simpósio do LARP trouxe para o debate acadêmico brasileiro, uma gama de pos-sibilidades temáticas concernentes ao Império Romano. Não há dúvidas de que as apresenta-ções contribuíram efetivamente para um maior amadurecimento dos estudos de Roma e suas províncias em solo brasileiro. Nesse contexto, a mim coube discorrer sobre a monumentalidade nas moedas.

Construções e monumentos estão entre os mais notáveis temas representados nas mo-edas antigas. Produções monetárias retratando edifícios públicos e privados se transformaram em uma importante ferramenta de trabalho para o historiador, arqueólogo e numismata da atualidade, por apresentar informações sobre estruturas arquitetônicas que muitas vezes já sucumbiram à força do tempo.

Abordamos anteriormente alguns dos principais tipos de construções empreendidas pelos romanos (ou sob influência deles) e reite-

Fig. 5

Visto individualmente o vexillum simboliza a presença da III Legião Cyrenaica estacionada na cidade, a espiga de trigo, segundo estu-diosos, pode simbolizar a fertilidade do solo regado pelas fontes da cidade, o carneiro pode simbolizar o animal sacrificial dos samaritanos, a loba amamentando Rômulo e Remo é uma alusão clara à fundação mítica da cidade por Roma.

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A cidade como discurso ideológico: monumentalidade nas moedas do Império Romano. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 79-87, 2014.

ramos que praticamente todos esses elementos arquitetônicos foram retratados nas moedas que circularam pelo Império Romano. A relação entre moeda e monumentalização pode ser ob-servada praticamente entre todas as cidades que emitiram moedas durante todos os governos romanos que se sucederam enquanto Roma foi a senhora das províncias ocidentais e orientais. Não temos dúvidas de que os romanos usaram símbolos, inscrições e desenhos sobre as moedas para promover ideias políticas, eventos sociais e religiosos, mensagens militares ou econômicas.

Assim, dentro de um pequeno período de tem-po, séculos I e II d.C., as moedas tornaram-se uma importante fonte de propaganda política do império.

Procuramos neste texto tratar a cidade como discurso ideológico partindo da monu-mentalidade retratada nas moedas do Império Romano. Os estudos relacionados à iconografia monetária demonstraram seu potencial ao revelar as sutilezas da ideologia imperial romana (muitas vezes não tão sutis) fazendo-nos perce-ber o monumento como suporte da memória.

PORTO,V.C. The city as ideological discourse: monumentality in the coins of the Roman Empire. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 79-87, 2014.

Abstract: It is our goal in this work to introduce and discuss the city as an ideological discourse through the monumentality present on the currencies of the Roman Empire. Monetary iconography is the vehicle through which we will identify, in this space that is dedicated to us, the monument as memory support, and the city as support of a built discourse. We will also devote our at-tention to the ways coins were used to strength the imperial cult in the context of Roman imperial ideology.

Keywords: Monumentality – Roman Empire – Monetary iconography.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.

Que a romanização seja um dos principais debates da pesquisa histórica e arqueoló-

gica sobre o Império Romano, está fora de ques-tão. A relação que o pesquisador deve ter com este termo, porém, é objeto de intensas controvérsias. Romanização com “r” maiúsculo ou minúsculo? Com ou sem aspas? Com sentido negativo ou po-sitivo? Compreendido como processo totalizante ou parcial? Aplicado a todo o Império ou somente a partes dele? Enfim, a “palavra” já produziu uma bibliografia quase comparável às “coisas” que tenta traduzir, seja por meio dos balanços bibliográficos, seja por meio das discussões nos capítulos introdu-tórios dos estudos sobre as histórias e arqueologias provinciais romanas.

É extremamente difícil, de fato, separar palavras e coisas. Não se trata, certamente, de apenas uma questão terminológica. Diferentes paradigmas são utilizados usando, por vezes, a mesma variação do termo – e talvez aí resida boa parte da discussão. A identificação destes paradigmas também não é, por sua vez, das tarefas mais simples. É consenso que os anos entre 1960 a 1990 viram o surgimento de diversas correntes acadêmicas que propunham uma revisão das grandes narrativas consolidadas entre o final do século XIX e o início do XX, e que afetaram não apenas a história antiga e a arqueologia clássica, mas as ciências humanas como um todo; correntes que buscavam as “histórias alternativas”, as “histórias vistas de baixo”, as “histórias dos perdedores”, associados usualmente aos camponeses, às mulheres, aos negros, e aos povos colonizados. Nomeadas

Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia

Fábio Augusto Morales*

MORALES, F.A. Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 91-97, 2014.

Resumo: Este texto discute o debate historiográfico e arqueológico acerca da relação entre a dominação romana e a cultura grega, tomando o Alto Império como ponto focal. Se até os anos 90 existia um consenso acerca do absurdo do uso do termo “romanização” para descrever e/ou explicar a cultura grega sob dominação romana, as últimas décadas viram alguns desenvolvim-entos esparsos que acabaram por produzir uma radical revisão deste consenso. Após traçar algumas origens da hipótese da “romanização da Grécia”, o texto discute os limites desta abordagem tomando como exemplo as dificuldades da interpretação de um único monumento na acrópole ateniense, o monopteros de Roma e Augusto.

Palavras-chave: Romanização – Grécia romana – Cultura provincial.

(*) Doutorando em História Social (FFLCH-USP). Professor de História Antiga e Arqueologia (PUC-Campinas). <[email protected]>

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Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.

elites locais como forma de acesso a novas for-mas de dominação (estratégia) passaram a fazer parte dos estudos sobre as culturas provinciais. Assim, gauleses, berberes e bretões não foram romanizados, mas resistiram e/ou criaram novas culturas e/ou se autoromanizaram; romanização perde o “r” maiúsculo, ganha aspas e passa a ser o rótulo do paradigma que deve ser combatido, e mesmo evitado.

O que ocorre com os estudos sobre a pro-víncia da Achaia? O paradigma da Romanização funcionava a partir de uma hierarquização das culturas, a qual, se por um lado subordinava os gauleses aos romanos, por outro subordinava os romanos aos gregos – em uma etnogênese eurocêntrica que fincará suas bases, inclusive, na tradição literária romana, tendo em Horácio (Epist., II.1.156-7) sua forma mais clara. Assim, os gauleses se tornaram romanos, mas os gregos per-maneceram gregos, e, mais do que isso, os romanos foram helenizados. Falar, portanto, de romani-zação dos gregos não era cabível. Assim, por exemplo, P. Graindor (1927) escreverá que os atenienses do período romano, por meio de seu culto às grandezas do passado clássico, modela-ram a mentalidade romana e, por meio desta, a renascentista e a “nossa”; e na mesma linha A. H. M. Jones (1940) considerará que a “missão da cidade” era difundir a cultura grega no orien-te, o que permanecerá no período romano.

Os sinais de uma ruptura com o paradigma de um “imperialismo cultural reverso” aparecem na obra de G. Bowersock (1965). Então, o autor refutaria o postulado da Romanização para a análise das colônias romanas na Grécia, pois ele “descreve o que ocorreu subsequentemente em algumas áreas do ocidente imperial, mas não ocorreu no oriente” (p. 72). Por outro lado, considera que a criação de uma cultura greco--romana, resultado dos contatos entre as elites, foi fundamental para a consolidação da domi-nação imperial sobre tanto o ocidente quanto o oriente. As consequências culturais disto não são desenvolvidas, ainda que o autor mencione o caso do renascimento do estilo ático na escul-tura grega, “precisamente porque isto era o que os romanos demandavam” (p. 74). Assim, os gregos permaneciam gregos ao mesmo tempo em que se tornavam greco-romanos.

como “virada linguística/cultural”, “virada nativista”, “estudos pós-coloniais”, “estudos de gênero”, “pós-estruturalismo”, “pós-modernidade” etc., estas várias correntes parti-lham uma perspectiva revisionista que se opu-nha às visões marcadas pela experiência impe-rialista europeia e norte-americana do período anterior, ou às estruturas patriarcais, raciais ou de classe das sociedades consideradas “ociden-tais”. E, se é preciso destacar que a relação entre a academia e a sociedade não é de determinação direta ou mesmo reflexiva, não se pode negar o papel de fenômenos sociais de nível global, em suas diferentes modalidades, para a relevância destas correntes: as descolonizações, as lutas por direitos civis, as revoluções e a guerra fria, por exemplo.

No caso que nos interessa – o debate sobre a história e a arqueologia provincial romana –, o impacto destas correntes é observável tanto no ocidente quanto no oriente, mas, a discussão sobre estes impactos se concentrou nos estu-dos sobre as províncias ocidentais. Procurarei, aqui, discutir o modo como os estudos sobre as províncias orientais – tomando como caso os estudos sobre a província romana da Achaia, usualmente, e talvez sem tanto cuidado, chama-da de “Grécia propriamente dita” – sofreram o impacto destas correntes e como suas conse-quências promoveram uma curiosa inversão na última década. Este texto não pretende ser um levantamento exaustivo, mas, tomando como ponto focal o Alto Império, procura identificar algumas das origens desta inversão em alguns estudos particularmente influentes.

A ênfase na discussão a partir dos estudos sobre as províncias ocidentais impõe que eles sejam apresentados, ainda que de modo su-cinto. Até a década de 1970, o paradigma da Romanização era dominante: gauleses, berberes e bretões, inferiores cultural e militarmente, se tornaram romanos. A partir dos estudos pionei-ros de M. Bénabou (1976) e J. Slofstra (1983), e em particular de M. Millett (1990), o paradigma da romanização passou a sofrer críticas cada vez mais intensas: a manutenção de práticas culturais anteriores à dominação romana (resis-tência), a fusão das tradições locais e imperiais (hibridismo), ou mesmo a auto-romanização das

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A escassez de estudos sobre a “Grécia roma-na” prosseguiu até a década de 1980, quando, motivados seja pelas correntes pós-coloniais, seja pela profusão dos estudos de caso especialmente ricos para este período – em particular aqueles sobre Atenas augustana (Morales, 2014) – novos estudos estabelecem novas bases para a questão. Dois deles se destacam: a tese de doutorado de S. Alcock (1993) e o breve artigo de G. Woolf (1994). A partir dos resultados de diversas pesqui-sas arqueológicas baseadas nos surveys, S. Alcock constrói um modelo segundo o qual a Achaia sofreu profundas transformações em função, direta ou indiretamente, da conquista romana, em particular do ponto de vista da ocupação dos assentamentos rurais e urbanos e da organização dos santuários. A oposição entre transformações “econômicas” e permanências “culturais” guiará a pesquisa subsequente da autora, que, rejeitando o termo e o paradigma da Romanização (1997), se voltará para os processos de produção de memória social dos gregos diante da nova reali-dade imperial (2002). G. Woolf, especialista na Gália romana, analisará as concepções nas fontes romanas sobre qual sua missão diante das provín-cias gregas, para construir uma hipótese segundo a qual os romanos se viam como regeneradores da cultura grega, e deviam resgatá-los da presente decadência – os gregos permaneceram gregos não porque eram superiores, mas, “ao menos em parte, porque os romanos o permitiram” (p. 129). A presença do império passava então a ser vista cada vez mais claramente na organização espacial e cultural do mundo grego; mas os gregos continua-vam gregos.

Os gregos continuariam gregos não fosse a desestabilização radical da identidade romana operada pela retomada dos estudos sobre a “helenização de Roma” nas obras de diversos estudiosos, em particular na de A. Wallace--Hadrill (2008). O autor propõe um modelo segundo o qual as elites italianas construíram uma identidade própria, intimamente ligada aos padrões cognitivos gregos, a partir do século II a. C., e que em determinados momentos foi concorrente à identidade tradicional romana; com a ascensão das elites italianas dentro das estruturas de poder romanas ocorre uma rearti-culação, também a partir de uma matriz grega,

da identidade romana, opondo-se, na própria sociedade romana, à autoridade da aristocracia tradicional; o principado de Augusto marcaria a vitória desta nova identidade romana pensada em termos gregos, nomeada “a revolução cultu-ral de Roma”, paralela à “revolução romana” de R. Syme. Não por acaso, a metáfora escolhida pelo autor é a de um coração, que bombearia o sangue que vem do oriente para o ocidente. Assim, os romanos não se tornaram gregos, mas se tornaram romanos a partir de critérios ítalo-gregos, e que situavam na Grécia a origem dos elemen-tos e dos valores civilizacionais.

Será justamente a partir deste modelo que a inversão ganhará corpo. A. Spawforth (2012) proporá que a cultura grega na época de Augusto sofrerá uma verdadeira revolução – a “revolução cultural augustana”, muito mais centrada na casa imperial do que a proposta de A. Wallace-Hadrill – pois, na medida em que os romanos esperam que os gregos sejam gre-gos como no período clássico, estes precisarão romper com práticas culturais há muito estabe-lecidas, e paralelamente resgatar tradições há muito abandonadas. Neste novo pacto de elite, que se aproxima de uma “sociedade de corte”, os gregos não permanecem gregos, mas se tornam gregos de acordo com a expectativa de quem havia se tornado romano a partir de critérios ítalo-gregos. Ou, em outras palavras:

A utilidade do conceito de romaniza-ção é amplamente questionada hoje em dia, principalmente pelos arqueólogos (que o inventaram). [...] Onde este livro aplica o termo alternativo “romanidade” para os provinciais, o que se tem em mente é a disposição da parte dos pro-vinciais em imitar a cultura dos romanos de Roma e da Itália. Dito isto, é preciso admitir que as antigas conotações de “romanização”, aquelas segundo as quais um poder dominante impõe a “cultura romana” sobre súditos não-romanos, permanecem relevantes para este livro.

Desta maneira, a inversão se completa: se no paradigma da Romanização (sem aspas) os gauleses se romanizavam e os gregos resistiam, no paradigma da “romanização” (com aspas)

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os gauleses resistem auto-romanizando-se e os gregos se romanizam re-helenizando-se.

Descrita a inversão, é preciso discutir seus fundamentos e seus significados. Por um lado, este movimento compreende-se em função do impacto das diversas correntes acima menciona-das nos estudos de história e arqueologia pro-vincial romana – o que comumente é feito. Por outro lado, é fundamental que exista um grande espaço de incerteza na interpretação das fontes. Tomemos um exemplo bastante concreto: o tem-plo de Roma e Augusto na acrópole de Atenas.

Diversos elementos arquitetônicos – tam-bores de colunas, capiteis, fragmentos de arqui-trave – encontrados nas escavações do final do século XIX na acrópole foram associados a uma fundação quadrangular situada a poucos metros a leste do Pártenon, alinhado com seu eixo prin-cipal (Baldassarri 1998: 45-63). A reconstrução proposta era a de um monopteros jônico rodeado por nove colunas. A identificação como um templo de Roma e Augusto se sustenta na

inscrição em um fragmento da arquitrave (Fig. 1):

O povo [dedica] à deusa Roma e a Augusto César, sendo general dos ho-plitas Pamenes [filho] de Zenonos de Maratona, sacerdote da deusa Roma e de Augusto Salvador na acrópole, sendo sacerdotisa de Atena Políade Megiste filha de Asclepides de Alieos, durante o arcontado de Areios [filho] de Dorionos de Paiania. (IG II2 3173)

A datação da construção foi objeto de um intenso debate, na medida em que nem os vestígios arqueológicos nem as indicações epi-gráficas (na ausência de listas de arcontes para o período) indicam uma datação mais precisa do que algum período após 27 a. C., quando Otávio torna-se César Augusto. Indicações mais significativas vêm, principalmente, da numismá-tica e da tradição literária: Dio Cássio (54.8.2-3) informa que o Senado havia aprovado a cons-trução de um templo a Mars Ultor no Capitólio para receber as insígnias romanas perdidas por Cássio em sua guerra contra os partas, mas retomadas por Augusto em sua missão diplomá-tica em 20 a. C.; cunhagens em diversas regiões do império representam um monopteros com as letras “MAR ULT”, indicando a forma deste templo; como é sabido que Augusto passou por Atenas ao menos um vez entre 20 e 19 a. C., sugeriu-se que o templo de Roma e Augusto na acrópole fosse uma referência ao templo de Mars Ultor no Capitolino – cujo projeto talvez nunca tenha sido realizado – construído no mesmo período, que se aproveitaria tanto da passagem do princeps quanto da forte carga anti-bárbara do santuário ateniense, já repleto de representações das guerras contra gigantes, amazonas, centauros, persas e gauleses.

Como interpretar o monopteros? Sua atri-buição como um templo é questionável, mas certamente carrega um elemento votivo à deu-sa Roma personificada e ao princeps, além de mencionar o sacerdócio “na acrópole” de ambas

as divindades, por um membro da aristocracia local que acumu-lava o sacerdócio ao alto cargo de general dos hoplitas. Tería-mos aqui um exemplo claro de romanização, seja pela intrusão, no mais venerável santuário ateniense, da presença ostensiva de Roma e do nascente culto imperial, seja pela visibilidade da estratégia de membros da eli-te local em associar-se a Roma.

Por outro lado, alguns ele-mentos arquitetônicos podem levar a interpretação para um sentido oposto. A ornamenta-Fig. 1. Fragmento da arquitrave do monopteros de Roma e Augusto. Acervo pessoal.

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Fábio Augusto Morales

ção do capitel jônico do monopteros (Fig. 2; de cima para baixo: fina faixa em pérola-e-carretel, larga gola lótus-e-palmeta, mais uma fina faixa em pérola-e-carretel, equino em ovo-e-dardo, faixa com trançado, volutas com canais que su-gerem drapejado, e ábaco em ovo-e-dardo) é exa-tamente igual à fachada leste do Erechtheion, construído no século V a. C. Sua posição e tamanho relacionam-se não somente com o eixo longitudinal do Pártenon, mas também sugerem relações modulares: a largura do crepidoma do Pártenon é igual à distância entre a fachada do Pártenon e o limite oeste do monopteros; largura da cela do Pártenon é igual à distância entre a fachada do Pártenon e o limite leste do monopteros; e o lado do peristilo quadrado do opistodomo do Pártenon é igual ao diâmetro do monopteros. Estas citações e modulações em fun-ção de edifícios construídos no período clássico podem ser interpretadas como a incorporação da dominação romana dentro das tradições arquitetônicas locais. Esta hipótese é reforçada pelo próprio uso do espaço do santuário a partir do período clássico como um memorial da guer-ra contra a barbárie, no qual o monopteros (e sua provável referência ao inimigo parto) se inserem até timidamente, diante da grandiosidade do Pártenon, da complexidade do Erechtheion ou da monumentalidade da dedicação atálida.

Dominação ou resistência, romanização ou tradição local? O monopteros resiste a classifica-ções unívocas. Uma alternativa particularmente atraente é aquela de considerar a diversidade das leituras feitas por sujeitos diferentes: não necessariamente o princeps, o sacerdote do princeps, a sacerdotisa de Atena ou o cidadão comum, quando observassem o monopteros, teriam a mesma interpretação: símbolo da dominação romana, homenagem à arquitetura clássica, reforço do orgulho local pelos feitos contra os bárbaros, asserção da posição social do sacerdote do culto imperial e magistrado local? Antes, o monumento permite as diversas interpretações, e esta abertura é significativa dos elementos que estão em questão na realização do programa construtivo. A falta de evidências complementares que indicariam com detalhes os diversos momentos do programa (o projeto, a procura de materiais e repertórios, a construção, os usos, os padrões de descarte), se por um lado permite as mais diversas hipóteses, por outro inibe a construção de interpretações unilaterais.

Esta situação documental se repete para to-das as intervenções urbanas em Atenas na época de Augusto, e não é impossível fazer generaliza-ções maiores. No caso de outras categorias de fontes, como, por exemplo, a epigrafia, algumas questões podem ser respondidas com menos

incerteza: a adoção de nomes romanos, tanto por membros da elite quanto pela população comum, pode ser interpretada como romanização... mas de quê? Dos nomes, tão somente? Se é possível observar com segurança a romanização para algumas dimensões da vida, sociais e não para outras, deve--se ainda falar de romanização? Ou deve-se, como já é aventado na bibliografia sobre as provín-cias ocidentais, abandonar por completo o termo e o debate em torno de sua utilidade?

Qualquer resposta peremp-tória a estas questões, no espa-ço deste texto, seria temerária. Concluirei somente sugerindo Fig. 2. Capitel jônico do monopteros de Roma e Augusto. Acervo pessoal.

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Graecia capta, novamente: considerações sobre os limites da nova romanização da Grécia. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 91-97, 2014.

um caminho diverso. Sendo consenso que a romanização total foi uma miragem de uma bi-bliografia marcada pelo imperialismo, pode-se admitir romanizações parciais, de determina-das dimensões da vida, mas que estas mesmas são romanizações instáveis, que dependem de uma série de condições de realização. Ao invés de se buscar pelas dominações ou pelas resis-tências em si, me parece fundamental discutir estas instabilidades da romanização por meio, principalmente, da articulação dos diversos níveis ou elementos sujeitos a ela. Por exemplo, pode-se falar, no caso do monopteros, de uma romanização limitada da paisagem sagrada da acrópole por meio da referência ao nome de Roma e de Augusto e, possivelmente, de um culto associado; mas dificilmente de uma ro-

manização da arquitetura.1 Qual a relação, do ponto de vista da produção e do uso do espa-ço, entre a realização de cultos a personagens romanos e o enquadramento nas tradições arquitetônicas locais? Qual é determinante na interpretação do espaço? E o mesmo tipo de indagações pode ser aplicado para as relações entre a dominação militar, as associações entre elites locais e imperiais, a adoção de nomes romanos, a realização de jogos, os estilos esculturais, as práticas retóricas etc. Ou seja, falta, ainda, uma teoria da posição e função da romanização de determinados elementos na estruturação das sociedades provinciais, que dê conta da abertura de interpretações assim como dos constrangimentos concretos da dominação romana.

(1) Ainda que já tenha sido sugerido (Graindor 1927; Kajava 1999) que o monopteros faria uma referência, na planta baixa, ao templo de Vesta no fórum romano, o que parece pouco provável: o templo romano tinha mais colunas (20), seguia a ordem coríntia, estava assentado em um pódio e apresentava uma cela cercada por uma parede.

MORALES, F.A. Graecia capta, again: some thoughts on the limits of the romanization of Greece. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 91-97, 2014.

Abstract: This paper discusses the historical and archaeological debate on the relation between Roman domination and Greek culture, taking the Early Roman empire as a focal point. If until the 1990’s there was a consensus on the absurdity of the use of ‘romanization’ to describe and/or explain the Greek cul-ture under Roman domination, the last decades saw some sparse developments which ultimately produced a radical revision of that consensus. After retracing some origins of the ‘romanization of Greece’ hypothesis, the paper discusses the limits of this approach taking as example the difficulties on interpreting a single monument on the Athenian acropolis, the monopteros of Roma and Augustus.

Keywords: Romanization – Roman Greece – Provincial culture.

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Fábio Augusto Morales

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.

“Sócrates — Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem

libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamen-te, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier

dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?

Glauco - Muito mais verdadeiras.Sócrates - E se o forçarem a fixar a luz, os

seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?

Glauco - Com toda a certeza”.Platão. A República. Livro VII)

A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco

Marcio Teixeira Bastos*

TEIXEIRA BASTOS, M. A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 99-108, 2014.

Resumo: As lamparinas Imperiais (ou Augustas) foram assim nomeadas justamente a partir do reinado de Augusto Cesar, período em que passam a ser produzidas e massivamente espalhadas através dos inter-fluxos do Mediterrâneo. Seu nome funcional, lucerna de disco, vem pelo fato de serem confeccionadas com um côncavo disco no centro, geralmente portador de imagens relacionadas à cosmovisão da cultura romana, bem como terem formato circular. Na Palestina dois principais tipos deste artefato são encontrados: o primeiro, de bico trian-gular e estreito; e o segundo, com bico redondo e curto. Ambos servem como confiável referencial de cronologia relativa e indicativo de ocupação. Assim como nos outros lugares do Império, as lâmpadas romanas foram copiadas em moldes feitos de cera, gesso ou argila. Através da replicação, o modelo vigente passou a ser produzido nas oficinas locais, espalhando-se e derivando mais tipos na região. Este artigo analisa a funcionalidade de um objeto com essas características e a forma de organização comercial deste produto na Palestina romana.

Palavras-chave: Indústria da luz – Arqueologia – Lucernas de disco

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial - LARP. Foreign PhD. Student, Tel Aviv University, Israel. <[email protected]>

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A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.

No sentido das lâmpadas de óleo, contudo, o objeto que produz o fogo,1 emissor de luz, tam-bém é agregado ao conceito, uma vez que não existiria chama (e luz), não fosse o objeto.

As lâmpadas de óleo possuem luz própria na medida em que o combustível de seu inte-rior, associando-se quimicamente com o combu-rente (O

2), é capaz de entrar em combustão na

presença de uma fonte de calor inicial. A tríade combustível, comburente e energia de ativação é a responsável pelo fogo que provê a iluminação. Chamamos de fogo, então, a entidade gasosa emissora de radiação que decorre da combustão. Trata-se, portanto, da rápida oxidação de um material que entra em combustão, liberando calor, produtos de reação (e.g. CO

2 e H

2O) e o

mais importante: luz. A iluminação de uma lâmpada de óleo é

uma mistura de gases em altas temperaturas, formada pela reação exotérmica de oxidação e as emissões de radiação eletromagnética nas faixas do infravermelho e do visível. Nossos olhos não são capazes de perceber aqueles objetos que não têm luz própria. O agregado de objetos do conhecimento é o resultado do aparato cogniti-vo inato (fruto das coisas de nossa experiência cotidiana) sobre os dados subjetivos captados pelos sentidos, neste caso a visão. O espectro óptico (faixa visível do espectro eletromagnético) cumpre função cognitiva e é delimitado pela re-lação entre a mais baixa frequência opticamente estimulante (a radiação infravermelha) e aquela mais alta frequência perceptível (chamada radiação ultravioleta). Enxergamos, salvo casos clínicos, portanto, entre a radiação infraverme-lha e a ultravioleta.

Como não temos olhos adaptados à visão noturna, a obtenção de luz para enxergar os corpos iluminados operacionalizou e organizou nossas atividades depois do pôr do sol. Contu-do, isto só foi possível pela produção e controle

Iluminar a escuridão é um dos mais ele-mentares esforços da humanidade. A luz é um dos fatores essenciais da vida humana e causa fascínio desde tempos primórdios. Na Anti-guidade, contudo, além de seu aspecto prático, estava também intimamente imbricada, do ponto de vista metafórico e simbólico, com a religião, a mitologia e a psicologia social. É um dos elementos físicos do ambiente humano que foi constantemente associado ao Divino e acesso ao conhecimento das coisas; além, é claro, de prover a distinção entre as trevas e a claridade.

Lucrécio influenciado pelo pensamento ato-mista, no âmbito da filosofia natural (primeiro século antes da Era Comum (AEC), lançou em sua obra (De rerum natura) o princípio teórico de que a luz visível seria composta por inúmeras e minúsculas partículas sólidas que através dos padrões complexos emergem em multiplicidade de interações simples (o chamado fenômeno da emergência). O princípio filosófico de Lucrécio foi aprimorado no decorrer dos séculos seguin-tes e atualmente essa formulação é considerada a precursora da teoria contemporânea dos fótons de Max Planck (1858-1947).

A luz, em termos naturais e físicos, é uma radiação eletromagnética que se propaga por diferentes meios materiais e, por conceituação, não atravessa determinados tipos de sólidos, conhecidos como opacos. Conforme as ocasiões ela tanto pode se comportar como uma onda quanto uma partícula. A teoria corpuscular da luz atualmente a considera como constituída por pequenas partículas (os conhecidos fótons) (Silva e Martins 1996); já na teoria ondulatória, a luz é considera como uma manifestação de energia, composta essencialmente por ondas semelhantes às do som, porém de comprimento muitíssimo menor (Rotman 2005).

Todos os corpos que possuem luz própria são definidos como corpos luminosos e aqueles que somente refletem a luz de corpos luminosos são denominados como corpos iluminados. Portanto, a maior parte dos corpos que nos rodeiam são na verdade corpos iluminados. Atente-se que tanto o sol (maior fonte de luz conhecida pelo homem) como as estrelas e as lâmpadas de óleo analisadas neste artigo, são, em essência, denominados corpos luminosos.

(1) Evidências do norte da China apontam cronologia 400 mil AP para o momento primordial de controle do fogo; contudo, ossos carbonizados e cinzas descobertas na caverna Wonderwek (África do Sul) indicam a presença de controle do fogo no local há pelo menos 1 milhão de anos AP. Para mais informação consulte o Procedings of the National Academy of Sciences de 2012.

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deste tipo de corpo luminoso. A produção e controle deste objeto que produz fogo estiveram intimamente conectados com o simbólico e o perceptível, como não haveria de deixar de ser.

O provimento de luz na sociedade romana deu-se principalmente através de quatro ins-trumenta: os archotes; as velas ou candelae, as lanternae e as lucernae, também denominadas lucernas, candeias ou lamparinas. A principal diferença das lâmpadas de óleo para as outras formas de controle do fogo é a utilização de um líquido combustível para o provimento de luz. O mais comum destes líquidos foi o azeite, por isso não é possível tratar a indústria das luzes sem atentar para a produção, o consumo e a distribuição de azeite.2 Estas duas produções estão intrinsecamente relacionadas.

Devido à baixa pressão de vapor, o azeite não é inflamável em temperatura ambiente, po-rém se for aquecido, a sua pressão de vapor au-menta. Toda evaporação de um líquido depende sempre de sua temperatura e de sua superfície. A funcionalidade do pavio segue esse princípio e é baseada no efeito capilar que faz o líquido ser consumido através dele. Uma vez embebido no líquido oleoso e aquecido pela fonte de calor inicial (através da energia de ativação), a mecha acesa carboniza sua extremidade e o carbono junto com as fibras provocam a evaporação do combustível na extensão de superfície do pavio, mantendo assim a chama acesa.

A luz da chama acesa emite a radiação eletromagnética deste corpo luminoso e permi-te, então, a iluminação dos demais corpos. Ao emitir radiação por uma grande faixa de compri-mento de onda, de infravermelho à ultravioleta, a intensidade, a forma e a curvatura máxima da onda produzida dependerão diretamente da temperatura do corpo luminoso. Isto significa dizer que com o aumento da intensidade de temperatura, a quantidade de emissão de ondas curtas (luz visível) aumenta também e o resulta-do disto é uma luz mais clara e brilhante. A cha-ma luminosa das lâmpadas de óleo é carregada de pequenas partículas de fuligem que podem

ser observadas na sombra da chama contra uma parede (a parte mais escura da sombra). Uma boa lâmpada, como tal, deveria manter concen-trada a temperatura para obtenção de uma luz de boa qualidade e menos fuligem na chama.

Além do azeite (um fluido insaturado de gordura), banha de porco, óleo de fígado de bacalhau, assim como qualquer outra gordura (triglicerídeos em estado líquido ou sólido, basicamente) poderiam servir de combustível a uma lamparina. A diferença primordial, que certamente não seria desconhecida tampouco negligenciada, é a qualidade da luz proporcio-nada. De maneira geral, as gorduras (união de três ácidos graxos e uma molécula de glicerol) podem ser diferenciadas em ácidos graxos saturados (gordura animal) e ácidos graxos insa-turados (gordura vegetal). Os triglicerídeos em estado líquido têm menor produção de fuligem e devido a sua maior energia, a chama produzi-da é mais brilhante. A eficiência da luz é mais elevada (essencialmente pela presença do Hidro-gênio). Em contraste, as gorduras que têm alto teor de ácidos graxos saturados, além da grande quantidade de fuligem, produzem uma chama mais escura e de baixa eficiência. Outro fator negativo de gorduras sólidas é que se tornam viscosas demais e anulam o efeito condutivo do pavio.

Uma chama “normal” de lâmpada cerâmica abastecida por óleo teria a eficiência de apro-ximadamente 0,01-0,15 lm/W, medidas com Lfa. O consumo de energia, em contraste, seria enorme. Uma pequena chama consumiria 85 Watt de energia e uma chama maior, com pavio de 1,4 cm de comprimento e 0,5 cm de espessu-ra, altura da chama de aproximadamente 5 cm (levemente esfumaçada), consumiria 20g de óleo por hora (760 kJ) (c.f. Wunderlich 2003:256) (Fig. 1). A energia gasta, portanto, se elevaria à casa dos 200 Watt de consumo. Se comparado com a eficiência de uma lâmpada halógena de 200 Watt (as de hoje em dia), o custo seria por demais elevado. Iluminar, como é possível perce-ber, implicava em custos e, assim, movimentava a economia e a cultura romanas.

As fontes de luz exigiam um elevado nível de manutenção e para se obter mais luminosi-dade seriam necessárias fontes múltiplas, como (2) Para produção de ânforas de azeite, veja Funari 1990.

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um lustre ou um feixe de varas para dispor as lamparinas. A utilização de velas (candelae) não seria uma solução de baixo custo, como haveria de se supor, pois implicaria em substituições num curto período de tempo (devido a seu rápido consumo) e aquisição de grandes quan-tidades do produto. Na falta de cuidado, com o escorrer do sebo e dependendo da localização da vela, acidentes inflamáveis poderiam acon-tecer. O custo para manter múltiplas formas de iluminação certamente era uma barreira e limi-tava o acesso de alguma parcela da população. Além disso, os óleos utilizados para iluminação

também eram úteis na alimen-tação, e em caso de escolha, a alimentação seria priorizada.

Assim, a vantagem da uti-lização das lucernae justifica-se na medida em que esses objetos produzem uma chama de longa duração e estabilidade, sem que a luz pisque como nas velas e tem suportes e lugares específicos (nichos). A fácil manutenção, limpeza e portabilidade seriam outros pontos positivos de sua popularização durante a Antigui-dade. Conforme o tamanho e preenchimento do reservatório, uma lamparina pode queimar por horas ou mesmo dias sem qualquer intervenção. A manu-tenção básica de uma lâmpada de óleo seria o ajuste do pavio e a limpeza do objeto. Convém lembrar, obviamente, que para se obter a luz desejada era necessá-rio o passo primordial, isto é, a energia de ativação para o calor inicial. Este objetivo poderia ser alcançado esfregando-se gravetos ou utilizando pedras, aço ou estopa. A prática de ascender fogo somente com estes recursos é algo que alguns indivíduos tomariam como uma tarefa praticamente sobre-humana em nossa sociedade. A lâmpada de óleo, portanto, é essencialmente

um recipiente coberto e circular ou semicircu-lar de argila cozida, com uma abertura para o combustível (pequena ou grande, conforme o modelo e período) e outra abertura na extremi-dade de sua superfície que forma o bocal (onde seria posicionado o pavio) (Fig. 2). Nos tipos disco popularmente encontrados na Palestina Romana (séculos II-III EC), o bocal e o corpo da lâmpada estão dispostos de forma compacta, as volutas são estilizadas e anexadas à orla da peça como elemento decorativo. Um claro derivante das lamparinas Augustas encontradas na região. Em Israel foram encontradas as lâmpadas do

Fig.1. Principais formas e tamanhos de pavio encontrados em Israel (Sussman 2012: 2).

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tipo Augustas em Tiberias, Caesarea (centros administrativos e comerciais), Dor (Dora), Akko (Acre) e Ashkelon (Asqelon) (portos marítimos); bem como nas guarnições romanas estacionadas em Jerusalém (Sheik Badr, Armenian Garden), O’boda e Petra.

O tipo de decoração mais incidente nas lâmpadas de disco produzidas com inspira-ção nas lâmpadas Augustas é a figuração do

características de um determinado fabricante. Essa produção pode ser encontrada em pratica-mente todo o território de Israel, alguns exem-plos são: 1) Sepultamento em caverna próximo a Caesareia com pintura nas paredes (Siegele-man e Ne’eman 1992: fig.5: 1); 2) Sepultamento em Shoham (II século CE) onde foi encontrada lamparina próxima às pernas do esqueleto (Na-gorsky 2007: 47, fig.3: 9); 3) Sepultamento com

kokhim em Pisgat Ze’ev, imedia-ções de Jerusalém (Shurkin 2004, Fig. 21: 1); 4) Sepultamento em caverna em Beit ‘Anun, Monte Hebron (Magen 2008, Pls. 1: 1, caverna A e B, Pls.3: 6); 5) Ca-verna de refúgio da Revolta Bar Kohkba em Wadi Ed-Daliyeh, Neguev (Eshel e Zissu 1998, Pls. 4: 7-8); 6) Em Huqoq associadas a lamparinas herodianas e fení-cias – R29 (Kahane 1961: 129-130; fig. 3: 23-25); 7) Bet She’an (Fitzgerald 1931, Pl. XXVIII: 1 e Hadad 2002); 8) Jalame (Manzo-ni-Macdonnel 1988, fig.6-2: 18); 9) El-Shubeika, Galileia (Tatcher

e Nagar 2002, fig.1: 1); 10) Tel Mevorakh (Stern 1978, Fig. 2: 20, camada II-III); 11) Antipatris (Neidinger 1982, Pls. 22 e 23); 12) Qumran caverna 4, Neguev (De Vaux 1977, fig.6); 13) Wadi Muraba‘at, Neguev (Benoit et al. 1961, Fig. 8: 13).

No final do I século AEC Roma contava com uma bem organizada indústria da luz. Esti-ma-se que a produção de lâmpadas de oficinas

machado duplo, muitas vezes aliada a outras decorações de orla. As dimensões apresentam--se geralmente entre 8-10 cm (comprimento) x 7-8 cm (largura) x 2-4 cm (altura, sem alça). Na superfície, na parte referente ao disco, as peças apresentam figuras e cenas associadas à cosmo-visão tradicional romana (Fig.3). A base da peça é caracterizada por um ou mais círculos con-cêntricos incisos, que podem apresentar marcas

Fig.2. Principais atributos de uma lâmpada de óleo discus (sítio Apol-lonia, Israel).

Fig.3. Exemplos dos motivos decorativos de lâmpadas de disco na Palestina Romana (Sussman 2012: 338, 382-384).

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com assinatura (marca) em latim tenha alcança-do sua plena distribuição geográfica justamente durante esse período. Calcula-se que no sítio de Roma entre 30-40% das lâmpadas dos enterra-mentos encontrados do período são assinadas. Exemplares que cobrem o final do primeiro século AEC até pelo menos 150 EC. Percebe-se ainda que em uma Província próxima (a Hispâ-nia), o mesmo percentual analítico consta entre 10-15% para o período abordado. Essa relação demonstra que o mercado de Roma era muito competitivo e bem definido, além de estritamen-te alinhando aos propósitos de Romanização; servindo, então de modelo e inspiração ao desenvolvimento dos mercados locais.

A última compilação feita demonstra pelo menos 1700 assinaturas em latim de oficinas produtoras de lâmpadas de óleo e aproximada-mente 400 assinaturas em grego encontradas nas lâmpadas. Segundo Harris (1980: 128-129), entre 20 e 25% das lamparinas assinadas em latim tiveram significante distribuição além do seu lugar de manufatura. Existiria, então, uma bem alinhada organização de Oligopólio em que cada oficina levaria em conta as reações e comportamentos das demais para as tomadas de decisão no mercado. A produção de Roma e seus modelos teriam inspirado os mercados provinciais fortemente até 150 EC com somen-te algumas concorrências regionais menores opondo-se ao mercado dominante (no caso da Palestina Romana, notadamente as lâmpadas herodianas (Adan-Bayewitz et al. 2007). Fenô-meno similar é constatado no Norte da África, onde por iniciativa de oficinas italianas foram implantadas áreas produtoras locais. Estas, por sua vez, assumem caráter produtivo próprio e logram referência no mercado e maior distri-buição principalmente a partir do III século EC em diante. A concorrência oriunda das oficinas locais e regiões produtoras foi, deste modo, afetando o mercado de forma não polarizada, gerando características interessantes e marcantes em cada província do Império.

A concorrência estaria pautada pelas pró-prias características dos produtos, na imagem e na fidelização do objeto; bem como na oferta e demanda da peça. Mesmo oficinas não-autoriza-das, ou mesmo aquelas sem marca acompanha-

vam os mesmos traços conhecidos de oficinas com assinatura ou suas concessionárias. Seguin-do, portanto, um modelo de atributos e sinais característicos dos modelos dominantes, os temas imagéticos de ampla aceitação e a tendên-cia do mercado no período.

A utilização do termo “indústria”, não pode passar, assim, sem uma devida explicação de seu emprego neste artigo. É sempre compli-cado utilizar este termo sem que haja em mente o emprego do modo de produção baseado no poder das máquinas e na produção de tipo taylorista e fordista. Se esse entendimento é levado em conta, então o supostamente correto seria empregar o termo pré-industrial. Contudo, para tornar claro, o princípio regente e prolife-rativo da produção desses artefatos, considere-se que qualquer produção de artefato em larga escala pode ser denominada como da esfera da indústria cultural humana (Harris 1980: 127).

Tendo em mente que as lâmpadas de óleo poderiam ser produzidas em pequenas oficinas locais, sem o emprego de muitos ceramistas, e ainda, que provavelmente eram distribuídas nos assentamentos mais próximos (villae e/ou cidades) como parte do sistema, é interessante perceber como os nomes de certos fabricantes (e.g. FORTIS, FESTI, FAVSTI) são encontrados em partes distantes3 do local inicial de manufa-tura desses objetos no Império. As exportações que não seriam sistemáticas se efetuariam na maioria das vezes através da carga pessoal dos viajantes, ou organizada em pequenos carrega-mentos.4

A produção de lâmpadas de oficinas de médio a grande porte com assinaturas em latim está estabelecida a partir da segunda metade do primeiro século AEC e tem seu desaparecimen-

(3) O’boda (Israel) e Tiro (Líbano) são dois bons exemplos, veja Negev 1986: 1191 #72; 1974: 44, Pl. 15; Sussman 2012: 23, Fig. 16: 1.3; Mikati 2003: 175-180. (4) O naufrágio de Port-Vendres (Gerbal) e Port-Miou apoiam substancialmente essa ideia (veja Deneauve 1972:222). De-neauve (1986:141-161) também identificou que lâmpadas idênticas possuem assinaturas de produção diferenciada e que, portanto, os moldes italianos destas peças se espalharam durante o II século CE na s recém criadas oficinas do Norte da África

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to situado em algum ponto da metade do século III EC quando, então, os mercados do final do III e IV séculos EC serviram-se somente de produções locais.5

A indústria da luz em período Romano e a distribuição desses produtos contemplariam quatro momentos, sem que os mesmos sejam entendidos na escala crescente.

O primeiro deles é aquele em que espe-cíficas marcas são encontradas em pequenas quantidades dentro de um território único de cidades ou áreas imediatamente adjacentes ao local de manufatura (com peças isoladas alcan-çando outros lugares eventualmente). Exemplos deste tipo de distribuição foram encontrados na Espanha (Balil 1982), norte da Itália (marca “Felicio”, Buchi 1975: 57-58); e Pannonia (marca “Fab” ou “Fabi”, Iványi 1935: 78-90), para citar alguns exemplos.

O segundo padrão é aquele em que as marcas estão distribuídas em caráter regional, encontradas em cidades-territórios da mesma região com eventual dispersão além desses marcos, sem, contudo, participar de relações interprovíncias. Neste padrão se encaixam, por exemplo, as marcas “Armeni” e “Luc.” (ou “L.V.C.”). A primeira marca tem distribuição na região da Dacia, Baixa Moesia e Pannonia; já a segunda assinatura foi distribuída entre a Baia de Nápoles e Mileto.

O terceiro padrão de distribuição cobre vir-tualmente todas aquelas lâmpadas denominadas como Firmalampen. A maioria das assinaturas de Firmalampen consiste em um simples cognome e a distribuição se concentra no norte da Itália, onde tende a ser predominante, e nas regiões da Itália central, Gália, Províncias da Germânia (Magna, Superior e Inferior), Alto Danúbio, Dalmácia, Hispânia, Lusitânia, Dácia e Moesia. Trata-se de uma distribuição mais abrangente, contemplando as relações interprovinciais.

A última forma de distribuição diz respeito àquelas marcas que são encontradas em nú-mero substancial, tanto no norte como no sul do Mediterrâneo, centro e sul da Itália, África

Proconsularis, Mauretania, Hispânia, Sul da França, Sardenha e Pannonia (Tabela 1). Essa distribuição, assim como a anterior, abrange tanto regiões específicas como também elevado número de Províncias. As adjacências de Roma, o sul da França e a Alemanha são as regiões de maior dispersão destas lâmpadas com a assinatu-ra “C.Clo.Suc.”, uma abreviatura romana. Outra assinatura que representa este padrão é a chama-da “Romanesis”. Apesar de apresentar produções locais, a manufatura desta peça está localizada em Cnido (Turquia) ou Mileto (Jônia). Foi uma das únicas exportadas das províncias orientais para o período em questão que alcançou o Oci-dente (Harris 1980: 129-130). As marcas Fortis, Festi e Favsti também estão nesta categoria com exemplares espalhados também pelo Levante (Mikati 2003).

A assinatura das Firmalampen, também denominadas ‘factory lamps’, ajuda a traçar padrões de distribuição e rotas comerciais, bem como localizar a região das oficinas. Esta produ-ção serve também como um dos parâmetros do desenvolvimento do comércio e indústria da luz no Período Romano, como uma produção proli-ferativa e padronizada. Exemplos deste tipo são encontrados no Norte da Itália, Suíça (Vindo-nissa), Gália, Germânia e Leste da Europa. A assinatura Fortis também aparece distribuída por todo o Império Romano, principalmente as do tipo IX e X.

Dentro de Israel o tipo X foi encontrado em Caesarea, em Jerusalém (com uma possível oficina local no acampamento da Legião Roma-na - Sheikh Badr), em Tel Halif, Lahav (tam-bém uma reprodução local), e em alguns sítios Nabateus, como Moa e O’boda. As datas desses contextos e artefatos estão entre a segunda parte do primeiro século EC e segundo século EC. O tipo X ainda manteve algumas variantes e manufaturas durante o II-III séculos EC na região (Sussman 2012: 24-72). O comércio de luz estaria, dessa maneira, organizado em nível internacional (em menor escala), inter-regional e intra-regional.

É possível, ainda, ressaltar três funções econômicas primordiais no conjunto social romano diante da produção e distribuição desses artefatos: a reciprocidade, a redistribuição

(5) Sobre a discussão e embasamento cronológico veja Harris 1980: 143-144.

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A indústria da luz na Palestina romana: produção, consumo e distribuição de lucernas de disco. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 99-108, 2014.

e a troca. A reciprocidade caracterizando-se por um sistema informal em que as pessoas buscam uma relação de equilíbrio entre os bens e os serviços que oferecem e recebem, com valores relativos determinados pelas obrigações sociais e tradicionais do contexto inserido. A redistribui-ção sendo o sistema em que as mercadorias são recolhidas por uma autoridade central (nesse caso uma grande oficina) e distribuídas em virtude do costume. Já a troca implicaria em um agregado de transações econômicas (entre ofici-nas e pessoas) que voluntariamente trocam bens e serviços, quer seja no escambo, quer seja por outro benefício. Esse esquema tripartido tam-bém tem seus alcances individuais. A indústria romana da luz do primeiro e segundo séculos EC como se apresenta estava suficientemente integrada e organizada em suas áreas de interes-ses, através de uma extensa rede de transportes e redes de contatos econômicos. O objetivo, tanto

pelo Mar Mediterrâneo como pelas vias terres-tres, era explorar as vantagens comparativas de cada mercado e Províncias (veja Temin 2006: 137-140).

A especialização das relações econômicas romanas indica ter promovido a eficiência ope-racional da agricultura e o comércio permitiu a concentração de outras atividades como a pro-dução de lâmpadas de óleo em lugares específi-cos das Províncias com seus respectivos câmbios. As grandes oficinas ou regiões de manufatura concentrando a produção poderiam obter gan-ho de eficiência e maiores lucros através da par-tilha de custos administrativos, uma vez que os métodos de produção de manufaturas romanas não apresentavam muitas escalas econômicas. O desenvolvimento da produção independente lo-cal (como aquela que é evidenciada na Palestina Romana) incrementou a concorrência (comer-cial e simbólica) no mercado antigo da luz.

Tabela 1. Listagem das principais oficinas romanas de cerâmica de iluminação e sua distribuição, com as principais assinaturas de oficinas romanas de lamparinas Firmalampen (Harris 1980:130).

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Marcio Teixeira Bastos

TEIXEIRA BASTOS, M. The industry of light in Roman Palestine: production, con-sumption and distribution of discus oil lamps. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 99-108, 2014.

Abstract: The Augustan or Imperial oil lamps (Bronner Types XXI-XXII and XXIII) were named after Augustus Caesar reign when it became massively produced and spread through the Mediterranean inter-flows routes. Its func-tional name, Roman disc-lamps, comes from the fashioned closed concave disc at the center of piece (usually portraying figurative motifs). In the Roman Palestine, two main types of this artifact were found: with triangular shaped nozzle and rounded-tipped nozzle. Those lamps were copied into moulds made of wax, plaster or clay and through the surmoulage process other types of oil lamps originated from them. This paper analyzes the workability and the organization of the light industry in Roman Palestine between 1st to 3rd centuries CE.

Keywords: Industry of light – Archaeology – Roman disc-lamps.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.

Greg Woolf, em artigo sobre a natureza do Império “inventado” por Roma na

Antiguidade, afirma que a característica comum aos impérios antigos é “representarem uma entidade política geograficamente extensa, con-trolada por elites localizadas em um centro, cujo poder era limitado pelos níveis de excedente de produção locais e pelas comunicações pré-indus-triais” (Wolff 2001: 311). Logo, tais elites cen-trais articulavam negociações com elites locais, a fim de poder manter sua dominação sobre tão vasta realidade geográfica.

Mas, o que seria então o “Império” no vocabulário dos antigos romanos? Segundo Champion, os romanos possuíam o conceito de imperium, cujo significado era extremamente importante, pois imperare significa “comandar” e imperium “o poder de comandar e, por extensão, a área geográfica onde tal comando seria obede-cido” (Champion; Eckstein 2004: 3). Portanto, a realidade geográfica estabelecida pelos romanos na antiguidade por meio das guerras de conquis-ta e diversos interesses, pode ser pensada como imperium. No entanto, as realidades que o com-puseram ao longo do tempo, os interesses que o administraram e suas diversas populações consti-tuintes, transformam esta entidade geográfica, à qual se atribui o nome de Império Romano, em algo dinâmico e heterogêneo.

Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V)

Alessandro Mortaio Gregori*

GREGORI, A.M. Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V). R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 109-117, 2014.

Resumo: Quando o cristianismo atinge a esfera das elites do Império um problema se põe a este grupo: é possível ser romano – considerando esta romanidade um conjunto de práticas que dão sentido às elites imperiais – e, ao mesmo tempo, seguir os dogmas cristãos? É um problema que se apresenta fulcral para as elites, uma vez que a vida pública nas cidades impõe uma série de comportamentos e práticas conectados com os cultos tradicionais do paganismo. Logo, como um magistrado ou um prefeito de Roma, por exemplo, pode ser cristão e, ao mesmo tempo, afirmar-se romano? A presente comuni-cação pretende discutir o sentido de ser romano e romanidade nos tempos do Império Tardio (séc. IV e V) em progressiva expansão do cristianismo e de suas Igrejas. A abordagem será desenvolvida principalmente a partir de fontes ma-teriais do período, em especial as imagens provenientes de variados suportes: afrescos, sarcófagos, moedas, medalhões e dípticos de mármore.

Palavras-chave: Cristianismo – Iconografia – Arqueologia da Imagem – Arte Paleo-cristã – Elites romanas.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial – LARP. <[email protected]>

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contatos estariam na busca por indícios de “ro-manidade”, ou seja, ideias partilhadas, ideologias que possam de alguma forma ser diagnosticadas como “romanas” (Revell 2009: 5). Seguindo o pensamento de Revell, o urbanismo, a figura do imperador e prática religiosa, além de ideologias do comer e beber e de atividades econômicas e lúdicas, reproduziam-se nas diversas ações cotidia-nas dos mais variados grupos do Império. Embo-ra não fossem idênticas no tempo e no espaço, a variabilidade dessas ideologias exploravam várias maneiras de ser romano no Império, ainda que privilegiassem certos aspectos de identidade, espe-cificamente o homem adulto, livre e abastado (Revell 2009: 5). Portanto, ao se analisar as elites do Império pode-se confirmar que há estruturas ideológicas partilhadas por esses grupos que os faziam reconhecerem-se como pares.

No Império Tardio, após os rearranjos políti-cos e sociais do século III, os “bem nascidos” es-tipulam formas de intercâmbio pessoal com seus pares na cidade. Há um controle da linguagem e da postura, traços de comportamento, os quais formam uma barreia entre as elites e os inferio-res. O clarissimus, além de possuir rendimentos, é moldado por uma educação longa e por uma pressão constante de seus pares, pois a aceitação por outros membros dessa elite era o mais impor-tante critério de honra e distinção (Brown 1991: 231; Salzman 2004: 20). Após as intempéries do século III, o Império reorganiza-se e, com ele, as elites. A classe superior reestrutura-se para usufruir os excedentes. Os poderosos (potentes) administram as cidades em nome do imperador distante em uma sociedade “dominada explici-tamente por uma aliança entre os servidores do imperador e os grandes proprietários de terras que colaboram para controlar os camponeses sujeitos ao imposto e para impor a lei e a ordem nas cidades” (Brown 1991: 262).

A religião, por sua vez, era parte essencial da cultura das elites. Tanto em Roma, como nas províncias, por centenas de anos, magistrados e sacerdotes desempenhavam rituais a fim de asse-gurar o bem-estar do Império. Os cultos polite-ístas ofereciam diversas oportunidades para os aristocratas ganharem prestígio e notabilidade. Como sacerdotes, tomavam parte na dedicação aos templos e serviam como conselheiros e

O Império, portanto, apoiando-se numa perspectiva pós-moderna, não pode ser concebi-do como Estado-Nação, cuja existência assegura-va homogeneidade frente à tendência oscilante de fragmentação. Uma realidade geográfica tão extensa e, ao mesmo tempo, heterogênea de-mandou ações diferentes ao longo tempo, tanto do centro, quanto das realidades locais, por isso faz-se necessário evitar compreender o Império por meio da oposição clássica entre romanos e “dominados”. A natureza das trocas e das nego-ciações fazia-se tão necessária quanto a coerção por meio do exército imperial.

Para as elites locais, a experiência imperial romana delimitava um campo privilegiado de atuação para contatos entre grupos aristocráticos, algo que já ocorria no Mediterrâneo antigo desde o período arcaico. Líderes de clãs das mais diversas localidades possuíam chances reais de influenciar o processo de decisão. Os grupos nobres provin-ciais combinavam o papel de liderança quase feu-dal em suas localidades, enquanto apresentavam-se como negociadores cosmopolitas na capital e nas cidades do Império (Terrenato 2005: 69).

Se chegarmos à conclusão de que o Império Romano é uma entidade político-geográfica heterogênea, marcada por experiências diversas, podemos compreendê-lo como um império de elites comunicantes. Os centros de decisão possuem seus grupos aristocráticos, os quais de-pendem, para garantir seus interesses, da nego-ciação com os líderes locais, estabelecendo redes de longa-distância, burocracias administrativas e diferentes formas de apreensão de excedentes. Portanto, as elites do Império são necessárias para garantir a própria existência do mesmo.

No âmbito do Império ocidental os códigos de conduta das elites dos centros de decisão, seus valores e aceitações expandiram-se gradualmente para as províncias, sendo que, por volta do século III, aristocratas da Hispânia e da África, por exemplo, podiam ser identificados como com-partilhadores de valores muito próximos, assim como estilos de vida bastante similares (Salzman 2004: 19). Para a arqueóloga britância Louise Revell, ao invés de se localizar no registro arqueo-lógico evidências de romanização e imperialismo, seja das elites, seja de grupos inferiores, uma me-lhor compreensão do Império e sua dinâmica de

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orientadores nos conselhos locais, ou no Se-nado sobre assuntos de culto. Os aristocratas também ganhavam notabilidade ao patrocinar cultos específicos, rituais e festivais (Salzman 2004: 61-63). Portanto, para as elites do Império Tardio, a filiação religiosa era uma forma segura de aumentar o status e honra.

Apresentaria o cristianismo um tipo de pro-blema para as elites, a partir do momento em que a conversão a este culto exigia a filiação a um grupo exclusivista, que recriminava os jogos, os sacrifícios e os festivais – elementos que por séculos permitiram aos aristocratas a arena na qual podiam demonstrar e aumentar sua honra? Quanto à Igreja cristã, esta era um novo tipo de realidade, uma nova comuni-dade pública, cuja elite, os bispos, estava, ainda em inícios do século IV, sob desconfiança por parte dos pagãos mais tradicionais.

A grande polêmica intelectual do século IV era a natureza do cristianismo, o porquê de sua superioridade frente aos cultos politeístas. Segun-do Veyne, “diferentemente dos deuses pagãos, ele [Jesus, o Cristo] era ‘real’ e até mesmo humano” (Veyne 2010: 43). Nova forma de relacionar-se com Deus e com as figuras do cristianismo, o cul-to que atraía o imperador passou a atrair também as elites do Império. Na Antiguidade romana, re-ligião e política estavam intimamente conectadas, entretanto, nenhum imperador podia governar nos séculos IV e V como um autocrata, assim como nenhum bispo cristão poderia controlar o rebanho de fiéis sem o suporte das elites senato-riais, civis e burocráticas do Império.

Os cultos públicos e as tradições cívicas do politeísmo forneciam uma justificativa à romani-dade. A participação e financiamento de jogos, festivais e sacrifícios eram elementos de identi-dade social das elites. Quando o cristianismo, contudo, torna-se a religião protegida pelo im-perador e, portanto, um traço “romano”, como controlar o paradoxo de afastar-se dos cultos pagãos, dos jogos, dos sacrifícios – elementos que por séculos garantiram a romanidade das elites – e ser praticante de um culto exclusivista, sem sacrifícios e de forte compromisso moral?

A análise das imagens, numa perspectiva ar-queológica, pode fornecer indícios ao pesquisador de uma nova romanidade nascente, agora, contu-do, cristã. A Arqueologia da Imagem é uma área

que pretende, por meio da imagética antiga, inter-pretar aspectos cognitivos, sociais, políticos, econô-micos e religiosos em determinada sociedade pro-dutora de imagens. Desenvolvida principalmente por arqueólogos franceses a partir dos anos 1970, a Arqueologia da Imagem pauta-se pelo formalismo descritivo e pelo estruturalismo, sob influência dos estudos linguísticos e semióticos (Aldrovandi 2009: 39). Segundo Flannery e Marcus (apud Bars 2010: 23), quando arqueólogos utilizam o termo “iconografia”, referem-se geralmente a uma análise do modo como os povos antigos representavam conceitos ligados à religião, à política, à cosmologia ou a ideologia vigentes, através de sua arte. Assim, a análise iconográfica em arqueologia é de extrema importância na investigação da sociedade antiga como um todo.

Iniciemos, aqui, a investigação das imagens e a relação entre as elites e o cristianismo a partir da imagem do “camafeu de Constâncio II e sua esposa, c. 335 (Fig. 1a) – iniciemos, portanto, pelas figuras imperais. O ponto de viragem na história do cristianismo e da própria Igreja de Roma é o aparecimento de Constantino e sua ascensão ao poder. Começava uma nova era para a Igreja. Constantino favoreceria o cristianismo entre os vários cultos existentes no Império. Ao longo do século IV, todos os imperadores seriam cristãos, com exceção de Juliano, o apóstata (355-363). Os imperadores tardios adotam um estilo de “Senhor e Deus” – Dominus et Deus –, vestindo-se em seda e ouro e utilizando diadema de pérolas. O retrato imperial de Constâncio II carrega o monograma cristão Chi-Rho, identifi-cando o poder do imperador com o cristianismo e sua difusão entre as artes visuais acontece, inevitavelmente, pela casa imperial. O mono-grama designa o nome de Cristo em grego das duas primeiras letras de seu nome, sobrepostas e cruzadas. A imagem discreta do cristograma sobre a coroa imperial toma o cristianismo como um culto de elite, dos membros da casa imperial. Este símbolo reproduz-se, ainda, sobre as moedas, objetos de circulação e propaganda dos podero-sos. Desde Constantino (Fig. 1b), passando por outras figuras imperiais, as moedas passam a tra-zer o monograma cristão, e depois a cruz, mesmo conjunto com outros símbolos e referências dos cultos tradicionais. (Figs. 1c, 1d, 1e).

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Adentrando o mundo privado das elites, a análise das imagens presentes num sarcófago do século IV auxilia na compreensão do nascimen-to de uma nova “romanidade”, agora cristã, que se constrói pelo Império tardio. Os sarcófagos são elementos próprios do ritual de inumação. As ideias cristãs sobre a intangibilidade do cadá-ver auxiliaram na expansão deste tipo de ritual, entretanto o uso de sarcófagos no Ocidente latino já era uma prática bastante difundida na época dos severos (192 – 235 d.C.), quando aparecem sarcófagos de cenas mitológicas com medalhões ao centro contendo a imagem do falecido e, eventualmente, de algum membro de sua família (García y Bellido 1972: 325). Deve-se pressupor que os sarcófagos ricamente adorna-dos faziam parte dos artefatos mortuários de uma elite, visto que o custo de produção e trans-porte só poderia ser sustentado pelos abastados. Portanto, os sarcófagos de notável qualidade estética tornam-se objetos de luxo.

O sarcófago do século IV denominado “Dogmático” (Fig.2) fornece elementos de aná-lise para se pensar a cristianização das elites ao longo do Império Tardio. Construído sobre um friso duplo, adornado com cenas das escrituras do Antigo e Novo Testamento, o medalhão cen-tral é seu elemento de destaque. Seguindo uma tradição já presente nos sarcófagos romanos, o medalhão apresenta o nobre falecido, acompa-nhado de sua esposa. Vestido como membro da elite, o homem segura um rolo de pergaminho, atestando sua supremacia intelectual, enquanto um gesto de sabedoria e eloquência com a outra mão afirma seu status. Posteriormente, este ges-to será absorvido nas representações do próprio Cristo. A esposa o observa e segura seu braço, reforçando a unidade do casal. Uma dupla de pequenos putti adorna o medalhão e imagens cristãs complementam-no. A criação, Adão e

Fig. 1. Retratos imperiais. 1a. Camafeu em ouro e marfim. Constantinopla c.335. Musée du Louvre, Paris Fonte: Beckwith 1979: fig. 32. 1b. Moeda em bronze de Constantino c. 327 Fonte: Spier 2007: cat. 29. 1c. Moeda de Magnêncio c. 353 Fonte: Spier 2007: cat. 30. 1d. Moeda de Galla Placídia. c. 425-435 Fonte: Spier 2007: cat. 31. 1e. Solidus de Justa Grata Honória, irmã de Valentiano III c. 430–445 Fonte: Spier 2007: cat. 32.

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Eva, os milagres de Jesus, sua prisão, a anuncia-ção dos reis magos, Daniel na cova dos leões, Jesus pregando aos discípulos e a prisão de Pedro, são elementos de passagens bíblicas que reforçam a crença do casal. Não há incompati-bilidade em ser um nobre romano e morrer sob os auspícios do cristianismo. Uma forte coesão entre a moralidade cristã e o status do casal dá sentido ao conjunto de imagens, o qual se apoia em uma longa tradição dos ateliês romanos em produzir peças sarcofágicas para as elites.

Na catacumba de Domitila, encontra-se uma referência iconográfica (do século IV) de uma nobre denominada Veneranda (Fig. 3a), vestida como membro da elite, introduzida ao céu pela mártir santa Petronília, sepultada no mesmo cemitério. Imagens de aristocratas levados ao Paraíso por figuras ou entidades condutoras não é uma exclusividade cristã. Por volta do mesmo período, final do século III inícios do IV, o hipogeu pagão de Víbia, outra nobre romana, decora-se com imagens da fale-cida sendo levada a um lugar paradisíaco pelo angelus bonus (Fig. 3b). Veneranda e Víbia, são nobres romanas, vestem-se segundo seu status e o destaque de suas figuras nas pinturas parietais indica sua importância no meio social. Uma adaptação de ideias e de anseios espirituais da elite junto ao cristianismo tornava mais fácil a aceitabilidade do culto cristão.

É possível notar por estas cenas a presença

de ideais aristocráticos influindo nos ideais cris-tãos. A nobre de moral elevado é conduzida por entidades bondosas, seja um angelus, seja um santo-mártir, para uma realidade paradisíaca, outra vida de prazeres. Embora não fique muito claro na pintura de Veneranda (Fig. 3a), no mausoléu de Víbia observamos que no paraíso idealizado pelo artista outros nobres participam de um banquete sagrado, representado no for-mato dos banquetes romanos de elite. No mes-mo período, aparecem imagens nas catacumbas cristãs enfatizando o banquete sagrado, entre-tanto, como parte do culto cristão, a divisão dos pães (fractio panis Figs. 3c, 3d).

Outro elemento presente nas imagens do período tardo-antigo são as figuras da nobreza de serviço presentes em dípticos e painéis de mármore: uma arte para exaltar os poderosos e sua honra. O homem público, o potens, abandona a toga drapeada em favor de uma roupa concebida como heráldica. As novas indumentárias dos séculos IV e V “escalonam da ondulante veste de seda dos senadores e da roupa, próxima do uniforme, dos servidores do imperador, bordada de motivos que destacam a posição oficial” (Brown 1991: 270).

Comparando o díptico de mármore que co-memora o consulado de Flávio Felix, 426 (Fig. 3e), com o mosaico-retrato de santo Ambrósio, poderoso bispo de Milão (início do século V) (Fig. 3f), percebe-se a importância adquirida no

período por esses “funcionários” da Igreja e sua proximidade com as formas públicas de poder. O bispo cristão é um intelectual oriundo das elites. As ideias do mundo dos abastados adentra a Igreja cristã. O bem-nascido, culto e de moral elevado, pode tornar-se bispo, confluindo mui-to bem suas distinções sociais com a vida cristã. Mais do que uma questão puramente espi-ritual, as imagens tardo-antigas nos apontam para pequenos detalhes, os quais formaram discretamente e progressivamen-te uma elite romana a serviço do imperador e a serviço da Igreja.

Fig. 2. Roma, Vaticano. Sarcófago dito “Dogmático” metade do século IV. Fonte: Grabar 1966, plate 268.

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Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V). R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.

Fig. 3. Retratos das elites do Império tardio. 3a. “Veneranda introduzida ao céu por santa Petronília”, fins s. III. Fonte: Grabar 1966, plate 123. 3b. “Víbia introduzida ao paraíso”, fins s. III Fonte: Grabar 1966, plate 124. 3c. Fractio Panis, ou o banquete eucarístico; fins s. III. Fonte: Grabar 1966, plate 68. 3d. Fractio Panis, ou o banquete eucarístico; fins s. IV. Fonte: Grabar 1966, plate 70. 3e. Parte de um díptico de mármore, 426. Flávio Félix, cônsul. Fonte: Brown 1991, p. 271.3f. Mosaico- retrato de santo Ambrósio, Séc. V. Milão, Igreja de santo Ambrósio. Fonte: Brown 1991, p. 271.

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Alessandro Mortaio Gregori

Conclusão

Pelo percurso aqui apresentado, observa-se pelas imagens tardo-antigas que os séculos IV e V são momentos de grande expansão do cristia-nismo e as elites “romanas” de várias localidades do Império produzem imagens que aproximam seu status do cristianismo. Imagens são testemu-nhas mudas do passado. Possuem mensagens a comunicar, contudo é difícil ao pesquisador do presente compreendê-las em plenitude. Uma análise apurada dos detalhes, o confronto com imagens de estilo semelhante e do mesmo período podem render bons frutos no momen-to de interpretá-las. O poder da imagem está justamente na comunicação visual que possi-bilita e o inconsciente que pretende acessar. Observa-se no período traços de romanidade, como apontados por Revell – como proximida-de do imperador e religião – ainda presentes do Império tardo-antigo, porém agora relacionados ao cristianismo.

Pode-se afirmar que para essa elite a “roma-nidade” não é incompatível com o “ser cristão”. Os séculos IV e V são períodos de formação do credo oficial, de disputas entre diferentes “cris-tianismos”. Nesse longo processo, a influência das elites imperiais e seu contato com a Igreja dão sentido a uma elite cristianizada, cuja nova religião não negaria sua estima, nem solaparia as instituições sobre as quais repousava sua posição social. Alguns traços do mundo clássico sobre-vivem na Igreja cristã. A caridade e a ajuda aos pobres, por exemplo, serão interpretadas como “paternalismo” pelos ricos, formulando em es-sência uma cristandade aristocratizada (Salzman 2007: 212).

As artes visuais são uma ferramenta essen-cial na promoção dos novos valores, pois trans-mitem mensagens e estímulos metafóricos que levam à progressiva aceitação da realidade dos novos tempos. Para Zanker, as alterações da arte

na Antiguidade Tardia são reflexos de uma mu-dança de mentalidade (2008: 187). A mudança do mundo romano nos séculos IV e V não é apenas de ordem política, há o acompanhamen-to de mudanças sociais. O desejo das classes urbanas pela autopromoção nos primeiros dois séculos do Império levou a uma proliferação de estátuas honoríficas e monumentos funerários pelas províncias. A partir do século III, o desejo por honras cívicas e reconhecimento diminui. As estátuas que permeiam o espaço público pas-sam a ser a dos altos oficiais. Não são mais com-panheiros urbanos, mas sim funcionários da alta burocracia imperial. As imagens funerárias, por sua vez, carregam novos contornos, princi-palmente um interesse pela autocompreensão. As imagens de tumbas e sarcófagos transmitem a ideia de paraíso idílico, uma felicidade despre-ocupada fora do ambiente urbano. Embora a ideia não fosse nova nos círculos filosóficos, na expressão visual é uma novidade.

É inegável a participação dos bispos neste processo de cristianização das elites, seus escri-tos e confrontos intelectuais com os pagãos, a fim de sustentar a supremacia do cristianismo frente aos cultos politeístas. No entanto, as ima-gens nos permitem acessar traços sutis, privados e simbólicos, cujo texto, muitas vezes, não pode alcançar. Assim, as imagens aqui arroladas são documentos, cujo conteúdo imagético possibi-lita acompanhar a cristianização próxima dos indivíduos que viviam os dilemas que tentamos enxergar no passado.

Por fim, houve uma adaptação da “romani-dade” ao cristianismo ou o cristianismo tornou--se “romano”? Certamente a influência aristo-crática forneceu o contorno esperado pela Igreja para sair da obscuridade. Ser romano e ser cristão não são opostos no Império tardio, mas sim, complementos de uma nova ideologia de elite, pois a mensagem cristã foi reinterpretada e adaptada aos horizontes da aristocracia imperial.

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Arqueologia e Imagem: a cristianização das elites romanas (s. IV e V). R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 109-117, 2014.

GREGORI, A.M. Archaeology and Image: the christinization of Roman elites (IVth and Vth centuries). R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 109-117, 2014.

Abstract: When Christianity reaches the sphere of Roman elites a prob-lem sets in this group: can it be Roman – considering this romanity a set of practices that give meaning to the imperial elites – and at the same time follow Christian dogmas? This is a problem that appears central to the elites, since public urban life imposes a series of behaviors and practices connected with traditional pagan worship. Therefore, as a magistrate, or mayor of Rome, for example, can he be Christian and at the same time, assert himself as Roman? This communication discusses the meaning of being Roman and Roman-ness in the times of Late Empire (IVth and Vth centuries) in progressive expan-sion of Christianity and its churches. The approach will be developed mainly from material sources of the period, in particular images from various media: frescoes, sarcophagi, coins, medallions and marble diptychs.

Keywords: Christianism – Iconography – Archaeology of Image – Paleochristian Art, Roman elites.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 119-125, 2014.

A minha pesquisa de doutorado foi um estudo sobre revoltas camponesas do Império Romano tardio e há basicamente dois conjuntos de ações revoltosas nesse período: as que acon-teceram no norte da África, cujos rebeldes são denominados circunceliões na documentação escrita, e as que aconteceram na Gália, cujos rebeldes são denominados bagaudas. Uma investigação fundamental que essa pesquisa demandava era acerca do problema da configu-ração das relações sociais nas regiões rurais onde aconteceram as revoltas. E foi essa investigação que me levou a descobrir as mudanças que

aconteceram nas últimas décadas nos modelos de compreensão dessas relações sociais rurais, não só para a África e Gália, mas para o Impé-rio Romano como um todo. O meu foco na apresentação de hoje é em apenas um pequeno recorte espacial do universo total ligado a esse problema: o norte da Gália entre os séculos III e V d.C. E mesmo esse recorte mais restrito não permite que eu apresente taxativamente quais eram as condições sociais da vida no campo nessa região, contudo, ele permite apresentar cuidadosamente algumas das inúmeras questões e incertezas que essas mudanças têm suscitado.

É um lugar-comum na literatura sobre a Gália romana a apresentação desse território como sendo dotado de um desenvolvimento desigual entre norte e sul. Uso propositalmente a palavra desenvolvimento, porque isso permite chamar atenção para a lógica narrativa por trás

Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio

Uiran Gebara da Silva*

SILVA, U.G. Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 119-125, 2014.

Resumo: Esta apresentação busca esboçar uma problematização inicial so-bre algumas das mudanças que vêm acontecendo na caracterização das regiões rurais do norte da Gália na Antiguidade Tardia, entre os séculos III e V d.C. Tais mudanças são em parte resultado de formas novas de análise da documen-tação textual e também dos avanços da arqueologia sobre essas regiões. Essas mudanças têm tido um importante impacto nas pesquisas sobre a Gália do Império Romano tardio, resultando na desconstrução dos modelos antigos de interpretação das relações sociais das zonas rurais dessa região e modificando certas ideias tradicionais da historiografia como o colonato, a patronagem rural, o abandono de terras, a centralidade das villae, e até mesmo a definição identitária dos habitantes.

Palavras-chave: Gália romana – Campesinato – Colonato – Patronagem rural – Arqueologia sub-villa.

(*) Doutor pelo Programa de História Social do Departamento de História da Universidade de São Paulo, com auxílio regular Fapesp, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello. <[email protected]>

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Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 119-125, 2014.

das reformas de Diocleciano e Constantino. Nesse período de crise, o desenvolvimento desigual entre norte e sul persistiria e se apro-fundaria. No sul haveria uma persistência dos modelos romanos de apropriação da terra e de influência imperial, enquanto que no norte haveria o abandono ou empobrecimento das grandes propriedades, com a fuga da popula-ção para cidades. Ali a presença do Império se restringiria à presença do exército e dos fortes militares, mas o campo setentrional (incluindo os camponeses) seria paulatinamente tomado pelas hordas de bárbaros invasores (Wightman 1978; Galliou 1984; Van Dam 1985; Drinkwa-ter 1989; Drinkwater 1992).

Essa visão da Gália se desenvolvia em arti-culação com algumas categorias historiográficas constitutivas daquele modelo: a patronagem rural, o “colonato tardo-romano” e as crises dos séculos III e V.

A ideia de patronagem rural está na base da persistência dessa visão, e consiste funda-mentalmente na transposição dos modelos de clientelismo da cidade de Roma para as relações entre as elites agrárias e os camponeses livres e também na ideia de que tais relações de patro-nagem teriam se fortalecido no período romano tardio (Wittaker 1993 [1987]: 89-120). Contu-do, em tempos recentes, essa perspectiva pas-sou a ser problematizada e refinada, de forma que hoje se tem mais consciência da operação de projeção que a historiografia realizava das relações urbanas para o contexto rural (Krause 1987; Garnsey 2010: 33-54). Além disso, parte da produção atual se questiona se houve efetiva-mente um fortalecimento da patronagem, ou se isso é uma ilusão criada pelo aparecimento de uma documentação legal que tenta regular uma prática social em crise (Carrié 1976; Grey 2011: 5-7; 206-212).

O assim chamado colonato tardo-romano, por sua vez, consiste na perspectiva historiográ-fica que propõe que, como resposta à decadên-cia da escravidão rural, o Império tardio teria legalmente vinculado todo o campesinato à terra, aprofundando a dominação aristocrática no campo e rebaixando as condições de vida dos camponeses a uma forma de semiescravi-dão (Weber 1983 [1896]; Clausing 1925; Jones

desse lugar-comum. O sul da Gália romana é geralmente descrito como uma região mais urbanizada e na qual as estruturas de proprieda-de e gestão da terra, a circulação e produção de mercadorias e os hábitos de consumo de luxo dos romanos se assentou antes, enquanto o norte é apresentado como uma região mais atra-sada, isso é, menos urbanizada, com uma menor presença das estruturas associadas aos romanos. Essa menor presença não é uma ausência, e assim, para os primeiros séculos de dominação romana, é possível encontrar as evidências da existência de grandes propriedades do tipo romano (as villae, relativamente abundantes no sul). A visão de que no norte da Gália desenvol-veu-se uma aristocracia regional poderosíssima e essas poucas villae dominariam a paisagem rural antes e depois da passagem dos romanos é uma das ideias de “longa duração” na historiografia sobre a região (Wightman 1978; Whittaker 1993[1980]: 73-99; Galliou 1984; Drinkwater 1989).

Essa visão do norte da Gália romana estava necessariamente ligada a um modelo de inter-pretação das relações rurais do Império Romano tardio que até 30 anos atrás era quase incon-testável. Tão incontestável que acredito que se possa até pensá-lo em termos de um paradigma historiográfico. Contudo, depois dos anos 80, tal modelo vem sendo posto em contestação e hoje está longe de ser consensual.

O campesinato provincial do alto Impé-rio era um dado pouco problematizado desse modelo (não só para a Gália, mas para todo o Império), o que pode ser imputado em primeiro lugar à sua pouca visibilidade na documentação escrita (Garnsey & Woolf 1989), mas também a uma visão inercial da dominação aristocrática rural, da pré-história à revolução francesa (We-ber 1983 [1896]; Bloch 1947; Dockes 1982; Fin-ley 1999 [1975]; Jones 1992 [1964]; Ste. Croix 1998; Whittaker 1993 [1978]: 331-362).

A visão dividida e desigual da Gália persis-tia para a historiografia do Império Romano tardio. Assim, a Gália romana seria uma região caracterizada por uma duradoura crise social, do III ao V, com uma frágil estabilização no IV, uma estabilização baseada em um governo auto-crático e de um Estado hipertrofiado resultantes

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Uiran Gebara da Silva

1958; Finley 1999[1975]; Finley 1991; Whittaker 1993 [1987]: 89-120; Ste. Croix 1998). Essa perspectiva, que se baseia fundamentalmente na existência de um conjunto de leis nos códigos de Teodosiano e Justiniano, era anteriormente criticada por alguns historiadores que acredi-tavam que se poderia antecipar essa prática para o alto Império, e que o que a legislação apresentava era apenas uma vontade de pôr no papel relações já estabelecidas no costume. Ela, porém, passou por uma severa releitura a partir da intervenção de Jean Michel-Carrié no debate, que, tomando como ponto de partida a inexis-tência de decadência da escravidão no Império tardio e, portanto da falta de necessidade social da vinculação do campesinato à terra, a des-construiu em duas frentes. Em primeiro lugar demonstrou como a construção do colonato na historiografia depende de uma projeção, opera-da principalmente por Fustel de Coulanges, das relações de servidão feudais para o período da Antiguidade Tardia. Em segundo lugar, demons-trou que as leis não são coerentes entre si e não tratam de situações homogêneas, e que a única coisa que realmente as une não é a subordina-ção do campesinato, mas a preocupação com o controle da cobrança de impostos e a punição para aqueles que os sonegassem (Carrié 1982; Carrié 1983). Mesmo que não se concorde com a proposta de Carrié, é forçoso reconhecer que a sua intervenção estremeceu um modelo há muito tempo estabelecido e o debate que se desenvolve há 30 anos não voltou a nenhum patamar consensual (Marcone 1985; Marcone 1988; Martino 1993; Marcone 1993; Mirković 1997; Lo Cascio 1997; Vera 1998; Giliberti 1999; Scheidel 2000; Sirks 2001; Grey 2007a, 2007b; Grey 2011: 15-18; 181-189).

E por fim, a ideia de que o fim do domínio romano seria o resultado de uma prolongada crise entre os séculos III e V, articulando um processo de decadência social em todo o Im-pério à destruição causada pela presença dos povos bárbaros dentro das fronteiras. O desen-volvimento do Estado hipertrofiado, o aumento da presença militar e a redução do estatuto dos camponeses à semiescravidão seriam ex-pressão dessa crise, que teria como resultado um processo de “desromanização” da Gália,

novamente, com ritmos diferenciados no sul, mais lentamente, e no norte, mais rapidamen-te (Jullian 1926; Lot 1982[1927]; Jones 1992 [1964]; Anderson 2000 [1975]). Desse ponto de vista, no norte, as transformações nas regiões rurais expressariam inicialmente o renascimento de uma cultura gaulesa entre as elites, e logo em seguida, o início do processo de dominação das elites germânicas, como substitutos dos antigos poderosos galo-romanos e a transposição de to-das as estruturas de dominação do campesinato para o cenário pós-romano. A ideia de uma crise social prolongada, por sua vez, foi duramente revista com o desenvolvimento dos estudos em torno de uma Antiguidade Tardia, de forma que não é possível mais asseverar de forma indiscu-tível nem que houve uma crise social ao longo do século III, nem que a ação dos bárbaros foi violenta, ou nem mesmo que o Império Roma-no caiu em 476 (Cameron 1996: 33; Cameron & Garnsey 1998; Ward-Perkins 2005: 13-31).

No que diz respeito à Gália, essas revisões historiográficas tiveram um grande impacto, e parte da historiografia não vê mais o século IV como um interregno entre duas crises, mas um período de crescimento econômico e ascensão política (Leveau 2007; Février 1993; Tuffi 1993; Bowden & Lavan 2004; Chavarría & Levit 2004; para a Itália como exceção:Vera 1986). No que concerne às relações sociais nas regiões rurais, o paradigma de dominação aristocrática inercial ainda persiste, mas não mais com a mes-ma força de antes. Um dos campos onde essa mudança no paradigma tem sido libertadora é na investigação arqueológica das regiões rurais do norte da Gália (Ouzolias & Van Ossel 1997; Ouzolias 2001; Van Ossel 1992, 2006; Peytre-mann 2003; Leveau et al. 2009; especificamente sobre a cerâmica: Redknap 1988 e Bayard 1998).

Anteriormente, tal paradigma impunha aos arqueólogos que trabalharam com as villae do norte da Gália uma narrativa de crise, invasão militar e empobrecimento regional. A própria concentração das pesquisas nas grandes cons-truções da elite do norte acabava por confirmar essa narrativa, uma vez que as villae diminuíam em número e suas técnicas de construção pas-savam a usar cada vez mais madeira em lugar de pedras e tijolos (Wells 2001; Van Ossel

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Os camponeses e a terra do norte da Gália do Império Romano tardio. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 119-125, 2014.

2006). A investigação arqueológica das regiões rurais da Gália para o período romano tardio se desenvolveu bastante no final do século XX, mas ainda assim, em um primeiro momento, a leitura dos vestígios materiais era profundamen-te influenciada pela narrativa de crise e deca-dência oriunda daquele paradigma dominante na historiografia. Essa expansão da investigação, contudo, contribuiu para o aumento de con-tradições internas do paradigma, de forma que paulatinamente o material descoberto permitia interpretações diferentes e em oposição à ideia de uma Gália romana em crise. Teve um gran-de papel nisso o uso cada vez mais frequente da survey archaeology, levando a uma melhor compreensão do quadro geral da ocupação rural do norte da Gália no período, principalmente porque permitiu uma ampliação do foco para além das villae, incluindo muitos assentamentos sub-villa e invisíveis anteriormente (Ouzolias & Van Ossel 1997, 2003; Dyson 2003, Wickham 2005: 466-481).

Esses assentamentos menores apresenta-vam uma ocupação dispersa no território rural, característica já presente no período do Alto Império, e eles sofriam apenas uma pequena queda em quantidade no século III e voltavam a quase o mesmo patamar anterior no IV (Van Ossel 2006). O que haveria de novidade nesse período era a presença de alguns deslocamentos, que pouco alteravam na quantidade geral dos assentamentos. Inicialmente, a combinação da diminuição das villae com a descoberta da conti-nuidade da ocupação dispersa nas regiões rurais foi interpretada como uma clara evidência do processo de concentração de propriedade nas mãos daquela elite agrária galo-romana, dese-nhando uma sociedade radicalmente dividida em dois polos: comunidades rurais empobreci-das e potentados poderosíssimos morando em núcleos urbanos fortalecidos (ideia baseada na evidência de vici transformados em civitates mu-radas a partir do século III, cf. Wightman 1978).

Ocorre que, da mesma forma que essa visão começou a deixar de ser consensual na historio-grafia, ela começou a ser contestada também a partir da observação dos vestígios materiais. No contexto desses assentamentos dos séculos III

e IV, é comum encontrar objetos que apontam para uma bem maior diversidade social do que a concepção anterior. Assim, de assentamento para assentamento, há uma perceptível variação no tamanho das habitações e na qualidade dos objetos encontrados em contexto funerário (Van Ossel 2006). Em paralelo, há também um reconhecimento cada vez maior do aumento da presença de monetarização e da produção artesanal seriada, mesmo que de baixa qualida-de, nessas regiões: moedas de bronze e objetos produzidos em oficinas de cerâmica regionais não atestados para os séculos I e II a.C. (Redk-nap 1988; Bayard 1998; Louis 2004).

Acredito que seja importante ressaltar que não somente a descoberta de novos materiais e dados foi importante para essas mudanças, mas também, a forma com a qual se olhou para eles. Um conjunto de orientações propostas por Paul Van Ossel é revelador desse esforço: a) o esforço em observar os sistemas locais de organização dos assentamentos, e da distribuição dos obje-tos antes de fazer comparações com períodos anteriores e posteriores; b) evitar generalizações apenas a partir da mudança de tipos de ma-teriais de construção e arquitetura; c) buscar entender que a relação entre a cultura material e “identidade étnica”, como romano e não roma-no, passa antes pela relação desta com padrões regionais de comportamento e diferenciação de classes; d) as dificuldades ou mesmo impossibili-dade de se identificar relações de propriedade a partir da arqueologia (Van Ossel 2006).

Para concluir, portanto, a partir da mudança na historiografia, da intensificação das investiga-ções nas regiões rurais e da mudança na forma de leitura dos achados, tem sido possível propor a existência de uma sociedade rural bem mais com-plexa, dotada de mais níveis sociais, distribuição de riqueza e complexidade econômica, do que se supunha para o norte da Gália do período roma-no tardio. A mais importante implicação disso é a insuficiência daquele modelo de que no norte houve “na longa duração” uma sociedade rural simples cuja única articulação eram as relações de patronagem direta entre camponeses passivos e aristocracias locais, primeiro gaulesas, depois galo-romanas, depois germânicas.

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Uiran Gebara da Silva

SILVA, U.G. The peasants and the land of northern Gaul in the Late Roman Empire. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 119-125, 2014.

Abstract: This paper presents an initial drawing of some of the changes that are happening with the historical characterization of late ancient northern Gaul, from the third to the fifth centuries AD. Such changes are the result of the development of new modes of analysis of the textual documentation as well of the progress of archaeological research in this region. These changes have had a deep impact on the study of the Gauls of the late Roman Empire, result-ing on the deconstruction of old models for the social relationships on the rural areas, and altering some traditional ideas of the historiography, such as the Roman colonate, the ruralpatronage, the agri deserti, the centrality of the villae, and even the identity definitions of the inhabitants.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.

Introdução

As pesquisas históricas e arqueológicas já há algum tempo buscam encontrar,

nas comunidades que passaram a pertencer ao Império Romano, o que pode ser considerado autóctone, indígena ou local, dentro do novo sistema de domínio imperial. O principal moti-vador desta busca, se assim o podemos chamar, tem fortes motivações nacionalistas. Essas moti-vações nacionalistas tornaram-se especialmente evidentes a partir de dois momentos históricos

recentes: o período pós Segunda Guerra Mun-dial, quando os países europeus buscavam, grosso modo, se recuperar das invasões alemãs; e mais recentemente com a formação da União Europeia, momento em que as fronteiras se tor-naram mais fluidas e os deslocamentos internos mais fáceis.

No caso da arqueologia, normalmente os pesquisadores buscam esses traços e aspectos autóctones – que reforçariam uma identidade nacional – em espaços onde possam aparecer com mais força – ou probabilidade – especial-mente porque as características romanas são menos influentes. Por exemplo, nos espaços domésticos, nos assentamentos periféricos ou de menor importância administrativa – como vici ou oppida – ou espaços funerários.

Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade localdentro de um espaço de poder tipicamente imperial

Irmina Doneux Santos*

SANTOS, I.D. Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 127-134, 2014.

Resumo: Segundo Louise Revell (2009), a conquista romana da Europa Ocidental trouxe uma série de novas formas de vivenciar a “romanidade” entre as populações locais, formas estas que, apesar de serem estabelecidas dentro de padrões romanos de política, administração e religião, apresentam diferen-ças locais de adaptação. As representações das identidades individuais e dos grupos dentro das novas cidades romanas estabelecidas nas províncias variavam entre as comunidades e entre os diferentes grupos locais. O que interessa neste trabalho é tentar perceber se e como essas diferenças locais – e as semelhanças entre diferentes comunidades – aparecem no registro arqueológico, especifica-mente nos edifícios públicos de maior prestígio nas cidades romanas: os fóruns provinciais.

Palavras-chave: Fóruns romanos – Lusitania – Cidades provinciais – Ebora Liberalitas Iulia.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia DA Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial. <[email protected]>

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Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.

Dado este quadro sucinto, permanece a questão: seria possível encontrar, nos fóruns provinciais, elementos tipicamente indígenas, locais, nesses ambientes tão caracteristicamente romanos?

Cidades provinciais romanas

As cidades eram vistas, desde o início das conquistas romanas, como parte essencial da estratégia militar e imperial romana. Os centros urbanos eram utilizados como meio de ocupa-ção e de controle do território, além de trans-formarem a paisagem política da região. “Na época imperial, as instituições através das quais o império era administrado estavam fundamen-talmente colocadas nas cidades, reforçando a importância delas” (Revell 2009: 49).

As cidades romanas introduzidas na Pe-nínsula Itálica e posteriormente nas províncias ocidentais representavam uma consciente e de-liberada quebra na tradição local, mas apresen-tavam um estilo que em pouco tempo se tornou reconhecível como romano pelos povos que en-traram em contato com essas cidades. Muralhas, planejamento ortogonal, centro monumental com fórum, templos, termas, teatros e anfitea-tros, arcos; todas são construções romanas – não necessariamente criadas pelos romanos, mas adotadas e transformadas por eles – que sem-pre deveriam existir no esquema urbano que tornavam as cidades provinciais imediatamente reconhecíveis como “romanas”.

As cidades deveriam intencionalmente seguir um modelo físico estabelecido por Roma para abrigar os elementos administrativos, jurídicos e sociais romanos. E tal urbanismo previa um centro monumental, o fórum, com os edifícios destinados a essas funções. Embora a cidade provincial também fosse uma unidade cívica independente, organizando e adminis-trando seus próprios negócios e território, seu

Podemos citar, como exemplo, as cerâmicas de uso comum (domésticas), onde as características tradicionais pré-romanas normalmente apresen-tam uma permanência em período romano impe-rial ou mesmo o retorno de padrões indígenas no final do Império, quando mesmo após a presença romana, são mantidas características pré-romanas, apesar da mudança nas cadeias operatórias (Fleming 2010). Outros exemplos, para a Gália, podem ser encontrados em I. D. Santos (2010).

Na epigrafia, vemos a presença de nomes locais com grafia latina, a mistura de nomes locais com romanos e, também, a adoção de formas nominais romanas. Há um movimento de integração contínua das elites locais dentro de um sistema cada vez mais romanizado.

Nas residências, busca-se entender como os moradores utilizavam os diferentes espaços domésticos dentro de uma moradia com aspecto romano. Também os vestígios da transformação de moradias, por exemplo, do tipo castrejo para romanas, com cômodos quadrangulares ao re-dor de átrios. As residências podem apresentar também uma mistura de técnicas e materiais, mas há uma adoção muito maior de técnicas e elementos romanos nas residências das elites.

Entretanto, no caso das cidades implantadas ou modificadas a partir do Principado na Penínsu-la Ibérica em geral e na Lusitania em particular, as características autóctones tornam-se, no decorrer do tempo, cada vez menos evidentes. Quando voltamos o foco do estudo para um elemento fundamental das cidades romanas, seus fóruns – o espaço urbano mais representativo do poder ro-mano nas províncias –, os elementos pré-romanos se tornam praticamente inexistentes, até onde podemos afirmar a partir dos dados arqueológicos disponíveis. Na verdade, a presença romana é mais forte nos elementos representativos do poder, como o fórum, e as mudanças nas formas arquite-tônicas parecem que nunca são realizadas a ponto de surgir um elemento que não seja completamen-te adequado a uma estrutura forense romana.1

(1) A bem da verdade, ao que tudo indica, a forma tripartida do fórum não surgiu em Roma, mas nas províncias, e foi levada para Roma. Mas esta questão deve ser relativizada, pois, embora tenha surgido fora de Roma, o esquema era

tão romano que foi adotado pela Vrbs. Ou seja, foi uma "novidade" que surgiu em um contexto provincial romano. Ver Santos 2008.

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centro cívico-religioso, o fórum, não possuía – ao menos a primeira vista – elementos autócto-nes. Havia alterações, adaptações e variações do esquema geral, mas tais mudanças eram princi-palmente físicas, não ideológicas e/ou funcio-nais. A romanização, para Zanker (2000) não é apenas a cópia das estruturas físicas visíveis de uma cidade, mas também algo abstrato e ideali-zado, a noção de como um romano imaginava que a cidade ideal deveria ser.

Esse distinto complexo capitólio-fórum central se desenvolverá em vários tipos particula-res e variações individuais, mas em praticamente todos eles há o progressivo isolamento da praça com relação às ruas que a circundam.

Um dos modelos principais de fórum é o denominado “fórum tripartido” (ou em bloco), que apresenta uma “união” de funções religio-sas, econômicas, políticas e jurídicas: a praça fechada, circundada por pórticos que restrin-gem o acesso a ela, com a basílica em um dos extremos da praça e o principal templo estatal no outro, todo o conjunto denotando um forte sentido axial e hierárquico.

Posteriormente, após o período flaviano, a tendência é que os fóruns cada vez mais se tor-nem espaços de representação imperial religiosa, um grande témenos isolado do resto da cidade, com grandes pórticos e, especialmente, o tem-plo de culto imperial em posição mais elevada.

Havia um padrão, uma homogeneidade, dentro da variedade de fóruns encontrados nas cidades provinciais, pois representam o mesmo esquema político-administrativo que abrangia todo o ocidente romano. Apesar da flexibili-dade de adaptações do modelo tipicamente romano às situações particulares – localização geográfica, importância e/ou prestígio da cida-de, riqueza, relação com o poder central, maté-ria-prima disponível etc. –, os esquemas eram sempre impostos pelo poder central dentro de limites topográficos naturalmente aceitáveis. Mantinha-se sempre o equilíbrio arquitetônico do centro da cidade, com um fórum onde se destacam o templo e a basílica (com a cúria), ou seja, a religião oficial e a administração do Estado.

Portanto, não é a variedade dos esquemas forenses que deve surpreender, mas exatamente

sua homogeneidade; a manutenção de uma tipologia e de uma funcionalidade, apesar das diferenças regionais, que levavam à manutenção de um típico plano urbanístico romano em meio a tanta diversidade local.

Identidades romanas locais

Para Louise Revell, na obra Roman Imperia-lism and Local Identities (2009), devemos bus-car no espaço público as diferentes formas como os diferentes grupos sociais utilizam os edifícios públicos e religiosos romanos, exatamente para tentar entender outras experiências sociais. Ela buscou, nos diferentes usos dos espaços urba-nos, as diferentes identidades sociais agindo e se fazendo representar nas cidades; seu uso e transformação do espaço refletindo as diferentes identidades e se fazendo representar no contex-to social, político e religioso. Para Revell (2009: 150), o poder romano era reproduzido pelas co-munidades urbanas localmente e o discurso de uma identidade compartilhada estava instalado na malha da cidade. Para ela, “embora houvesse um nível geral de similaridade entre as várias cidades, o modo como as estruturas sociais eram reproduzidas era, em cada caso, levemen-te diferente. Desse modo, a compreensão do que era ser romano variava sutilmente entre as comunidades”. Para a autora, a cultura material de uma cidade provincial, mais especificamente a sua arquitetura pública, podia ser utilizada na reprodução de poder imperial ao mesmo tempo em que na articulação das hierarquias e identidades locais. Mas sempre entendendo as diferentes identidades locais tendo como base a “romanidade” (Roman-ess).

Minha proposta é tentar encontrar elemen-tos – arquitetônicos e decorativos – que possam ser identificados, ou sejam indicadores, de uma identidade romana moldada localmente, isto é, que apresentem ou demonstrem características que poderíamos entender como autóctones dentro de espaços ideológica e fisicamente edificados como romanos: os fóruns. Para isto, baseio-me no estudo do fórum romano de Ebora Liberalitas Iulia (Évora, no Alentejo, Portugal), pertencente ao Conuentus Pacensis.

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Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.

Quando estudamos os fóruns – romanos e provinciais – percebemos a presença de ele-mentos do programa de renovação cultural iniciado com Otaviano (Zanker 1992: 123 ss.). Seu programa ideológico destacava a pietas, com reforma de templos, renovação e retomada de cultos; a publica magnificentia, a restauração, construção e embelezamento dos edifícios públi-cos; a adoção do estilo coríntio, especialmente para a arquitetura religiosa, transformando-se na ordem cívica da arquitetura sacra; a restauração da virtus romana, cujo símbolo foi a retomada das insígnias romanas dos partas, em 20 a.C.; e, por fim, leis de renovação moral (de 18 a.C.), concluindo o saneamento interior (este último ponto, segundo Zanker, teve um efeito mais simbólico do que real, prático). Assim, nada se oporia ao início da “Idade de Ouro”.

Da Évora romana, uma cidade construída de raiz, conhecemos basicamente o traçado do aqueduto romano, um edifício termal, o com-plexo forense com o teatro a sul, parte do seu plano de ruas e das muralhas. A estrutura mais conservada do fórum romano é o templo, que permanece in situ.2 O fórum foi minuciosa-mente estudado pelo Instituto de Arqueologia Alemão (entre 1989 e 1995), o que propiciou aos pesquisadores a possibilidade de contar com uma confiável reconstituição (o que é raro em se tratando dos fóruns lusitanos).

Theodor Hauschild (2009: 27-36), ao estudar o templo e o fórum romano de Ebora baseando-se nas intervenções arqueológicas re-alizadas pelo Instituto de Arqueologia Alemão, percebeu as várias fases de intervenções, sendo que a marmorização ocorreu em época flávia, mas abrangeu principalmente a praça forense. Para Hauschild, o complexo era dedicado ao cul-to imperial. E, com base nas escavações possíveis realizadas no entorno do templo, foi possível estabelecer parte da planta do fórum, que seguia o modelo canônico de fórum tripartido, ou em

bloco: um setor dedicado ao templo de culto imperial, cercado por pórticos e mais elevado, como um témenos; uma separação física entre esta parte sacra e a parte secular; e uma grande praça cercada por pórticos, possuindo uma basílica (cuja localização, neste caso, é incerta) e tabernae. A praça forense era preenchida por monumentos honoríficos, estátuas e inscrições.

Luís Jorge Gonçalves e Panagiotis Saranto-poulos (2009) tentaram reconstituir, através dos escassos vestígios materiais conhecidos oriundos do fórum de Évora (esculturas públicas e ele-mentos arquitetônicos), o seu programa icono-gráfico. De especial interesse é o friso dórico com elementos iconográficos de bucrâneos descarnados, paterae e tríglifos alternados (Fig. 1, n° 1) e os capitéis coríntios (in situ). Entre as estátuas, todas em mármore, os vestígios reme-tem a estátuas colossais no fórum ou até mesmo no templo.

Com Augusto, as imagens públicas dos fóruns passaram a ter uma carga política pro-gramada, com a promoção dos novos valores ideológicos imperiais. Foi traçada uma asso-ciação entre a gens Iulia e um passado heroico divinizado, a promoção do Princeps e de sua família e sua estreita associação ao próprio Im-pério. Exaltou-se, também, a Pax Romana, mas sem deixar de evidenciar o poder de subjugar os inimigos através da força, a abundância e a glorificação do triunfo e da missão de domínio romana, que podia ser clemente com os que se submetiam, mas implacável com os que se revoltavam.

O Fórum de Augusto, a Ara Pacis e o templo de Apolo no Palatino são os maiores ícones, em Roma, dessa nova ideologia. Nas cidades provinciais do Império, os fóruns eram os espaços por excelência desse discurso, profe-rido através das imagens. As capitais provinciais, especialmente no início do Império, eram as principais difusoras dessa ideologia imperial augustana.

No fórum de Évora, a apologia à Pax Roma-na e a sua consequente prosperidade e a entro-nização do Princeps estão representadas pelo friso dórico: os bucrâneos são símbolos da Pax Romana augustana, mas uma Pax baseada na superioridade bélica romana; a entronização do

(2) Permanece in situ a estrutura do pódio que elevava o espaço sagrado do templo, vários capitéis e bases de mármore e os fustes das colunas, em granito. As colunas de granito eram revestidas com estuque e pintadas. O pódio, com estrutura de opus caementicium, era revestido por paramento pétreo.

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Princeps aparece no torso heroico e nos mem-bros superiores, semelhantes aos grupos escultó-ricos de togados e outros elementos divinizados.

A decoração arquitetônica – cornija com mísulas – segue os padrões metropolitanos e mesmo da capital provincial, embora com dese-nho mais simplificado e esquemático.

Segundo Gonçalves e Sarantopoulos, não foram encontrados, em Évora, a iconografia relativa à gênese mítica de Roma e à glorificação do triunfo e a humilhação dos vencidos, que estão presentes em Augusta Emerita.

Para os autores, os habitantes de Évora parecem ter investido no programa iconográfico que estava não apenas dentro de suas disponibi-lidades, como também que transmitiam a men-sagem que lhes interessava, ou seja, mostrar sua adesão ao Princeps, à Pax Romana e à Abun-dantia, mas não à humilhação dos vencidos e a glorificação do triunfo.

E concluem:

“Este parece ser o modelo iconográfi-co de outras cidades da Lusitânia Oci-dental, casos de Conimbriga, Aeminium, Pax Iulia e Salacia, onde os vestígios dos programas iconográficos nos fazem remeter para o mesmo tipo de discurso ideológico” (Gonçalves e Sarantopoulos 2009: 42).

Conclusão

Não podemos deixar de ressaltar a escassez de vestígios arquitetônicos decorativos encontra-dos em Évora, o que poderia indicar, na verdade, não a sua inexistência, mas especialmente o seu

desaparecimento ao longo do tempo. Portanto, seria irresponsável afirmar que o “elemento local” deva ser buscado no que não aparece represen-tado no fórum. Em Ebora, foram encontrados elementos iconográficos referentes a determina-dos aspectos da ideologia imperial, mas não de todos. E não podemos determinar se a escolha de determinados elementos em detrimento a outros foi ou não intencional e se transmitiriam uma mensagem “identitária local”.

Mas outro elemento construtivo tem carac-terísticas confirmadamente locais: os materiais de construção utilizados. Apesar de existir um costume generalizado na arqueologia romana de buscar o suposto momento de marmorização urbana, como uma fase em que os monumentos públicos passam por um processo de embeleza-mento, isto é apenas parcialmente válido para a Lusitania. Apenas onde existem jazidas marmó-reas próximas é que se percebe uma marmori-zação, e apenas em alguns monumentos ou em partes deles. Isto ficou evidenciado em Ebora, que está próxima a uma jazida de mármore, e em Augusta Emerita, por ser a capital da Lusi-tania.

Mas o mais usual era a utilização do granito local estucado. Os lusitanos tinham grande habilidade e perícia no trabalho em granito, uma tradição que vinha da Idade do Ferro. São demonstrações dessa arte, por exemplo, as esculturas dos guerreiros castrejos, como também capitéis coríntios lavrados em granito cuja elegância exige uma longa tradição na arte escultórica, como encontrados, por exemplo, em Conimbriga, Braga (Bracara Augusta)3

(respectivamente Figs. 2a e 2b), ou em outros ornamentos, como vimos em Ebora (Fig. 1) e também em Beja (Pax Iulia) (Fig. 3).

(3) Bracara Augusta, apesar de hoje ser a cidade portuguesa de Braga, não pertencia à Lusitania, mas sim a Prouincia Tar-raconensis. Mas faz parte do mesmo contexto arqueológico pré-romano do NE de Portugal que o norte da Lusitania.

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Fig. 1. Vestígios do programa decorativo e iconográfico do Fórum de Ebora. O friso dórico (1), executado em material local, alterna elementos iconográficos da apologia da Pax Romana augustana: tríglifos, paterae e, especialmente, os bucrâneos descarnados. Demais elementos da imagem: (a) localização do fórum na malha urbana, no ponto mais alto da colina; (b) planta do templo; (2) fragmento da arquitrave e solfito; (3) fragmento de cornija com mísulas; (4 e 5) capitéis compósitos de pilastras; (6) mão direita de estátua colossal segurando patera; (7) mão esquerda de estátua colossal segurando bastão; (8) fragmento de mão segurando uma pyxis; (9) fragmento de dedo polegar; (10) fragmento de dedo; (11) fragmento de retrato provavelmente do período júlio-cláudio; e (12) fragmento de torso de estátua heroica (Gonçalves e Sarantopoulos 2009: 43).

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Irmina Doneux Santos

Agradecimentos

À Profa. Dra. Maria Isabel D’Agostino Fleming, que me orientou e apoiou ao longo de minha formação. À Profa. Dra. Helena Car-

valho, da Unidade de Arqueologia da Univer-sidade do Minho, por me mostrar um ângulo inusitado de interpretação. Ao Prof. Dr. Carlos Fabião, da Uniarq, Universidade de Lisboa, por me apontar o caminho.

Fig. 2b. Capitel coríntio em granito, de época romana, encontrado em Bracara Augusta. Museu Regional de Arqueologia D. Diogo de Sousa, Braga (Foto I. Doneux 2012; acervo LARP).

Fig. 3. Fragmento de cornija em granito encontrada em Beja (Pax Iulia). Museu Regional Rainha D. Leonor (Foto I. Doneux 2012; acervo LARP).

Fig. 2a. Capitel em granito do pórtico da praça de fórum de Conimbriga. Museu Monográfico de Conimbriga, inv. 66.371 (Foto I. Doneux 2012; acervo LARP).

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Os fóruns romanos provinciais: representação de identidade local dentro de um espaço de poder tipicamente imperial. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 127-134, 2014.

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Abstract: According to Louise Revell (2009), the Roman conquest of Western Europe brought a number of new ways to experience the “Roman-ness” among local populations, forms that, although established within Roman standards policy, administration and religion, have local different adaptations. Representations of individual and group identities within the new Roman cities established in the provinces were different between communities and between different local groups.

What matters in this paper is to try to understand if and how these local differences – and the similarities between diverse communities – appear in the archaeological record, specifically in the most prestigious public buildings in Roman cities: the provincial fora.

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Referências bibliográficas

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.

Durante o ano de 2013, o Laboratório de Arqueologia Romana Provincial

desenvolveu seus aplicativos ROMA 360 e DO-MUS. Com o objetivo de permitir aos usuários a interação com modelos tridimensionais a fim de auxiliar no processo cognitivo sobre a histó-ria romana, os aplicativos foram elaborados pela equipe de pesquisadores do LARP e disponi-bilizados gratuitamente no site do laboratório (www.larp.mae.usp.br/rv).

A seguir, serão pormenorizados os processos de produção de ambos os aplicativos. Intenta-se, desse modo, colaborar com os demais pesqui-sadores da área arqueológica, oferecendo nossa experiência no desenvolvimento dos programas para que os colegas de profissão possam conhecer com mais profundidade o trabalho envolvido no diálogo entre Arqueologia e Realidade Virtual.

ROMA 360

A proposta do aplicativo web ROMA 360 é a de apresentar o mapa da capital do Império no sé-culo IV d.C. A escolha pela data acontece pelo fato de a maioria dos monumentos ainda presentes na paisagem de Roma serem do período tardio impe-rial, facilitando a consulta às referências fotográficas e imagéticas disponíveis atualmente. Sendo assim, tomou-se por base o mapa datado de 365 d.C. existente na obra de William R. Shepherd, Historical Atlas (New York: Henry Holt and Company, 1923), que auxiliou a disposição espacial dos monumentos no traçado de ruas da cidade na época.

Para não tornar o processo demorado e, principalmente, pesado demais para ser visto nos computadores, optou-se por uma versão estilizada dos edifícios, sendo modeladas no software Autodesk Maya geometrias simples, acrescentando um número aceitável de polígonos à cena final. As texturas dos modelos, por sua vez, foram todas manipuladas digi-talmente no software Photoshop para terem as cores transformadas em preto e branco: a homogeneidade

ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP

Alex da Silva Martire*

MARTIRE, A.S. ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 135-140, 2014.

Resumo: Esta comunicação tem por objetivo apresentar os dois projetos de interatividade tridimensional que foram produzidos pelo LARP durante este ano. Unindo modelagem geométrica 3D e motor gráfico de alto desempenho, ROMA 360 e DOMUS são aplicativos online de proposta didática que unem Arqueologia e Educação. Durante a apresentação serão mostrados os caminhos percorridos para a produção de ambos os aplicativos, bem como as propostas que serão desenvolvidas pelo laboratório no futuro.

Palavras-chave: Ciberarqueologia – Realidade Virtual – Modelagem 3D – Interatividade.

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Laboratório de Arqueologia Romana Provincial-LARP. <[email protected]>

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ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.

game ou um serious game – acaba por se enqua-drar no processo de desenvolvimento de jogos eletrônicos. Segundo Liliane Machado et al. (2009), todo game divide-se em dois caminhos distintos: 1) Criação artística – elementos usados para a montagem do jogo, tais como modelos 3D, texturas, sons, trilhas sonoras etc.; 2) Programação – utilização de um engine (motor gráfico) para a renderização gráfica e coordenação de tarefas, além da integração dos elementos artísticos: em outras palavras, o momento em que a interação é programa-da. Porém, tal como nos jogos eletrônicos, a Ciberarqueologia (ou seja, o diálogo entre Arqueologia e a Realidade Virtual) requer um levantamento prévio de dados para a avalia-ção do que estará presente no aplicativo e como será apresentado. Sendo assim, a meto-dologia empregada no DOMUS consistiu em três etapas:

1. Estudo arqueológico, bibliográfico e imagético sobre o assunto em ques-tão (uma casa romana grande, ou seja, domus, no latim);

2. Criação artística;

3. Programação.

das cores no aplicativo é fundamen-tal para que haja o destaque das cores durante a sobreposição do ponteiro do mouse nos modelos.

Após a modelagem dos edifícios, todos foram expor-tados do Autodesk Maya para a versão gratuita do software Unity: que vem sendo utiliza-do, cada vez mais, em todos os ramos das Ciências, não ficando restrito apenas aos jogos eletrônicos (videogames). Sendo um motor gráfico (en-gine), o Unity é o responsável por permitir toda a elaboração de interatividades desejadas no aplicativo: nele, foram escolhidos os monumentos que ganhariam destaque colorido, foram colocadas as legendas sobre os edifícios e também foi feita a movimentação da câmera. A escolha do Unity para a produção de aplicativos para quaisquer áreas se mostra acertada uma vez que o software permite uma grande variedade de linguagens de programação: no caso do ROMA 360, foram utilizados apenas scripts escritos em JavaScript. Outro destaque é a ca-pacidade de exportar o aplicativo diretamente para a internet, com plugin próprio e forma-tado em linguagem HTML.

Uma vez rodando o aplicativo, o usuário pode visualizar o mapa da cidade de Roma em 360°. Os monumentos em destaque foram divi-didos em três categorias: azuis para edifícios reli-giosos; vermelhos para edifícios de lazer; verdes para edifícios políticos. Para facilitar o uso do aplicativo aos usuários que não desejam despen-der muito tempo à procura dos monumentos, foi criada a opção de se esconder a camada das insulae pressionando a tecla i : assim, apenas os edifícios principais ficam à mostra (Fig. 1).

DOMUS

Por ser um aplicativo tridimensional virtual, o DOMUS – embora não sendo um

Fig. 1. ROMA 360 rodando direto no navegador de internet.

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Alex da Silva Martire

• Etapa 1

Temos de, primeiramente, escolher um ob-jeto de estudo, ou seja, necessitamos responder à questão: O que fazer?

O DOMUS apareceu como a possibilidade de se apresentar ao público leigo (e aos arqueólo-gos da área também) uma casa pertencente às pes-soas mais abastadas que viveram na Roma Anti-ga. Uma domus era uma representação em menor escala de uma parte significativa do mundo romano, onde vida pública e vida particular esta-vam mescladas. Nas domus também trabalhavam escravos, libertos e cidadãos assalariados: havia, em muitos casos, lojas que estavam fisicamente atreladas às casas, auxiliando a movimentação da economia no período romano. Dentro de uma domus, o chefe da casa recebia seus clientes em seu escritório (tablinum) para tratar de assuntos políticos que não tivessem sido terminados em praça pública, senado ou outra instituição de igual poder. Ao mesmo tempo, a domus era um feito de engenharia impressionante, com água da chuva captada por abertura no telhado e banhei-ras com água aquecida no subsolo. Desse modo, a escolha por desenvolver uma reconstrução--simulação de uma domus foi realizada pelo LARP a fim de se mostrar ao público a complexidade da sociedade romana a partir de um dos seus mais imponentes vestígios: as casas térreas.

Definido o objeto de trabalho, é necessário traçar seus objetivos. Essa parte de desenvolvi-mento é uma das mais trabalhosas e que conso-mem mais tempo, pois é nela que respondemos à questão: Por que fazer?

DOMUS foi pensado como um aplicativo educativo desde o seu início. Sendo assim, ele foi desenvolvido porque desejávamos que escolas públicas e particulares (além de faculda-des e pessoas interessadas) tivessem acesso a um conteúdo que não é muito trabalhado em salas de aula: a Antiguidade Romana. Sabemos que aulas sobre Antiguidade Clássica fazem parte do currículo das instituições básicas de ensino no país, contudo, é um tema que nem sempre é possível de ser aprofundado em sala de aula devido às particularidades do próprio programa que a escola adota. Outro tópico relevante para a definição de DOMUS como um aplicativo

educativo é o fato de a arqueologia praticamente não ser estudada em salas de aula: nos livros de História, geralmente a cultura material é relegada ao plano de coadjuvante dos textos, ilustrando aquilo que está escrito. A proposta de se ter um ambiente virtual tridimensional que simule uma domus produzido exclusivamente por arqueólogos especializados em Roma Anti-ga é o diferencial no aplicativo DOMUS: sem intermediadores, todo o conteúdo é feito por arqueólogos e chega diretamente aos professores e alunos, possibilitando novas abordagens de ensino que não fiquem atreladas aos livros didá-ticos (que, geralmente, são escritos por historia-dores ou pedagogos, não arqueólogos).

Os objetivos do DOMUS, então, foram

definidos do seguinte modo:1. Possuir navegação livre dentro da casa;

2. Oferecer textos que surjam na tela de acordo com o local em que o usuá-rio se encontre (textos-triggers);

3. Oferecer textos de apoio;

4. Estabelecer um comparativo entre o tridimensional modelado e os vestígios arqueológicos por meio de uma Galeria de Imagens;

5. Ter acesso online gratuito e irrestrito.

A última questão a ser posta na etapa 1 de desenvolvimento acaba sendo também a única pergunta das etapas 2 e 3: Como fazer?

Primeiramente, é preciso estabelecer qual a região territorial que melhor fornece vestígios arqueológicos do objeto em questão. Em nosso caso, foi a cidade de Pompeia, na Itália. Soterra-da pela erupção do Vesúvio em 79 d.C., o sítio arqueológico da cidade é um dos mais ímpares do mundo, contando com estruturas muito bem conservadas de todos os ambientes romanos da época. Naturalmente, para a construção 3D de um modelo de domus, Pompeia forneceu dados fotográficos e bibliográficos inigualáveis. Foram feitos levantamentos em livros, acervos pessoais de fotos, plantas e imagens na internet que for-maram a base para o desenvolvimento artístico posterior. É imprescindível também deixar claro

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ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.

se a reconstrução 3D é baseada em um vestígio singular (por exemplo, uma domus em espe-cífico) ou se pertencerá a uma generalização: no caso do DOMUS, foi feita a opção por um modelo genérico de casa romana baseada em vestígios de diversas domus – essa escolha reflete o objetivo didático/educativo do aplicativo, pois assim tivemos a liberdade de modificar os ambientes internos a fim de se enquadrarem ao propósito explicativo dos textos-triggers (como no caso dos afrescos e mosaicos).

Após a consolidação do banco de dados sobre as domus, o trabalho de produção foi de-senvolvido simultaneamente em duas frentes: 1) produção dos textos-triggers e textos de apoio – a partir do material bibliográfico; e 2) criação ar-tística (etapa 2)/programação (etapa 3) – a partir do material imagético. Todos os textos de apoio, depois de revistos e corrigidos, foram formatados de acordo com o layout discutido em reuniões e salvos em formato PDF para livre impressão.

• Etapa 2

Esta etapa é a responsável por quase tudo o que veremos na tela do computador quando o aplicativo rodar. A criação artística é um proces-so em que o tempo empregado dependerá dire-tamente da pessoa (ou pessoas) responsável(eis) pela modelagem e texturização tridimensional.

O DOMUS foi totalmente modelado com o software Autodesk Maya. Uma das principais ferramentas disponíveis no mercado, o Auto-desk Maya possui interface amigável que facilita a rapidez da produção de modelos 3D e exporta arquivos já texturizados no formato .FBX – que é aceito sem problemas por engines (motores grá-ficos). Os objetos tridimensionais do DOMUS foram modelados separadamente (casa e demais itens) e depois exportados – também separada-mente – para o motor gráfico.

É importante fazer todo o planejamento prático do aplicativo nesta etapa: será decisivo para a qualidade final quando os modelos forem trabalhados dentro do engine. Assim sendo, é imprescindível ter em mente que:

- um aplicativo em tempo real é diferente de uma animação 3D, pois há limite de número má-

ximo de polígonos que podem aparecer na tela: vértices em demasia significam maior necessidade de processamento computacional e, consequen-temente, lentidão na visualização (pois ocorre queda na taxa de quadros por segundo).

Como evitar esse problema?- utilizar o menor número de polígonos

possível durante a modelagem;- resolver a questão de detalhes de objetos

por meio de texturização ao invés de modelagem;- ter o maior número possível de objetos

pertencentes a uma mesma textura no mesmo mapeamento UV;

• Etapa 3

A última etapa de desenvolvimento é aquela que estabelecerá, de fato, a ligação entre o usuário e o ambiente virtual tridimensional. Nela, toda a interação é programada, bem como a adição de menus, sons e trilhas sonoras. É importante haver um planejamento prévio con-sistente de como o usuário vai navegar por esse ambiente a fim de que a interface seja intuitiva para pessoas de todas as idades.

Para o DOMUS, foi escolhido o motor grá-fico Unity. O motor gráfico é uma biblioteca que possui funcionalidades pré-programadas a fim de se facilitar o desenvolvimento de um aplicativo (ou jogo) a partir do zero. Em nosso caso, o Unity foi a ferramenta que mais se mostrou apropriada para o uso, uma vez que possui amplo material disponível em livros e na internet, além de possuir uma curva de aprendizado relativamente curta para quem já tem conhecimentos de softwares 3D.

A produção do aplicativo DOMUS começou na versão gratuita do Unity. O desenvolvedor (pes-quisador Alex da Silva Martire) importou todos os arquivos .FBX produzidos no Autodesk Maya para a área de trabalho do Unity e os distribuiu espacial-mente. Com todos os modelos em cena, começou o processo de criação da interação.

Contudo, com o projeto finalizado, alguns problemas foram observados dentro da versão gratuita do Unity:

- a ausência de sombras prejudicava o grau de realismo pretendido pelo aplicativo, bem

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Alex da Silva Martire

como a textura estática aplicada para simular a água no impluvium e balneum;

- em diversos momentos havia queda na taxa de quadros por segundo (frames per second – fps), chegando, em alguns casos, a 9 fps (quando o ideal é 30 fps ou mais).

Para solucionar essas questões, foi adquirida a versão Pro do aplicativo Unity. A migração para esta versão trouxe melhorias significativas ao produto final:

- com a utilização de Occlusion Culling, a renderização em tempo real da domus só ocorre nos lugares onde a câmera está posicionada, diminuindo o número de draw calls (“desenho” dos objetos) na tela ao ter a opção static batching se-lecionada e aumentando a quantidade de quadros por segundo (variando, agora, entre 25 e 90 fps);

- com a utilização de Lightmapping, toda a iluminação deixou de ser feita em tempo real (consumindo recursos de processamento) e passou a fazer parte da texturização da casa, tornando o sombreamento suave e realista;

- a água presente no impluvium e balneum foi substituída pelos prefabs de água próprios da versão Pro do Unity, tornando-se dinâmica e refletindo o ambiente ao redor;

- foram aplicados efeitos especiais de câme-ra, trazendo luz ambiente etérea e agregando valor artístico ao aplicativo antes totalmente técnico.

Finalizando o desenvolvimento do DO-MUS, o aplicativo foi exportado para platafor-ma Web, tornando-se passível de ser acessado online no website do LARP através de linguagem

HTML. (Fig. 2)

Futuros projetos

Novos aplicativos estão sendo estudados pela equipe de pesquisadores do LARP a fim de serem desenvolvidos nos próximos meses. Uma das vertentes a serem exploradas nessa nova produção é a da Realidade Aumentada. Sendo assim, deseja-se desenvolver um aplicativo para a plataforma Android que permita ao usuário visu-alizar informações quando direcionar seu smar-tphone ou tablete para um marcador impresso em papel. Primeiros testes com o DOMUS em realidade aumentada estão sendo realizados e mostrando-se profícuos. Do mesmo modo, pretende-se elaborar uma aplicação de realidade virtual com alto grau de imersão, provavelmente utilizando-se óculos estereoscópicos específicos.

Fig. 2. DOMUS rodando no navegador de internet: texto-trigger ativado.

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ROMA 360 e DOMUS: os projetos tridimensionais interativos do LARP. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 135-140, 2014.

MARTIRE, A.S.ROMA 360 and DOMUS: LARP’s three-dimensional interactive pro-

jects. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18: 135-140, 2014.

Abstract: This communication aims to present two three-dimensional proj-ects developed by the LARP during this year. Putting together 3D geometric modelling and high-performance engine, ROMA 360 and DOMUS are online apps that combine Archaeology and Education. During this presentation will be shown the paths taken for the production of both applications as well as proposals that will be developed by the laboratory in the future.

Keywords: Cyberarchaeology – Virtual Reality – 3D Modelling – Interactivity.

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R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.

Este ensaio está vinculado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento

junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro sob a orientação da Profa. Dra. Norma Musco Mendes, intitu-lado “Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitâ-nia romana”. O objetivo geral consiste em analisar a formação da paisagem imperial na província da Lusitânia, através da ref lexão sobre os processos de criação da convivên-cia entre os romanos e as comunidades conquistadas.

Parte-se do pressuposto geral de que, após a tensão da conquista, a pluralidade dos processos de colonização que modificou as comunidades subjugadas, deu início a variadas formas de inte-ração social e cultural entre grupos de pessoas, cuja ação possibilitou tanto a constante recria-ção e definição do Império Romano, como do ideal de ser romano. Deste modo, a pesquisa se baseia na conexão entre poder e cultura com o intuito de compreender a atuação das elites locais na apropriação, releitura, redefinição, financiamento e circulação dos elementos urba-nísticos e arquitetônicos próprios dos padrões romanos.

Frente à amplitude da questão, o recorte documental definido consiste na produção epigráfica (incluindo a urbanístico-arquitetôni-ca) localizada nos espaços públicos das cidades e, em especial, àqueles relacionados à prática do “culto imperial”. Objetiva-se o estudo da atua-ção dos agentes imperiais nos espaços públicos,

“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa*

Airan dos Santos Borges**

BORGES, A.S. “Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 141, 2014.

Resumo: Este ensaio está vinculado ao projeto de pesquisa em desenvolvim-ento junto ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado “Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”, cujo objetivo geral consiste em analisar a formação da paisagem imperial na província da Lusitânia, através da reflexão sobre os processos de criação da convivência entre os romanos e as comunidades conquistadas.

Palavras-chave: Império Romano – Augusta Emérita – Espaço social.

(*) Registro aqui meus sinceros agradecimentos à comissão or-ganizadora, principalmente à Profa. Dra. Maria Isabel D Agos-tino Fleming, aos doutorandos Tatiana Bina e Alex Martire.(**) Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Dou-toranda do Programa de Pós-Graduação em História Com-parada – PPGHC (bolsista CAPES). <[email protected]>

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“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.

Na presente pesquisa, as posturas teóricas supracitadas auxiliaram na problematização dos espaços das cidades provinciais segundo outro caminho de investigação que não o tradicional, isto é, para além das cidades pro-vinciais como espaços que emulam a cultura romana. De outro modo, ganha destaque a observação das cidades provinciais como experiências distintas ao resguardar as espe-cificidades de cada caso. Compreendemos que relações entre os indivíduos e a vivência urbana são imersas em um complexo dinamis-mo cotidiano que envolve um conjunto de elementos que norteiam as visões, tanto do mundo em que vivem quanto da sua própria identidade. Faz-nos pensar que a análise de qualquer conjunto estrutural urbano não deve se restringir apenas aos seus aspectos urbanístico-arquitetônicos. Por outro lado, devemos lançar um olhar que inclua os carac-teres que atuam na mediação entre o “eu” e o espaço em que se vive, o identificando como um lugar seu, expresso nos aspectos simbóli-cos que atribuem sentido aos espaços urbanos e os transformam em espaços sociais.

Frente a isso, torna-se pertinente observar o equilíbrio entre a funcionalidade e as repre-sentações nas análises do espaço nas investi-gações. Em se tratando do estudo das cidades romano-provinciais, duas possibilidades de leitura ganham destaque: (1) uma que enfoca a identificação das estruturas e funcionalidades urbanas e outra, paralela, (2) que dá um passo adiante e preconiza o estudo da dinâmica da cidade, tanto em relação ao seu desenvolvimen-to ao longo do tempo, quanto no tocante às relações sociais que a definem enquanto um espaço social.

Nesses termos, aos aspectos urbanísticos e arquitetônicos, a questão da vivência do espaço se destacou como um elemento importante, ao apontar para a possibilidade de pensar a cidade como um elemento dinâmico, vivo e pulsante, locus privilegiado do diálogo entre a cultura romana e as comunidades locais. As inscrições epigráficas imperiais vinculadas aos atos de benemerência (tomadas conjuntamente com as construções arquitetônicas) se transformam em ferramentas de alto potencial analítico,

em especial nas cidades: Pax Iulia, Augusta Emeri-ta, Ammaia, Beja e Olisipo.

Têm-se, portanto, dois níveis de estudos: (1) Provincial, no qual observar-se-ão a estrutura administrativa provincial/imperial, seus agentes fundamentais, isto é, governadores e magistratu-ras superiores, e as vias de interligação regional e inter-regional. (2) Local, com o olhar ajustado nas experiências das cidades recortadas, tanto no planejamento urbanístico arquitetônico quanto nos agentes coloniais que financiaram as

construções.

I. Entre o espaço social e a paisagem cultural: possibilidades teóricas para pensar o espaço romano-provincial

O presente estudo teve como ponto de par-tida os pressupostos teóricos de Henri Lefebvre (1991) a respeito do espaço social. Tal teoria é construída sob a argumentação de que o ‘espaço social’ inclui o espaço físico-natural, assim como também as projeções, os projetos, os símbolos e utopias, característicos da sociedade que o formulou. Esta interpretação é redimensionada pela compreensão do espaço como produto social, na qual as sociedades produzem o seu de acordo e em consoante às próprias concepções de mundo.

Nesses termos, os estudos de Denis Cos-grove (1984) ganham destaque ao compreender o termo paisagem referindo-se tanto aos pro-cessos naturais quanto sociais, isto é, compre-endendo-o como o resultado da ação humana que transforma o mundo material. Por outras palavras, o termo paisagem é entendido em suas interlocuções simultâneas entre o espaço natural e cultural. Desse modo, seu estudo inclui a observação dos locais transformados em espaços de comunicação, sendo um dos eixos de trabalho a identificação dos aspectos simbólicos e das estratégias de representação dos esquemas culturais que definem um es-paço enquanto uma paisagem cultural. Nessa leitura, os processos de representação podem ser vistos como ferramentas de integração sim-bólica de lugares em uma construção cultural global (Torre 2008).

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Airan dos Santos Borges

uma vez que permite observar, resguardadas suas inevitáveis limitações, a inserção de alguns indivíduos no espaço urbano, seja em sua construção, adaptação ou ressignificação, além de apontar para a importância das relações de patronato nas relações de poder entre as comu-nidades locais e a administração romana.

Para nós, a prática da benemerência se constrói como uma expressão visível da ação dos grupos locais no espaço urbano, dando corpo ao processo de construção das cidades. Dado os limites desse trabalho, nos restringimos à definição do fenômeno benemerente proposto por J. Ferrer Maestro (1991) o qual compreende (via liberalitates) a construção e financiamento privado de obras públicas nas cidades, cujo desenvolvimento não se restringiu às províncias, mas esteve presente também no centro do poder romano e nas cidades da Itália. Como já sinali-zado por Melchor Gil (1994: 78), o fenômeno pode ser pensado como uma forma de conduta social desenvolvida no nível das comunidades cívicas impulsionadas por fatores ideológicos e baseadas em um sistema econômico que tendia a concentrar a riqueza em poucas mãos.

Além da construção da imagem pública dos agentes, os atos benemerentes de caráter pessoal (ou de grupo), especialmente os de tipologia edilícia, agiam como formas de dina-mização da economia local ao gerar empregos diversos e proporcionar a ação dos mercadores que traficavam a matéria-prima e demais pro-dutos. Desse modo, a prática da benemerência liberou as cidades de muitos gastos ao financiar a construção de templos, aquedutos, fóruns, espaços de ócio (termas, teatros, anfiteatros e circo), favorecendo, assim, seu desenvolvimento urbanístico- monumental. Em outro nível de atuação, seja na dedicação de estátuas ou na construção de epígrafes votivas em homenagem à domus imperial ou a indivíduos específicos, a honra adquirida mediante a realização dos atos benemerentes conferia aos seus idealizadores a possibilidade de ingresso na memória cívica da cidade que poderia ser empregado pelo bene-merente ou seus familiares nas ações políticas a nível municipal e/ou imperial.

A seguir, a título de amostragem, apresenta-remos o estudo de caso em uma das cidades que

compõem nosso recorte espacial de estudos, a saber, a colônia de Augusta Emérita.

II. Epigrafia e Poder: um estudo sobre as ins-crições imperiais na colônia Augusta Emerita no Alto Império

A colônia de Augusta Emérita foi fundada no curso médio do extenso vale do rio Anas (atual rio Guadiana), em sua margem direita. Na região escolhida, a corrente do rio, suavizada pelo vale, oferece uma pequena ilha que divide o leito e facilita a passagem (Almagro-Basch 1976: 191). Logo no período de fundação, esta geografia viabilizou a construção da ponte que venceu o rio e teve um papel fundamental na interligação da região com as áreas vizinhas, sobretudo na integração do comércio entre o sul e o norte peninsular (Álvarez Martinéz 1988). Isto é, através das estradas agora interligadas, chegava-se à desembocadura do Rio Guadalqui-vir na antiga Hispalis; a Itálica, primeira funda-ção romana na Hispania em 207 a.C., e ainda ao porto de Cádiz, porta do Mar Mediterrâneo.

Nesses termos, a fundação da colônia está circunscrita ao início do território da Lusitânia Extremenha, constituindo-se em elo interme-diário entre a oficialidade romana e o meio indígena do sudoeste peninsular. Seu estabeleci-mento foi ordenado pelo Imperador Augusto no ano 25 a.C. (729 de Roma), ao final da guerra contra os Cântabros e Ástures1 cujo término contribuiu para a pacificação do território, a intensificação da exploração de importantes mi-nas de ouro e para a submissão total da região ao domínio romano. Através das cunhagens monetárias emitidas por Publio Carisio, lugar tenente de Augusto e fundador da colônia,2 sabe-se que na nova cidade foram assentados os

(1) Dião Cassio, 54, 23, 7. A passagem foi exaustivamente analisada por Giovanni Forni (1982).(2) Recomenda-se observar as cunhagens publicadas em Bur-nett, Amandry, Ripollès (1992, parte II, Indexes and Plates): são as moedas de número 1 ao 50. Ainda sobre o assunto, outro importante (e recente) manual foi editado por Howgego, Heuchert e Burnett (2005).

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“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.

soldados veteranos das legiões3 IV Macedonica, V Alaudae, X Gemina.4

Em meio às demais civitates que compu-nham a província da Lusitânia, Augusta Emérita se destaca pelo caráter monumental de seu urbanismo desde a fundação. A colônia é um exemplo emblemático, uma vez que o próprio nome pressagia e proclama a ideia de que a for-ça militar já se revelava desnecessária nessa parte do mundo, já imersa na Pax Augusta e amparada por ela (Trillmich 1998: 165). Desde os primei-ros anos, a colônia foi dotada de uma infraes-trutura urbanística constituída por muralhas, muros de contenção do rio, duas pontes (sobre o Guadiana e o Alvarengas), inclusive edifícios dedicados ao ócio, como o teatro e o anfiteatro,

(3) Sobre este assunto, Faria (1998) aponta os posicionamentos de Keppie (1983: 83, n. 146), para o qual: “[t]hree veterans of a legion XX are attested at Emerita within the Augustan period (CIL II 22, 662, 719). These cannot be colonists of 25 B.C., who were drawn from legions V and X, but could document a later reinforcement”. No entanto, Faria ressalta que esta mesma hipótese já fora aventada por Wiegels (1976: 272), que, paralelamente não deixou de contemplar a eventualidade de um pequeno contingente de licenciados da legião XX ter participado na fundação da colônia em 25 a.C. ao lado dos veteranos das legiões V e X. Vide: Dion Cassio (História de Roma 53: 25, 2).(4) Alguns pesquisadores ainda incluem a XX Victrix.

doados por Augusto e Agripa em finais do sécu-lo I a.C. Trata-se de construções que, espalhadas pela cidade, manifestaram a política urbanística adotada pelas cidades a partir de Augusto.

Aqui se torna interessante observar Augusta Emérita como um exemplo da atuação beneme-rente do próprio Imperador na região da futura província da Lusitânia, o que confere um caso peculiar à cidade: as grandes construções públi-cas não são financiadas por particulares. A ação ou os atos benemerentes, nesse sentido, ficaram resguardados a pequenas intervenções como a ereção de estátuas e placas votivas em diversos espaços. A seguir, apresentaremos os casos de duas epígrafes que compõem nossos corpora documentais em análise:

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Características do suporte

Fonte: SÁBADA, L. Catálogo de las inscripciones imperiales de Augusta Emerita – cuadernos eme-ritenses 21. MNAR/Fundación de Estudios Romanos: Mérida, 2003: 52.

Tipologia: pedestal paralelepípedo de mármore de 12 cm x (39) x 31

Inscrições:

Fig. 1. Epígrafe I

Divo.Augusto [.et.Divae.Aug]Albinus Albui.f.flamen D[ivi Augusti et]Divae Aug. Provinciae Lusitan[iae dedicavit]

Inscrição (Edmondson 1997) Transcrição

Aos divino Augusto e divina Lívia, Albinus Albui, flâmine do divino Augusto e da diva augusta, da Província da Lusitânia, dedicou

Local do achado e paradeiro: foi redescoberta em 1943, durante as obras do esgoto das Escue-las Nacionales, em uma área que foi palácio dos Condes de la Roca – vinculado a D. Fernando de Vera. A peça foi depositada pela Corporação Municipal no MNAR de Mérida.

Interpretação: na análise da inscrição, concordamos com a análise de Sábada (2003: 53-55) nas seguintes proposições:

A partir das informações propostas, concordamos com a datação da inscrição entre os anos de 42-54 d.C.

DIVO AVGVSTO [.et.Divae.Avg]

ALBINVS ALBVI

F. flamen D[ivi AugAvsti et]

Divae AVg

Texto Epigráfico Transcrição

Divino Augusto e divina Lívia

Albinus Albui

Flâmine do divino Augusto

e da divina Augusta

Interpretação

- No registro, Augusto e Lívia já aparecem divinizados.

- Provavelmente Albinus pertencia à elite local, dada a sua fórmula onomástica tendo somente o cognomem, e a filiação paterna também utilizando o cognomem único do pai.

- Referência à organização provin-cial do culto imperial, a partir do registro do cargo do flaminato, dedicado a personagens da classe dirigente citadina (de alto nível).

- Faz referência a Lívia como Augusta e já divinizada.

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“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.

Características do suporte

- Fonte: SÁBADA, L. Catálogo de las inscrip-ciones imperiales de Augusta Emerita – cua-dernos emeritenses 21. MNAR/Fundacion de Estudios Romanos: Mérida, 2003: 58.

- Tipologia: Pequeno pedestal de mármore de 32 cm x 19/19,5 x 11/11,5, com base e moldura (superior, de arremate do pedestal, edifício) pro-

eminentes por seus quatro lados. Carece de de-coração lateral, mas tem entradas de molduras nas partes superior e inferior. No dorso possui uma perfuração para fixá-la na parede (segundo Hübner 1894). Tem outra na superfície superior para receber um retrato do imperador ou uma palma.

- Local do achado e paradeiro: Não foi forneci-do em nenhuma obra consultada ou existente.

Fig. 2. Epígrafe 2

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Interpretação:

Na análise da inscrição, concordamos com a análise de Sábada (2003: 58-61) ao considerar que a inscrição proporciona informações sobre o funcionamento político do momento dado às características da dedicação assistir ao gover-nador da província e ao flâmine provincial. O governador é um personagem conhecido cujo nome completo era L. Pompeius Vopiscus C. Arruntius Catellus Celer, cônsul designado em julho do ano 77 e fráter do Colégio dos Arvais durante os anos 75-91. Precisamente estes dados nos permitem datar a cronologia do pedestal.

O flâmine provincial não deixou menção de sua tribo, o que limita nossos conhecimentos sobre a função de Conimbriga. Como utilizam Etiènne et alii (1976: 49-51) não se pode saber se L Iunius Latro possuía a cidadania há tempos ou se havia sido concedida pelos flávios. De acordo com o cargo que ocupava tinha uma distinção pessoal ou recebeu por meio de Conimbriga. Paralelamente a isso, o pedestal completa o co-nhecimento sobre o desenvolvimento e funcio-namento do culto imperial na Lusitânia. Como sugere Fishwick (1981: 96 apud Sábada 2003) seguramente Vespasiano estava incluído na de-dicação (Tito era coregente) e com ele se havia produzido uma mudança a respeito do reinado

de Cláudio. Nessa ocasião, as dedicatórias só eram feitas a imperadores divinizados, enquanto na época flávia recebiam estas honras em vida.

III. Conclusões preliminares

Como vimos do ponto de vista territorial, as transformações da região interagiram com a reorganização provincial realizada por Augusto – de caráter político e administrativo. Com a divisão da antiga província da Hispania Ulterior e a criação das províncias da Lusitânia e Bética (27 - 16 a.C.), Augusto reestruturou o território, modificando a paisagem indígena. A fundação de Emérita, em 25 a.C., se insere nessa política ao ser criada para ser o centro nuclear da área e substituir a antiga intercessão viária local. A nova colônia herdou o papel que Metellinum exerceu como base para as lutas entre Metelo, Sertório e os Lusitanos, passando a ser o nú-cleo central da presença romana em um ponto estratégico do rio Anas. Sua fundação estava diretamente ligada ao programa de fundações que Augusto desenvolveu na península; em etapas progressivas, tendo como meta essencial planejar a organização administrativa e a am-pliação das redes de comunicações e defesa do território.

- Inscrições:

T(ito). Caesari. Aug(usti). F(ilio) Vespasiano. Pontif(ici) Imp(eratori). XII. Trib(unicia). Pote(state). VII Co(n)s(uli),VI 5 Província.Lusitania C(aio) Arruntio.Catellio Celere.leg(ato).Aug(usti).pro.pr(aetore) . L(ucio). Iunio Latrone . Conimbrige(n)se.flamine . Provinc<i>ae.Lusitanieae .10 Ex.auri.p(ondo) V

Inscrição Transcrição

A Tito Cesar Augusto, filho de Vespasiano, Pontífice Imperador, XII vezes Tribuno, VII vezes cônsul da província da Lusitânia. Caio Arruntio Catellio Celere, legado de Augusto e propretor; Lucio, servidor de Juno, flâmine de Conimbriga [...] Província da LusitâniaDe 5 pesos de ouro.

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“Entre espaços, representações e agentes: a paisagem imperial em cidades da Lusitânia romana”: uma proposta de pesquisa. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n. 18, p. 141-149, 2014.

Concordamos com Giovanni Forni (1982: 73), seguido por Manuel Salinas de Faria (1998: 161-167) e Patrick Le Roux (2004: 263-265), ao considerarmos que embora Emerita fosse fundada pelos veterani emeriti de Augusto, os soldados vitoriosos do Imperador, a presença de veteranos na região não atribuía à colônia uma vocação militar. Simbolizava claramente, pela manutenção de longos tempos de paz, um diálogo intenso com a representação imperial formulada por Augusto, esta sim, fundamentada e baseada na vitória e no triunfo de Roma. Sua criação em meio a uma região que fora palco de inúmeros conflitos militares, seria um marco testemunhal da glória romana.

A análise das inscrições epigráficas impe-riais nos permite observar tanto as expectativas de poder dos grupos locais, quanto as funções públicas desempenhadas pelos indivíduos, os vínculos estabelecidos entre as famílias e os vínculos e as formas de relação entre as municipalidades. Nessa lógica, as ações bene-merentes podem ser vistas como uma forma dinâmica de criar, reforçar e ampliar a imagem pública dos agentes e de afiançar suas aspirações no jogo político local (regional) e imperial (glo-bal); ao mesmo tempo em que contribuem para a integração das elites municipais no sistema social imperial romano, e para a inserção das mesmas no suporte ideológico imperial.

BORGES, A.S. “Among spaces, representations and agents: the imperial landscape in cities of the Roman Lusitania”: a research proposal. R. Museu Arq. Etn. Supl., São Paulo, n.18: 141-149, 2014.

Abstract: This essay is linked to the research project in development by the Graduate Program in Comparative History of the Federal University of Rio de Janeiro, titled “Among spaces, representations and agents: the imperial land-scape in cities of the Roman Lusitania” whose overall objective is to analyze the formation of imperial landscape in the province of Lusitania, through reflection on the processes of creation of conviviality among the Romans and conquered communities.

Keywords: Roman Empire, Emerita Augusta, social space.

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