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  • 507Tratado sobre a Origem das Coisas Categoriais de Teodorico de Freiberg

    pp. 507-552Revista Filosfi ca de Coimbra n.o 40 (2011)

    TEODORICO DE FREIBERGTRATADO SOBRE A ORIGEM DAS COISAS CATEGORIAIS

    LUS M. AUGUSTO*

    Introduo1

    1. O Tema: As Categorias

    Uma das temticas fundamentais ditas filosficas constituda pelas cate-gorias. Praticamente todos aqueles que na tradio ocidental so comummente vistos como grandes filsofos se debruaram seriamente sobre esta questo, com textos fundamentais a marcar a histria da filosofia ocidental e os currculos universitrios contemporneos: mencionamos, entre outros, Categorias de Arist-teles, Crtica da Razo Pura de Kant, e Investigaes Lgicas de Husserl sem esquecer a centralidade que Hegel lhes atribuiu na elaborao do seu sistema, nem to-pouco a importncia de Nietzsche, feroz crtico de categorias em geral e das categorias kantianas em particular, e ainda, no repensar da questo numa perspectiva existencialista, de Kierkegaard ou Sartre.

    No uma, mas vrias problemticas se formaram em torno das categorias. A problemtica metafsica central radica no facto de as teorias sobre as categorias

    * Instituto de Filosofia, Universidade do Porto.1 Publica-se aqui a traduo do texto em latim do filsofo alemo Teodorico de

    Freiberg (1250?-1310?) intitulado Tratado sobre a Origem das Coisas Categoriais. A publicao, acompanhada por uma introduo que compreende anlises de cada um dos captulos, far-se- em trs partes, reflectindo de certo modo a estrutura do texto. Trata-se, ao que sabemos, da primeira publicao da traduo integral deste texto para uma lngua moderna. Esta traduo fez-se a partir do texto editado por L. Sturlese em DIETRICH VON FREIBERG, Opera Omnia III: Schriften zur Naturphilosophie und Metaphysik, Hamburg, Felix Meiner, 1983, pp. 137-201.Temos a agradecer a Burkhard Mojsisch a leitura atenta que fez de uma primeira traduo integral deste texto, tambm da nossa autoria, para in-gls. Agradecemos ainda a Kurt Flasch, quem primeiro nos desafiou a encetar a traduo de um texto tido, talvez no sem fundamento, por extremamente difcil.

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    almejarem o inventrio exaustivo dos objectos (coisas; entes) que compem o mundo, na medida em que so pensadas como os diferentes modos ou formas que o ser pode tomar; neste sentido, as categorias so os tipos ou as classes mais gerais ou comuns dos entes. A questo parece relevante, pois se possuir-mos um tal inventrio ento teremos em mos a resposta questo o que h no mundo?, uma questo na base de todas as ontologias regionais, ou seja, das cincias, tomadas individualmente, mas tambm de disciplinas como a tica e a esttica. Contudo, no h acordo em relao a um tal inventrio, com as diver-sas propostas a diferir entre si por vezes de modo conflituoso. Por outro lado, a resposta questo o que so as categorias? permitir-nos-ia compreender o modo como conhecemos o mundo, pois que, para alm de se pensar que elas so as formas ou modos de ser das coisas, h quem pense que elas so, tambm ou pelo contrrio, os modos de pensar e/ou conhec-las: neste sentido, fala-se de categorias do pensamento ou da razo, de categorias conceptuais, ou ain-da lingusticas. Esta direco, cedo tomada por alguns pensadores (cf. abaixo), abriu mais recentemente as portas psicologia cientfica, sendo a questo das categorias um dos problemas contemporneos centrais da psicologia cognitiva e das cincias cognitivas. Se primeira vista este alargar da problemtica das categorias a outras disciplinas parece prometedor em termos de proliferao de teorias, o facto que, tambm aqui, se instalaram a suspeita e a desunio entre as diversas abordagens. Face a estes conflitos, parece que a questo simplesmente intratvel de um ponto de vista filosfico, sendo relegada para terrenos menos frequentados da filosofia contempornea.

    Esta intratabilidade , porm, radical, com as categorias a fomentarem agi-tadas discusses desde que Aristteles se decidiu a reflectir sobre elas at ao momento em que o sculo XIII as retoma a fundo e Teodorico de Freiberg escreve um tratado exclusivamente dedicado questo sob uma perspectiva em grande medida nova. Passemos ao essencial deste percurso que vai de Aristteles a Teodorico de Freiberg.

    A lista aristotlica

    Ao que parece, segundo o seu criador, Aristteles, a lista das dez categorias a enumerao exaustiva dos gneros mais gerais do ente, ou seja, dos modos de ser de um ente. Por outras palavras, e num sentido mais lgico, a categoria aquilo que se predica das coisas particulares, dos entes ( ), explicando--se assim a traduo de pelo termo latino praedicamentum (cf. verbo praedicare). Assim, e seguindo Aristteles, predica-se () ou diz-se () de uma coisa ou de um ente que uma coisa determinada, ou seja, uma substncia (ex.: homem, cavalo), que tem uma determinada quantidade (por exemplo, a sua altura ou o comprimento) e uma certa qualidade (uma cor, por exemplo), que tem uma certa relao com outra coisa ( o dobro de x ou metade de y, etc.), que se encontra num determinado lugar (ex.: na praa pblica), num determinado momento (ontem, etc.), numa certa posio (deitado, sentado, etc.), num estado especfico (ex.: calado), e diz-se ainda dela que age ou pratica uma aco (ex.: corta) ou que, numa paixo, objecto de uma aco (ex.: cortado).

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    pp. 507-552Revista Filosfi ca de Coimbra n.o 40 (2011)

    Eis a tabela destas categorias aristotlicas no seu vocabulrio grego original e na traduo latina que se tornou mais ou menos estabelecida:

    Quadro 1

    Categoria Nome Grego Nome Latino1. Substncia Substantia

    2. Quantidade (= numa certa quantidade) Quantitas

    3. Qualidade (= de uma certa qualidade) Qualitas

    4. Relao (= relativamente a algo) Relatio; Ad aliquid

    5. Lugar (= num certo lugar) Ubi

    6. Tempo (= num dado momento) Quando

    7. Posio (= estar posicionado) Situs

    8. Estado (ou posse) (= ter) Habitus

    9. Aco (= fazer) Actio

    10. Paixo (= sofrer) Passio A Lista das Categorias Aristotlicas

    O primeiro problema que esta lista apresenta o dos estatutos lgico e ontolgico das categorias: bvio que h uma diferena entre a substncia, que no se encontra em nada (aspecto ontolgico) nem se predica de nada (aspecto lgico) (cf. Cat. V, 2a12-13), e as outras categorias, as quais por sua vez se pre-dicam todas da substncia ou se encontram nela enquanto sujeito ou substrato (cf. Cat. V, 2a34-5). Posto noutros termos desenvolvidos por Aristteles sobretudo na Metafsica , a substncia existe por si e em si mesma, no necessitando de mais nada para existir, enquanto as restantes nove categorias necessitam dela, no podendo, ao que parece, ser concebidas por si e em si mesmas. Assim, esta lista parece comportar no dez gneros do ente, mas apenas dois, a substn-cia, ou essncia (), e o acidente () ou aquilo que acontece () substncia , este ltimo gnero subdivido em nove espcies. Isto, por sua vez, implica dois outros problemas intimamente ligados entre si: qual o modo de existir das categorias material ou intelectual? , uma questo que pertence tanto fsica como metafsica, e que mais cedo ou mais tarde obriga a uma reflexo epistemolgica sobre o modo de se conhecer as categorias, no-meadamente a substncia devido sua metafsica aparentemente especial.

    Estes problemas eram j patentes para Plotino (cf. Enada VI, I. 1-3), a quem a concepo de categorias, em geral, e a sua pluralidade e nmero finito, em par-ticular, repugnavam. Porfrio seu discpulo, mas aparentemente discordante no que respeita crtica que aquele lana sobre Aristteles vai introduzir uma nova

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    problemtica e marcar o rumo da reflexo sobre as categorias de modo definitivo. Retomando quase na totalidade uma listagem que Aristteles faz em Tpicos (I, 5) dos predicveis, as coisas que podem ser atribudas a um sujeito, e ignorando aqui a lista das dez categorias, na sua introduo a Categorias,2 Isagoge, Porfrio estabelece em nmero de cinco aqueles que sero conhecidos como os universais ao longo da Idade Mdia, a saber, o gnero (genus), a espcie (species), a dife-rena (differentia), o prprio (proprium) e o acidente (accidens). Neste texto que, traduzido por Bocio para latim, despoleta o famoso problema dos universais no pensamento latino, Porfrio v as categorias apenas como os predicveis, na medida em que o que tm em comum o facto de se predicarem de muitos (Isagoge [a Boethio translata], VI, 1; ed. de Libera & Segonds: Commune quidem omnibus est de pluribus praedicari). Este aspecto lgico ao qual, alis, parece ser sua inteno reduzir a problemtica (cf. ibid., 1) era j manifesto em Categorias, mas o facto que Porfrio abre a porta problemtica lingustico-gramatical que vir a marcar a histria das categorias at aos nossos dias: desconhecia-se (e desconhece--se ainda) o ttulo original do texto de Porfrio, mas nos manuscritos mais recentes o ttulo era dado como , as quinque voces, ou os cinco vocbulos ou palavras; se certo que falamos aqui de manuscritos dos sculos XIV e XV, o facto que muito provavelmente um tal ttulo germinasse j muito antes, e, a ser assim, as categorias, originalmente objecto da metafsica, da lgica e da fsica, passaro desde cedo a ser reclamadas tambm pela gramtica.

    Tal parece de facto ter sido o caso: Simplcio reconduziu as categorias lista das dez consideradas por Aristteles em Categorias, mas f-lo dentro de uma pers-pectiva contaminada pela interpretao lingustica que Porfrio lhes emprestara e que fora j de certo modo fixada por Alexandre de Afrodsia: para Simplcio, e seguindo a posio de Alexandre, as categorias so mais propriamente partes do discurso (cf. In Praedicamenta [trad. G. de Moerbeke], 13; ed. Pattin).

    Do-se assim duas coisas interessantes a nvel da problemtica das cate-gorias aps a difuso da traduo de Bocio da Isagoge: a discusso passar a incidir mais propriamente sobre os cinco predicveis de Porfrio e apenas mais indirectamente sobre as categorias propriamente ditas de Aristteles, constituindo essa discusso a dita querela dos universais, e, por outro lado, as bastante menos discutidas dez categorias originais so frequentemente tomadas como partes do discurso ou simplesmente modos de falar, uma interpretao j conhecida por Teodorico e que ele alis atribui ao prprio Aristteles (cf. De origine, 3, 12).

    Metafsica, Fsica, Lgica ou Gramtica?

    A questo central do problema dos universais resume-se a saber se estes so coisas reais, res, existindo de modo extra-mental nas coisas, ou meros nomes,

    2 Note-se que Porfrio redigiu dois comentrios sobre as categorias propriamente ditas de Aristteles, In Aristotelis Categorias per interrogationem et responsionem, tambm traduzido muito incompleta e livremente por Bocio, e In Aristotelis Categorias ad Gedalium, do qual, ao que se sabe, no sobreviveu nenhum manuscrito.

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