Viajando com o Rei

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REI Domingo 10/06/2012 Quinta temporada de True Blood estreia hoje na HBO. B8 MEMÓRIA. Sua vida de viajante foi contada em verso e prosa. Luiz Gonzaga começou e terminou sua carreira do jeito que mais gostava: tocando e cantando para o povo, na praça, na feira, no circo, na cidade grande, num vilarejo ou onde quer que o povo estivesse. Dando continuidade à série de quatro edições dedicadas ao centenário de nascimento do Mestre Lua e à tradição do São João no Nordeste, neste domingo a Gazeta resgata histórias daqueles que pegaram as estradas de Alagoas ao lado de Gonzagão. Nos relatos dos radialistas Jorge Silva e Romildo Freitas e do forrozeiro Eliezer Setton, lembranças dos momentos inesquecíveis vividos ao lado do Rei do Baião. Vale a pena conferir desta feita a convite de Edécio Lopes, o locutor pernambucano acatou o conse- lho do amigo e, juntos, partiram para as cidades do interior. “Em 1972, ele passou por aqui: ‘Vamo viajar?’, disse. Pedi demissão da rádio e aí éramos somen- te eu e ele. Esse foi o momento mais lindo do mundo. Ele esta- va numa fase de muito ostracismo, quase apagado. A gente saía por aqui: São Miguel dos Campos, Arapi- raca, Palmeira dos Índios, descia pelo sertão, somente eu e ele”, rememora. História semelhante se deu com o paraibano Romildo Freitas, radicado em Maceió há 50 anos. O então apresentador e re- pórter da Rádio Gazeta AM conheceu ‘Seu Lula’ (como o chama até hoje) nos shows do período juni- no. Nascia aí ou- tra parceria cujos principais momentos tiveram como palco as ro- dovias alagoanas. Entre as memórias de Romildo, ex- cursão em campanha polí- tica, show para trabalha- dores de uma usina em Capela e a despedida no último encontro, no Reci- fe. Ao contar por que não foi ao enterro de Gonza- gão, em Exu, ele diz prefe- rir lembrar do parceiro de viagem do seu modo. “Queria lembrar de Luiz Gonzaga no palco, com a sanfona no peito, cantan- do e soltando lorota, não dentro de um caixão. É as- sim que me lembro: ele no palco com a sanfona bran- ca e com o chapéu de cou- ro, contando as histórias dele. Que Deus o tenha em bom lugar”. Dando sequência à sé- rie de quatro edições espe- ciais dedicadas ao cente- nário de nascimento de Luiz Gonzaga (em 13 de dezembro) e à tradição das festas juninas na re- gião, neste domingo a Ga- zeta traz estas e outras re- cordações daqueles que ti- veram o privilégio de acompanhar os passos de Luiz Gonzaga do Nasci- mento em terras alagoa- nas. De bônus, temos ain- da uma entrevista exclusi- va com a escritora e jorna- lista francesa Dominique Dreyfus, autora da biogra- fia Vida do Viajante – A Sa- ga de Luiz Gonzaga, lança- da em 1996 pela Editora 34. É claro que não dá pa- ra perder, né? ‡ Continua nas págs. B2 e B5 Alagoas na obra do Rei do Baião Um modo eficaz de verificar a veia ‘estradeira’ do Rei do Baião é passear pelas canções, suas ou de outros compositores, que homenageiam estados e cidades do país. O Nordeste quase todo já foi cantado em suas gravações, de Propriá, em Sergipe, a Piancó, na Paraíba. Em Pernambuco, Pesqueira, Arcoverde, Petrolina e Caruaru, entre outras, mereceram distinção. Piauí, Macapá, Juazeiro. A lista é interminável. Com Alagoas não foi diferente. São duas as canções marcadas pela sua voz. Citando locais pitorescos como a Bica da Pedra, o Catolé e o mítico Bar das Ostras, Maceió, do compositor Lourival Passos, foi gravada em 1960 e aparece como lado B num compacto de 78 rotações. Já Pedaço de Alagoas, composta por Edu Maia, aparece em seu último trabalho, o LP Vou te Matar de Cheiro, editado pela gravadora Copacabana, e também tece elogios a pontos famosos como a Praia do Francês e a Lagoa Mundaú. Luiz Gonzaga era um amplificador das tradições nordestinas e suas interpretações tinham o poder de gerar clássicos instantâneos. DIVULGAÇÃO REPRODUÇÃO Qui tem de est na DIVULGAÇÃO VIAJANDO COM O RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER Mais do que nunca, ho- je é consenso afirmar que a música acontece ao vivo na esteira do declínio da indústria fonográfica, é no palco que as coisas se deci- dem e os artistas dão mos- tras de seu potencial. Há 60 anos, porém, um can- tor nordestino já fazia da estrada o eixo de uma car- reira dedicada a exaltar o modo de vida do sertane- j o. Ao lado de sua sanfo- na, sozinho ou acompa- nhado, Luiz Gonzaga co- meçou cedo e, até o fim, fez o que mais gostava: fo- ram 50 anos de chão, nos quais ele percorreu todos os recantos do Brasil, além de palcos em solo europeu. Mas apesar dos relatos de que o Mestre Lua ado- rava posar para fotografi- as, a tarefa de encontrá- las requer esforço. Espécie de arquivo coletivo digital, uma pesquisa pelo termo “Luiz Gonzaga” no YouTu- be resulta em quase 20 mil ocorrências, embora a maioria seja de colagens de suas canções. Poucas são as que trazem regis- tros de apresentações, par- ticipações em programas de auditório, entrevistas ou mesmo reportagens, o que só reafirma a esperte- za de Gonzagão ao explo- rar as possibilidades da es- trada – o sanfoneiro, afi- nal, ‘explodiu’ ainda na década de 1940, quando não havia televisão e o rá- dio era o meio de comuni- cação massivo da época. Como ocorre com a TV de hoje, naquele tempo as emissoras possuíam elen- cos fixos de artistas con- tratados, e foi nessa condi- ção que Luiz Gonzaga se apresentou no rádio pela primeira vez, no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi. O sanfoneiro nascido no so- pé da serra do Araripe, em Pernambuco, também pas- saria pelo casting das rádi- os Tamoio, Nacional e Mayrink Veiga, tudo isso enquanto gravava seus compactos de 78 rotações e iniciava sua parceria mais famosa, com o cea- rense Humberto Teixeira (1915-1979). Os compromissos no rá- dio, contudo, jamais fize- ram frente ao chamado da estrada, e Gonzagão não costumava resistir aos seus apelos. Foi nos anos 1950 que começaram as excursões patrocinadas por empresas que viam no ídolo popular o meio mais eficaz de divulgar seus produtos. De remédios a calçados, Luiz Gonzaga anunciava de tudo. Com outros músicos, numa ca- ravana completa, ou sozi- nho com sua sanfona, ele v ivia à procura de uma praça ou de uma feira em que pudesse falar com o povo. As viagens eram longas (podiam durar um ano inteiro), não raro com apresentações em duas ou três cidades no mesmo dia. Foi nesse período, in- clusive, que surgiu a lenda segundo a qual ele teria tocado em todas as cida- des brasileiras com mais de 400 habitantes. Nessas viagens, claro, surgiam amizades, estabe- leciam-se laços e nasciam parcerias musicais. De uma delas, com o maestro e compositor mineiro Her- vé Cordovil (1914-1979), surgiu Vida de Viajante , verdadeiro hino-síntese da relação do Rei do Baião com a estrada. A canção cujo verso inicial dizia “Minha vida é andar por este país/ Pra ver se um dia descanso feliz” tornou- se um lema que acompa- nhou o sanfoneiro até o fim de sua vida, em 02 de agosto de 1989. Sua últi- ma apresentação aconte- ceu um pouco antes de sua morte, em 06 de ju- nho, no Recife. ROTA LOCAL Entre os caminhos percorridos por Gon- zagão em sua saga estradeira, alguns o trouxeram a Alago- as. Os shows para multidões em lo- gradouros públi- cos encontravam palco ideal nas praças dos Martíri- os, no Centro, da Faculdade, no Prado, e na Treze de Maio, no Poço. Os trabalhos costumavam se dar em apresentações solo ou em caravanas promovidas por gravadoras, oportunida- des nas quais ele se junta- va a outros ícones da mú- sica nordestina, a exemplo das cantoras Marinês e Carmélia Alves, dos sanfo- neiros Dominguinhos e Osvaldinho e do Trio Nor- destino. Aparições em fes- tas de aniversário de emis- soras de rádio também eram comuns ao longo dos anos 1960 e 70. Como não poderia dei- xar de ser, muitos dos epi- sódios dessas turnês estão presentes na memória dos que viram e conviveram com o Rei do Baião. As lembranças do cantor e compositor Eliezer Setton, por exemplo, não o dei- xam esquecer do primeiro show de Gonzagão a que assistiu, ainda criança, na praça dos Martírios. Quase dez anos depois, foi a vez de conhecê-lo de perto – o cenário foi o palco do Tea- tro Deodoro, na primeira edição do Festival Alagoa- no da Canção Nordestina. O evento, aliás, foi promo- vido pelo radialista Edécio Lopes (1933-2009), outro amigo de longa data culti- vado por aqui. Amizades duradouras consolidadas nas estradas de Alagoas. Conversar com os radialistas Jorge Silva, 72, e Romildo Frei- tas, 78, é ouvir histórias de admiração e cumplici- dade mútuas. Em viagens no decorrer da década de 1970, quando o auge do interesse por sua música no Sudeste havia passado, e antes da onda de home- nagens e reverências que receberia no fim da vida, Luiz Gonzaga encontrou na dupla a companhia ide- al para suas andanças. Ao lado de Jorge ou de Romil- do, ele desbravou todas as regiões do estado. Jorge Silva, por sinal, foi um dos muitos que, aconselhados pelo Mestre Lua, rumaram para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Após se fixar em Maceió, em 1972,

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História da estrada ao lado de Luiz Gonzaga

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Page 1: Viajando com o Rei

REI Domingo 10/06/2012

Quinta temporada de True Blood estreia hoje na HBO. B8

MEMÓRIA. Sua vida de viajante foi contada em verso e

prosa. Luiz Gonzaga começou e terminou sua carreira do

jeito que mais gostava: tocando e cantando para o povo, na

praça, na feira, no circo, na cidade grande, num vilarejo ou

onde quer que o povo estivesse. Dando continuidade à série

de quatro edições dedicadas ao centenário de nascimento

do Mestre Lua e à tradição do São João no Nordeste, neste

domingo a Gazeta resgata histórias daqueles que pegaram

as estradas de Alagoas ao lado de Gonzagão. Nos relatos

dos radialistas Jorge Silva e Romildo Freitas e do forrozeiro

Eliezer Setton, lembranças dos momentos inesquecíveis

vividos ao lado do Rei do Baião. Vale a pena conferir

desta feita a convite de Edécio Lopes, o locutor pernambucano acatou o conse-lho do amigo e, juntos, partiram para as cidades do interior. “Em 1972, ele passou por aqui: ‘Vamo viajar?’, disse. Pedi demissão da rádio e a í éramos somen-te eu e ele. Esse foi o momento mais lindo do mundo. Ele esta-va numa fase de muito ostracismo, quase apagado. A g e n t e s a í a p o r aqui: São Miguel dos Campos, Arapi-raca, Palmeira dos Índios, descia pelo sertão, somente eu e ele”, rememora.

História semelhante se deu com o paraibano Romildo Freitas, radicado em Maceió há 50 anos. O então apresentador e re-pórter da Rádio Gazeta AM conheceu ‘Seu Lula’ (como o chama até hoje) nos shows do período juni-no. Nascia aí ou-tra parceria cujos principais momentos tiveram como palco as ro-dovias alagoanas. Entre as memórias de Romildo, ex-cursão em campanha polí-tica, show para trabalha-dores de uma usina em Capela e a despedida no último encontro, no Reci-fe. Ao contar por que não foi ao enterro de Gonza-gão, em Exu, ele diz prefe-rir lembrar do parceiro de v iagem do seu modo. “Queria lembrar de Luiz Gonzaga no palco, com a sanfona no peito, cantan-do e soltando lorota, não dentro de um caixão. É as-sim que me lembro: ele no palco com a sanfona bran-ca e com o chapéu de cou-ro, contando as histórias dele. Que Deus o tenha em bom lugar”.

Dando sequência à sé-

rie de quatro edições espe-ciais dedicadas ao cente-nário de nascimento de Luiz Gonzaga (em 13 de dezembro) e à tradição das festas juninas na re-gião, neste domingo a Ga-zeta traz estas e outras re-cordações daqueles que ti-veram o privi légio de acompanhar os passos de Luiz Gonzaga do Nasci-mento em terras alagoa-nas. De bônus, temos ain-da uma entrevista exclusi-va com a escritora e jorna-lista francesa Dominique Dreyfus, autora da biogra-fia Vida do Viajante – A Sa-ga de Luiz Gonzaga, lança-da em 1996 pela Editora 34. É claro que não dá pa-ra perder, né? ‡ Continua nas págs. B2 e B5

Alagoas na obra do Rei do Baião

Um modo eficaz de verificar a veia ‘estradeira’ do Rei do Baião é passear pelas canções, suas ou de outros compositores, que homenageiam estados e cidades do país. O Nordeste quase todo já foi cantado em suas gravações, de Propriá, em Sergipe, a Piancó, na Paraíba. Em Pernambuco, Pesqueira, Arcoverde, Petrolina e Caruaru, entre outras, mereceram distinção. Piauí, Macapá, Juazeiro. A lista é interminável. Com Alagoas não foi diferente. São duas as canções marcadas pela sua voz. Citando locais pitorescos como a Bica da Pedra, o Catolé e o mítico Bar das Ostras, Maceió, do compositor Lourival Passos, foi gravada em 1960 e aparece como lado B num compacto de 78 rotações. Já Pedaço de Alagoas, composta por Edu Maia, aparece em seu último trabalho, o LP Vou te Matar de Cheiro, editado pela gravadora Copacabana, e também tece elogios a pontos famosos como a Praia do Francês e a Lagoa Mundaú. Luiz Gonzaga era um amplificador das tradições nordestinas e suas interpretações tinham o poder de gerar clássicos instantâneos.

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VIAJANDO COM O RAMIRO RIBEIRO

REPÓRTER

Mais do que nunca, ho-je é consenso afirmar que a música acontece ao vivo – na esteira do declínio da indústria fonográfica, é no palco que as coisas se deci-dem e os artistas dão mos-tras de seu potencial. Há 60 anos, porém, um can-tor nordestino já fazia da estrada o eixo de uma car-reira dedicada a exaltar o modo de vida do sertane-jo. Ao lado de sua sanfo-na, sozinho ou acompa-nhado, Luiz Gonzaga co-meçou cedo e, até o fim, fez o que mais gostava: fo-ram 50 anos de chão, nos quais ele percorreu todos os recantos do Brasil, além de palcos em solo europeu.

Mas apesar dos relatos de que o Mestre Lua ado-rava posar para fotografi-as, a tarefa de encontrá-las requer esforço. Espécie de arquivo coletivo digital, uma pesquisa pelo termo “Luiz Gonzaga” no YouTu-be resulta em quase 20 mil ocorrências, embora a maioria seja de colagens de suas canções. Poucas são as que trazem regis-tros de apresentações, par-ticipações em programas de auditório, entrevistas ou mesmo reportagens, o que só reafirma a esperte-za de Gonzagão ao explo-rar as possibilidades da es-trada – o sanfoneiro, afi-nal, ‘explodiu’ ainda na década de 1940, quando não havia televisão e o rá-dio era o meio de comuni-cação massivo da época.

Como ocorre com a TV de hoje, naquele tempo as emissoras possuíam elen-cos fixos de artistas con-tratados, e foi nessa condi-ção que Luiz Gonzaga se apresentou no rádio pela primeira vez, no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi. O sanfoneiro nascido no so-pé da serra do Araripe, em Pernambuco, também pas-saria pelo casting das rádi-os Tamoio, Nacional e Mayrink Veiga, tudo isso enquanto gravava seus compactos de 78 rotações e iniciava sua parceria mais famosa, com o cea-rense Humberto Teixeira (1915-1979).

Os compromissos no rá-dio, contudo, jamais fize-ram frente ao chamado da estrada, e Gonzagão não costumava resistir aos seus apelos. Foi nos anos 1950 que começaram as excursões patrocinadas por empresas que viam no ídolo popular o meio mais eficaz de divulgar seus produtos. De remédios a calçados, Luiz Gonzaga anunciava de tudo. Com outros músicos, numa ca-ravana completa, ou sozi-nho com sua sanfona, ele vivia à procura de uma praça ou de uma feira em que pudesse falar com o povo. As viagens eram longas (podiam durar um ano inteiro), não raro com apresentações em duas ou três cidades no mesmo dia. Foi nesse período, in-clusive, que surgiu a lenda segundo a qual ele teria tocado em todas as cida-des brasileiras com mais de 400 habitantes.

Nessas viagens, claro, surgiam amizades, estabe-

leciam-se laços e nasciam parcerias musicais. De uma delas, com o maestro e compositor mineiro Her-vé Cordovil (1914-1979), surgiu Vida de Viajante, verdadeiro hino-síntese da relação do Rei do Baião com a estrada. A canção cujo verso inicial dizia “Minha vida é andar por este país/ Pra ver se um dia descanso feliz” tornou-se um lema que acompa-nhou o sanfoneiro até o fim de sua vida, em 02 de agosto de 1989. Sua últi-ma apresentação aconte-ceu um pouco antes de sua morte, em 06 de ju-nho, no Recife.

ROTA LOCAL Entre os caminhos

percorridos por Gon-zagão em sua saga estradeira, alguns o trouxeram a Alago-as. Os shows para multidões em lo-gradouros públi-cos encontravam palco ideal nas praças dos Martíri-os, no Centro, da Faculdade, no Prado, e na Treze de Maio, no Poço. Os trabalhos costumavam se dar em apresentações solo ou em caravanas promovidas por gravadoras, oportunida-des nas quais ele se junta-va a outros ícones da mú-sica nordestina, a exemplo das cantoras Marinês e Carmélia Alves, dos sanfo-neiros Dominguinhos e Osvaldinho e do Trio Nor-destino. Aparições em fes-tas de aniversário de emis-soras de rádio também eram comuns ao longo dos anos 1960 e 70.

Como não poderia dei-xar de ser, muitos dos epi-sódios dessas turnês estão presentes na memória dos que viram e conviveram com o Rei do Baião. As lembranças do cantor e compositor Eliezer Setton, por exemplo, não o dei-xam esquecer do primeiro show de Gonzagão a que assistiu, ainda criança, na praça dos Martírios. Quase dez anos depois, foi a vez de conhecê-lo de perto – o cenário foi o palco do Tea-tro Deodoro, na primeira edição do Festival Alagoa-no da Canção Nordestina. O evento, aliás, foi promo-vido pelo radialista Edécio Lopes (1933-2009), outro amigo de longa data culti-vado por aqui.

Amizades duradouras consolidadas nas estradas de Alagoas. Conversar com os radialistas Jorge Silva, 72, e Romildo Frei-tas, 78, é ouvir histórias de admiração e cumplici-dade mútuas. Em viagens no decorrer da década de 1970, quando o auge do interesse por sua música no Sudeste havia passado, e antes da onda de home-nagens e reverências que receberia no fim da vida, Luiz Gonzaga encontrou na dupla a companhia ide-al para suas andanças. Ao lado de Jorge ou de Romil-do, ele desbravou todas as regiões do estado.

Jorge Silva, por sinal, foi um dos muitos que, aconselhados pelo Mestre Lua, rumaram para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Após se fixar em Maceió, em 1972,

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GAZETA DE ALAGOAS, 10 de junho de 2012, Domingo 2 Caderno BB

NA ESTRADA COM GONZAGÃO CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Nos depoimentos dos radialistas aposentados Jorge Silva

e Romildo Freitas, reminiscências das passagens de Luiz Gonzaga por Alagoas

De shows em comícios a apresentações em praças, o Mestre Lua percorreu o estado em suas andanças

Conheci Luiz Gonzaga em 1962, na cam-panha política do dr. Peçanha

de Queiroz para o Senado. Eu era

locutor da Rádio Jornal do Commercio, no Recife. Fize-mos amizade durante a cam-panha e ele me convidou rei-teradas vezes para ir ao Rio, mas eu me achava muito jovem para trabalhar lá. Mas ele insistia, dizendo que eu tinha futuro. Em 1966 ele voltou ao Recife, me encon-trou e fizemos uma excur-são. Viajamos por algumas cidades do agreste pernam-bucano. Eu só apresentava os shows. Quando a excur-são terminou, ele me convi-dou de novo, mas ainda não estava preparado para ir. No final de 1968, eu pensei e resolvi ir. Sem avisar, sem coisa nenhuma. Simplesmen-te com o endereço dele e fui. Ele me recebeu muitíssi-mo bem, como se tivéssemos nos falado no dia anterior. Me levou na rádios Nacional, Tupi, Guanabara. Fiz teste, passei e trabalhei em todas elas, sempre sob a égide dele. Nessa época tinha 29 anos. Pois bem, quando foi no meio de 1970, ele me chamou para

fazer uma excursão, mas a Helena, mulher dele, falou: “Rapaz, acabe com isso. O menino já tá aí pronto, traba-lhando na rádio. Deixe ele em paz”. Mas ele gostava mesmo de mim, tínhamos uma ami-zade muito grande. Enquanto ele estava no Rio, me apre-sentei com ele na TV Rio e na TV Tupi, tocando triângu-lo. Aprendi e comecei a tocar com ele. Quando foi no co-meço dos anos 1970, eu vim para a Rádio Difusora, com o Edécio Lopes. Em 1972, ele passou por aqui: “Vamo vi-ajar?”, disse. Pedi demissão da rádio e aí éramos somen-te eu e ele. Esse foi o momen-to mais lindo do mundo. Ele estava numa fase de muito ostracismo, quase apagado. A gente saía por aqui: São Miguel dos Campos, Arapira-ca, Palmeira dos Índios, des-cia pelo sertão, somente eu e ele. Ele tocando sanfona e eu triângulo. Em toda a cidade arranjávamos um za-bumbeiro, porque zabumbei-ro tem em todo canto, não é verdade? Às vezes eu tam-bém era motorista do carro, uma Variant cor de abóbora. Eu o deixava num hotel gran-de, numa cidade como Ara-piraca, e vendia cinco, seis shows naquela região. Quan-

do esses acabavam, a gente conseguia outros, e nessa brincadeirinha foram quase dois anos. O primeiro show foi em São Miguel; de lá des-cemos para Piaçabuçu, Ara-piraca, Palmeira, Santana do Ipanema, Delmiro Gouveia e Água Branca. Depois entra-mos na Bahia. Foi uma coisa bacana demais. Quando aca-bou fomos para Exu, des-cansar. Era julho de 1973. Passeávamos pela cidade e encontramos uma casa de fazenda. Ele disse: “Rapaz, essa casa servia para fazer meu museu um dia... Quem sabe?” Era uma casa fora do perímetro urbano, como se fosse um sítio abandonado. Aí procuramos o dono, com-pramos a casa – a dinhei-ro vivo, porque a gente fazia show todo dia. E essa casa é hoje o Museu do Baião. Nunca mais fui lá. Algumas pessoas que visitaram me disseram que é lindo. Mas aí a gente se afastou, nunca mais teve contato. A não ser quando ele vinha por aqui, ou numa li-gação telefônica. Almoçou na minha casa um dia. A última vez que o vi foi no aeroporto do Recife, em 1985. Viemos do Recife até Maceió batendo papo. Ele seguiu para o Rio e eu não o vi mais.

afora, terminamos em Del-miro Gouveia, já na fron-teira com a Bahia. Dessa vez levamos o trio comple-to e eu apresentava. Outra vez fomos para Arapiraca. Aí já era diferente, tinha vio-leiro, sanfoneiro... Era uma caravana, e eu servindo de testemunha. Às vezes eu apresentava o show, outras vezes não, quem fazia era o próprio contratante e eu ficava só como um apên-dice ao lado do Gonzagão. Fazíamos essa festa juntos e fico honrado de ter sido amigo dele. Ele ligava pra cá, me apresentava como amigo a dona Helena, sua esposa. Dizia: “Esse aqui co-nhece minha vida todinha, mais do que eu”. No Rio de Janeiro ele era um ilus-tre visitante da sua residên-cia. No auge, todo o Nor-deste queria Luiz Gonzaga. Principalmente show de rua, que ele gostava mais do que show em teatro. Ele gosta-va de cantar para o povão, por quem tinha muito res-peito. Nunca deixou de citar no palco: “Não esqueça o povão!”. A última vez que encontrei com meu amigo

Lula foi no Recife e em Cam-pina Grande. Ele já estava na cadeira de rodas, devi-do ao seu problema de ar-trite. Foi a última vez que estive com ele. É como Gil-berto Gil dizia: gênio é a pessoa que desconhece a sua própria genialidade. Se ele se acha, não é. Quem tem que achar são as pesso-as que o acompanham. Tive essa glória e prometi pra ele, em vida: “Lula, não se preocupe. Quando você par-tir, pode deixar que na rádio que eu estiver eu reverencio você”. Quando ele foi inter-nado no hospital, a Edelzui-ta, sua última companheira, ligou para avisar. Dois dias depois, ligou de novo. “Luiz não teve jeito, faleceu”. Saiu uma excursão daqui dire-to para Exu, para acompa-nhar o enterro. Não fui. Que-ria lembrar de Luiz Gonzaga no palco,com a sanfona no peito, cantando e soltando lorota, não dentro de um caixão. É assim que me lembro: ele no palco com a sanfona branca e com o chapéu de couro, contando as histórias dele. Que Deus o tenha em bom lugar. ‡

Da praça dos Martírios ao Deodoro, dois encontros com o Mestre Lua

O forrozeiro Eliezer Setton rememora duas ocasiões nas quais teve a chance de ter contato com Gonzagão

PEI FONG

AILTON CRUZ

Gonzaga era uma

lenda viva. Na minha in-

fância na Paraíba eu já ouvia e já gostava. Cresci ouvindo Asa Branca, Assum Preto, Légua Tirana e outras músicas bonitas. Em 1961 vim para Maceió, trabalhar na Rádio Difusora. Depois fui para a Gazeta AM e foi onde o conheci, nas trans-missões do São João. Eu fazia a cobertura dos shows e das quadrilhas, e nos en-contrávamos pelos arraiais espalhados pela cidade. Ele também ia aos estúdios da rádio, onde eu apresentava o programa Forrobodó. Daí começou a amizade. Quan-do ele voltava, ligava para a rádio, avisava em que hotel estava hospedado e saíamos juntos pelos shows dele. E assim eu ia me de-sagregando de casa. Houve um episódio em que fui obrigado a virar zabumbei-ro. O Edécio Lopes fechou um contrato para levá-lo para Capela, um show na rua. Alugamos uma Kombi e fomos. Nessa época sua popularidade arrefeceu um pouco e ele vinha só com a sanfona. Quando chega-mos, fomos procurar ‘os cabra’ pra tocar. Achamos um trio, uns menininhos to-cando sanfoninha, zabum-binha... Ele perguntou: “Ro-mildo, tu ajeita?” Eu disse: “Ajeito!” Arrumei os meni-nos com a safona e o triân-gulo e eu fiquei com a za-bumba. Depois fomos para a Usina João de Deus, to-camos meia hora para os operários, somente eu e ele. Certa feita saímos daqui numa excursão para um candidato a governador. Ele fazia muita campanha políti-ca. Fomos para União dos Palmares, saímos por ali

Romildo Freitas

Radialista aposentado,

78 anos

Jorge Silva Radialista

aposentado, 72 anos

A minha lembrança mais remota de um show em praça pública é na praça dos Martírios, final dos anos 1960, com cer-teza depois de 67. Era Luiz Gonzaga na-quele palco natural que tinha na praça, onde embaixo tinha a galeria Rosalvo Ri-beiro. Lembro especificamente dele can-tando a música Apologia ao Jumento (o Jumento é Nosso Irmão). É o show mais remoto que tenho na memória. A praça fi-cava cheia. Se com toda a aparelhagem moderna que existe hoje às vezes é di-fícil tirar um bom som, eu fico me perguntando com que equi-pamento ele se apresentava nes-ses shows. Com certeza devia ser uma coisa míni-ma e, no entan-to, a gente ouvia nitidamente cada instrumento, cada fala, cada música tocada. Depois, tive um contato direto com

ele aqui em Maceió, no ano de 1977, quan-do Edécio Lopes fez o primeiro Festival Ala-goano da Canção Nordestina. No júri esta-vam Guido Moraes, Capiba, Luiz Bandeira. E o Gonzaga fez show nesse festival, ao lado de Carmélia Alves, a quem coroou Rai-nha do Baião, e de Osvaldinho do Acor-deon, que estava sendo lançado por ele. Foi o primeiro festival de que participei, e no qual tive minha primeira música grava-da. A parte melhor da lembrança é que, após a apresentação, saí com ele pelos

corredores do Teatro Deodo-ro. Ele vestindo aquela

calça e camisa cinza. A gente conver-

sando, brincan-do, naturalmen-te. Essas são minhas lem-branças de dois momen-tos. Uma, do primeiro show que vi em

praça pública; a outra, desse

contato nos basti-dores do Deodoro.

Eliezer Setton: conversa com Gonzagão nos

corredores do Deodoro

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Page 3: Viajando com o Rei

Domingo, 10 de junho de 2012, GAZETA DE ALAGOAS Caderno B 5 B

RAMIRO RIBEIRO REPÓRTER

Elvis Presley viveu 20 anos na mansão Grace-land, em Memphis. Micha-el Jackson construiu Ne-verland, na Califórnia. O pouso de Luiz Gonzaga em seus últimos anos era o Parque Asa Branca, na cidade de Exu, sertão de Pernambuco. Foi lá que a francesa Dominique Drey-fus passou dois meses ao lado do ídolo de infância, em 1987 – a jornalista e pesquisadora especializa-da em música brasileira morou dez anos no muni-cípio de Garanhuns, a 230km do Recife. Mas não era o pouso na terra natal que o apaziguava. Domini-que recorda dos passeios que faziam pela região a bordo de uma Veraneio. “A coisa de que ele mais gos-tava na vida era estar na estrada”, lembra, deixan-do escapar a emoção que a guiou na biografia Vida do Viajante – A Saga de Luiz Gonzaga, publicada em 1996 pela Editora 34. “Na apresentação do livro eu falo como foi meu con-tato com ele. Eu era uma fã, ele era meu ído-lo. Descobri que, além do artis-ta, havia uma pessoa, um h o m e m . E esse homem era excepcio-nal, fora do comum. Um gênio, tan-to no ta-l e n t o e no caris-m a quanto na capa-c i d a d e d e e n-tender as c o i s a s . Tem artis-t a s q u e quando você conhece se de-cepciona. Com Gon-zaga foi o contrário: ele passou a habitar o meu co-ração. Até hoje quando dou uma olhada no livro choro ao ler o final”. Num pingue-pongue exclusivo, Dominique falou à Gazetasobre sua vivência ao lado de Gonzagão. É o que vo-cê lê a seguir.

Gazeta. Você passou sua infância em Pernambuco, não foi? Como chegou a Luiz Gonzaga, ou ele che-gou a você? Dominique Dreyfus. Ele chegou em 1948, quando minha família veio para o Brasil e ele estava come-çando a estourar. Saímos do Brasil dez anos mais tarde, em 1958, mas nun-ca perdi contato com o ra-mo brasileiro da minha fa-mília. Comprava os discos e novidades que chega-vam à Europa. Na univer-sidade estudei Letras e me tornei professora de portu-guês. Na hora de fazer o mestrado, acabei virando pesquisadora de música brasileira e aos poucos fui sendo chamada pelos jor-nais para escrever sobre is-so. Passei a me dedicar só ao jornalismo e a cobrir os discos e shows que chega-vam por lá. Em 1985 hou-ve um grande festival com artistas brasileiros em Pa-ris e o Gonzaga era uma das atrações. Não era a primeira vez que o via, mas foi quando me veio a

ideia de fazer um livro, porque percebi que não havia nada muito aprofun-dado sobre ele. Pensei: “Tem que fazer um livro, ele está ficando velho. Já que ninguém fez, eu vou fazer”. Me comuniquei e ele aceitou a ideia.

Você passou quanto tempo junto com ele? Fiquei dois meses acompa-nhando-o, conversando e gravando. Quando voltei para casa tinha umas 80 horas de entrevistas não só com ele, mas com a fa-mília e os amigos. Tanto em Exu quanto no Recife, na Bahia, no Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo. Viajei bastante. Acompanhei al-guns shows. Não muitos, porque na época ele já es-tava doente. Fiquei esse tempo convivendo com ele e com a Edelzuita, sua segunda esposa e que na época ainda era a ‘outra’. Compartilhei a vida do ar-tista, mas também a vida privada, do homem. E num momento complica-do porque o casamento com Helena estava acaba-do na cabeça dele. Era um período de grande crise e

ele ficava com mui-tas dúvidas em

relação à vida. Ele já estava com proble-

m a s

d e saúde, mas

não sabia o que era – e portanto eu também não. Assisti ele reclamar das dores nas pernas, sem sa-ber exatamente o que era. Ele morreu dois anos de-pois do nosso encontro.

“Minha vida é andar por es-te país” era realmente um lema que norteava sua vida e sua carreira? Absolutamente. Não é por acaso que escolhi esse títu-lo para o livro. A coisa de que ele mais gostava na vi-da era estar na estrada, es-se nomadismo. Era muito engraçado quando estáva-mos em Exu. O Parque Asa Branca tinha uma Vera-neio e um motorista, o Seu Maia. Toda hora o Gonzaga inventava qual-quer motivo para a gente pegar esse carro e sair. Ía-mos à farmácia – ele ado-rava comprar remédio – ou visitar uma plantação não sei onde. Qualquer coisa. Ele sentava no ban-co da frente, ao lado do motorista, tirava os sapa-tos e colocava o pé direito no painel do carro. Eu sen-tava no banco de trás e via o prazer que ele tinha. Daí a pouco ele começava a cantar com aquele vozei-rão... Quando terminava, ficava curtindo a paisa-gem. Era maravilhoso. Era muito claro que o Gonza-ga estava feliz quando es-

“A COISA DE QUE ELE MAIS GOSTAVA NA VIDA ERA ESTAR NA ESTRADA”

CONTINUAÇÃO DA PÁG. B1. Autora da biografia Vida do Viajante – A Saga de Luiz Gonzaga, publicada em 1996 pela Editora 34, a francesa Dominique Dreyfus lembra como foi passar dois meses ao lado de Luiz Gonzaga

A bordo de uma Veraneio, ela fez vários passeios com o Mestre Lua

Como era a relação dele com os contratantes e com o valor dos cachês? O sistema era muito casei-ro. Ele não pedia nada de especial. Simplesmente marcava e pronto. Por exemplo, ele adorava o circo, essa cultura nordes-tina onde o circo era mui-to importante. Aí ele che-gava numa cidade que ti-nha um circo, mas estava todo caído, mal arrumado, e ele oferecia uma lona nova. Em vez de ganhar o dinheiro ele acabava pa-gando para tocar. Ele ti-nha essas coisas. Pelo su-cesso que fez ganhou mui-to, muito dinheiro, mas não sei onde foi parar por-que vivia de um jeito mui-to simples. Quando o co-nheci eles t inham um apartamento na Ilha do Governador, no Rio, onde Helena vivia. Estive lá e era de chorar, não tinha nada, muito simples. E o parque em Exu era extre-mamente rústico, não ti-nha luxo. Tinha um carro e uma mobília comprada na própria região. Uma te-levisão na sala onde todo mundo se reunia e nada mais. Ele dava dinheiro para todo mundo. Muitas vezes investia errado, não levava jeito para os negó-cios. A relação dele com o dinheiro era, digamos, muito anárquica.

Como ele lidou com os al-

tos e baixos da carreira? Gonzaga era muito filóso-fo. Ele teve o primeiro au-ge, aí quando a bossa no-va chegou foi realmente um terremoto, um tsuna-mi na música brasileira. A sanfona passou a ser odia-da, uma coisa cafona, hor-rorosa. E Gonzaga eviden-temente foi eliminado des-sa história. Ele falou sobre isso, contou que foi muito difícil. “Se a mídia não quer mais saber de mim, o meu público original, das origens, está aí”, e ele con-tinuou a fazer suas turnês. Essa bruta queda foi nos anos 1960, quando ele passou de maior artista do Brasil a ser nada. Mas nos anos 70, quando a galera do tropicalismo chegou, ele voltou a fazer sucesso, e estava mais apaziguado para falar sobre isso. Con-tou com muita emoção de quando descobriu que Ca-etano Veloso e Gilberto Gil estavam gravando suas músicas. De repente ele percebeu que os ‘cabelu-dos’ eram seus fãs.

Qual a importância de Luiz Gonzaga para a história da música brasileira? Ele é o cara que fez a mú-sica do Nordeste ser co-nhecida, a música rural, tradicional, de uma parte do Brasil. Antes dele pou-ca coisa se sabia dessa mú-sica. Foi quem populari-zou e estruturou. Criou, a

tava na estrada. Quando ele voltava para casa en-trava nessa relação muito conturbada, complicada, com Helena e com o resto da família. E ele era muito colérico, podia ser violen-to. Apesar de ele ter ajuda-do muita gente, ficava to-do mundo cobrando, fa-lando mal. Me deu muita pena, fiquei muito triste ao ver a tristeza do Gonza-ga quando ele ficava em casa. A tristeza de um ho-mem sozinho. Na hora que a gente entrava nesse carro e saía, ele se trans-formava fisicamente. Era o que ele gostava.

É verdade que ele não es-colhia lugar para suas apresentações, tocava on-de pudesse?

Exatamente. Ele não ti-nha nenhuma regra.

O importante era ter a sanfona, abrir a b o c a e c a n t a r. Qualquer condi-ç ão va l i a . E l e abriu todo seu ar-quivo para mim e pude ver os con-tratos que fazia. Já li muito contra-

to de artista na mi-nha vida, mas nunca

vi um negócio tão simples, tão pouco exi-

gente. Indicava o preço e pronto. Tinha que ter um palco, um cachê para ele e para os músicos e só. Era uma pessoa incrivelmente simples. Lá em Exu nós ía-mos para uma discoteca onde a garotada dançava ao som de Madonna e Mi-chael Jackson, que esta-vam no auge. Ele ficava sentado numa mesa e da-qui a pouco o apresenta-dor do lugar anunciava: “Está aqui conosco, com grande honra, nosso que-rido Gonzagão, que vai to-car pra gente”. Levantava, tocava, a garotada toda ia sentar e os mais velhos se levantavam para dançar. E ele sozinho, com o maior prazer, tocando numa dis-coteca mixuruca de Exu.

Como era o mercado musi-cal dos anos 1950 e 60? Ele ganhou muito dinheiro? O Gonzaga inventou, ou participou, da invenção do que a gente chama de pa-trocínio. Ele tinha que fa-zer show. Claro que era o ganha-pão dele, mas era mais do que isso, era a vi-da dele. Era a vida do via-jante. Tinha que viajar, sair pela estrada... Ele se divertia demais. De cami-nhão, ônibus, trem, avião, bicicleta, de burro, barco ou a pé, de qualquer ma-neira, mas ele tinha que chegar no seu destino. E era muito generoso. Se quando chegasse não ti-vesse cachê, não fazia mal. “Eu canto assim mesmo”.

Serviço

Título: Vida do Viajante – A Saga de Luiz GonzagaAutor(a): Dominique Dreyfus Editora: 34 Preço: R$ 49,90 (352 págs.) Fora de catálogo; disponível para venda em alguns sebos virtuais

DOMINIQUE DREYFUS

JORNALISTA E PESQUISADORA

“Ele sentava no banco da fren-

te, ao lado do motorista, tira-

va os sapatos e colocava o pé

direito no pai-nel do carro. Daí

a pouco come-çava a cantar

com aquele vo-zeirão... Quando terminava, fica-

va curtindo a paisagem”

CARLOS OLIVEIRA/PREF. DO RECIFE/DIVULGAÇÃO

partir de uma música rural muito rústica, um formato que respeitava a tradição e ao mesmo tempo permitia que se tornasse uma coisa urbana, acessível a todos. Essa música do Nordeste é sumamente importante no panorama brasileiro e ele foi uma influência para to-das as gerações que vie-ram depois. Ele é uma das grandes figuras da música brasileira, ao lado de Pi-xinguinha no choro e de Antônio Carlos Jobim na bossa nova. ‡

ACER

VO E

DÉC

IO L

OPES

/COR

TESI

A

Luiz Gonzaga ao lado de Edécio Lopes e

com Tororó do Rojão ao fundo num festival

no Teatro Deodoro, em 1979