Vida Cotidiana - Guy de Bord

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 Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana Guy Debord Esta exposição foi apresentada em 17 de maio de 1961 em fita magnética diante do Grupo de Investigações sobre a vida quotidiana, reunido por H. Lefebrve no Centre d'études sociologiques del C.N.R.S.. Foi publicado no número 6 de Internacionale Situationiste (agosto-1961). Tradução para o espanhol de Eduardo de Subrats -  publicada no cad erno descatalogad o Textos situacionistas sobre arte e urbanism o (anagrama, 1973) e na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido do espanhol. Estudar a vida quotidiana seria uma empresa perfeitamente ridícula e, alem disso, condenada desde o princípio a perder de vista seu próprio objeto, se não propuser explicitamente o estudo da vida quotidiana para transformá-la. A própria conferência, a exposição de determinadas considerações intelectuais diante de um auditório, como forma extremamente banal de r elações humanas em um setor  bastante amplo da sociedade, tam bém se insere na crítica da vida quotidiana . Os sociólogos, por exemplo, tendem a se separar da vida quotidiana e lançar paras as esferas chamadas superiores tudo que lhes acontece a cada instante. É o hábito, começando pelo de manejar certos conceitos profissionais - produzidos pela divisão do trabalho - que sob todas as suas formas mascara assim a realidade por trás das condições  privilegiadas. Por conseguinte, é oportuno mostrar que se deslocamos ligeiramente as fórmulas correntes descobrimos aqui mesmo a vida quotidiana. É claro que a difusão destas  palavras mediante u m toca-fitas não pretend e precisamente ilustrar a in tegração das técnicas a esta vida quotidiana marginal ao mudo técnico, mas de aproveitar a ocasião mais simples para romper com as aparências de pseudocolaboraçã o, de diálogo f ictício, que se instituem entre o conferente "de corpo presente" e sues espectadores. Esta ligeira ruptura com um conforto pode servir para decidir na estrutura da crítica da vida quotidiana (crítica que de outro modo resultaria completamente abstrata) esta mesma conferência, como tantas outras disposições do emprego do tempo e das coisas, que a força de considerá-las "normais" já não se discernem; e que, fundamentalmente , nos condicionam. A propósito de um detalhe semelhante, como a propósito do conjunto mesmo da vida quotidiana, a modificação constitui sempre a condição necessária e suficiente para fazer aparecer experimentalmente o objeto de nosso estudo, cuja ausência o converteria em algo duvidoso; o objeto ao qual se não trata apenas de estudar, mas de modificar. Acabo de dizer que a realidade de um conjunto observável que se designaria pelo termo "vida quotidiana" corre o risco de ser hipotético para muitas pessoas. Com efeito, desde que se constituiu este grupo de investigação, o traço mais destacável não é evidentemente que ainda não haja descoberto nada, mas que desde o primeiro momento se tenha estabelecido a questão da própria existência da vida quotidiana; e não tenha deixado de aprofundar-se de sessão em sessão. A maioria das intervenções que até agora se puderam escutar nesta discussão procedia de pessoas nada convencidas de que a vida quotidiana exista, pois não a encontraram em nenhum lugar. Um grupo de investigação sobre a vida quotidiana, animado com semelhante espírito, é comparável em todos os seus aspectos a um grupo que partisse em busca do abominável homem das neves e cuja

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  • Perspectivas da transformao consciente da vida quotidiana

    Guy Debord Esta exposio foi apresentada em 17 de maio de 1961 em fita magntica diante do Grupo de Investigaes sobre a vida quotidiana, reunido por H. Lefebrve no Centre d'tudes sociologiques del C.N.R.S.. Foi publicado no nmero 6 de Internacionale Situationiste (agosto-1961). Traduo para o espanhol de Eduardo de Subrats - publicada no caderno descatalogado Textos situacionistas sobre arte e urbanismo (anagrama, 1973) e na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido do espanhol. Estudar a vida quotidiana seria uma empresa perfeitamente ridcula e, alem disso, condenada desde o princpio a perder de vista seu prprio objeto, se no propuser explicitamente o estudo da vida quotidiana para transform-la. A prpria conferncia, a exposio de determinadas consideraes intelectuais diante de um auditrio, como forma extremamente banal de relaes humanas em um setor bastante amplo da sociedade, tambm se insere na crtica da vida quotidiana. Os socilogos, por exemplo, tendem a se separar da vida quotidiana e lanar paras as esferas chamadas superiores tudo que lhes acontece a cada instante. o hbito, comeando pelo de manejar certos conceitos profissionais - produzidos pela diviso do trabalho - que sob todas as suas formas mascara assim a realidade por trs das condies privilegiadas. Por conseguinte, oportuno mostrar que se deslocamos ligeiramente as frmulas correntes descobrimos aqui mesmo a vida quotidiana. claro que a difuso destas palavras mediante um toca-fitas no pretende precisamente ilustrar a integrao das tcnicas a esta vida quotidiana marginal ao mudo tcnico, mas de aproveitar a ocasio mais simples para romper com as aparncias de pseudocolaborao, de dilogo fictcio, que se instituem entre o conferente "de corpo presente" e sues espectadores. Esta ligeira ruptura com um conforto pode servir para decidir na estrutura da crtica da vida quotidiana (crtica que de outro modo resultaria completamente abstrata) esta mesma conferncia, como tantas outras disposies do emprego do tempo e das coisas, que a fora de consider-las "normais" j no se discernem; e que, fundamentalmente, nos condicionam. A propsito de um detalhe semelhante, como a propsito do conjunto mesmo da vida quotidiana, a modificao constitui sempre a condio necessria e suficiente para fazer aparecer experimentalmente o objeto de nosso estudo, cuja ausncia o converteria em algo duvidoso; o objeto ao qual se no trata apenas de estudar, mas de modificar. Acabo de dizer que a realidade de um conjunto observvel que se designaria pelo termo "vida quotidiana" corre o risco de ser hipottico para muitas pessoas. Com efeito, desde que se constituiu este grupo de investigao, o trao mais destacvel no evidentemente que ainda no haja descoberto nada, mas que desde o primeiro momento se tenha estabelecido a questo da prpria existncia da vida quotidiana; e no tenha deixado de aprofundar-se de sesso em sesso. A maioria das intervenes que at agora se puderam escutar nesta discusso procedia de pessoas nada convencidas de que a vida quotidiana exista, pois no a encontraram em nenhum lugar. Um grupo de investigao sobre a vida quotidiana, animado com semelhante esprito, comparvel em todos os seus aspectos a um grupo que partisse em busca do abominvel homem das neves e cuja

  • investigao poderia desembocar perfeitamente na concluso de que na realidade no se tratava mais que de uma bufonada folclrica. Entretanto, todo mundo est de acordo em que determinados gestos repetidos cada dia, como abrir as portas ou encher os vasos, so plenamente reais; mas estes gestos se encontram em um nvel to trivial da realidade que com razo se pe em dvida seu possvel interesse para justificar uma nova especializao da investigao sociolgica. E certo nmero de socilogos parece pouco inclinado a imaginar outros aspectos da vida quotidiana a partir da definio proposta por Henri Lefebvre, isto , "o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas". Aqui descobrimos que a maioria dos socilogos - e j sabemos a satisfao que sentem em suas atividades especializadas, justamente, e o quanto de ordinrio lhe consagram uma f cega - a maioria dos socilogos, digo, reconhecem atividades especializadas por doquier, e a vida quotidiana em nenhum lugar. A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e em todo caso, entre as classes no-socilogas da populao. Algum disse aqui que os trabalhadores constituam um interessante objeto de estudo, por se tratarem de cobaias provavelmente inoculadas com esse vrus da vida quotidiana, pois no tendo acesso s atividades especializadas, tampouco podem viver outra coisa que a vida quotidiana. Esta maneira de pegar o povo em busca de um longnquo primitivismo do quotidiano e, sobretudo, esta complacncia declarada e sem rodeios, esta ingnua arrogncia de participar de uma cultura cuja categrica decadncia, sua incapacidade radical de compreender o mundo que a produz ningum pode ocultar, tudo isto no deixa de ser surpreendente. Existe uma vontade manifesta de abrigar-se por baixo de uma formao do pensamento baseado na separao de domnios parcelares artificiais, a fim de recusar o conceito intil, vulgar e nojento da "vida quotidiana". Semelhante conceito encobre um resduo da realidade catalogada e classificada com o qual alguns no desejam enfrentar, pois constitui, ao mesmo tempo, o ponto de vista da totalidade e implicaria a necessidade de um juzo global, de uma poltica. Dir-se-ia que certos intelectuais se vangloriam assim de uma ilusria participao pessoal no setor dominante da sociedade, atravs da possesso de uma ou mais especializaes culturais; isso os situa em primeiro plano, para se dar conta do ato seguido de que o conjunto desta cultura dominante est sensivelmente apoiado. Mas qualquer que seja o juzo que se pronuncie sobre a coerncia dessa cultura ou sobre o interesse de seus aspectos, a alienao que ela imps aos intelectuais em questo consiste em faz-los crer, desde o cu dos socilogos, que estes se encontram completamente fora dessa vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se estes mesmos no fossem igualmente pobres. No h dvida de que as atividades especializadas tm uma existncia; em uma poca dada adquirem inclusive um uso geral que deve reconhecer-se sempre de uma forma desmistificada. A vida quotidiana no o totalmente. Certamente, existe uma osmose entre esta e as atividades especializadas, e at o extremo que, desde determinado ponto de vista, nunca nos encontramos fora da vida quotidiana. Mas se se recorre fcil imagem de uma representao espacial das atividades, a vida quotidiana deve se situar, alm do mais, no centro de tudo. Cada projeto em parte e cada realizao adquirem de novo nesta sua nova significao. A vida quotidiana a medida de todas as coisas: do cumprimento, ou melhor, do descumprimento das relaes humanas, do uso do tempo vivido, da busca da arte, da poltica revolucionria.

  • No basta recordar que o tipo de velha imagem de Epinal cientfica do observador desinteressado falaz em todos os casos. Deve-se sublinhar que a observao desinteressada ainda menos factvel aqui que em qualquer outro lugar. E a dificuldade inclusive de reconhecer um terreno da vida quotidiana no reside unicamente em que este constituiria o ponto de convergncia de uma sociologia emprica e de uma elaborao conceitual, mas tambm no fato de que esse mesmo momento suporia a atualizao de toda renovao revolucionria da cultura e da poltica. A vida quotidiana no criticada implica neste momento a prolongao das formas atuais, profundamente degradadas, da cultura e da poltica, formas cuja crise extremamente avanada, sobretudo nos pases modernos, se traduz em uma despolitizao e em um neo-analfabetismo generalizado. Pelo contrrio, a crtica radical, atuando sobre a vida quotidiana dada pode levar a uma superao da cultura e da poltica no sentido tradicional, isto em um nvel superior de interveno na vida. No obstante, se dir: Como podem existir pessoas que desprezam to completa e imediatamente esta vida quotidiana, que para mim constitui a nica vida real, mesmo quando essas pessoas no tem, apesar de tudo, nenhum interesse direto em faz-lo? E por qu, se muitas dessas no so nada hostis a qualquer renovao do movimento revolucionrio? Creio que isso devido ao fato de que a vida quotidiana est organizada dentro dos limites de uma pobreza escandalosa. E, sobretudo, porque essa pobreza da vida quotidiana no tem nada de acidental: uma pobreza imposta em cada instante pela fora e a violncia de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente organizada de acordo com as necessidades histricas da explorao. O uso da vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido est condenado pelo reino da carncia de tempo livre; e carncia dos possveis usos deste tempo livre. Assim como a histria de nossa poca a histria da acumulao da industrializao, tambm o atraso da vida quotidiana, sua tendncia ao imobilismo, so os produtos das leis e interesses que presidiram essa industrializao. Efetivamente, a vida quotidiana apresenta, at nossos dias, uma resistncia ao histrico. Isso pe em questo, em primeiro lugar, ao histrico mesmo, enquanto herana e projeto de uma sociedade exploradora. A pobreza extrema da organizao consciente, da criatividade das pessoas na vida quotidiana, traduz a necessidade fundamental da inconscincia e da mistificao em uma sociedade exploradora, em uma sociedade de alienao. Neste ponto, Henri Lefebvre aplicou extensamente o conceito de desenvolvimento desigual para caracterizar a vida quotidiana, desatada, mas no desgarrada da historicidade, como um setor atrasado. Creio que inclusive pode-se qualificar este nvel da vida quotidiana como setor colonizado. escala da economia mundial se comprovou que o subdesenvolvimento e a colonizao so dois fatores em mtua interao. Pois bem, tudo nos faz pensar que no nvel da formao econmico-social, da praxis, vem a acontecer o mesmo. A vida quotidiana, mistificada por todos os meios e controlada policialmente, uma espcie de reserva para os bons selvagens que, sem sab-lo, fazem marchar a sociedade moderna no compasso do rpido crescimento dos poderes tcnicos e da expanso forada de seu mercado. A histria - isto , a transformao do real - no se pode

  • utilizar atualmente na vida quotidiana toda vez que o homem da vida quotidiana o produto de uma histria sobre a qual no tem nenhum controle. Evidentemente, ele mesmo que faz esta histria, mas no livremente. A sociedade moderna est constituda por fragmentos especializados, mais ou menos intransmissveis, e a vida quotidiana, de onde se corre o risco de estabelecer todas as questes de uma maneira unitria, por isso mesmo o domnio da ignorncia. Atravs de sua produo industrial, esta sociedade usurpou todo sentido dos gestos do trabalho. E no existe nenhum modelo de conduta humana que conservou uma verdadeira atualidade no quotidiano. Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em consumidores isolados, e a impedir toda comunicao. A vida quotidiana se converte em vida privada, domnio da separao e do espetculo. Desse modo, a vida quotidiana se torna tambm a esfera da demisso dos especialistas. da, por exemplo, que alguns dos poucos indivduos capazes de compreender a mais recente imagem cientfica do universo, se converte num estpido e pondera amplamente as teorias artsticas de Alain Robbe-Grillet, ou melhor, manda peties ao presidente da repblica com a pretenso de desviar sua poltica. a esfera do desarme, do reconhecimento da incapacidade de viver. Por conseguinte, o subdesenvolvimento da vida quotidiana no pode se caracterizar somente a respeito a sua relativa incapacidade de integrar algumas tcnicas. Este trao um produto importante, mas ainda parcial, do conjunto da alienao quotidiana que se poderia definir como a incapacidade de inventar um tcnica de libertao do quotidiano. E de fato, existem muitas tcnicas que modificam mais ou menos nitidamente certos aspectos da vida quotidiana: as artes domsticas, como j se disse aqui, mas tambm o telefone, a televiso, a gravao musical em discos, as viagens areas populares, etc. Estes elementos intervm anarquicamente, ao acaso, sem que ningum preveja nem suas conexes nem suas conseqncias. Mas no h dvida de que, em seu conjunto, este movimento, que introduz certas tcnicas no interior da vida quotidiana, e marcado em ltima instncia pela racionalidade do capitalismo moderno burocratizado, adquire mais precisamente o sentido de uma limitao da independncia e da criatividade das pessoas. Assim, as novas cidades de nossos dias demonstram claramente a tendncia totalitria que caracteriza a organizao da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivduos isolados (isolados geralmente na estrutura da clula familiar) contemplam como se reduz sua vida pura trivialidade do repetitivo, diante da absoro obrigatria de um espetculo igualmente repetitivo. Devemos acreditar, por conseguinte, que a censura que as pessoas exercem sobre as questes relativas a sua prpria vida quotidiana se explica pela conscincia de sua insustentvel misria, e ao mesmo tempo, pela sensao, talvez inconfessa, mas inevitavelmente experimentada qualquer dia, de que todas as possibilidades verdadeiras, todos os desejos bloqueados pelo funcionamento da vida social, residiam precisamente nela, e de nenhum modo nas atividades ou distraes especializadas. Isto , o conhecimento da riqueza profunda, da energia abandonada na vida quotidiana como misria e como priso; portanto, em um mesmo movimento nos leva a negar o problema.

  • Nestas condies, mascarar a questo poltica que estabelece a misria da vida quotidiana significa mascarar a profundeza das reivindicaes da riqueza possvel desta vida; reivindicaes que no levariam a nada menos que a reinventar a revoluo. Se admitir que elucidar uma poltica a este nvel no de modo algum contraditrio com o fato de militar no Partido Socialista Unificado, por exemplo, ou de ler LHumanit inocentemente. Efetivamente, tudo depende do nvel em que se coloca o seguinte problema: como se vive? Como algum se satisfaz ou no se satisfaz? E isso sem se deixar influenciar nem por um nico instante pelos diversos anncios que pretendem nos persuadir de que se pode ser feliz graas existncia de Deus, do dentifrcio Colgate ou do C.N.R.S. Considero que o termo "crtica da vida quotidiana" tambm poderia ou deveria ser entendido com a seguinte inverso: a crtica que a vida quotidiana exercer soberanamente a tudo o que lhes exterior. O problema do emprego dos meios tcnicos, tanto na vida quotidiana como fora dela, no nada mais que um problema poltico (e entre todos os meios tcnicos utilizveis, s se ps em prtica aqueles que foram autenticamente selecionados conforme o objetivo de conservar o domnio de uma classe). Quando se considera a hiptese de um futuro, tal como se admite na literatura de fico cientfica, onde as aventuras interestrelares coexistiriam com uma vida quotidiana conservada nesta terra sob a mesma indigncia material e o mesmo moralismo arcaico, subentende-se com isso, exatamente, que continuaria existindo uma classe de dirigentes especializados mantendo a seu servio as massas proletrias das fbricas e oficinas; e que as aventuras interestrelares no seriam nada mais que a empresa escolhida por estes dirigentes, a melhor maneira que teriam encontrado para desenvolver sua economia irracional, a consumao da atividade especializada. Nos perguntam: a vida privada est privada de que? Muito simples: da vida, a vida est cruelmente ausente. A gente est privada de comunicao at os limites do possvel; e de realizao de si mesmo. Deveria-se dizer: privada de fazer pessoalmente sua prpria histria. As hipteses que pretendem responder positivamente questo sobre a natureza da privao no poderiam ser enunciadas, por conseguinte, seno sob a forma de projetos de enriquecimento; projeto de outro estilo de vida; em fim, de um estilo... Ou melhor, se se considera que a vida quotidiana se encontra nos limites entre o setor dominado e o setor no-dominado da vida, ou seja, no lugar do aleatrio, ser preciso chegar a substituir o gueto atual por alguns limites constantemente mveis; trabalhar permanentemente na organizao de novas possibilidades. A questo da intensidade do vivido se coloca atualmente, a propsito por exemplo do uso dos estupefacientes, nos termos em que a sociedade da alienao capaz de colocar qualquer questo: nos termos do falso reconhecimento de um projeto falsificado, em termos de fixao e de petrificao. Tambm convm recalcar at que ponto a imagem do amor elaborada e difundida nesta sociedade se assemelha com a droga. Nela, a paixo reconhecida em primeiro como recusa de todas as demais paixes, mas s para trabalh-la posteriormente, at que por fim j no se reencontre nada mais que nas compensaes do espetculo reinante. La Rochefaucauld escreveu: "O que freqentemente nos impede de abandonar um nico vcio que temos vrios". Eis aqui uma constatao muito positiva se, descartando seus pressupostos moralistas, a colocamos sobre seus ps, como base descartando suas pressuposies das capacidades humanas.

  • Todos esses problemas esto na ordem do dia em uma poca claramente dominada pela apario do projeto - cujo porta-voz a classe trabalhadora - de abolir toda a sociedade de classes e comear a histria humana; e dominada, como colorrio, pela encarniada resistncia a este projeto, pelos extravios e os fracassos deste projeto que se sucederam at nossos dias. A crise atual da vida quotidiana se inscreve nas novas formas de crises do capitalismo, formas que seguem despercebidas por quem se obstina em calcular em funo do vencimento clssico das prximas crises cclicas da economia. A desapario de todos os antigos valores de todas as referncias da comunicao anterior no capitalismo desenvolvido, e a impossibilidade de substitu-los por outros, quaisquer que sejam, sem conseguir previamente o domnio racional, tanto na vida quotidiana como em qualquer outro lugar, das novas foras industriais que cada vez mais escapam mais a nosso controle; estes fatos no s engendram a insatisfao quase oficial de nossa poca, insatisfao particularmente aguda na juventude, mas ainda mais no movimento de autonegao da arte. A atividade artstica sempre foi a nica que prestou contas dos problemas clandestinos da vida quotidiana, mas de uma maneira oculta, deformada, parcialmente ilusria. Diante de nossos olhos existe j o testemunho de uma destruio de toda expresso artstica: arte moderna. Se consideramos em toda sua extenso a crise da sociedade contempornea, no parece que o tempo de cio pode ser considerado ainda como uma negao do quotidiano. Admitiu-se aqui a necessidade de "estudar o tempo perdido". Mas vejamos o movimento recente dessa idia de tempo perdido. Para o capitalismo clssico, o tempo perdido o tempo exterior produo, acumulao e economia. A moral laica que se ensina nas escolas da burguesia implantou essa norma de vida. Entretanto por um ardil inesperado, o capitalismo moderno necessita acrescentar o consumo, "elevar o nvel de vida" (se se quer lembrar que esta expresso carece rigorosamente de sentido). E dado que, ao mesmo tempo, as condies de produo, parcelarizada e cronometrada at um grau extremo, chegaram a ser completamente insustentveis, a moral que j abriu passagem na publicidade, na propaganda e em as formas do espetculo dominante, admite francamente que o tempo perdido o tempo de trabalho, que j unicamente se justifica pelos diversos graus de lucro que procura, o qual permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de cio - ou seja, uma passividade quotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo. Se agora consideramos a facticidade das necessidades de consumo que altera de ps a cabea e estimula incessantemente a indstria moderna - se se conhece o vazio do cio e a impossibilidade do repouso -, podemos colocar a questo em termos mais realistas: Que no seria o tempo perdido? Dito de outro modo: O desenvolvimento da sociedade da abundncia deveria desembocar na abundncia de qu? Evidentemente, isto pode servir como pedra de toque para muitos pontos de vistas. Por exemplo, num dos peridicos que do mostra da inconsistncia terica dessas pessoas as quais se chama intelectuais de esquerda - me refiro ao France Observatour -, se anuncia algo assim como "O automvel utilitrio no assalto do socialismo", para encabear um artigo em que se diz que nestes tempos, os russos j perseguem individualmente um consumo privado de bens no estilo americano, comeando naturalmente, pelos automveis; quando lemos coisas deste estilo no podemos evitar a reflexo de que no necessrio ter assimilado depois de Hegel, toda a obra de Marx para advertir pelo

  • menos que um socialismo que retrocede diante da invaso do mercado por automveis utilitrios no de modo algum o socialismo pelo qual o movimento dos trabalhadores luta. Desse modo, a oposio contra a burocracia dirigente da Rssia no deve partir de uma anlise qualquer de sua ttica ou de seu dogmatismo, mas do princpio de que o sentido da vida dos indivduos no tenha mudado realmente. E isto no a obscura fatalidade da vida quotidiana destinada a permanecer sendo reacionria. uma fatalidade imposta desde o exterior da vida quotidiana pela esfera reacionria dos dirigentes especializados, qualquer que seja a etiqueta sob a qual a planificam a misria em todos os seus aspectos. Por isso a despolitizao atual de muitos dos antigos militantes da esquerda, seu abandono de uma certa alienao para cair nos braos de outra, a da vida privada, no tem o sentido de um retorno privao como um refgio contra as "responsabilidades da historicidade", mas sim o de um alheamento do setor poltico especializado, e por conseguinte sempre manipulado por outros; e a nica responsabilidade que se assume verdadeiramente com isso a de abandonar todas as responsabilidades a chefes incontrolados; a onde se burlou e se escamoteou o projeto comunista. No se pode opor em bloco a vida privada vida pblica sem se perguntar: o que vida privada? O que vida pblica? (pois a vida privada carrega os fatores de sua prpria negao e superao, assim como a ao revolucionria coletiva pde alimentar os fatores de sua degenerao). Mas do mesmo modo seria um erro fazer o balano de uma alienao dos indivduos na poltica revolucionria, quando do que se tratava era da alienao da poltica revolucionria. Dialetizar o problema da alienao, assinalar as possibilidades de alienao que constantemente aparecem no seio da mesma luta contra a alienao, tudo isso constitui uma tarefa legtima, mas devemos sublinhar ao mesmo tempo em que semelhante tarefa deve ser levada a cabo no nvel mais elevado da investigao (por exemplo, na filosofia da alienao em seu conjunto), e no no plano do estalinismo, cuja explicao, desgraadamente, mais grosseira. Em nenhum lugar se superou ainda a civilizao capitalista, apesar de que continua engendrando por fora seus inimigos. A prxima ascenso do movimento revolucionrio, radicalizado pela experincia das derrotas precedentes, dever enriquecer seu programa reivindicativo at o nvel dos poderes prticos da sociedade moderna, poderes que a partir do presente constituem virtualmente o nvel dos poderes prticos da sociedade moderna, poderes que a partir do presente constituem virtualmente a base material que faltava s correntes do socialismo chamadas utpicas; esta prxima tentativa de contestao total do capitalismo saber inventar e propor um uso distinto da vida quotidiana, e se apoiar imediatamente nas novas prticas quotidianas, em novos tipos de relaes humanas (sem ignorar j que toda conservao no seio da organizao revolucionria mesma das relaes dominantes na sociedade existente conduz inevitavelmente restaurao, com diversas variantes, desta mesma sociedade). Assim como antigamente a burguesia, em sua fase ascendente, teve que liquidar implacavelmente tudo que estava alm da vida terrena (o cu, a eternidade), assim tambm o proletariado revolucionrio - que jamais pode reconhecer um passado ou um modelo, a menos que deixe de existir como tal - dever renunciar a tudo que exceda vida quotidiana, Ou melhor, a tudo que pretende transcende-la: o espetculo, o gesto ou a frase "histricos", a "grandeza" dos dirigentes, o mistrio das especializaes, a "imortalidade" da arte e sua importncia exterior vida. O que quer dizer: renunciar a todos os subprodutos da eternidade que sobreviveram como armas do mundo dos dirigentes.

  • A revoluo na vida quotidiana, na medida em que destri sua atual resistncia ao histrico (e a todo tipo de mudana), criar as condies que faro possvel "a dominao do presente sobre o passado", e nas quais a criatividade vender a repetio. Deve-se esperar, portanto, que o lado da vida quotidiana expresso pelos conceitos da ambigidade - mal-entendido, compromisso ou abuso - perca amplamente sua importncia em proveito de seus contrrios, a eleio consciente ou o risco. A atual critica artstica da linguagem, contempornea desta metalinguagem das mquinas que no outra coisa que a linguagem burocratizada da burocracia no poder, ser superada ento por formas superiores de comunicao. A noo presente de texto social decifrvel dever dar origem a novos procedimentos de escrita de tal texto social, seguindo a direo das investigaes atuais de meus companheiros situacionistas sobre o urbanismo unitrio e sobre o esboo de um comportamento experimental. A produo central de um trabalho industrial completamente transformado ser a criao de novas configuraes da vida quotidiana, a criao livre dos acontecimentos. A crtica e a recriao perptuas da totalidade da vida quotidiana, antes de que seja efetuada de uma forma natural por todos os homens, deve ser empreendida sob as condies da opresso total, e com o objetivo de arruinar tal opresso. Entretanto, no um movimento cultural de vanguarda quem pode cumprir semelhante programa, por maior que sejam suas simpatias revolucionrias. E tampouco pode realiz-lo um partido revolucionrio de molde tradicional, por muito que conceda um lugar primordial crtica da cultura (entendendo este termo como o conjunto de instrumentos artsticos ou conceituais mediante os quais uma sociedade se explica a si mesma, estabelecendo objetivos para a vida). Uma e outra, esta cultura e esta poltica, j esto esgotadas, por isso no de se estranhar que a maior parte das pessoas se sintam indiferentes a elas. A transformao revolucionria da vida quotidiana, que no est reservada a um futuro vago mas colocada diante de ns pelo desenvolvimento do capitalismo e seus insustentveis imperativos a alternativa sendo a perpetuao da escravido moderna - esta transformao assinalar o fim de toda expresso artstica unilateral e armazenada sob a forma de mercadoria, ao mesmo tempo que o fim de toda poltica especializada. Esta ser a tarefa de uma nova organizao revolucionria; tarefa que comear a partir de sua prpria formao. Guy Debord, 1961