VIDA DE - ebookespirita.org · Profeta ou crente fanático que pregava uma nova fé, mas que não...

393
1

Transcript of VIDA DE - ebookespirita.org · Profeta ou crente fanático que pregava uma nova fé, mas que não...

  • 1

  • 2

    VIDA DEJESUS

    (Origens do Cristianismo)

    Ernest RenanTEXTO INTEGRAL

    TRADUO: ELIANA MARIA DE A. MARTINS

  • 3

    CRDITOS

    Copyright desta traduo: Editora Martin Claret, 2004Ttulo original: Vie de Jsus (1863)

    IDEALIZAO E REALIZAOMartin Claret

    CAPAIlustrao (Baseada naltima Ceia, 1955,Salvador Dali.)Cludio Gianfardoni

    Direo de ArteJos Duarte T. de Castro

    DigitaoGraziela Gatti Leonardo

    MIOLORevisoRosana CitinoMarinice Argenta

    Editorao EletrnicaEditora Martin Claret

    Fotolitos da CapaOESP

    TraduoEliana Maria de A. Martins

    Projeto GrficoJos Duarte T. de Castro

    PapelOff-Set, 70g/m2

    Impresso e AcabamentoPaulus Grfica

    Editora Martin Claret Rua Alegrete, 62 Bairro SumarCEP 01254-010 So Paulo SPTel.: (11) 3672-8144 Fax: (11) 3673-7146

    www.martinclaret.com.br

    Agradecemos a todos os nossos amigos e colaboradores pessoas fsicas e jurdicas que deram as condiespara que fosse possvel a publicao deste livro.

    Este livro foi impresso no outono de 2004.

  • 4

    Esta verso eletrnica no segue rigorosamente a numerao das pginas da versoimpressa, tendo sido excludas as pginas em branco, as sees Prefcio (pgs. 5-10),Cronologia (pgs. 413-420), e os Apndices (pgs. 421-525).

  • 5

    Proposta da coleoA Obra-Prima de Cada Autor

    A palavra coleo uma palavra h muito tempo dicionarizada, e define o conjunto oureunio de objetos da mesma natureza ou que tm qualquer relao entre si. Em um sentidoeditorial, significa o conjunto no-limitado de obras de autores diversos, publicado por umamesma editora, sob um ttulo geral indicativo de assunto ou rea, para atendimento desegmentos definidos do mercado.

    A coleo A Obra-Prima de Cada Autor corresponde plenamente definio acimamencionada. Nosso principal objetivo oferecer, em formato de bolso, a obra mais importantede cada autor, satisfazendo o leitor que procura qualidade.*

    Desde os tempos mais remotos existiram colees de livros. Em Nnive, em Prgamo e naAnatlia existiam colees de obras literrias de grande importncia cultural. Mas nenhumadelas superou a clebre biblioteca de Alexandria, incendiada em 48 a.C. pelas legies de JlioCsar, quando estes arrasaram a cidade.

    A coleo A Obra-Prima de Cada Autor uma srie de livros a ser composta de mais de400 volumes, formato de bolso, com preo altamente competitivo, e pode ser encontrada emcentenas de pontos-de-venda. O critrio de seleo dos ttulos foi o j estabelecido pela tradioe pela critica especializada. Em sua maioria so obras de fico e filosofia, embora possa havertextos sobre religio, poesia, poltica, psicologia e obras de auto-ajuda. Inauguram a coleoquatro textos clssicos: Dom Casmurro, de Machado de Assis; O Prncipe, de Maquiavel;Mensagem, de Fernando Pessoa, e O Lobo do Mar, de Jack London.

    Nossa proposta fazer uma coleo quantitativamente aberta. A periodicidade mensal.Editorialmente, sentimo-nos orgulhosos de poder oferecer a coleo A Obra-Prima de CadaAutor aos leitores brasileiros. Ns acreditamos na funo do livro.

    * Atendendo a sugestes de leitores, livreiros e professores, a partir de certo nmero da coleo, comeamos apublicar, de alguns autores, outras obras alm da sua obra-prima.

  • 6

    Prefcio da Edio Brasileira

    MARTIN CLARET

    Foi na Palestina, h quase dois mil anos, nos tempos de Herodes, Pilatos e Caifs. Nessepequeno pas, politicamente dominado, um homem, aos trinta anos, sai de sua aldeia e, peloscampos e cidades, comea a anunciar ao mundo uma nova mensagem de amor, f e liberdade.

    A essncia de sua pregao era: O reino de Deus est dentro de vs. Ensinava porparbolas e aforismos. Falava em aramaico, a lngua do povo. Ele tambm curava doentes,praticava aros de exorcismo e proclamava o fim de uma era e o comeo de outra era. Quasesempre era seguido de discpulos, apstolos, endemoniados doentes, prostitutas, camponesesiletrados, gente desiludida e desenraizada da vida.

    Antes de sua vida pblica, desempenhou as funes de carpinteiro. Nunca viajou mais detrezentos quilmetros do lugar em que nasceu. Nunca frequentou uma escola oficial ou oTemplo. No escreveu nenhum livro. No teve um lar. Morreu pregado numa cruz.

    Vinte sculos se passaram, e hoje ele a figura central da histria da humanidade. Nossotempo contado a partir da

  • 7

    data do seu nascimento. Influenciou e influencia todas as reas do conhecimento humano.Fundou uma religio planetria que leva o seu nome. o personagem histrico sobre o qualmais se escreveram livros, compuseram msicas e pintaram quadros. Alguns dizem que era ofilho de Deus e o redentor de nossos pecados.

    Mas quem era, realmente, esse Jesus, tambm chamado o Cristo? Um andarilho perturbado,contador de parbolas e fbulas, anunciando o fim do mundo e que se acreditava ser o Messias?Um simples curador e exorcista de demnios? Um dos tantos subversivos da Palestina, cujosatos pblicos foram sonegados pelos evangelistas cannicos? Profeta ou crente fantico quepregava uma nova f, mas que no pensava em fundar uma nova religio? Jesus nasceu emBelm? Tinha irmos? So verdadeiros os muitos milagres que, dizem, realizou? Seria um lderpoltico que, ao contrrio da lenda, no ressuscitou, mas teve o cadver roubado pelos apstolose amigos, depois da crucificao?

    O livro que o leitor tem nas mos conta a verdadeira hist6ria desse homem, e responde sperguntas acima formuladas.

    * * *

    Na condio de editor de livros de religio, estamos permanentemente em contato com tudoo que acontece nesse universo editorial. Conhecemos os best sellers, as novidades lanadasmensalmente, os livros de risco, os livros que fracassaram editorialmente e os furos literrioslanados no mercado. A maioria dos leitores sabe dessa nossa posio privilegiada.

    Constantemente recebemos, por cartas, telefonemas e pessoalmente, perguntas sobre este ouaquele livro antigos ou modernos, esgotados ou em circulao.

    Um dos livros sobre o qual mais recebemos consulta Vida de Jesus (Origens doCristianismo), de Ernest Renan. A partir desse fato estatstico, fizemos uma pesquisa econstata-

  • 8

    mos que essa obra, publicada pela primeira vez em Paris no ano de 1863 e posteriormentetraduzida para quase todas as lnguas modernas, nunca fora editada no Brasil. Existe umatraduo feita em Portugal, pela Lello & Irmo Editores (Porto), anterior a 1926, comsucessivas reedies e distribuda no Brasil por vrios importadores de livros.

    Grande mistrio! Perguntamos: como que um livro como este, tido como um clssico, degrande interesse dos leitores em geral, no tenha sido ainda publicado no Brasil?

    verdade, existem outras vidas de Jesus brasileiras e estrangeiras. Mas, por que aausncia da obra de Renan em nosso pas?

    Realizamos uma pesquisa de campo e confirmamos o grande interesse por parte de leitores elivreiros. Com o intuito de atender a essa demanda editorial, decidimos traduzir e publicar estelivro de Ernest Renan. A partir da edio da Gallimard (Paris) de 1992, estamos, pois,oferecendo aos leitores brasileiros esta edio integral da famosa obra de Renan.

    Para fazer um contraponto visual narrao do historiador francs, ilustramos o livro commais de vinte gravuras sobre Jesus, feitas a partir de quadros clebres de pintores antigos emodernos.

    Para maior informao ao leitor brasileiro, inserimos, na parte final da obra, uma cronologiado autor.

    Sabemos que o livro de Renan, durante os seus 137 anos de existncia literria, tem causadopolmica e controvrsia entre leitores ortodoxos ou superzelosos pelos textos bblicos.

    Nossa segurana e defesa so os inmeros livros recentemente publicados no mundo inteiro,confirmando o Jesus humano apresentado por Renan. As descobertas arqueolgicas e osmodernos mtodos de pesquisa e estudos de textos sagrados tm confirmado a magistralintuio do historiador francs. Acreditamos ser oportuno apresentar aos leitores brasileiros estaobra de corajosa viso histrica e rara beleza literria.

    Por ltimo, queremos agradecer a inestimvel contribuio de pessoas fsicas e jurdicas sem as quais a realizao

  • 9

    deste projeto editorial no teria sido possvel. A todos nossa eterna gratido.Estamos felizes e literariamente orgulhosos em poder oferecer aos nossos amigos e leitores o

    best seller universal Vida de Jesus, de Ernest Renan.

  • 10

    DEDICATRIA

    alma pura de minha irm Henriette

    Falecida em Biblos, aos 24 de setembro de 1861

    Recordas-te ainda, do seio de Deus em que repousas, desses longos dias de Gazir, quando,s contigo, eu escrevia estas pginas inspiradas pelos lugares que havamos visitado juntos?Silenciosa a meu lado, relias cada folha e passava a limpo em seguida, enquanto o mar, asaldeias, as ravinas, as montanhas descortinavam-se a nossos ps. Quando a fatigante luz davalugar ao imensurvel exrcito de estrelas, tuas questes tinas e delicadas, tuas dvidasdiscretas levavam-me ao objeto sublime de nossos pensamentos comuns. Disseste-me um diaque amaria este livro, primeiro porque ele fora feito contigo, e tambm porque ele eraconforme teu corao. Se s vezes receavas os estreitos julgamentos do homem frvolo, sempreesteve convencida de que as almas verdadeiramente religiosas acabariam por gostar dele. Emmeio a essas doces meditaes, a asa da morte nos tocou; o sono da febre nos pegou na mesmahora; eu acordei sozinho! Dormes agora na terra de Adonis, aos ps da santa Biblos e dasguas sagradas onde as mulheres dos mistrios antigos vinham misturar suas lgrimas.Revela-me, boa alma, a

  • 11

    mim que tu amaras, essas verdades que dominam a morte, impedem o medo e quase nos levama am-la.

  • 12

    Prefcio da 13 edio

    As doze primeiras edies desta obra diferem umas das outras apenas em pequenasmudanas. A presente edio, ao contrrio, foi revista e corrigida com mais cuidado. Desde queo livro foi publicado, h quatro anos, trabalhei sem descanso para melhor-lo. As numerosascrticas que ele suscitou facilitaram, de certo modo, a tarefa. Li todas as que continham algo desrio. Creio poder afirmar, em s conscincia, que de forma alguma o ultraje e a calniainfiltrados nelas me impediram de aproveitar as boas observaes que essas crticas pudessemconter. Pesei e verifiquei tudo. Se, em certos casos, algum se espantar por eu no ter acolhidoas censuras que foram apresentadas com extrema segurana e como se estivessem tratando deerros incontestes, no porque eu as tenha ignorado, porque me foi impossvel aceit-las.Neste caso, o mais das vezes, juntei como notas os textos ou consideraes que me impediramde mudar de opinio ou, por alguma leve mudana de redao, fiz ver onde estava o desprezodos meus contraditores. Ainda que concisas e restritas indicao das fontes de primeira mo,minhas notas sempre bastam para mostrar ao leitor instrudo os raciocnios que me guiaram emtoda a composio do texto.

    Para me inocentar detalhadamente de todas as acusaes das quais fui objeto, foi precisotriplicar ou quadruplicar meu

  • 13

    volume; foi preciso repetir coisas que j haviam sido bem ditas, mesmo em francs; foi precisofazer polmica religiosa, o que me probo terminantemente; foi preciso falar de mim, o quenunca fao. Eu escrevo para propor minhas ideias aos que buscam a verdade. Quanto s pessoasque necessitam, no interesse de sua crena, que eu seja um ignorante, um esprito falso ou umhomem de m-f, no tenho a pretenso de modificar seus julgamentos. Se essa opinio necessria ao sossego de algumas pessoas piedosas, terei o maior escrpulo em desiludi-las.

    A controvrsia, alis, se eu a houvesse lanado, teria levado frequentemente a pontosestranhos crtica histrica. As objees que me puseram vm de dois lados opostos. Umas meforam enviadas por livres-pensadores que no creem no sobrenatural1 nem, em consequncia,na inspirao dos livros santos, ou por telogos da escola protestante liberal com uma noo toampla do dogma que o racionalismo pode bem se entender com eles. Esses adversrios e eu nosencontramos sobre o mesmo terreno, paramos dos mesmos princpios, podemos discutirsegundo as regras seguidas em todas as questes de hist6ria, de filologia, de arqueologia.Quanto s refutaes que foram feitas ao meu livro (e so mais numerosas) por telogosortodoxos, sejam cat1icos, protestantes, crentes no sobrenatural e no carter sagrado dos livrosdo Antigo e do Novo Testamento, todas elas implicam um mal-entendido fundamental. Se omilagre possui algo de real, meu livro no passa de uma trama de erros. Se os Evangelhos solivros inspirados, consequentemente verdadeiros ao p da letra, do comeo ao fim, cometigrande erro de no me contentarem colocar integralmente os trechos recortados dos quatrotextos,

    1 Sempre entendo por esta palavra o sobrenatural particular, a interveno da divindade visando a umobjetivo especial, o milagre, e no o sobrenatural geral, a alma escondida do universo, o ideal, origem e causafinal de todos os movimentos do mundo.

  • 14

    como fazem os harmonistas, exceto para construir, deste modo, o conjunto mais redundante emais contraditrio. Se, ao contrrio, o milagre uma coisa inadmissvel, tive razo em encararos livros que contm relatos milagrosos como histrias misturadas fico, como lendas cheiasde imprecises, de erros, de arbitrariedades sistemticas. Se os Evangelhos so livros comooutros, tive razo em trat-los da mesma maneira que o helenista, o arabista e o indianistatratam os documentos lendrios que estudam. A crtica no conhece textos infalveis; seuprimeiro princpio admitir a possibilidade de um erro no texto que estuda. Longe de seracusado de ceticismo, devo ser posto entre os crticos moderados, j que, em vez de rejeitar embloco os documentos enfraquecidos por tanta mistura, tento tirar deles algo de histrico pormeio de delicadas aproximaes.

    E que no se diga que tal maneira de pr a questo implica uma petio de princpio, quesuponha a priori o que deve ser provado pelo detalhe, saber que os milagres contados pelosEvangelhos no foram verdicos, que os Evangelhos no so livros escritos com a participaoda divindade. Estas duas negaes no so, a nosso ver, resultado de exegese; elas soanteriores exegese. So fruto de uma experincia que no foi desmentida. Os milagres sodessas coisas que nunca acontecem; somente as pessoas crdulas acreditam v-los; no se podecitar um nico que se tenha passado diante de testemunhas capazes de constat-los; nenhumainterveno particular da divindade na confeco de um livro ou em qualquer acontecimentoque seja foi provada. Por isso, se se admite o sobrenatural, est-se fora da cincia, admite-seuma explicao que no tem nada de cientfica, uma explicao que dispensa o astrnomo, ofsico, o qumico, o gelogo, o fisiologista, e o historiador deve tambm ser dispensado.Rejeitamos o sobrenatural pela mesma razo que rejeitamos a existncia de centauros ehipogrifos: que nunca os vimos. No porque me foi anteriormente demonstrado que osevangelistas no merecem crdito absoluto que eles con-

  • 15

    tam. porque eles contam milagres que eu digo: Os Evangelhos so lendas; eles podem conterhistria, mas certamente nem tudo ali histrico.

    Ento impossvel que o ortodoxo e o racionalista que nega o sobrenatural possam se ajudarmuito em tais questes. Aos olhos dos telogos, os Evangelhos e os livros bblicos em geral solivros como no h outros, livros mais histricos que as melhores histrias, j que eles nocontm nenhum erro. Para o racionalista, ao contrrio, os Evangelhos so textos aos quais sedevem aplicar as regras comuns da crtica; ns somos, sob seu ponto de vista, como so osarabistas diante do Coro e dos hadith, como so os indianistas diante dos Vedas e dos livrosbdicos. Os arabistas veem o Coro como infalvel? Eles so acusados de falsificar a histriaquando contam as origens do islamismo de forma diferente da dos telogos muulmanos? Osindianistas tomam o Lalitavistara (vida lendria de Buda) por uma biografia?

    Como, partindo de princpios opostos, esclarecer-se reciprocamente? Todas as regras dacrtica supem que o documento submetido a exame tem um valor relativo, que esse documentopode se enganar, que ele pode ser reformado por um documento melhor. Convencido de quetodos os livros que o passado nos deixou so obra de homens, o sbio profano no hesita emcontrariar os textos quando eles se contradizem, quando enunciam coisas absurdas ouformalmente refutadas por testemunhas mais autorizadas. O ortodoxo, ao contrrio, certo deantemo de que no h um nico erro nem contradio nos livros sagrados, presta-se aos meiosmais violentos, aos expedientes mais desesperados para sair das dificuldades. A exegeseortodoxa como um tecido de sutilezas; uma sutileza pode ser verdadeira isoladamente, masmil sutilezas no podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Se havia em Tcito ou Polibo errosto caracterizados como os que Lucas comete a respeito de Quirino e de Tendas, dir-se-ia queTcito e Polibo se enganaram. Juzos que no seriam feitos se se tratasse de literatura grega oulatina; hipteses as quais um Boissonade ou mesmo

  • 16

    um Rollin no considerariam jamais, achamos plausveis quando se trata de justificar um autorsagrado.

    Ento o ortodoxo que cai numa petio de princpio quando reprova o racionalista pormudar a histria porque ela no segue ao p da letra os documentos que o ortodoxo toma comosagrados. No porque uma coisa est escrita que ela verdadeira. Os milagres de Maomesto escritos tanto quanto os de Jesus, e certamente as biografias rabes de Maom a deIbn-Hischam, por exemplo tm um carter bem mais histrico que os Evangelhos. E por issoadmitimos os milagres de Maom? Seguimos Ibn-Hischam com alguma confiana, quando notemos razes para nos afastarmos dele. Mas, quando ele nos conta coisas absolutamenteincrveis, no temos dificuldade em abandon-lo. Com certeza, se tivssemos quatro Vidas deBuda, em parte fabulosas e tambm inconciliveis entre elas como os quatro Evangelhos o soentre eles, e se um sbio tentasse desembaraar os quatro relatos bdicos de suas contradies,no se repreenderia este sbio por fazer os textos mentirem. Seda tido como bom que elelevasse as passagens discordantes a se entenderem, que ele procurasse um acordo, uma espciede meio-termo, sem conter nada de impossvel, em que as testemunhas opostas fossembalanceadas entre elas e violentadas o mnimo possvel. Se, depois disso, os budistasproclamassem mentira, falsificao da histria, teramos o direito de lhes responder: Aqui nose trata de histria e, se nos desviamos s vezes de seus textos, a culpa desses textos, quecontm coisas impossveis de se acreditar e, alis, so contraditrios.

    Na base de qualquer discusso sobre tais matrias est a questo do sobrenatural. Se omilagre e a inspirao de certos livros so coisas reais, nosso mtodo detestvel. Se o milagree a inspirao dos livros so crenas sem realidade, nosso mtodo bom. Ora, a questo dosobrenatural para ns decidida com inteira certeza, pela nica razo de que no h comoacreditar em algo ao qual mundo no oferece nenhum trao experimental. No acreditamos emmilagre, como no acreditamos em alma do outro mundo, em diabo, em bruxaria, em

  • 17

    astrologia. Precisamos refutar ponto por ponto os longos raciocnios do astrlogo para negarque os astros influam nos acontecimentos humanos? No. Basta essa experincia negativa, mastambm demonstrativa como melhor prova direta, de que nunca constatamos tal influncia.

    No apraz a Deus que desconheamos os servios que os te1ogos prestaram cincia! Apesquisa e a reconstituio dos textos que servem de documentos para essa histria foram obrade telogos geralmente ortodoxos. O trabalho de crtica foi obra dos te1ogos liberais. Mas huma coisa que um te1ogo nunca saberia ser: um historiador. A histria essencialmentedesinteressada. O historiador s tem uma preocupao, a arte e a verdade (duas coisasinseparveis a arte guardando o segredo das leis mais ntimas do verdadeiro). O te1ogo temum interesse, seu dogma. Reduza esse dogma tanto quanto queira: ele ainda, para o artista e ocritico, de um peso insuportvel. O telogo ortodoxo pode ser comparado a um pssaro nagaiola qualquer movimento prprio lhe proibido. O telogo liberal um pssaro ao quallhe cortaram algumas penas da asa. Voc o toma por mestre de si mesmo, e o , de fato, at omomento de levantar voo. Ento voc v que ele no completamente filho do ar. Declaremosastutamente: os estudos crticos relativos s origens do cristianismo s diro sua ltima palavraquando forem cultivados num esprito puramente leigo e profano, segundo o mtodo doshelenistas, dos arabistas, dos sanscritistas, pessoas estranhas a qualquer teologia, que nopensam em edificar nem em escandalizar; em defender os dogmas nem derrub-los.

    Dia e noite, ouso diz-lo, refleti sobre essas questes, que devem ser discutidas sem outrospreconceitos que no os que constituem a prpria essncia da razo. A mais grave de todas,incontestavelmente, a do valor histrico do quarto Evangelho. Os que no vacilaram sobretais problemas fazem crer que no compreenderam toda a sua dificuldade. Podem-se dispor asopinies sobre esse Evangelho em quatro classes, como se segue resumidamente:

  • 18

    Primeira opinio: O quarto Evangelho foi escrito pelo apstolo Joo, filho de Zebedeu. Osfatos contidos neste Evangelho so todos verdadeiros; os discursos que o autor pe na boca deJesus foram realmente proferidos por Jesus. a opinio ortodoxa. Do ponto de vista da crticaracional ela completamente insustentvel.

    Segunda opinio: O quarto Evangelho considerado como do apstolo Joo, se bem quepossa ter sido redigido e retocado por seus discpulos. Os fatos contados neste Evangelho sotradies diretas sobre Jesus. Os discursos so geralmente composies livres, exprimindoapenas a forma como o autor concebia o esprito de Jesus. a opinio de Ewald e, de certaforma, a de Lcke, de Weisse, de Reuss. a opinio que eu havia adotado na primeira ediodesta obra.

    Terceira opinio: O quarto Evangelho no obra do apstolo Joo. Ele lhe foi atribudo poralguns de seus discpulos por volta do ano 100. Os discursos so quase intente fictcios, mas aspartes narrativas encerram preciosas tradies, remontando em parte ao apstolo Joo. aopinio de Weizsaecker, de Michel Nicolas. qual me apego atualmente.

    Quarta opinio: O quarto Evangelho no de modo algum do apstolo Joo. Nem pelosfatos nem pelos discursos que ali so relatados. uma obra da imaginao, e em partealegrica, que surgiu por volta do ano 150, na qual o autor se props no contar efetivamente avida de Jesus, mas fazer prevalecer a ideia que se fazia de Jesus. Tal a opinio de Baur,Schwegler, Strauss, Zeller, Volkmar, Hilgenfeld, Schenkel, Scholten, Rville.

    No posso me ligar inteiramente a esse partido radical.Ainda creio que o quarto Evangelho tenha uma ligao real com o apstolo Joo, e que foi

    escrito perto do fim do sculo I. Entretanto, devo confessar que, em certas passagens de minhaprimeira redao, tendi demais para a autenticidade. A fora comprobatria de algunsargumentos sobre os quais eu insistia me parece diminuda. No creio mais que So Justinotenha posto o quarto Evangelho no mesmo nvel que os sinticos,

  • 19

    entre as memrias dos apstolos. A existncia de Presbyteros Joannes como personagemdistinto do apstolo Joo me parece agora muitssimo problemtica. A opinio segundo a qual oapstolo Joo, filho de Zebedeu, tenha escrito a obra hiptese nunca admitidacompletamente mas, pela qual, por momentos, eu mostrava alguma fraqueza est descartadacomo improvvel. Enfim, reconheo que errei ao rejeitar a hiptese de um falso escritoatribudo a um apstolo ao fim da idade apost1ica. A Segunda Epstola de So Pedro, da qualningum pode razoavelmente sustentar a autenticidade, exemplo de uma obra bem menosimportante, verdade, que o quarto Evangelho suposta nessas condies. De resto, essa no a questo capital. O essencial saber como usar conveniente mente o quarto Evangelhoquando se tenta escrever a vida de Jesus. Insisto em pensar que esse Evangelho possui um valorde fundo paralelo ao dos sinticos, e s vezes mesmo superior.

    Todas as frases que implicavam mais ou menos que o quarto Evangelho foi do apstolo Jooou de uma testemunha ocular dos fatos evanglicos foram revisadas. Para traar o carterpessoal de Joo, filho de Zebedeu, pensei no rude Boanerges (filho do trovo) de Marcos, novisionrio terrvel do Apocalipse, e no mais no mstico cheio de ternura que escreveu oEvangelho do amor. Insisto com menos confiana em certos detalhes que nos so fornecidospelo quarto Evangelho. As suposies to restritas que eu havia feito do discurso desseEvangelho foram ainda mais diminudas. Eu me deixei enredar demais na sequencia dopretenso apstolo no que tange promessa do Parclito. Da mesma forma, no estou mais tocerto de que o quarto Evangelho tenha razo na sua discordncia com os sinticos sobre o diada morte de Jesus. Quanto ao lugar da Ceia, ao contrrio, insisto na minha opinio. O relatosintico que reporta a instituio eucarstica ltima noite de Jesus parece-me encerrar umainverosimilhana equivalente a um quase milagre. Esta , na opinio, uma verso conveniente eque repousava sobre uma certa miragem de lembranas.

  • 20

    O exame crtico dos sinticos, no fundo, no foi modificado. Completamos e precisamoscertos pontos, especialmente no que diz respeito a Lucas. Sobre Lisnias, um estudo dainscrio de Zendoro em Baalbeck, que fiz para a Misso da Fencia, levou-me a crer que oevangelista podia no estar to enganado como hbeis crticas o pensam. Sobre Quirino, aocontrrio, o ltimo memorial de Mommsen definiu a questo contra o terceiro Evangelho.Marcos me parece cada vez mais o estilo primitivo da narrao sintica, e o texto maisautorizado.

    O pargrafo relativo aos apcrifos foi desenvolvido. Os textos importantes publicados porCeriani foram aproveitados ao mximo. Hesitei muito sobre o livro de Henoc. Rejeito a opiniode Weisse, de Volkmar, de Groetz, que creem ser o livro inteiro posterior a Jesus. Quanto parte mais importante do livro, a que se estende do 37 captulo ao 71, no ouso decidir-meentre os argumentos de Hilgenfeld, Colani, que consideram esta parte posterior a Jesus, e aopinio de Hoffmann, Dillmann, Koestlin, Ewald, Lcke, Weizsaecker, que a tomam comoanterior. Como seria desejvel que encontrssemos o texto grego desse escrito fundamental!No sei por que teimo em acreditar que essa esperana no v. Em todo caso, deixei um sinalde dvida nas indues tiradas dos captulos citados. Mostrei, ao contrrio, as relaessingulares entre os discursos de Jesus contidos nos ltimos captulos dos Evangelhos sinticos eos apocalipses atribudos a Henoc, relaes que a descoberta do texto grego completo daepstola atribuda a So Barnab esclareceu, e que Weizsaecker bem destacou. Os resultadoscorretos obtidos por Volkmar sobre o quarto livro de Esdras, e que concordam, com mnimaaproximao, com os de Ewald, tambm foram levados em conta. Diversas novas citaestalmdicas foram introduzidas. O espao dedicado ao essenismo foi um pouco aumentado.

    Minha deciso de excluir a bibliografia foi muitas vezes mal-interpretada. Creio haverdeclarado suficientemente o que devo aos mestres da cincia alma em geral, e a cada um

  • 21

    deles em particular, para que tal silncio no possa ser tachado de ingratido. A bibliografia s til quando completa. Ora, o gnio alemo produziu tanto no terreno da crtica evanglicaque, se eu fosse citar todos os trabalhos relativos s questes tratadas neste livro, teria triplicadoa extenso das notas e mudado o carter do meu escrito. No se pode fazer tudo ao mesmotempo. Ento, me ative regra de admitir apenas citaes de primeira mo. O nmero delas foimuito multiplicado. Por outro lado, para a comodidade dos leitores franceses que no esto apar desses estudos, mantive a lista sumria dos escritos compostos em lngua francesa, na qualse podem encontrar detalhes que tive de omitir. Vrias dessas obras afastam-se das minhasideias, mas todas levam um homem instrudo a refletir e o pe a par de nossas discusses.

    A trama do relato foi pouco mudada. Certas expresses fortes demais sobre o espritocomunista, que foi da essncia do cristianismo nascente, foram amenizadas. Entre as pessoasdas relaes de Jesus, admiti algumas cujos nomes no figuram nos Evangelhos, mas que soreconhecidas como testemunhas dignas de confiana. No que diz respeito ao nome de Pedro,houve modificao; tambm adotei uma outra hiptese sobre Levi, filho de Alfeu, e sobre suasrelaes com o apstolo Mateus. Quanto a Lzaro, alio-me, agora sem hesitar, ao sistemaengenhoso de Strauss, Baur, Zeller, Scholten, segundo o qual o bom pobre da parbola deLucas e o ressuscitado de Joo so uma s pessoa. Contudo, poder ser notado que guardoalguma realidade combinando-o com Simo, o leproso. Adoto tambm a hiptese de Strausssobre diversos discursos atribudos a Jesus nos seus ltimos dias, e que parecem citaes deescritos difundidos no sculo I. A discusso dos textos sobre a durao da vida pblica de Jesusfoi determinada com mais preciso. A topografia de Beffag e de Dalmanuta foi modificada. Aquesto do G1gota foi retomada segundo os trabalhos do Sr. de Vog. Uma pessoa muitoversada em histria botnica ensinou-me a distinguir, nos pomares da Galilia, as rvores queali se encontravam h mil e

  • 22

    oitocentos anos e as que s foram transplantadas depois. Tambm cedi lugar a algumasobservaes que me foram comunicadas sobre a bebida dos crucificados. No relato das ltimashoras de Jesus, em geral atenuei as frases elaboradas que pudessem parecer histricas demais. a que as explicaes favoritas de Strauss melhor se aplicam, que as intenes dogmticas esimb1icas se mostram a cada passo. J disse e repito: se, ao escrever a vida de Jesus, nosativssemos em adiantar apenas as certezas, deveramos nos limitar a algumas linhas. Eleexistiu. Era de Nazar da Galilia. Pregou de uma maneira encantadora e deixou na memriados discpulos aforismos que lhes ficaram gravados profundamente. Os dois principais dos seusdiscpulos foram Cefas e Joo, filho de Zebedeu. Ele excitou a ira dos judeus ortodoxos, queconseguiram conden-lo morte, por meio de Pncio Pilatos, ento procurador da Judia. Foicrucificado fora dos portes da cidade. Acreditou-se pouco depois que ele tenha ressuscitado.Eis o que saberamos com certeza, mesmo que os Evangelhos no existissem ou fossemmentirosos, com textos de autenticidade e datas incontestveis, tais como as epstolasevidentemente autnticas de So Paulo, a Epstola aos Hebreus, o Apocalipse e outros textosadmitidos por todos. Fora isso, permitida a dvida. Quem foi sua famlia? Qual foi, emparticular, sua relao com Tiago, irmo do Senhor, que, aps sua morte, desempenha papelfundamental? Teve ele realmente relaes com Joo Batista, seus discpulos mais clebresvieram da escola do Batista? Quais foram suas ideias messinicas? Ele visto como o Messias?Quais foram suas ideias apocalpticas? Acreditou-se que ele apareceria nas nuvens como Filhodo Homem? Ele podia imaginar que faria milagres? Ele doou sua vida humanidade? Quando alenda comeou em tomo dele, teve conhecimento disso? Qual foi seu carter moral? Quaisforam suas ideias sobre admisso dos gentios no reino de Deus? Foi ele um puro seguidor dojudasmo como Tiago, ou rompeu com o judasmo, como o fez mais tarde a maior parte de suaIgreja? Qual foi a ordem do desenvolvimento de seu

  • 23

    pensamento? Os que procuram apenas o indubitvel em histria devem se calar diante de tudoisso. Os Evangelhos, para essas questes, so testemunhas pouco certas, j que normalmentefornecem argumentos a duas teses opostas, e que a figura de Jesus ali modificada de acordocom as vises dogmticas dos redatores. Na minha opinio, penso que em tais ocasies permitido fazer conjecturas, com a condio de prop-las para o que so. Os textos, no sendohistricos, no do certeza, mas do alguma coisa. No se deve segui-los com confiana cega;nem privar-se de seu testemunho com um desdm injusto. preciso empenho em decifrar o queeles escondem, sem - nunca estar absolutamente certo de t-lo encontrado.

    Coisa singular! Sobre todos esses pontos, a escola de teologia liberal que prope assolues mais cticas. A apologia sensata do cristianismo achou melhor deixar em branco ascircunstncias histricas do nascimento do cristianismo. Os milagres, as profecias messinicas,outrora bases da apologia crist, tomaram-se incmodos; buscou-se descart-los. Ouvindo ospartidrios dessa teologia, entre os quais eu poderia citar tantos eminentes crticos e nobrespensadores, Jesus no pretendeu fazer nenhum milagre; ele no se dizia o Messias; no pensounos discursos apocalpticos que lhe so atribudos sobre as catstrofes finais. Que Ppias, tobom tradicionalista, to zeloso em recolher as palavras de Jesus, seja milenarista (Apoc. XX, 1-3) exaltado; que Marcos, o mais antigo e mais autorizado dos narradores evanglicos, sejaquase exclusivamente preocupado com milagres, pouco importa. Reduz-se tanto o papel deJesus, que teramos dificuldade em dizer quem ele foi. Sua condenao morte no tem maisrazo de ser sob uma tal hiptese que o destino que fez dele chefe de um movimentomessinico e apocalptico. Foi por seus preceitos morais, pelo Sermo da Montanha, que Jesusfoi crucificado? Certamente no. Essas mximas eram h algum tempo moeda corrente dassinagogas. Nunca se matou ningum por hav-las repetido. Se Jesus foi morto porque diziaalgo a mais. Um homem sbio, que esteve envolvido nesses debates, escreveu-

  • 24

    me recentemente: Como, antigamente, era preciso provar a qualquer preo que Jesus eraDeus, trata-se, para a escola protestante de hoje, de provar no apenas que ele era simplesmentehomem, mas ainda que ele sempre se viu como tal. Insiste-se em represent-lo como o homemde bom senso, o homem prtico por excelncia; ele transformado imagem e segundo osentimento da teologia moderna. Eu creio, como o senhor, que no mais o caso de se fazerjustia verdade histrica, mas de negligenciar um aspecto essencial dela.

    Essa tendncia j foi mais de uma vez produzida no seio do cristianismo. O que queriaMarcio? O que queriam os gnsticos do sculo II? Descartar as circunstncias materiais deuma biografia cujos detalhes humanos os chocavam. Baur e Strauss obedecem a necessidadesfilosficas anlogas. O eo divino2, o que se desenvolve pela humanidade, no tem nada a vercom incidentes anedticos, com a vida particular de um indivduo. Seholten e Sehenkelinsistem em um Jesus histrico e real, mas seu Jesus histrico no nem um messias, nem umprofeta, nem um judeu. No se sabe o que ele quis; no se compreende nem sua vida nem suamorte. Seu Jesus um co sua moda, um ser intangvel. A histria pura no conhece taisseres. A histria pura deve construir seu edifcio com duas espcies de dados e atrevo-me adizer dois fatores: primeiro, o estado geral da alma humana em um sculo e em um pasdeterminados; em segundo lugar, os incidentes particulares que, combinados com as causasgerais, determinaram o curso dos acontecimentos. Explicar a histria pelos incidentes tofalso como explicar por princpios puramente filosficos. As duas explicaes devem sesustentar e se completar uma outra. A histria de Jesus e dos apstolos deve ser antes de tudoa histria de uma grande miscelnea de

    2 No sistema gnstico, eo designa o ser diretamente emanado de Deus e cada vez mais imperfeito medidaque se distancia de sua fonte inefvel.

  • 25

    ideias e de sentimentos; entretanto, isso no suficiente. Mil acasos, mil esquisitices, milmesquinharias se misturaram s ideias e aos sentimentos. Definir exatamente esses acasos,essas esquisitices, essas mesquinharias, hoje impossvel; o que a lenda nos conta a esserespeito pode ser verdade, mas bem pode no ser. Na minha opinio, o melhor ficar o maisprximo possvel dos relatos originais, descartando todas as impossibilidades, semeando portodo lado os sinais de dvida e apresentando como conjecturas as diversas formas do que podeter acontecido. No estou bem certo de que a converso de So Paulo se tenha passado comocontam os Atos, mas ela se passou de uma forma no muito longe disso, j que So Paulo nosconta, ele mesmo, que teve uma viso de Jesus ressuscitado, que deu uma direo inteiramentenova sua vida. No estou bem certo de que o relato dos Atos sobre a descida do Esprito Santono dia de Pentecostes seja muito histrico, mas as ideias que se espalharam sobre o batismo defogo levam-me a crer que houve no crculo apostlico um ilusionismo em que o raiodesempenhou um papel, como no Sinai. As vises de Jesus ressuscitado tiveram como causacircunstncias fortuitas, interpretadas por imaginaes vivas e j preocupadas.

    Se os telogos liberais refutam explicaes desse gnero porque eles no querem sujeitar ocristianismo s leis comuns dos outros movimentos religiosos; tambm porque, talvez, noconheam suficientemente a teoria da vida espiritual. No h movimento religioso em que taisdecepes no tenham grande papel. Pode-se at dizer que elas so permanentes em certascomunidades, como a dos pietistas protestantes, dos mrmons, dos conventos catlicos. Nessespequenos mundos exaltados, no raro que as converses aconteam depois de algum incidenteem que a alma tocada v o dedo de Deus. Esses incidentes sempre tm algo de pueril e oscrentes os escondem; um segredo entre o cu e eles. Um acaso no nada para uma alma friaou distrada; para uma alma obcecada, um sinal divino. Dizer que foi um acidente materialque mudou

  • 26

    profundamente So Paulo, Santo Incio de Loyola, ou melhor, que deu uma nova aplicao asuas atividades , sem dvida, inexato. o movimento interior dessas naturezas fortes quepreparou o grande acontecimento, mas o grande acontecimento foi determinado por uma causaexterior. Todos esses fenmenos se ligam, enfim, a um estado moral que no mais o nosso. Osantigos se guiavam, na grande parte dos seus atos, pelos sonhos que tinham tido na noiteanterior, por indues tiradas do primeiro objeto fortuito que lhes chamasse a ateno, por sonsque pensavam ouvir. Houve voos de pssaro, correntes de ar, dores de cabea que decidiram odestino do mundo. Para ser sincero e ntegro, preciso dizer isso e, quando documentosmediocremente corretos nos contam incidentes desse tipo, preciso atentar para no deix-lospassar sob silncio. No existem detalhes corretos em histria; contudo, os detalhes sempre tmalgum significado. O talento do historiador consiste em fazer um conjunto verdadeiro comtraos meio verdadeiros.

    Pode-se ento destinar um lugar na histria para os acidentes particulares sem, com isso, serum racionalista da velha escola, um discpulo de Paulus (defensor da exegese racionalista).Paulus era um telogo que, querendo o mnimo de milagres possvel e no ousando tratar osrelatos bblicos como lendas, distorcia-os para explic-los de uma forma natural. Pauluspretendia com isso conservar toda a autoridade da Bblia e penetrar no verdadeiro pensamentodos autores sagrados3.

    Eu sou um crtico profano; creio que nenhum relato sobrenatural seja estritamenteverdadeiro; penso que, em cem relatos sobrenaturais, existam oitenta que nasceram daimaginao

    3 A estava o ridculo de Paulus. Se ele tivesse se contentado em dizer que muitos relatos de milagres tm comobase fatos naturais mal compreendidos, ele teria fido razo. Mas caa na puerilidade sustentando que o narradorsacro s quis contar coisas simples e que beneficiada o texto bblico ao desembara-lo de seus milagres. O crticoprofano pode e deve fazer essas espcies de hiptese, ditas racionalistas; o telogo no tem esse direito, pois acondio prvia de tais hipteses supor que o texto no revelado.

  • 27

    popular; entretanto admito que, em casos mais raros, a lenda vem de um fato real transformadopela imaginao. Entre a massa de fatos sobrenaturais contados pelos Evangelhos e os Atos,tento mostrar em cinco ou seis como a iluso pde nascer. O telogo, sempre sistemtico, querque uma nica explicao se aplique do comeo ao fim da Bblia; o crtico acredita que todas asexplicaes devam ser tentadas, ou melhor, que se deva mostrar sucessivamente a possibilidadede cada uma delas. O que uma explicao tem de repugnante para o nosso gosto no absolutamente uma razo para a rejeitarmos. O mundo ao mesmo tempo uma comdiainfernal e divina, onde o bem, o mal, o feio, o bonito desfilam nos lugares marcados, visando aocumprimento de um fim misterioso. A histria no ser histria se no ficarmos, ao l-la,alternadamente encantados e revoltados, entristecidos e consolados.

    A primeira tarefa do historiador descrever bem o meio em que se passa o fato que elerelata. Ora, a histria das origens religiosas nos transporta para um mundo de mulheres, decrianas, de cabeas ardentes ou perdidas. Situe esses fatos num meio de espritos positivos, eeles sero absurdos, ininteligveis, e eis por que os pases pesadamente racionais como aInglaterra no esto em condies de entender nada disso. O que peca nas argumentaesoutrora to clebres de Sherlock ou de Gilbert West sobre a ressurreio, de Lyttelton sobre aconverso de So Paulo, no o raciocnio: ele triunfa de solidez; a justa apreciao dadiversidade dos meios. Todas as tentativas religiosas que conhecemos claramente apresentamuma mistura inaudita de sublime e de bizarro. Leia esses processos verbais do saint-simonismoprimitivo, publicados com uma admirvel candura pelos adeptos sobreviventes. Ao lado depapis repulsivos, de declamaes inspidas, que charme, que sinceridade, desde que o homemou a mulher do povo entram em cena, trazendo a ingnua confisso de uma alma que se abresob o primeiro doce raio que o tocou. H mais de um exemplo de belas coisas durveis queforam fundadas sobre criancices singulares. No se deve procurar nenhuma proporo

  • 28

    entre o incndio e a causa que o acende. A devoo de Salete um dos grandes acontecimentosreligiosos de nosso sculo. Essas baslicas, to respeitveis, de Chartres, de Laon, foramlevantadas sobre iluses do mesmo gnero. O Corpus Christi teve como causa as vises de umareligiosa de Lige que acreditava sempre, em suas oraes, ver a lua cheia com uma pequenafenda. Citaramos movimentos cheios de sinceridade que foram produzidos no meio deimpostores. A descoberta da santa lana na Antioquia, onde a trapaa foi to evidente, decidiu asorte das Cruzadas. O movimento mrmon, cujas origens so to vergonhosas, inspiroucoragem e devoo. A religio dos drusos4 repousa sobre uma trama de absurdos que confundea imaginao, e tem seus devotos. O islamismo, que o segundo acontecimento da histria domundo, no existiria se o filho de Amina5 no fosse epilptico. O doce e imaculado Franciscode Assis no teria tido sucesso sem o frei Elias. A humanidade to fraca de esprito que a maispura coisa precisa da cooperao de algum agente impuro.

    Cuidemo-nos ao aplicar nossas distines conscienciosas, nossos raciocnios de cabea fria eclara na apreciao desses acontecimentos extraordinrios, que so ao mesmo tempo to fortesacima e abaixo de ns. Cada qual queria fazer de Jesus um sbio, um filsofo, um patriota, umhomem de bem, um moralista, um santo. Ele no foi nada disso. Foi um encantador. Nofaamos o passado nossa imagem. No creiamos que a sia a Europa. Para ns, o louco um ser fora da regra; torturamo-lo para faz-lo entrar nela; os horrveis tratamentos das antigasCasas de loucos eram conformes lgica escolstica e cartesiana. No Oriente, o louco um serprivilegiado; ele entra nos mais altos conselhos, sem que ningum ouse impedi-lo; ele

    4 Populao dividida entre o Lbano, a Sria e a Palestina, que pratica uma religio inicitica nascida sob o reinodo califa do Egito al-Hakim, no comeo do sculo XI.

    5 O profeta Maom.

  • 29

    ouvido, consultado. um ser que se cr mais perto de Deus porque, sua razo individualestando extinta, supe-se que ele participe da razo divina. O esprito que revela por uma finatroa qualquer defeito de raciocnio no existe na sia. Uma pessoa graduada do islamismo mecontava que h alguns anos, sendo necessria uma reparao urgente no tmulo de Maom emMedina, chamaram alguns pedreiros, avisando que o que descesse naquele lugar teria a cabeacortada ao subir. Algum se apresentou, desceu, fez o conserto, depois se deixou decapitar.Era necessrio, disse-me o interlocutor; esses lugares so imaginados de uma certa maneira;no precisa ningum dizer que eles so diferentes.

    As conscincias confusas no saberiam ter a nitidez do bom senso. Ora, apenas asconscincias confusas fundamentam poderosamente. Eu quis fazer um quadro em que as coresfossem fundidas como na natureza, que fosse parecido com a humanidade, quer dizer, grande epueril ao mesmo tempo, onde vssemos o instinto divino franquear seu caminho com seguranaem meio a mil singularidades. Se o quadro ficou sem sombra, foi a prova de que era falso. Oestado dos documentos no me permite dizer em que caso a iluso foi consciente dela mesma.Tudo o que se pode dizer que ela o foi s vezes. No se pode levar durante anos a vida detaumaturgo sem ser dez vezes acuado, sem ser forado pelo pblico. O homem objeto de umalenda durante sua vida conduzido tiranicamente por ela. Comea-se pela ingenuidade, acredulidade, a inocncia absoluta: acaba-se com dificuldades de toda espcie e, para sustentar apotncia divina em dificuldades, sai-se delas mediante expedientes desesperados. Foi-seintimado: convm deixar arruinar a obra de Deus porque Deus demora a se revelar? JoanadArc no fez falar mais de uma vez suas vozes segundo a necessidade do momento? Se orelato da revelao secreta que ela fez ao rei Carlos VII tem alguma realidade, o que difcil denegar, preciso que essa inocente moa tenha apresentado como efeito de uma intuiosobrenatural o que ela contou como confidncia. Uma exposio de histria religiosa que

  • 30

    no abra uma luz oblqua sobre suposies desse tipo por isso mesmo alegada de no sercompleta.

    Qualquer circunstncia verdadeira ou provvel ou possvel deveria ento ter seu lugar emminha narrao, com sua nuana de probabilidade. Numa tal histria, seria preciso dizer nosomente o que aconteceu, mas ainda o que pode ter acontecido com verossimilhana. Aimparcialidade com a qual eu tratava meu sujeito me impedia de recusar uma conjectura,mesmo chocante pois sem dvida houve muito de chocante no modo como as coisas sepassaram. Apliquei do comeo ao fim o mesmo procedimento de maneira inflexvel. Disse asboas impresses que os textos me sugeriam; no deveria omitir as ms. Quis que meu livrotivesse seu valor, mesmo no dia em que se chegasse a ver um certo grau de fraude como umelemento inseparvel da histria religiosa. Era preciso fazer meu heri belo e encantador (pois,sem controvrsia, ele o foi); e isso, apesar dos atos que, em nossos dias, seriam qualificados demaneira desfavorvel. Elogiaram-me por haver procurado construir um relato vivo, humano,possvel. Meu relato teria merecido esses elogios se tivesse apresentado as origens docristianismo como absolutamente imaculadas? Seria admitir o maior dos milagres. O queresultou foi um quadro de extrema frieza. No digo que, por falta de manchas, tive de invent-las. Pelo menos eu devia deixar cada texto produzir sua nota suave ou discordante. Se Goetheestivesse vivo, ele me aprovaria por esse escrpulo. Esse grande homem no me perdoaria umquadro todo celeste: teria querido traos repulsivos, pois, certamente, na realidade, passaram-secoisas que nos chocariam se nos fossem dadas a ver6.

    6 Entretanto, como em tais assuntos a edificao corre solta, achei que devia extrair da Vida de Jesus umpequeno volume onde nada pudesse prender as almas pias que no se preocupam com a crtica. Intitulei-o Jesus,para distingui-lo da presente obra, que faz parte da srie intitulada Histria das origens do cristianismo. Nenhumadas modificaes introduzidas na edio aqui apresentada ao pblico atinge este pequeno volume; jamais fareimudanas nele.

  • 31

    Alm disso, a mesma dificuldade se apresenta para a histria dos apstolos. Esta histria admirvel a seu modo. Mas o que h de mais chocante que a glossolalia que atestada portextos irrecusveis de So Paulo? Os telogos liberais admitem que o desaparecimento do corpode Jesus foi uma das bases da crena na ressurreio. O que significa isso, seno que aconscincia crist naquele momento foi dupla, que uma metade dessa conscincia criou a ilusoda outra metade? Se os mesmos discpulos tivessem removido o corpo e se espalhassem pelacidade gritando: Ele ressuscitou!, a impostura teria sido caracterizada. Mas, sem dvida, noforam os mesmos que fizeram essas duas coisas. Para que se acredite em um milagre, precisoque algum seja responsvel pelo primeiro rumor que se espalha; mas, normalmente, no oator principal. O papel deste se limita a no reclamar contra a reputao que lhe atribuem.Mesmo que ele reclame, ser intil; a opinio popular ser mais forte que ele. No milagre deSalete, teve-se a ideia clara do artifcio, mas a convico de que aquilo fazia bem religio oelevou acima de tudo. A fraude dividida entre vrios torna-se inconsciente, ou melhor, deixa deser fraude e torna-se mal-entendido. Nesse caso, ningum engana deliberadamente; todosenganam inocentemente. Antigamente, supunha-se que para cada lenda havia enganados eenganadores; para ns, todos os colaboradores de uma lenda so ao mesmo tempo enganados eenganadores. Um milagre, em outros termos, supe trs condies: l) a credulidade de todos;2) um pouco de condescendncia por parte de alguns; 3) a aquiescncia tcita do autorprincipal. Como reao contra as explicaes brutais do sculo XVIII, no camos em hiptesesque implicariam efeitos sem causa. A lenda no nasce sozinha; ajuda-se que ela nasa. Essespontos de apoio de uma lenda so frequentemente de uma rara tenuidade. a imaginaopopular que faz a bola de neve; contudo, h ncleo primitivo. As duas pessoas que compuseramas duas genealogias de Jesus sabiam muito bem que essas listas no tinham grandeautenticidade. Os livros apcrifos, esses pretensos apocalipses de

  • 32

    Daniel, de Henoc, de Esdras, vm de pessoas bastante convincentes: ora, os autores dessasobras sabiam bem que eles no eram nem Daniel, nem Henoc, nem Esdras. O padre da sia quecomps o romance de Thecla declarou que ele o havia feito por amor a Paulo. preciso dizer omesmo do autor do quarto Evangelho, personagem seguramente de primeira ordem. Expulse ailuso da histria religiosa por uma porta e ela entra por uma outra. Em suma, citaramos comdificuldade uma grande coisa no passado que tenha sido feita de um modo inteiramenteconfesso. Deixaremos de ser franceses porque a Frana foi fundada por sculos de perfdias?Recusaremos o proveito dos benefcios da Revoluo porque ela cometeu inumerveis crimes?Se a casa dos Capetos conseguiu nos criar um bom tribunal constitucional, anlogo ao daInglaterra, protestaramos contra a cura das escrfulas7?

    S a cincia pura, porque ela no tem nada de prtico; ela no toca os homens; apropaganda no a v. Seu dever provar, e no persuadir ou converter. Aquele que encontrouum teorema publica sua demonstrao para os que podem compreend-la. Ele no sobe numactedra, no gesticula, ele no recorre a artifcios oratrios para convencer as pessoas que noveem verdade nele a adot-lo. Certamente o entusiasmo tem sua boa-f, mas uma boa-fingnua, no a boa-f profunda, refletida, do sbio. O ignorante s cede a ms razes. SeLaplace tivesse de convencer a multido do seu sistema do mundo, no teria podido se limitars demonstraes matemticas. Littr, ao escrever a vida de um homem que ele v como seumestre (Comte), pde levar a sinceridade at no omitir nada do que tornou esse homem poucoamvel.

    Isso no tem exemplo na histria religiosa. Apenas a cincia busca a verdade pura. Sozinha,ela d as boas razes para a verdade e encerra uma crtica severa ao emprego dos meios

    7 Tumor ganglionar que o rei da Frana, no dia da sagrao, supostamente podia curar pelo toque. (N. do T.)

  • 33

    de convico. Eis por que at hoje, sem dvida, ela no teve influncia sobre o povo. Talvez, nofuturo, quando o povo for instrudo, como esperamos, ele s ceder a boas provas, bemdeduzidas. Mas ele ser pouco justo ao julgar segundo esses princpios os grandes homens dopassado. H temperamentos que no se conformam em ser impotentes, que aceitam ahumanidade como ela , com suas fraquezas. Muitas obras grandiosas no puderam ser feitassem mentiras e sem violncias. Se amanh o ideal encarnado vier se oferecer aos homens paragovern-los, ele se depararia com a bobagem, que quer ser enganada; com a maldade, que querser domada. O nico irrepreensvel o contemplativo, que s busca a verdade, sem sepreocupar em faz-la triunfar ou aplic-la.

    A moral no a histria. Pintar e relatar no aprovar. O naturalista que descreve astransformaes da crislida no a censura nem a louva. No a chama de ingrata porque elaabandona o casulo; no a acha temerria porque ela cria asas; no a acusa de louca porque eladeseja se lanar no espao. Pode-se ser amigo da verdade e do belo e, contudo, mostrar-seindulgente para com as ingenuidades do povo. Apenas o ideal imaculado. Nossa felicidadecustou a nossos pais enxurradas de lgrimas e rios de sangue. Para que almas piasexperimentem ao p do altar a ntima consolao que as faz viver, foram necessrios sculos dealtivo constrangimento, os mistrios de uma poltica sacerdotal, uma vara de ferro, fogueiras. Orespeito que se deve a toda uma grande instituio no requer nenhum sacrifcio sinceridadeda histria. Antigamente, para ser bom francs, era preciso acreditar na pomba de Clvis, nasantiguidades nacionais do Tesouro de Saint-Denis, nas virtudes da auriflama, na missosobrenatural de Joana dArc; era preciso acreditar que a Frana era a primeira das naes, que arealeza francesa tinha uma superioridade sobre todas as outras, que tinha essa coroa umapredileo muito particular e estava sempre ocupado em proteg-la. Hoje sabemos que Deusprotege igualmente todos os reinos, todos os imprios, todas as repblicas; confessamos

  • 34

    que vrios reis da Frana foram homens desprezveis; reconhecemos que o carter francs temseus defeitos; admiramos vivamente uma poro de coisas vindas do estrangeiro. Somos porisso piores franceses? Pode-se dizer, ao contrrio, que somos melhores patriotas, j que, em vezesconder nossos defeitos, buscamos corrigi-los, e que, em vez de denegrir o estrangeiro,buscamos imitar o que ele tem de bom. Somos cristos do mesmo modo. Aquele que fala comirreverncia da realeza da Idade Mdia, de Lus XIV, da Revoluo, do Imprio, comete um atode mau gosto. Aquele que no fala delicadamente do cristianismo e da Igreja da qual ele fazparte torna-se culpado de ingratido. Mas o reconhecimento filial no deve absolutamentechegar a fechar os olhos verdade. No se falta com o respeito para com o governo ao se notarque ele no pde satisfazer as necessidades contraditrias inerentes ao homem, nem para com areligio, ao dizer que ela no escapa das formidveis objees que a cincia pe contra qualquercrena sobrenatural. Respondendo a certas exigncias sociais e no a outras, os governos caempelas mesmas causas por que foram fundados e que constituram sua fora. Respondendo saspiraes do corao custa dos reclamos da razo, as religies desmoronam uma a umaporque nenhuma fora at hoje conseguiu sufocar a razo.

    E infeliz da razo no dia em que ela sufocar a religio! Creia-me, nosso planeta trabalha emalguma obra profunda. No se pronuncie temerariamente sobre a inutilidade de tal ou qual desuas partes; no diga que preciso suprimir essa engrenagem que, aparentemente, s contraria ojogo das outras. A natureza, que dotou o animal de um instinto infalvel, no ps nahumanidade nada de enganador. De seus rgos voc pode ousadamente deduzir seu destino.Est Deus in nobis. Falsas quando tentam provar o infinito, determin-lo, encarn-lo, as religiesso verdadeiras, se ouso dizer, quando o afirmam. Os mais graves erros que elas misturam aessa afirmao no so em nada comparveis ao preo da verdade que elas proclamam. Oltimo dos simples, contanto que pratique o

  • 35

    culto do corao, mais esclarecido sobre a realidade das coisas que o materialista que acreditatudo explicar pelo acaso e o finito.

  • 36

    INTRODUO

    Onde se trata principalmente dos documentos originais desta histria

    Uma histria das Origens do Cristianismo deveria compreender todo o perodo obscuro e,se posso diz-lo, subterrneo, que se estende desde os primrdios dessa religio at o momentoem que sua existncia torna-se um fato pblico, notrio, evidente aos olhos de todos. Uma talhistria seria composta de quatro partes. A primeira, que apresento hoje ao pblico, trata doprprio fato que serviu de ponto de partida para o novo culto; ela preenchida totalmente pelapessoa sublime do fundador. A segunda trataria dos apstolos e seus discpulos imediatos ou,melhor dizendo, das revolues por que passou o pensamento religioso nas duas primeirasgeraes crists. Vou encerr-la por volta do ano 100, quando os ltimos amigos de Jesus estomortos e todos os livros do Novo Testamento esto praticamente fixados sob a forma em que alemos. A terceira exporia o estado do cristianismo sob os Antoninos. A o veramos sedesenvolver lentamente e sustentar uma guerra quase permanente contra o Imprio, o qual,governado por filsofos e tendo alcanado nesse momento o mais alto grau da perfeioadministrativa, combate na seita nascente uma sociedade secreta e teocrtica, que o

  • 37

    nega obstinadamente e o mina sem descanso. Esse livro conteria toda a extenso do sculo II. Aquarta parte, enfim, mostraria os progressos decisivos que o cristianismo fez a partir dosimperadores srios. Veramos a a sbia construo dos Antoninos ruir, a decadncia dacivilizao antiga tornar-se irrevogvel, o cristianismo aproveitar de sua runa, a Sriaconquistar todo o Ocidente, e Jesus, em companhia dos deuses e sbios divinizados da sia,tomar posse de uma sociedade qual a filosofia e o Estado puramente civil no bastam mais. ento que as ideias religiosas das raas fixadas nas margens do Mediterrneo se modificamprofundamente; que os cultos orientais assomam por todos os lados; que o cristianismo, tornadouma Igreja muito numerosa, esquece totalmente os sonhos milenares, rompe seus ltimos laoscom o judasmo e passa inteiramente para o mundo grego e latino. As lutas e o trabalho literriodo sculo III, que j acontecem s claras, sero expostos apenas em traos gerais. Relatareiainda mais sumariamente as perseguies do comeo do sculo IV, ltimo esforo do Impriopara voltar a seus velhos princpios, os quais denegavam associao religiosa qualquer lugarno Estado. Por fim me limitarei a pressentir a mudana de poltica que, sob Constantino, inverteos papis e faz do movimento religioso o mais livre e o mais espontneo, um culto oficial,sujeito ao Estado e perseguidor por sua vez.

    No sei se terei vida e fora o bastante para cumprir um plano to vasto. Ficarei satisfeito se,depois de ter escrito a vida de Jesus, me fosse dado contar como entendo a histria dosapstolos, o estado da conscincia crist durante as semanas que se seguiram morte de Jesus,a formao do ciclo lendrio da ressurreio, os primeiros atos da Igreja de Jerusalm, a vida deSo Paulo, a crise da poca de Nero, a apario do Apocalipse, a runa de Jerusalm, a fundaodas cristandades hebraicas da Batania (regio a leste do Jordo), a redao dos Evangelhos, aorigem das grandes escolas da sia Menor. Tudo empalidece ao lado desse primeiro sculo.Por uma singularidade rara em histria, vemos bem melhor o

  • 38

    que se passou no mundo cristo do ano 50 ao 75 que do ano 80 ao 150.O plano seguido para esta obra impediu a introduo no texto de longas dissertaes crticas

    sobre pontos controversos. Um sistema contnuo de notas pe o leitor em condies de verificarjunto s fontes todas as proposies do texto. Nessas notas, limitamo-nos estritamente scitaes de primeira mo, ou seja, indicao das passagens originais sobre as quais cadaassero ou cada conjectura se apoia. Sei que, para as pessoas pouco familiarizadas com essaespcie de estudos, outros desenvolvimentos teriam sido necessrios. Mas no tenho o hbito derefazer o que est feito e bem feito. Citarei aqui excelentes escritos que o leitor poder consultarpara obter melhores explicaes dos pontos em que me foi necessrio ser breve.

    tudes Critiques sur lvangile de Saint Mathieu, por M. Albert Rville, pastor da igreja deRoterdan, obra premiada pela sociedade de Haia para defesa da religio crist

    1. Histoire de la Thologie Chrtienne au Sicle Apostolique, por M. Reuss, professor nafaculdade de teologia e no seminrio protestante de Estrasburgo2.

    Histoire du Canon des ctitures Saintes dans lglise Chrfienne, por M. Reuss3.Des Doctrines Religieuses des Juifs pendant les Deux Sicles Antrieures lre

    Chrtienne, por M. Michel Nicolas, professor na faculdade de teologia protestante deMontauban4.

    tudes Critiques sur la Bible (Nouveau Testament), por M. Michel Nicolas5.

    1 Leyde, Noothoven van Goor, 1862. Paris, Cherbulier. Obra consagrada pela sociedade de Haja, para a defesada religio crist.

    2 Strasbourg, Treuttel e Wurtz, Segunda edio de 1860. Paris, Cherbuliez.3 Strasbourg, Treuttel e Wurtz, 1863.4 Paris, Michel Lvy frres, 1860.5 Paris, Michel Lvy frres, 1864.

  • 39

    Vie de Jsus, pelo Dr. Strauss, traduzida por M. Littr, membro do Instituto6.Nouvelle Vie de Jsus, por Dr. Straus, traduzida por M. Nefftzer e Dollfus7.Les vangiles, por M. Gustave dEichthal. Primeira parte: Examen Critique et Comparatif

    des Trois Premiers vangiles8.Jsus-Christ et les Croyances Messianiques de Son Temps, por T. Colani, professor na

    faculdade de teologia e no seminrio protestante de Estrasburgo9.tudes Historiques et Critiques sur les Origines du Christianisme, por A. Stap10.tudes sur le Biographie naglique, por Rinter de Liessol11.Revue de Thologie et de Philosophie Chrtienne, publicao dirigida por M. Colani, desde

    1850 a 1857. Neuvelle Revue de Thologie, em seguimento precedente, de 1858 1862. Revue de Thologie, terceira srie, desde 186312.

    A crtica detalhada dos textos evanglicos, em particular, foi feita por Strauss de um modoque deixa pouco a desejar. Ainda que Strauss tenha se enganado em sua teoria sobre a redaodos Evangelhos13, e que seu livro tenha, na minha opinio, o defeito de se fixar demais noterreno teolgico e muito pouco no terreno histrico14, ele indispensvel para

    6 Paris, Ladrange, Segunda edio, 1856.7 Paris, Hetzel e Lacroix, 1864.8 Paris, Hachette, 1863.9 Strasbourg, Treuttel e Wurtz Segunda edio de 1864. Paris, Cherbuliez.10 Paris, Lacroix, Segunda edio de 1866.11 Londres, 1854.12 Strasbourg, Treuttel e Wurtz, Paris, Cherbuliez.13 Os grandes resultados obtidos neste ponto s foram adquiridos a partir da primeira edio da obra de Strauss.

    O sbio crtico fez justia nas suas edies sucessivas com muita boa-f.14 necessrio lembrar que nenhuma palavra, no livro de M. Strauss, justifica a estranha e absurda calnia que

    tentou desacreditar, junto a leitores superficiais, um livro cmodo, exato, espiritual e consciencioso, emboraeivado, nas suas generalidades, de uma viso exclusiva. No s M. Strauss jamais negou a existncia de Jesus, mascada pgina de seu livro implica nessa existncia. A verdade que M. Strauss supe o carter individual de Jesusmais esquecido por ns do que talvez o seja na realidade.

  • 40

    se perceber os motivos que me guiaram em inmeras mincias, para seguir a discusso semprejudiciosa, ainda que s vezes pouco sutil, do livro to bem traduzido pelo meu sbio confradeLittr.

    Acredito no ter negligenciado, diante de testemunhos antigos, nenhuma fonte deinformao. Restam-nos cinco grandes colees de escritos (sem falar de uma poro de outrosdados esparsos) sobre Jesus e sobre o tempo em que ele viveu. So elas: 12) os Evangelhos eem geral os escritos do Novo Testamento; 2o) as composies ditas apcrifas do AntigoTestamento; 3) as obras de Flon; 4) as de Josefo; 5) o Talmude. Os escritos de Flon tm ainestimvel vantagem de nos mostrar os pensamentos que, poca de Jesus, fermentaram nasalmas ocupadas com grandes questes religiosas. Flon vivia, verdade, numa provncia dojudasmo completamente oposta de Jesus; mas, como ele, era muito distanciado do espritofarisaico que reinava em Jerusalm; Flon realmente o irmo mais velho de Jesus. Ele tinhasessenta e dois anos quando o profeta de Nazar estiva no mais alto grau de sua atividade, esobreviveu a ele pelo menos dez anos. Que pena que os acasos da vida no os conduziram Galilia. O que ele poderia nos ter contado! Josefo, escrevendo sobretudo para os pagos, notem em seu estilo a mesma sinceridade. Suas curtas notcias sobre Jesus, sobre Joo Batista,sobre Judas, o Gaulonita, so secas e sem cor. Sente-se que ele procura apresentar essesmovimentos, de carter e esprito to profundamente judaicos, sob uma forma que sejainteligvel a gregos e romanos. Creio ser

  • 41

    a passagem sobre Jesus15 autntica em seu conjunto. Ela se encaixa perfeitamente no gosto deJosefo e, se esse historiador fez meno a Jesus, porque ele teve de falar disso.

    Sente-se somente que uma mo crist retocou o trecho, acrescentando algumas palavras semas quais ele seria quase blasfemo16, talvez tambm acomodando ou modificando algumasexpresses17. preciso lembrar que a fortuna literria de Josefo foi feita pelos cristos, os quaisadotaram seus escritos como documentos essenciais de sua histria sagrada. Foi divulgada,provavelmente no sculo II, uma edio corrigida segundo as ideias crists18. Em todo caso, oque constitui o imenso interesse pelos livros de Josefo no assunto que estudamos so as luzesvivas que eles jogam sobre o tempo. Graas ao historiador judeu, Herodes, Herodades,Antipas, Felipe, Ans, Caifs, Pilatos so personagens que tocamos, por assim dizer, e quevemos viver diante de ns com impressionante realidade.

    Os apcrifos do Antigo Testamento, principalmente a parte judaica dos versos sibilinos, olivro de Henoc, a Assuno de Moiss, o quarto livro de Esdras, o Apocalipse de Baruc, anexosao livro de Daniel, que , ele tambm, um verdadeiro apcrifo, tm uma importncia capitalpara a histria do desenvolvimento das teorias messinicas e para a compreenso dasconcepes de Jesus sobre o reino de Deus.19 O livro de Henoc, em

    15 Ant., XVIII, III, 316 Como estas: Se permitido cham-lo homem.17 No lugar de havia provavelmente X . Cf. Ant., XX, IX, 1; Orgenes, in

    Mateus, X, 17; Contra Celso, I, 47; H, 13.18 Eusbio (Hist. Ecles., I,11, e Demonstr. Evang., III,5) cita a passagem sobre Jesus como ns a lemos hoje em

    Josefo. Orgenes, (Contra Celso, I, 47; II, 13), Eusbio (Hist. Ecles., II, 23) So Gernimo (De Viris ill., 2, 13) eSuidas, (na palavra Iosepos) citam outra interpolao crist, que no se encontra em nenhum dos manuscritos deJosefo que chegaram at ns.

    19 Os leitores franceses podem consultar, sobre isso, os seguintes: Alexandre, Carmina Sibyllina, Paris, 1851-56, Reuss, les Sibylles chrtiennes, na Revue de thologie, abril e maio de 1861; Colani, Jesus-Christ et lescroyances messianiques, p. 16 e seg., sem menosprezar os trabalhos de Ewald, Dillmann, Volkmar e Hilgenfeld.

  • 42

    particular20, e a Assuno de Moiss21 eram obras muito lidas no crculo de Jesus. Algumaspalavras emprestadas a Jesus pelos sinticos so apresentadas na epstola atribuda a SoBarnab como de Henoc22. muito difcil determinar a data das diferentes sees quecompem o livro atribudo quele patriarca. Nenhuma delas certamente anterior ao ano 150antes de Jesus Cristo; algumas podem ter sido escritas por mo crist. A seo que contm osdiscursos intitulados Similitudes, estendendo-se do captulo XXXVII ao captulo LXXI supostamente uma obra crist. Mas isso no demonstrado23. Talvez essa parte tenha apenassofrido alteraes24. Outros adendos e retoques cristos so reconhecidos aqui e ali.

    20 Epstola de Judas, 6,14; 11 Ep. de Pedro, II,4; Testamento dos doze Patriarcas, Sim., 5; Levi, 10,14,16; Jud,18; Daniel, 5; Nephtali, 4; Benjamin, 9; Zeb., 3.

    21 Epstola de Judas, 9 (ver em Orgenes De principiis, III, II, I; Ddimo dAlexandria, Max. Bibl. Vet. Patr., IV,p. 336); Comparar Matheus, XXIV, 21 e seg. com a Assuno de Moiss c. 8 e 10 (p. 104/105 Ed. Hilgenfeld);Romanos, II, 15 com a Assuno pp. 99/100.

    22 Epstola de Barnab, cap. IV, XVI (aps o Codex sinaticus, ed. Hilgenfeld, p. 8, 52) em comparao comHenoc, LXXXIX, 56 e seg.; Mateus XXIV, 22; Marcos, XIII, 20. Ver outras coincidncias do mesmo tipo na nota38; p. 135 nota 20, p. 353 nota 49. Comparar tambm as palavras de Jesus relatadas por Papias (em Irineu, Adv.Haer., V, XXXIII, 3-4) com Henoc, X, 19 com o Apocalipse de Baruch 29 (Ceriani, Monum. Sacra et profana, t.I, fasc. I, p. 80).

    23 Estou muito inclinado a crer que haja, nos Evangelhos, aluses a esta parte do livro de Henoc, ou pelo menosa partes em tudo semelhantes. Ver a seguir, p. 353, nota 49.

    24 A passagem do cap. LXVII, 4 e seguintes, onde os fenmenos vulcnicos nos arredores de Pozzuoli estodescritos, no prova que toda a seo de que faz parte seja posterior ao ano 79, data da erupo do Vesvio. Parecehaver aluses afenmenos do mesmo gnero no Apocalipse (cap. IX), que do ano 68.

  • 43

    A coletnea dos versos sibilinos exige distines anlogas, mas estas so mais facilmenteestabelecidas. A parte mais antiga o poema contido no livro III, v. 97 - 817; ele parece ser doano 140 antes de Cristo aproximadamente. No que concerne data do quarto livro de Esdras,todos esto hoje mais ou menos de acordo em reportar este apocalipse ao ano 97 depois deCristo. Ele foi alterado pelos cristos. O Apocalipse de Baruc25 tem muita semelhana com o deEsdras; ali se encontram, como no livro de Henoc, algumas palavras emprestadas a Jesus26,Quanto ao livro de Daniel, o carter das duas lnguas nas quais foi escrito, o uso de palavrasgregas, o anncio claro, determinado, datado de acontecimentos que vo at o tempo deAntoco Epifnio, as falsas imagens que a so traadas da velha Babilnia, a cor geral do livro,que no lembra em nada os escritos do Cativeiro, que responde, ao contrrio, por uma multidode analogias s crenas, aos costumes, ao torneio de imaginao da poca dos Selucidas; aforma apocalptica das vises, o lugar do livro no cnone hebreu fora da srie dos profetas, aomisso de Daniel nos panegricos do captulo XLIX do Eclesistico, onde seu lugar estavacomo que indicado, e muitas outras provas que foram cem vezes deduzidas no permitemduvidar que esse livro no seja fruto da grande exaltao produzida entre os judeus pelaperseguio de Antoco. No na velha literatura proftica que se deve classific-lo; seu lugar frente da literatura apocalptica, como primeiro modelo de um gnero de composio em quedeviam tomar lugar depois dele os diversos poemas sibilinos, o livro de Henoc, a Assuno deMoiss, o Apocalipse de Joo, a Ascenso de Isaas, o quarto livro de Esdras.

    Na histria das origens crists, at aqui negligenciamos demais o Talmude. Penso, comGeiger, que a verdadeira noo

    25 Acaba de ser publicada em traduo latina feita do original siraco por M. Ceriani, Anecdota sacra etprofana, t. I, fasc. II. (Milo, 1866)

    26 Ver acima, notas 21 e 22.

  • 44

    das circunstncias que produziram Jesus deve ser buscada nessa compilao bizarra, em quetantas preciosas informaes esto misturadas mais insignificante escolstica. Tendo ateologia crist e a teologia judaica, no fundo, seguido dois caminhos paralelos, a histria deuma no pode ser bem compreendida sem a histria da outra. Inmeros detalhes materiais dosEvangelhos encontram, alis, seu comentrio no Talmude. As vastas coletneas latinas deLightfoot, de Schoettgen, de Buxtorf, de Otho, j continham uma poro de informaes a esserespeito. Impus-me a tarefa de verificar no original todas as citaes que admiti, sem exceode nenhuma. A colaborao que Neubauer, um sbio israelita muito versado na literaturatalmdica, me prestou para esta parte de meu trabalho, me permitiu ir alm e esclarecer certaspartes de meu assunto com algumas novas comparaes. A distino das pocas aqui importantssima, estendendo-se a redao do Talmude do ano 200 ao 500, aproximadamente.

    Ns usamos todo o discernimento possvel no estado atual desses estudos. Datas to recentesexcitaro alguns receios entre as pessoas habituadas a dar valor a um documento apenas pelapoca em que foi escrito. Mas tais escrpulos aqui sero deslocados. O ensinamento dos judeusdesde a poca asmoniana at o sculo II foi principalmente oral. No se deve julgar essasespcies de estados intelectuais segundo os hbitos de um tempo em que se escreve muito. OsVedas, os poemas homricos, as antigas poesias rabes foram conservados de memria durantesculos e, entretanto, essas composies apresentam uma forma bastante determinada, muitodelicada. No Talmude, ao contrrio, a forma no tem nenhum valor. Acrescentemos que antesda Mischna de Judas, o Santo, que fez esquecer todos os outros, houve ensaios de redao, cujocomeo remonta talvez data muito mais antiga do que se supe comumente. O estilo doTalmude o de anotaes de aula; os redatores provavelmente s classificaram sob certosttulos a enorme confuso de escritos que foi acumulada nas diferentes escolas durantegeraes.

  • 45

    S nos resta falar de documentos que, apresentando-se como biografias do fundador docristianismo, devem naturalmente ocupar primeiro lugar numa vida de Jesus. Um tratadocompleto sobre a redao dos Evangelhos seria uma obra parte. Graas aos belos trabalhos deque essa questo foi objeto desde trinta anos, um problema que julgamos inabordvel chegou auma soluo que seguramente ainda deixa lugar a muitas incertezas, mas basta plenamente snecessidades da histria.

    Teremos mais tarde a oportunidade de voltar a isso, tendo sido a composio dos Evangelhosum dos fatos mais importantes para. o futuro do cristianismo que aconteceram na segundametade do sculo I. Abordaremos aqui apenas um aspecto do assunto, que indispensvel solidez de nosso relato. Deixando de lado tudo o que pertence ao quadro dos temposapostlicos, pesquisaremos somente em que medida os dados fornecidos pelos Evangelhospodem ser empregados numa histria levantada segundo princpios racionais27.

    Que os Evangelhos sejam em parte lendrios, evidente, j que so cheios de milagres e desobrenatural, mas h lenda e lenda. Ningum duvida dos principais traos da vida de Franciscode Assis, embora o sobrenatural ali se encontre a cada passo. Ningum, ao contrrio, d crdito Vida de Apolnio de Tiana, porque ela foi escrita muito tempo depois do heri e emcondies de puro romance. Em que poca, por que mos, em que condies foram redigidos osEvangelhos? Eis ento a questo fundamental, da qual depende a opinio que se v formar dacredibilidade deles.

    Sabe-se que cada um dos quatro Evangelhos traz no cabealho o nome de um personagemconhecido seja na histria

    27 Os leitores que desejarem um maior desenvolvimento podero ler, alm das obras de M. Rville, de M.Nicolas e de M. Stap anteriormente citadas, os trabalhos de MM. Reus, Scherer, Schwalb, Scholten (traduzidos porRville) na Revue de Thologie, t. X XI, XV; na Segunda srie II, III,IV; na terceira srie I, II, III, IV, e o de M.Rville, na Revue des Deux Mondes, 1 de maio e 1 de junho de 1866.

  • 46

    apostlica, seja na prpria histria evanglica. Est claro que, se esses ttulos so exatos, osEvangelhos, sem deixar de ser em parte lendrios, ganham alto valor, j que nos fazemremontar ao meio sculo que se seguiu morte de Jesus e, tambm nos dois casos, stestemunhas oculares dessas aes.

    Para Lucas, a dvida no absolutamente possvel. O Evangelho de Lucas umacomposio regular, fundada em documentos anteriores.28 a obra de um homem que escolhe,apara, combina. O autor desse Evangelho certamente o mesmo dos Atos dos Apstolos29. Ora,o autor dos Atos parece um companheiro de So Paulo30, ttulo que convm perfeitamente aLucas31. Sei que mais de uma objeo pode ser feita a esse raciocnio, mas uma coisa ao menosest fora de dvida: que o autor do terceiro Evangelho e dos Atos um homem da segundagerao apostlica, e isso basta ao nosso estudo. A data desse evangelho pode, alis, serdeterminada com bastante preciso pelas consideraes tiradas do prprio livro. O captulo 21de Lutas, inseparvel do resto da obra, foi escrito com certeza aps o cerco de Jerusalm, masno muito tempo depois32. Ento estamos aqui sobre um terreno slido, pois se trata de umaobra inteiramente de uma s mo e da mais perfeita unidade.

    Os Evangelhos de Mateus e de Marcos no tm longe

    28 Lucas, I, 1-429 Atos, I, 1. Comparar Lucas, I, 1-430 A partir de XVI, 10, o autor se apresenta como testemunha ocular.31 Col., IV, 14; Philem., 24; II Tim., IV, 11. O nome de Lucas (contrao de Lucanus) por ser muito raro, no

    temos como acreditar que se trate aqui de uma das homonmias que levantam tanta perplexidade nas questescrticas relativas ao Novo Testamento.

    32 Versculos 9, 20, 24, 28, 29-32. Comp. XXII, 36. Tais passagens so tanto mais surpreendentes que o autorreconhece a objeo que pode resultar em predies de to curto prazo, e que evita, quer abrandando passagenscomo em Marcos, XIII, 14 e s., 24, 29; Mateus, XXIV, 15 e seg., 29, 33, quer respostas como em Lucas, XVII,20, 21.

  • 47

    disso a mesma marca individual. So composies impessoais, em que o autor desaparecetotalmente. Um nome prprio escrito no cabealho dessa espcie de obra no diz grande coisa.Alis, no se pode raciocinar aqui como para Lucas. A data que resulta de um captulo (porexemplo Mat., 24; Marcos, 13) no pode rigorosamente se aplicar ao conjunto das obras, tendoessas sido compostas de pedaos de pocas e de procedncias bem diferentes. Em geral, oterceiro Evangelho parece posterior aos dois primeiros, e apresenta o carter de uma redaobem mais avanada. Todavia, no se poderia concluir da que os evangelhos de Marcos eMateus estivessem no estado em que os temos quando Lucas escreveu. De fato, essas duasobras ditas de Marcos e de Mateus ficaram muito tempo no estado de uma certa indefinio, seouso dizer, e susceptveis de adendos. A esse respeito temos um testemunho fundamental daprimeira metade do sculo II. Ele de Ppias, bispo de Hierpolis, homem grave, de tradio,que se ocupou durante toda a vida em recolher o que se pudesse saber da pessoa de Jesus33.Aps ter declarado que, em tal matria, ele d preferncia tradio oral sobre os livros, Ppiasmenciona dois escritos sobre os atos e as palavras de Cristo: 1) um escrito de Marcos,intrprete do apstolo Pedro34, escrito curto, incompleto, no organizado em ordemcronolgica, compreendendo relatos e discursos, composto de acordo com as informaes e aslembranas do apstolo Pedro; 2) uma coletnea de sentenas escritas em hebreu35 por Mateus(Logia), e que

    33 Em Eusbio, Hist.eccl., III, 39. No seria possvel levantar uma dvida qualquer sobre a autenticidade destapassagem. De fato, Eusbio, longe de exagerar a autoridade de Ppias, mostra-se intrigado com sua ingenuidade,com seu grosseiro milenarismo, e sai tratando-o de esprito pequeno. Comp. Irineu, Adv. Haer., III, I, 1; V,XXXIII, 3-4.

    34 Ppias, nesse ponto, referia-se a uma autoridade mais antiga ainda, de Presbyteros Joannes, (Quanto a estepersonagem, ver a seguir nota 89).

    35 Ou seja, em dialeto semtico.

  • 48

    cada um traduziu36 como pde. claro que essas duas descries correspondem bastante fisionomia geral dos dois livros agora chamados Evangelho segundo Mateus e Evangelhosegundo Marcos, o primeiro caracterizado por seus longos discursos, o segundo sobretudoanedtico, muito mais exato que o primeiro em pequenos fatos, conciso at a secura, dediscurso pobre, bastante mal composto. Entretanto, que essas duas obras, tais como as lemos,sejam absolutamente semelhantes s que Ppias lia, no sustentvel; primeiro porque o escritode Mateus, segundo Ppias, compunha-se unicamente de discursos em hebreu, do qualcirculavam tradues bem diferentes e, em segundo lugar, porque o escrito de Marcos e o deMateus eram para ele profundamente distintos, redigidos sem nenhuma interpretao e, parece,em lnguas diferentes. Ora, no estado atual dos textos, o Evangelho segundo Mateus e oEvangelho segundo Marcos oferecem trechos paralelos to longos e to perfeitamente idnticosque se deve supor ou que o redator definitivo do primeiro tinha o segundo sob os olhos ou queambos copiaram o mesmo prottipo. O que parece mais verossmil que nem de Mateus nemde Marcos temos as redaes originais; que nossos dois primeiros Evangelhos so arranjos emque se procurou preencher as lacunas de um texto com um outro. Cada um queda, de fato,possuir um exemplar completo. O que tinha em seu exemplar apenas discursos queda ter osrelatos, e vice-versa. assim que o Evangelho segundo Mateus acabou englobando quasetodos os casos de Marcos, e que o Evangelho segundo Marcos contm hoje vrios traosvindos dos Logia de Mateus. Cada um, alis, se apoiava largamente na tradio oral quecontinuava em torno dele. Essa tradio est longe de ter-se esgotado pelos Evangelhos, vistoque os Atos dos Apstolos e os Padres mais antigos

    36 . Prxima como est de , esta palavra s pode significar traduzir. Algumaslinhas acima tomado no sentido de dragomano.

  • 49

    citam vrias palavras de Jesus que parecem autnticas e que no se encontram nos Evangelhosque possumos.

    Importa pouco ao nosso estudo atual levar mais longe essa anlise, tentar reconstruir, dealgum modo, de um lado, os Logia originais de Mateus; de outro, o relato primitivo tal comosaiu da pena de Marcos. Os Logia nos so sem dvida representados pelos grandes discursos deJesus, que ocupam uma parte considervel do primeiro Evangelho. Esses discursos formam, defato, quando os destacamos do resto, um todo bem completo. Quanto aos relatos primitivos deMarcos, parece que o texto se encontra tanto no primeiro como no segundo Evangelho, masgeralmente no segundo. Em outros termos, o sistema da vida de Jesus nos sinticos repousasobre dois documentos originais:

    1) os discursos de Jesus recolhidos pelo apstolo Mateus; 2) a coletnea de casos einformaes pessoais que Marcos escreveu segundo as lembranas de Pedro. Pode-se dizer quetemos, assim, esses dois documentos, misturados a informaes de outra procedncia, nos doisprimeiros Evangelhos, que trazem, no sem razo, o ttulo de Evangelho segundo Mateus eEvangelho segundo Marcos.

    O que indubitvel, em todo caso, que, em muito boa hora, transcreveram os discursos deJesus em lngua aramaica, e que tambm em boa hora escreveram suas notveis aes. Noeram textos estagnados e fixados dogmaticamente. Alm dos evangelhos que nos apareceram,h outros igualmente pretendendo representar a tradio das testemunhas oculares37. Deu-sepouca importncia a esses escritos, e os conservadores, como Ppias, preferiam ainda, naprimeira metade do sculo II, a tradio oral38. Como se acreditava que o

    37 Lucas, I, I-2; Orgenes, Hom. In Luc., I, inic.; So Gernimo, Comment. In Math., prlogo.38 Papias, em Eusbio, H. E., III, 39. Comparar Irineu, Adv. Haer., III, II e III. Ver tambm, no que concerne

    Policarpo, o fragmento da carta de Irineu para Florinus, conservado por Eusbio, H. E., V, 20. naepstola de so Barnab (cap. IV, p. 12, Ed. Hilgenfeld), se aplica a palavras que se encontram em So Mateus,XXII, 14. Mas tais palavras, que aparecem em dois lugares de Mateus, (XXII, 16; XX, 14), podem ter chegado emMateus vindas de um livro apcrifo, como acontece com as passagens de Mateus XXIII, 34 e seg.; XXIV, 22 eprximos. Compare IV Esdras, VIII, 3. Note no mesmo captulo da epstola de Barnab (p. 8, Ed. Hilgenfeld) asingular coincidncia de uma passagem que o autor atribui a Henoc, servindo-se da frmula , comMateus, XXIV, 22. Compare tambm citada na epstola de Bamab, c. XVI (p. 52 Ed. Hilgenfeld) comHenoc LXXXIX, 56 e seguintes. Ver a seguir a nota 49. Na segunda epstola de So Clemente, (cap. II), e em SoJustino, Apol. I, 67, os sinticos so decididamente citados como escrituras sagradas. I Timteo,V, 18, tambm dcomo um provrbio que se encontra em Lucas (X, 7). Esta epstola no de So Paulo.

  • 50

    mundo estava prestes a acabar, preocupava-se pouco em compor livros para o futuro; tratava-sede guardar no corao a imagem viva daquele que se esperava em breve rever nas nuvens. Da apouca autoridade dos textos evanglicos durante quase cem anos. No se tinha escrpulo algumem inserir pargrafos, em combinar diferentemente os relatos, em complet-los uns pelosoutros. O pobre homem que s possui um livro quer que ele contenha tudo que lhe vai aocorao. Emprestavam-se esses pequenos livretes; cada um transcrevia margem de seuexemplar as palavras, as parbolas que ele encontrava em outros lugares e que o tocavam39.Assim, a mais bela coisa do mundo saiu de uma elaborao obscura e completamente popular.Nenhuma redao tinha valor absoluto. As duas epstolas atribudas a Clemente Romano citamas palavras de Jesus com variantes notveis40. Justino, que frequentemente chama a atenopara o que ele designa Memrias dos apstolos, tinha sob os olhos documentos evanglicosem estado um pouco diferente do que ns temos; mesmo assim, ele no tem nenhum cuidado aocit-los textual-

    39 assim que a bela narrativa Joo, VIII, l-11 sempre vagou sem encontrar um lugar fixo no quadro dosEvangelhos aceitos.

    40 Clemente Epstola, I, 13; II, 12.

  • 51

    mente41. As citaes evanglicas, nas Homilias pseudoclementinas, de origem ebionita,apresentam o mesmo carter. O esprito era tudo, a escrita no era nada. quando a tradio seenfraquece, na segunda metade do sculo II, que os textos que trazem os nomes de apstolos oude homens apostlicos ganham autoridade decisiva e obtm fora de lei. Mesmo ento no seprobem absolutamente as composies livres; a exemplo de Lucas, continuou-se a fazerevangelhos particulares justapondo diferentemente os textos mais antigos42.

    Quem no v o valor de documentos assim compostos de recordaes enternecidas, derelatos ingnuos das duas primeiras geraes crists, ainda cheias da forte impresso que oilustre fundador produziu, e que parece lhe ter sobrevivido por muito tempo? Acrescentemosque os referidos evangelhos parecem provir daquele ramo da famlia crist mais prximo aJesus. O ltimo trabalho de redao do texto que traz o nome de Mateus parece ter sido feito emum dos lugares situados a nordeste da Palestina, como a Gaulontida, Hauran, a Batania, ondemuitos cristos se refugiaram poca da guerra dos romanos, onde se encontravam, ainda nosculo II, parentes de Jesus43, e onde a primeira direo galilia se conservou mais tempo queem outra parte.

    At agora falamos apenas de trs evangelhos, ditos sinticos. Resta-nos falar do quarto, doque traz o nome de Joo.

    Aqui a questo bem mais difcil. O discpulo mais ntimo de Joo, Policarpo, que citafrequentemente os sinticos, em sua epstola aos filipenses, no faz aluso ao quartoEvangelho.

    41 , . (Estas ltimas palavras so suspeitas deinterpolao.) Justino, Apol. I, 16, 17, 33, 34, 38, 45, 66, 67, 77, 78; Dial. cum Tryph., 10, 17, 41, 43, 51, 53, 69,70, 76, 77, 78, 88, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 120, 125, 132.

    42 Ver, por exemplo, o que diz respeito ao Evangelho de Tatien, em Thodoret, Haeret. Fab., I, 2043 Julio o Africano, em Eusbio., Hist. Ecles., I, 7.

  • 52

    Ppias, que se ligava igualmente escola de Joo, e que, se no foi seu ouvinte, como o dizIrineu, teve muito contato com seus discpulos imediatos; Ppias, que tinha recolhidoapaixonadamente todos os relatos orais relativos a Jesus, no diz uma s palavra de uma Vidade Jesus escrita pelo apstolo Joo44. Se tal meno fosse encontrada em sua obra, Eusbio,que levanta tudo o que serve histria literria do sculo apost1ico, teria sem dvida algumaobservado45. Talvez Justino tenha conhecido o quarto Evangelho46, mas certamente no oconsiderava uma obra do apstolo Joo, uma vez que ele, que designa expressamente esseapstolo como autor do Apocalipse, no pe absolutamente o quarto Evangelho entre osinmeros dados sobre a vida de Jesus, que ele extrai das Memrias dos apstolos; ainda:sobre todos os pontos em que os sinticos e o quarto Evangelho diferem, ele adota opiniescompletamente opostas a esse ltimo47. Isso tanto

    44 H. E.,III, 39. Poderamos ser tentados a reconhecer o quarto Evangelho dentro das narrativas de Ariston ounas tradies daquele que Ppias chama Presbyteros Joannes. Todavia Ppias parece apresentar tais narrativas etradies como no-escritas. Se os extratos que ele d destas narrativas e destas tradies tivessem pertencido aoquarto Evangelho, Eusbio o teria dito. Noutras palavras, o que sabemos das ideias de Ppias que era milenarista,discpulo do Apocalipse, e no absolutamente um discpulo da teologia do quarto Evangelho.

    45 Que no se diga: Ppias no menciona nem Lucas nem Paulo, e no entanto os escritos de Lucas e Paulo jexistiam no seu tempo. Ppias deve ter sido um adversrio de Paulo, e pode no ter conhecido a obra de Lucascomposta em Roma por famlia crist totalmente diferente. Mas como, vivendo em Hierpolis, no corao mesmoda escola de Joo ele negligenciou o Evangelho escrito por uma tal mestre? Que no mais se diga que, sobrePolicarpo (IV, 14) e Tefilo (IV, 24) Eusbio no assinala todas as citaes feitas por estes Padres dos escritos doNovo Testamento. A aparncia particular do captulo III, 39, nos d uma meno quase infalvel do quartoEvangelho, se Eusbio o tiver encontrado em Ppias.

    46 Algumas passagens, Apol. I, 32, 61; Dial. cum Tryph., 88, levam a acredit-lo. A teoria do Logos, em Justino,no tal que nos obrigue a supor que a tenha apanhado no quarto Evangelho.

    47 Lugares citados, na nota 41. Observar principalmente Apol. I, 14 e seg. que notoriamente supem que Justinoou no conhecia os discursos de Joo, ou no os considerava como representativos dos ensinamentos de Jesu