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Vida e missão da Congregação das irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas Ir. Analita Candaten, mscs “Migram as sementes nas asas do vento, migram as plantas de continente a continente, levadas pelas correntes das águas, migram os pássaros e os animais e, mais do que todos, migra o homem” (João Batista Scalabrini). 1. Síntese histórica da Congregação das irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeo, Scalabrinianas (mscs) A Congregação das irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas, fundada pelo bem aventurado João Batista Scalabrini, em Piacenza – Itália, aos 25 de outubro de 1895, tem como cofundadores, a venerável madre Assunta Marchetti e o servo de Deus padre Giuseppe Marchetti. As irmãs mscs consagram sua vida a Jesus Cristo e assumem na Igreja o serviço evangélico e missionário aos migrantes. Com eles descobrem o amor com que Deus os ama e a esperança à qual são chamados 1 . 1.1 A ação pastoral de João Batista Scalabrini A origem da Congregação emerge da ação pastoral específica que João Batista Scalabrini (1839-1905), bispo de Piacenza, empreendeu em favor dos migrantes, comprometendo-se pessoalmente e reunindo colaboradores e continuadores de sua obra. Scalabrini, no dia de sua consagração episcopal, 30 de Janeiro de 1876, escreveu a primeira carta pastoral onde apresentava as suas prioridades pastorais: atenção privilegiada pelos mais pobres, com uma preocupação particular para com a educação religiosa das crianças, dos surdos-mudos, dos cegos e das pessoas mais miseráveis. As suas visitas pastorais serviram, também, para constatar que cerca de 11% da população tinha abandonado a diocese, emigraram, dado que teria inspirado um aspecto original de sua ação apostólica, uma ação pastoral em favor dos migrantes. As migrações em massa na Europa, iniciadas depois dos meados do século XIX, encontraram a sociedade civil e eclesial despreparadas para acompanhar o êxodo das populações católicas para as Américas. Entre 1815 e 1914, estima-se que 65 milhões de europeus atravessaram o oceano Atlântico e um número mais reduzido o oceano Pacífico. Na América Latina, a partir de 1880, dois países se tornaram o pólo de atração para os imigrantes do Velho Mundo: Brasil e Argentina. A Itália contribuiu notavelmente nesse fluxo migratório e tornou-se nesses anos a maior fonte de emigrantes internacionais do mundo. Calcula-se que em 100 anos 24 milhões de italianos emigraram 2 . No início Scalabrini era contra a emigração. Mais tarde, reconheceu que a emigração era uma necessidade causada pela pobreza e pela esperança de melhorar as próprias condições de 1 Cf. Documento final do XII Capítulo Geral, p. 10. 2 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES, Instrução Erga Migrantes Caritas Christi (EMCC), Roma 2004. Hoje calcula-se que existem 215 milhões de pessoas que vivem fora de seu país de origem, “o mais vasto movimento de pessoas de todos os tempos”. Assim são definidas as migrações hodiernas.

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Vida e missão da Congregação das irmãs

Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas

Ir. Analita Candaten, mscs

“Migram as sementes nas asas do vento, migram as plantas de continente a continente,

levadas pelas correntes das águas, migram os pássaros e os animais e, mais do que todos, migra o homem” (João Batista Scalabrini).

1. Síntese histórica da Congregação das irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeo, Scalabrinianas (mscs)

A Congregação das irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas, fundada pelo bem aventurado João Batista Scalabrini, em Piacenza – Itália, aos 25 de outubro de 1895, tem como cofundadores, a venerável madre Assunta Marchetti e o servo de Deus padre Giuseppe Marchetti.

As irmãs mscs consagram sua vida a Jesus Cristo e assumem na Igreja o serviço evangélico e missionário aos migrantes. Com eles descobrem o amor com que Deus os ama e a esperança à qual são chamados1.

1.1 A ação pastoral de João Batista Scalabrini

A origem da Congregação emerge da ação pastoral específica que João Batista Scalabrini (1839-1905), bispo de Piacenza, empreendeu em favor dos migrantes, comprometendo-se pessoalmente e reunindo colaboradores e continuadores de sua obra.

Scalabrini, no dia de sua consagração episcopal, 30 de Janeiro de 1876, escreveu a primeira carta pastoral onde apresentava as suas prioridades pastorais: atenção privilegiada pelos mais pobres, com uma preocupação particular para com a educação religiosa das crianças, dos surdos-mudos, dos cegos e das pessoas mais miseráveis.

As suas visitas pastorais serviram, também, para constatar que cerca de 11% da população tinha abandonado a diocese, emigraram, dado que teria inspirado um aspecto original de sua ação apostólica, uma ação pastoral em favor dos migrantes.

As migrações em massa na Europa, iniciadas depois dos meados do século XIX, encontraram a sociedade civil e eclesial despreparadas para acompanhar o êxodo das populações católicas para as Américas. Entre 1815 e 1914, estima-se que 65 milhões de europeus atravessaram o oceano Atlântico e um número mais reduzido o oceano Pacífico. Na América Latina, a partir de 1880, dois países se tornaram o pólo de atração para os imigrantes do Velho Mundo: Brasil e Argentina. A Itália contribuiu notavelmente nesse fluxo migratório e tornou-se nesses anos a maior fonte de emigrantes internacionais do mundo. Calcula-se que em 100 anos 24 milhões de italianos emigraram2.

No início Scalabrini era contra a emigração. Mais tarde, reconheceu que a emigração era uma necessidade causada pela pobreza e pela esperança de melhorar as próprias condições de

1 Cf. Documento final do XII Capítulo Geral, p. 10. 2 PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PASTORAL DOS M IGRANTES E ITINERANTES, Instrução Erga Migrantes Caritas Christi (EMCC), Roma 2004. Hoje calcula-se que existem 215 milhões de pessoas que vivem fora de seu país de origem, “o mais vasto movimento de pessoas de todos os tempos”. Assim são definidas as migrações hodiernas.

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vida, uma lei da natureza que não era possível parar. Contou ter ouvido muitas vezes o dilema dos emigrantes: “ou roubar ou emigrar”.

Pela sua sensibilidade humana e missionária, diante da forte e dolorosa emigração, da visão de centenas de pessoas na estação de Milão, que deviam abandonar a pátria para buscar melhores condições de vida, Scalabrini comove-se, sente-se impulsionado a buscar respostas para aliviar este sofrimento. Ele mesmo conta a cena que o comoveu e que, certamente, seria decisiva para desencadear sua ação missionária em favor dos migrantes: “Ha vários anos, em Milão, fui expectador de uma cena que deixou em meu espírito, uma impressão de profunda tristeza. Passando pela estação, vi a vasta sala, os pórticos laterais e a praça adjacente invadidos por trezentos ou quatrocentos indivíduos, vestidos pobremente, divididos em diversos grupos. Em suas faces bronzeadas pelo sol, sulcadas por rugas precoces que a privação costuma imprimir, transparecia o tumulto dos afetos que agitavam seus corações, naquele momento [...]. Eram migrantes. Pertenciam às províncias da Alta Itália e esperavam, com ansiedade que o trem os levasse às margens do Mediterrâneo e de lá para as longínquas Américas [...]. Parti comovido. Uma onda de pensamentos tristes me amarguravam o coração”3.

Scalabrini assume a causa do migrante e empenha-se no âmbito do estudo, da análise da realidade, da sensibilização das autoridades eclesiásticas e civis, da opinião pública e outras iniciativas. Esta sua capacidade de ver, de sentir, de partilhar o sofrimento com o irmão migrante, abriu-o à ação do Espírito do Senhor, que o preparava para assumir uma missão especial na Igreja: a missão de ir ao encontro de uma necessidade sócio-pastoral, sobretudo, o empenho em manter viva a fé dos migrantes.

Pensou em agir em primeira pessoa, assumindo a responsabilidade completa da iniciativa, com todas as dificuldades e compromissos que tal decisão poderia comportar. Então, pede a Propaganda Fide que lhe seja permitido abrir um Instituto, em Piacenza, para acolher os padres que desejassem dedicar-se à pastoral e ao cuidado dos imigrantes na América. Ele mesmo avaliaria a aptidão à missão dos mesmos, dando-lhes a oportunidade de adequada educação e formação. Disse, também, estar disposto a acolher, no Instituto, os filhos dos imigrantes na América que mostrassem interesse pelo ministério eclesiástico.

Impulsionado pelo seu carisma pessoal, em 28 de novembro de 1887, funda a congregação dos Missionários de São Carlos. Os missionários tinham a missão de serem homens-pontes de comunhão para facilitar a inserção dos migrantes na nova sociedade civil e religiosa. Ele escreveu aos missionários em 1892: “continuai empregando talento e forças para o conforto religioso, moral e civil de nossos compatriotas”.

No dia 12 de abril de 1889 funda a Associação de Patronato São Rafael, na Itália, para incluir esta nação na rede internacional de assistência social e legal de proteção dos direitos humanos dos migrantes, já atuante em outras nações européias, sobretudo nos portos de partida e chegada do grande êxodo de migrantes, êxodo que o continente europeu assistiu na segunda metade do séc. XIX.

Scalabrini queria que esta Associação fosse ao mesmo tempo religiosa e leiga e era vista como uma necessidade para a tutela legal e sanitária, para fornecer informações e favorecer a colocação nos lugares de trabalho, para a abolição do “tráfico” por parte dos agentes de migração, para sustentar a assistência religiosa, desde o momento da partida até a chegada4. Nesta Associação Scalabrini contou com a ajuda de muitos leigos, os quais fizeram tanto bem aos migrantes.

3 CONGREGAÇÕES SCALABRINIANAS – MISSIONÁRIOS E MISSIONÁRIAS DE SÃO CARLOS, Scalabrini uma voz atual, Loyola, S. Paulo 1989, p. 355-356. 4 Cf. Scalabrini uma voz atual, p. 454.

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1.2 A fundação da congregação das irmãs mscs

Na ação sócio-pastoral realizada em favor dos migrantes, Scalabrini constatou que a missão por ele iniciada devia ser complementada com a participação pastoral de uma congregação feminina. A presença feminina era necessária para que o serviço pastoral entre os imigrantes fosse mais eficaz5. Afirmava: “existem coisas às quais só vós podeis conseguir. Deus infundiu no coração da mulher um atrativo todo particular, pelo qual exerce um poder misterioso sobre as mentes e sobre os corações” 6. Os próprios missionários pediam, insistentemente, a Scalabrini irmãs para as diferentes atividades apostólicas: educação, saúde, catequese e outras atividades em favor dos imigrantes. Em S. Paulo, Pe. José Marchetti, missionário scalabriniano, já havia fundado um orfanato para as crianças filhas dos imigrantes.

Após várias tentativas para sanar esta exigência pastoral, buscando a ajuda de algumas congregações religiosas femininas existentes7, Scalabrini funda a Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas, a 25 de outubro de 1895, com a admissão aos votos religiosos, entrega do crucifixo e envio das primeiras quatro missionárias: Carolina Marchetti, Assunta Marchetti, Angela Larini e Maria Franceschini, apresentadas a ele através do servo de Deus, padre José Marchetti, cofundador da Congregação, o qual muito contribuiu para sustentar o espírito de generosidade missionária scalabriniana dos primeiros membros do novo instituto feminino. Naquele mesmo dia, 25 de outubro de 1895, as quatro missionárias e padre Marchetti, de Piacenza, vão para Gênova e em seguida partem para o Brasil junto aos emigrantes, iniciando uma trajetória que mudaria radicalmente suas vidas. Dão início à nova família religiosa como companheiras dos emigrantes e “servas dos órfãos e abandonados no exterior” 8.

O orfanato Cristóvão Colombo - Ipiranga, São Paulo, foi o local onde as primeiras irmãs iniciaram a sua atividade apostólica junto aos órfãos. O dom de participação ao carisma scalabriniano possibilitou a estas irmãs a capacidade de ver na migração não apenas um fenômeno humano e social, mas um acontecimento lido e interpretado à luz da fé e com o qual deveriam se comprometer e dar uma resposta. É esta capacidade de leitura que faz transcender os limites geográficos de nação, raça, cultura e abrir-se à universalidade.

O início da Congregação foi acompanhado de sucessivas dificuldades, mas foi um período rico de frutos de santidade e de afirmação da identidade congregacional. Graças à fidelidade carismática da cofundadora, a venerável madre Assunta Marchetti, irmã do padre José Marchetti, a identidade da Congregação afirmou-se na Igreja. O decreto do papa Pio XI, de 13 de janeiro de 1934, legitimou a Congregação como Instituto Religioso de Direito Pontifício.

Seguiu-se uma época de florescimento de vocações e expansão da Congregação. Em 1936 as irmãs voltaram para o local de partida das quatro pioneiras, estabelecendo-se em Piacenza, Itália. Em 1941, outras quatro missionárias iniciaram a missão nos Estados Unidos. A sede geral esteve no Brasil até 1960, ano em que foi transferida do Brasil para a Itália – Roma.

Fiel à missão que a Igreja lhe confiou, a Congregação tem como finalidade própria o serviço evangélico-missionário aos migrantes, preferencialmente os mais pobres em situação de

5 Cf. Scalabrini uma voz atual, p. 421-422. 6 G.B. SCALABRINI , Appunti del discorso alla Madre Cabrini e 6 compagne nella consegna del crocifisso a Codogno, 19.3.1889. In: Scritti, Vol. 1, p. 235. 7 Scalabrini primeiro buscou a ajuda das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, fundadas por S. Francesca Saverio Cabrini e depois, das Filhas de Sant’Anna, fundadas por Rosa Gattorno. Porém, estas irmãs, que tiveram o dom de participação aos respectivos carismas de suas Congregações, não se adaptaram ao estilo de vida e ao serviço evangélico específico com os migrantes. 8 Este foi o nome da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo - Scalabrinianas, conforme as primeiras Constituições escritas por Pe. José Marchetti. Encontramos esta confirmação num dos escritos de Madre Assunta Marchetti: cf. Brevi Cenni, Sede Geral das Irmãs Scalabrinianas, Roma 1991, p. 6.

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vulnerabilidade e necessitam de uma ação pastoral específica. A finalidade de um Instituto, é por sua natureza permanente. Portanto, a finalidade permanece sempre a mesma, também quando os meios mudam segundo as circunstâncias dos tempos e lugares.

A reinterpretação do carisma feita por ocasião do capítulo especial (1969-1971), sobretudo, a opção pelo serviço pastoral junto aos migrantes de todas as nacionalidades, favoreceu uma maior internacionalização da Congregação mscs.

Atualmente estamos presentes em 27 países (e mais o estado do Vaticano), com atividades muito diversificadas entre os migrantes.

A Congregação está dividida em seis províncias. Quatro destas possuem a sede provincial no Brasil, uma nos Estados Unidos e outra na Itália. Nesta casa onde nos encontramos, tem a sede a província Imaculada Conceição e as comunidades que pertencem a esta província se encontram no Brasil, Argentina, República Dominicana e Costa Rica.

1.3 Por que o nome de irmãs missionárias de S. Carlos Borromeo?

S. Carlos Borromeo (1538-1584), canonizado em 1610.

Scalabrini quis colocar a congregação sob a proteção de um santo cujo nome, servisse para distingui-la e fosse como que o estandarte, o seu emblema. Ele mesmo afirma que depois de ter rezado e invocado as luzes do Espírito Santo, mais radiosa e mais suave do que nunca apareceu a figura de São Carlos. E desde aquele dia decidiu colocar todos os missionários, o futuro e todas as coisas em suas mãos.

Em 1892 assim escreve aos missionários: De hoje em diante, honrar-vos-eis com o nome de missionários de São Carlos. Ele era um daqueles homens de ação que não hesitam, não se dividem, não recuam jamais; que, em tudo o que fazem, colocam toda a força da própria convicção, toda a energia da própria vontade, toda a integridade de seu caráter, tudo o que são; e vencem!

S. Carlos! Exemplo maravilhoso de impávida constância, de generosa paciência, de ardente caridade, de zelo iluminado, incansável, um verdadeiro apóstolo de Jesus Cristo.

S. Carlos! este é um nome que o missionário não deveria escutar, sem se sentir inflamado, pelo mais nobre, pelo mais vivo entusiasmo, sem se sentir, profundamente comovido. Espelhai-nos nele, recomendai-vos a ele, colocai nele toda a vossa confiança e tereis a certeza de sua proteção9.

2. Irmãs mscs - herdeiras do carisma scalabriniano

2.1 Carisma, o que significa?

“Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos” (1Cor 12,4-6).

Na sua raiz a palavra carisma deriva da palavra grega (charis), que significa dom, graça divina, com a qual o Espírito torna uma pessoa apta a um determinado ministério. Porém, gradualmente, dado que o carisma só se conhece através da atividade, ele tende a identificar-se com as atividades/serviços realizados10.

O carisma é um dom do Espírito, para a edificação do bem comum. “Doando um carisma, o Espírito faz ver ao fundador/a as urgências da Igreja e da sociedade, leva-o a perceber em 9 Cf. Scalabrini uma voz atual, p. 445-446. 10 Cf. J.M. LOZANO, El fundador y su família religiosa. Inspiración y carisma, Madrid, p.51.

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profundidade as concretas necessidades, as aspirações, os desejos, os gemidos mais profundos e os move a dar respostas concretas, marcando o caminho da Igreja e da sociedade”11.

Como manifestação da força do Espírito o carisma é um evento eclesial: a Igreja é como um mosaico de carismas. O carisma representa uma realidade dinâmica e histórica, um evento que é transmitido no tempo, enquanto continua a realizar-se no hoje, em modos diferentes e novos.

Em primeiro lugar, o carisma é um dom pessoal, transforma a pessoa do fundador, prepara-o para uma vocação e missão especial na Igreja, mostrando na história uma experiência particular do mistério de Cristo. Em segundo lugar, é coletivo-comunitário, porque implica outras pessoas na realização do mesmo projeto divino. Em terceiro lugar, é eclesial, porque o fundador e seus discípulos oferecem a toda a Igreja este carisma original para a edificação da mesma. Toda a Igreja é chamada a acolher os frutos desse carisma particular e por isso, sustenta e defende a índole própria dos diversos institutos religiosos12.

2.2 Os carismas na história

A história é também resultado dos carismas que tiveram e ainda possuem efeitos importantes no âmbito civil, religioso e também econômico. Quando os carismas entram nos âmbitos civis, com estes entra em cena uma dimensão do amor, uma força extraordinária e rara, aquela que a teologia e o pensamento cristão deram o nome de ágape, selando esta experiência com uma nova palavra grega, porque nova era a experiência que os cristãos faziam e fazem graças à vida e à mensagem de Jesus.

Portanto, com os carismas irrompe na história o ágape, que faz o seu ingresso dentro e fora dos confins institucionais da Igreja, dada a natureza e vocação universal do cristianismo, cujo sopro toca e move pessoas de todos os tempos e lugares, que, enquanto portadores de um carisma, são portadores de ágape, mesmo que inconscientemente.

O episodio bíblico das bodas de Caná (Jo 2,1-12) é a imagem mais eloquente de Maria como ícone da ação dos carismas na história. Maria, durante a festa de bodas é a primeira a perceber que os convidados não tem mais vinho. Este texto nos diz alguns elementos fundamentais da lógica dos carismas na história, dos quais destacamos:

a) Antes de tudo se fala de uma festa: carisma quer dizer gratuidade, ágape, mas ao mesmo tempo é dom, graça, plenitude. A característica dos carismas e das obras que deste derivam, é aquela da plenitude, da festa, da alegria. Quando a dimensão da gratuidade resplandece vida em um carisma, então o clima que se respira nas comunidades e nas obras é aquele da alegria, da festa.

b) Os carismas enxergam mais longe, em particular enxergam coisas diferentes que outros (discípulos, amigos, instituições...) não enxergam. O carisma é, de fato, um dom de olhos diferentes, que faz a pessoa ver oportunidades em situações onde outros só vêem problemas. Os carismas foram e ainda são os lugares das grandes inovações humanas: a humanidade, não só a Igreja, procede graças a um contínuo estafeta (revesamento) entre inovadores e as instituições que universalizam aquelas inovações.

Exemplos:

- A sociedade antiga via no trabalho manual algo que dizia respeito só ao escravo. S. Bento (480-547) viu no trabalho algo a mais e diferente e colocou o trabalho no centro da nova vida de suas comunidades: ora et labora. Este lema de S. Bento representou muito mais que uma via de

11 F. CIARDI, Il contributo dei religiosi alla società, Mimeo, Roma 2008, p. 1. 12 Cf. Dizionario Teologico della Vita Consacrata, Ancora, Milano 1994, p. 95-98.

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mera santidade individual: a cultura beneditina tornou-se nos séculos uma verdadeira e própria cultura do trabalho e da economia.

- A cidade de Assis (início do séc. XIII) via nos pobres só o resto da sociedade. S. Francisco viu na pobreza algo tão belo que o levou a escolhê-la como ideal de sua vida e de tantos que o seguiram. Com ele nasce um carisma que deu olhos novos para ver nos pobres, não um problema mas um recurso. O movimento franciscano, assim como o beneditino, incidiu fortemente sobre a vida social da Europa, sobre a cultura, sobre a arte e sobre a economia.

- Nos indígenas do Brasil e do Paraguai, os reis portugueses e espanhóis viam uma espécie não substancialmente diferente dos animais da mata, aos quais se negava até a alma. O carisma de S. Inácio de Loyola (séc. XVI, fundador dos Jesuítas) consentiu de ver naquelas populações algo a mais e diferente, e de inventar aquela experiência profética de civilização e de inculturação que foram as reduções nos séculos XVII e XVIII.

- S. João Bosco, no final do séc. XIX, diante de milhares de jovens que chegavam do interior para trabalhar em Torino, a maioria analfabeta, órfãos, viu neles um recurso e não um problema para gestir. Descobre que em cada jovem há um ponto acessível ao bem, era só necessário descobri-lo, encontrar aquela corda sensível e fazê-la vibrar. E assim, nascem os laboratórios e depois se tornarão os cursos profissionalizantes, que ainda hoje representam uma das vias mais eficazes para ajudar os jovens com menos condições de estudo a realizarem-se também em nível profissional.

- Bem aventurado João Batista Scalabrini (o pai dos migrantes), compreende o fenômeno da migração em todas as suas dimensões: humana, social, econômica e, principalmente, na dimensão da fé. O dinamismo que este dom despertou em seu interior deu origem a duas Congregações religiosas (padres e irmãs) e à Sociedade São Rafael (leigos), com uma missão própria na Igreja: trabalhar junto aos migrantes. Além disso, propôs ao papa Pio X a criação, na Igreja universal, de um organismo especial com esta finalidade13, não apenas em favor dos imigrantes italianos, mas também de outras nacionalidades. Scalabrini viveu pessoalmente esta experiência e respondeu plenamente ao desafio da migração no seu tempo14. Também visitou os seus missionários/as e os migrantes, em 1901, nos EUA e em 1904, no Brasil.

O carisma de Scalabrini não foi apenas um dom pessoal, mas um dom carregado de uma dimensão comunitária/eclesial, comunicado pelo mesmo Espírito também a outras pessoas que a ele se associam.

E assim poderíamos citar outras pessoas: S. Francisca Cabrini, (a mãe dos migrantes), S. Francisco de Sales, S. João Calabria, receberam olhos para ver nos pobres, nos exilados, nos menores de rua, nos imigrantes, nos doentes, algo de grande e de belo, pelos quais valeria a pena gastar a própria vida. Atraíram milhares de pessoas que os seguiram, inspirados por aqueles carismas. Os carismas podem, portanto, serem considerados ao longo da história, como experiências de elevação da temperatura espiritual, civil e econômica da humanidade.

Os carismas empurram para frente as balizas do humano.

2.3 Características da realidade que nascem de um carisma15

Neste momento histórico, como Congregação, estamos diante de alguns desafios ligados à diminuição das vocações, ao aumento da idade média das irmãs, à realidade das obras, que se torna sempre mais complexa e, positivamente, um envolvimento sempre maior de colaboradores leigos em nossa missão.

13 Cf. J.B. SCALABRINI , “Carta ao Papa Pio X (22.07.1904)”, in Scritti, vol. 1, 323-325. 14 Cf. Scalabrini uma voz atual,358. 15 Cf. A. SMERILLI – L. BRUNI, Benedetta economia, Città Nuova, Roma 2009, p. 35-46.

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O desafio maior é conseguir levar adiante as nossas obras, saber gesti-las bem, para assegurar a continuidade. Diante deste desafio podemos correr o risco de dois erros, ambos mortais. O primeiro é aquele de procurar a eficiência e a profissionalização a todo custo (servindo-se de técnicas empresariais), com o risco de perder o carisma. E uma obra carismática que perde o carisma é destinada à morte. Hoje há uma tendência muito forte de tratar todas as formas organizativas como realidades substancialmente semelhantes. A escola e o hospital, a multinacional e a empresa cooperativa, uma universidade e uma Congregação religiosa, são todas organizações e, obviamente, existem muitos elementos em comum entre uma empresa comercial, uma cooperativa e uma comunidade religiosa, mas uma boa teoria organizativa deve concentrar-se, sobretudo, nas pequenas diferenças.

Um exemplo: Há quem afirme que os seres humanos e o chipanzé partilham de 98% do DNA, mas justamente aqueles 2% de diferença é o que conta se queremos entender o que é a pessoa humana. Entre uma normal organização e as nossas obras, existe certamente o 98% em comum, em nível de práticas organizativas e de instrumentos de gestão, mas devemos nos concentrar naqueles 2% se queremos estudar e entender a linguagem, a organização e a economia das obras carismáticas16. Se não se dá importância àqueles 2% de diferença, não conseguiremos mais ver os elementos decisivos de cada organização, que se chama cultura, identidade, valores, missão.

O segundo erro é aquele de crer que basta a boa vontade para revitalizar as obras, assegurando a continuidade e a vitalidade do carisma. Atrás disso, se esconde o medo que ocupar-se de gestão seja como sufocar o carisma. Mas este medo poderia levar a fechar progressivamente as nossas casas e as nossas obras.

Algumas características que nascem dos carismas, quando se fala em gestão de obras:

1ª) Todas as expressões que nascem dos carismas, portanto, todas as obras dos Institutos religiosos, nascem de um movente ideal. A obra nasce como expressão deste ideal. O primado é o ideal e não o econômico. O fundamental destas experiências é o princípio da gratuidade, que não quer dizer fazer as coisas grátis. São experiências que dão espaço ao toque humano gratuito, mesmo quando estão totalmente inseridas no mercado, E quando há a gratuidade, uma certa ação se faz porque é boa e não porque traz frutos bons (mesmo que os traga). A gratuidade não está associada a um preço nulo (grátis), mas a um preço infinito, diferença que ainda hoje é percebida por poucos.

Todas as experiências que nascem dos carismas tem o perfume, a fragrância da gratuidade: e as pessoas o sentem forte e sempre. “Sem a gratuidade não se consegue realizar nem mesmo a justiça”17.

2ª) As obras nascem para responder a necessidades de pessoas concretas. Os carismas partem das pessoas, da realidade, da vida, dos problemas. Isto indica que nas experiências carismáticas o primado é a vida e não a teoria. São experiências populares que nascem sempre da práxis. Sempre é a vida que deve ser escutada e respeitada e depois se faz a teoria, não o contrário.

3ª) As obras são fortemente ligadas à pessoa do fundador, portanto, são sempre experiências com uma forte identidade carismática. Hoje, a cultura atual tende a ver as experiências que tem uma forte identidade como não universais e tendencialmente fechadas em si mesmas. Tal atitude cultural e ideológica é expressão de um erro grave, porque historicamente não é automática a associação entre identidade e fechamento. Quando as experiências nascem de carismas autênticos, a história nos dá exemplos: Gandhi ficou Gandhi; Mandela ficou Mandela; Madre Teresa de Calcutá ficou Madre Teresa; mas foram faros de luz para milhões de pessoas. 16 Cf. Palestra de Alessandra Smerilli, “Il significato economico e sociale dei Carismi”, Roma 2011. 17 Papa BENTO XVI, Encíclica Caritas in Veritate (CV), n. 38.

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Nesta linha se fundamenta a preocupação e o empenho na formação dos leigos que trabalham em nossas obras. O carisma deve brilhar através de cada leigo, de cada um de vocês que conosco trabalha. Temos que ter atenção, fazer com que as nossas obras ofereçam serviços eficientes, mas também se distingam de outras agências de serviços.

4ª) A dimensão da reciprocidade, onde as pessoas envolvidas nesta experiência doam, mas também recebem. Não é a experiência do contrato. É uma reciprocidade gratuita, que podemos definir “incondicional”, indiferente diante da resposta ou não resposta dos outros. Em ambiente cristão o paradigma fundamental é aquele Trinitário, do amor recíproco.

É esta gratuidade que a Encíclica Caritas in Veritate pede para colocar no centro também de nossas relações econômicas, políticas, sociais, onde parece impossível, mas onde muitos já a vivem18.

5ª) As experiências que nascem do carisma e da gratuidade atribuem naturalmente um papel importante à beleza: interessa também o belo e não só o bom (ou o verdadeiro). Em tais experiências não se satisfaz em fazer as coisas bem, mas também de fazê-las belas.

Exemplo: em casas de repouso para pessoas idosas que não nascem de um carisma, se pode ter a impressão que a beleza não seja parte da casa. Ao contrário, naquelas que nascem dos carismas, se percebe logo que tem mais beleza no modo de tratar as pessoas, nos ambientes, na limpeza. A dimensão da beleza, ou como diziam os medievais, o transcendente do belo, quando está presente diz que a pessoa tem um valor em si, que é respeitada porque é pessoa, e não apenas porque é um cliente. Eis porque existe uma forte ligação entre beleza e gratuidade, entre beleza e carisma.

As organizações que nascem de um movente ideal vivem, sobretudo, graças a um núcleo de pessoas motivadas que conseguem manter alto o clima, isto é, a cultura da organização. A atenção a este núcleo de pessoas e o trabalho para elevar as motivações de todos os membros, são dois elementos fundamentais de uma boa gestão da organização.

3. A dimensão missionária do carisma scalabriniano

O carisma da Congregação das irmãs mscs é dom do Espírito Santo doado ao nosso Fundador e transmitido a cada um de nós para a edificação da Igreja. Este dom carismático imprime um estilo peculiar de santificação e de apostolado que nos faz viver e expressar uma peculiar dimensão do mistério de Cristo: “Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25,35), que se torna para nós “o serviço evangélico e missionário aos migrantes, preferencialmente os pobres e necessitados” 19. Todo carisma autêntico traz consigo certa dose de genuína novidade, de particular operosidade, que responde às necessidades de cada momento histórico.

A Congregação desenvolve a sua missão através da pastoral dos migrantes, nas suas diferentes formas. Todas as formas de pastoral possuem como meta cooperar na obra iniciada por Cristo, anunciando a mensagem do Reino junto aos migrantes20. O campo de atuação é vasto: escolas, hospitais, orfanatos, presídios, centros de menores, asilos, casas de formação, paróquias, dioceses, conferências episcopais, organismos internacionais, organizações civis, centros de promoção, de escuta e de acolhida de migrantes e refugiados, centros de estudo e de documentação.

18 Cf. CV, 46. 19 Normas Constitucionais MSCS, n. 4. 20 Cf. Diretrizes Gerais do Apostolado, Sexênio 2001-2007, p. 16.

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Através de toda a ação apostólica a Congregação visa contribuir para a formação de uma sociedade mais humana, fraterna e solidária, fundada nos princípios do Evangelho e nos direitos fundamentais da pessoa.

Nossa missão exige itinerância apostólica, migrante com os migrantes, sendo presença lá onde ele vive, trabalha, celebra e sofre, construindo com ele a história da Salvação, experiência que nos faz sentir que Jesus continua caminhando conosco, como outrora com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35). Esta encarnação na realidade possibilita inculturar o carisma nos mais diferentes contextos sociais, culturais e eclesiais.

O amor à causa dos migrantes mais pobres e necessitados se manifesta na generosidade de coração, no dinamismo acolhedor, universal, que se torna visível nos gestos de compaixão e solidariedade. A nossa ação missionária abrange todas as dimensões da pessoa migrante, que está à procura de pão para satisfazer suas necessidades materiais, da Palavra para encontrar o sentido de sua existência e de comunidades que satisfaçam suas necessidades de amor e de pertença, nas quais ninguém se sinta estrangeiro.

A participação ao carisma scalabriniano supõe, de cada membro, a capacidade de ver a migração e, por conseguinte, toda a mobilidade humana, não apenas como um fenômeno humano, mas visto e interpretado à luz da fé. Esta leitura faz transcender os limites de nação, raça, cultura, religião, sendo articuladoras e profecia de comunhão entre os povos, eliminando fronteiras, a fim de que todo lugar se torne para o migrante, como dizia Scalabrini, a pátria que lhe dá o pão.

Cada pessoa chamada a ser membro da família scalabriniana, entra e persevera porque se identifica com a forma de vida e a ação missionária deste carisma, realizando-se como pessoa e como discípulo missionário no momento concreto da história que vive. O dom é concedido a cada pessoa, para que se torne membro vivo e ativo desta família, que é uma célula da Igreja.

Todos somos missionários de uma forma ou de outra. Dom Hélder Câmara assim se expressava: “Missão é partir, caminhar, deixar tudo, sair de si, quebrar a crosta do egoísmo que nos fecha no nosso eu. É parar de dar volta ao redor de nós mesmos, como se fôssemos o centro do mundo e da vida. É não se deixar bloquear pelos problemas do pequeno mundo a que pertencemos; a humanidade é maior. Missão é sempre partir, mas não devorar quilômetros. É abrir-se aos outros como irmãos, descobri-los e encontrá-los. E se para encontrá-los e amá-los é preciso atravessar os mares e voar lá nos céus, então, missão é partir até os confins do mundo”21.

4. A participação dos leigos no carisma scalabriniano

4.1 A eclesiologia do Concílio Vaticano II a respeito dos leigos

A eclesiologia do Concílio Vaticano II colocou à luz a complementaridade das diferentes vocações na Igreja, chamadas a serem, juntos, testemunhas do Senhor Ressuscitado em cada situação e lugar. Os leigos são chamados e enviados a tomar parte ativa, consciente e responsável na missão da Igreja.

A comunhão eclesial configura-se como uma comunhão “orgânica” que se caracteriza pela presença simultânea da diversidade e da complementaridade das vocações e condições de vida, dos ministérios, carismas e responsabilidades22.

O Concílio indica qual o sentido próprio e peculiar da vocação dos leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo, mas, exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro,

21 A Missão da Pastoral Social, Edições CNBB, Brasília 2008. p.48. 22 Cf. Papa JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Christifideles Laici (CfL), n. 20.

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como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros pelo testemunho da própria vida, pela irradiação de sua fé, de sua esperança e de sua caridade. As imagens evangélicas do sal, da luz e do fermento, embora se refiram indistintamente a todos os discípulos de Jesus, têm uma específica aplicação nos leigos. São imagens maravilhosamente significativas, porque falam, não só da inserção profunda e da participação plena dos leigos na terra, no mundo, na comunidade humana, mas também e, sobretudo, da novidade e da originalidade de uma inserção e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho que salva23.

Atualmente, a Igreja valoriza de uma maneira especial os leigos, abrindo espaço para que eles participem, se comprometam e se sintam realizados com a missão que exercem.

4.2 Scalabrini e os leigos

Scalabrini tinha uma admiração muito especial pelos leigos e contava muito com a sua colaboração nas várias atividades pastorais. Tinha a firme convicção que o laicato tem o seu apostolado, a sua missão apostólica. Afirmava: Deveis ser apóstolos, também vós, ó irmãos, isto é, homens de ação e de sacrifício. Não podeis também vós, embora leigos, exercer, no pequeno mundo que vos circunda, o apostolado da palavra, usando nas conversas, nas instruções, no corrigir uma linguagem que edifique? O apostolado do exemplo, professando abertamente, sem temor, a vossa fé? O apostolado da caridade, socorrendo os pobres, visitando os enfermos, consolando os aflitos, fazendo o bem a todos? O apostolado da civilização, cooperando na destruição do pecado, que torna miseráveis os povos e incrementar a justiça que faz prosperar as nações? Nas necessidades da Igreja cada cristão deve ser um apóstolo, ardente e generoso24.

E continua dizendo: Vós leigos, podeis muito. Cabe-vos apropriar-vos da sociedade, refazê-la cristã, trabalhando com amplidão de idéias, com tenacidade de propósitos, a fim de que, o espírito do Evangelho penetre em toda parte e revista tudo o que é elemento da vida intelectual, moral e muitas vezes, também física do homem25.

Scalabrini também exorta os leigos a professarem diante de todos a fé, a glorificarem o Senhor nas conversas, nos escritos, nos vários encontros da vida26. Para ele, viver na fé, era viver o processo de divinização e esta significa conformidade com o Verbo Encarnado, que se insere na humanidade como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Através da Encarnação do Filho, Deus doa-se ao ser homem e desce em direção a ele e toda a criação é elevada pelo Filho para Deus27.

Portanto, pela Encarnação de Cristo foi divinizada a humanidade e cada um de nós. Não é um processo estático, mas de um dinamismo coordenado de graça e de ascese. Por isso Scalabrini afirma que somos a extensão da Encarnação. Para ele, a Encarnação de Cristo continua em nossa pessoa, na Igreja e na história humana. Em síntese afirma:

- Divinização = continuação e extensão da Encarnação em nossa pessoa.

Em Cristo não só nos tornamos filhos de Deus, mas somos extensão da Encarnação. Nós somos esta carne, estes ossos, esta natureza. Cristo se prolonga em nós e através de nós se prolonga o amor do Pai. Cristo se encarna em nós de tal modo que a nossa humanidade se torna instrumento de seu amor para as pessoas. Envolve o nosso viver cotidiano e emprestamos nossa humanidade a Cristo, para que nela e por meio dela, continue a pensar, falar, operar, ser mediador e glorificar o Pai. Afirma o Concílio: Somente no mistério do Verbo encarnado

23 Ibidem, n. 15. 24 Cf. Scalabrini uma voz atual, p. 191 25 Ibidem, p. 192. 26 Ibidem, p. 192 27 Cf. M. FRANCESCONI, João Batista Scalabrini - Espiritualidade da Encarnação, Loyola 1991. Os parágrafos que seguem sobre a Encarnação encontram-se nas p. 11-30.

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encontra verdadeira luz o mistério do homem. A chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram em Jesus Cristo28.

- Divinização = continuação e extensão da Encarnação na Igreja.

A Igreja é extensão da Encarnação ao longo dos séculos, a Encarnação permanente do Filho de Deus, a continuação perpétua da obra redentora e santificadora das pessoas sobre a terra. O caminho da fé e da espiritualidade cristã deve passar obrigatoriamente através as etapas da Encarnação redentora, portanto, a cruz e a ressurreição. A fé a espiritualidade são encarnadas no sentido que atingem a pessoa na sua integridade de corpo e do espírito, do indivíduo e da sociedade.

- Divinização = continuação e extensão da Encarnação na história humana.

Cristo é o centro do cosmo e da história: o Alfa e o Omega, o princípio e o fim, o centro da criação, a meta de todas as obras e dos desígnios da Providência.

À luz da fé, que é a luz de Cristo, Scalabrini lê na história da humanidade e do mundo a história da salvação. De modo particular vê o advento do Reino de Deus no fenômeno histórico e social da emigração, mesmo reconhecendo os aspectos negativos.

4.3 Comprometimento dos leigos com a vida e a missão da Congregação

Na memória histórica da Congregação, desde o início, se perfila uma fecunda partilha entre leigos e irmãs. Estes constituem uma presença gratuita constante em diversas modalidades junto à maioria das nossas missões.

Como leigos, vocês são chamados a viver a vocação batismal através da participação e partilha do carisma scalabriniano, anunciando Jesus Cristo e testemunhando a identidade de leigo/a scalabriniano nos diversos âmbitos da vida cotidiana, no ambiente familiar, eclesial, social, profissional.

a) A tarefa de promover a dignidade da pessoa em todas as atividades e obras

A Igreja recebeu o encargo de manifestar ao mundo o mistério de Deus que brilha em Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, descobre o valor da pessoa, a esclarece acerca do sentido da sua existência, a abre à verdade total a respeito dela e do seu destino. Nesta perspectiva, a Igreja é chamada, em virtude da sua própria missão evangelizadora, a servir a pessoa. Por isso, a pessoa é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no desempenho da sua missão, caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que imutavelmente passa através do mistério da Encarnação e da Redenção29.

Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os leigos, são chamados a prestar à família humana. A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor quando se consideram a sua origem e o seu destino: criada por Deus à sua imagem e semelhança e remida pelo sangue de Cristo, a pessoa é chamada a tornar-se “filho no Filho” e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão com Deus30.

Ser imagem de Deus traz em si a dimensão da alteridade, da diversidade, da pluralidade e da comunhão, porque Deus é Uno em três pessoas, fonte de comunhão e de reciprocidade. O homem foi pensado por Deus para ser o portador de sua imagem através de uma estrutura de relações dinâmicas: na dimensão pessoal, coloca-se em relação com o seu ser e com a sua liberdade; socialmente, está ligado aos outros, como pessoas individuais e como sociedade; na

28 Cf. Gaudium et Spes, n. 22. 29 Cf. CfL, n. 36. 30 Ibidem, n. 37.

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dimensão cósmica e histórica, é chamado a cooperar com Deus e administrar todas as coisas criadas, construindo a sua própria história.

A dignidade pessoal constitui o fundamento da igualdade de todas as pessoas entre si, é a propriedade indestrutível de cada ser humano. Daí, a absoluta recusa de todas as mais variadas formas de discriminação (raciais, econômicas, sociais, culturais, políticas, geográficas) que, infelizmente, continuam a dividir e a humilhar a família humana. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar-se no seio de uma mulher, unindo-se de certa forma a todo o homem31.

b) Nos hospitais

A comunidade cristã, de século em século, testemunhou aos doentes e aos que sofrem a parábola evangélica do bom samaritano, revelando e comunicando o amor de Jesus Cristo que cura e que consola. Fê-lo mediante o testemunho da vida religiosa consagrada a serviço dos doentes e mediante a ação incansável de todos os agentes de saúde. Hoje, também nos próprios hospitais e casas de saúde católicos, administrados por pessoal religioso, torna-se cada vez mais numerosa e, por vezes, até total e exclusiva, a presença de leigos, homens e mulheres, chamados a tornarem-se a imagem viva de Cristo e da sua Igreja no amor para com os doentes e os que sofrem32.

O Documento de Aparecida afirma que a Igreja fez a opção pela vida. Esta nos projeta necessariamente para as periferias mais profundas da existência: o nascer e o morrer, a criança e o idoso, o sadio e o enfermo. O combate à enfermidade tem como finalidade conseguir a harmonia física, psíquica, social e espiritual. A Pastoral da saúde é a resposta às grandes interrogações da vida, como o sofrimento e a morte, à luz da morte e ressurreição do Senhor. A Igreja conta com todos os profissionais e voluntários que trabalham nesta área da saúde para mostrar a sua maternidade, a sua ternura, a sua companhia silenciosa, o seu carinhoso trato, a sua delicada atenção às necessidades da enfermidade33.

É no momento da dor que no coração humano surgem as perguntas mais agudas sobre o sentido da vida. Se a palavra humana parece emudecer diante do mistério do mal e da dor, a Palavra de Deus nos revela que também estas circunstâncias são ‘abraçadas’ pela ternura de Deus. O Pai da vida é o médico por excelência e não cessa de inclinar-se amorosamente sobre a humanidade sofredora. O cume da proximidade de Deus ao sofrimento humano, o contemplamos em Jesus, Palavra encarnada. Por nós sofreu e morreu34.

c) Nas escolas

A Igreja reconhece e louva a dedicação dos professores, na grande maioria leigos, nas escolas e universidades. E faz um apelo para que os institutos de educação católica possam formar homens e mulheres que sejam encarnação do mandamento novo. Ressalta a necessidade urgente de que os leigos, professores nas várias escolas, católicas ou não, sejam verdadeiros testemunhas do Evangelho com o exemplo de vida, com a competência, com a retidão profissional e a inspiração cristã do ensino. É de singular importância que a investigação científica e técnica, levada a termo pelos leigos, seja orientada pelo critério do serviço à pessoa na totalidade dos seus valores e das suas exigências: a esses fiéis leigos a Igreja confia a missão de tornar mais compreensível a todos a íntima relação entre fé e ciência, entre Evangelho e cultura humana35.

31 Ibidem, n. 37. 32 Ibidem, n. 53. 33 Cf. CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, Documento de Aparecida – texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (DA), 2007, n. 417-421. 34 Cf. Papa BENTO XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini (VD), n. 106. 35 Cf. CfL, n. 62.

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A escola é chamada a se transformar, antes de tudo, em lugar privilegiado de formação e promoção integral. Cabe a escola ativar o dinamismo espiritual da pessoa e ajudá-la a alcançar a liberdade ética que pressupõe e aperfeiçoa a psicológica. Mas não se dá liberdade ética, a não ser na confrontação com os valores absolutos dos quais dependem o sentido e o valor da vida do ser humano. A educação humaniza e personaliza o ser humano quando consegue que este desenvolva plenamente seu pensamento e sua liberdade, fazendo-o frutificar em hábitos de compreensão e em iniciativas de comunhão com a totalidade da ordem real. No projeto educativo da escola católica, Cristo, o Homem perfeito, é o fundamento em quem todos os valores humanos encontram sua plena realização e, a partir daí, sua unidade36.

A atual emergência educativa faz crescer o problema de educadores que saibam serem testemunhas credíveis daquela realidade e dos valores sobre os quais é possível fundar tanto a vida pessoal de cada homem, como os projetos comuns do viver social37.

A colaboração e a troca de dons se tornam mais intensas, quando grupos de leigos participam por vocação e no modo próprio, no seio da mesma família espiritual, ao carisma e à missão do Instituto. Instauram-se, então, relações frutuosas, baseadas em relações de madura responsabilidade e sustentadas de oportunos itinerários de formação à espiritualidade do Instituto38. Como exemplo de leigos ligados a um Instituto, podemos citar o movimento dos Leigos Missionários Scalabrinianos, que já tem mais de uma década de fundação e que caminha rumo ao reconhecimento oficial pela Igreja.

4.4 O exemplo missionário de S. Carlos Borromeo, Scalabrini, padre José Marchetti e madre Assunta Marchetti

Ao nosso patrono S. Carlos podemos aplicar as palavras relativas a Cristo, que não se apegou à sua condição divina como um tesouro, mas para fazer-se servo (cf. Fl 2, 6-7). Um grande senhor, um brilhante cardeal se fez servo de todos sem nunca lamentar-se de nada. Os seus quase 20 anos de episcopado foram marcados por uma atividade extraordinária, um trabalho impressionante, uma disponibilidade sem medidas, também para encontrar os mais humildes de seu povo. Um homem que se consumou com as fadigas apostólicas, não para alcançar objetivos pessoais, mas só por amor.

O cuidado de Carlos se estendia a todas as formas de pobreza: as pessoas mais humildes de seu povo, os doentes e qualquer outro que tivesse necessidade. A atenção a eles não era só um fato pessoal, porque Carlos tinha a capacidade de realizar estruturas adequadas e a Diocese de Milão, pelo impulso de Carlos, tornou-se capaz de dar ajuda estável a milhares de pobres39.

Inúmeras foram as obras que fundou em favor dos pobres: casa para o abrigo noturno dos pobres; casa do Socorro, na qual eram acolhidas as mulheres casadas, maltratadas ou abandonadas; instituiu três obras de caridade para as mulheres de rua; casa de Santa Catarina e casa Santa Sofia para a acolhida das órfãs pobres. Entre as tantas iniciativas assistenciais, no tempo da carestia, em 1570, instituiu cinco cozinhas populares e promoveu a importação de gêneros alimentícios de primeira necessidade. Sempre para ajudar os pobres vendeu o principado d’Oria que tinha herdado de seu irmão Federico40.

O fundador, João Batista Scalabrini, fez parte daquelas personalidades da Igreja que, guiadas por motivações ideais, sociais e religiosas, procuraram defender os pobres, ampliar o bem estar de todos, buscando construir uma sociedade mais humana. Ele escolheu a caridade e o compromisso social como campo de seu projeto sócio-pastoral. Scalabrini uniu, na sua pessoa, a 36 Cf. DA, n. 330-335. 37 Cf. Lineamenta del Sinodo dei Vescovi sulla nuova evangelizzazione, n. 22. 38 Cf. CfL, 62. 39 Cf. M. ARAMANI , San Carlo Borromeo, Velar, Bergamo 2010, p. 45-47 40 Ibidem, 23-24.

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evangelização e a promoção humana: anuncia o Plano de Deus, escondido nas migrações; defende os direitos dos migrantes; promove a justiça e valoriza o patrimônio cultural do migrante, ajudando-o a se inserir na Igreja e na sociedade de acolhida. Seu objetivo era aquele de formar de todos os povos um só povo, de todas as famílias uma só família.

Nos discursos aos missionários que partiam, entre outras palavras expressa: “não posso deixar de expressar-vos, ó jovens apóstolos de Cristo, a mais alta veneração e sentir uma santa inveja de vós”41. Em outro envio missionário (27.12.1888) assim se expressou: “Ide, ó novos apóstolos de Jesus Cristo; ide mensageiros velozes... ao povo que vos espera. Vasto, sem fim é o campo aberto ao vosso zêlo. Lá, templos para erguer, escolas para abrir, hospitais para construir, asilos para fundar, o culto do Senhor para prover. Ide! Ide”!42.

O impulso missionário levou Scalabrini a estar aberto, a compreender a história em movimento e interpretá-la à luz da fé, que o leva a ver na emigração um meio de expansão, de disseminação das sementes do Verbo43. À luz da fé e da missão da Igreja, ele interpreta os dados adquiridos pela pesquisa humana e, de tal interpretação, faz nascer suas escolhas, sua intervenção operacional, sua ação44.

A pastoral de Scalabrini é verdadeiramente marcada pelo carisma da totalidade: todo tempo, todas as forças, todos os talentos, todos os dons da graça. Reviver hoje a figura e a missão de Scalabrini é assumir a sua grande utopia – uma humanidade solidária, fraterna e justa45.

Padre José Marchetti inseriu-se totalmente no mundo migratório. Não mediu esforços para encontrar formas e meios que minimizassem o sofrimento de milhares de imigrantes nas fazendas de café no interior do estado de São Paulo, bem como o da população marginalizada na cidade de São Paulo. A coragem dava-lhe a prontidão em partir, e a humildade conferia-lhe a prontidão em servir. A preocupação de Pe. Marchetti abrangia todos os imigrantes, mas principalmente aqueles mais abandonados: os órfãos e os doentes sem assistência médica e espiritual46.

Diante das necessidades do povo, tanto espirituais, como materiais, não se omitia, não media sacrifícios. Sua caridade, humildade e os magníficos votos de caridade e de vítima do próximo, acrescentados por ele aos votos tradicionais, deixam transparecer a alma de uma pessoa totalmente mergulhada em Deus e voltada para o bem do outro. A fé era a fonte de sua esperança que tornada ato, gerava frutos de caridade. Privilegiava os últimos, aqueles que não podiam ser auto-suficientes, aqueles que dependiam da caridade de outros para viver47.

Madre Assunta Marchetti, seu caminho missionário no Brasil durou 53 anos. Percorreu-o sem hesitações, sem esmorecer, na coragem que a tinha motivado a dar o sim inicial48. Em sua missão demonstrou ser uma mulher simples, a mãe que se oferece a Cristo e aos irmãos. Ela é mulher de compaixão, aquela que encarna a sua vida nos pequenos, nos pobres, nos últimos. No encontro com os povos estrangeiros, ela não fala uma língua feita de palavras, mas uma linguagem formada por gestos de atenção, de silêncios e de compaixão. O gesto e o silêncio são os sons da língua dos pobres e Madre Assunta coloca em prática aqueles sons até o dom supremo

41 Espiritualidade da Encarnação, p. 74. 42 Scalabrini uma voz atual, p. 432-433. 43 Espiritualidade da Encarnação, p. 77. 85. 44 Ibidem, p. 81. 45 Cf. R. RIZZARDO, O carisma scalabriniano na Igreja, Congregação Scalabriniana, Roma 1991, p. 60. 46 Cf. In memoriam Pe. José Marchetti (1886-1996) – Província N. Senhora Aparecida, São Paulo 1996, p. 26. 47 Cf. Pe. José Marchetti – exemplo de amor a Deus e ao próximo, síntese elaborada pela jornalista Francisca Sônia de Mello, São Paulo. 48 Cf. L. BONDI, Virtudes da Serva de Deus Madre Assunta Marchetti, Roma 2004, p. 158-161.

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de si49. Fazia muito bem todas as coisas, dos trabalhos mais simples aos de maior responsabilidade e tinha certeza de estar fazendo a vontade de Deus.

Dom Paulo Evaristo Arns (12.06.1987), definiu madre Assunta como modelo de missionária hoje. Foi uma pessoa de fé, de oração, de sacrifício, de grande união com Deus e tem muito a nos dizer50.

5. A dimensão espiritual do carisma scalabriniano

5.1 A vivência espiritual do Fundador e Cofundadores

A perpetuidade de um carisma na história só acontece se houver pessoas que o acolham, vivenciem e comuniquem esta experiência às gerações futuras. Afirma a Traditio Scalabriniana: “A fidelidade criativa a este dom fez desabrochar uma espiritualidade que tem suas origens em Scalabrini e no carisma que o Senhor deu, através dele, à Igreja para o mundo da mobilidade humana51.

Para nós, irmãs mscs, e para todos os que partilham conosco o carisma scalabriniano, o texto bíblico da escada de Jacó (Gn 28,10-22), representada no brasão episcopal de Scalabrini, inspira e fundamenta as duas dimensões do carisma que precisam sustentar-se mutuamente: a espiritualidade e a missão, ou seja, uma experiência, que integra contemplação e ação, continuamente alimentada através da Palavra e da Eucaristia.

A ‘escada’ no brasão episcopal de Scalabrini pode ser vista como a síntese de uma espiritualidade que subia ao céu para se impregnar de Deus e descia à terra para encarná-lo em pessoas, acontecimentos e estruturas. Portanto, há necessidade de contemplação (= anjo que sobe), para uma ação verdadeiramente rica da graça de Deus para distribuir às pessoas (= anjo que desce).

Jesus Cristo era o centro da vida de Scalabrini e a progressiva configuração com Ele levou-o um estilo de espiritualidade baseado numa profunda vida de fé e de retidão do coração, isto é, de

constante e total orientação para Deus, que era a alma de sua vida exterior. Ele mesmo afirmava: “faz-se verdadeiramente por fora, quanto se vive por dentro”. Acreditava que o caminho para alcançar a santidade realiza-se, não através de coisas extraordinárias, mas através da virtude, que se revela em atitudes cotidianas de humildade, mansidão, zelo, um coração cheio de caridade para com o próximo e amor para com Deus52.

Através da oração, Scalabrini mantinha sua relação profunda com Deus. Afirmava: como um carro, por mais lindo que seja, se lhe falta a força do motor não anda, assim também o nosso coração, se lhe falta o sopro animador do Espírito de Deus, que só pode nos vir da oração, não será capaz de fazer alguma coisa de verdadeiramente grande, nobre e duradouro53. Para ele, a oração é a luz, o calor, o alimento, o conforto, a fonte dos bons e dos grandes pensamentos e por isso dizia: perguntem àqueles que crêem, é lá que eles encontraram a luz da fé, perguntem aos santos, é lá que eles encontraram os socorros da graça; perguntem aos gênios, é lá que eles encontraram a luz da ciência. A oração transfigura, sublima e diviniza a pessoa. Diante da oração Deus não pode resistir por muito tempo54. 49 Cf. Cuori di Luce – tre esempi di spiritualità nella terra di Camaiore, p. 52 50 Cf. In Memoriam Madre Assunta Marchetti (1948-1998), Província N. Senhora Aparecida, São Paulo 1998, p. 8.19.44. 51 Traditio Scalabriniana, junho de 2005, n. 2. 52 Cf. Espiritualidade da Encarnação, p. 32-37. 53 Cf. Carta Pastoral, 1886. 54 Cf. Carta Pastoral, 1905.

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Para madre Assunta, Jesus Cristo era a razão de seu viver e de sua incansável doação. Viveu ancorada em Deus, não se distraía, mesmo nos seus múltiplos afazeres, porque tudo se destinava à glória de Deus – como sempre dizia: “Façamos tudo para a maior glória de Deus e para a salvação das almas”. Fazer a vontade de Deus era a orientação constante de sua espiritualidade. Sua vida espiritual não foi caracterizada por experiências místicas, mas a qualidade de sua correspondência à graça de Deus foi tal de resultar heróica55.

Padre José Marchetti, sabemos que deixou-se modelar nas mãos do Divino oleiro. Deixou que Deus o trabalhasse, o deixasse acabado, pronto para aquilo que Ele o queria neste mundo, no seu projeto de salvação56. Dizia: “Sinto que na minha cabeça não estou eu, mas o querer de Deus, que se serve de mim, sem que eu me dê conta”57.

5.2 Todos chamados à santidade

Como batizados, cada pessoa é chamada a ser santa. Como diz a Traditio: “Cada passo na espiritualidade scalabriniana, que é a estrada concreta da santidade para nós, produz fruto lá onde nós estamos e trabalhamos”58. E afirma a Igreja: “os seguidores de Cristo são chamados por Deus não por suas obras, mas segundo seu desígnio e sua graça [...]. É, pois, necessário que eles, pela graça de Deus, guardem e aperfeiçoem em sua vida a santidade que receberam”59.

A vocação comum de todos os cristãos é a santidade60. As vias são múltiplas e adaptadas à vocação de cada um.

O caminho para alcançar a santidade é diferente para cada pessoa. Para todos, a meta definitiva é o imperativo: “Sede santos” (Lv 19,1), “deveis ser perfeitos” (Mt 5,48), porque “esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1Ts 4,3).

Os leigos são chamados à santidade para santificar o mundo61.

A santidade é também o horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral62.

5.3 Elementos específicos da espiritualidade scalabriniana

O ser humano foi criado por Deus para a relação com Ele e somente nesta relação encontra a sua harmonia interior. Falar de espiritualidade significa falar da vida cristã, da vivência da fé, de uma relação que conduz à plenitude da comunhão com Deus.

A novidade essencial da espiritualidade cristã, como projeto de vida, está num Deus que é comunhão em si mesmo e que deseja viver em comunhão com todas as pessoas. As modalidades e enfoques da mesma são diversos, variam conforme o contexto histórico, social, cultural, bem como as características do grupo que a vive.

A espiritualidade inspira um estilo de vida, provoca um relacionamento novo com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Torna-se uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstâncias. Se uma espiritualidade não consegue encarnar-se em critério existencial, em gestos e escolhas de vida, em testemunho visível, não é uma autêntica espiritualidade cristã, por mais devota que pareça ser63. A pessoa que criou espaço para a vida espiritual está centrada, serena, irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si.

55 Cf. Virtudes da Serva de Deus, Madre Assunta Marchetti, p.16.225. 56 Cf. Z. ORNAGHI, Pe. José Marchetti - O mártir da caridade, EDUCS, Caxias do Sul 1997, p. 15. 57 L. Bondi, Pe. José Marchetti – Alcuni scritti inediti, Roma 1995, p. 17. 58 Traditio Scalabriniana, Junho de 2005, n. 5. 59 Lumen Gentium (LG), n. 40. 60 Cf. LG, cap. V. 61 Cf. CfL, n. 16.17. 62 Cf. Papa JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Nuovo Millennio Ineunte (NMI), n. 30. 63 Cf. A. CENCINI, “Provocazioni per la Vita Consacrata”, in Consacrazione e Servizio, n. 1 (2010), p. 62.66.

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O núcleo central da espiritualidade cristã é sempre Jesus Cristo e tem como protagonista o Espírito. Todas as espiritualidades são um aspecto da espiritualidade evangélica, a partir do qual se vive a totalidade do Evangelho.

Para nós, o aspecto peculiar do Evangelho é encarnar, viver, testemunhar Cristo que viveu errante e forasteiro na sua terra e não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8,20). Ele mesmo se identifica com o estrangeiro que necessita de acolhida e reconhecê-lo nesta veste é decisivo para a própria salvação: “era forasteiro e me acolhestes” (Mt 25,35).

Embora a experiência migratória não faça parte da vida de todas as pessoas, no sentido espiritual, todos “somos estrangeiros e peregrinos nesta terra” (Hb 11,13), rumo à verdadeira pátria, na plenitude da comunhão trinitária, quando tudo será submetido ao Filho e esse entregar tudo ao Pai, para que Deus seja tudo em todas as coisas.

A nossa existência é uma peregrinação para Deus, “luz de toda luz” (Tg 1,17), um caminho rumo à santidade, que ao mesmo tempo é dom de Deus e escolha humana, graça e liberdade.

S. Agostinho afirma que na terra tudo é transitório: “aqui és hóspede, estás de passagem. Usa deste mundo sem muitos apegos. Estás de viagem! Vieste para andar mais adiante, não para ficar...”

Diz-nos o poeta M. Quintana: “Esta vida é uma estranha hospedaria, De onde se parte quase sempre às tontas, Pois nunca as nossas malas estão prontas, E a nossa conta nunca está em dia”.

As grandes espiritualidades na vida da Igreja se mantêm voltando constantemente às suas fontes. É o “beber em seu próprio poço”. E, “somente uma espiritualidade específica, concebida como vida que deixa espaço à ação do Espírito Santo na realidade dos contextos cotidianos, pode revestir de profecia a nossa presença na Igreja e no mundo e, assim, revitalizar a nossa missão com e para os migrantes nas igrejas locais”64.

Como Igreja peregrina, somos enviados entre os homens e as mulheres das sociedades multiculturais e a anunciar-lhes o mistério da comunhão trinitária, pelo qual o diálogo entre o Pai, Filho e Espírito Santo se apresenta a nós como possibilidade e modelo de toda relação65.

Aprofundar hoje a espiritualidade, que é vida no Espírito, como modalidade específica de viver a fé e a missão no mundo da mobilidade humana, não é refugiar-se longe da inquietação da história, mas buscar luz e força para responder aos desafios atuais com escolhas proféticas66.

Como aspectos específicos, colunas básicas de nossa espiritualidade e missão, a Igreja nos interpela a testemunhar a acolhida, a itinerância e a comunhão na diversidade.

a) A acolhida – para participar do projeto de amor do Pai

A acolhida é considerada um valor sagrado desde a formação do povo de Deus. É inerente à própria natureza da Igreja, permanece a sua marca perene ao longo dos séculos e testemunha a fidelidade ao Evangelho.

No AT a acolhida tinha um valor sagrado. O modelo exemplar, representação completa do rito da hospitalidade é Abraão, quando acolhe os três misteriosos personagens que lhe apareceram junto ao carvalho de Mambré (Gn 18,1-16), nos quais Deus se revela como hóspede e forasteiro. Como dom recebeu o anúncio do Filho, ou seja, a realização da promessa de Deus, a esperança de um futuro.

64 Traditio Scalabriniana, junho de 2005, n. 1. 65 Ibidem, n. 4. 66 Ibidem, p. 1.

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Nos Evangelhos, a acolhida é a virtude evangélica que colocou em contato muita gente com Jesus. Ele foi ao encontro das pessoas, itinerante, percorrendo cidades e povoados (Lc 13,22; Mt 9,35; Mt, 10,10), na casa de amigos e adversários, de justos e pecadores. Em Cafarnaum, se estabeleceu na casa de Pedro (Mc 1,29-31), em Jericó aceita a hospitalidade de Zaqueu (Lc 19,5-6), a caminho de Jerusalém se hospeda na casa de Marta e Maria (Lc 10,38; Jo 12,1). Na casa de Simão (Lc 7,36-48) partilha de sua mesa, mas elogia muito mais os gestos de acolhida de uma mulher, a pecadora. O comportamento acolhedor de Jesus provocou escândalo entre os homens da lei (Lc 15,1-2) e Jesus se defende com as parábolas da misericórdia (Lc 15). Sua atitude acolhedora foi constante até o último suspiro (Lc 23,43).

Paulo exalta as atitudes de hospitalidade como prova do amor cristão (Rm 12,9-10; 1Ts 4,9). E exorta: “acolhei-vos” (Rm 15,7), “sejam atentos à hospitalidade” (Rm 12,13). O exercício de acolhida é uma expressão do ágape evangélico: “não vos esqueçais da hospitalidade, porque graças a ela alguns, sem saber, acolheram anjos...” (Hb 13,1-2).

Nos primeiros séculos da Igreja, os cristãos se distinguiam dos demais pelos gestos cotidianos e um deles era a acolhida entre eles e com os peregrinos de passagem. Por essa sua práxis, a Igreja primitiva se impôs diante de seus contemporâneos e a hospitalidade tornou-se o principal suporte para a dinâmica de universalismo na atividade missionária.

Na acolhida dá-se o entrelaçamento entre as relações horizontal e vertical. Sentir-se acolhidos por Deus amplia a disposição para acolher o diferente na sua alteridade, independentemente de sua origem, raça, língua ou nação. Um coração humilde no acolher tende a tornar-se sempre mais à imagem e semelhança do coração de Cristo: acolhendo, doa a vida e experimenta a alegria do ‘mistério do acolher’67. Esta relação nos faz “participar do projeto divino de tal modo que a terra se torna lugar de fraternidade, de partilha e de gratuidade”68.

Acolher a diversidade pressupõe um desejo e uma atitude mental e espiritual em direção ao outro, que supera preconceitos, distâncias e indiferenças. O reconhecimento da diversidade é um recíproco enriquecimento, um intercâmbio dos bens morais, étnicos, culturais, religiosos, que levam a uma complementação e aperfeiçoamento mútuos. Para tanto, é necessário passar da lógica da sociedade multicultural, àquela da sociedade intercultural, que exige a passagem do medo e da indiferença, ao paradigma da diversidade, da tolerância ao respeito, que leva à perspectiva mais ampla e articulada da solidariedade e da partilha.

Este processo de acolhida da diversidade exige esvaziamento de si, da própria cultura. Cristo, com a sua êxtase divina em direção às pessoas, é o fundamento de toda êxtase humana em direção ao outro, o espaço no qual as distâncias culturais se encurtam. Portanto, uma espiritualidade que acolhe as diferenças, leva a pessoa, a comunidade e toda a Igreja a uma antecipação da fraternidade pentecostal, onde as diferenças são harmonizadas pelo Espírito e a caridade se faz autêntica na aceitação do outro.

b) A itinerância – para traduzir na vida o mistério pascal do Filho

O Senhor disse a Abraão: “Sai de tua terra, farei de ti uma grande nação, te abençoarei, e possa tu ser uma bênção. Então Abraão partiu...” (Gn 12, 1-4). O mesmo apelo o Senhor o faz a cada um de nós: sai de tua terra, de teu ambiente, de tudo aquilo que te deixa seguro; sai de ti mesmo, das tuas idéias, dos teus preconceitos; sai de tua cultura, relativize-a, olha ao redor e descubra outras culturas, também importantes; sai e vai em direção aos outros, a Deus. A tua presença deve tornar-se uma benção para ti, para a Congregação, para a Igreja, para a sociedade.

A itinerância não é apenas geográfica, mas é também saber fazer-se nômades e itinerantes na inteligência, no coração, no espírito. A consciência do estar aqui de passagem é um viver

67 Cf. S. WEIL, L’ombra e la grazia, Rusconi, Milano 1985, p. 76. 68 Ibidem, n. 4.

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ancorado, não nos fundamentos de sua própria casa, no solo de sua pátria, mas ancorados e configurados em Jesus Cristo, como viviam os primeiros cristãos.

Testemunho eloqüente vem do anônimo autor da carta “A Diogneto”:

Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos costumes. Não habitam cidades à parte, não empregam idiomas diversos dos outros, não levam gênero de vida extraordinário [...]. Moram na própria pátria, mas como peregrinos. Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha. Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus69.

O cristão não se separa dos outros e sente-se peregrino e estrangeiro mesmo sem nunca ter-se afastado de sua terra, mas peregrino no seu coração e no seu ânimo. O cristão sabe que não tem garantia dos direitos terrenos. Eles são perseguidos, desprezados e até condenados à morte. A única força e certeza são aquelas que lhe vêm da fé em Deus e na pátria que Ele prometeu.

Ainda hoje, cada cristão deveria manter viva a consciência de que está apenas de passagem neste mundo, onde tudo deverá deixar. Sua fé o faz habitar no mundo sem ser do mundo. O cristão é diferente e, se não o fosse, não poderia ser sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14).

A verdadeira fé desenraiza do presente, das seguranças. A provisoriedade, como elemento fundamental na própria vida, para todos os cristãos deve tornar-se um estilo de vida. Só quem põe gestos-sinais de paz, de justiça, de fraternidade, quem emigra em outra cultura, só este consegue alimentar o sentido do além, da plenitude, da perfeição final.

Para o migrante, o sentido do provisório quebrará cada ilusão de definitivo ou de ideal realizados na terra onde vive, recordando que a única pertença é a Deus e que para Ele se caminha rumo à pertença definitiva. Todos temos a missão entre os migrantes, tentados pelo imediato e pelo materialismo, de recordar-lhes as palavras do Mestre: “Não só de pão vive o homem” (Mt 4, 4).

Para a irmã mscs, viver a itinerância é ser “migrante com os migrantes”, ajudando-os a sentirem-se pessoa com direitos e deveres, com uma cultura, portador de valores e de esperanças e não objeto de exploração. É missão também ajudar os migrantes a se integrarem, sensibilizar a Igreja local para a acolhida, bem como, ajudar a sociedade a dar respostas através de uma legislação adequada, uma educação multicultural, uma inserção ativa, no respeito pelos direitos específicos também no campo religioso.

“Maria, Mãe do caminho e da esperança, pede que empreendamos a cada dia, nova peregrinação em direção ao outro – para oferecer o Filho, migrante e missionário do Pai, morto e ressuscitado por todos. Esta atitude requer disponibilidade para o sacrifício de si mesmo, na experiência do êxodo pascal que se torna possível no dom do Espírito”70.

c) A comunhão na diversidade – para acolher a nova criação do Espírito

Ao iniciar este milênio, o papa João Paulo II lançou um apelo: fazer da Igreja “a casa e a escola de comunhão”. Este é o grande desafio, promover uma espiritualidade de comunhão, fazendo-a emergir como um princípio educativo em todos os lugares e ambientes71.

O modelo por excelência de comunhão na diversidade nos vem da Trindade. As relações entre as três pessoas da Trindade são o protótipo de comunhão para a Igreja, para as nossas comunidades e missão. Esta comunhão é convocação à solidariedade e à compaixão, que exige abertura à alteridade, ao diferente, a todas àquelas pessoas que Deus coloca em nosso caminho,

69 CARTA A DIOGNETO, Vozes, Petrópolis 1976, cap. V. 70 Traditio Scalabriniana, junho de 2005, n. 4. 71 Cf. NMI, n. 43.

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pois todos são portadores de parcelas do infinito, centelhas daquele Deus que ama a todos incondicionalmente, pois plasmou o ser humano à “sua imagem e semelhança” (Gn 1,26).

João Paulo II afirma que a espiritualidade de comunhão significa, primeiramente, o olhar do coração sobre o mistério da Trindade que mora em cada pessoa. A face do irmão é a via experimental através da qual passa o mistério de Deus, e na sua face leva a imagem de Deus Trino. Disso decorre a capacidade de sentir o irmão de fé, na unidade profunda do Corpo Místico, vendo-o como uma diversidade que enriquece e não como uma diferença que ameaça. Outrossim, é a capacidade de ver o positivo no outro, acolhê-lo, valorizá-lo, partilhar suas alegrias e seus sofrimentos, empenhar-se nas suas necessidades e, juntos, “carregar o peso uns dos outros” (Gl 6,2). A espiritualidade de comunhão é um retorno ao coração de Cristo, porque a contemplação de sua face gera comunhão72.

A espiritualidade de comunhão, em grande parte, é fruto da redescoberta da Trindade como horizonte da vida cristã. Uma espiritualidade que parte da plenitude da comunhão trinitária e se prolonga no mundo no mistério da encarnação, torna-se fonte e luz da história, fermento de transformação da humanidade. Esta experiência do Espírito é claramente a experiência do Pentecostes. A verdadeira experiência espiritual muda o coração e a mente do peregrino de Deus, também no plano das relações humanas, e o dispõe a acolher o outro na sua alteridade-diversidade.

O empenho por esta espiritualidade imprime um novo impulso também ao ecumenismo. E as estradas do mundo são o lugar teológico onde os migrantes e toda a Igreja são chamados a testemunhar o amor trinitário de Deus, alimentados da única comunhão, “a comunhão que cada dia se alimenta na mesa do pão eucarístico e da Palavra de Vida”73.

A comunhão na vida do Fundador e Cofundadores

Scalabrini tinha uma ânsia pela unidade enquanto condição e efeito da caridade e, por isso, comunhão com Deus e verdadeira comunhão com os irmãos. Dizia: se quereis viver do Espírito Santo, conservai a caridade, amai a verdade, desejai a unidade, para que possais alcançar o reino eterno. Admoesta-nos que é ilusório imaginar a unidade no Espírito, sem a unidade do corpo e insiste para permanecer unidos a Ele, para produzir frutos duradouros74.

Recomendava aos seus missionários: “nenhuma categoria de homens, porquanto rica de forças individuais, se não se sujeita à grande lei da unidade, jamais fará coisas grandes e muito menos o farão os missionários. Por isso, vos conjuro, suplico-vos por amor a Jesus Cristo e pelo bem de nossos irmãos, de não desagregardes vossas forças, empregando-as cada um por própria conta. Sede vós unidos como uma única coisa. Unidos em pensamentos, afetos e aspirações, como sois unidos a um único fim”75.

Madre Assunta, sua vida honesta, simples, humilde e autêntica com as irmãs eram demonstração de profunda comunhão. Amou intensamente os irmãos com um amor oblativo e universal, mas permanecendo sempre ‘senhora de si’76. Afirmava que sem a união e a caridade não era possível o bem dos outros. Desejava que as irmãs da Congregação estivessem unidas como os elos de uma corrente. Exortava-as para trabalharem pela unidade e para formarem um único corpo.

Padre José Marchetti demonstrava sua comunhão para com todos através de uma profunda caridade. Esta foi a chama que iluminou e impregnou todo o seu apostolado. Onde quer que estivessem os emigrantes, os pobres, os enfermos, lá estava ele, para levar-lhes o conforto da fé, 72 Ibidem, n. 43-45. 73 Ibidem, n. 58. 74 Espiritualidade da Encarnação, p. 90. 75 Ibidem, p. 111. 76 Cf. Virtudes as Serva de Deus, Madre Assunta Marchetti, p. 197.

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o vigor da esperança, o entusiasmo para a vida. Era para eles o pai, o amigo, o conselheiro, o enfermeiro77. Desejava formar uma comunidade com seus co-irmãos, um corpo compacto e organizado, de grande força moral e física. Dizia: “o bem da Congregação exige que estejamos unidos e não dispersos”.

5.4 A valorização da espiritualidade nas obras

Sendo a maioria dos presentes pessoas leigas que trabalham em obras/empresas, gostaria de ressaltar alguns aspectos da espiritualidade que se referem diretamente a estes ambientes.

Existe em nossa sociedade uma sede de espiritualidade, uma procura de experiências espirituais e místicas e há também um supermercado de ofertas espirituais, de caráter individualista, imediatista. Há um desejo de reunir elementos da espiritualidade de diferentes religiões e criar uma espiritualidade eclética, desvinculada de suas origens.

Um contingente considerável de pessoas busca uma espiritualidade num sentido não-religioso, não-institucional, não-teológico, não baseado nas Escrituras (...). Uma espiritualidade não-religiosa, que caracteriza a pós-modernidade, pode ser encontrada nas relações com a arte, com a ciência, na filosofia e outros. Esta concepção de espiritualidade aponta para uma autonomia em relação à religião e ao próprio conceito de Deus.

A experiência da espiritualidade na sociedade passa para a esfera privada. Esta espiritualidade, livre do domínio das instituições religiosas, permitiu que a relação com o sagrado invadisse o ambiente secular, por exemplo, o mundo corporativo. O interesse pelo tema vem crescendo de forma intensa nos últimos anos.

Há fatores que influenciaram a valorização da espiritualidade no mundo empresarial: busca pelo sentido – não basta ter sucesso, é preciso ter significado; a economia global, que exige a integração entre múltiplas formas de culturas e tradições religiosas; paradigmas pós-modernos que promovem a integração entre ciência e religião como fonte de verdade e salienta que inteligências múltiplas são essenciais para a convivência com a incerteza e a necessidade de adaptação; crescente stress - pressão competitiva; abandono da ética e das virtudes; surgimento de gurus de negócios, que propõem uma nova mentalidade corporativa.

As empresas modernas, especialmente as de serviços (escolas, hospitais...), descobriram que os talentos humanos são sua principal riqueza, depois da marca e da imagem. Algo que antigamente era visto como assunto desligado do universo organizacional, como religioso ou até místico, hoje se insere como uma dimensão estratégica, na medida em que dá significado à missão da empresa e ao trabalho das pessoas.

Nas empresas, a espiritualidade refere-se em primeiro lugar ao respeito à vida. Isto significa considerar o ser humano na sua totalidade, respeitando e investindo em todas as suas dimensões: física, intelectual, emocional e espiritual, fazendo com que a ética e os valores humanos universais e espirituais iluminem as decisões, as estratégias, as políticas e todos os relacionamentos da organização.

A visão mecanicista tradicional fragmenta a nossa vida em segmentos separados: é como se o mundo do trabalho/negócios, se separasse do mundo religioso. A visão de espiritualidade mescla e integra estes mundos, fazendo do ambiente empresarial um lugar privilegiado, onde podemos/devemos viver a espiritualidade e cada pessoa encontra um conjunto de significados para a sua vida e suas ações.

Cultivar a espiritualidade na empresa, no local de trabalho, traz melhoria da qualidade de vida individual e coletiva, estímulo a situações de crescimento e desenvolvimento, incentivo de

77 Cf. O mártir da caridade, p. 64.

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parceria, criatividade, cooperação e trabalho em equipe. Quando as pessoas se conectam à dimensão espiritual de suas tarefas cotidianas, novos significados surgem.

Em nível institucional, como cultivar a espiritualidade?

No âmbito da obra/empresa, existem aquelas que abrem espaço para a meditação, reflexões e orações e ainda as que inserem o assunto nos programas de treinamento e desenvolvimento. Cada organização sabe encontrar o melhor caminho para desenvolver com maturidade e equilíbrio esta tarefa, proporcionando resultados favoráveis para todos.

A experiência da fé, vivida e tematizada em perspectiva unificadora, leva a organização a valorizar seus colaboradores, a criar espaços de reflexão sobre o sentido da vida pessoal na relação com o seu trabalho, assegurando um ritmo exigente, mas também humanizador. Certas posturas de vida são fundamentais para a pessoa crescer no grau de felicidade pessoal, no desempenho profissional e no caminho espiritual.

A organização que incorpora a espiritualidade no seu dia-a-dia caracteriza-se, fundamentalmente, por uma série de posturas éticas, em ações que tem impacto nos clientes e fornecedores, nos colaboradores, na comunidade local, além de colaborar para uma sociedade justa e sustentável. Ela vai desenvolvendo relações diferenciadas com essas pessoas, construindo, dessa forma, relações mais proveitosas, transparentes e lucrativas.

Por mais que o interesse financeiro esteja em primeiro plano, quando a empresa se propõe a ter uma postura que dê importância a valores holísticos, éticos e espirituais, vai atrair parceiros, clientes, fornecedores e colaboradores com o mesmo propósito.

Quando as organizações criam espaços espiritualmente ricos, os seus membros sentem-se valorizados, satisfazem as necessidades espirituais, experimentam um sentido de segurança psicológica e emocional, de autodeterminação, de alegria e de pertença.

A espiritualidade corporativa é um diferencial que caracteriza as organizações que transcendem no tempo e que são reconhecidas por performances financeiras equilibradas, com resultados qualitativos e com respeito ao meio ambiente.

A articulação da gestão com a espiritualidade permite uma nova síntese entre interioridade e eficácia, valores e resultados. É uma das chaves para a humanidade superar o caos da falta de sentido e dar um salto de qualidade em sua consciência.

Uma organização que queira ser espiritual precisa de uma boa liderança, baseada em preceitos éticos e morais elevados. A espiritualidade confere sabor e qualidade à gestão. E ajuda a responder: para onde vamos, em que valores nos apoiamos, que legado deixamos para as futuras gerações?

Como cultivar a espiritualidade em nível pessoal?

Pessoas espiritualizadas vivem de maneira mais harmônica consigo mesmas e em suas múltiplas relações com o próximo, com o trabalho. Isso afeta os resultados não apenas na atividade profissional, mas na vida como um todo. Tornam-se pessoas mais maduras emocionalmente, habilidosas nos relacionamentos, conscientes de seus papéis e comprometidas com o bem comum.

O crescimento humano e espiritual são convergentes e interdependentes. Quanto mais a pessoa desenvolve os seus talentos humanos com humildade, maior a possibilidade de encontro com Deus.

Temos necessidade de pessoas motivadas ao desafio da excelência profissional. Pessoas exigentes consigo mesmas e com a qualidade do próprio fazer, sobretudo, dispostas a confrontar-se, a aprender, a melhorar. Esta é uma tarefa cotidiana, onde a pessoa coloca em ação aquilo que aprendeu, com paixão, com vontade.

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O produto do trabalho deve ter um sentido que gere orgulho. Quando o trabalho não tem um significado para a vida, a criatividade não flui. A pessoa motivada se compromete com a instituição, tem comportamento inovador, coopera, tem espírito de equipe, experimenta alegria no trabalho e sente satisfação e bem-estar psicológico. Hoje, grande parte do bem-estar do trabalho depende da sua razão de ser, da ajuda que ele dá à sociedade.

Quando não encontramos o significado simbólico do que estamos fazendo, os sinais de que algo não vai bem aparecem no corpo físico, social ou ambiental. Somos os construtores de nossas bênçãos e de nossos males.

A espiritualidade como busca de transcendência, vitória sobre a finitude e encontro com o sentido da existência, encontra no trabalho um grande aliado. É no trabalho que o ser humano expressa sua criatividade e participa do trabalho criativo do divino.

Ser espiritual no trabalho é ser ético, é ter valores mais nobres de conduta que suavizem as relações e não as tornem hostis. É a busca de um sentido mais elevado ao que acontece ao seu redor, não se satisfazendo com respostas banalizadas. Ser espiritual é também compreender a missão da organização.

Os valores devem ser traduzidos em atitudes: o respeito pelo outro, a escuta, o perdão, a humildade, a honestidade, a solidariedade, a fraternidade, a maneira de atender ao cliente, o estilo de liderança, o trabalho em equipe. Atitudes cordiais, respeitosas e honestas independem do grau de materialismo das empresas.

A falência espiritual e dos valores de uma pessoa, de uma família, empresa ou nação, pode ser bem pior do que a falta de dinheiro ou a falência do patrimônio, pois sem nossos valores, os pilares de sustentação ficam frágeis.

O grande critério para a espiritualidade reside na ética, pois os valores aparecem na prática. Quando se cultiva um olhar de encantamento sobre a vida, as pessoas trabalham com mais leveza. No entanto, a finalidade última de tal postura não reside na produção em si mesma, e sim no testemunho de que é possível alcançar resultados coerentes com o Evangelho.

Em âmbito pessoal, alguns meios que ajudam no cultivo da vida espiritual:

A prática de momentos de oração.

Necessidade de momentos de silêncio na vida diária.

A oração através da Palavra de Deus.

A Eucaristia, viático de nosso peregrinar.

Integração entre Oração e Ação.

“A pior das deficiências é ser miserável, pois miseráveis são todos os que não conseguem falar com Deus” (Mario Quintana).

6. As possíveis respostas scalabrinianas aos desafios das migrações

A Igreja afirma que “as migrações contemporâneas nos colocam diante de um desafio certamente não fácil pelo seu vínculo com a esfera econômica, social, política, sanitária, cultural e de segurança. Trata-se de um desafio que todos os cristãos devem se comprometer, muito além da boa vontade ou do carisma pessoal de alguns”78.

No documento de Aparecida os bispos falam dos “rostos sofredores que doem em nós”, entre os quais está o rosto dos migrantes. Afirmam: “É expressão de caridade, também eclesial, o acompanhamento pastoral dos migrantes. Há milhões de pessoas que por diferentes motivos

78 EMCC, n. 3.

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estão em constante mobilidade. Na América Latina e Caribe os emigrantes, deslocados e refugiados, sobretudo por causas econômicas, políticas e de violência, constituem fato novo e dramático”79.

O apelo dos bispos da América Latina e do Caribe, que também é expressão do apelo da Igreja universal, interpela-nos a um compromisso, a fim de que: “A Igreja, como Mãe, deve sentir-se como Igreja sem fronteiras, Igreja familiar, atenta ao fenômeno crescente da mobilidade humana em seus diversos setores. Considera indispensável o desenvolvimento de uma mentalidade e espiritualidade a serviço dos irmãos em mobilidade, estabelecendo estruturas nacionais e diocesanas apropriadas, que facilitem o encontro do estrangeiro com a Igreja particular de acolhida”80.

Afirma o papa: “Cremos que a realidade das migrações não deve nunca ser vista só como problema, mas também e, sobretudo, como grande recurso para o caminho da humanidade”81. Portanto, a missão com os migrantes chama as scalabrinianas/os, religiosos e leigos a empenhar-se em respostas específicas diante de situações migratórias que mudam. Tais respostas aos novos desafios não podem prescindir de alguns aspectos essenciais da missão scalabriniana que aqui recordamos:

• Fundamenta-se sobre uma leitura providencial das migrações, consideradas como uma dimensão da condição humana e lugar teológico no qual se revive o mistério pascal e manifesta o plano de salvação.

• Exige uma leitura interdisciplinar atualizada sobre a emigração, nas suas várias dimensões e componentes, nas suas problemáticas e potencialidades, onde os migrantes seguidamente são vítimas, mas também atores positivos, onde as migrações são resultado de assimetrias sociais e econômicas de uma ordem mundial injusta e que precisa mudar.

• Move-se entre memória e profecia, porque permanece fiel ao carisma, atualizado com criatividade em escolhas que expressam hoje a presença de Deus entre os migrantes.

• Implica uma ação em comunhão e a serviço da Igreja local, porque no ser Igreja com os migrantes sejam vividas em plenitude as características da Igreja, sacramento do Reino.

• Consiste no anúncio que o Reino está no meio de nós, anúncio que exige o diálogo ecumênico e interreligioso. Este diálogo é um aspecto missionário fundamental e encontra na mobilidade humana um de seus campos principais de atuação82. Diante de tradições e culturas religiosas diferentes, os cristãos são chamados a testemunhar o Evangelho da caridade e da paz e a anunciar-lhes a Palavra de Deus, de modo que também a eles chegue a bênção do Senhor, prometida a Abraão e à sua descendência para sempre83. A missão scalabriniana nos interpela a promover e participar de iniciativas ecumênicas, de projetos, de grupos de solidariedade com o ser humano, de qualquer nacionalidade ou religião, considerando o inalienável direito à vida84.

• É urgente propor vias de comunhão em contextos onde cresce a conflitualidade por causa da diversidade. A sociedade multicultural, multiétnica e multireligiosa, desafia a formar uma cultura do diálogo, do respeito recíproco, da valorização das diversidades, onde haja

79 DA, n. 411. 80 DA, n. 412. 81 Papa BENTO XVI, Alocução, Ângelus, 14 de janeiro de 2007. 82 Cf. EMCC, n. 56-69. Um grande número de pessoas, que não conhece Cristo estabelece-se em países de tradição cristã. Ao mesmo tempo pessoas que pertencem a povos marcados profundamente pela fé cristã emigram para países onde há necessidade de levar o anúncio de Cristo e de uma nova evangelização, as quais devem ser estimuladas a partilhar as riquezas de sua fé e de suas tradições religiosas: cf. VD, n. 105; DA, n. 415. 83 Cf. EMCC, n. 100; RMi, 37. 84 Cf. R. MILESI, “Proteção dos direitos e resgate da dignidade humana dos migrantes e refugiados”, in Profetismo e identidade apostólico-missionária da Irmã Scalabriniana”, CSEM, Brasília 2001, p. 128.

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educação à acolhida, à solidariedade e à abertura ao migrante, sem discriminações, preconceitos e divisões. Essa tarefa exige compromisso de todas as pessoas, grupos, igrejas e sociedade85.

• Atuar em parceria e em rede com organizações governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais, que atuam na causa da mobilidade humana e com os próprios migrantes. Esta atuação tem por finalidade participar de instâncias de decisão e incidir em políticas migratórias que visam o resgate da dignidade inalienável dos migrantes e refugiados86.

• Aproximar-se dos migrantes que estão à margem do caminho, com o amor compassivo do samaritano (cf. Lc 10,33). Isso exige o compromisso com a justiça, o reconhecimento e a defesa da dignidade e dos direitos dos migrantes, a sensibilização da sociedade. Reconhece nos migrantes os sujeitos de evangelização e valoriza as iniciativas que os tornam capazes de dar razões da esperança da qual o migrante é expressão.

• A crescente relevância da presença de mulheres entre os trabalhadores migrantes requer iniciativas específicas, sobretudo no acompanhamento das vítimas do tráfico.

• São necessárias presenças propositivas e de estar a serviço da formação específica dos agentes pastorais, leigos colaboradores. Os leigos na Igreja, em várias situações de desafios para a missão cristã, conseguem ser protagonistas de iniciativas de evangelização de grande significado e evidente fecundidade apostólica. As suas ágeis estruturas, e em grande parte locais, permitem a eles uma variedade de presença e de ação missionária, não possível a membros de institutos missionários87.

Conclusão

Recordemos a virtude da esperança, tão necessária para nossa vida e missão. Ela suscita unidade no coração, dá sentido e motiva nossos sentimentos, aspirações e projetos. Se há esperança, há paciência e vigilância. A esperança tem a ver com a alegria de viver. Supõe um futuro que se espera, que se deseja.

Não se pode viver sem esperança. Todos temos necessidade de um horizonte de sentido. Nos momentos mais felizes, como aqueles mais profundos, também quando há sofrimento, sonhamos uma esperança que crê e que ama. Existe uma esperança que nasce e cresce graças às relações com as pessoas, relações abertas ao diálogo e à colaboração e que nos estimulam à ação88.

Que esta esperança esteja enraizada no coração de cada um de nós e nos motive a caminhar confiantes, como se estivéssemos vendo o invisível (cf. Hb 11,27). Diz S. Paulo, “a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Com esperança, continuemos a colaborar na obra de Deus. Ele é o protagonista. Dizia Scalabrini: “O homem propõe, mas Deus dispõe; o homem se agita, mas Deus o conduz; o homem trabalha e semeia o seu campo, mas o fruto do seu trabalho, quem o dá é Deus”89.

Durante a nossa peregrinação terrena, não esqueçamos de caminhar com o nosso Deus:

“Caminha humildemente com o teu Deus” (Mq 6,8), em uma vida nova (Rm 6,4), segundo a caridade (Rm 14,15), na fé (2Cor 5,7), no Espírito (Gl 6,16) e na verdade (2Jo 1,4).

85 Cf. EMCC, n. 96.99-100.103. 86 Cf. R. MILESI, “Proteção dos direitos e resgate da dignidade humana dos migrantes e refugiados”, p. 128-130. 87 Cf. M. A. L. FERREIRA, “Un tempo di transizione”, p. 25; EMCC, n. 86-87. 88 Cf. CONFERENZA EPISCOPALE ITALIANA , Lettera ai cercatori di Dio,2009, n. 1. 89 Carta Pastoral, 1905.

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Vida e missão da Congregação das irmãs

Missionárias de São Carlos Borromeo, Scalabrinianas

1. Síntese histórica da Congregação das irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeo, Scalabrinianas (mscs)

1.1 A ação pastoral de João Batista Scalabrini

1.2 A fundação da Congregação das irmãs mscs

1.3 Por que o nome de Irmãs Missionárias de S. Carlos Borromeo?

2. Irmãs mscs – herdeiras do carisma scalabriniano

2.1 Carisma, o que significa?

2.2 Os carismas na história

2.3 Características da realidade que nascem de um carisma

3. A dimensão missionária do carisma scalabriniano

4. A participação dos leigos no carisma scalabriniano

4.1 A eclesiologia do Concílio Vaticano II a respeito dos leigos

4.2 Scalabrini e os leigos

4.3 Comprometimento dos leigos com a vida e a missão da Congregação

4.4 O exemplo missionário de S. Carlos Borromeo, Scalabrini, Pe. Giuseppe Marchetti e Madre Assunta Marchetti

5. A dimensão espiritual do carisma scalabriniano

5.1 A vivência espiritual do Fundador e Cofundadores

5.2 Todos chamados à santidade

5.3 Elementos específicos da espiritualidade scalabriniana: acolhida, itinerância, comunhão na diversidade

5.4 A valorização da espiritualidade nas obras

6. As possíveis respostas scalabrinianas aos desafios das migrações