Vidas Raras

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Do you know how to live with a rare disease? How long does it get to diagnose it? Twenty families tell us their story in an incisive portrait of their lives.

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Uma edição

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Prólogo página 6Capítulos I Triplo X

Os olhos de Matilde 11

II Síndrome de WAGR Gosto de ti, desde aqui até à lua 19

III Síndrome de Apert Vaidade Rara 27

IV Sem diagnóstico Agir é acreditar 37

V Síndrome de Prader Willi A Sagrada Família 45

VI Esclerose Lateral Amiotrófica Amor Eterno 53

VII Síndrome Miasténico de Lambert-Eaton Reaprender a viver 61

VIII Atrofia Dentato-rubro-palido-luisiana Sininho e Peter Pan 69

IX Síndrome DiGeorge A bela adormecida 77

X Síndrome de Rett O triunfo do amor 85

Indíce

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XI Acondroplasia A genialidade dos genes 93

XII Síndrome de Cornélia de Lange O mel de Martim 101

XIII Imunodeficiência Primária O brilho de Estrelinha 111

XIV Síndrome de Criggler-Najjar O olhar da diferença 119

XV Osteogénese Imperfeita Brava fragilidade 127

XVI Síndrome Parry-Romberg O caminho da vitória 135

XVII Síndrome de West Secundário A imperatriz dos afectos 143

XVIII Cromossomopatia complexa Pequenas singularidades 151

XIX Síndrome Phelan-McDermid O pequeno grande herói 159

XX Síndrome Zellweger No céu nasce uma estrela 167

Epílogo 174

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PrólogoNão sei como começar um prefácio com esta profundidade.

Decido então abrir meramente o meu coração.Dor, revolta, saudade! Daria a minha vida para partilhar

com esta fantástica jornalista as tropelias do meu filho Marco, de quem me separei fisicamente há quase seis anos, mas já é tarde!

Com ela partilho ainda hoje, diariamente, memórias, sempre sob o olhar atento de uma foto de um metro de comprimento, pendurada bem à frente da minha secretária e que testemunha a veracidade das minhas palavras e a saudade no meu peito

Seis anos!… parece que foi ontem. Ainda relembro, como a Alexandra, o seu modo maroto, a sua vaidade, a sua voz rouca, os seus maneirismos e o seu cheiro…

Não sabem como dói recordar o seu cheiro! E o toque!Deixamos de ter em quem tocar com a mesma intensidade,

com o mesmo sentido de protecção, com aquele amor único que tomou conta das nossas vidas.

Que vidas?Deixamos apenas de viver quando nascem, aprendemos

apenas a viver quando partem! E como custa aprender a viver!Quem me dera não viver, quem me dera não ser quem sou hoje,

quem me dera ser apenas a mãe do Marco, como fui chamada

por Paula Brito e Costa

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durante 17 anos. Mas esta foi a missão que tu me deixaste – representar todos os MARCOS raros do meu país.

Foi esta a lição que aprendi, naquele dia frio de 16 de Janeiro de 2006.“Eu aprendi filho e vou cumprir”! Foi esta a promessa que te fiz

enquanto sentia a tua pele esfriar… lentamente… No momento em que me senti a pessoa mais impotente deste mundo!

Senti que quem aguenta a dor de perder um filho, aguenta tudo! E não tem medo de nada… nada!

A vida passou por nós tão depressa! Ainda bem que abdiquei do cabeleireiro por ti! Ainda bem que decidi comprar-te aqueles ténis que tanto gostavas, anulando a minha vaidade! Ainda bem que te beijei milhões de vezes, ainda bem que… fomos tão felizes e, com tão pouco!

Mas esta não é a minha estória. Esta é a estória de mães como eu, que deram a sua vida por um grande amor!

Por tudo isto, era natural nascer uma obra como esta. Nascer, simplesmente, aliás como tudo na RarÍSSIMAS. Nascer porque sim, enquanto houver quem de nós precise.

Hoje já poucos são os que recordam a mãe do Marco. Insisto sempre para que se refiram a mim como a mãe de todos os Marcos. Afinal, quem passa pelo que passei com o Marco e ainda detém

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um sorriso nos lábios, só pode ter sido escolhido por algo superior para defender estes filhos que amamos incondicionalmente – os nossos filhos raros.

Sempre soubeste que a mesma mãe que te amou 17 anos teria a capacidade de amar milhares de meninos como tu. Só eu não sabia!

O que me ensinaste! O que nos ensinam estes filhos!

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A vós, mães como eu, que participaram nesta obra, e a todas as outras que a irão ler, o meu mais sincero obrigadÍSSIMA por mostrarem ao nosso povo o que é, afinal, amar acima de tudo!

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Triplo X

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Triplo XCapítulo I

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No ATL da Escola Básica nº 1 do Linhó, a estrela do dia cha-ma-se Matilde. À volta da mesa discute-se o Facebook e o livro pro-tagonizado pela adolescente.

As amigas de infância, o grande suporte da jovem, dão ideias sobre a estória a contar. Reservada, Matilde devolve-nos um sorriso sarcástico revelando, qual estrela de cinema, que ainda irá pensar sobre se fala, ou não, connosco. A fotografia parece ser agora uma área muito mais aliciante para a jovem que, ao ritmo da Shakira, lá vai ensaiando poses para a fotógrafa, sempre adjuvada pelas ami-guinhas. Distinguir a doente, da menina doce e alegre, torna-se, nesta fase, quase impossível. Tudo graças ao espírito invencível de uma mãe que não aceitou nãos como resposta e de uma menina, muito especial, que faz da perseverança o seu lema de vida!

Matilde significa guerreira, que comba-te com energia! Nenhum nome seria mais indicado do que este, dado a uma menina rara, nascida no mês das doenças raras – Fevereiro, de 2000, data em que começa a

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Matilde

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sua grande luta, lado a lado com Gabriela, a mãe, uma mulher que, curiosamente, também possui um nome à sua altura – a enviada de Deus. “Nada acontece por acaso” começa por desabafar Gabriela, ou Gaby como prefere ser chamada, ao lembrar a história da sua Matilde e da luta contra tudo e contra todos. “Ainda bem que eu tenho o feitio que tenho… pela Matilde. Eu não desisto! Posso já não ter forças para mim mas tenho para ela… Sempre!”. Foi esta perseverança que a levou a não aceitar as respostas, tanta vezes va-zias, dos diversos médicos por onde Matilde passou: “Fui acusada de muitas coisas… De ser uma mãe ansiosa… Eu queria respostas e, por isso, fui acusada de expor a Matilde a muitos médicos. Che-guei a ir a um médico afamado que me disse que a Matilde ia ser um vegetal… se não tivesse esta insatisfação natural, provavelmente ter-me-ia ficado por aquela resposta, mas não. Sempre exigi aquilo a que achei que a minha filha tinha direito!”, relata, com convic-ção. Efectivamente assim foi desde a primeira ecografia, às 12 se-manas, onde a translucência da nuca apontava para uma eventual Trissomia 21. “Soube o resultado da amniocentese de uma forma cruel. Entrei no consultório, a médica estava ao telefone e, em cima da mesa, sublinhado a fluorescente estava Trissomia X. Comecei a chorar convulsivamente e a médica, de forma arrogante, ainda per-guntou – está a chorar porquê?”. A falta de humanismo nos serviços médicos não se ficou por aqui… Apesar da Matilde ser um parto de risco, Gabriela deu à luz sem a presença de qualquer médico, com-pletamente sozinha, no hospital Amadora Sintra e, nem os pedidos desesperados feitos a um enfermeiro para lhe dar a mão na altura da expulsão lhe valeram “ele respondeu de forma insensível – Para quê? Foi tudo muito cruel. Senti-me completamente abandonada…” confessa, emocionada. Durante o parto, a pequenina Matilde teve um enfarte cerebral e uma anemia aguda que a colocaram entre a vida e a morte, com direito a várias transfusões de sangue. “Senti um vazio enorme… Vê-la numa caixinha e não a poder ter no meu colo… Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ela mamou. As lágrimas vieram-me aos olhos e pensei, ela conseguiu! Ainda

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hoje sinto que esse momento foi realmente o primeiro passo para a vitória dela!” recorda Gaby, comovida. Na realidade, esta foi apenas a primeira, de muitas vitórias da pequenina Matilde que, graças à sua doença raríssima, só conseguiu andar aos 25 meses e pronun-ciou as primeiras palavras já muito tarde. Parecia que não existia nada no mundo que não acontecesse a esta menina: “a cada consulta que ia descobriam um novo problema. Cheguei a um ponto que pensei, eu não aguento mais”… Porém, a ambição e força de vencer de ambas, acabaria por resultar, juntamente com o apoio da educa-ção especial e de muitas consultas de fisioterapia. “Sempre acreditei nela e continuo a acreditar! Tanto, que muitas vezes chego a julgar que ela é exactamente igual às outras crianças. Ela tem tantas re-acções próprias da idade. Só volto à realidade quando acontecem aquelas coisas menos boas”. É nestes momentos que Gaby se volta para aqueles médicos que, desde sempre, ou quase sempre, apoia-ram a Matilde na busca pela sua recuperação. “A grande médica e grande amiga é a pediatra dela, Ariane Brand, que a acompanha desde que nasceu. É uma pessoa que ouve os pais. Porque muitas vezes ouvi – a senhora é mãe, eu sou médica e eu é que sei! Foi ela que, no dia do resultado da amniocentese, teve a coragem de chamar as coi-sas pelos nomes. Foi ela que chorou comigo. Sei que posso contar sempre com ela!”. Também o Pediatra de Desenvolvimento, Miguel Palha, foi uma grande inspiração. “Ele costumava dizer que os olhos da Matilde não enganavam. Na realidade, ela era muito parada, mas os olhos eram muito expressivos, quase como se falassem. Foi ele que me fez acreditar que, apesar da doença, a minha filha era real-mente especial e me dizia, em tom brincalhão, que ela poderia não chegar a ser uma tenista famosa mas que certamente seria alguma coisa na vida!”. E foi justamente esta fé, esta esperança e desejo ar-dente de ver a filha feliz e com saúde que fez com que Gaby nunca se intimidasse perante os obstáculos da vida, tantos que “lhe sei dizer o porquê de cada cabelo branco que tenho”. São justamente esses cabelos brancos, essa sabedoria feita de experiência, que conferem a Gaby um estatuto muito acima de qualquer diploma médico, até

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porque, tal como ela própria afirma “eu levo o meu processo clínico para casa”! Um processo feito de alegrias e reveses, tantos quantos os avanços e retrocessos a que a própria doença está sujeita e que, segundo Gaby, se assemelham em tudo a uma sentença daquilo que um dia se recusou fazer: “aos 20 anos disse à minha professora da cadeira de Necessidades Educativas Especiais que nunca iria tra-balhar com crianças com deficiência”. A verdade é que o destino lhe pregou uma verdadeira partida de mau gosto e hoje, Gaby par-tilha com Matilde todo o know-how adquirido no curso e anos de diagnósticos e terapêuticas, afinal “pudemos não compreender ou questionar o porquê mas temos de aceitar aquilo que temos!” afirma Gaby, com convicção.

Por isso, Gaby percorre, lado a lado com Matilde, o caminho espinhoso da recuperação e da vitória. Da fisiatria, em Alcoitão, às operações ósseas em virtude da deformação que tem no pé, devido à hemiparésia que não deixa o músculo acompanhar o crescimento dos ossos, passando pelas visitas regulares ao dentista, por causa do aparelho nos dentes, tudo na vida destas duas mulheres é uma luta e, até umas simples férias, podem revelar-se um verdadeiro inferno de Dante: “uma vez, nas férias, ela começou a fazer convulsões. Liguei por diversas vezes à pediatra mas ela própria não conseguia perceber o que se passava. Um dia, ao observar a Matilde, percebi que as con-vulsões aconteciam imediatamente a seguir a ela estar na água. Tele-fonei à pediatra e perguntei se o reflexo do Sol na água não poderia ser o responsável por essa situação. Efectivamente, depois de lhe com-prar uns óculos escuros, nunca mais aconteceu” comenta triunfante Gaby. É graças a esta sagacidade e empreendedorismo, partilhada pela filha, que ambas olham o futuro com um brilhozinho nos olhos. “Eu quero é que ela seja feliz… não me interessa o resto!”, exclama Gaby lembrando a personalidade vincada de Matilde “que tem sido uma mais valia, uma vez que tenta fazer sempre tudo o que os outros meninos fazem”. É essa força que faz com que Matilde, apesar das suas limitações, tenha notas óptimas, sobretudo a inglês; sempre com o apoio das sua amigas de infância, completamente inseparáveis. “O

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ano passado ela começou a confrontar-se mais com as suas limita-ções e a aperceber-se da sua diferença”, recorda a mãe que refere que foi justamente o suporte emocional da amizade que fez com que os reveses se transformassem em vitórias. “Sempre fiz um esforço para levar as amigas lá a casa, porque é difícil para as outras pessoas terem a Matilde. Durante três anos seguidos fiz noites do pijama” diz Gaby que adianta desde logo o sonho profissional da filha – “A Matilde quer ser treinadora de cavalos”, uma paixão que poderá advir do facto de ser com eles que a Matilde resolve grande parte dos seus confli-tos. “A Matilde não gosta de sair. Gosta de estar em casa e fica horas a brincar com os cavalos dela. Ela resolve muitos dos seus medos através do jogo lúdico”, refere Gaby.

Sentiu-se sozinha durante muitos anos, mas hoje Gaby afiança “a Matilde é a pessoa que me faz rir! É a minha cúmplice!”. E juntas percorrem o sinuoso caminho da doença. Matilde, apesar de fazer praticamente tudo, tem algumas limitações, devido à hemiparesia e não tem a motricidade fina ainda desenvolvida. Nada que a dupla vencedora não pense em ultrapassar! Para Gaby “o que me preocu-pa em relação ao futuro da Matilde é apenas a epilepsia dela, por-que neste momento não está controlada, apesar de hiper-medicada”. Porém, a espontaneidade de Matilde, de olhos postos no mundo, e a garra com que Gaby fala do seu benjamim, levam-nos a acreditar nas palavras dirigidas pela pediatra a Gaby, há alguns anos: “já pen-sou que foi a Matilde que a escolheu, a si, para mãe…”.

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Síndrome de WAGR

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Capítulo II

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Detentora de uma memória absolutamente prodigiosa e um ta-lento muito especial para a música, Leonor é a prova viva de que a nos-sa existência é repleta de pequenas coincidências. “No Natal de 2005, a Raríssimas fez uma publicidade muito gira que me deixou comovida. Nunca imaginei que, passado um mês, a Leonor nascesse com uma do-ença muito rara” lembra, comovida, Ana. Apesar dos 33 anos de idade e de dois abortos espontâneos, nada fazia prever que a pequenina Leo-nor viesse a ter qualquer problema. “No parto, apenas detectaram que ela tinha um dedo a mais no pé esquerdo, mas disseram que não seria motivo de preocupação”. Porém, o caso mudou de figura quando, aos dois meses, os jovens papás se aperceberam, movidos por uma sagaci-dade quase intuitiva, que o olhar da sua bebé era diferente. Na realida-de, também a médica de família haveria de alertar para o mesmo facto. “Tivemos então uma consulta em Santa Maria e foi quando detectaram o problema. Fez uma ressonância magnética para despistagem de problemas a nível das órbitas e aí verificaram uma defici-ência a nível do corpo caloso. Fomos então

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Leonor

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referenciados para a consulta de genética e, após o estudo do cariótipo, foi detectado uma delecção no cromossoma 11, ao qual estava asso-ciada a anirídia, o dedo a mais, a hipoplasia do corpo caloso, chamada síndrome de WAGR”. Um diagnóstico complicado, para um problema raríssimo, que afectaria de sobremaneira estes pais que, há muito, dese-javam um filho. Porém, talvez pelo facto de Leonor ser uma bebé muito desejada, depois do choque inicial, surgiu a fé, a esperança e, sobretu-do, a energia com que estes pais enfrentaram, de cabeça erguida, aquilo que para muitos seria o fim. “Desde muito cedo que percebi que este era um problema para toda a vida. Em família, decidimos que nos res-tava dar-lhe o melhor e fazer tudo para que ela tivesse uma vida, o mais normal possível”. E assim foi, enquanto Ana procurava os melhores es-pecialistas, as melhores opiniões e, até, as melhores brincadeiras, Ricar-do, movido por uma fé inabalável, procurava na internet respostas que pudessem mudar o destino da pequerrucha. Apesar de ser o grande su-porte de Ana, Ricardo contínua a não entender porque é que isto acon-teceu. “Nunca hei-de entender, sou super-revoltado. Ninguém ajuda a minha filha que é doente e depois dão tudo às minorias étnicas e a toxicodependentes. Eu, que desconto todos os meses, não tenho direito a nada!”, atira indignado Ricardo. Foi este mesmo sentido de injustiça que levou Ricardo, nas suas deambulações pela net, a temer tantas ve-zes pela vida de Leonor, tantas quantas aquelas em que sorriu, perante a esperança de uma cura, de um dia melhor: “Da minha pesquisa, houve muita coisa que me chocou, mas que me levou também a perceber que aquilo que existia há 20 ou 30 anos, não é o que existe hoje. Há que dar a oportunidade a estas crianças de irem mais além…” Foi justamente a sua perseverança e a fé do casal na recuperação da sua princesa que os levou a procurar de novo a net para perceber o problema oftalmológico da pequenita. “Comunicámos com a associação dos EUA e tentámos informar-nos. A informação que preciso tenho que ser eu a ir buscá-la; eu é que vou dando a informação aos médicos e aos hospitais porque eles podem ter conhecimento, mas não aprofundam a questão. Os pais são os pilares dos filhos. Cabe a eles, também, procurarem a informa-ção!” exclama, seguro, Ricardo. Como que desperta pelas eloquentes

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palavras do seu protector, a pequena Leonor, que é realmente formosa mas, nem sempre segura, entra trôpega pela sala, ainda recém desperta da sua pequena sesta. Dirigindo-se até nós, os olhos semicerrados de Leonor começam agora a crescer até pousarem sobre as nossas mãos, mostrando de forma inequívoca que havia algo, que muito lhe tinha agradado. Depressa nos apercebemos que o tom do verniz da jorna-lista tinha deixado a princesinha encantada. A mãe revela então que além do gosto pelas cores fortes, Leonor tem também imenso jeito para cantar, especialmente André Sardet. Perante este comentário, Leonor decide presentear-nos com alguns versos da célebre melodia Adivinha o quanto gosto de ti. Poucos profissionais de saúde terão, certamente, a oportunidade de testemunhar aquilo que vai além da doença… Afinal, desde os seis meses que a Leonor faz ecografias renais, de três em três meses, em virtude de se temer que venha a desenvolver um tumor de Wilims, característico da doença. “Até agora tem estado tudo normal e a grande fase de risco, entre os 18 meses e os 3 anos, já passou. Porém, de toda a investigação que fizemos, pode sempre aparecer, embora seja muito mais raro. Por isso, até aos 8 anos faz-se este controle trimestral e, depois passará a ser semestral e, mais tarde, anual”, assegura a mãe. Além disso, Leonor é permanentemente acompanhada por uma equi-pa multidisciplinar que reúne a Oftalmologia, passando pela Genética até ao ensino especial, sendo ainda acompanhada pela Neurologia, no hospital São Francisco Xavier. Em Alcoitão encontra-se referenciada para a fisioterapia e terapia ocupacional.

Operada aos seis meses a uma catarata completa, Leonor usa óculos escuros desde os 3 porque não tem íris nos dois olhos. “Te-mos muito cuidado com os olhos dela. Ela nunca pode sair à rua sem os óculos uma vez que pode queimar a retina, o que será irre-versível”. Também a nível físico, Leonor lida com algumas dificulda-des, nomeadamente no que se refere ao apetite. “A Leonor tem um apetite muito grande, característica da doença, mas nós controla-mos imenso. Ela tem de perceber que não pode comer certas coisas. Neste momento está um bocadinho gordinha, mas apenas porque como tem alguma dificuldade motora não tem o mesmo tipo de

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exercício. No entanto, não come bolos, chocolates, doces e tem até, umas bolachinhas próprias. Ela própria já não pede. Aliás, nem se-quer temos esse tipo de coisas cá em casa”, acentua Ana.

Apesar de os pais de Leonor serem umas verdadeiras forças de vida, a verdade é que, se perante a doença sempre lutaram, perante a crise estão quase a baixar os braços. “Os óculos dela são extremamen-te caros, as terapias não são comparticipadas, porque Alcoitão deixou de ter esse serviço. Inclusivamente existem crianças lá que sempre tiveram este acompanhamento e que agora, em virtude de não ser comparticipado, tiveram de as retirar” destaca Ricardo que continua os seus queixumes referindo que “recebo dois subsídios para a Le-onor – o de deficiência que são 56 euros e consegui o subsídio de terceira pessoa. Neste momento recebo à volta de 140 e poucos euros. Serve apenas para ajudar a pagar as terapias de Alcoitão. Até o abono de família me retiraram!”, diz indignado aquele que sempre tentou que a pequenita tivesse acesso a tudo o que “tinha direito”. Da escola particular à terapia da fala particular, nada faltou à pequenita. Infe-lizmente, os tempos hoje são outros e o casal teve de colocar Leonor na escola oficial. Lá “tem algumas terapias gratuitas, nomeadamente a terapia da fala e acompanhamento especial. Tenho notado uma dife-rença enorme!”, exclama a mãe. Leonor cresceu, efectivamente, como garota e ser humano. Culpa dos pais, talvez, que trabalharam para isso. “Apesar de termos muitas dificuldades e uma vida muito des-gastante, com as constantes idas a médicos, tentamos sempre que ela aproveite a vida ao máximo” ou, quem sabe, da própria Leonor que, simpática e divertida, resolveu pregar uma partida à doença e mos-trar a sua verdadeira raça: “começa já a desenhar círculos. Já distingue as cores, à excepção daquelas que são muito parecidas”. Para tudo isto contribuiu, certamente, a preciosa ajuda dos amiguinhos docentes. “Os meninos da escola são super-queridos com ela. Gostam muito dela e andam sempre a perguntar se precisa de alguma coisa”, lem-bra Ana. Unindo armas com a pequena Leonor, estes pais guerreiros acreditaram que era possível tentar de novo… dar um irmão à Leo-nor. “Antes de ter o bebé, falámos com a genética e ela disse-nos que

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nem eu nem o meu marido tínhamos qualquer problema a nível dos cariótipos. Falei com  o meu marido e achámos que seria bom para a Leonor ter um irmão, apesar das despesas. Porém, como engravidei com 37 anos, fui para as consultas de alto risco, até fazer a amniocen-tese. Fizeram também o estudo do cromossoma. Quando o Lourenço nasceu, a vida deu outra volta. Hoje, brincam os dois muito e ouvem histórias e música juntos. Ela é fantástica com ele e ele gosta imenso dela”, diz embevecida Ana, enquanto olha os seus rebentos. Na reali-dade, Leonor tornou-se hoje naquilo a que chamamos em tom quase coloquial – a irmã mais velha. “Ela já tem alguma conversa connosco e faz pequenos recados” refere Ana adiantando desde logo que cada passo que ela dá é uma vitória. Um triunfo feito de pequenos avanços e alguns recuos, mas com uma novidade diária: “vivemos um dia de cada vez e da forma mais intensa possível. Tentamos sempre que cada dia seja diferente, cada vez melhor!”, garante o casal que acompanha diariamente as peripécias da pequenita e cresce com ela, aprende com ela. É esta aprendizagem de experiências feita que leva o casal a sentir-se na obrigação de motivar outros tantos pais: “o fundamental é, quando se recebe a notícia de que se vai ter uma criança diferente, aceitar. Temos de investir nestas crianças, falar com elas, dar-lhes ca-rinho, amor e estar o mais possível presente na vida delas”.

Ainda que, no final do dia, a preocupação de Ricardo seja “morrer sem eles terem crescido”, a alegria de ver Leonor crescer, feliz, formo-sa e segura dá um novo alento a este casal guerreiro que sonha um dia levar Leonor aos EUA onde, além do outrora  prometido ouro, poderá estar a esperança da cura!

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Capítulo III

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Trabalha no jardim de infância da Câmara Municipal do Seixal, onde todos a mimam e adoram. Vaidosa por natureza, Márcia faz questão de exibir, orgulhosamente, a sua diferen-ça, deixando para trás mágoas e lembranças de um passado e de uma sociedade que nem sempre foi justa para com ela, o fruto de uma ignorância naturalmente inerente a tudo o que não é es-tandardizado. “A sociedade olha-nos como se tivéssemos algo que se pegasse”, alega Márcia lembrando todos os olhares de soslaio, cochichos e comentários desagradáveis a que esteve, desde sem-pre, sujeita. Hoje, com 27 anos, Márcia confessa-se uma mulher realizada e insubmissa, oferecendo à mãe os louros daquilo que é hoje “A minha mãe é uma grande mãe, uma mulher com muita força. Se não fosse ela eu não estava como estou”. Talvez por isso, Márcia prefere que seja a sua mãe a relatar a estória de vida que ambas têm vindo a trilhar, lado a lado, ao longo destas quase três décadas de vida. Uma estória onde predomina a convicção, o engenho e a atitude de uma

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Márcia

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mulher, tantas vezes apelidada de má, por força de querer que a sua filha fosse… Capaz! Capaz de coisas simples como abotoar uma camisa, comer sozinha ou até, imagine-se, ir para uma esco-la pública. “Quando pus a Márcia a comer sozinha, diziam que maltratava a minha filha e que era má mãe. Tudo porque a Márcia não tinha dedos. Obrigava-a a limpar-se na casa de banho, o que ela fazia com dificuldade, porque não consegue chegar bem com o braço atrás. Porém, hoje ela faz tudo! Eu sei que não é fácil de ver. Mas eu preferia vê-la a esforçar-se, do que não conseguir fazer nada!” afiança Gisela, uma verdadeira heroína para quem a pala-vra não ser capaz é apenas sinónimo de preguiça.

“Amar um filho deficiente é acreditar nele, é respeitá-lo”! É des-ta forma que Gisela se refere à sua menina e ao longo, penoso mas vitorioso rumo que têm delineado. “Fiz uma jura que ela havia de ser, um dia, aquilo que eu tinha sonhado!”, regista decidida. Apesar da garra e perseverança que hoje demonstra, esta mãe confessa que no início foi muito complicado. “Há uma imagem que vou guardar para sempre comigo – quando a Márcia nasceu, fez-se um silêncio desconfortável e eu perguntei o que se passava. Foi quando entra uma enfermeira com ela embrulhada, num pano azul; a Márcia coloca o pé fora do pano e eu vejo um pé, sem dedos”! Apesar da grande mulher que é, Gisela deixa-se abalar pelas lembranças para logo se recompor e afirmar, sem receio de qualquer avaliação mo-ral: “fiz rejeição – eu não queria aquilo. Não foi aquilo que pedi – berrei, saltei e fiz o meu luto logo ali, naquele momento”. Afi-nal, Márcia era a sua primeira gravidez. Uma filha muito desejada numa gravidez que decorreu normalmente. Após a reacção inicial Gisela, graças à providencial intervenção de uma enfermeira, de-cidiu que a filha haveria de ser igual a todos os meninos. “Tive alta da MAC e ela ficou internada. Durante 15 dias eu ia vê-la, mas ao longe! Passados este dias a Márcia passou para a Estefânia e jamais me esqueço de uma enfermeira, que ainda hoje é nossa amiga, que me disse: como é mãe? Veste-a você ou eu? Eu, ainda em choque, dis-se para ser ela e fiquei estupefacta quando a vi acarinhá-la. Quase

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com a bebé vestida eu disse – eu acabo! Foi nesse dia que a aceitei!”, conta. Já para o pai de Márcia, nem o choque estético o demoveu do amor imenso que sentia por aquele pequeno ser. “O pai da Már-cia quando a viu disse-me que ela era tão bonita ao que eu respon-di e tu és muito burro. Aos meus olhos, a minha filha não tinha qualquer tipo de beleza. Ainda hoje, para o Francisco, a Márcia é a menina dos seus olhos! A princesa!”, conta Gisela.

Na Estefânia, já com quase três semanas, surgiu o primei-ro diagnóstico. “O Professor Gentil Martins veio ter connosco e disse-me que era uma síndrome de Apert, adiantando desde logo que, apesar de não saber muito sobre a doença, a menina teria de ser sujeita a várias intervenções cirúrgicas”. E assim foi. A primeira surgiu logo aos quatro meses, ao cérebro. Seguiram-se várias à au-dição, mas sem resultados! A Márcia acabou por desenvolver uma surdez completa e hoje ouve, graças a uma prótese. As mãos tam-bém foram alvo de cirurgia: cinco em cada uma. “Nos pés nunca mexemos”, relembra a mãe a quem os médicos afiançaram que a menina não iria andar, não iria passar dos 4/6 anos e que “eu es-tava a criar uma expectativa muito grande. O braço não mexia, o andar era dificultado porque não fazia o movimento das pernas, enfim, pintaram a coisa muito negra”. Como se isto não fosse des-de logo um fardo extremamente pesado, acresce o facto de Márcia ter tido as doenças típicas de infância – quase todas – e de fazer bronquiolites de repetição. Nada que amedrontasse Gisela, habi-tuada às agruras da sua vida: “às tantas, já era eu que a aspirava! As mães vão-se tornando médicas dos seus filhos!” confessa, or-gulhosa do seu desempenho.

Porém, nem só do mal físico padecia Márcia. Esse, aliás, viria afinal a ser, provavelmente, o menor dos sofrimentos. O maior de todos era aquele que ainda hoje se verifica: a discriminação. “Aos dois anos entendi que a minha filha tinha de ir para uma escola pública. Chamaram-me louca! Passou por três ou quatro colégios onde estava apenas umas horas e me mandavam ir buscá-la por-que não a podiam ter lá. Diziam que os meninos quando olha-

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vam para ela choravam”! Nessa altura, e perante a rejeição de uma sociedade hipócrita e cruel, Gisela sentiu-se impotente. “Estava desorientada! O mundo desabou; não havia portas, janelas, nada. Tudo se fechava”! Porém, como que por magia, ajudada pelo inte-resse de um jornalista do extinto Tal e Qual, as coisas acabariam por mudar, ainda que as mentalidades continuassem retrogradas. “A história tocou muita gente e, aí, apareceram vários colégios que a queriam lá. De todos, só um fazia, já na altura, inclusão – o externato Piaget, em Lisboa. Ela tinha quatro anos e eu pagava então 27 contos de mensalidade, sem qualquer comparticipação” denuncia Gisela para quem, a falta de apoios financeiros para a re-cuperação da filha sempre foi uma constante. Tanto, que obrigou o marido a trabalhar arduamente para lhes poder proporcionar o melhor, enquanto perdia, assim, a infância da filha. “Comemos muitas iscas para ela ter boas botas! A última operação que fez às mãos, na Clínica de Todos os Santos, pelo Prof. Batista Fernan-des, o único cirurgião da mão em Portugal, custou-me 500 contos. Cada atestado médico custava-me 15 contos porque era assistida em particular, porque o Professor Gentil Martins me disse que eu não podia exigir mais porque o que estava feito era uma obra mui-to bem feita, por ele…”, acusa revoltada.

A prova do equívoco deste médico está hoje à nossa frente. Uma rapariga bem formada, senhora do seu nariz, que já não se deixa abater por comentários menos próprios e, muito menos, pela sua aparência. A mãe, não tendo formação médica, tinha uma qualidade única: o amor de mãe. Foi esse amor que a levou a confrontar a filha com a sua própria deficiência, numa tentati-va de a chamar à realidade e de lhe provar que isso, era o menos importante. “Sempre achei que a Márcia devia de ter espelhos no quarto para que se pudesse olhar e gostar dela como é”. Apesar disso, a jovem viria a ter o confronto da sua vida quando, um dia, na escola, os colegas a chamaram deficiente: “Com oito anos ela chegou a casa e perguntou-me o que era um deficiente. Levei-a para a frente de um espelho e disse: olha para mim e olha para ti

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– o que vês minha filha? Nada. Ao que respondi – já reparaste que tens um nariz diferente, uns olhos diferentes… a tua maior beleza está dentro de ti, não se vê. Porque te acham diferente e não vêm essa beleza eles chamam-te deficiente. Ser deficiente é isso mesmo, é ser diferente daquilo que nos rodeia. Tu és mais bela que qualquer um de nós, porque não te questionas por não seres igual aos outros. Tu aceitas-nos, o que revela que és um ser humano muito superior a todos nós” revive Gisela, com emoção.

Os 12 anos foram outra época complicada, por força da con-vicção desta mãe que entendeu “que ela tinha de ser capaz, porque quando eu fechar os olhos não existe ninguém para tomar conta dela. Teve dificuldades na escola porque não conseguia assimilar a matéria. Acabou o 9º ano aos 18 anos. Até aqui, tudo corria muito bem, porque era bom para os colégios terem uma criança com Apert que conseguia fazer tudo o que ela conseguia. Porém, ela não quis continuar a estudar e saídas para trabalhar não existiam. Também se sentia mal porque já era uma mulher numa turma de crianças”… Assim, após a conclusão do 9º ano, a única hipótese que esta mãe viu para a sua filha, foi aquela que sempre tinha re-jeitado – a Cercis. Lá fizeram questão que ela fosse o exemplo. Um exemplo de garra e convicção para os outros meninos! Porém, esta opção também não agradava à jovem Márcia. “Quando saímos da escola, a Márcia disse-me: é aqui que me vais pôr, ao pé daqueles. Res-pondi-lhe que aqueles eram iguais a ela, apenas tinham tido um percurso diferente”.

Aqui, Márcia adquiriu novas competências e encontrou, tam-bém, o seu primeiro amor, um adolescente com Trissomia 21. Um amor que, mais uma vez graças aos preconceitos sociais, não teve o final feliz que a jovem Márcia tanto sonhava. “Os pais, quan-do souberam, não aceitaram o namoro porque a Márcia era feia”, confirma a mãe. Márcia, como que atiçada pelas amargas recor-dações, interrompe agora e afiança: “não quero mais namorados. Sofri muito e pensei que o melhor era estar sozinha…” confessa. A seu lado, a mãe lembra que, foi também nesta época que ela

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própria teve um grande desgosto. A paixão por estas crianças tão especiais era de tal forma que Gisela decidiu procurar emprego a fazer aquilo que achava que sabia melhor – lidar com estes meni-nos. Porém, “a dada altura, as funcionárias das Unidades tinham de ser das Cercis e eu fui obrigada a sair. Foi o ano mais difícil da minha vida! Estes meninos fazem parte de mim!”, recorda chorosa Gisela que, durante algum tempo ainda tentou ter um espaço seu mas que “tive de fechar porque não tinha ajudas”. Magoada, lá vai adiantando que hoje tem os meninos na sua casa porque “as pes-soas que trabalham hoje com estas crianças não sabem respeitar o seu espaço e respeitar a forma de amar deles”.

Márcia, por seu lado, e apesar de ter momentaneamente ab-dicado dos namoros, hoje não dispensa os amigos, com quem partilha, diariamente, histórias no Facebook. Amante de música e dança, a jovem não dispensa as saídas à noite e as visitas ao sho-pping, onde se diverte com a sua grande paixão: comprar brincos. Desde sempre fez questão de se arranjar e de se cuidar como que querendo, a todo o custo, contrariar uma comunidade que teima em colocar rótulos numa mulher que, afinal, é tão pura e simples-mente isso – uma mulher!

“A Márcia aprendeu a não se esconder e a impor-se!”, ajuda a mãe, lembrando uma história curiosa que revela a personalidade forte destas duas grandes Senhoras: “A Márcia é muito vaidosa e adorava camisas. Eu dizia-lhe: consegues abotoá-las? Não mãe. En-tão não as podes ter. No dia em que conseguires, compro-te aquelas que quiseres… Esse dia chegou”! Foi também esta forma vincada de ser que a transformou numa educadora de excelência: “lá ensi-namos e aprendemos. A última coisa que lhes ensinei, que apren-di com os meus pais, foi que não devem ter medo… Os meninos aqui aceitam-me, como se nada fosse” assegura Márcia, orgulhosa dos seus petizes. A seu lado, a mãe sorri e garante-nos desde logo: “qualquer família com uma criança deficiente é abençoada. É uma família muito especial! Eu sou uma mãe muito realizada!”. De la-grimita ao canto dos seus olhos rasgados, também Márcia faz uma

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pequena troca de afectos: “apercebi-me, graças aos meus pais, que somos todos iguais”. Da nossa parte, gostaríamos apenas de salien-tar um pequeníssimo grande adjectivo; todos iguais talvez, mas uns mais tenazes que outros…

A nossa Márcia, ultrapassando todas as barreiras da vida, dá uma grande lição a todos aqueles que se queixam, tantas vezes, de coisas comezinhas e que teimam em discriminar os que, pelo seu carácter e estória de vida os assustam – porque lhes lembram a sua insignificância!

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Capítulo IV

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São 17.30h – Lá fora, uma carrinha da APERCIM traz ao nos-so encontro a protagonista desta estória. Rita de seu nome, faz jus ao significado do mesmo – alegre, radiante. A mãe, de sorriso também rasgado, dá-nos uma calorosas boas-vindas. Apesar da vida difícil e problemática que ambas têm, estas mulheres sabem, como pouca gente, que tal como afirmou outrora o defensor da liberdade, Martin Luther King: “Pouca coisa é necessária para transformar inteiramente uma vida: amor no coração e sorriso nos lábios”. São justamente estas duas grandes premissas que as têm guiado pelos atalhos da vida. “Eu conto as coisas a rir porque só assim se consegue seguir em frente; é mais fácil”, justifica Deolinda, soltando uma forte gargalhada, misto de nervosismo e de uma disposição verdadeiramente inacreditável. Para esta mulher que, até hoje, luta para sa-ber o diagnóstico da patologia da sua filha, na vida não existem pontes nem barreiras, apenas muros, muitos muros… que teima em derrubar: “Se tenho dado ouvidos às opiniões dos médicos, que diziam que não havia nada a fazer, com certeza ela não teria

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chegado aqui” afirma, veementemente, Deolinda. Afinal Rita, hoje com 21 anos, apesar de se encontrar presa a uma cadeira de rodas, irradia uma paz de espírito e tranquilidade, só abaladas por rasgados sorrisos, sempre que se fala directamente no seu nome.

O percurso de vida desta família é, verdadeiramente, um exemplo de tenacidade e constância. Deolinda tinha 33 anos quando nasceu Rita, tendo o problema da bebé sido notado apenas às 30 semanas. “Numa ecografia, o perímetro cefálico estava abaixo da média e tinha deixado de se desenvolver, porém a médica desvalorizou e disse que poderia ser do aparelho onde a eco tinha sido tirada” diz Deolinda. Porém, quando Rita nasceu, os receios da mãe provaram-se: “Quan-do ela nasceu tinha o nariz achatado e as orelhas estavam coladas à cabeça” asserta. Seguiram-se numerosos exames – cardíacos, oftal-mológicos, genéticos… Diagnóstico: síndrome malformativo, um nome tão vago quantas as inúmeras patologias raras que a ele podem estar associadas. “O mundo caiu-me em cima. Não sou diferente das outras pessoas! Fui-o apenas porque, contra a opinião de todos, fiz o que achei ser o melhor para a minha filha”. E assim foi, perante um diagnóstico muito triste, onde a palavra recuperação ou esperança teimavam em não caber: “A médica assistente confessou ao meu ma-rido que aquela criança não era suposto ter sobrevivido”. Mas Rita, de espírito triunfante, viveu, coadjuvada pela sua grande parceira de luta, Deolinda, que teimava em contrariar médicos e especialistas, provando que tinha razão em… acreditar!

Um dia, uma fisiatra da Liga Portuguesa dos Deficientes Moto-res perguntou-lhe, em tom irónico, o que ia fazer com a filha para a piscina. “Retirei do saco um biberão de água e perguntei à Rita, então com 15 meses, se queria água. A menina respondeu abrindo a boca! Depois voltei-me para a fisiatra e disse-lhe – agora explique--me porque é que me diz que esta criança não entende nada” lembra, emocionada. Também o neurologista da pequena Rita parecia tei-mar em abalar as convicções de Deolinda. “Eu não me entendia com o neurologista porque ele só sabia dizer que ela não havia de fazer nada e que não valiam a pena terapias. Lembro-me de a levar para a

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praia e a obrigar a andar pela praia fora, para que se desenvolvesse a nível motor. Um dia volto à consulta e ela, muito bem disposta, sor-ria e olhava para tudo à sua volta. Aí, o médico deu-me os parabéns e disse-me que ele nunca tinha acreditado que fosse possível. Foi o seu trabalho que conseguiu isso, disse ele”. Foram estas as palavras, pro-feridas por um especialista, que deram a determinação a Deolinda para continuar, contra as opiniões de todos, a tentar despertar a sua Bela Adormecida Rita. Daí em diante, Deolinda teve a certeza que, com carinho e o estímulo correcto, era possível obter respostas des-tas crianças… bastava olhá-las com atenção. “Eu percebo-a porque olho para ela” salienta esta verdadeira pietá.

Um dia, a mãe de Rita achou que estava na hora de a sua prin-cesa aprender e conviver com outros meninos. Por isso, apressou--se a inscrevê-la num infantário, perante o descrédito da directora: “para que quer que ela esteja aqui? É para saberem que ela existe? Mas eu insisti e revirei tudo até conseguir, inclusivamente, que ela tivesse apoio especial. Os pais dos meninos ficavam horrorizados porque achavam que as crianças não tinham que levar com isto. Ouve uma mãe que, inclusivamente, disse que a filha dela comia pior desde que a Rita frequentava o infantário”, lembra em tom irónico. Esta satis-fação em confrontar tudo e todos na defesa dos interesses maiores daquela que é do seu sangue trouxe muito mais situações de pura discriminação e falta de informação da nossa sociedade para com estas crianças. “À chegada da escola primária a directora chegou a dizer-me que só por cima do cadáver dela é que a Rita entrava. Ao que eu respondi que a escola era obrigada a criar condições para que a minha filha lá pudesse andar. É incrível, porque os miúdos falavam na Rita aos pais, como uma colega! Só quando chegava a Festa de Natal, é que os pais se confrontavam com esta realidade…” recorda, com um ar de estupefacção.

Ao nosso lado, de olhos serenos e sorriso rasgado nos lábios, Rita agita-se agora alegremente. Segundo a mãe, quer tocar piano, como que a brindar a nossa presença com os seus feitos. Esta persistência em comunicar foi, desde sempre, algo que acalentou as esperanças de

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Deolinda. “Fui para a natação tinha ela 15 meses. Apesar de os mé-dicos dizerem que ela não entendia, eu sabia que ela gostava de água. Por isso, em vez das terapias, usei a parte lúdica, para obter respostas dela”, concluí. Para Rita, foi graças a esta interacção que conseguiu sempre vencer todas as adversidades. Dorme mal, desde sempre, e acorda várias vezes por noite. Aos dois meses começou a ter convul-sões, que hoje estão controladas com medicação e, a dada altura, “to-dos os dias ia com ela ao hospital, pelas mais diversas razões e pelas constantes crises de falta de ar” comenta rindo Deolinda.

Diz que não tem postura de coitadinha e assegura-nos, desde logo que, se assim fosse, talvez tudo fosse mais fácil: “há dias em que não apetece sequer levantar-me”, confessa rendida. Logo depois, como que esquecendo a tristeza, Deolinda assegura-nos que será a última a par-tir e, por isso, mudou de casa para assegurar à filha que a protegia e de-fenderia… até ao fim! “Ela hoje está aqui, com uma qualidade de vida razoável, porque eu mudei a minha vida em função dela. Eu morava em Caneças e era a Liga que me ajudava. Aqui em Mafra têm todas as terapias” salienta a mãe, destacando que estas escolas têm já currículos alternativos para os meninos especiais, apesar de nem sempre serem aplicados, de forma efectiva e transversal. “No ensino regular quise-ram passá-la vários anos seguidos para que ela abandonasse o ensino mais rapidamente. Fui lá e disse que ela teria de cumprir o currículo, como todos os outros meninos. Salientei ainda que eu queria que ela fizesse a universidade básica (Escola Básica Hélia Correia), que existe também aqui”, assegura de sorriso sarcástico nos lábios.

Há alguns anos, quando o neurologista de Rita afirmou que não havia nada a fazer, Deolinda escreveu! Escreveu muito… “Cheguei a mandar a informação dela para Cuba, para a Suécia, e as respostas que me deram levaram-me a pensar que o melhor era tentar viver a vida, da melhor forma possível, no meu país” afirma resignada, mas com firmeza, prosseguindo a estória com uma forte componente dis-criminatória: “O grave nestes casos é que não basta ter de lidar com a doença, como também ter de ultrapassar os obstáculos que os ou-tros teimam em nos colocar”. De uma coisa Deolinda tem a certeza.

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Não será o irmão de Rita quem terá de acompanhar a irmã até ao seu desígnio. “Eu, ao contrário da maioria das mães, não acho que tenha de ser ele a ficar com ela”, refere Deolinda, quase incrédula perante a atitude de outros pais de meninos com patologias raras. “A maioria dos pais desistem. Não os levam para a escola porque não querem enfrentar as outras pessoas”, lamenta. Mesmo perante tantas adver-sidades, Deolinda não é pessoa de se abater ou amedrontar e garante que todos os seus dias serão passados a encontrar as melhores alter-nativas, os melhores colégios, as melhores pessoas até, quem sabe, a cura para a sua filha. “Desde que existe a Raríssimas e graças à mãe do Marco eu passei a achar que não estava sozinha e que o futuro há-de ser diferente. Quando a ouço falar ligo para os meus amigos e digo, ouçam aquela senhora!” diz de sorriso aberto.

Não, de facto Deolinda não está só, nem tão pouco a sua Rita. Existem milhares de estórias semelhantes, de dor, sofrimento e an-gústia, mas poucas poderão ter o vosso final feliz, o da vitória do amor sobre a doença!

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Capítulo V

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É num remoto vilarejo do Concelho de Santarém que vivem Francisco e Cristiano, dois irmãos gémeos, extremamente traquinas e com uma inteligência e poder de argumentação que nos deixaram, ab-solutamente, fascinados. À volta da mesa, toda a família se reúne para partilhar a estória destes dois meninos, uma estória contada a várias vozes, ou não fossem eles uma verdadeira Unidade Familiar. Afinal, o problema das doenças raras, quase nunca é de uma só pessoa. A família tem, na maioria destes casos, um papel absolutamente preponderante.

Francisco não consegue esconder o seu nervosismo perante a imi-nência de, segundo a sua imaginação, ser levado por nós. Envergonha-do, esconde o rosto, belisca-se e contorce-se… É Cristiano, com um ar bonacheirão, que avança e nos conta que o irmão está um bocadi-nho aflito! Depois de lhe mostrarmos que estamos ali apenas para contar uma estória, o ambiente torna-se mais descontraído, es-pecialmente quando Cristiano nos confessa que adora comida e que o seu grande sonho é ser cozinheiro, desejo partilhado por Fran-cisco, como aliás tudo o resto! “O grande

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mal foi não os terem separado na escola. Eles andaram sempre juntos e influenciaram-se um ao outro. Por exemplo, o Francisco não sabia, mas apoiava-se no irmão”, aponta a mãe perante o olhar reprovador e malandreco de Cristiano que depressa contrapõe essa afirmação com um displicente: “os outros meninos são mais piores que nós”.

Anabela teve os gémeos aos 33 anos, mas o diagnóstico apenas sur-giria um ano depois do seu nascimento. “Ia todos os meses à pediatra, no hospital de Santarém, e comentava que achava estranho eles não chorarem, não acordarem para comer e, no geral, serem muito moles. Eu dizia que achava que havia qualquer coisa e a pediatra ralhava comi-go e respondia que parecia que eu não era mãe!” conta. Porém, esse fa-buloso sexto sentido que assiste às mães não a enganava. Cada vez que choravam, o som que ecoava pela casa era quase um miar de gato, algo a que, Anabela, mãe de duas outras meninas, em nada achava semelhan-ças. As dúvidas que assolavam a alma desta mãe eram mais que muitas e o tempo não tardou a responder-lhe, da forma mais cruel possível. “Um dia, foi o meu marido com eles à consulta e foi atendido por uma outra médica. Depois de lhe explicar aquilo que eu já havia relatado ao longo dos meses, esta médica disse que eles deveriam ficar internados para observação. Foi neste internamento que vim a conhecer duas mé-dicas, que eram de Santa Maria mas que estavam a estagiar ali. Foi a minha salvação!”, explode Anabela recordando a proposta das jovens estagiárias que, movidas pelo espírito científico, quiseram que os gé-meos fossem vistos por um professor, da área das doenças metabólicas.

Os gémeos deram entrada no hospital de Santa Maria onde, após uma semana de internamento, análises genéticas, a eles e aos pais, anali-sadas por laboratórios do Porto e de Espanha, tiveram finalmente o seu diagnóstico. Eles eram, tal como Anabela suspeitava, diferentes, raros – Prader Willi. “Lembro-me que houve um médico que abriu um livro onde havia um homem muito obeso e que só me disse que os meus filhos iam ficar assim – aquele homem tinha uns duzentos e tal quilos. Adian-tou ainda que era possível que eles viessem a ir ao caixote do lixo à pro-cura de comer. Eu fiquei em pânico” afiança Anabela. Não seria para me-nos… Afinal a Prader Willi, raramente sendo fatal, poderá trazer graves

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complicações a estas crianças. Problemas como hiperactividade e ligeiro défice cognitivo são frequentemente associadas a esta síndrome rara.

A comida é, aliás, a grande tentação destes dois meninos que, com 16 anos, pesam já mais de 90 quilos. Preocupados com a situação, tentámos, de uma forma divertida, explicar aos gémeos que deveriam ter cuidado com a alimentação para não terem problemas de saúde e para ficarem mais elegantes para a tal namorada que Cristiano já tem desenhada na sua cabeça: loira, alta e de olhos azuis! Por causa da pequena reprimenda, Francisco responde de forma peremptória que a sua comida preferida é a salada, rindo à socapa da pequena mentira que nos contou. Afinal, ele gosta mesmo é de sopa de pedra. “Agora temos de ir a Santa Maria a con-sultas do sono por causa da apneia. Eles terão de passar a ficar ligados a uma máquina durante a noite, por causa da respiração. O Francisco tem quase 90 quilos e o irmão pesa menos uns 5 ou 6 quilos”, conta a mãe que acusa os serviços de nutrição de Santa Maria de falta de assistência: “Tive-mos consultas de nutrição em Santa Maria, mas nunca fomos atendidos porque a médica faltava sempre. Há quase um ano que não temos dietista”. Perante a nossa estupefacção e nova insistência para que os gémeos adop-tassem uma nova postura alimentar, Cristiano decide meter-se connosco e diz “tenho muita vontade de comer e gosto de tudo”. Quisemos saber a opinião do mais caladinho… o Francisco. Não durou muito a conversa uma vez que Cristiano, sentindo uma pontinha de ciúmes, revela a sua agitação rasgando aos bocadinhos a camisola de uma famosa marca de telemóveis. À repreensão da irmã, Cristiano retruca, “esta foi dada. Se es-tragar arranja-se outra”. De mãos postas à cabeça, a mãe lá vai dizendo em tom de lamentação: “está a ver, é isto o dia inteiro. Eles brigam constante-mente um com o outro e ultimamente tem sido pior”. Na realidade, a ida-de em nada ajuda estes meninos que lidam agora, além da doença, com as famosas hormonas da adolescência e nem as 40 mg de Ritalina parecem ajudar. O pai confessa que tem de ir novamente à médica para que aju-de os seus meninos a acalmar. “Eles fazem birras atrás de birras. Chega a uma altura em que já não aguento. Nós não conhecíamos ninguém com este problema… Assim que acordam começam aos gritos. Brigam por tudo e por nada, até por causa da roupa…” lamenta, em tom cansado,

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Anabela que em virtude de ter este dia-a-dia no mínimo, animado, já teve de pedir ajuda; anda a ser seguida, no hospital de Santa Maria, na área da psiquiatria. “Há mês e meio fui parar ao hospital por causa deles gritarem e arrancarem os cabelos. Enervei-me de tal modo que não consegui… Eles apanham o meu fraco!” esclarece com ar reprovador a mãe.

Lidar com dois Prader Willi em simultâneo é, de facto, uma tarefa digna de Hércules. Porém, com o devido acompanhamento, estes meni-nos acabam por se tornar seres humanos autónomos, com capacidade para amar e para dar. “São simpáticos para toda a gente e têm um carinho muito grande por nós. Se não estivermos todos juntos acham que já não é uma família”, graceja a mãe. Na realidade, o conceito de família está nesta casa perfeitamente implantado e denota-se a união e objectivos comuns. “Eles têm descobertas muito engraçadas. Uma vez, fui a casa de um se-nhor que está separado e o Cristiano disse-me que eles não eram uma família porque faltava a mãe”, lembra Anabela. Completamente depen-dentes emocionalmente da mãe, a quem levam por vezes ao desespero, os nossos gémeos garantem que não querem ir para lado nenhum. Apenas ficar com a sua família. “Eles não nos querem largar de modo nenhum. Não querem ir para colónias, nem escuteiros, nada. Só querem o pai e a mãe”, garante a mãe. Ao nosso lado, a irmã mais nova aproveita para dar mais sabor à nossa conversa e conta um episódio dos irmãos, para gran-de gáudio dos mesmos: “Durante a noite eles comeram o bolo. Quando chego à cozinha metade do bolo tinha ido. O Francisco diz que foi o Cris-tiano e este diz que não o obrigou. Pu-los de castigo. Disse aos pais para os virem buscar”. Francisco sente-se agora um bocadinho incomodado. Afinal, a irmã estava a envergonhá-lo à frente de estranhos. E, como que querendo desviar as atenções, decide avançar para a tertúlia: “eu tenho um gato que é o Tobias e o mano tem uma gata que é a Princesa e temos outro que era abandonado. Temos também três cães”. A seu lado, qual Dupont, Cristiano replica “eu gosto de andar de bicicleta… mas tenho medo”! Agi-tados, os gémeos voltam a envolver-se num pequeno despique, como que lembrando aos presentes quem eram os protagonistas do livro.

“Adoram tomar banho. Mas brigam para saber quem toma primei-ro” refere Anabela, interrompida em sussurro por Cristiano que acusa

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o irmão de comer muito queijo! Os desagravos são contidos por umas pancadas na porta. Junta-se ao nosso encontro, a prima, a segunda avó do Francisco e Cristiano, segundo palavras dos mesmos. “São uns me-ninos muito voluntariosos que adoram ajudar em tudo. Às vezes esse espírito não ajuda muito porque as tropelias são mais que muitas” su-gere, rindo, a avó.

Nada que a nossa dupla dinâmica não esteja decidida a ultrapassar, agora que mudaram de escola e frequentam a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental, em Santarém. “Vou todos os dias de autocarro”, refere triunfante Cristiano, de 15 anos. Francisco revela-nos então que está na cozinha da escola a aprender a fazer pratos e o irmão está na lavandaria, adiantando ainda que, além da escola, gosta de jogar à bisca. Cristiano replica que adora o Tony Carrei-ra e o Michael e que gostava muito de ir a um concerto deles. No meio da agitação, o bom senso da restante família apazigua a situação e re-corda a harmonia familiar. Anabela, de olhos esperançados no futuro destes dois meninos traquinas, segreda-nos agora: “o meu maior sonho é eles serem capazes de fazer a vidinha deles e se tornarem mais inde-pendentes”. Nem que tenha de os obrigar a andar na natação, duas vezes por semana e a fazer ginástica. Nem que lhes tenha de trancar a comida, ouvindo frases insistentes e chorosas como tu és uma gulosa que comes tudo e não me dás nada a mim. “Dói muito!”, garante-nos Anabela. No final, o sentimento de partilha de afectos e de estórias parte connosco. Francisco e Cristiano prometem-nos variar a sua dieta, de forma a estarem elegan-térrimos para o dia em que receberem o nosso convite para ir a Lisboa.

Suspeitamos que ainda iremos ouvir falar desta dupla enérgica de Chefs de Cuisine!

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Capítulo VI

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Helena é enfermeira diplomada na área da reabilitação. Por ironia do destino, a tese de doutoramento veio bater-lhe à porta… O marido, João, com quem partilha sentimentos e espaços há 25 anos, foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença altamente incapacitante e fatal. “Teve os primeiros sintomas sérios em Março, embora o cansaço já o sentia há algum tempo, mas como é um sinal muito difuso, não asso-ciámos. Em Junho, na praia, ele próprio percebeu que havia algo que não estava bem porque o dedo grande do pé começou a bater na areia. Eu tam-bém notei que ele já não nos acompanhava” lembra Helena, olhando para João que vai dando o seu acordo através dos olhos. Apesar de se encontrar completamente paralisado, João faz questão não só de escutar atentamente a nossa conversa mas, mais tarde, acrescentar-lhe a sua própria experiên-cia. Munido de um computador especial fez questão de, na primeira pessoa, nos dar as suas impressões. “Quando a doença começou não ti-nha conhecimento das limitações que estavam para vir” confessa João, através da escrita.

Porém, após o reconhecimento de que algo não estaria bem, o casal visitou o médi-

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João

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co de família que encaminhou, de imediato, João para a Neurologia, em Coimbra onde, após um breve internamento, se confirmou o temível diagnóstico. Recorrendo aos seus conhecimentos, Helena apercebe-se que no hospital Santa Maria se encontra a decorrer um ensaio clínico sobre a doença e, como lutadores que são, ela e João decidem que o me-lhor era tentarem uma oportunidade com o responsável pelo estudo – o professor Mamede de Carvalho. “Na altura estava a ser desenvolvido um ensaio clínico e ele acabou por o integrar, durante um ano. Conti-nua hoje a ser lá seguido. Os resultados não foram os que esperávamos porque não houve efeitos positivos”, afirma Helena. João aproveita para lembrar as suas incursões neste serviço hospitalar, alertando para a situ-ação dos técnicos de saúde face a doentes como ele. “Tenho sido muito bem acompanhado no hospital Santa Maria, apesar desta doença deixar uma sensação de impotência aos técnicos de saúde. Acho que devia ha-ver acompanhamento psicológico para doentes e cuidadores e formação aos técnicos de saúde para saberem comunicar com os doentes que não falam, (estive internado e bem senti as dificuldades dos técnicos comuni-carem comigo). Basta saber utilizar uma tabela de letras que era mais fácil para todos” alerta João, um homem que não se deixa vencer pela doença e convive com ela da forma mais harmoniosa que possam imaginar.

Apesar do insucesso do ensaio clínico, este casal não se deixou aba-ter e lá foi arranjando formas para aprender a viver uma nova e dura re-alidade. Munidos de um amor único e incondicional e uma força avas-saladora o casal tenta viver intensamente a vida, apesar das limitações, cada vez maiores, de João. “Quando recebemos o diagnóstico cai-nos tudo em cima mas, depois temos de reformular o nosso projecto de vida” diz, pacífica, Helena. Afinal, para ela, que diariamente acompa-nha vários doentes com ELA, esta situação não é uma novidade. “Estou a trabalhar com pessoas com esta patologia. Estou a tentar construir uma teoria sobre a transição para dependência que estas pessoas vivem – as estratégias que desenvolvem para tentarem ser mais autónomos, embora a autonomia, no caso do João, acabe por ser mais a nível de decisão. Decidi fazer isto após o diagnóstico”, conta aquela a quem a doença de João faz parte de um ensinamento de vida.

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O carinho com que Helena ajeita, constantemente, João asseguran-do que nada lhe falta, rivaliza com a luta para acabar a tese de mestrado sobre ELA, que o marido faz questão de acompanhar e de incentivar à sua conclusão. Entre as aulas, a assistência ao grupo de ELA, os fi-lhos, um com 18 e outro com 13 e o marido, ela é a verdadeira Helena de Tróia. Compreende-se agora porque é que estas duas almas gémeas estão juntas há, precisamente, 25 anos. Também João é um guerreiro. Apesar de aprisionado pela doença, lá vai desenvolvendo estratégias diárias para se manter activo… como sempre foi. “Não mexo pratica-mente nada: não seguro a cabeça, o tronco, não controlo a saliva, tenho de ser alimentado por uma sonda, dormir com o ventilador e o mais difícil é não conseguir fazer a minha higiene pessoal e principalmente não falar. Apesar de tudo isto, tenho prazer em viver e nunca tive uma depressão. Faço projectos e planos, mesmo que sejam virtuais… é uma maneira de despistar a doença do capacete. Havia e há momentos de tristeza e revolta, mas sei que isso não ajuda nada. Talvez tenha vivido depressa de mais… e agora estou prisioneiro do meu próprio corpo”.

A falta de mobilidade, apesar de ter levado o casal a repensar a vida, não os absteve de fazer aquilo que mais gostam e que, por isso, fazem questão de manter… até que a doença permita! “O João quer sempre viajar. A partir do momento em que soube da doença começou a que-rer fazer mais viagens e para mais longe. Porém, neste momento as via-gens longas já são mais difíceis… Mas vamos para mais pertinho: Cabo Verde, Tenerife, Palma de Maiorca, enfim. Este ano lembro-me de lhe ter dito que esta fase era difícil por causa da tese, mas ele disse que tí-nhamos de aproveitar, por isso…”, lá foram eles viajar… rumo ao so-nho! A estória contada por Helena não faz, de todo, juz à personalidade forte deste SENHOR que, através de uma voz roufenha projectada pelo seu computador, lá nos vai aconselhando a viver intensamente a vida porque temos muito tempo para descansar quando estivermos mortos! O sentido de humor parece, aliás, ser outra das grandes virtudes deste casal que, apesar da tragédia que se lhes afigura e que deixaria qualquer dos mortais de rastos, aparentemente, para este casal apaixonadíssimo é uma força motriz. “Uma coisa a que não me habituei é ter muito tempo

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disponível e ter sempre pressa. Continuo a querer viajar e ir de férias, mesmo sabendo que não tenho o conforto do lar e só desfrute com o olhar, pois não tenho o direito de limitar mais a família, principalmente os filhos, já que a mulher, há 25 anos, jurou acompanhar-me sempre, ah,ah,ah” escreve, com ironia, João.

Outrora membro da autarquia do Luso, o espírito empreendedor de João não foi quebrado pela doença e, como tal, servindo-se de um computador movido pelo toque da cabeça, lá vai fazendo projectos… muitos projectos. Curioso e arguto, João pensa em como dar um novo rumo a diversas situações, nomeadamente aquela que constata, sempre que quer passear na sua belíssima vila – o Luso. “Há poucos acessos para cadeiras de rodas e muitos obstáculos, principalmente em lugares pú-blicos e muitas rampas que só dão para desportos radicais. Eu também sou culpado destas situações, porque fui autarca e essas situações pas-savam ao lado. É uma questão de educação de base, ainda vai demorar algumas gerações. Só quem está nesta situação dá realmente valor. Os políticos e autarcas haviam de passar só uma semana numa cadeira de rodas, para verem e sentirem as barreiras e dificuldades” escreve João.

Os amigos são a grande rede de apoio do casal. “Temos um grupo de seis casais amigos com os quais viajamos todos os anos, um fim de semana. Este ano fomos para junto da serra do Açôr. O próprio grupo adaptou-se à situação do João e temos por isso optado por locais mais perto. Este núcleo não é preciso chamar. Eles pura e simplesmente vêem e se for preciso trazem o jantar. Não é necessário quase pedir. Saber disso dá-me uma grande segurança” salienta Helena olhando, enternecida, o seu amor de sempre. Perante a nossa dúvida sobre se ainda namoravam, no dia em que faziam justamente anos de casados, os olhos de Helena brilham quando exclama: “O namoro é feito de muitas coisas! O cuidar dele ou ele falar-me com os olhos faz parte da nossa relação. A cumpli-cidade continua a existir. Os olhos dele dizem tudo!”, concluí convicta. Para ela, a doença do marido é, antes de tudo, uma experiência enrique-cedora! Para nós também foi enriquecedor conhecer duas pessoas com esta grandeza! Por isso, quisemos fazer a devida homenagem ao casal e transcrever, algumas das palavras sábias que João nos dedicou.

AmorEterno

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Olá, viva, sou o João Carlos Ferreira de Freitas, tenho quarenta e nove anos e nasci na Figueira da Foz.

A vantagem, dentro deste infortúnio, é que dá tempo para nos irmos adaptando, pior deve ser quando se tem um acidente e se fica assim de repente. Parece irónico, mas cheguei a ter inveja dos paraplégicos, agora tenho inveja dos tetraplégicos. Ver o meu rosto a degradar-se não é agradável, mas isso pouco me importa, não é o embrulho que conta, mas sim o que está lá dentro. Não deixem que pequenos problemas limitem a vossa felicidade, pois a maior parte das vezes somos felizes e não sabemos. Agora tenho tempo para ver com outros olhos “pequenas” grandes coisas da natureza, como as plantas e os animais… apesar que há horas que custam a passar, no entanto os meses voam. Continuo apaixonado pela vida, mas sei que essa paixão não é correspondida.

Fiz várias medicinas alternativas, os resultados só se fizeram sentir na carteira. Comunico com a ajuda de um computador adaptado. O rato do computador está junto à cabeça e com o toque de cabeça manipulo o computador.

Não é justo não agradecer aos meus cuidadores, principalmente, à minha mulher e amiga que divide comigo esta situação. A vida não é como nós queremos e julgamos merecer, mas temos que nos adaptar e vivê-la conforme ela se nos apresenta. Estou focado em viver um dia de cada vez. O futuro é quando lá chegarmos. Acredito que o amanhã será melhor. Com o apoio da família e amigos, continuo a lutar pela vida. Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho.

Bem hajam

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Síndrome Miasténico

de Lambert- -Eaton

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Síndrome Miasténico

de Lambert- -Eaton

Capítulo VII

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Desde sempre ouvi uma frase, tantas vezes repetida em tom melancólico e que, na abordagem desta estória, me parece fazer todo o sentido. “Viver não custa. O que custa é saber viver”! Efectivamente, esta expressão tantas vezes por todos nós repetida, poderia servir de máxima a Cláudia, uma mulher expedita e corajosa que, aos 33 anos, como que assinalando uma data tantas vezes fatídica para os maiores ícones mundiais, se viu a braços com uma doença raríssima, que to-dos teimavam em ignorar, e que lhe roubou parte da sua alegria. “Per-di a liberdade” refere Cláudia entre lágrimas, ainda combalida pelo recente diagnóstico.

Os primeiros sintomas surgiram logo após o nascimento da sua primeira filha, como se de uma divina providência se tratasse. Afinal, aquele bebé tão desejado e um dos maiores sonhos de vida desta jovem mulher, marcou a vida da mamã de duas maneiras perfeita-mente antagónicas: a felicidade versus a dor. Na altura, as dores musculares e a falta de vontade para a vida assolavam o espírito de Cláudia que, perante a incapacidade de

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Cláudia

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reacção, pediu baixa após o parto, acabando por ficar, durante seis meses, em casa. Quando finalmente regressa ao trabalho, a situação deteriora-se. Assistente Administrativa na Segurança Social, o volu-me de trabalho era imenso e Cláudia, super organizada e aplicada, não conseguia ver o trabalho acumulado, não descansando enquanto não o concluiu. Este esforço veio a revelar-se ingrato já que permitira o avanço da doença e a degradação do estado de saúde de Cláudia. “Havia dias completamente insuportáveis. Inicialmente, julguei que era uma grande depressão porque uns dias eu estava bem e no dia se-guinte já não conseguia fazer nada”. Como continuava a perder peso, a nossa interlocutora vai de novo ao médico onde lhe são feitos diver-sos exames, todos com o mesmo resultado – nada. “Desconfiou-se da tiróide e o médico receitou-me magnésio, o que me aliviou. Entre-tanto, comecei a perder muito peso. Passei de um 48 para um 44 e o estranho é que eu comia normalmente. Sentia-me muito em baixo”, lamenta Cláudia.

O ano de 2008 foi tenebroso para a jovem doente. O cansaço ex-tremo e o esgotamento psicológico que o mesmo acarretava levaram Cláudia ao limite. Apesar de, na época, tomar exaustivamente injec-ções de B12, nada parecia aliviá-la do seu suplício e as idas ao hospital eram uma constante. “No final de 2008, as pernas começaram a doer muito, já quase não conseguia conduzir. Vinha do trabalho, deitava--me no sofá e não tinha reacção para absolutamente nada. Depois disto, o meu marido começou a levar-me ao trabalho. Quando ele não podia, o meu irmão substituia-o. Ou então vinha de autocarro e a minha mãe ia-me buscar e eu, com muito custo, arrastava-me até casa. Levava cerca de 15 minutos a subir as escadas” conta, amargu-rada Cláudia, num torpor que teimou sempre em contrariar, diaria-mente! Até Março, o corpo ainda respondeu mas, a partir dessa altu-ra, e perante a insistência de todos os que a rodeavam, Cláudia achou que estava na hora de ouvir a opinião de um psiquiatra, já que todos sugeriam ser uma depressão pós-parto o motivo das queixas da jo-vem mamã. “Na altura, a psiquiatra colocou-me em tratamento mas, desconfiava que havia mais qualquer coisa porque eu a andar parecia

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um autêntico boneco. Eu não dobrava as pernas! Tinha uma fraqueza como se fosse desmaiar…” argumenta. Foi justamente esse sintoma mais anómalo que levou esta profissional a indicar o caso a um colega de Neurologia que, pura e simplesmente, o descartou corroborando o diagnóstico anterior da colega – depressão.

Enquanto a verdadeira questão não é identificada, a situação de Cláudia agrava-se e ela deixa de andar. “Um dia, saí do quarto, e até chegar à casa de banho caí, porque deixei de ter força nas pernas. Fi-cámos todos em pânico. Com um sacrifício enorme lá me consegui levantar mas, no dia seguinte, ao levantar-me da cama, a cena voltou a repetir-se. Passei a dormir no sofá, no cimo da casa, porque o meu quarto tenho de descer as escadas e eu não tinha forças”. O medo de voltar a cair era muito e as dores lancinantes. Deixou de querer sair, ir ao médico, comer e, até fazer a sua higiene diária. “Tinha dores enor-mes no corpo todo”, exclama. Perante a relutância de Cláudia em acei-tar que estas dores imensas se deviam a uma simples depressão volta ao médico. Ressonâncias e potenciais evocados (ambos na área neu-rológica) não bastaram para chegar ao diagnóstico e, só depois de um electromiagrama, (exame utilizado no diagnóstico de doenças neuro-musculares) surgiu a primeira resposta concreta: Miopatia. Contudo,” o médico achava que não podia ser só isso. Mandou-me fazer análises específicas ao laboratório. O resultado demorou imenso porque tinha de vir de Espanha (estive um mês e tal à espera) e, quando chegou, lá estava: síndrome Misténico de Eaton Lambert” sustenta Cláudia.

Uma doença raríssima, em particular em jovens, e ainda mais em mulheres. Os jackpots da vida podem proporcionar-nos este prémios envenenados porém, Cláudia continua em jogo e, como tal, tem de seguir com determinação em busca do seu grande prémio – voltar a ter qualidade de vida. O neurologista que agora a acompanha encami-nha-a para um hospital público, afastando desde logo os custos da te-rapêutica que ele mesmo iria sugerir. Capuchos seria o escolhido, com a devida indicação de máxima urgência na aplicação da terapêutica. Havia apenas um senão – tratava-se de um medicamento órfão, ainda não disponível em Portugal. “Era necessária uma autorização especial,

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que eu continuo à espera – há um ano e tal” confidencia-nos Cláu-dia. Entre orçamentos e burocracias, a jovem aguarda, expectante, o medicamento milagroso mas, enquanto tal não acontece, sujeita-se à terapêutica geral aplicada às miastenias: “Faço o Imuran e o Mestinon. Todos os meses faço imunoglobina, 15 frascos, no hospital de dia dos Capuchos, no serviço de neurologia, que é fantástico” exclama.

Cláudia continua a aguardar pelo seu órfão e, apesar da sua ac-tual medicação apenas lhe atenuar o problema, ela não desiste em recuperar a vida. “Durante as duas primeiras semanas a coisa corre bem, a partir daí começo a ter desequilíbrios constantes, perda da força, enfim fico de rastos”. Antevendo o seu filme, Cláudia arranja verdadeiras estratégias, qual Roberto Benigni em A Vida é Bela, para que, pelo menos enquanto não tiver dores, voltar a ser independente. “Tento organizar a minha vida de modo a fazer tudo o que preciso nessas semanas”. E assim vai tendo um pouco da sua vida de volta. Das compras, agora acompanhada pelo marido, à esteticista onde in-siste em ir todos os meses, passando pelas verdadeiras estratégias de limpeza, tudo na vida desta jovem é agora suado, muito suado, mas sempre atingindo, no final, o doce sabor da vitória: “tudo que faço é uma conquista. Este ano decidi fazer a festa de anos da Madalena. Sentada, fiz a ementa toda! Estava já no último dia de tratamento e, apesar de ter feito tudo a muito custo, consegui!” afirma em tom de glória aquela que nos garante ser muito exigente consigo própria e ter um medo terrível da dependência que sente, um dia, poderá ser total. Por isso, evita voltar ao trabalho ou tentar realizar tarefas que envol-vam a ajuda de terceiros. Um dos seus grandes feitos, uma habilidade recentemente reconquistada, foi a condução. “Já comecei a conduzir. É uma vitória. É uma sensação de liberdade!”, brada Cláudia.

Recuperar forças foi o que motivou, recentemente, Cláudia a pas-sar uns dias de férias na praia com a filha e o marido. Apesar de não ter nadado como uma sereia, como seria a sua ambição, em virtude de o tratamento estar praticamente no final, com a ajuda de todos Cláudia ganhou energias e até já se sente com forças para dar alento a outros… “Costumo equilibrar a minha situação, lembrando-me que existem

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situações muito piores e mais graves. O mês passado, quando fui ao tratamento, estive 15 dias com um grupo muito bom e estava lá uma senhora com uma doença neuromuscular, com 25 anos, que estava paralisada. Aí eu disse-lhe que há um ano atrás eu também não anda-va e hoje, felizmente, já consigo”, lembra vitoriosa. A conversa é inter-rompida por Madalena que, querendo mostrar a coragem da mamã, nos vai buscar todos os trabalhinhos que ela já fez para a escola. A seu lado, a avó, uma mulher marcada pela doença da filha e do marido, la-menta a sua neta ter de passar por estas privações que a levaram, inclu-sivamente, a ser acompanhada por uma psicóloga na escola. Também para esta pequena grande mulher os sofrimentos e pequenas conquis-tas são vitórias: “Quando faço os tratamentos a Madalena pergunta: vais fazer isso que é para pegares-me ao colo em pé? Não tenhas medo mãe que eu estou aqui. Quando vou à escola é uma festa. Ela vive intensamente es-tas questões”, recorda a mãe orgulhosa do seu maior projecto de vida. Tanto, que neste momento a ideia de ter mais uma criança enche-a de esperança no futuro: “o meu maior sonho era ter outro filho!”, garan-te agora lembrando que, apesar da doença, não se irá deixar derrotar. Para isso, faz do seu dia-a-dia um conjunto de sucessivos projectos, com pequenas manhas reinventadas, de forma a recuperar tudo aquilo que já teve – mobilidade, alegria e vontade de viver. “Todos os meses a gente aprende com os outros doentes do hospital. Esse elo de amiza-de que se cria é muito importante. Não se consegue fazer tudo, faz-se mais devagar. Acima de tudo, é reaprender a viver” conclui.

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Capítulo VIII

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É numa pequenina casinha da zona ribeirinha que testemunhá-mos a vida difícil, cruel, mas cheia de amor de Pedro e Mariana, dois irmãos bafejados pela mesma raridade. A seu lado está, desde sempre, a mãe, uma mulher a quem a vida sempre fez caretas mas que, como que movida por uma força divina, se reergue das cinzas, qual Fénix, e segue em frente – um dia de cada vez… “O meu único objectivo de vida, neste momento, é tentar levar o barco em frente e fazer tudo o que é preciso ser feito!” confessa Maria José, com um ar cansado e mei-go. A seu lado está, no exíguo espaço a que, gentilmente, chamaremos cozinha, a auxiliar da Santa Casa da Misericórdia, entidade solicitada para a ajudar na árdua tarefa de cuidar de duas crianças doentes, mui-to doentes, que têm de ser alimentadas através de sondas e para quem a vida corre… serenamente.

Anos de convivência com a situação de dependência do marido e depois de uma filha, aparentemente, sem qualquer tipo de problemas, nada podia preparar Maria José para a espécie de calvário que iria experien-ciar. “Não tive qualquer problema com a

Sininho e Peter Pan

Mariana e Pedro

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Mariana durante a gravidez e o parto foi normal. Tinha 25 anos. Nada indiciava que ela tivesse problemas… começou a andar aos quatro meses…” reflecte Maria José. Porém, já no infantário, aos quatro anos, os problemas da pequena Mariana começavam a evidenciar-se e a mãe é então chamada à atenção para o facto. “A Mariana andou em estudo durante anos. Primeiro fomos ao médico de família, este passou-a para o psicólogo e este achava que havia ali alguma coisa… Andei também durante anos na medicina pediátrica do hospital! Fez testes a tudo e nada acusava nada. Chegou a fazer os cariótipos e era tudo inconclusivo” observa.

Aos sete anos, Mariana tem a primeira convulsão epiléptica. Face ao inexplicável sintoma, a pediatra da pequenita fada decide transfe-ri-la para os colegas de Neurologia, onde esteve a ser acompanhada durante algum tempo.

“Em 2001 a doença foi diagnosticada a um tio avô da linha pa-terna. Uma cunhada falou-me disso e eu, desconfiada, pedi para me dizerem que doença era. Apresentei-me na Estefânia e falei sobre a doença à médica que me perguntou que raio de coisa era essa. Ela desconhecia…” diz estupefacta aquela que viria a ser essencial na ob-tenção do diagnóstico correcto da sua filha. Afinal, aquela que não possuía conhecimentos científicos, mas que tinha um sexto sentido apuradíssimo deu à médica a chave do diagnóstico. “A médica pediu então análises genéticas ao Porto e confirmou-se o diagnóstico. Mo-mentaneamente, senti um alívio… Pelo menos já sei o que eles têm. Porém, depois, só pensei – e agora? O que é que isto representa? Nem os próprios médicos sabiam” ostenta Maria José. Fala-nos agora no plural, referindo-se ao seu benjamim, vítima da mesma patologia.

Pedro é o mais pequenito. Apesar de não ter apresentado inicial-mente crises fortes, mostrava alguns sintomas da doença que viriam a ser confirmados após o diagnóstico da irmã. Ainda assim, o fac-to é que Pedro desde sempre manifestara sintomas, não entendidos como tal pelos médicos, mas que na realidade correspondiam a uma raríssimas patologia denominada Atrofia-Dentato-Rubro-Pálido--Luisiana. “Fui chamada a Santa Maria onde um grupo de médicos

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me explicou então o que vinha a seguir. Ai foi tudo abaixo!” recorda, desesperada Maria José.

Sentindo que os seus filhos precisariam desesperadamente de si e de toda a sua atenção, Maria José decide dar um novo rumo à sua vida e parte com os filhos… para um novo começo! “O diagnóstico dos meninos apenas apressou aquilo que não estava bem, já há bas-tante tempo! A sensação que eu tinha é que só eu é que percebia o problema… Cheguei a ser acusada pela família de ser louca! Agarrei nos meus filhos e abandonei o meu marido e a casa… Mudei-me para outro lugar, para tentar começar tudo de novo, sozinha com eles! Tive, na altura, a ajuda da Santa Casa que me ajudou a pagar a renda”. Po-rém, para uma mulher sozinha, dois filhos nos braços, duas doenças raríssimas, não foi nada fácil acreditar… Acreditar que seria capaz!

“Tive de renascer das cinzas. Tive uma depressão gravíssima, a família abandonou-me… é para esquecer! Estão de costas voltadas… Há muita mágoa, muita coisa que se tenta enterrar bem fundo mas que, de vez em quando, vem ao de cimo! Perdi imenso peso, não dor-mia…” relembra Maria José. Porém, contra tudo e contra todos, esta grande mulher conseguiu o seu objectivo – que os filhos tivessem sempre o que de melhor lhes pudesse proporcionar: “eles têm esta-do no externato Alfredo Binet, mas têm de o abandonar porque já não têm condições para eles. Neste momento, estão matriculados no Colégio das Descobertas, que já tem outras competências. Porém, no caso da Mariana, como já não tem idade escolar, terá de pagar 420 eu-ros por mês, não sei muito bem o que vou fazer” afirma, lamentando o facto de os pais destas crianças estarem completamente desprotegi-dos. Tendo, na sua grande maioria, de abandonar os seus empregos para cuidar destes meninos, estes pais heróis pouco podem recorrer à segurança do Estado. Da medicação, não totalmente comparticipada, aos colégios ou ao facto de não trabalharem para cuidar deles e, por isso, nada receberem, a verdade é que por cá, os pais destes meninos nem sempre recebem a atenção desejada…

Na pequenina sala ao lado, Pedro e Mariana, lado a lado, assistem ao famoso Faísca McQueen, um pequenino carro animado que faz as

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delícias de Pedro e provoca alguma agitação em Mariana. Maria José, olha agora com orgulho as suas alegrias, o seu Peter Pan, sobranceiro àquela a quem, carinhosamente, achámos por bem e por respeito ao original de James Matthew Barrie apelidar de Sininho. “O Pedro ado-ra o Faísca McQueen e a Mariana ver filmes, especialmente aqueles que têm casais aos beijinhos. Delira com a Anatomia de Grey!” diz, gracejando, Maria José. Afinal, eles são a razão da sua existência, o seu sopro de vida! Tanto que, na semana anterior à nossa presença, esta mãe coragem ofereceu a Pedro o único presente que lhe era possível proporcionar mas que, seguramente, faria o filho radiante – uma fes-ta de aniversário. “Apesar de já não dizerem nada, vocalizam apenas, mas entendem tudo o que dizemos” salienta Maria José.

“Neste momento, neste país sobrevive-se”, dispara Maria José. Assim é… esta mamã é realmente uma sobrevivente, mais uma, do imenso role de mães-coragem que asseguram, da forma mais eficaz e efectiva, que os seus filhos terão tudo aquilo a que elas possam ter acesso. “E vou conseguindo… O agravamento da doença deles impe-de-me de trabalhar a tempo inteiro. Neste momento faço apoio domi-ciliário… Esta doença é imprevisível porque eles estão estabilizados durante um tempo e, de repente, ficam piores” comenta Maria José como que a recordar a necessidade, urgente, de ajudar os cuidadores, não só a nível psicológico mas, muito principalmente, a nível efectivo.

O tom mais grave que a saborosa conversa estava a tomar foi, de súbito, quase providencialmente, interrompido. A Mariana queria juntar-se à estória. Afinal, ela e o seu bravo irmão, companheiro de tantas aventuras, eram os verdadeiros heróis. Eles são o motivo de ali estarmos, a partilhar lágrimas, abraços e forças. Na pequenina sala, Mariana está em êxtase perante a objectiva da nossa fotógrafa, curio-samente, também ela uma Mariana. Sentada, enroladinha a Pedro, está a nossa pequena fada. Para ela, que conheceu a alegria de correr, embora seja uma recordação distante, deve ser realmente divertido ser o rosto das nossas imagens. “A Mariana é muito sociável e tem um mau feito tremendo. É muito teimosa e muito senhora de si. Sempre teve uma personalidade muito vincada. O Pedro é o oposto. É o meu

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Peter Pan. Uma criança extremamente meiga. É o meu anjinho” afir-ma orgulhosamente Maria José enquanto olha, embevecida, os seus grandes orgulhos.

Para esta mãe o dia de hoje é que conta e, cada dia passado com a Sininho e o Peter Pan é, naturalmente, mais uma vitória. “Eles con-tinuam a ser acompanhados na Estefânia…” revela triunfante Maria José, apesar de não esquecer nunca a doença. Até porque ela teima em aparecer. Existe, pelo menos, mais um caso na família: “O pai dos meninos teve sintomas a partir dos 40 anos. Como teve um passado de toxicodependência, ele ligou sempre os primeiros sintomas a esse facto e nunca à doença”. Porém, aquela que mais dor lhe causa é a que, por força das circunstâncias, se quis associar à dúvida. A filha mais velha de Maria José, há muito dela afastada em virtude da separação, pode sofrer do mesmo problema… Hoje, com 23 anos, ela não apre-senta quaisquer sintomas da doença, do foro genético. “Ela na altura fez testes mas nunca quis saber o resultado” confessa a mãe, ainda expectante. Maria José prefere acreditar que ainda é possível que, nos meandros de uma vida tão difícil e confusa, ela ainda possa vir a ser feliz, junto dos seus filhos. “Limito-me a viver o dia a dia, da melhor forma que conseguir, para assegurar o bem estar dos meus filhos, en-quanto cá estiverem”.

É assim que falam os melhores pais do mundo. Aqueles que são lu-tadores, vitoriosos, gentis, carinhosos e, acima de tudo, perseverantes!

Essa arma, ninguém lhes pode tirar!

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Capítulo IX

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Com apenas 6 anos de idade, Matilde é já uma menina de sucesso! Não em termos da fama ou glamour mas tão somente em forma de per-severança e espírito lutador. É nos cuidados intensivos da urgência pedi-átrica do hospital de São João, no Porto, que a vamos encontrar, envolta nos braços do Hipnos, o deus do sono que, num embalo forçado, tenta ajudar os médicos a recuperar a saúde desta pequenita guerreira. “A Ma-tilde está internada por causa de crises convulsivas” esclarece-nos a mãe, Gabriela, narradora desta saga heróica. Em Novembro do ano passado, Matilde teve a sua primeira crise convulsiva, que durou cerca de 30 minu-tos. Esporádicas no início, as crises passam a ser diárias, com intervalos de segundos. “Por causa dessas crises ela esteve internada em Fevereiro, em Maio em Junho e voltou em Agosto”, refere Gabriela adiantando que, pouco antes do último internamento, a parte respiratória de Matilde ficou também afectada o que aumentava o número de crises e estas, por sua vez, não lhe permitiam o fôlego da vida. No dia 20 de Setembro, após um exame no serviço de otorrino deste hospital, os médi-cos constataram que a pequena Matilde tinha

A bela adormecida

Matilde

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um edema muito grande e, por isso, não conseguia respirar. Apesar de ser o seu dia de aniversário, Matilde é obrigada a festejar junto da equipa mé-dica, da pior maneira possível: “tentaram pôr-lhe uma máscara, mas ela fazia paragens respiratórias cada vez que o faziam e, apesar de terem sido incansáveis, não conseguiram! Tentaram então colocá-la a dormir para descansar um bocadinho. De manhã acordou, ainda se riu para mim, dei-lhe a minha mão e ela puxou-ma, com tanta força e… apagou. Daí foi para os cuidados intensivos, foi entubada e induziram-lhe o coma”. Aquela que era para ser uma solução temporária acabou, eventualmente, por se prolongar. Após cinco dias de descanso forçado para que as crises passassem e as ondas cerebrais voltassem à sua actividade regular, os mé-dicos apercebem-se que o seu esforço estava a ser em vão. “Quando lhe fazem o electroencefalograma, verificam que o cérebro estava em descar-ga constante. Ela não estava a descansar nada e tiveram que lhe aumentar a escala do coma (Glasgow)”, recorda a mãe entristecida.

DiGeorge é a terrível e rara síndrome, caracterizada por uma delec-ção de uma parte do cromossoma 22, e que levou Matilde a esta situação tão ingrata. A terceira filha de Gabriela, nascida de uma gravidez tar-dia, nunca demonstrou a sua inconstância cerebral até às 38 semanas de gravidez: “achei que estava tudo atabalhoado na minha barriga e pedi à médica para ma tirar. Parecia que andava aos trambolhões na barriga. Deduzo agora que poderia ser os espasmos que fez quando nasceu, em que se esticava toda, e que provavelmente na barriga também o faria e que como não tinha espaço para se esticar me magoava” lembra agora a informada mãe. Apesar do baixo peso e da fenda palatina, os pediatras desvalorizaram a situação da Matilde e afiançaram à mãe que tudo se iria resumir a uma pequena cirurgia. Porém, Gabriela mostrava-se inquieta: “dentro da incubadora, ela não reagia bem ao toque. Não lhe podíamos tocar que ela ficava muito vermelha e dura… fazia um arco! Acho que os médicos sabiam o que se estava a passar, mas não havia exames que comprovassem e eles então não dizem nada”, confessa.

Aos seis meses de idade, Matilde tem a primeira crise convulsiva e, nas urgências do hospital do Porto, fazem um despiste para meningi-te cujos resultados vêm negativos. Não sabendo a origem daquela crise,

A belaadormecida

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os médicos encaminham Matilde para a consulta de desenvolvimento e aqui, após a realização de uma ressonância magnética, os profissionais de saúde confirma uma polimicrogiria bilateral. “Eles acharam logo que ti-nha que ver com uma síndrome qualquer, mas como não sabiam o que era, integraram-na nas paralisias cerebrais”, explica a mãe. Porém a experi-ência e intuição de uma mãe de dois filhos, não deixariam Gabriela satis-feita com aquela situação. Consulta após consulta, Gabriela insistia para a raridade da menina, exigindo aos médicos diversos estudos de cariótipos, à procura de uma resposta para a aparente agonia da sua menina. “Notava que a Matilde era diferente porque ela não se mexia praticamente, não segurava a chupeta, não agarrava nada. A gente deitava-a e conforme a deixávamos, ali ficava. Havia um gesto que ela fazia com a língua, logo que nasceu, que eu chorava sempre que isso acontecia. Não eram os pequeni-nos defeitos como a orelhinha, que agora nem se nota, os dedinhos de um dos pés todos encavalitados, os da mão encolhidos… não! Nada disso me preocupava! Era aquele gesto da língua que me levou logo a pensar em algum atraso mental, algo mais profundo. Eu tinha razão, infelizmente!”.

Apesar de não conseguir expressar os seus sentimentos através do discurso oral, Matilde não deixa de fazer valer os seus interesses recor-rendo aos seus sentidos. “O olhar da Matilde diz tudo! Consigo per-ceber o que ela quer, transmite se está ou não contente. É uma criança muito expressiva. Ela não fala, mas comunica tudo com os olhinhos, o sorriso, diz que não com a cabeça. Ela percebe muita coisa…”, afiança a mãe que se sentiu tantas vezes ressentida por os médicos não acredita-rem naquilo que ela experiencia, diariamente. “Os pediatras acham que as mães julgam que os seus filhos percebem mais do que aquilo que na realidade percebem. Mas os pais é que os entendem!”, garante Gabriela com um sorriso de esperança.

Foi justamente esta motivação, o acreditar na expressão terna da sua filha, que encorajou Gabriela a não se deixar abater nem vencer por todas as adversidades que viria a experimentar. Apostada em recuperar a filha daquela síndrome, tão misteriosa que os médicos pareciam não conseguir descobrir o nome, Gabriela coloca a filha em tudo o que são consultas e sessões terapêuticas. “Andei no Centro RarÍSSIMO da Maia

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com ela e foi o período em que notei mais melhorias. Fiz hipoterapia mas tive de deixar porque era ao ar livre e não dava pela parte respira-tória. Fiz cinesoterapia no particular mas tive de desistir”.

Este abster em nada teve a ver com a falta de motivação de Gabriela, mas sim com a insustentável situação financeira que a mesma acarreta-va. “As ajudas são uma desgraça. O meu marido ganha um bocadinho mais que o salário mínimo. Não existem ajudas para nada. O subsídio de deficiência é de 55 euros – parece que estão a brincar! É fazer pouco das famílias! Ela tem 95% de deficiência. A ajuda à terceira pessoa é 80 euros”, afirma indignada. Decididas a não se deixarem vencer por este tipo de contrariedades Matilde e a mãe criam uma associação, não só para fazer valer a sua voz, mas a de tantos outros meninos, na mesma situação. “Se não formos à luta, não temos nada para os nosso filhos”, garante Gabriela. Foi justamente essa luta que a levou a conseguir um generoso donativo por parte de uma empresa que lhe ofereceu o pri-meiro carro de transporte, facilitando as deslocações de Matilde, além de uma cadeira de banho e uma cadeira para o infantário. Apesar dos recorrentes pedidos efectuados à Segurança Social e à DREN de apoio à sua menina, a resposta foi sempre peremptória – não existiam verbas!

Os apoios técnicos são, aliás, uma das muitas dores de cabeça desta mãe e que dificultam constantemente o desenvolvimento da pequena Matilde. “Ainda não tive uma ajuda técnica que fosse até hoje. Prescreve-ram-me um carro para a Matilde, porque a médica disse-me que a próxi-ma vez que eu aparecesse na consulta com o carro antigo, não consultava a menina porque ela estava a ficar torta. Ela tem razão, só que eu não te-nho dinheiro para comprar um!”, atira Gabriela. Afinal, os preços dispo-níveis no mercado não se compadecem com o magro salário que o mari-do de Gaby traz para casa e que tem de sustentar a família inteira. “Tudo o que é apoios técnicos tem uns preços que eu acho que são um exagero. É ganhar dinheiro à custa da desgraça dos outros. Não se justifica uma cadeira de banho custar para cima de 500 euros, a cadeira para o carro três mil e tal euros. Uma cadeira eléctrica custa 15 500 euros – um carro é mais barato e é para lazer e leva cinco pessoas. Estes meninos não têm direito a deslocar-se como os outros?”, questiona Gabriela indignada.

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Apesar de só em Janeiro de 2011 ter sabido, finalmente, o nome da patologia da sua filha, através de um estudo genético aprofundado, Ga-briela vê nos profissionais de saúde e terapeutas os seus principais alia-dos e grandes amigos. Foi a terapeuta de Matilde, através de um catálogo da Toys“R”Us, que arranjou uma solução mais económica para a meni-na se deslocar de carro com a mãe. E médicas, muito especiais, deram alento e esperança a esta mãe. “Tenho apanhado gente muito boa no hospital de S. João. Todos os que lidam connosco têm sido maravilho-sos. Sinto que são meus amigos e nos apoiam. Existe uma médica aqui nos cuidados intensivos que me transmite uma segurança tão grande e que esteve a lutar pela minha filha até onde foi preciso! E o turno dela já tinha acabado! Ela chorou comigo!” recorda Gabriela, visivelmente agradecida. Também a identificação de outra destas profissionais com a situação de Matilde deixou Gabriela menos desamparada. “Houve um dia em que eu me sentia mais em baixo e a médica passou e eu disse--lhe – sabe, só nós os pais é nos entendemos; ao que ela respondeu – não é bem assim… eu também tenho um menino como a sua filha. Parece até que é impossível um médico ter um filho assim…”, exclama Gabriela.

Efectivamente, a doença é uma situação à qual todos os seres hu-manos estão expostos. E os médicos não são diferentes. Ainda assim, apesar da situação única de Matilde, que ao escrevermos estas palavras ainda continua o seu sono de reparação, em virtude de ter contraído um vírus hospitalar que obrigou, de novo, à indução do coma, todos temos fé na grande vitória de Matilde. “Já não me importa nada, só quero é que esta rapariguinha fique bem! Temos de lutar mesmo dan-do a cara à vergonha, fazendo feirinhas, o que for preciso! Vale sempre a pena. Aprendemos muito com estas crianças!”, conclui Gabriela.

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Capítulo X

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Olhar doce, simpatia e curiosidade são alguns dos muitos atri-butos da pequena Maria, uma menina especial que assume a música como forma de expressão. Aos nove anos de idade ela é já uma devota dos sons, quem sabe fruto da sua incapacidade de se exprimir de forma pedagogicamente correcta. Porém, a ausência do verbo é perfeitamente dispensável na sua narrativa já que o seu rosto expressionista comunica na perfeição cada momento da sua vida, cada emoção que partilha com a sua família, também ela muito peculiar e única.

Irmã da Margarida, actualmente com 13 anos, Maria é a segunda filha de um casal da zona Norte e que veio ao mundo na sequência de uma gravidez perfeita, com um desenvolvimento intra-uterino normal e um parto, também ele normal, apesar de se tratar de uma cesariana. Até ao ano de idade, Maria desenvolveu-se tal qual a irmã, deixando os jovens pais felizes e a acreditar no futuro de êxito de ambas. Po-rém, a partir dessa idade, a bela Maria viria a apresentar algumas particularidades que des-pertariam, nos já experientes pais, algumas dúvidas. “Começámos a achar que ela tinha

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Maria

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problemas. Depois verificámos que ela deveria ter algumas compe-tências que, na realidade, não tinha e começámos a pedir opiniões. As coisas foram-se agravando. A Maria não caminhava e, a nível de comu-nicação, deixou de sorrir para nós, de nos olhar nos olhos e começou a desenvolver comportamentos semelhantes ao dos autistas. Nós tínha-mos a experiência dos primos e da irmã mais velha e era evidente que algo se passava” refere Paula, a mãe.

Entre visitas a médicos e buscas diversas, na tentativa de obter o diagnóstico correcto para a particularidade da sua bebé, Paula volta a engravidar. António era o seu nome. Falamos agora no passado, não por mera liberdade poética, mas pelo facto de António ter sido também um bebé muito especial que acabaria por partir com apenas 20 meses de idade, vítima da mesma patologia que afectava a sua irmã. Por ser tão rara no sexo masculino, a doença assume nos meninos uma forma particularmente grave. Tão grave quanto, eventualmente, incompatível com a vida. “Chegámos ao diagnóstico do António por causa da Ma-ria. Ele foi diagnosticado na Genética do Centro Hospitalar de Coimbra onde fizeram a recolha para procurar Rett e Angelman. Entretanto, re-cebemos o diagnóstico da Maria e chegámos facilmente ao diagnóstico do António…”, recorda amargurada Paula.

Finalmente, e após um tão doloroso diagnóstico que anunciava a partida do seu bebé, Paula vê-se a braços com uma bebé que, com a mes-ma patologia, necessita agora de toda a sua atenção, forçando-a desde logo a colocar de lado a sua dor, para pensar no bem estar daquele ser frágil. Não sem antes fazer a devida homenagem à sua pequenita estre-lita – o António. “São muito raros os meninos com Rett. Eles chegaram inclusivamente a participar de um estudo, desenvolvido pela Dra. Teresa Temudo, no hospital de Santo António. Ela fez na altura um rastreio a nível nacional e o António era o único rapaz no nosso país. O atraso do desenvolvimento do António foi muito mais precoce – ele não tinha es-tas estereotipias das mãos, não chegou a desenvolver a motricidade fina porque era muito pequenino quando se detectou a doença. Não se con-seguia perceber!” explica, adiantando desde logo, e de sorriso estampado no rosto, que afinal Maria até acabou por ser a sua recompensa, no meio

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de tanta dor. “A Maria tem uma síndrome de Rett boa. Não tem qualquer patologia associada, a não ser a epilepsia, muito comum em Rett, mas que está perfeitamente controlada, e sempre foi muito ligeira. Sendo uma menina rara, é uma criança muito saudável”, afiança-nos.

Efectivamente, a julgar pelo dinamismo com que se movimenta pela sala de espera do Centro RarÍSSIMO do Porto, onde decorre a nossa conversa, nada diz da sua diferença. A Maria é, afinal, uma criança que gosta de rir e explorar novos mundos. “A Maria é muito sociável. Faz um sucesso em todo o lado porque é muito simpática. É uma criança feliz – está-se sempre a rir. O facto de ser curiosa leva-a a procurar as pessoas e gosta de estar no meio de toda a gente. Não gosta de estar em casa fecha-da. Nos dias de Inverno, começa a ir constantemente para a porta, a pedir para ir à rua”, garante a mãe assegurando que “tenho muita sorte. Das meninas Rett que conheço, poucas caminham como ela. Habitualmente, a Maria está sempre muito bem disposta. Se vê gente conhecida fica feliz. Quando está muito tempo fora de casa, quando regressa, ainda estamos a chegar e ela já está muito feliz. Sempre que vai fazer algum coisa de que gosta ela fica feliz. Fica irritada se não a deixarmos fazer o que quer ou se está presa em casa mas, de resto, é muito fácil de aturar”, confessa Paula olhando, afectuosamente, para a sua pequena campeã.

Não existe terapêutica para Rett e, como tal, a adaptação familiar destas crianças é constante, com frequentes recursos a terapia de reabi-litação e estimulação permanente. “Como é um problema neurológico degenerativo, temos de estar sempre atentos para não deixar evoluir determinado tipo de situações – a escoliose ou os pés com má postura. Trabalhamos também muito com ela a nível da comunicação. Ela faz musicoterapia, que é excelente para ela. Aliás, está descrito que este tipo de terapia funciona muito bem nas crianças com Rett. Ela gosta muito de música e é uma forma de lhe estimular a comunicação e também o desenvolvimento cognitivo, embora estas crianças apresentem graves problemas nessa área”, esclarece Paula.

Acreditando no sucesso da pequena Maria, os pais tentam fornecer--lhe todos os recursos disponíveis para a superação das suas dificuldades. “Faz fisioterapia, hidroterapia, musicoterapia, terapia da fala, tudo que a

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possa ajudar a ter uma boa qualidade de vida e a readquirir alguma coisa, se é que é possível… Nós acreditamos sempre que sim! Neste momento, estamos apostar mais na terapia da fala porque ela está num momento comunicativo muito bom. Ela comunica essencialmente com o olhar e, nesse aspecto, é muito rica. Mas notamos agora que está muito aberta ao mundo exterior e às pessoas… Temos de aproveitar este momento”!

Matriculada numa escola regular, onde frequenta o terceiro ano do ensino básico, Maria desenvolve diariamente as suas competências, numa unidade de multideficiência, integrada no estabelecimento de en-sino. “Está muito bem integrada, os meninos gostam muito dela, a pro-fessora faz uma boa integração e as pessoas da unidade são espectacula-res. Tenho tido imensa sorte nesse aspecto…”, confirma a mãe sorrindo e garantindo que não foi apenas o acaso que proporcionou a Maria um acompanhamento tão eficaz. “Bom, nós também temos procurado!”, gra-ceja Paula. É justamente esta procura que tem, nos últimos tempos, an-gustiado esta mãe dedicada, que pensa já no que a espera com a inevitável mudança de escola, que ocorrerá já no ano que vem. “Será mais um ano de procura e outra luta para conhecer as pessoas que poderão ficar com ela, para tentar que ela aceda a tudo o que tem direito. Todos os anos, no início do ano lectivo, existem problemas – ou a DREN ainda não atribuiu verbas ou a unidade não tem auxiliares…”, aponta Paula.

A família é um dos suportes mais fortes de Maria, que tem na irmã, Margarida, uma companheira das suas brincadeiras, nem sempre enten-didas da melhor forma. “A Margarida encara esta situação com muita na-turalidade, porque nós também o fazemos. Nunca forçamos a explicar as coisas, mas respondemos sempre ao que ela perguntava e sempre encará-mos as coisas de uma forma natural. Não sei se se poderá chamar confor-mismo mas, na realidade, é o que temos! Às vezes chateia-se com a irmã, ou porque ela lhe puxa o cabelo ou lhe estraga o que está a fazer, mas vai crescendo e está a desenvolver uma espécie de espírito maternal. Nós também a fazemos ver que não são só desvantagens! Por exemplo, quan-do fomos à Disney tínhamos prioridade por causa da Maria. A forma como encaramos isto é muito positiva: o que não tem remédio, remedia-do está. Portanto só temos de seguir em frente”, refere Paula alegremente.

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Na realidade, a forma como esta mãe e a restante família encaram as pequenas diferenças de Maria é absolutamente louvável. “Sempre tentei integrar a Maria. Há determinados momentos em que vivemos em função dela, como as férias, por exemplo. Sempre gostámos de via-jar, mas tentamos sempre dar a volta às coisas”, salienta Paula. Afinal, é deste mesmo engenho que depende a evolução de Maria. “O facto de tentar arranjar soluções para comunicar, para brincar e para nos poder-mos organizar fez com que eu desenvolvesse o espírito criativo. Acaba-mos por relevar determinado tipo de coisas. Focamo-nos nos aspectos mais importantes e deixamos para segundo plano aquilo que não é im-portante” afiança a mamã.

Ter um filho especial muda, sem dúvida, a personalidade e atitude perante a vida de todos os que rodeiam estas crianças. Sobre este aspecto, o relato desta mãe, bafejada duas vezes por uma sorte indesejada, parece--nos um verdadeiro exemplo de vida! “Acabei por ficar mais autoconfian-te. Deu-me mais força, não só no que diz respeito à Maria e ao António, mas até mesmo a nível profissional. Se eu sou capaz de ultrapassar um problema destes… Antes de ter estes meninos, achava que se algum dia isto me viesse a acontecer eu não seria capaz. Se perdesse um filho não sobreviveria… No entanto ultrapassei, sou feliz, tenho uma família fan-tástica! Sinto-me uma vencedora! O facto de eles serem especiais, já nos torna a nós também especiais, porque temos de lutar por eles! Há que andar para a frente e não nos agarrarmos ao miserabilismo e à tristeza. O facto de conseguirmos ajudar os nossos filhos é uma prova de supe-ração de nós mesmos. Isso é a maior lição de vida! As vitórias da Maria são verdadeiras medalhas de ouro olímpicas!”, conclui triunfante!

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Acondro- plasia

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Acondro- plasia

Capítulo XI

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Inteligente, perspicaz e diligente, Carolina, de 32 anos, é a pro-va que o talento de uma mulher não se mede aos palmos. Bióloga de formação, com um doutoramento em ciências biomédicas, Carolina trabalha há 9 anos na área de genética, onde começou por explorar os mistérios da enxaqueca, estando neste momento completamente absorta e fascinada pelos genes da Parimiloidose, a vulgar doença dos pezinhos que se acredita ter os principais focos em Portugal. “Ainda há muito por descobrir na Paramiloidose, embora já exista medica-mento, diagnóstico genético e pré-natal. Temos feito, no entanto, inú-meros avanços. Estamos a tentar estudar a origem da mutação e saber como se espalhou” refere, com entusiasmo, a geneticista, acabada de regressar do Canadá onde foi apresentar um poster sobre a temática, durante um congresso internacional.

Irradiando uma simpatia natural e com um sorriso verdadeiramente contagiante, Carolina é um verdadeiro exemplo de vida. Uma mulher para quem a diferença serviu apenas de incentivo à superação dos seus próprios êxitos. Diagnosticada aos 17 dias

A genialidadedos genes

Carolina

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de vida com uma doença rara, Carolina conseguiu sempre exceder as expectativas que lhe anunciavam uma vida de dor, fruto da sintoma-tologia da doença: escoliose acentuada, riscos acrescidos de fractu-ras, infecções respiratórias, otites e até surdez, fazem parte do quadro clínico da maioria dos acondroplásicos. Porém, Carolina foi bafejada com a ventura: “felizmente, fui sempre uma criança muito saudável!” afirma triunfante. Porém, a reduzida estatura, uma das características mais visíveis e, por isso mesmo mais estigmatizantes, viria a recor-dar Carolina, diariamente, da sua condição, nomeadamente quando a sociabilização começou a ser uma situação inerente ao seu percurso de vida. “No infantário percebi que era diferente! Os miúdos podem ser mauzinhos, apesar de nunca ter tido problemas graves. Era mais os miúdos apontarem e olharem” desvaloriza Carolina. Porém, para a comunidade escolar tratava-se efectivamente de uma situação inau-dita e, como tal, anualmente a mãe da pequenita deslocava-se ao esta-belecimento de ensino e explicava, como só uma mãe sabe fazer, que a sua filha deveria de ser protegida dos preconceitos sociais, eventu-almente discriminatórios nestas idades. “Nunca mais me esqueço de uma situação de um miúdo que me veio pedir desculpa. Isso marcou--me um bocadinho!” comenta, reflectindo, a nossa perspicaz inter-locutora. Efectivamente, e apesar de tentar desvalorizar as eventuais discriminações que possa ter sofrido, Carolina não esquece que, na verdade, teve de arranjar uma série de mecanismos de defesa para provar a todos que era um ser válido, munido inclusivamente de uma inteligência tantas vezes superior que, frequentemente, a colocava na lista dos melhores alunos da escola. “As pessoas quando têm alguma diferença tentam sempre arranjar um mecanismo de defesa. O meu foi sempre ser muito sociável, estudar muito e trabalhar muito! As pessoas com deficiência têm sempre mais a provar. É um problema de nós próprios. O medo de falhar é maior! É o desejo de provarmos a nós próprios que somos capazes”, reflecte Carolina.

Porém, esta ânsia de vencer tem as suas contrariedades. “A nível de relacionamentos é sempre mais complicado. Acho que depende tudo da nossa auto-estima. Durante muitos anos, se calhar não tive a

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atitude mais correcta, não tive a abertura suficiente para assumir um relacionamento. Se calhar os estudos eram um escape, uma forma de empenhamento! Achei que não estava destinada a isso e arrumei o assunto! A partir do doutoramento, que ocorreu em 2009, eu disse – agora tenho de cuidar da minha vida! Eu vivo muito por objectivos e faltava-me qualquer coisa. Descobri então que era eu mesma! Senti um vazio e a partir daí comecei a cuidar mais de mim! Fiquei muito mais aberta ao mundo e a conhecer pessoas!”, afiança Carolina.

Na realidade, a vida desta pequena investigadora tem sido pauta-da pela luta constante em atingir os objectivos que sempre se impôs e a tomar decisões impetuosas que viriam a mudar o seu destino… sempre para melhor! Sonhando, desde sempre, com a profissão de professora, foi no terceiro ano do curso de Biologia que Carolina teve de tomar a sua primeira grande decisão: “tive de escolher entre os ra-mos educacional e o de investigação. Era uma coisa definitiva. Come-cei então a pensar se seria boa ideia ser professora de secundário. Tive de ser realista e pensar eu podia ter sorte e calhar com uma turma fantástica ou… não!”, lembra Carolina. Foi justamente esta enigmáti-ca probabilidade e a sua própria raridade que fez Carolina optar pela vertente de investigação, na área da genética. “Durante uma férias constatei que nunca me tinha interessado em perceber qual o gene da Acondroplasia ou onde se situava. Resolvi então pesquisar e acabei por vir parar ao IBMC (Instituto de Biologia Molecular e Celular). Tudo isto me tem permitido conhecer um pouco mais sobre a minha doença. O meu grupo está muito ligado a doenças degenerativas e raras”, salienta Carolina. Como se de um fado se tratasse, a pequena ambição de Carolina, contrariada pelos destinos da docência, viria agora a ser realizada. “Calhei num grupo de investigação em que a minha supervisora é professora e eu tenho colaborado com ela a dar aulas, mas à faculdade! São de um nível que não me vão incomodar com nada!”, garante-nos.

Apesar de nunca ter dado demasiada importância à sua condição, Carolina reconhece que é necessária uma mudança de valores sociais. Por essa razão, acha importantíssimo o trabalho desenvolvido nestas

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áreas sociais. “Acho muito importante a divulgação que o núcleo de nanismo da Raríssimas faz. Quanto mais chegarmos às camadas mais jovens, melhor. É importante desmistificar, de modo a que as crian-ças percebam que, eventualmente, colegas que venham a ter com este tipo de patologias são crianças normais”, assegura Carolina que não deixa de culpabilizar os médicos por muitas das situações discrimi-natórias porque passam os doentes raros. “Hoje em dia, se a criança sofrer destas patologias consegue detectar-se nas ecografias por causa do tamanho. Acho que os médicos se preocupam muito mais com a parte clínica do que com a humana. A profissão é encarada mais como um estatuto, em vez de uma paixão! Eu gostava que assim não fosse… era importante! A relação médico/doente é fundamental!”, salienta Carolina.

Amante de provocações e apta para mais um desafio, Carolina está neste momento empenhada na conclusão da sua carta de condu-ção. Irónica no seu discurso, lá vai deixando escapar que a primeira aula foi memorável, já que se tornou um misto de pânico e expectati-va. “Tem sido uma aventura! Estou a ter as últimas aulas de condução, num carro adaptado, na única escola do Porto que possui… E não está adaptado directamente a mim, mas a todos os deficientes mo-tores que não podem fazer uso dos pedais e portanto tem todos os comandos nas mãos. Quando a médica passou a declaração disse que os comandos teriam de ser manuais por isso agora terei de comprar um carro assim”, lamenta Carolina antevendo já um novo despique – a compra de um carro adaptado.

Nada nem ninguém parece desmotivar Carolina, apesar de nos confessar que tem muitos momentos de introspecção e sofrimento. Porém, a vida na realidade tem pequenos percalços, tantas vezes trans-formados em verdadeiras desgraças pela nossa auto comiseração. “O estigma parte da própria pessoa. Eu própria passei por essa experiên-cia – o preconceito estava dentro mim! Só em finais de 2009 é que co-nheci alguém como eu”, deixa escapar de sorriso maroto nos lábios a nossa rara genialidade. É esta capacidade de analisar os factos e seguir em frente, de forma racional mas, tantas vezes intuitiva, que permite

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a Carolina conseguir sempre mais e trabalhar muito pela conquista dos seus objectivos. “Durante a vida toda nunca liguei ao facto de ser assim… Uma das minhas conquistas, em termos profissionais, foi o doutoramento e a outra sou eu própria, no sentido de não parar… Quero conhecer mais, aprender mais, ver mais… A minha maior con-quista foi nunca me ter resignado, a nada!”assevera Carolina.

No final da nossa conversa, ficámos rendidos à capacidade de análise e convicções assertivas da nossa interlocutora, apesar de per-cebermos também que Carolina poderá vir a ser mais um génio que procurará no exterior a sua realização profissional. “Temo muito pela investigação em Portugal. Começo a pensar em sair porque é im-portante conhecer outras realidades. Gostava de ir para os Estados Unidos ou Inglaterra, na área da Paramiloidose”, afirma com alguma expectativa. Na realidade, Carolina poderá ser um dos poucos seres humanos com um conceito de felicidade devidamente esclarecido. “O meu grande sonho é ter motivos para continuar a sorrir! Esta é, aliás, a minha maior característica. Sou uma pessoa feliz!”, assegura--nos de sorriso rasgado nos lábios.

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Síndrome de Cornélia

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Capítulo XII

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De mão dada à mãe, sempre bem apertadinha para que não fuja a correr pelos caminhos da sua imaginação, descobrimos nesta incursão pelas estórias de vidas raras o pequeno Martim, um rapazi-nho de olhar vivo, pestanas longas e sorriso apaixonante.

Do alto dos seus cinco anitos olha-nos, sobranceiro, questionando os motivos do nosso interesse sobre a sua ilustre figura. Ilustre, sim, afirma-mos convictos. Não há ninguém que não conheça o pequeno traquinas que quase diariamente pula, ri e brinca neste maravilhoso jardim do cen-tro de Lisboa. Afinal, Martim é, nada mais nada menos, uma criança… Alegre, espontânea e travessa como tantos outros meninos e meninas. Igual, mas tão especial que trocou as voltas à vida e teimou em vencer a sua doença à custa de… Amor! Um amor tão incondicional e avassa-lador que apaixona e enternece qualquer um que o conheça. Chama-se Amor de mãe. “O primeiro ano foi alimentado por amor! Tinha uma esfregona em cada quarto e não tinha roupa nenhuma no roupeiro. Ia ao hospital e mandavam-me embora, porque nunca foi de-tectado o refluxo”… Esta é a estória do Martim

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e de todos os Martins que, corajosamente, lidam com as dificuldades da Medicina em entendê-los – os meninos Cornélia de Lange!

“O Martim é muito doce. É mel. É de uma doçura, uma ternura que, para mim, não há igual”. É desta forma que Ana, a mãe, descreve o seu mais precioso bem; ou não tivesse ele sido concebido sob a égide do amor: “o Martim foi um bebé de lua-de-mel. Fiquei radiante. Falei com ele desde o início e criei com ele uma relação na gravidez. Quando ele nasceu lembro que a reacção foi: Olá filho, finalmente nos encontra-mos”! Porém, este encontro há muito desejado viria a tornar-se uma ansiedade adiada. Nascido de um parto complicado, numa cesariana de emergência, o Martim nasceu pequeno, muito pequeno… “Quando ele nasce, senti de imediato que havia ali um problema qualquer, não sei bem explicar porquê…”, recorda a mãe ensombrada. Na realidade, o baixo peso de Martim iria levá-lo aos cuidados intensivos onde esteve, durante um mês, na incubadora, sempre sob o olhar zeloso da sua mãe. “Apaixonei-me por ele imediatamente, como nunca na vida, por nin-guém. Foi avassalador!”, exclama Ana.

Sem saber como ajudar Martim, Ana chorou… Chorou muito! Efectivamente, ninguém como ela, habituada a lidar com a diferença em virtude da sua profissão, sabia melhor que o mel de Martim afinal poderia ter um pequenito gosto amargo a fel. “Chorei muito porque sabia que o Martim não ia ter uma vida fácil e… eu era a única a saber!” Durante um ano inteiro, Ana foi de facto a única a saber… a saber que o seu bebé tinha algo… que vomitava tudo o que comia… que não au-mentava de peso… Como uma verdadeira leoa insistiu, muitas vezes; tantas que lhe valeram o epíteto de angustiada, insegura, histérica! “Aos seis/sete meses barriquei-me no hospital. Não saio daqui enquanto não me disseram o que ele tem… Aí o médico levou-me a sério e mandou internar o meu filho”, assegura Ana. É justamente durante este interna-mento forçado que um médico de endocrinologia o vê e pede de ime-diato o envolvimento de uma equipa de genética. “Sozinha no hospital (o meu marido encontrava-se a fazer uma pós-graduação no sul do país), a médica de genética diz-me que o meu filho tinha características da síndrome de Cornélia de Lange ao que eu perguntei – o que é isso?”.

O mel de Martim

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Esta pergunta era quase retórica uma vez que Ana, que desde sempre suspeitara de algo misterioso, confirmava assim os seus piores receios. “Na altura, saí do hospital a correr e liguei à minha mãe a dizer que que-ria morrer porque não conseguia suportar aquela dor. Depois, fui para a internet e comprei tudo o que eram livros sobre a síndrome”.

A luta de Ana só agora começava… Como as árvores que morrem de pé, Ana ergueu os seus olhos, levantou a cabeça e seguiu em frente com um único objectivo em mente. Conseguir para o filho o melhor de tudo! Dos inúmeros médicos que nunca confirmaram o diagnóstico, preferindo esperar pela evolução clínica, à própria Fundação de Corné-lia de Lange, em Londres, que lhe deu a mão e a convidou a participar num encontro com vista à obtenção de respostas, longo foi o caminho trilhado por Martim e Ana na busca da verdade, da solução, da vida!

“Ele tinha um ano. No fim-de-semana em que me confirmaram a doença do Martim, descobri que estava grávida do segundo filho! Foi um turbilhão de emoções, mas não tive receio porque pensei que a úni-ca forma de conseguir levar a gravidez adiante, com o mínimo de sani-dade mental, era excluir a hipótese de mais um filho com a síndrome! Tive fé! Pensei: isto não me vai acontecer outra vez”! E na realidade não viria a acontecer. Fé ou destino, quem sabe os mistérios da vida, a rea-lidade é que a crença várias vezes ajudou Martim e Ana a ultrapassar dificuldades e a prosseguirem os seus objectivos. A fé que dava con-forto a Martim e Ana quando tudo parecia agitado e incompreensível, num mundo estranho onde Anjinhos como Martim eram castigados por uma espécie de erro que nunca cometeram. “Pouco antes de saber o diagnóstico do Martim houve uma noite em que o adormeci ao meu colo. Ele gostava muito do João Pestana porque o acalmava e eu come-cei a cantar. Lembro-me de olhar para o relógio e serem oito da noite. Quando dei por mim eram nove e estava a rezar, baixinho, com a me-lodia do João Pestana!”, Ana suspende a voz e, emocionada, deixa rolar uma lágrima pela sua face, continuando trémula: “estava a pedir a Deus para olhar pelo meu filhinho e para nos ajudar! Na altura senti que Deus estava ali comigo e que ia olhar por nós. Ele tem uma estrelinha, Deus a olhar por ele, por nós!”, recorda de alma embargada pela emoção.

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De Inglaterra onde viviam, Martim e os pais mudaram-se para a terra da família paterna – a Grécia, onde Martim foi visto, mais uma vez, por uma equipa de genética que confirmou o diagnóstico. “Quan-do cheguei à Grécia sabia mais de Cornélia que os médicos”, confes-sa a mãe orgulhosa do seu pequeno curso de Medicina, especialidade Cornélia de Lange. Porém, este não seria o último destino de Martim que, sempre em busca da sua felicidade, ia fintando a doença por en-tre alguns dos seus maiores experts. “Quando chegámos a Portugal, ele começou a ser acompanhando em Santa Maria pela equipa de genética e aí sim, fizeram o estudo do cariótipo. Só há um ano tivemos a confir-mação”, lembra Ana.

De diagnóstico médico na mão, era agora mais fácil para Martim e Ana obter as ajudas, poucas, a que tinham direito enquanto cidadãos, ao mesmo tempo que tentavam retomar a sua rotina, desta feita com chei-rinho a Lisboa. Porém, os aromas da capital nem sempre foram suficien-tes para colocar o sorriso nos lábios do irreverente Martim. A mudança de escola viria a trazer-lhe alguns dissabores, bem como a incompreen-são daqueles que com ele lidavam. “O Martim foi para a escola com 3 anos. Informei a escola da situação, levei informação para a educadora ler. Só que a escola teve dificuldades em gerir o Martim dentro da sala de aula, em estimulá-lo, não sabiam o que fazer com ele. Pediam-me para o levar mais tarde e ir buscá-lo mais cedo…”, recorda Ana.

A mãe não percebia o que se passava com o seu menino de oiro, cuja única exigência que fazia era que o ajudassem a alcançar os mes-mos objectivos que os meninos da sua sala. Bastava um bocadinho de boa vontade e de esforço. A professora, incapaz de lidar com este menino tão mexido e galhofeiro, não o deixava desenhar para que não mordesse os lápis e colocava-o a um canto para poder prosseguir com a sua matéria, on schedule! “Sofri muito porque não via o meu filho bem. A professora dizia que nunca a tinham ensinado no curso de educadora ao que eu respondia, não precisa de saber da doença só ne-cessita de ter boa vontade – eu ensino-a. Se quiser ajudar é simples… A minha luta era constante. Pedia-lhe para o deixarem comer sozinho, porque eu tinha iniciado isso em casa e a resposta foi não porque ele suja

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tudo”. A incompatibilidade educacional era extensiva à restante família uma vez que o pequeno Pipo começava agora a demonstrar um claro atraso na linguagem, fruto provavelmente de um investimento defi-ciente na sua estimulação linguística. Ana tinha de fazer algo. “Achei então que tinha de mudar. Sofri muito porque precisava de ajuda e aquelas pessoas em vez de o fazerem só me dificultavam a vida. O Martim chorava antes de ir para escola!” afirma incrédula.

Neste momento o Martim adora a nova escolinha. Todos os dias, por volta das 09.30, aí vai ele lampeiro, com a felicidade estampada no rosto, ao encontro dos seus amiguinhos que o aguardam de braços abertos e lhe prestam uma ajuda incondicional, que ele tão bem sabe aproveitar. “Os miúdos da idade dele são muito protectores e ele apro-veita-se disso! É um sacaninha! Ainda agora foi uma menina da sala dele que o levou para dentro. Os miúdos nesta idade são uns queridos e são muito mais puros e abertos que os adultos”. Na realidade Martim, contrariando todas as teses médicas, é uma criança espertíssima que sabe perfeitamente como agir de forma a levar a água ao seu moinho. “Na escola há uns triciclos de três lugares. Ele senta-se sempre no últi-mo porque sabe que os coleguinhas irão sentar-se à frente e levá-lo…” afirma a mãe, rindo.

A genética é realmente fascinante e Martim é a prova disso. Apesar de partilhar muitas das características da sua patologia, Martim teima em deixar-nos boquiabertos com a sua capacidade de centrar todos sobre a sua personalidade, curiosa, vivaz e brincalhona. “Ele faz com que as pessoas se apaixonem por ele, imediatamente! É super alegre e brincalhão e faz as asneiras e olha para nós a rir, para receber uma reacção. Às vezes leva um ralhete, porque também ter de ser educado. Não é por ter as necessidades que tem que não é educado e não vai de castigo. Mas nada é feito com maldade…” confessa a mãe, embeveci-da pelo olhar doce do seu tesouro. Apesar das noites mal dormidas e da hiperactividade que faz a mãe manter a custo a boa forma física, o Martim é uma criança bastante fácil. “Não faz birras, não é muito exi-gente. Desde que tenha as coisinhas dele por perto e que esteja bem e confortável é um anjinho. Vai para todo o lado. Aliás, é mais fácil que

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o irmão. Gosta de coisas diferentes… Adora espaços novos. É mui-to curioso. Os ambientes novos não lhe causam agitação, antes pelo contrário, são novos mundos para ele explorar” conta Ana que lá vai adiantando que, por vezes, a calmaria de Martim dá lugar a alguma agitação, desenvolvendo a capacidade de estratégia e concentração da mãe. “O meu único problema é que ele começa a correr e já não vol-ta… e vai com qualquer pessoa. Esse é o meu grande desafio! Ele traz uma plaquinha com os nossos contactos para o caso de se perder. São estratégias de segurança!”, conclui Ana. Para esta mãe, o desenvolvi-mento das autonomias é uma questão fundamental para a liberdade destas crianças e a sua integração plena na sociedade. “Estou a ten-tar desenvolver as autonomias dele. Neste momento, estou a fazer um exercício que é chamá-lo e ele voltar para mim ao som do nome”. Pa-rece fácil. Mas, na realidade, este poderá ser um processo longo, como aliás todos aqueles que acompanham o pequeno Martim. “Os avanços em Cornélia são muito lentos. Ele faz terapia da fala desde os dois anos e ainda não diz nada. Emite alguns sons. É um processo longo. Agora noto melhorias a nível comucacional. Ele aponta o que quer e percebe tudo. Achamos que não devemos ainda explorar as chamadas muletas linguísticas porque ainda acreditamos que ele irá falar. Se um dia mais tarde acharmos que tal não é possível, com certeza adoptaremos ou-tras estratégias… uma coisa de cada vez!”, declara Ana.

Apostado em ajudar o Martim e a mãe neste árdua tarefa, o peque-no Filipe, ou Pipo para os amigos, não deixa créditos por mãos alheias e assegura que o irmão irá falar. Afinal, tem a seu lado o mestre – o irmão mais velho. “O Filipe perguntou-me se o Martim era bebé. Expli-quei que ele era especial e que tínhamos de o ajudar e ele assumiu então o papel do irmão mais velho. Diz-me para ir tomar banho que ele toma conta do irmão. Tem uma maturidade muito além dos três anos. Assu-miu com muita naturalidade que a mãe precisa de ajuda com o irmão e ele está ali para isso”. E assim foi. À falta de resposta do irmão às con-versas da mãe, Pipo interpelou Ana e questionou-a porque falava com Martim se ele não entendia. Perante a resposta da mãe que assegurava que o irmão a ouvia mas não podia responder, Filipe mostrou quem

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era o Homem da casa: “ele respondeu que devíamos, os dois, ensiná-lo a falar. Apanhei-o mais tarde no quarto a tentar ensinar o irmão a di-zer mamã. Ele leva isto com muito mais naturalidade que outra pessoa porque sempre viu o irmão assim”, realça a assistente social.

A atitude positiva e o crer num futuro risonho levam Martim e a família a não desistir. Nunca, até porque como a própria Ana refere, se tivermos comportamento de coitadinhos, os outros irão ver-nos como tal e os nossos filhos nunca serão respeitados como cidadãos de direito. Para Ana, a sociedade tem de mudar, em especial determinados franjas, supostamente mais informadas: “tive médicas a dizerem-me coisas inacreditáveis”, assegura. Por isso, Ana faz hoje parte da Associação Pais em Rede, para poder intervir de forma eficaz na sociedade e mu-dar pensamentos. “Estes filhos não são uma tragédia na nossa vida. É mais ou menos como se em vez de entrarmos pela auto-estrada ti-véssemos entrado pela estrada nacional. Tem mais curvas, buracos, demora mais tempo, mas chegamos ao mesmo destino”, declara Ana, reafirmando que não quer mais nem menos que as restantes mães de meninos especiais. “Gostaria que o meu filho tivesse a sua própria casinha. É tudo uma questão de atitude. Demora, dói, mas temos de continuar a lutar para que os nossos filhos sejam felizes, e nós tam-bém!” diz, sorrindo, a jovem mãe.

Também nós o desejamos e estamos seguros que, com o empe-nhamento de todos, o Martim será sempre o menino mais feliz do seu reino. Para o assegurar estará a mater: “acho que ainda não passei pelos grandes desafios. Sinto que eles estão ali à minha espera! Mas eu estou pronta para eles!”.

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Capítulo XIII

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Amigdalites, sinusites, infecções respiratórias e diarreias crónicas. A Enciclopédia Médica certamente que ficaria a dever muito à protago-nista desta estória, a quem a mãe, como que num rasgo divinatório, cha-mou de Estrelinha, Sandra Estrelinha. De facto, se existe alguém ilumina-do é Sandra, uma mulher dona de uma personalidade verdadeiramente arrebatadora que consegue, sempre em tom jocoso, contar a realidade triste e dura, feitas de lutas constantes, que assiste à sua doença rara – uma imunodeficiência primária que lhe retira, diariamente, a sua essência!

Com 39 anos, Estrelinha, como gosta de ser chamada, teve de espe-rar 18 anos para que os médicos percebessem que as suas infecções re-correntes eram, afinal, o prelúdio de uma doença rara que afecta todo o sistema imunitário. “Com a gravidez, o sistema imunitário foi comple-tamente abaixo porque as defesas iam todas para a bebé. Após o nascimento da minha filha, as coisas complicaram-se e viram então que tinha um problema de base. Internaram--me durante três meses para estudos” revela, em tom de escárnio. Com apenas 37 quilos, fruto de uma gravidez acompanhada de diar-

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Sandra

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reia crónica, Estrelinha é sujeita a uma endoscopia e análises sanguíneas que viriam a revelar o seu problema: “na altura não me explicaram nada, apenas que tinha uma doença base. Em 100 mil pessoas eu tinha sido a premiada. Não poderia dar peito à bebé porque também tinha uma infecção na parte mamária. Chorava dia e noite porque queria estar ao pé da minha filha, que tinha nascido com 8 meses, e não podia”, lembra Estrelinha esquecendo as suas dores em prol do amor de mãe.

Depois de passar por um longo processo que incluía a reposição de todo o tipo de saís minerais e nutrientes, através da administração in-travenosa, e de uma dieta rigorosíssima, Sandra sai do hospital com 56 tipos diferentes de drogas com vista ao restabelecimento do seu orga-nismo. Além da imunodeficiência, Estrelinha tem também bactérias e pólipos no estômago, o baço dilatado, colite ulcerosa e síndrome de má absorção intestinal o que lhe dificulta ainda mais a vida, já que muitos dos medicamentos não são devidamente absorvidos. “Quando estou melhor do intestino tento retirar alguma medicação e substitui-la por alimentação que contenha esses elementos. Se estiver bem a nível in-testinal, consigo absorver esses elementos e não tenho de tomar mais medicação que me dá cabo do estômago”, conta sorrindo esta guerreira.

Gamaglobulina de 4 em 4 ou 6 em 6 semanas é a terapêutica de base para a imunodeficiência primária. Porém, para a nossa Estrelinha, ter apenas uma doença crónica na vida parecia não ser maldição sufi-ciente. Graças à sua condição intestinal, esta doente tem de ir ao hospi-tal de 10 em 10 ou 15 em 15 dias, a fim de lhe poder ser administrada a dose de gamaglobulina necessária à sua sobrevivência. “Noto logo quando está a chegar ao final do tratamento… Começo a ficar muito cansada, a ter suores nocturnos, muita dor de cabeça. Eu, na brincadei-ra, costumo dizer que estão a acabar-se as pilhas”, confessa rindo. Além da terapêutica de base, Sandra tem de, diariamente, fazer a reposição de vitaminas, cálcio, magnésio, fósforo, potássio, iões e tudo aquilo que perde em virtude da patologia que a acomete. A vitamina D faz também parte deste cocktail em virtude de uma osteoporose em estado avançado que afecta esta pequena mártir. É também graças à doença que os tendões se começam agora a ressentir: “tenho uma miosite nos

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tendões e na parte periférica em virtude de os iões andarem sempre a subir e a descer e os tendões não aguentarem. Tenho também a parte pulmonar afectada e sinusite crónica”.

Este elevadíssimo role de afecções faria o comum dos mortais de-sistir. Mas Estrelinha, fazendo jus ao seu nome, tem uma luz que a ilu-mina e que não deixa que a doença a vença. “Lido com a Medicina tu cá tu lá. Não nego tratamento nenhum. Não há cura. Se não fosse a minha força de vontade já tinha ido. Nunca desisto; já estive ligada a uma máquina, fui alimentada por via parentérica, já tive um implanto--fixo ao qual reagi mal porque descaiu – ia morrendo! Tenho uma filha para criar e, portanto, só tenho é que aceitar a minha doença!”, conclui.

O desejo de ver a filha crescer, de forma saudável e feliz parece ser, afinal, o que está por detrás da força absolutamente avassaladora desta mulher que, desde sempre, teve a seu lado na luta contra a doença, uma criança, também ela muito especial. “A minha filha acompanhava-me a todos os tratamentos. Recordo-me que às vezes, três e meia da ma-nhã, eu começava a sentir os sintomas e dizia para mim – vou aguentar, é de madrugada e a menina está a dormir… Mas não dava tempo… Aí, chamava-a devagarinho e ela perguntava-me: então, não passa? E lá íamos nós, ao frio e à chuva… Houve alturas que saí de casa comple-tamente paralisada das mãos e ela sempre a meu lado. Durante a noite não havia transportes e para o táxi nem sempre havia dinheiro. Então sentávamo-nos as duas num banquinho e esperávamos… até de ma-drugada!” recorda, visivelmente emocionada. Afinal, Estrelinha teve de suportar todas as dores e revezes da vida, sempre sozinha. O marido, logo que soube o que o poderia esperar, partiu, deixando-a com a do-ença e uma bebé nos braços. Nesse mesmo dia, Sandra soube que ti-nha de viver… Nem que para isso contrariasse todas as teses, gemendo baixinho, de sorriso forçado, para ver feliz o maior tesouro da sua vida e a sua força motriz – a filha. “Podia estar cheia de dores, mas quando chegava à porta da escola tinha de ter um sorriso, não só para a minha filha como para as coleguinhas. Cheguei a sair do internamento, com autorização, só para ir às festinhas da escola dela. E quando ela olhava à volta para me ver lá vinha eu, com roupa de criança; os olhos brilhavam

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e ela acenava para eu ir tirar a foto com ela. A custo levantava-me, tirava a foto, e voltava então ao hospital…”, revive Sandra.

Hiperactiva por natureza, Estrelinha diz que não necessita de mais de três horas de descanso por dia para se restabelecer. “A palavra repou-so para mim é horrível. Nos internamentos ajudo as auxiliares a fazer as camas porque não consigo estar quieta. Pergunto às outras doentes se precisam de ajuda para ir à casa de banho… Chego a ir à secretaria perguntar às meninas se têm coisas para eu carimbar ou agrafar. Nem a fazer o tratamento consigo dormir! Pego no carrinho dos medicamen-tos e corro o hospital todo”, diz rindo descontraída.

Com um cadastro vastíssimo dentro do hospital, de tal forma que cada vez que introduzem o seu número de Segurança Social para pedir exames, o sistema bloqueia, Estrelinha é já uma verdadeira mestre na do-ença que a acomete. “Num período de seis meses tive cerca de 280 epi-sódios de urgência. Sempre a fazer cálcio e potássio. Já não tinha veias! Consigo perceber que tipo de minerais estão em falta no meu corpo por causa dos sintomas. O potássio interfere directamente com o coração… O cálcio dá paralisia… Já sou tão conhecida que quando chego ao hos-pital dizem logo: cálcio ou potássio! E eu ensinava aos médicos que pri-meiro tinha de levar o cálcio por causa das contraturas e só depois me poderiam administrar o potássio”, segreda-nos visivelmente satisfeita com a sua vasta formação. Graças às constantes falhas no organismo e ao problema de estômago que tem, Sandra tem colocados abocates (catéte-res intravenosos) que permitem, sempre que necessite, repor os sais que necessita para sobreviver, de forma rápida e eficaz. “Normalmente vinha para casa com os abocates, às duas e três da manhã, e achava que teria descanso, mas não… No dia seguinte, falhava o magnésio. Os médicos já brincavam – ainda ontem cá estiveste e agora logo de manhã? Vens tomar o cafézi-nho connosco? Estou toda marcada das abocates e eu própria digo aos mé-dicos qual é a veia que devem picar. Já conheço tudo!”, revela gracejando.

As constantes visitas ao hospital e os anos de convivência com os pro-fissionais de saúde fizeram de Estrelinha a mascote de serviço e valeram--lhe uma série de amizades, quase improváveis, mas que, certamente, revelam bem o carácter desta mulher. “A minha médica está permanen-

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temente em contacto comigo. Se não lhe der notícias um dia, ela liga-me! Tenho uma relação muito próxima com ela. É a minha médica e a minha melhor amiga! Se estiver mais deprimida ligo-lhe e ela aconselha-me. São muitos anos!”, confessa Estrelinha com alegria. Com a mesma ironia lembra também uma das suas amigas mais próximas, a Gi que é, nada mais nada menos, que um parasita intestinal denominado giárdia e que, de há muitos anos a esta parte, tem vivido da hospedagem forçada de Sandra. “Elas estão sempre a reproduzir-se. Enquanto dormem, estou bem do intestino, quando acordam tenho as piores crises. Existe um tra-tamento, amplamente utilizado em África para a malária – a quinacrina. Foi requisitado pela farmácia do hospital, com a autorização dos profes-sores, mas foi recusado pelo INFARMED. O medicamento nem sequer é caro!”, justifica, questionando a rejeição desta entidade.

Na realidade, a simples aprovação desta terapêutica poderia trazer grandes melhorias ao estado de saúde de Estrelinha, há muito habituada a lidar com as dores de estômago crónicas e diarreias persistentes. No en-tanto, e como sempre fez na sua vida, segue em frente, sempre acompa-nhada da sua bengalinha – a filha. Apesar dos projectos adiados e o so-nho de voltar a ter um filho, ainda que adoptado, desfeito, Estrelinha não renega a sua condição e assegura-nos que já só deseja “ter um fim de vida um bocadinho melhor que aquilo que eu tenho passado nestes anos. Era excelente, um sonho”! Enquanto a realidade crua da sua situação não lho permite, Estrelinha brilha a cada palavra que vai redigindo, no livro que teima em acabar, antes que seja tarde. Afinal, ela é mais uma das doentes raras a quem a vida faz questão de provar, diariamente, que tem de ser gozada, da forma o mais intensa possível. “Todos os dias, quando acordo, digo – ufa, acordei viva! À noite agradeço!”, finaliza Estrelinha.

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Capítulo XIV

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Criggler-Najjar – síndrome rara, muito rara. Quase tanto como a estória, única, de José Antunes, um enfermeiro de 27 anos que, apesar de integrado, na verdadeira acessão da palavra, no Sistema Nacional da Saúde, sentiu na pele o que era lidar com a diferença, a ignorância e a espera por um diagnóstico. A vida tem realmente coisas misteriosas que nem a Ciência explica. Na realidade, nada faria prever que este jovem profissional de saúde viria a ser portador de um gene muito especial que o impediria de produzir da forma correcta uma enzima essencial ao efi-caz metabolismo da bilirrubina, produzida pelo fígado.

Foram necessários sete anos de estudos para chegar a um diagnóstico correcto do problema que afectava o enfermeiro e que o deixava por vezes ictérico. “Andava a ser avaliado pelo médico de família mas ele reconhecia que não possuía conhecimentos para perceber o que se passava. Encaminhou-me para gastro-enterologia e, mais tarde, por endocrinologia. Fizeram-me então um despiste para saber se era um Gilbert ou outra doença rara”.

Durante três dias, José foi submetido a um baixo aporte calórico, de forma a acelerar

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José

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o metabolismo e aumentar os níveis de bilirrubina no sangue. Desta forma, os médicos foram capazes de detectar o erro metabólico e me-dicá-lo com a única droga disponível e que, basicamente, actua sobre o sistema nervoso central. “O Fenobarbital é um medicamento utilizado até há uns anos atrás para atenuar os sintomas da síndrome, que é cró-nica, mas que actualmente foi posto de lado por causa dos seus efeitos secundários. Aliás, a utilização primária deste medicamento é para a epilepsia, para manter a pessoa calma e com os músculos relaxados. Optei por abandonar essa medicação porque me deixava extremamen-te letárgico…” diz, sereno.

A tranquilidade na voz e no olhar são características do profissional de saúde que continua, incessantemente, à procura de respostas. “Até hoje a doença não me causa qualquer incapacidade, mas não deixo de me sentir preocupado porque não sei como é que ela irá evoluir. Não existe sequer essa informação. Não sei se deverei tomar algum tipo de cuidados porque muita bilirrubina depositada sobre os órgãos pode começar a ser tóxica”, reflecte. Exactamente por não conseguir encontrar na Ciência que abra-çou as respostas, José procura agora colocar em prática alguns dos seus ensinamentos, adaptados à sua patologia. “Neste momento controlo os sintomas da doença através da Fototerapia e, como vivo na Parede, apa-nho bastante Sol e aproveito todo o tempo possível. Faço um tipo de dieta que não puxe muito pelo fígado, ou seja, baseada em cozidos, grelhados e bebo muita água, para evitar que a urina fique muito concentrada”.

Sendo uma doença controlável, através da adopção de um estilo de vida saudável, a verdade é que, de vez em quando, e quase de forma inex-plicável, os sintomas aparecem e as coisas complicam-se… “Quando o mé-dico me descreveu a doença referiu que era basicamente uma patologia de impacto social e não tanto orgânico. Isso veio efectivamente a confirmar--se. A icterícia chega a ser o traço dominante do indivíduo, o que induz frequentemente a sociedade a julgar a pessoa achando que a mesma tem hepatite ou outro tipo de doença infecto-contagiosa, o que não é verdade”.

A discriminação parece ser um problema inerente àqueles que, de alguma forma, se distinguem da sociedade. E nem a própria classe mé-dica, supostamente esclarecida, escapa à emissão de opiniões menos

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correctas que podem colocar em causa a integridade do indivíduo. “O facto de estar na área da saúde às vezes até é mais complicado porque as pessoas reparam mais facilmente e questionam com maior frequência, o que se torna realmente muito incomodativo. Às vezes, parece que somos diferentes só porque estamos amarelos. Isto obriga-me a explicar com frequência a doença e clarificar que não é nada de muito grave e que nem sequer é contagioso. Temos de ter muita resistência”. Foi concreta-mente essa capacidade de tolerar que fez com que ouvisse, calado, um diagnóstico apressado de um seu professor que, perante a sua icterícia, decidiu alertar o aluno da forma mais discriminatória possível: “estava no serviço e um médico aborda-me e diz-me que eu estava muito ama-relo e que deveria ter cuidado porque provavelmente teria hepatite. Isto à frente de doentes e colegas”. Revoltado com o sucedido, o jovem pro-fissional decidiu ouvir os sábios conselhos da sua orientadora que, na al-tura, apercebendo-se da situação o chamou à parte e o aconselhou a não escutar. “Acho que foi a partir daí que eu passei a não ligar às pessoas e às perguntas. Às vezes, a simples pergunta parece que nos torna diferentes quando, na realidade, apenas temos uma síndrome” afiança José.

A trabalhar actualmente no serviço de hemodiálise, José lida dia-riamente com insuficientes renais e o seu sofrimento. Talvez por isso, e apesar de saber que o seu fígado e rins poderão estar a ser sobrecar-regados de bilirrubina, José recusa a eventualidade de um transplante. “Um transplante renal tem uma média de 10 anos, tal como o hepático. Nunca coloquei a hipótese de o fazer. Prefiro o meu fígado como está, que apenas trabalha mal com uma substância. Aliás, as minhas análi-ses de função hepática estão correctas, à excepção da bilirrubina”. Esta é, segundo pudemos perceber, uma das grandes angústias do jovem enfermeiro, uma vez que o evoluir da doença lhe poderá colocar esta hipótese tão ingrata. “A minha principal preocupação a longo prazo é a eventualidade de haver uma falência renal. Eu trabalho nessa área e vejo o sofrimento dos insuficientes renais. O dia a dia deles é viverem com a esperança de um rim porque, caso contrário, têm de estar três vezes por semana ligados a uma máquina. E depois é a dor… Eles saem exaustos! É uma vida que ninguém merece!”, afirma solidário.

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Apesar da ausência de sintomatologia incapacitante, o sintoma mais evidente é também o mais estigmatizante – a icterícia. A juntar--se a ela estão os chamados pré-sintomas, apesar de não descritos nos manuais médicos – o mau-estar gástrico, o cansaço, o stress. A luz exer-ce uma clara influência na sintomatologia da doença. “Sofro mais no Inverno, uma vez que existe menos tempo de luz solar. No Verão sinto--me realmente melhor, não só pelo facto de haver uma maior exposição solar, como também pelo facto de eu beber mais água, o que faz com que o sangue seja mais filtrado, ou seja haja mais bilirrubina a nível renal”, esclarece o profissional de saúde.

Convivendo com uma doença que o torna diferente, José desde cedo aprendeu a lidar com a diversidade e confessa que a sua expe-riência foi uma mais valia na sua formação. “Ajudou-me, mas não me mudou. Sempre aceitei os outros com as suas diferenças. Já tive várias situações muito embaraçosas com colegas e até com os próprios do-entes. Prefiro viver com isto do que viver para isto. Tenho de aceitar a situação. Já não levo a mal como antigamente, apesar de achar que as pessoas não deveriam fazer juízos de valor de quem desconhecem…”, confessa emocionado. Parte destas opiniões, tantas vezes emitidas, são fruto do desconhecimento inerente a tudo o que não é vulgar. As doen-ças raras são disso exemplo. Desconhecidas da maioria da população e algumas até da própria comunidade médica, este tipo de patologias menos prevalentes conduz à emissão de opiniões, diligentemente sus-tentadas na mera avaliação física do indivíduo.

“Existe uma falta de investimento na saúde. Só se investe em pato-logias com maior prevalência porque isso interessa a nível de retorno de investimento. A mim, parece-me que a única investigação que exis-te a nível de doenças raras é mais universitária do que hospitalar. Há muita falta de informação e, mais grave que isso, não existe um veículo que faça essa informação chegar ao doente. Temos doentes que não sa-bem a patologia que têm e que se sentem, por isso, inquietos e ansiosos. Muitas vezes até correm riscos a nível de procedimentos porque o mé-dico não lhes disponibilizou a informação que necessitam para evitar esses comportamentos. Se calhar o próprio médico não tem acesso a

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essa mesma informação. Nas especialidades clínicas devia haver mais investigação sobre doenças raras”, aponta o enfermeiro Antunes.

Com um pensamento perfeitamente estruturado relativamente às suas ambições e ansiedades, José Antunes mostra-se confiante relati-vamente à eventualidade de vir a constituir família, até porque, como refere, apesar de a doença ser fruto de um gene recessivo, José não tem notícias de ninguém da sua família que sofra do mesmo problema. “Penso ter filhos e a doença não me preocupa porque possuo conhe-cimentos que facilmente poderei transmitir a um pediatra. Aliás, esta doença não é, de todo, incapacitante. É apenas uma doença de impacto social. O amor por um filho transcende a doença”, afiança.

Doente e enfermeiro, José está perfeitamente habilitado a falar sobre esta área específica da saúde e a incapacidade portuguesa de acompanhar os seus desenvolvimentos, face aos restantes países europeus e, muito em especial, aos EUA. “A Medicina americana é mais curiosa e tem mais meios e mais áreas. Por isso são mais desenvolvidos que nós. Nós, não sendo, só temos de importar conhecimentos. Temos de mostrar interesse em conhecer. Existe pouca disponibilidade de horários a nível dos mé-dicos que lhes permitam o investimento na área da investigação”, alerta.

Apesar da tristeza no olhar quando fala da cura para a sua doença, José não deixa de procurar, incessantemente, respostas para as suas dú-vidas e dá um conselho importante a todos os portadores de patologia rara: “temos de dizer aos outros o que temos, admiti-lo, explicar e aceitar. Não nos podemos esconder, temos de enfrentar a situação. As doenças raras tiram-nos qualidade de vida, essencialmente. Porém, somos todos seres humanos e merecemos, de igual forma, ser felizes!” conclui José.

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Capítulo XV

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De andar trôpego e apoiada na sua parceira de sempre, a mãe, é de sorriso nos lábios que Ana nos recebe ao portão de sua casa, numa pacata vila de Santarém. Num primeiro olhar, interrogamo--nos relativamente à patologia que afecta esta senhorita de cristal… Habitualmente a maioria dos doentes com esta patologia apresenta características bastante visíveis da mesma, nomeadamente no que se refere à sua baixa estatura. Porém, o caso de Ana é especial… Muito especial! “Existem muitos tipos de Osteogénese. Há desde as formas leves às graves”, justifica perante a nossa admiração. Porém, o facto de não apresentar uma das características não significa que não seja afec-tada pela pior – a principal, e que se caracterizada por uma fragilidade óssea extrema, “fracturas atrás de fracturas, de tal forma que quando chegou a idade de ir para a escola eu já não andava nem me punha de pé”, lembra Ana.

A Osteogénese Imperfeita é uma doen-ça causada por diversas mutações genéticas que, de uma forma geral, afectam a densida-de dos ossos tornando-os particularmente delicados. “Até aos 3 anos nunca se notou

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Ana

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nada” mas, num simples passeio, a pequenita Ana cai e começa a cho-rar… a chorar da dor lancinante que a atingia. Esta seria a primeira de dezenas de fracturas que viria a sofrer e que acabariam por modificar o rumo de vida desta batalhadora.

“Os médicos do hospital de Santarém insistiam que era falta de cálcio…” refere Ana, lembrando a incapacidade dos profissionais de saúde para descobrir a verdadeira razão que levava a que esta criança se magoasse com tanta facilidade. Assim foi durante cinco anos e até ao dia em que a nossa frágil menina dá entrada no hospital pediátri-co São João de Deus, em Montemor-o-Novo, onde viria a conhecer alguém como ela: “na minha enfermaria havia uma menina com esta doença. Aí já conheciam a Osteogénese e fizeram o meu diagnóstico. Informaram então os meus pais que eu iria continuar a partir-me até à puberdade e que depois as fracturas iriam diminuir” resume Ana. Efectivamente, “dos três aos catorze anos fiz cerca de 20 fracturas nos membros inferiores e no braço esquerdo”, diz Ana.

Por ser uma criança frágil Ana foi, desde sempre, muito protegida, no-meadamente pela mãe que sempre insistiu em acompanhá-la para onde fosse e em recomendar de forma ostensiva que tivessem cuidado com a sua bonequinha de cristal. Esta inquietação maternal viria a causar imen-sas dificuldades à vida discente de Ana, uma vez que nunca lhe permi-tiram um desenvolvimento social normal. “Fui discriminada na escola porque a professora tinha muito medo que acontecesse alguma coisa. Eu não ia ao recreio com os outros meninos, ficava na sala com a professora!” confessa Ana com uma certa tristeza. Apesar de compreender o zelo da sua mãe, a nossa doente certamente gostaria que o seu percurso escolar tivesse sido diferente, mais parecido com o das suas coleguinhas mas, por força da doença, a estrada que Ana teve de percorrer teve mais curvas e contracurvas do que a autoestrada das suas coleguinhas. “Não foi um per-curso linear. Eu faltava muito. Quando fazia fracturas, tinha escola dentro do hospital de Montemor-o-Novo. Havia outras alturas em que tinha de ficar em casa com o gesso e a minha professora, a D. Maria Amélia, de quem não me esquecerei, vinha cá a casa e deixava-me exercícios para fa-zer e assim nunca perdi ano nenhum” recorda Ana com alguma saudade.

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Quando termina a escola primária, Ana vê-se confrontada com um novo desafio. “A minha mãe, que era super protectora, não quis que eu fosse estudar mais. Colocou-me a aprender a bordar, em casa, porque achava que dessa forma eu estava mais protegida”, refere-nos lembrando que os pais destas crianças devem encontrar um equilíbrio para não as prejudicar socialmente. “Eu nunca saí sozinha com meninos da minha idade. Não tinha muitos amigos…” salienta-nos. Esta situação viria a agravar-se de sobremaneira quando Ana começou a despertar para os sentidos, como qualquer adolescente: “a altura dos namorados foi com-plicada. Não tive adolescência. Passei de criança a adulta”, explica-nos.

De adolescente a adulta, a existência de Ana é marcada por diversos episódios de medo, desespero mas também de esperança e optimismo. Apesar de forçada a tirar um curso de bordados, Ana depressa perce-beu que aquela não era a sua arte e que tinha ambições mais altas. Após uma forte insistência com a mãe para fazer valer a sua vontade, Ana consegue um consenso e regressa à escola, já com 15 anos, passando a frequentar um externato particular, um local aparentemente mais seguro, para descanso da cuidadosa mãe. Conclui o 9º ano com exce-lentes notas mas, mais uma vez, Ana curva na estrada sinuosa da sua vida. “A minha mãe voltou a dizer que eu já não podia estudar mais, até porque as mensalidades eram muito caras e os meus pais não tinham possibilidades. Aí tive de me resignar e pensar que tinha de procurar emprego e ir trabalhar! Fiquei muito triste… Nesse ano não me matri-culei e, mais tarde, fui chamada ao conselho directivo: o director queria saber porque não me tinha inscrito e, após a minha explicação, a escola decidiu atribuir-me uma bolsa de estudo. Fiquei muito contente – era aquilo que eu queria, mas o peso da responsabilidade era maior ainda! Felizmente consegui. Tenho muito a agradecer ao Dr. José Lopes que foi a pessoa que depositou essa confiança em mim”, afiança Ana.

Já adulta, a portadora de Osteogénese Imperfeita decide arregaçar mangas e procurar trabalho. Mas, ao fim de um ano, não se resignando com a sua formação, aposta num curso superior na área de gestão de recursos humanos. “Fiz os 5 anos da licenciatura a trabalhar de dia e a estudar à noite. Saía às 08 e chegava às 00.00h”. Paralelamente, Ana lida

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com as dificuldades inerentes à sua fragilidade. Com uma mobilidade bastante reduzida, consequência das constantes fracturas, Ana tem de estar constantemente dependente de alguém que a leve para o trabalho. “Lembro-me de chegar a estar duas horas à espera que me fossem bus-car. Tive de ir tirar a carta o que foi uma verdadeira aventura, porque as pessoas achavam que eu não ia conseguir. Mas eu sou muito teimosa! Isto foi em 1990. Na altura, não existia em Santarém escolas de con-dução com carros adaptados. Lá disseram que eu teria de comprar o carro para me ensinarem. Assim, tive de comprar um carro adaptado e passei à primeira: fiz exame de manhã e à tarde já fui trabalhar de carro”, relembra Ana que, com um olhar efusivo, nos segreda que “nessa altura senti que tinha independência! Tinha 23 anos”!

Mais um troço de estrada sinuosa percorrido, Ana pode agora mostrar a sua inteligência, garra e brio profissional no local de trabalho que tanto gosta. Porém, os colegas de departamento não partilhavam da sua euforia e, mostrando uma clara falta de carácter, frequentemente hostilizavam Ana. “Quando acabei o curso revoltou-me muito porque houve pessoas no meu serviço que gozaram com a situação. São pes-soas mal formadas que mandavam piadas muito desagradáveis e que provocavam a revolta. Custou-me muito tirar o curso porque nos can-samos muito facilmente. Foi tão duro que até pensei em desistir no 2º ano. Quando se passa por isto tudo e se ouvem as pessoas a gozar, custa muito!”, admite agora com revolta. Na realidade, Ana foi discrimina-da intelectualmente, por ser diferente. “As pessoas tendem a julgar-nos pela nossa aparência. Julgam-nos sem sequer falarem connosco, sem conhecerem o nosso trabalho. Tenho de estar sempre a dar provas. Duvidam muito das nossas capacidades e isso revolta-me um bocado. Ficam muito admirados quando vêem alguma coisa bem feita como se não fosse possível fazê-lo” alerta Ana.

A mentira médica piedosa, que assegurou aos pais de Ana que a partir dos quatorze anos esta mulher poderia viver sem dor, recente-mente foi descoberta. Há cerca de três anos atrás as fracturas voltaram. A perna, o braço e o fémur foram os alvos. Desejosa de regressar a uma vida normal, Ana insiste em esforçar-se cada vez mais nas suas sessões

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de fisioterapia e é justamente numa delas que o pior acontece: “eu pedi para fazer passadeira e a pessoa que estava comigo achou que eu pode-ria fazê-lo. Puseram-me em cima de uma passadeira rolante, onde eu nunca tinha estado, agarrei-me com os braços e quando se ligou a pas-sadeira, as minhas pernas não acompanharam e eu fui toda para trás e os braços partiram por esticão nos cotovelos. Foram fracturas gravíssi-mas. Já fiz algumas oito cirurgias aos cotovelos”, refere Ana deixando-se agora levar pela emoção. Na realidade, apesar do positivismo com que fala da sua doença, Ana não pode esquecer que se encontra de novo em casa, e mais uma vez por negligência. “Tenho sido um bocado mal tra-tada nos hospitais que me têm assistido. Os médicos que me têm visto e que conhecem a doença dizem que eu poderia estar melhor se tivesse tido outro tipo de tratamentos. No caso dos braços, fiz tantas cirurgias que já nem sabia se estava melhor ou pior. No hospital de Santarém deixaram-me as mãos paralisadas. Tive depois de ir para Coimbra para fazer uma cirurgia de correcção. Cortaram-me o nervo da mão, duran-te a cirurgia ao cotovelo” constata Ana.

Já em processo de recuperação Ana, agora com 43 anos, mostra o lado positivo da vida e assegura-nos “valorizo coisas que se calhar as outras pessoas não dão valor. Houve uma altura em que estive oito me-ses no hospital, numa enfermaria que ficava na cave. Aprendemos a valorizar tudo – o Sol, o vento na cara, as pequenas conquistas, quando estamos em processos de recuperação.

A minha estratégia agora é pensar sempre que vou conseguir para voltar a trabalhar!”, conclui.

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Capítulo XVI

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Piedade é o seu apelido, mas de longe o seu lema de vida. Para esta mulher rara, a palavra compaixão não faz, definitivamente, par-te do seu dicionário. Detentora de uma personalidade vincada, Ana convive pacificamente com a doença e a dor que sente diariamente. É apenas mais um pequeno obstáculo que, como tantos outros na sua vida, tenta ultrapassar, sem dramas!

Parry Romberg é uma síndroma rara, tão rara que a maioria dos médicos nunca ouviu falar nela e os casos registados em Portugal são facilmente contabilizados, pelos dedos de uma mão. Caracterizada pela perda de tecidos, adiposos ou ósseos, esta doença auto-imune não apresenta sintomas visíveis, a não ser para aqueles cuja perspi-cácia é apuradíssima… “É uma doença que não reconhece a hemi-face e que a faz desaparecer, sem sintomas nenhuns. Não tem dor, não tem nada! A sustentabilidade do rosto vai sendo toda destruída e tudo o que sustenta o olho e a pálpebra começa a descair”, salienta Ana.

Foi exactamente esta falta de narcisismo que ocultou, durante anos, este mal que des-

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Ana

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trói, de forma silenciosa, aquilo que é, afinal, a grande marca do ser humano e que melhor revela a sua emoção – o rosto.

“Foi um acaso. Eu tenho a doença há muito tempo. Não sei há quanto! Isto é um processo gradual e muito lento. Quando me aper-cebi tinha 24 anos. Fui ao cabeleireiro e pedi um corte simétrico. A cabeleireira disse-me que poderia fazer o corte mas, não ficaria per-feito porque eu tinha uma assimetria na face, provavelmente por falta de um dente. Fui directa ao dentista e ele fez um raio x. Descobriu então que eu não tinha a bola de bichat (estrutura que forma o corpo adiposo da bochecha) e tinha apenas 1/3 da língua, ou seja já tinha perdido uma série de tecidos”, recorda Ana.

Acaso do destino, e após o choque inicial da notícia, Ana é de imediato alertada pelo médico para a gravidade da situação e, como por coincidência, ele insiste desde logo para que vá no dia seguinte ao hospital de Santo António, onde trabalha, para que fosse introduzida na consulta de cirurgia maxilo-facial, onde viria a fazer uma resso-nância magnética, de forma a avaliar a extensão da destruição de teci-dos. “Foi aí que me fizeram o diagnóstico. Estava um médico presente que, curiosamente, tinha um caso de uma criança em Guimarães”, lembra Ana assinalando, mais uma vez, as diversas coincidências que fazem parte do seu fado.

Sendo uma doença órfã, a terapêutica não existe e a cura está ain-da longe de ser descodificada. A informação, escassa, não dá respostas nem a doentes, nem à grande maioria dos membros da classe médica que, não raras vezes trataram o caso de Ana de uma forma displicente e que, frequentemente, se mostraram completamente surpresos com o diagnóstico declarado de Ana. “Nunca me disseram que as dores de ca-beça tinham que ver com a doença. Aliás, nunca me explicaram nada da doença. Todos os médicos que me viram viam o nome da doença e di-ziam, não sei o que é, vou pesquisar e depois falamos. Nas consultas seguintes, diziam que era uma situação que estava controlada”, conforma-se Ana.

Habituada à dor, que desde sempre a afligiu, e face à desvalorização dos profissionais de saúde perante a sua situação, Ana convenceu-se que a sua doença não tinha, efectivamente, a importância que viria poste-

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riormente a revelar. Afinal, não se tratava de um cancro, como verbaliza a própria doente. Porém, esta aparente despreocupação, viria a ser en-sombrada pelo agravar do estado físico de Ana. “Um dia, chego ao San-to António e estava muito pior! Fizeram uma biopsia, que não acusou nada, porque na realidade os tecidos estão bons e, entretanto, como a minha cara cada vez estava mais assimétrica, tentaram colocar-me uma prótese biológica. Só que não tinham experiência… Fui então para o hospital Curry Cabral, que tem uma consulta para seropositivos que têm este tipo de atrofias. Eles têm bastante experiência nesta área”, revela Ana.

Os desaires da existência desta corajosa mulher não ficaram de todo resolvidos com a intervenção cirúrgica, apesar da grande expe-riência revelada por toda a equipa médica do hospital de Lisboa. “Em Agosto, dormia com dois edredões. Na farmácia onde trabalhava, to-dos achavam que era uma coisa normal, mas era um processo infec-cioso que eu tinha. Ao fim de seis meses, rejeitei a prótese. Tive de ser intervencionada e recorri a um cirurgião plástico que já tinha operado dois doentes com este problema. Foi o único que me disse logo que sabia o que era. Disse-me, inclusivamente, que aquele assunto não de-veria ser tratado em privado mas sim no hospital público, o único com as valências necessárias ao tratamento da doença. Como trabalhava no hospital de Gaia, disse-me para ir ter com ele e colocou-me na consul-ta. Foi em Dezembro de 2006. Passado um ano fui operada”, conta Ana.

Com o problema da assimetria facial, aparentemente, resolvido, Ana confronta-se agora com uma questão bastante mais dolorosa e difícil de ultrapassar. Apesar de fisicamente ter ficado bem, as cicatrizes emocio-nais da diferença começam agora a assolar o espírito desta jovem de 38 anos.“Fui prejudicada, como mulher! A partir do momento em que fui operada deixei de ter sensibilidade no rosto… Não sinto o toque e tenho pontos que me picam. Quando faço as cirurgias, assumo a doença por completo. Não tenho namorado por opção, porque não me sinto bem. Acho que passei a ser menos mulher. Arrefeci completamente! As cica-trizes…”, reflecte amargurada Ana para, logo depois, limpar as lágrimas e desdramatizar a situação dizendo que é um assunto que não a preocu-pa de sobremaneira já que, tenta, nem sequer pensar nele.

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Contudo, as sequelas emocionais da doença vão muito além da compreensão humana. Por ser uma patologia de evolução lenta, com pouco sinais exteriores, nem sempre as reacções daqueles que convi-vem de perto com estes doentes são as mais correctas. Mãe solteira, frequentemente Ana teve de lidar com as crises existenciais do filho, um adolescente revoltado que teimava em acusá-la de ser vítima do ócio. “A fase pior foi quando fui operada, porque estive um ano e meio em casa e o meu filho não estava habituado… É complicado porque ele deixou de ser o centro das atenções! Às vezes dá-me vontade de dizer – eu é que sou doente” lembra deixando, por fim, transparecer emoções que, na realidade, e apesar da forte personalidade, fazem parte da sua existência. “Houve uma altura em que não conseguia se-quer sair da cama. Ele acha que eu me faço de doente e que sou uma preguiçosa… que não quero arrumar a casa! Os filhos são um bocado ingratos. As pessoas não entendem que para eu ser produtiva no local de trabalho, não consigo trabalhar em casa. O pouco tempo que não estou a trabalhar, tenho mesmo de descansar. Cheguei a passar fins de semana inteiros na cama. Deixei de sair porque não tenho energia para isso. As pessoas acham que sou sostra (expressão nortenha). Sin-to falta de estar sozinha e que não me chateiem!”, desabafa Ana.

Sem cura, a Parry Romberg é uma doença crónica e incapacitante, em virtude das dores articulares que provoca e do cansaço, frequen-temente agravado pelas situações de stress, que provocam também enxaquecas terríveis a estes doentes. “Eu preciso mesmo de dormir porque o sono e o cansaço físico são imensos. Tenho dias que acor-do e não consigo sequer pôr-me de pé porque as dores articulares e musculares são horríveis”, refere Ana. Trabalhadora aplicada e devota, a jovem auxiliar de farmácia frequentemente foi colocada em causa, quer pelas chefias quer pelos próprios colegas que teimaram em não compreender a sua doença. “Nunca faltei ao emprego mas, quando fui operada, tive um ano e tal de baixa. Quando voltei, colocaram-me ao balcão, apesar da assimetria brutal no rosto que tinha. Todos os dias alguém me perguntava o que tinha e davam opiniões. Apesar de ser a pessoa com melhores resultados, não queriam alguém que tivesse de

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recorrer com frequência à baixa. Ninguém quer um doente crónico no local de trabalho. Os colegas até achavam que eu não tinham doen-ça nenhuma, porque podia ir de férias e ao ginásio…”, recorda a jovem.

Remando contra a maré, Ana esforça-se para não deixar que a doença tome conta da sua vida e confessa-nos que até evita olhar-se ao espelho. “A minha vida segue, a um ritmo alucinante! A doença é apenas um pormenor. Não vou morrer disto… Nunca encarei isto de uma forma catastrófica. Na realidade, existem situações muito mais graves”, assinala Ana. Lutando diariamente contra os preconceitos, esta grande profissional pauta a sua vida por objectivos concretos e que têm que ver com a sua realização laboral. “Eu não quero que a doença me torne menos produtiva e isso é uma luta – diária! Sou am-biciosa e quero ser sempre melhor!”, reclama.

Para o seu sucesso contribui, grandemente, o espírito triunfante e positivo. “Não penso no passado e no futuro, vivo apenas o dia a dia. As coisas surgem e eu tento resolvê-las na altura. Na minha vida, as coisas sempre foram acontecendo e trouxeram-me agradáveis surpresas. O balanço é sempre positivo! Para mim o copo está sempre meio cheio. A minha vida são vitórias em cima de vitórias!” conclui, efusiva, Ana.

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Capítulo XVII

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Foi em ambiente de festa que fomos recebidos pela protagonista desta estória. Na atmosfera de um pequeno vilarejo, junto a Vila Nova de Famalicão, respiram-se aromas intensos que nos despertam os sentidos e apelam à degustação. Hoje é dia de celebração! Catarina completa 12 anos. Doze anos de desafios e pequenas vitórias que fazem dela o orgu-lho da sua dedicada mamã. Cristina, de seu nome, encontra-se a finalizar os últimos pitéus que servirão de base à festinha da sua princesa. A seu lado está Catarina, sempre atenta às desventuras dos pequenos heróis da Disney. Dotada de um feitio doce, mas muito especial, a aniversariante sabe exactamente aquilo que quer e não hesite em manifestar o seu desa-grado, sempre que as coisas não lhe correm de feição. “Quando gosta do que está a ver permanece caladinha, ou ri-se quando acha piada. Caso contrário, grita até que vamos mudar para o que ela quer”, comenta a mãe sorrindo.

Catarina nasceu de uma gravidez nor-mal e bem acompanhada. Porém, como um terrível jogo de roleta russa, ela foi bafejada por uma qualquer entidade, provavelmente de natureza vírica, que a viria a tornar única.

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“Tive a menina com 25 anos e achei sempre que o facto de ela chorar de noite e de dia, sem interrupções, era sinal de alguma coisa. Só adorme-cia cansada. O pediatra dizia que era normal, que aquilo eram cólicas e que eu era uma mãe galinha. No hospital também diziam que eram cólicas… toda a gente o dizia” refere a mãe. Maternalmente inexperien-te, uma vez que se tratava do primeiro filho, e sem a experiência da observação directa de crianças, já que era filha única, Cristina confiou no pediatra que, segundo as gentes, não deveria ser questionado.

Tudo mudou, no entanto, quando Catarina completou três meses: “na consulta dos três meses eu disse que ela não agarrava nas coisas e que chorava muito e o pediatra voltou a dizer que era normal. No dia seguinte, falei com uma cunhada e pedi-lhe uma consulta com o pe-diatra do filho dela, director do hospital de Famalicão. Ele esteve a vê-la e disse-me, eu não sei dizer o que ela tem, mas tem realmente alguma coisa. Provavelmente, é um atraso no desenvolvimento”. De uma forma quase ines-perada, Cristina percebeu que, afinal, as suas suspeitas tinham razão de ser. A sua princesa tinha um problema. “Começámos a fazer exames; primeiro uma ressonância, não acusou nada. Passados uns meses ela começou a fazer espasmos. Aos primeiros não liguei porque não sabia o que era. Ela fazia e ria-se muito”, diz lembrando a sua ilusão. É durante uma consulta que, perante um espasmo de Catarina, a médica manda fazer de imediato um EEG. “Acusou a síndrome de West Secundário. Depois fez mais uma bateria de exames. Chegou a fazer uma punção lombar, para análise nos EUA, depois mandaram para o instituto de genética”, recorda Cristina.

A médica explica então à jovem mãe o mal da sua bebé porém, as esperanças de cura são nulas e os prognósticos…bom esses nem a ci-ência pode dar. Apenas o tempo… “A médica explicou-me que era uma forma de epilepsia gravíssima. Disse-me então que não sabia informar qual seria a evolução dela, mas que há medida que o tempo passasse se iria ver o que ela poderia adquirir ou não. Sei que há meninos com esta síndrome que andam…” salienta esperançosa. Foi justamente a convic-ção de que a sua pequena Catarina poderia triunfar, acirrada pelas su-gestões constantes das gentes da terra, que levou Cristina a procurar so-

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luções, além da comum Medicina. “A gente procura tudo. Vai a bruxas, médicos, curandeiros. Por exemplo, a Catarina fez um ano de acupunc-tura e achei que a nível respiratório, foi das melhores coisas para ela. Só não continuei por uma questão muito simples – ele queria que eu lhe retirasse a medicação e eu não quis arriscar. Cheguei a ir a Espanha com ela, a um médico cubano… Uma vez, fui a um médico russo que aplicava umas injecções, mas eu não fui nisso. Se me falarem, eu vou. Sou mãe! Mas contava sempre aos médicos!”, afirma assertiva salien-tando que a sua grande esperança se encontra na ciência, até porque “se existisse realmente uma cura, todos os meninos estavam curados”!

A expressão e o olhar são a maior forma de comunicação de Catarina que, graças à sua doença, não fala e não anda. As crises epilépticas e a declarada dificuldade em dormir colocaram esta pequena heroína várias vezes sob os cuidados médicos. “Dorme muito pouco, 3 a 4 horas por noite. Teve várias vezes internada para mudar a medicação. Havia me-dicação que a punha muito irritada, chorava muito. Outra tinha muitos efeitos secundários. Outra não podia tomar mais que dois meses porque lhe trazia alterações a nível da visão”, refere Cristina. Como epilepsia rara que é, esta síndrome exige um acompanhamento multidisciplinar e uma atenção redobrada por parte de médicos e terapeutas. “Tem consultas de neuropediatria, de seis em seis meses. Tenho tido sorte. Os médicos têm sido excelentes! A nutricionista vê-a de seis em seis meses e tem oftalmo-logia, anualmente”. Pediatria, Endocrinologia e Estomatologia são tam-bém especialidades médicas visitadas com regularidade.

“Ela chegou a fazer musicoterapia e hipoterapia. Agora faz piscina, fi-sioterapia, todos os dias, terapia da fala duas vezes por semana e terapia ocupacional, uma vez por semana”. Do acompanhamento terapêutico da sua menina, Cristina refere que só lhes tem que agradecer. “Tenho tido sorte onde a Catarina anda na fisioterapia, em Famalicão, uma das sócias é uma pessoa excepcional. Ela adora ir para lá. É acarinhada por todos e já lá está desde os seis meses. No período de férias escolares fica lá a tarde toda e até lhe dão o lanche, se for preciso. É como se fosse uma família”, comenta de forma carinhosa. Também na comunidade escolar, Catarina é acari-nhada por todos. “Anda numa escola regular, com uma sala de multidefi-

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ciências, com outros meninos e professores de ensino especial. Tem uma equipa de terapeutas que vai lá uma ou duas vezes por semana” descreve.

Alheias à diferença da Catarina, as crianças “são mais fáceis que os pais. Com a criança não há o estigma de ficar a olhar. As pessoas não sa-bem como reagir, mas as crianças não. A Catarina tem meninas que an-daram com ela no infantário e que quando a vêm correm para ela, falam e dão-lhe beijinhos. É sinal que se criou ali uma ligação. As crianças não ligam tanto à diferença”, concluí Cristina que vê nestes pequenos seres os seus grandes aliados, verdadeiros compinchas de brincadeira. “Eu páro para brincar com a Catarina porque ela é uma criança. Se não brinca so-zinha, alguém tem de brincar com ela. Não pode ficar ali sozinha o dia inteiro. Não me importa ter a casa desarrumada com brinquedos deles. Aliás, quem me deram que os dois (referindo-se ao irmão mais novo) desarrumassem. Desarrumar, arruma-se, agora estar ali, sem desarru-mar… Há pais que não sabem avaliar o que têm”, afiança-nos.

Tentando sempre não pensar no futuro, Cristina tem a perfeita cons-ciência que as particularidades da sua princesinha poderão ser um desa-fio ainda maior, num futuro próximo. “Sei que cada vez há-de ser pior, porque ela já está maior, entretanto há-de vir a menstruação e tudo isso poderá piorar o seu estado. As mudanças hormonais da adolescência po-dem vir também a agravar a situação. Hoje passa e amanhã vamos a ver como será o dia! Não vale a pena fazer muitas conjecturas. A vida é mes-mo assim. Há tantas crianças normais que, de um momento para o outro, acontece qualquer coisa. Não vale a pena, de facto, pensar muito nisso”, relata a jovem mamã que, para já, tem de se confrontar com duas situa- ções de difícil solução: “o problema agora é que a Catarina tem pouco peso o que complica a medicação. Tem sido uma luta. A médica há muito que aconselhou a Gastrectomia, mas eu não quero! Ela está a ser seguida por uma nutricionista e estamos a ter pequenos resultados. Vamos ven-do…”. As convulsões e a ausência de sono são algo que também tem de ser controlado e ajustado, através de alterações constantes na medicação mas, “apesar de termos uma criança assim, as pessoas podem ser felizes. Eu sou e a minha filha também. Claro que há limitações, mas tenta-se sempre. Se não se puder ir por aqui vai-se por ali…” afirma, convicta, Cristina.

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É, justamente, esta adaptação diária às circunstâncias de vida que de-senvolve as estratégias de tolerância das famílias de doentes com patolo-gia rara: “a Catarina mudou-me muito. Sou muito mais paciente. Aprendi a ser mais racional e tolerante. Eu era muito impulsiva, sou filha única!”, salienta soltando uma forte gargalhada. É, precisamente, esta capacidade de viver cada momento que leva esta família a tentar fazer a sua vida, da forma mais normal possível, ainda que por vezes existam situações que exijam um certo grau de elasticidade. “Este Verão fomos ao jardim zoo-lógico. Entrámos e saímos porque o cheiro das focas irritou-a. Os chei-ros agressivos provocam-lhe reacções menos boas. Por exemplo, a hipo-terapia, ela fez apenas duas ou três sessões, porque o cheiro dos cavalos incomodava-a”, aponta Cristina. Aromas à parte, a família lá vai arranjan-do estratégias para que as suas existências façam algum sentido. “Vamos sempre e vemos. Se temos de sair, saímos. Fazemos uma vida normal. Vou de férias, vamos ao cinema, ao restaurante, enfim vamos vendo. Antiga-mente íamos de férias para o hotel, agora fazemos campismo, para quan-do ela grita não incomodar. É uma questão de nos ajustarmos” justifica.

Em dia de festa, não quisemos concluir a nossa estória sem deixar de lembrar as palavras emotivas de Cristina quando se refere ao seu benja-mim: “eu tento pensar sempre no melhor para ela. Hoje, por exemplo, é o dia de anos dela e logo à noite vamos fazer uma festa! Cada dia que ela passe é uma vitória”, finaliza.

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Capítulo XVIII

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Altiva, misteriosa, introspectiva e brincalhona. É desta forma que a pequena grande Daniela se nos apresenta. Qual bonequinha de porce-lana Daniela tem 23 meses, calça o 17 e, com apenas 8 quilos, só agora conseguiu escalar a barreira dos percentis médicos atingindo, finalmente, o percentil 0. “A pouco e pouco vamos atingindo os objectivos e é isso que temos presente todos os dias na nossa mente” confessa, orgulhosa, a mãe, Neusa. A seu lado, olhando embevecido as novas habilidades de Daniela, está Carlos, um pai dedicado que deixou um emprego estável em Ingla-terra para acompanhar de perto o seu bijou. É ele quem nos garante que “faço um pouco de tudo, o que interessa é ganhar dinheiro para a Danie-la. Não importa a fazer o quê!”.

É lado a lado com a sua incansável família que Daniela luta, dia-riamente, contra todas as expectativas mé-dicas que sempre suspeitaram que ela não vingaria. Mas Daniela quis viver, apesar de ser a única no mundo a reunir semelhante complexidade cromossómica. Com uma de-lecção no cromossoma 18, a pequenita lida também com várias translocações entre o

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cromossoma 12, o 18 e o 20. “A Daniela é a única que tem uma falta no q longo e no 21” esclarece a mãe após ter procurado ajuda, através da Associação Raríssimas, junto da maior base mundial de alterações cromossómicas do mundo e de ter sido informada que a filha era um caso único no mundo.

Para Neuza, habituada a lidar com a diferença, num país onde estas crianças são vistas como pares, a sua princesa é efectivamente única e, por isso, foi com alguma angústia que viveu os primeiros meses de vida de Daniela, apesar da relativa calmaria gestacional, segundo os especia-listas. “Durante as primeiras semanas de gravidez tive muitas dores. Na altura estava em Inglaterra e eles deram-me uma semana de repouso mas depois mandaram-me trabalhar. A partir daí correu tudo bem. Fiz as análises de trissomias e não acusou nada. Às 16 semanas vim para Portugal e, às 25 semanas, voltei a fazer uma eco. A médica só notou que ela tinha o nariz muito pequeno”. Isto apesar de Neusa ter referido que a sua bebé pouco se mexia…

Nascida de parto normal, a Daniela cedo se revelou um bebé estra-nhamente calmo tendo, com frequência, de ser acordada para mamar. Porém, nada na sua fisionomia faria prever que algo estava baralha-do… Muito baralhado! Já com oito meses de idade, Daniela começa a dar mostras da sua condição, tendo dificuldade em segurar a cabe-ça, isolando-se com frequência e fazendo do João Pestana o seu maior amigo. Além disso, “ela não brincava com os pés, tinha a vista muito torta e já tinha 15 ou 16 entradas de urgência no hospital com proble-mas de respiração – bronquiolites e laringites”, relembra Neusa.

Numa viagem de férias a terras Algarvias, uma luz ilumina os pensa-mentos de Daniela e da sua família. “Vimos outra menina que se punha em pé, era muito maior que a Daniela e interagia com as outras pessoas. Eu disse ao Carlos: aquela menina tem a idade da Daniela e ele respondeu--me que não podia ser…” Efectivamente, após conversar com a outra mãe, Neuza facilmente concluiu que a sua menina era… diferente! Não que-rendo continuar na escuridão da incerteza, Neuza e o marido procuram Anabela Bispo, uma pediatra das Caldas da Rainha que realça desde logo as suas desconfianças – afinal Daniela apresentava um desenvolvimento

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compatível com os três meses de idade. Querendo desmistificar todo o mistério e intervindo precocemente, a médica manda o casal fazer um estudo do cariótipo, confirmando depois a delecção do cromossoma 18.

“A pediatra foi-nos informando, a pouco e pouco, de forma a que fossemos assimilando toda a informação sobre a doença. Sempre a es-clarecer o máximo possível. Disse-nos que era uma cromossomopatia complexa” relata Neuza que, desde essa altura, tem procurado novos estímulos que permitam que a pequenita Daniela desenvolva as suas competências. Porém, nem sempre é fácil… Daniela tem problemas oftalmológicos, estando a ser acompanhada em Santa Maria. “Temos andado a estimular mas ela tem miopia e estrabismo. Estamos neste momento a aguardar um telefonema para cirurgia a fim de introdu-zirem botox no nervo óptico, para corrigir o estrabismo e, posterior-mente, a miopia” salienta Neuza. A audição também está afectada uma vez que Daniela tem uma surdez bilateral, caracterizada por um défice de 30 décibeis: “não sabemos se é possível corrigir porque segundo os testes que efectuámos o canal auditivo dela é muito estreito”. Em termos de desenvolvimento motor, a nossa bonequinha tem um atraso bastan-te elevado na motricidade fina e grossa. Não gatinha, não faz força nos braços, não espreita e tem já um desvio na coluna que terá, certamente, de ser corrigido brevemente. Com uma glote muito mole, Daniela tem de comer tudo triturado apesar de, graças à intervenção precoce tera-pêutica, ter alcançado nos últimos meses grandes avanços.

“Ela está na terapia da fala não para aprender a falar, mas para apren-der a respirar e a comer, porque ela não mastiga. A primeira vez a terapeuta meteu-lhe um bocado de comida na bochecha e, como ela não conseguia lá chegar, começou a mastigar. Ficámos a olhar estupefactos!” nota Neuza que afirma estar convicta da coragem da sua lutadora, numa batalha tra-vada a três. “Queremos sempre mais para a Daniela. É essa batalha diária de tentarmos conseguir tudo quanto são terapias para ela, conseguirmos trabalhar em casa com ela, que nos vai dando indicações e ela vai apresen-tando sempre resultados. Todos os dias é uma vitória!”, assegura Neuza.

É justamente este investimento e envolvimento familiar e de uma vastíssima equipa multidisciplinar, que incluí médicos e terapeutas,

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que faz com que Daniela seja um verdadeiro prodígio da natureza. “Faz fisioterapia, é acompanhada pela genética, oftalmologia, fisiatria, pediatria, neuro-ortopedia, terapia da fala e estamos agora a tentar a hidroterapia. Desde que começou na APPC (Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Leiria) nota-se uma evolução enorme nela. Pen-samos, mais tarde, inscrevê-la na hipoterapia”, confirma Neuza que se sente mais feliz que nunca ao ver que os esforços encetados pela família estão, finalmente, a ter resultados, lentamente… muito lentamente! “É como se tivéssemos um bebé, durante mais tempo. Enquanto nas ou-tras crianças é inato, ela tem de ser ensinada. Porém, logo que aprende, ela própria desenvolve” diz.

Paralelamente ao desenvolvimento da Daniela, também Neuza no-tou uma grande mudança, quer na sua vocação quer na sua espirituali-dade. “Fui aprender algumas técnicas de hidroterapia na APPC e andei a fazer formação para ajudar a Daniela. O facto de nos ter calhado a lotaria, inicialmente, foi complicado, houve uma recusa, mas temos de aceitar. Só a partir daí a poderemos ajudar. O que nós pedimos todos os dias é que ela tenha uma vida minimamente independente. Não so-nhamos que vá para o secundário. Não. O que queremos é a sua auto-nomia. Essa é a nossa luta diária. Estamos convictos disso!”, confessa aquela que vê já nesta área profissional o seu futuro.

“Gostava de vir a cuidar de meninos como a Daniela. Todas as te-rapias que a Daniela faz eu estou sempre presente e nem aceito que me digam não. Repito o trabalho que é feito com ela pelos técnicos em casa e ensino ao meu marido e ele também trabalha com ela”. Foi esta união familiar e a tenacidade e empenhamento de todos que trouxeram a Da-niela a evolução na sua condição, de forma quase inacreditável para os muitos profissionais de saúde que acompanham de perto o caso, tão raro em Portugal, como no mundo inteiro. “A pediatra fica muito ani-mada quando a vê. Diz que é assim que se vê o trabalho que é feito em casa e que não se limita às terapias”. Também a fisiatra, que anterior-mente achava que se tratava de mais um caso perdido e que, por isso, meia hora de terapia semanal era mais do que suficiente, tem hoje de prestar vassalagem a esta família: “oito meses depois a Daniela teve uma

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avaliação com ela e a senhora disse que nem queria acreditar e que real- mente se via o trabalho que era feito em casa”, acusa Neuza indignada com a falta de atenção e apoio para a sua menina e para com tantos outros meninos que lidam com a indiferença.

“Eu não quero só para a Daniela. Tenho levado até materiais para os outros meninos da APPC. É óbvio que ela é a nossa prioridade mas, se pudermos ajudar outros, tanto melhor porque eles são indefesos e quem mais precisam!” enfatiza Neuza. E nada melhor para encorajar a atitude louvável e solidária da jovem mãe que a própria Daniela que, entre uma e outra pose para o nosso fotógrafo, lá vai deixando escapar um sorriso ma-roto e envergonhado. Talvez esteja a desafiar a mamã para a brincadeira preferida de ambas: “a Daniela sorri quando me ouve cantar, adora! Fica muito feliz com a música, talvez porque durante a gravidez eu sempre ouvi música…”, supõe Neuza. Carlos, junto à sua bebé, olha rendido para o fruto do seu amor e confessa que, apesar das contrariedades, Daniela é a dona do seu coração e por quem está disposto a tudo. Neuza mostra--se igualmente confiante na máxima o amor conquista tudo e revela-nos agora o seu grande sonho “que ela aprendesse a ler e a escrever!”

Amor, terapias diárias em Leiria, Alcobaça e Caldas da Rainha, e estímulo intensivo parecem ser pois a droga inventada por este jovem casal para recuperar a Daniela num processo com resultados já visíveis. Afinal, não nos podemos esquecer que estamos a falar de um ser raro, único no mundo, e que segundo a própria mãe, é um ensinamento de vida, uma espécie de desígnio superior: “talvez a Daniela nos tenha es-colhido. O Carlos trabalha intensamente para que eu possa ficar em casa com ela e lhe possamos dar tudo o que ela precisa, o melhor”!

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Capítulo XIX

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É por entre aromas e agradáveis sabores que descobrimos o bravo protagonista desta estória singular. Sentado ao lado da peque-nita Beatriz, sua irmã, Filipe acompanha a par e passo as artes culi-nárias de Elisabete, a mãe, uma mulher que descobriu nas agruras da doença o doce paladar da sua arte de pastelaria. A necessidade de suportar os elevadíssimos custos inerentes à incapacidade do seu filho e o compromisso em manter a sua sanidade mental forçaram o engenho desta mulher, que se redescobriu e reinventou numa ver-dadeira terapia de sabores. “Nos corredores do hospital havia uma rapariga que o filho tinha uma paralisia e ela falou-me desta situação dos bolos. Para não estar sempre presa ao computador a tentar saber mais sobre a doença, decidi tentar…”, recorda Beta. Operadora numa agência de viagens, ela sabia que o estado de saúde do seu filho não era compatível com horários rígidos e, por melhor que fosse o espírito solidário da patroa, amiga de sem-pre, não era razoável continuar a sustentar um emprego ao qual faltava frequentemen-te. Sem medos, Beta pensou apenas que ti-

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Filipe

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nha de acompanhar o pequenito Filipe e, depois “quem vende viagens vende bolos! Nunca tive problemas!”, assegura.

A estória do nosso bravo herói começa há exactamente oito anos quando, após uma gravidez perfeitamente saudável, Filipe teima em conhecer precocemente o mundo. “Aos cinco meses de gestação re-bentaram as águas e ele entrou em sofrimento. Normalmente as crianças com esta síndrome morrem por essa altura…”, confessa Beta numa demonstração clara de uma vitória angustiada! Apesar da pre-maturidade este bebé raro era, aparentemente, um bebé perfeito, ain-da que apresentasse já traços característicos da doença que o acome-tia e que só dois anos depois viria a ser correctamente diagnosticada – a testa, o céu da boca e os dedos a mais nos pés eram já o indício de uma vida feita de lutas! Porém, só aos oito meses, e face à incapaci-dade de Filipe em segurar correctamente a cabeça, é que a equipa de médicos decide avançar com um exame mais elaborado – uma res-sonância magnética, onde foi detectada a presença de líquido a mais no cérebro. Com apenas 27 anos, e maternalmente inexperiente, Beta quase sucumbia perante o desespero de noites seguidas sem dormir e de um bebé que gritava a plenos pulmões a dor que lhe afligia a alma!

Perdido por entre opiniões médicas diversas, Filipe luta, junta-mente com Beta, pela vida e pela análise correcta da sua situação. “O Dr. Lobo Antunes disse para eu referir à médica assistente, a Dra. Maria José Fonseca, que havia ali qualquer coisa” lembra Beta que, perante a incapacidade do serviço público para alcançar um diagnós-tico, se viu obrigada a valer-se das opiniões de privados. Foi justa-mente a pediatra privada de Filipe que, preocupada com a situação clínica desta criança, que teimava em não apresentar os índices de desenvolvimento exigidos pelos anais da Medicina, enviou uma carta ao médico do hospital relatando as suas desconfianças e sugerindo um estudo aprofundado do problema. “Ele então decidiu pegar no meu filho. Estudou e enviou-me, por carta, aos dois anos, o relatório clínico” salienta Beta, ainda indignada com tamanha indiferença.

Phelan-McDermid, um nome estranho e único que define o es-tado do nosso menino, também ele muito especial, aparentemente o

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único em Portugal a sofrer deste problema que tem apenas cerca de 300 registos a nível mundial. “Ele lutou sempre muito – é um herói, muito teimoso!”, revela a mãe que desde logo vai adiantando que a patologia do filho é uma verdadeira enciclopédia de saúde. “Não há nada que ele não tenha. Autismo, paralisia… Estou agora à espera das convulsões”, diz Beta, em tom sarcástico. Efectivamente, esta síndro-me, caracterizada por uma delecção no cromossoma 22q13, afecta essencialmente a parte cognitiva e, com ela traz atrasos no desenvol-vimento geral destas crianças que, geralmente, não chegam a vingar! Este não foi o caso de Filipe que, contrariando todas os registos mé-dicos, chegou a comunicar verbalmente as suas vontades e a valer-se das suas perninhas para dar longos passeios, na companhia da mãe e dos avós. Porém, a partir dos quatro anos, “e de um momento para o outro, deixou de comunicar, embora eu ache que ele entende. O problema é que ele é uma criança que esquece muito”, justifica a mãe.

A paixão pela vida e pela liberdade são características deste me-nino coragem que, assim que vê uma porta aberta, tenta alcançar a rua e não se coíbe de gritar até conseguir a atenção que merece ou a satisfação de alguns dos seus desejos. “Quando acorda, ou grita ou chora e é muito complicado porque como ele não fala, nós não conseguimos perceber o que é!”, esclarece Elisabete sorrindo. Foi justamente esta tenacidade que fez com que Filipe aprendesse a sair do sofá ou da cama e caminhasse em direcção àquilo que deseja-va – normalmente a rua. É também esta ânsia de viver que faz com que Filipe veja na escolinha a parceira ideal para as suas fantasias e parceiros imaginários. “Ele gosta de estar na escola porque pode estar ao ar livre e gosta do contacto com as outras crianças. Sente-se feliz, especialmente quando alguma criança se chega ao pé dele. Os meninos conseguem mais coisas dele do que a própria professora”, garante Beta. A frequentar uma escola regular e integrado numa sala de multideficiência, o Filipe está perfeitamente integrado e usufrui da ajuda de duas auxiliares, uma terapeuta da fala e da terapia ocupa-cional. A piscina é onde Filipe se mostra completamente realizado, feliz e tranquilo. “Gosta muito do professor. Parece que a presença de

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um homem é muito importante. É uma confiança que ele tem”, escla-rece a mãe adiantando que, além da piscina, os cavalos são outra das companhias preferidas do nosso menino raro.

Acompanhado pelo serviço de pedopsiquiatria do hospital Gar-cia da Horta, Filipe vai mostrando a sua raça através de um com-portamento característico da patologia: “ele tem o tique de se mor-der. Toma três ou quatro medicamentos para estar calmo ao longo do dia”, relata a mãe que assegura, com ar cansado, que o futuro é algo em que tenta não pensar e cujo maior sonho é, tão pura e simplesmente “ter tempo para mim, para dormir dias seguidos”! De facto, a vida de um cuidador de um menino dependente nada tem de fácil e é feita de recuos e avanços, numa estrada bastante sinuosa que, frequentemente, apresenta desafios muito difíceis de superar. “Vou fazer a fisioterapia e nem sequer me deixam estacionar junto à consulta. Ninguém merece esta vida de sofrimento – para os dois!”, afirma Beta revoltada. Ainda assim, esta mãe acreditou sempre que o futuro poderia sorrir-lhe, nem que fosse só um pouquinho. A sua esperança levou-a a engravidar de novo e a apostar que Bea- triz seria uma criança saudável. Efectivamente, hoje é ela quem tenta frequentemente ensinar o irmão. “É engraçado que ela tenta ajudá-lo, nomeadamente a dar-lhe de comida. Quando ele grita, ela dá-lhe festinhas… E ele, quando está mais calmo, ri-se. Ele demons-tra quando gosta!”, assegura-nos a mãe.

Com um encargo elevado, e apesar da ajuda do marido que tra-balha arduamente, Elisabete queixa-se da falta de ajudas técnicas e de apoios que existem para os meninos raros. “Não desejo isto nem ao meu pior inimigo. Não conseguimos ir a lado nenhum com eles por-que não tenho qualquer ajuda e ele já pesa bastante e não pára quieto. Depois não existem acessibilidades nos espaços públicos para estas crianças”. As viagens são outro dos desafios que se apresentam a esta família. “No meu carro, ele sai da cadeira. Não posso fazer viagens sozinha, isto apesar do delegado de saúde me ter dito que o menino não era deficiente. Deram-lhe apenas 60% de deficiência. Não acho isto normal!”, acusa Beta que adianta que, como se não fosse suficien-

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te o problema de acessibilidades, os apoios financeiros também são escassos. “Há dois anos eu já gastava 1500 euros, só com a fisioterapia, e ele precisa de tanta assistência. A assistência à terceira pessoa é 145 euros. Como é que posso sobreviver… De 15 em 15 dias gasto 150 euros em fraldas e medicamentos. Tenho de trabalhar uma semana de seguida, só para os medicamentos!”, acusa Beta.

Mulher de armas, ou não fosse ela mãe de uma criança tão espe-cial e singular, Elisabete tenta seguir a sua vida, cheia de estratégias e engenhos de forma a garantir a qualidade de vida dos seus filhos. “Aquilo que tenho em casa é com que tenho de viver. Não vale a pena fazer planos! Há que viver um dia de cada vez. Tentar melhorar e ten-tar compreendê-lo”, conclui Beta com entusiasmo!

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Capítulo XX

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Sábado, 19 de Março de 2011. Dia do Pai. O monitor apitava. Eram oito horas da manhã e Francisco precisava de ajuda para res-pirar! Depois de ser devidamente aspirado pela mãe, retoma o seu sono… o derradeiro! Às oito e quarenta e cinco a máquina volta a apitar, anunciando a chegada de uma nova estrela no céu. Francisco tinha 17 anos! À Raríssimas chega, através de uma troca de mails, a triste notícia. Tendo já sido contemplado, pela sua grande estória de vida, por algumas páginas deste livro, Francisco passou agora a estrela. Este é o nosso singelo contributo à vida curta, mas coroada de amor, deste pequeno grande astro.

Com apenas 1 metro de comprimento e 16 quilos de peso, Francisco não andava, não ouvia, nem via. Porém, a sua extraor-dinária e apuradíssima sensibilidade fazia--o sentir o toque e reconhecer os aromas, qual Jean-Baptiste Grenouille, da obra de Patrick Süskind. “Quando lhe tocava, ele suspirava… isso para mim queria dizer tudo!” recorda Alexandra, a mãe coragem que, num percurso de amor incondicional

No céu nasce uma estrela

Francisco

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e dedicação, nos descreve agora os 17 anos de paixão que viveu com aquele bebé extraordinário.

Com a serenidade no discurso, Alexandra recorda agora como foi a descoberta da raridade que atingia o seu príncipe. “Eu tinha 26 anos e ele nasceu de cesariana e era muito pequenino, mas nada pre-via uma coisa deste género. Com dois meses e pouco teve o diagnós-tico. Ele ficou amarelo e eu fui com ele a um pediatra que me disse que o menino tinha um problema, mas que deveria ser acompanha-do num hospital para ter acesso a todos os exames. Fomos para São Francisco Xavier e ainda bem, porque são uma segunda família. O facto de ele estar amarelo tinha que ver com o fígado. Fizeram aná-lises a tudo e, nada… Um dia, decidiram analisar os ácidos gordos e os resultados vinham efectivamente alterados. Fizeram, então, uma biopsia da pele e mandaram analisar na Bélgica e, por último, fize-ram uma biopsia ao fígado só para confirmar que era mesmo aquela síndrome. Com isto tudo ele esteve internado cerca de dois meses e meio”, assegura Xana, como gosta de ser chamada.

Zellweger era a síndrome rara que afectava este menino e que viria a limitar-lhe o correcto desenvolvimento durante os anos que se seguiriam, além de afectar os seus sentidos básicos – audição e visão. “O diagnóstico foi-me dado pela minha mãe que era enfer-meira. Os médicos, que a conheciam, falaram com ela e aconselha-ram a ser ela a fazê-lo. Lembro-me como se fosse hoje – senti-me a pessoa mais impotente do mundo. Achava que, como mãe, tinha todos os poderes para salvar o meu filho – estava completamente errada! Lembro-me de ir para o hall de entrada e chorar. Senti-me tão pequenina. Mas porquê eu? Nunca fazemos a pergunta de outra maneira – e porque não eu?, não sou diferente dos outros!” Depois, só quis ir para ao pé dele. Tinha de lhe dar o biberão e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo” revê-se agora Xana.

Após o choque inicial, esta mãe, como mulher de armas que é, deitou mãos à obra e vasculhou tudo o que era literatura sobre a temática: “andei para trás e para a frente a tentar perceber as coi-sas como se fosse uma estudante de Medicina”. Acreditando sempre

No céunasce uma estrela

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que os pais são o melhor parceiro dos médicos, porque estão 24 horas com os filhos, Xana recebe então um convite para que o seu filho integre um pequeno grupo para investigação de uma médica espanhola. “Aos 15 meses fui para Barcelona com ele porque exis-tia uma médica formada em bioquímica que estudava crianças com esta doença. A primeira vez estive lá dois meses e chorava todos os dias porque estava sozinha e não conhecia ninguém! Não havia esperança… Havia uma droga que ele tomava que poderia atenuar a evolução da doença. Houve crianças que tiveram resultados, em termos de visão e audição, mas o Francisco não… Depois tornou--se muito complicado porque ele não andava e eu estava sozinha…”, assevera Xana.

Durante anos, Xana, a mãe e o ex-marido, pai de Francisco, for-maram uma verdadeira equipa na procura da felicidade e qualida-de de vida para o Francisco. “O amor por um filho é incondicional. É a maior ligação que existe! Sempre trabalhei. Inicialmente, ele foi para a escola e era o meu ex-marido que ia buscá-lo, levá-lo e ficava com ele até eu chegar. Quando ele ficou pior, o Zé ficava a tomar conta dele durante o dia e quando eu chegava, ele saía para trabalhar. Damo-nos super bem e somos bons amigos e isso é que é importante! Depois, chega uma altura que estas crianças não têm onde ficar. Eu tinha de trabalhar e, por isso, ele ficou com a minha mãe e com o Zé, por turnos. De há um ano para cá, deixei de o deixar com a minha mãe! O Francisco nunca ficou sozinho no hos-pital. A minha mãe é absolutamente fabulosa. Ela coordenava-se com o Zé e eu com eles” assegura Xana num tom vitorioso lem-brando-nos continuamente a luta de Susan Sarandon, no célebre filme O Óleo de Lorenzo.

Para Xana, os melhores anos da sua vida foram dedicados a este menino que dependia dela para tudo: “Ele sempre esteve ligado ao cordão umbilical. Nunca houve um afastamento! Tenho muito or-gulho daquele filho ter sido meu. Ainda bem que o foi! A pessoa que sou hoje foi graças a ele. Aprendi muito, apesar de ele não falar, não ver nem ouvir. Tudo era feito pelo toque. Tudo tinha a ver com

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o toque e eu acalmava-o quando o encostava ao meu peito. Falava normalmente com ele, como se ele ouvisse e cantava-lhe ao ouvido. Ele ficava muito calmo, realmente. Acho que era o cheiro! Ele tinha reacções que só vendo. Perfeitamente inexplicáveis!”, explica Xana. Por esta razão, teve alguma dificuldade em tomar uma decisão irre-versível quando, aos oito anos de idade, Francisco começa a piorar e Xana se vê obrigada a aceitar uma gastrectomia: “estava a tirar--lhe um dos poucos prazeres que tinha. Chorei baba e ranho” diz, adiantando desde logo, que o procedimento não viria a ser suficien-te. Com o agravar do seu estado geral, passados três anos, Francisco teve de ser sujeito a uma traqueotomia.

“Vesti o meu filho, limpei-o, não deixei a agência fazer nada… Sempre disse que ia com ele até ao fim e que tudo seria decidido por mim! E assim foi!”, afirma com um ar sereno de quem tem a consci-ência tranquila pelo pouco que deixou por fazer. Afinal, Francisco, apesar da sua doença, conseguiu, graças a todos os que o acompa-nharam, ser um menino extremamente feliz e super tranquilo. E acabaria por partir, da forma que a sua mãe sempre havia desejado, em casa e junto daqueles que o amam. Agora, a vida desta magna mater corre ao sabor do vento. “É difícil de gerir. O tempo vai pas-sando e vai sendo pior! Eu aceito a morte do Francisco porque ele ficou connosco o tempo certo – aliás 17 anos foram muito tempo de vida para a doença que ele tinha. Aceito, mas nunca estamos pre-parados para isto! Agora tenho tempo para fazer tudo… E não me apetece fazer nada! Sinto muita falta dos afectos! Não poder tocar--lhe, abraçá-lo e dar beijinhos. É doloroso porque para mim era o meu bebé… Apesar dos seus 17 anos ele era muito pequenino. Ago-ra chego a casa e não tenho lá ninguém… Não há um dia que passe que eu não pense nele! Até nas mais pequenas coisas como passar em frente ao hospital Francisco Xavier ou o creme dele que eu colo-co. Cheira a Francisco! Aceito que chegou a hora dele mas a despe-dida é horrível, não há palavras! Se pudesse voltar atrás, gostava de passar mais um dia com ele. Nesse dia, estaria o dia inteiro com ele ao colo! Porém, acho que havemos de nos encontrar. A minha tia

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morreu três semanas antes dele. Quem sabe se ela não partiu pri-meiro para tomar conta do Francisco. Ela adorava-o!” lembra esta mãe concluindo o retrato do seu menino com a frase que melhor o poderá alguma vez descrever: “era fora de série!”.

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EpílogoO projecto Vidas Raras surge na sequência de um dos principais

objectivos que norteiam a Raríssimas – dar voz aos doentes com pato-logia rara.

Quando nos propusemos colocar em narrativa experiências de vida raras, e apesar de desenvolvermos um trabalho próximo dos nossos do-entes, de quem conhecemos as angústias e alegrias, nunca pudemos su-por o quão enriquecedora poderia vir a ser esta experiência.

A partilha destas estórias contribuiu de sobremaneira para o nos-so enriquecimento enquanto seres humanos e, sobretudo, alertou-nos para a nossa pequenez, ensinando-nos, de forma efectiva, a valorizar-mos cada segundo da nossa vida e cada pessoa que dela faz parte.

Do amor intenso de um casal que transformou a tormenta numa apos-ta de vida, à mãe que desespera para conseguir proporcionar aos seus filhos o mínimo que deverá assistir à condição humana, passando pela luta diária pela sobrevivência, todas estas estórias servem de exemplo de vida para todos os doentes raros e seus cuidadores. Angústia, medo ou derrota são sentimentos que certamente muitos dos leitores perfilham. Estas emoções, tantas vezes partilhadas por todos vós, são de somenos importância quan-do comparadas com a fé, firmeza e ânimo, testemunhadas nestas estórias!

Muita coisa ficará, certamente, por dizer mas esperamos que, no es-sencial, tenhamos conseguido dar voz ao lamento, coragem e esperança destes doentes e das suas famílias que, tão gentilmente nos abriram as suas

por Paula Simões

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portas mas, sobretudo, os seus corações! Gostaríamos também de poder, de alguma forma, ter contribuído para dar alento a milhares de pessoas que lidam, diariamente, com a indiferença, incompreensão e intolerân-cia. Pessoas raras. De rara perseverança, raro zelo e rarÍSSIMAS atitudes! A todos vós, o nosso mais sincero obrigadíssimo por serem quem são!

Agradecimentos também à Direcção Geral da Saúde e à Octaphar-ma por terem apoiado fervorosamente a realização deste projecto, con-tribuindo de forma efectiva para o alento de milhares de portugueses, portadores de patologia rara.

Pessoalmente, não gostaria de terminar este epílogo sem destacar todo o trabalho de equipa da associação que, de forma rarÍSSIMA, como só eles sabem, uniram esforços para a realização deste trabalho e que para ele contribuíram de forma solidária, altruísta e benemérita. Gostaria ainda de deixar um agradecimento muito particular àqueles que estiveram sempre, lado a lado, comigo neste projecto de sangue, suor e lágrimas. Alexandre Bordalo, o fotógrafo que ao nosso lado se emocio-nou, Mariana Abreu outra das fotógrafas que viveu intensamente cada experiência, o designer gráfico Leonel Pinto que, com uma sensibilidade única, criou ao mais ínfimo detalhe este presente raro, e last but not least, a nossa grande Patrícia Mergulhão, sempre atenta a cada linha escrita e, emocionando-se a cada uma delas. A todos, muito obrigada. Em meu nome e de todos os doentes raros a quem esta obra é dedicada.

Finalmente, Paula Brito e Costa, presidente da associação, e princi-pal mentora de todos os projectos da Raríssimas – obrigada por existir e por lutar pela associação e por todos os doentes raros de Portugal.

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Ficha TécnicaVidas Raras

Copyright © Raríssimas - Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras

Texto Paula SimõesDesign gráfico Leonel Sousa Pinto

Fotografia José Natário (capa)Mariana Cancela de Abreu (páginas 13, 21, 29, 39, 63, 71, 103, 113, 121, 161) Alexandre Bordalo (páginas 47, 55, 87, 95, 129, 137, 145, 153)

Copydesk Patrícia Mergulhão

Edição Raríssimas - Associação Nacional de Deficiências Mentais e RarasImpressão Textype - Artes Gráficas, Lda.Tiragem 50 000 exemplaresDepósito Legal 335895/11

Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro, em qualquer registo (electrónico, vídeo ou impresso), sem permissão escrita da Associação Raríssimas.

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Um projecto

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