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7/24/2019 Vide Edith Stein http://slidepdf.com/reader/full/vide-edith-stein 1/56 1 RUZ INTRODUÇÃO O fenômeno do sofrimento é algo inegável em nossa realidade. Sendo o ser humano capaz de refletir sobre este sofrimento, cabe-lhe buscar o sentido para este fenômeno tão conhecido por cada homem. Sendo a filosofia aquela que busca a sabedoria é inerente a ela buscar um sentido ao fenômeno do sofrimento humano. Desta forma, este trabalho visa apresentar o sentido do sofrimento humano à luz da obra escrita por Edith Stein intitulada  A Ciência da Cruz , fazendo-se necessário percorrer um itinerário filosófico, até alcançar o nível da ciência da cruz. O sentido do sofrimento humano apresentado neste trabalho é problematizado à luz de uma obra especifica:  A Ciência da Cruz de Edith Stein; significa que nos deteremos somente às questões levantadas pela mesma e seus pressupostos. Desta forma, serão usados os conceitos steinianos sobre o ser humano. E ao longo deste trabalho ficará claro que esta ciência é um conhecimento teórico e prático e que esta práxis apreende um conhecimento que o homem por si mesmo não tem acesso. Como método Stein vale-se do fenomenológico de Husserl seu grande mestre; no que se refere ao conteúdo, Edith retira do tomismo os pressupostos para que o fenômeno da cruz (símbolo do sofrimento humano) possa ser tido como ponto de partida para uma reflexão filosófica. É importante lembrar que o método fenomenológico propõe ao filósofo uma epoché de todos seus preconceitos, estudos, senso comum, enfim de tudo que pretendemos saber e é desta forma que o fenômeno da cruz deve ser percebido, ou seja, por entre parênteses tudo que é contingente, a fim de se buscar o essencial.

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RUZ INTRODUÇÃO

O fenômeno do sofrimento é algo inegável em nossarealidade. Sendo o ser humano capaz de refletir sobre estesofrimento, cabe-lhe buscar o sentido para este fenômenotão conhecido por cada homem.

Sendo a filosofia aquela que busca a sabedoria éinerente a ela buscar um sentido ao fenômeno dosofrimento humano. Desta forma, este trabalho visaapresentar o sentido do sofrimento humano à luz da obraescrita por Edith Stein intitulada  A Ciência da Cruz ,fazendo-se necessário percorrer um itinerário filosófico, atéalcançar o nível da ciência da cruz.

O sentido do sofrimento humano apresentado nestetrabalho é problematizado à luz de uma obra especifica:  A

Ciência da Cruz de Edith Stein; significa  que nosdeteremos somente às questões levantadas pela mesma e

seus pressupostos. Desta forma, serão usados osconceitos steinianos sobre o ser humano. E ao longo destetrabalho ficará claro que esta ciência é um conhecimentoteórico e prático e que esta práxis apreende umconhecimento que o homem por si mesmo não tem acesso.

Como método Stein vale-se do fenomenológico deHusserl seu grande mestre; no que se refere ao conteúdo,

Edith retira do tomismo os pressupostos para que ofenômeno da cruz (símbolo do sofrimento humano) possaser tido como ponto de partida para uma reflexão filosófica.É importante lembrar que o método fenomenológico propõeao filósofo uma epoché  de todos seus preconceitos,estudos, senso comum, enfim de tudo que pretendemossaber e é desta forma que o fenômeno da cruz deve ser

percebido, ou seja, por entre parênteses tudo que écontingente, a fim de se buscar o essencial.

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Esta ciência da cruz é fruto da antropologia - filosóficade São João da Cruz, que Stein atualiza e queempregaremos para fundamentar este trabalho. Para Stein,de certo modo, não foi difícil atualizar o pensamento deSão João da Cruz, por se tratar de uma práxisexperimentada pelos dois até suas últimas consequências.Edith Stein e São João da Cruz desde tenra infânciaansiavam possuir a verdade e dela gozar; esta busca osencaminhou para uma filosofia que lhes assegurasse aseriedade e serenidade da investigação da razão e daaquisição de conhecimentos práticos, doutra forma nãoteriam sentido. Ambos usavam do tomismo parafundamentar suas reflexões. Stein, então atualiza a obra daSão João da Cruz com o método fenomenológico e aomesmo tempo dá continuidade a fenomenologia de seumestre Husserl.

Toda esta abordagem dar-se-á em três capítulos. Oprimeiro capítulo apresentará esta “scientia crucis” (ciência

da cruz) na própria vida de Edith Stein, onde será expostasua origem e passos para chegar ao ápice de sua filosofiaque coincide com sua radical coerência de vida. A própriaStein conclui, no fim de sua vida, que esta “scientia crucis” 

não pode ser adquirida sem a real experiência do peso dosofrimento, na conclusão deste trabalho entender-se-á deforma mais clara de que se trata este sofrimento.

No segundo capítulo será exibido o métodofenomenológico de Husserl que sempre norteia toda areflexão steiniana. Para Edith, a fenomenologia é o meiopara encontrar o sentido das coisas, o sentido de todos osfenômenos que aparecem ao homem. Também nosegundo capítulo expor-se-á o conceito de filosofia cristãque é um pressuposto fundamental para ser possível a

reflexão do fenômeno da cruz de Jesus Cristo e tudo o queela implica para a humanidade. Esta filosofia cristã

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apresentará ao filósofo um caminho de busca pela verdadeparalela ao caminho da razão natural e consequentementenovas tarefas.

Enfim, no terceiro capítulo será apresentado o sentidodo sofrimento humano à luz da obra  A Ciência da cruz  deEdith Stein e para chegar a esta resposta, ou seja, parachegar ao sentido do sofrimento serão esclarecidos osconceitos de ciência da cruz e de ser humano na visãosteiniana; Stein norteia todo sua reflexão tendo o homemcomo eixo de seus trabalhos; também será abordado à luzda “scientia crucis” a estrutura da alma e sua relação comDeus culminando na causa e sentido do sofrimentohumano. Expor-se-á no fim deste trabalho que esta relaçãoentre alma (o homem enquanto espírito) e ser eterno(Deus) é a chave para elucidar a questão do sofrimentohumano.AUTOR: PEQUENO ISRAELCAPÍTULO 1 CONTEXTO HISTÓRICO - FILOSÓFICO

DE EDITH STEIN

1.1. Primeiros passos da Vida.

Os Stein chegaram a Breslau, na Alemanha, em 1890.Siegfried Stein, negociante de madeira, e sua mulher

 Augusta Courant formavam um casal judeu profundamente

religioso. No dia 12 de outubro de 1891 nasceu seu sétimofilho, e deram à menina o nome de Edith. Para os judeusaquele dia era dia de penitência, o dia da Expiação. Para asenhora Stein, judia fervorosa, o nascimento de sua filhanaquele dia era um sinal divino de que a pequena Steinteria no futuro um papel grandioso na história de seu povo.

Passados dois anos, Edith ficou órfã de pai vitimado

por uma insolação durante uma viagem de trabalho. Asenhora Stein, com grande vigor, continuou os negócios da

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família e criou seus sete filhos num ambiente deausteridade e ternura, calcado no Antigo Testamento,seguindo as tradições e costumes judeus com zelo.

Erna, irmã de Edith, assim descreve a vida cotidianaao lado de sua mãe e irmãos: “Nossa casa era um lar de

 judeus ortodoxos. Observávamos cuidadosamente os diasde jejum e festas. Minha mãe acreditava em Deussinceramente, mas era bastante larga de espírito, para nãoexercer a menor pressão religiosa sobre nós. As criançasde nossas famílias aprenderam o hebraico numa escolaisraelita, exceto as duas últimas, Edith e eu. Morávamos,então, nos arredores da cidade e mamãe não queria quepercorrêssemos sozinhas a grande distância que nosseparava daquela instituição.”  (BIENIAS apud   MIRIBEL,2001, p. 35)

Em outubro de 1897, aos seis anos, Edith iniciou seusestudos e rapidamente demonstrou uma admirável vontadede aprender, superando suas colegas de classe mais

velhas que ela. Suas matérias preferidas eram: alemão,história e línguas. Aprendeu a falar o francês, o inglês e oespanhol, e a ler latim, grego e hebraico. No fim da vida iriaaprender facilmente o holandês. Um colega de sala nosrelatará mais de perto os extraordinários dons de Edith: “No

entanto, acrescentou, não tinha o menor convencimento,era profunda, reservada, silenciosa, sempre complacente ecompreensiva para com suas companheiras”. (BIENIAS

apud  MIRIBEL, 2001, p.38) A senhora Stein, não se enganava quando temia a

influência das teorias céticas e liberais sobre sua filha. Aostreze anos de idade, Edith “abandonou a fé e a oração” e

até aos vinte e um anos não conseguia crer na existênciade Deus. Mais tarde Erna e Edith ingressaram na

Universidade de Breslau (Universidade recém fundada). Aprimeira optou pela medicina e a segunda dedicou-se às

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pesquisas filosóficas tendo se matriculado em história efilologia1. Depois, Stein se interessou pela psicologiaexperimental e após isto se apaixonou pela filosofia.

No tocante as questões sociais, Edith Stein lutou pelosdireitos da mulher, pelos direitos dos grevistas; e após aguerra de 1914 trabalhou com tenacidade pela república deWeimar , militando no partido democrático, ela amava suapátria.

Em 1912, aos vinte e um anos de idade, Edithescreveu um relatório falando sobre a evolução dopensamento na psicologia experiencial2  segundo Kulpe,Buhler e Messer, cujos trabalhos faziam referencia aEdmund Husserl e suas Pesquisas Lógicas. Um professorchamado Reinach ao perceber o entusiasmo de Edith noestudo dos textos filosóficos recomendou-lhe a leitura dasegunda parte das Pesquisas Lógicas

3. Após a leitura do segundo tomo das Pesquisas

lógicas, Edith Stein reconheceu Husserl “o filósofo e

incontestavelmente o mestre de seu tempo (...)” (BIENIAS

apud   MIRIBEL, 2001, p. 42) por isso, trocou Breslau porGöttingen, cidade que os seus colegas mais velhoscostumavam chamar de paraíso da filosofia, onde oassunto sempre era a fenomenologia.

Este período foi marcado pelo entusiasmo juvenil daestudante de filosofia ao descobrir a fenomenologia: “Tinha

vinte e um anos, escreveu ela, e estava cheia deesperanças. A psicologia desapontou-me. Cheguei à

1 Filologia é o estudo da língua em toda sua amplitude e dos escritos que a documentam.2  Psicologia experimental é o ramo da psicologia em que se aplica o método

experimental   para os fatos psíquicos, os passiveis de serem observados nas suasmanifestações externas, a fim de medi-los, descrevê-los e extrair suas leis gerais.3  Cf. p.24. Edith deixou notas importantes sobre o período de estudos que estãoanexadas ao texto manuscrito da história de sua família, pertencente aos arquivos

Husserl, em Louvain. Em parte foram citadas na biografia de Madre Thérése-Renée, p.24 em diante. Estas narrativas estão de acordo com estes escritos: Livro Edith Stein,

 Lebensbild einer Philosophin und Karmelitim. (Edith Stein, retrato de uma vida defilosofa e carmelita) 

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conclusão de que esta ciência estava engatinhando, e quelhe faltava fundamentos objetivos. Mas o pouco que euconhecia de fenomenologia, sobretudo seu método objetivode trabalho, encantava-me.”  (STEIN apud  MIRIBEL, 2001,p. 43)

Passar do domínio das pesquisas especializadas parao do problema do conhecimento era, para Edith, umalibertação. Sair do ambiente fechado dos parentes judeus eamigos para mergulhar na cidade universitária preocupadacom os problemas contemporâneos era viver a liberdadetão desejada. O primeiro contato de seu mestre com Steinfoi excelente, ao saber da mesma que tinha lido o segundotomo completo das Pesquisas Lógicas, Husserl ficouimpressionado, e assim a admitiu em Göttingen.

Em 1914, a guerra veio interromper seus estudos.Durante dois anos Edith cuidou de feridos no hospitalaustríaco de Mähren e recebeu a medalha da CruzVermelha. Ao terminar o doutorado, recebeu a nota summa

cum laude, ou seja, nota máxima com louvor. A partir deentão, Husserl a convidou para trabalhar com ele naUniversidade de Friburgo de Brisgau. No verão de 1916,durante o primeiro semestre, Edith, com vinte e cinco anos,foi chamada a ser assistente de Husserl que acabava deser nomeado para cátedra de filosofia daquela cidade.

1.2. Contexto da experiência da Cruz.

Em novembro de 1917, morreu o professor Reinachem Flandres. A jovem viúva, Anna, pediu a sua amiga Edithque ajudasse a organizar os trabalhos filosóficos de seumarido para uma publicação póstuma. Imediatamente,Edith Stein deixou seus trabalhos para cumprir seu dever

de amiga. Stein ficou sem palavras diante desteacontecimento, ela conhecia a felicidade do casal

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protestante, e temia ver sua amiga esmagada pela dor,contudo a encontrou transformada pela provação. Vendono rosto de Anna as marcas da dor profunda, Edithpercebeu que emanava da alma de sua amiga a força deCristo, uma nova luz que a unia ao Crucificado deixandoem Edith uma impressão indelével. Essa experiênciade dor humana, do sofrimento, aqui referido, abre umaperspectiva antropológica que será abordada maisobjetivamente no último capítulo. Na verdade, o sofrimentohumano tem um valor que a pessoa muitas vezes nãopercebe, e que é primordial na sua própria formaçãoenquanto pessoa humana.

Um pouco antes da morte Stein disse a um sacerdote:“Este foi meu primeiro encontro com a Cruz, com esta forçadivina que ela emana aos que a carregam. Pela primeiravez, a Igreja nascida da Paixão de Cristo, e vitoriosa sobresua morte, me apareceu visivelmente. No mesmo instanteminha incredulidade cedeu, o judaísmo empalideceu aos

meus olhos e a luz de Cristo refulgiu em meu coração. Aluz de Cristo no mistério da Cruz. Esta é a razão pela qual,tomando o habito de carmelita, desejei unir ao meu nome oda Cruz...” (STEIN apud  MIRIBEL, 2001, p.60)

O segundo momento de encontro com o crucificadoocorre durante sua vida estudantil, quando Edith Steinconheceu Hedwig Conrad-Martius e as duas firmaram laços

de amizade. Após casar-se, a senhora Conrad-Martius foimorar em Bergzabern, no Palatino, numa vastapropriedade cheia de pomares. Esta casa tornou-se umcentro de encontro para o círculo filosófico de Göttingen,um ponto de férias aberto a acolher a todos paradiscussões filosóficas. Edith permanecia hospedada junto àfamília de Conrad-Martius e vivia uma vida austera.

Cultivavam a terra e se revezavam nos afazeresdomésticos ajudados por dois camponeses.

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Edith era uma mulher sábia e benevolente deinesgotável devotamento, mas mantinha-se muito fechadae silenciosa. Participava dos cultos protestantes comHedwig Conrad-Martius e após o culto dominical Hedwigouviu a seguinte observação: “O céu esta fechado para os

protestantes, mas aberto para os católicos” (BIENIAS apud  MIRIBEL, 2001, p. 64). Edith em seu habitual silêncioestava discernindo a escolha de sua fé.

No verão de 1921 os Conrad-Martius tiveram que seausentar, então entregaram as chaves da biblioteca paraEdith Stein. Estando sozinha Stein pegou aleatoriamenteum livro autobiográfico de Santa Teresa de Ávila, apósiniciar a leitura foi cativada de tal forma que deixou o livrosomente quando o terminou pela madrugada. Ao terminar aleitura, Edith Stein disse para si mesma: “é a verdade”.

 Após este acontecimento, Stein iniciou sozinha suainstrução religiosa, valendo-se de um missal e de umcatecismo. Após completar dezoito meses de permanência

na residência dos Conrad-Martius Stein pediu o batismo naIgreja Católica e o recebeu na igreja de Bergzabern.

Depois do batismo, fez a primeira comunhão e, destedia em diante, freqüentava diariamente às missas, seusamigos relatam deste dia a alegria de Edith que fazialembrar uma noiva em seu casamento. O bispo de Spira,Dom Luís Sebastião, crismou Edith em sua capela

particular e tornou-se seu diretor espiritual. Após esta jornada espiritual, faltava ainda comunicar a sua mãe quehavia se tornada católica. Para um judeu, isto é tornar-seum traidor de seu povo, um traidor da tradição judaica.

Então Stein viajou para Breslau para comunicar suamãe de sua conversão ao catolicismo. Ao chegar à casaaos pés de sua mãe e disse firmemente: “Mamãe, eu me

tornei católica”. (STEIN apud   MIRIBEL, 2001, p.68). Estaheróica mãe acostumada ao sofrimento, diante de tal

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noticia não se conteve e chorou. Sua filha nunca tinha vistoa mãe chorar e também verteu lágrimas de dor. Mãe e filhaficaram juntas por seis meses indo à sinagoga juntas ecumprindo os jejuns e preceitos judeus. Inutilmente suamãe tentava convencer sua filha a voltar para a crença doDeus único revelado ao povo judeu.

1.3. Surgimento de uma nova filosofia Steiniana.

Na páscoa de 1923, Stein apresentou-se àsDominicanas educadoras de Santa Madalena, de Spira,que a acolheram como professora e ali permaneceu até apáscoa de 1931.

Neste ambiente de silencio, estudo e oração doconvento das dominicanas, Edith dedicou-se à leitura deSanto Tomás de Aquino. Ela completou o métodofenomenológico aprendido com Husserl com a visãotomista problematizando uma filosofia cristã. Vê-se esta

reflexão num primeiro ensaio editado por Niemeyer, em1929, em Halle intitulado da fenomenologia de Husserl àfilosofia de Santo Tomás. Em um dos trabalhos maisimportante de Stein, Ser Finito e Ser Eterno, houve umesforço para dar continuidade à filosofia do Santo Tomás,tentando uma harmonização deste (tomismo) com afilosofia contemporânea integrando a visão tomista comaquilo que Stein considerava “aquisições válidas da

fenomenologia”, afinal, Edith Stein torna-se bastantetomista quanto ao conteúdo, mas permanece sempre como método fenomenológico.

 Após traduzir para o alemão as Questiones Disputatae de Veritate  (perguntas discursivas sobre a Verdade), deSanto  Tomás,  Stein  começa a comparar a fenomenologia

de Husserl e a filosofia de Santo Tomás. Edith Stein definiua Philosophia Perennis  (do latim: filosofia perene) como o

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verdadeiro espírito filosófico presente em todos os grandespensadores que buscam descobrir a inteligibilidade douniverso. “Philosophia perennis significa no entanto algobem distinto: trata-se a meu ver do espírito do filosofarautêntico, que vive em todo filósofo autêntico, ou seja, emtodo aquele movido por uma necessidade interiorirrecusável de investigar o logos ou a ratio

4 (como costumotraduzir esse termo grego) desse mundo.” (STEIN, 2005, p.305.)

Edith propõe que se admita uma única disciplinadenominada por ela de filosofia. Essa filosofia é obra darazão num sentido que engloba a razão sobrenatural,informada pela revelação e a razão natural, fruto de umesforço pessoal. Sendo assim, esta filosofia tem comoponto de partida a fé. Para Santo Tomás, diz ela, “averdade primeira, o principio e o critério de toda verdade éDeus. (...) O axioma filosófico primordial” (STEIN apud  MIRIBEL, 2001, p.74).

Vejamos como Edith Stein resume seus estudos:“Husserl e Tómas de Aquino acham que o fim da filosofia édar uma compreensão do mundo, a mais universal, a maissolidamente fundada a que se possa chegar. Husserlprocura seu ponto de partida ‘absoluto’ na imanência daconsciência. Para Tomás, ao contrario, o ponto de partida éa fé. A fenomenologia considera-se uma ciência do ser e

demonstra como uma consciência, graças ás suas funçõesespirituais, pode construir um mundo e eventualmentetodos os mundos possíveis. Nesta perspectiva nossomundo representa para ela uma de suas possibilidades,Qual é a constituição concreta de nosso mundo? Competeàs disciplinas positivas determiná-las. Seus pressupostospráticos e teóricos são discutidos no estudo das

4  As palavras logos e ratio significam razão sendo que a primeira vem do grego e asegunda do latim.

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possibilidades que é objetivo da filosofia. Tomás não sepreocupa com os mundos possíveis e sim com ofundamento de tal conhecimento? Sem dúvida aspesquisas sobre o ser, mas também todos os fatos que aexperiência natural e a fé nos apresentam. O ponto departida que unifica o desdobramento de todo o conjunto daproblemática filosófica e à qual ela se refereincessantemente, é, para Husserl a consciênciatranscendental pura e, para Tomás, Deus e seurelacionamento com as criaturas.”  (STEIN apud  MIRIBEL,2001, p. 76).

Por causa do tomismo estudado por Edith osdiscípulos de Husserl acharam que ela havia rompido oseguimento ao pai da fenomenologia como conseqüênciade ter se tornado católica. Husserl era protestante vindo do

 judaísmo e continuava firme, em sua filosofia. A pesar doque se comentava sua relação com Stein continuavacordial, marcada pela amizade e mútuo respeito.

Na verdade, Edith aplicou o método fenomenológicono estudo do tomismo dando-lhe continuidade eregularmente seus trabalhos apareciam nos anais deFilosofia e Pesquisas fenomenológicas de EdmundoHusserl.

O professor Dempf, de Munique, amigo de Stein, nosfala da admiração de Stein pelo método fenomenológico: “ A

fenomenologia, afirma ele, era para ela mais do que umaponte que levava ao tomismo, a fenomenologia abriu paraEdith Stein o caminho que partindo da simples objetividadedos fenômenos e de seu exato conhecimento, ia até a oconhecimento rigoroso do Ser, o caminho que vai dométodo fenomenológico ao método ontológico.”  (Dempfapud  MIRIBEL, 2001, p.104) 5 

5 Carta do professor Dempf, de 16/12/1952. 

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 A filosofia não chega a um ponto absoluto da verdadee sendo assim o método fenomenológico, como a qualquercaminho filosófico não deve chegar a emitir dogmas, masestar sempre aberto a uma continuidade, pois isto éfilosofia. O método adotado por Edith é o fenomenológico aeste método ela nunca abandonou, mas o completou parachegar a conclusões compatíveis com o tomismo.

1.3.1 As obras filosóficas.

Entre as obras mais importantes de Edith Steinpodemos citar: Ser finito e Ser Eterno e A ciência da Cruz. Na introdução da obra Ser finito e Ser Eterno ela define suanoção de filosofia cristã: na primeira parte é problematizadaa natureza do ser finito e na segunda parte o Ser eterno,para falar depois dos vestígios e da imagem da Trindadeno mundo. O livro termina abordando uma perspectiva docorpo místico de Cristo.

 A grande obra  A ciência da Cruz   nasceu quando afamília carmelitana celebrava o quarto centenário donascimento de São João da Cruz em 1942 e por estemotivo Edith Stein foi convidada pelo provincial doscarmelitas descalços a redigir um estudo sobre o santodoutor para celebrar esta data. Logo após concluir o índexda obra Ser Finito e Ser Eterno, escreveu a obra A Ciência

da Cruz , em um ano apenas, sendo a ultima parte escritano dia de sua prisão. Edith com sua irmã rosa foramlevadas para Gestapo6.

 A ciência da Cruz  é a obra de maior maturidade de EdithStein. Stein atualiza a obra de São João da Cruz valendo-se de sua filosofia. A primeira parte do livro intitulada amensagem da cruz trata das experiências pessoais de São

6 Gestapo é a policia política secreta do estado nazista.

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João da Cruz, na segunda parte é abordada “a doutrina dacruz” e na terceira parte intitulada “a escola da cruz” trata

da vivencia deste símbolo. Em toda obra está contida aantropologia do Santo doutor. Esta obra ficou inacabada,ou melhor, Edith Stein concluiu a obra com uma práxislevada até ao extremo. Ela concluiu a obra  A ciência da

Cruz   com sua própria vida, quando foi assassinada juntamente com seu povo, judeu, num campo de extermínioem Auschwitz.

Para dedicar-se a tradução da obra De veritate de S.Tomás7, em 27 de março de 1931 Edith deixou de lecionarem Spira. Ao mesmo tempo, desenvolveu uma intensaatividade de conferencista.

1.4 Práxis ao extremo.

Para Edith Stein, a teoria sem a prática não tem sentido

nenhum. Assim, por exemplo, ela era intolerante com ainjustiça. Em Münster animou seus alunos a formarem umgrupo para oporem-se aos grupos de estudantes nazistas.Diante dos acontecimentos Stein não hesitou em escreverao Papa Pio XII advertindo para um futuro sombrio epedindo que o Sumo Pontífice escrevesse uma encíclicapara defender os judeus.

Numa noite em que havia esquecido a chaves paraentrar no colégio, um professor católico a convidou apernoitar em sua casa onde sem saber da origem judaicade Edith contou-lhe sobre as atrocidades contras os judeusna Alemanha, matéria que constavam num jornalamericano. Neste momento ela entendeu que seu destino

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  São Tomás (1225-12274): Filosofo e teólogo italiano, que no período medievaldestacou-se como pensador que mais influenciou sua época. Construiu sua reflexãocombinando elementos aristotélicos e neo-platônicos dentro de seu contexto cristão.

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seria o mesmo de seu povo e interiormente se uniu a ele seoferecendo a Deus para levar tão pesada cruz.

Em 19 de abril de 1933, Stein foi afastada do institutoem Münster, por causa de sua origem judaica. Então elapercebeu que este era o momento apropriado de realizarseu sonho a doze anos desejado: ser carmelita. Asdificuldades não eram poucas: sua idade, quarenta e doisanos, a origem judia e a falta de recursos financeiros.Contudo, após ser examinada pelos responsáveis peloCarmelo de Colônia, foi admitida na comunidade eingressou no dia 15 de outubro, festa de santa Teresa de

 Ávila. A partir do momento em que a mãe de Edith ficou

sabendo que sua filha além de ser católica iria se tornaruma freira carmelita não houve mais paz em sua família. Aindignação da Senhora Stein era tanta que por vezes teveataques de fúria, explosões de raiva. Sua mãe imaginavafalsos motivos para a filha estar no Carmelo e não

adiantariam explicações. Restava as duas somentesuportar este sofrimento irremediável. Mãe e filhapensavam que perderiam a saúde devido a tamanhapressão psicológica, contudo resistiram firmes até o fim desuas vidas. Ambas morreram convictas de sua fé.

Mais tarde, no Carmelo, ela solicita a sua superiorapermissão para levar a cruz de seu povo judeu: “Querida,

vossa Reverendíssima, permitir que eu me ofereça aoCoração de Jesus, em holocausto pela paz no mundo. Queo reino do Anticristo seja esfacelado, se possível, sem umaguerra mundial, e que uma verdadeira nova ordem sejaestabelecida. Gostaria de me oferecer ainda esta tarde,porque é a décima - segunda hora. Sei que nada sou, masJesus assim o quer. Não há duvidas de que ele dirija este

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apelo a muitas outras almas, nestes nossos dias.”  (STEINapud  MIRIBEL, 2001, p.140) 8 

Edith via no sofrimento o valor de co-redenção paraaqueles que participando do corpo de Cristo o seguindo emtudo e pela fé são um prolongamento da paixão e morte deJesus. Desta forma, com o sofrimento oferecido por umhomem se resgata outro homem, outrora afastado de Deuspor causa do mal. Ela afirmava não mais ser possívelparticipar da missa sem desejar unir-se ao sacrifício deCristo pela salvação do mundo.

No dia 15 de abril de 1934, conforme antiga tradição,num domingo, Edith se consagra recebendo o hábitocarmelita e adotando o novo nome de Irmã TeresaBenedita da Cruz. Ela escolheu o nome da Santa que lhedespertou para fé e acrescentou a este o sobrenomeBenedita da Cruz, que equivale à bendita cruz, assumindoassim publicamente sua opção radical pelo caminho dacruz, pela vivencia deste símbolo.

Para entrar no Carmelo Stein se dispusera a sacrificarsua atividade de filósofa, contudo recebeu a ordem, do seusuperior provincial, de continuar a sua atividade depesquisa fenomenológica com os seus trabalhos filosóficos.Desta forma pode terminar uma obra esboçadaanteriormente do título  Ato e potência a qual deu origem àobra Ser Finito e Ser Eterno.

1.4.1. Ave Crux, spes única (Salve Cruz, única esperança)

Edith Stein buscou fugir da ameaça de morte, sendoassim, fica descartado o caráter suicida de sua práxisradical como veremos a seguir:

8 Bilhete de 26/03/1939 à madre Priora do Carmelo de Echt, incluído no Livro de MadreThérése-Renée: Edith Stein, Lebensbild einer Philosophin und Karmelitim., cf., p.223.

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Depois da “noite dos cristais”9, é o nome popularmente

dado aos atos de violência ocorridos na noite do dia novede novembro de 1938, a permanência na Alemanha tornou-se, a partir de então, arriscadíssima. Por este motivo, Steinfoi enviada pelos seus superiores para o convento de Echt,na Holanda. As carmelitas acolheram em seu seio a exiladano dia 31 de dezembro de 1938.

Em janeiro de 1942, Edith planejou fugir para Suíça comsua irmã, contudo encontrava dificuldades de acolhimentopara irmã Rosa que por ser de ordem terceira, ou seja, nãoera religiosa, deveriam arranjar abrigo em outro lugar, poiso Carmelo acolheria somente Edith.

Nesta época, Milhares de famílias judias já foramexpulsas de suas próprias casas e separados em camposde concentração, onde encontrariam trabalhos forçados,tortura, morte e incineração de seus corpos.

No dia 2 de agosto, aproximadamente às cinco horas datarde, Edith Stein e sua irmã Rosa foram presas e levadas

para Gestapo. Chegaram às cinco horas na estação detrem de Hooghalen, foram levadas a um campo deconcentração composto de milhares de barracas a unscinco quilômetros da estação. Depois partiram para ocampo de concentração de Amersfoot. A viagem até

 Amersfoot ocorreu sem incidentes, mas ao chegarem,sofreram toda sorte de vexames e foram coagidos a

coronhadas pelos soldados da S.S. , Soldados das Tropasde Assalto, para dormitórios de onde não poderiam sairpara nada. Os judeus não católicos foram alimentados, oscatólicos eram tratados de forma mais impiedosa. Todospartiram para o campo de concentração em Westerbork, deonde puderam enviar telegramas.

9  Ficou conhecida aquela noite de brutal violência de “noite dos cristais” devido aos

cacos de vidro as lojas e sinagogas destruídas deixando uma imagem caótica resultadoda violência. 

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Um comerciante judeu de nome Julius, que escapou dadeportação com sua esposa, nos contará a impressão queteve da irmã Teresa Benedita: “(...) entre os prisioneirosque chegaram no dia 5 de agosto ao campo (deWesterbork), destacava-se nitidamente Irmã Benedita porseu comportamento pacífico e sua atitude tranqüila. Osgritos, lamentos e o estado de super excitação angustiosados recém-chegados eram indescritíveis! Irmã Beneditaestava no meio das mulheres, como um anjo deconsolação acalmando umas, tratando de outras. Muitasdas mães pareciam entregues a uma espécie deprostração próxima à loucura. Deixavam-se ficar por lágemendo como atoleimadas e descuidando-se de seusfilhos. Irmã Benedita ocupava-se dessas crianças, dava-lhes banho, penteava-os, preparava-lhes o alimento,cercando-as dos cuidados indispensáveis. Durante todo otempo que esteve no campo, dispensou a seuscompanheiros uma ajuda tão caridosa que todos se

mostravam comovidos.”  (MARKUS apud   MIRIBEL, 2001,p.187)

Este comerciante perguntou a Irmã Benedita o que iriaacontecer com ela depois daquele momento e ouviu umaresposta simples e serena. Ela lhe disse que estavatrabalhando e rezando e esperava poder continuartrabalhando e rezando. Vejamos a mensagem da Irmã

Benedita enviada do campo de concentração endereçadaao Carmelo: “Querida madre. Quando Vossa Reverênciareceber a carta de P... (nome ilegível) ficará sabendo o queele pensa. Parece-me que nas circunstancias atuais émelhor nada tentar. Abandono-me, porém, nas mãos deVossa reverência, deixando-lhe a decisão. Estou contentecom tudo. Não se pode adquirir uma ‘scientia crucis’

(Ciência da Cruz, era o título de seu ultimo trabalho) semcomeçar por suportar verdadeiramente o peso da Cruz.

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Desde o primeiro instante, esta foi minha íntima convicçãoe disse do fundo do meu coração: Ave crux, spes única. Devossa Reverência, a filha agradecida, Irmã B...” (Stein apud  MIRIBEL, 2001, p.188)

No dia 9 de agosto de 1942 Edith Stein e sua irmã Rosaforam enviadas para o campo de extermínio de Auschwitz e

 juntamente com tantos outros judeus foram Levados paracâmara de gás10  e gaseificados até a morte, seus corposforam incinerados em fornos crematórios.

Domingo, 11 de outubro de 1998, data da canonizaçãode Edith Stein pelo Papa João Paulo II, que para oscatólicos significa acrescentar ao numero dos testemunhosheróicos mais um exemplo de vida, Stein deixa de modoespecial o testemunho da busca da verdade.

Um pequeno trecho da homilia do Papa expressa bem amensagem de Irmã Benedita: “Irmã Teresa Benedita daCruz disse a todos nós: Não aceitem como verdade nadaque esteja privado de amor. E não aceitem como amor

nada que esteja privado da verdade! Um sem a outra setorna uma mentira destruidora. A nova Santa nos ensina,enfim, que o amor por Cristo passa pela dor. Quem ama deverdade não recua diante da perspectiva do sofrimento:aceita a comunhão na dor com a pessoa amada.”  (JoãoPaulo II apud  Sciadini 2007, p.134)

Edith Stein formulou sua própria filosofia, fruto de uma

busca pessoal pela verdade. O que dá mais credibilidadeao seu pensamento é o testemunho da práxis, possívelmesmo quando exigida seu limite extremo de coerência.

10  Para evitarem tumultos era dito para os judeus que a câmara de gás era um galpão para banho onde seria aplicado um produto para higienização. Havia vários chuveirossem encanamento de água para atestar a veracidade dos fatos.

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CAPÍTULO 2 FILOSOFIA STEINIANA. 

2.1 O método fenomenológico.

Como já ficou evidenciado no capítulo anterior, ométodo adotado por Edith Stein é o fenomenológico. Afenomenologia é uma escola filosófica que surgiu na

 Alemanha em fins do século dezenove e no inicio do séculovinte fundada por Edmund Husserl.

“O método com o qual tratei de solucionar osproblemas é o fenomenológico. É dizer, o método que E.Husserl elaborou e empregou pela primeira vez no volumeII de suas Investigaciones lógicas, mas que, estouconvencida, já havia sido empregado pelos grandesfilósofos de todas as épocas, se bem não de modoexclusivo nem com uma clara reflexão sobre o própriomodo de proceder.” (STEIN, 1998, p.49)

Dos discípulos de Husserl, Edith é a que mais

diretamente realizou a sua formação filosófica com ele e deforma autônoma obteve quase os mesmos resultados,como consta nesta citação: “Com efeito, é interessantenotar que se os resultados alcançados por E. Stein sãoquase iguais àqueles obtidos por Husserl, embora a alunativesse procedido de uma forma bastante autônoma,podemos deduzir que o método utilizado demonstra ser

válido, pois permite obter através da análise, efetuada porpesquisadores diferentes, descrições coincidentes.” (BELLO, 2000, p. 83)

O método utilizado chama-se fenomenologia, porrefletir sobre os fenômenos. Por sua vez, fenômeno éaquilo que se mostra, então refletimos aquilo que se mostrae como se mostra. Se uma coisa se mostra, então, se

mostra a alguém: ao ser humano a sua consciência. Somosnós que buscamos o significado, o sentido daquilo quer se

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mostra. Aquilo que se mostra pode ser algo físico como,por exemplo: um livro, um computador, mas também coisasabstratas como, por exemplo: a palavra comunidade usadapara designar um conjunto de indivíduos organizados numtodo.

Os fenômenos são as coisas que se mostram a nósdas quais percebermos o sentido. O que nos interessa nãoé o fato de se mostrarem, mas o sentido. Este sentido nemsempre compreendemos imediatamente. Para alcançar osentido devemos fazer uma série de operações.Identificando o sentido de tudo aquilo que se manifesta anós.

Husserl diz que devemos fazer um caminho, no gregomethodo, em busca dos fenômenos de forma pura.

2.1.1. Intuição eidética.

Para Husserl nosso conhecimento começa com a

experiência das coisas de fato, coisas existentes. Este fatoao apresentar-se a consciência é identificado pelaessência. Por exemplo: posso ouvir sons diversos como osom da flauta, do violão, do piano, mas neles reconheçoalgo de comum, uma essência comum. “No fato sempre se

capta uma essência. O individual se anuncia para aconsciência através do universal.” (REALI, 2008, p. 181) 

Enfim, nós intuímos o sentido das coisas quandovemos o essencial, ou seja, o essencial é o moto típico doaparecer dos fenômenos e o intuir é ter o conhecimentodas essências. Husserl usa também a palavra eidos (grega) que significa aquilo que se capta, que se intui, paradesignar a intuição da essência, intuição eidética, quedifere da intuição que permite captar os fatos. “Os fatos

particulares são casos de essências eidética.” (Idem).

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Desta forma a consciência intui o universal quando osfenômenos se apresentam a ela.

Não se trata de abstração como sustentavam osempiristas, cujo pensamento era que a essência era obtidapor meio da comparação. A essência do “Triangulo” para

eles vinha da comparação entre variações de triângulos,mas para captar vários fatos esta pressuposto um aspectopelo qual eles são comuns entre si, ou seja, a essência. Narealidade este ou esse ou aquele triangulo são idéiasparticulares da idéia universal de triangulo.

Husserl buscava uma fenomenologia fundamentadacomo ciência rigorosa deixando que as próprias coisaspossam falar de si. “Zu den Sachem selbst! (vamos às

coisas mesmas!) Torna-se o lema da fenomenologia.”

(REALI, 2008, p.183) Desta forma pode-se construir umafilosofia firmada em pontos sólidos, a filosofia para ser estaciência rigorosa deve ter como fundamento o que éindubitavelmente evidente.

Husserl então propõe à epoché11, que é colocar entreparênteses os pressupostos, os preconceitos, os estudos,livros, senso comum, enfim tudo que pretendemos saber. Aepoché purifica o intelecto e coloca entre parênteses o queé duvidoso, chegando enfim ao que ao que éabsolutamente evidente: a consciência. O filosofo podepartir da consciência, pois todos os fatos são manifestados

a ela, alcançando uma visão pura. Em outras palavras afenomenologia se ocupa da descrição dos fenômenosvividos na consciência. Ela descreve os fenômenosvoltando-se para as coisas mesmas, enfim afenomenologia é a ciência das essências.

2.1.2. A percepção e a consciência.

11  Epoché é um ermo grego para expressar suspensão de juízo.

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Num segundo momento, devemos refletir quem é osujeito que percebe o sentido da coisa12. Iniciemos areflexão com um exemplo: olhe para um objeto qualquerpróximo de você, este objeto já estava neste lugar, mas eunão refletia sobre ele não estava prestando atenção atéentão. Nós anteriormente já tínhamos uma experiênciaperceptiva deste objeto visto que já estava dentro de nós(na consciência), mas o objeto físico está fora (o objetoexiste no mundo), ou seja, enquanto visto ele está dentrode nós, enquanto vivemos o ato. Enquanto existente eleestá fora.

Desta forma, entramos no território da consciênciahumana sobre as coisas. Para Husserl, “A percepção é

uma porta”, o meio por onde se adentra na consciência dosujeito. Desta forma é possível compreender comoacontece o conhecimento.

Estamos em contato com o mundo físico através das

sensações e é desta forma que o percebemos. Esteperceber por meio das sensações é ter consciência dealgo, mas questionemos como registramos os atos deperceber e onde registramos: “ A percepção vai serresultado do dar-nos conta. Esse “dar -se conta” é a

consciência de algo, por exemplo, a consciência de tocaralguma coisa. Nós conseguimos registrar os atos e como

os registramos? Aqui está a novidade, pois Husserl diz queo ser humano tem a capacidade de ter consciência de terrealizado esses atos, enquanto ele está vivendo essesatos, sabe que os está realizando. Sabe que está vivendoesses atos, sabe que os está realizando. Sabe que está

12  Deste ponto até o tópico sobre a empatia os conceitos apresentados sobre afenomenologia estão fundamentados na obra introdução à fenomenologia de AngelaAles Bello 

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realizando esses atos na relação com algo que está vendoou tocando.” (BELLO, 2006, p. 31)

Nós também temos consciência de que estamosrefletindo. Refletir então é um novo ato, porém este atoreflexivo é uma consciência de segundo grau, é ulterior aconsciência da sensação e percepção. Assim o primeironível da consciência é o nível dos atos perceptivos esegundo nível da consciência é o nível dos atos refletivos.“(...) a percepção nasce das ações que as coisas físicas

exercem sobre o espírito por meio dos órgãos dos sentidos;no outro caso, elas nascem da reflexão sobre as atividadesque o espírito perfaz, fundamentado nas “idéias” já obtidas

pela sensação.” (HUSSERL, 1980, P.1168) Os animais, por exemplo, também sentem, percebem

as coisas, mas não refletem. Esta reflexão é uma vivênciado ser humano que percebe e registra o que percebe e temconsciência de que está vivendo o ato da percepção.

Tudo aquilo que vivemos é registrado pela

consciência. Segundo Husserl, o tato é o sentido maisimportante, pois por meio dele registramos a delimitaçãofísica de nosso corpo. O tato nos dá simultaneamente asensação de nosso corpo e do corpo externo, contudo nãoexiste somente a interioridade e a exterioridade, mastambém um terceiro momento que é o registro dos atospossibilitando o ter consciência. Entre os atos identificamos

os de impulsos (sede, fome), de instinto (sobrevivência) ede reação (susto), contudo percebemos que o ato docontrole atinge outra esfera: a do espírito. Normalmente seusa o termo corpo e alma, a alma designa tudo o que não écorpo, que não é exterior. Então, usa-se a palavra espíritopara designar o interior reflexivo do homem.

Husserl e seus discípulos analisaram a alma da

seguinte forma: a primeira parte é formada pelo impulsopsíquico, os atos não controlados por nós, nem originados

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ou provocados por nós, como por exemplo, o sentimentode medo que não é desejado por nós, mas simplesmenteacontece. A segunda parte é formada pelos atos dacompreensão, da reflexão e do meditar chamada deespírito.

Ficará entre parênteses a afirmação de que o homemé composto de corpo e alma, pois o que nos interessa sãoos atos, começando de seu registro para chegarmos àestrutura humana. “Examinando os atos, a começar peloregistro dos atos podemos chegar à estrutura do serhumano. Somos corpo-psique-espirito, como dimensão.Pela análise dos atos concluímos que a alma existe e évista em dois momentos através das característicasdiversas entre a dimensão psíquica e a dimensão espiritual.Certamente todas as dimensões são estritamenteconectadas. O espírito poderia viver sozinho? Não, oespírito habita a base psíquica e corpórea.” (BELLO, 2006,p. 41)

O ser humano tem essas três dimensões: corpo,psique e espírito. Os mesmos se dependem mutuamente.

 Através do ato descrevemos estas três dimensões.Percebemos que há uma estrutura universal em cada serhumano.

Sendo assim, a consciência é como um ponto deconvergência das três dimensões; corpo, psique e espírito.

Temos consciência destas três realidades e temosconsciência de que registramos os atos. A característicafundamental da consciência é a intencionalidade, significaque nossos atos fazem sempre referência a um objeto.

Nós identificamos diversos atos universais como;perceber, recordar, imaginar, analisar. Percepção é aprincipio o ato dirigido a um objeto físico, concreto, que se

encontra diante de mim. Portanto, eu vejo com pureza umato se consigo dizer o que ele é sempre, não em um caso

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particular, mas em geral dizer qual é o sentido do atopercebido. Husserl chama noese o ter consciência e noema aquilo de que se tem consciência.

Quando por exemplo: Olhamos para algo que invadenosso campo de visão esta percepção é ato da almapsique, mas quando optamos por olhar ou não se chega aonível espir itual, “Os atos psíquicos têm sempre motivos,

mas o que compõe os atos psíquicos é o universo damotivação e a motivação implica numa atividade espiritual”

(BELLO, 2006, p. 49) A motivação do ser humano é necessária para

decidirmos se escolhemos algo ou não. Mesmo não tendoa mesma maneira e os mesmos conteúdos, por exemplo:se a pessoa é de outra cultura, perceberá as coisasdiferentes, porém a compreensão dos atos podem seranalisados de modo geral, pois todo ser humano tem amesma estrutura. Esta questão foi aprofundada por Edith.

“Sabemos como o ser humano é constituído, quais

são as suas estruturas e as suas características. A questãoé estudada primeiramente por Husserl e desenvolvidatambém por Edith Stein sua discípula. Ela continuou ainvestigação sobre o assunto e se envolveu muitos nosatos que se referem à psique. Ela continuou a desenvolveraquilo que Husserl havia evidenciado, fez o estudo dosinstintos, dos impulsos, das energias e das reações

espontâneas que existem no ser humano e queindependem de nós.” (BELLO, 2006, p.52.)

Existe também um caminho anterior à percepção queHusserl chama de síntese passiva, significa que reunimoselementos sem nos darmos conta de que estamos fazendo.Estas operações estabelecem continuidade edescontinuidade, homogeneidade e heterogeneidade. Um

exemplo é a distinção entre um objeto e outro quando voupegar uma coisa, anterior a percepção deste objeto houve

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operações para distinguir o objeto dos que lhe circundam.Para Husserl, existem níveis mais profundos e somente apercepção do já constituído aparece à consciência,somente os níveis mais altos deste processo aparecem àconsciência.

2.1.3 Empatia.

Somos seres individuais, mas vivemos numa estruturauniversal, dando continuidade a esta reflexão antropológicacom Husserl e Edith Stein chegamos ao ato da empatia.Empatia ou entropatia designa o ato de captar a existênciade um outro ser humano semelhante a mim de formaimediata, percebo que o outro é semelhante e nãoidentifico, pois somos dois. Husserl utilizava a palavraEinfühlung 

13 para designar a empatia.“Em O problema da empatia Edith Stein, com o fito de

fazer compreender a essência do ato empático, aduz esteexemplo: “um amigo vem a mim e me diz ter perdido um

irmão e eu percebo sua dor”. Pois bem: o que é este perceber?  Eis, então, aquilo que para Stein é o problemada empatia; não se trata de conhecer a maneira pela qualvenho a saber da dor de meu amigo: “talvez chego a sabê-lo por meio da percepção de sua face pálida e sofredora,de sua voz submissa ou quase afônica, talvez ainda pormeio das palavras com que ele se exprime”. O que ao

contrário, se quer saber é: “O que tal perceber é em si, e

não por meio de quais caminhos seja possível chegar atéele”.” (REALE, 2008, p.193)

13 Esta palavra alemã utilizada por Husserl é composta por três partes, o núcleo  Fühl

significa “sentir”. Há na língua grega uma palavra que poderia corresponder a fühl ( e a

 feeling , derivada da língua latina):  pathos, que significa “sofrer” e “estar perto”. A palavra empatia  é uma tentativa de tradução desse sentir em termos lingüísticosespontâneos do ser humano, para sentir o outro. Uma outra tradução poderia serentropatia.

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Não se pode confundir empatia com simpatia. Apalavra empatia neste contexto fenomenológico significaque captamos imediatamente que estamos diante de seresvivos semelhantes a nós. Este ato da empatia, também éusado em contato com os animais, pois eles possuem onível psíquico.

Percebemos que nós e os animais somos seresviventes, contudo não estabelecemos uma relaçãoespiritual, pois o animal não é semelhante a mim. É umaentropatia limitada a entropatia com o mundo animal. Pormeio da entropatia entramos no mundo intersubjetivo.

Esta vivência ajuda no desenvolvimento pessoal, doponto de vista espiritual, assim as atividades espirituais vãoconstruindo os agrupamentos humanos, em outraspalavras através do ato da entropatia, imediatamente,percebemos que estamos num contexto humano e não decoisas ou animais. Neste contexto humano estamos juntosa outros semelhantes, outro homem ou mulher, estamos

 juntos a outra pessoa14. Desta dimensão intersubjetivadepende toda a educação, neste contexto pode-se refletirsobre nossos limites e sobre as diferentes modalidades deagrupamento humano.

2.2 Filosofia Cristã.

2.2.1 A razão e a fé.

Com relação ao método Edith Stein permanecesempre com o fenomenológico, no que se refere aoconteúdo o tomismo lhe da os pressupostos para umafilosofia cristã. Assim, Stein estabelece um dialogo entre a

14 Como ser humano é também um ser espiritual, do ponto de vista filosófico fala-se em pessoa. De fato, tanto Husserl quanto Stein usam o termo “pessoa”, acentuando o

reconhecimento da sua dimensão espiritual constitutiva.

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filosofia medieval e a contemporânea para definir aproblematização de uma filosofia cristã.

Para definirmos melhor a filosofia cristã, comecemosdizendo que filosofia não é fruto da fantasia, sentimentosou delírios elevados, mas de uma séria e serenainvestigação da razão. Somos convictos de que nossarazão é capaz de descobrir e se aprofundar noconhecimento desta mesma razão.

 A razão é infinita e o processo para o conhecimentotambém é infinito, mas a meta é a verdade plena, e destaforma, diz a direção do caminho a seguir. Este é o caminhoda razão natural que por ser infinita é inalcançável, sendoassim, podemos apenas nos aproximar gradativamente.Por isso a filosofia humana é tão fragmentada.

Todavia a verdade plena não deve ser vista como umaidéia que se atualiza num processo infinito e que nunca serealiza de forma plena. A verdade plena se chega por umcaminho paralelo ao da razão natural, pois esta é limitada.

“ A verdade plena é, e existe um conhecimento que aapreende inteiramente, que não é um processo infinito masuma abundância infinita, calma. Esse é o conhecimento

divino. A partir de sua própria abundância, ela pode sercomunicada e compartilhada com os outros espíritos e,isso, de acordo com a sua capacidade de apreensão. Acomunicação e compartilha pode acontecer de modos

diversos. O conhecimento natural é um caminho. Elepossui limites determinados e bem definidos. Mas nem tudoque lhe é inacessível é totalmente inacessível para o nossoespírito, de acordo com sua estrutura originaria.”  (STEIN,2005, p.307.)

Para não desviar da meta, nosso espírito apreende nafé comunicada pela revelação. A fé é um segundo caminho

para alcançar a verdade, para se chegar à sabedoria. Estesegundo caminho se encontra ao lado do primeiro caminho,

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a razão natural. A fé é necessária para alcançar aquilo quefoge do nosso conhecimento natural.

Quando demarcamos os limites da razão natural,conseqüentemente delimitamos a filosofia extraída darazão natural. “Kant afirmara a necessidade de sedemarcar os limites da razão antes dela se lançar nos seusnegócios”. (STEIN, 2005, p 309). Contudo, para admitiresta questão seria necessário admitir um ponto de partidafora da razão natural e questionar o modo de alcançá-lo.Seria compreensível excluir a fé deste procedimento se amesma for entendida como irracional ou um sentimento,pois filosofia é problematização própria da razão. (nosentido amplo tanto natural como supranatural). A fé leva averdades e verdades seguras como verificamos nestacitação: “(...) Fé é, em primeiro lugar, um caminho paraverdade e, a bem saber, um caminho para verdades (noplural), que de outro modo manter-se-iam veladas paranós. É, em segundo lugar, o caminho mais seguro para a

verdade, pois maior certeza do que a da fé não existe. Parao homem em statu vitae

15, não existe nenhumconhecimento com semelhante certeza como o caminho dafé, não obstante se trate de uma certeza sem evidência(uneinsichtige). Desse modo, a fé adquire um duplosignificado para a filosofia.” (STEIN, 2005, p.309).

 A filosofia busca a verdade de forma mais ampla

possível e com maior certeza. Se a fé leva a verdadesinacessíveis por outros caminhos, a filosofia não podenegá-la sem negar-se a si mesma. Desta forma a filosofiadepende da fé.

“(...) se a fé pertence a certeza mais elevada que oespírito humano pode alcançar e se a filosofia tem porexigência propiciar a certeza mais elevada possível, então

15 Statu Vitae é uma palavra oriunda do latim que significa “estado de vida”, ou seja, o

agora, o presente do homem.

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ela deve assumir a certeza da fé. Isso acontece quando,por um lado, assume as verdades da fé e, por outro medetodas as outras verdades a partir dessa verdade, tomadacomo critério último e derradeiro. Daí resulta que a filosofiaencontra-se numa dependência formal da fé.”  (STEIN,2005, p.310.)

Desta forma como ficou dividida a razão em natural esupranatural, também se dividiu a filosofia em filosofianatural e supranatural. A razão natural não conseguedelimitar seu próprio limite com as verdades que lhes sãoacessíveis, necessitando da razão supranatural para isto. Arazão supranatural protege a natural do erro e completa asverdades da natural que pensa o mundo metafisicamente.Enquanto a razão natural é quem aciona a investigaçãoracional das verdades da fé.

2.2.2 Autenticidade da fé.

 A fé é garantia de si mesma. Por meio da fé quetemos certeza de Deus, é Deus quem nos revela suaverdade crida pela fé e desta forma entramos num círculovicioso. A certeza da fé nos é concedida pela graça, edesta forma, o crente possui uma certeza tal que relativizatodas as outras certezas e abdica do conhecimentocontrario a fé. A teoria, conseqüentemente, extraída destas

relações faz parte da construção de uma filosofia a partir dafé.

O primeiro elemento a ser considerado a respeito deuma filosofia que tem como ponto de partida a fé é a maioramplitude de conhecimentos que a mesma oferece paraalém daquilo que lhe é acessível pela razão natural comovemos nesta citação do comentador Savian: “Com efeito, o

primeiro dado a considerar, dessa perspectiva, é oenriquecimento que a doutrina da fé proporciona à filosofia,

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apresentando-lhe conceitos aos quais ela, a filosofia, porconta própria, não chegaria, como é o caso, por exemplo,da idéia de criação, entre tantos outros que, emborarevelados, pela fé, no horizonte da filosofia, cabe a esta,como ciência, investigar.” (SAVIAN, 2003, p. 223)

 A revelação dá ao espírito novas tarefas, embora emsi mesmo o dado revelado é inalcançável, mas a luz darazão natural é compreensível para ela. A filosofia,valendo-se de seus próprios meios, busca harmonizar oque lhe é dado pela fé, pela revelação. E neste sentido éuma filosofia Cristã, abstraindo dos fatos da revelação.Desta forma, a filosofia necessita de um complemento emseu conteúdo para estabelecer uma sabedoria plena. Estacitação de Juvenal Savian encerra a definição de filosofiacristã: “Com a expressão filosofia cristã  não se pretendedenominar apenas a atitude espiritual do filósofo cristão,nem, simplesmente, designar as construções doutrinais, já,de fato, existentes e devidas a pensadores cristãos, mas

indicar, indo além, a idéia de um perfectum opus rationis 16.Que seja bem sucedido ao colher, numa unidade, tudoaquilo que nos é tomado possível pela razão natural e pelarevelação.” (SAVIN, 2003, p.225)

Enfim, Edith Stein percebe em Tomás de Aquino ummodelo de pensador para quem saber e fé não estão emseparação restrita, para ela, Tomás elabora uma filosofia

fundada na pura razão, sem contar com a revelação. Destaforma explica-se a ligação dele com Aristóteles e aosárabes, de tal forma que existem dois caminhos paraverdade e mesmo percebendo a limitação da razão, elapode, entretanto, chegar até certo grau de onde o filosofopossa eliminar os erros e provar que existe um acordo

16  Perfectum opus rationis literalmente significa perfeito trabalho da razão, obra perfeitada razão.

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entre aquilo que se pode demonstrar naturalmente e asverdades da fé.

CAPÍTULO 3 O SENTIDO DO SOFRIMENTO HUMANO.

3.1 Da fenomenologia a “Ciência da Cruz”. 

Se a filosofia busca a verdade de forma plena, então ainvestigação filosófica sempre acabará se deparando como absoluto: “Nossas investigações sobre o ser finito, vãonos conduzindo ao ser eterno como o ser original do qualdepende todo ser.” (Stein, 1996, p. 395). Este ser eterno,

no que se refere à filosofia cristã, deve ser visto pelofilósofo sem preconceitos como nos propõe o métodofenomenológico. Desta forma estando aberto para aquiloque vai além da razão natural, o filósofo, abstrai umacompreensão maior de mundo independentemente se crêou não.

“Conforme o ponto de vista da filosofia, não existenenhum inconveniente para um trabalho comum. Pode elatirar ensinamentos dos gregos e dos modernos paraenriquecer-se segundo o princípio: examinar tudo econservar o melhor. Por outro lado, pode por à disposiçãode outro o que ela tem a doar, deixando aos outros o íconee a seleção. Para o incrédulo, não há motivos reais de

desconfiança, em relação aos resultados de seu métodonatural, desde que seja a medida das mais abrangentesverdades da razão e também da verdade da fé. Ele é, poislivre para usar os moldes da razão com todo rigor e recusartudo o que não lhe seja suficiente. Ainda mais, deledepende seguir o caminho, tomando igualmenteconhecimento dos resultados adquiridos por meio da

revelação, não aceitaria as verdades da fé empregadascomo tese, contrariamente como faz o crente, mas

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somente como ponto de partida. (hipótese)” (STEIN, 1996,p. 47)

Desta forma tomemos “a cruz” de Cristo como símbolo

de tudo que é pesado, humilhante e contrário a nossanatureza, enfim, símbolo do sofrimento humano. Nãoesquecendo que o Cristo é um homem histórico de radicaltestemunho da práxis e da opção pelo amor até suasúltimas conseqüências. Então a “cruz” de Jesus tornou-seum símbolo histórico para humanidade.

“ A cruz adquiriu significado por sua história; não émero objeto criado pela natureza, e sim instrumento fabricado e usado pelo homem para um fim determinado.Como instrumento, a cruz desempenhou na história umpapel de incomparável alcance, como o sabem todos osque vivem em ambiente cultural cristão. Por essa razão, acruz conduz o espírito, em virtude de sua forma concreta, àplenitude do sentido que ela se liga. É pois um sinal, cujosignificado não é artificial, mas real, condicionado pela

história. Sua forma visível conduz à vasta gama deconotações em que ocupa um lugar determinado. Assim,podemos com razão chamá-la de insígnia.”(Stein, 2004,p.41)

Na obra  A ciência da cruz,  Edith Stein atualiza aantropologia - filosófica de São João da Cruz17 valendo-seda fenomenologia e do tomismo. O termo “ciência da cruz”

remete a uma significação não somente teórica, masteórica e prática; esta práxis significa viver emconformidade com este símbolo, a cruz. Stein expressaneste livro suas profundas convicções pessoais nãosomente como teorias, mas como ciência vivida e

17  Frei carmelita São João da Cruz (1542  –   1591): sacerdote nascido em Ávila foi o

reformador do Carmelo masculino. Em 1926, o Papa Pio XI o proclama doutor daIgreja significando que São João da Cruz trouxe nova forma de experiênciar aespiritualidade. Edith Stein se utiliza de São João da Cruz por se identificar com suaantropologia - filosófica. 

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estudada. Stein soube através da filosofia encontrar umsentido para nossos tempos: “Edith Stein não é umateóloga no sentido técnico. Ela é, sim, uma filósofa quesoube buscar na fenomenologia de Husserl o que aajudaria a compreender o pensamento contemporâneo.Tenta ler a fenomenologia à luz de Santo Tomás de Aquinoe percebe que é possível dar um passo à frente, tendo acerteza de que a fenomenologia nunca poderá aplicar-seàs guerras, à destruição e à morte.” (SCIADINI apud  Kruse,2004, p. 4)

Note-se que os termos “pessoa, eu, liberdade”

contidos nesta obra,  A Ciência da Cruz , não provêm deJoão da Cruz. Stein apenas encontra alguns indícios, poistratar desses assuntos não foi a intenção de São João daCruz, nem correspondem ao seu pensamento. Aelaboração de uma filosofia da pessoa, da qual existemapenas alguns trechos indicados, correspondem a umatarefa da filosofia contemporânea.

3.2 O ser que sofre e busca refletir sobre o sofrimento.

Para Stein, o fenômeno do sofrimento é de tal formafamiliar ao homem, que ninguém foge a esta realidade, istoé indiscutível. “(...) viver neste mundo sem dificuldade

alguma não é possível; as dificuldades são tão familiares

ao homem, desde a infância, que já se tornam parteintegrante de sua natureza.” (SEIN, 2004, p.47). Antes de

entrar na questão do sentido do sofrimento humano énecessário entender quem é este ser que sofre e que écapaz de refletir sobre seu sofrimento.

Edith Stein, na intensa busca pela verdade construiuseu pensamento em torno do ser humano o tomando comoeixo. “Fui me encaminhado para algo que se encarnavapessoalmente em mim e que ocuparia todos os meus

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estudos futuros: a constituição da pessoa humana.” (STEIN

apud  GARCIA, 1987, p. 55). Conforme Stein, o ser humanoé um ser que possui um corpo, uma alma e um espírito, deforma harmônica e conectadas com exatidão18

. “A divisão

tradicional tripartida: corpo-alma-espírito não deveentender-se como se a alma do homem fosse um terceiroreino entre outros dos que existem independentementedela. Nela, a espiritualidade e a vida sensível se coincideme se enlaçam.” (STEIN, 1996, p.386) 

Edith conclui de suas investigações que a essência doser humano, ou seja, o que faz o homem ser homem e nãooutra coisa é senão o ser pessoa.  Os únicos seres quepodem ser assim denominados, pessoas, são os seres quepossuem um corpo animado e que possuem uma naturezadotada de razão. “O termo  pessoa  indica o que é maisperfeito em toda a natureza, a saber, uma coisa quesubsiste em si mesma e uma natureza dotada de razão(...)” (AQUINO apud  STEIN, 1996, p. 373)

 A alma humana é percebida por Stein em duasdimensões: A alma enquanto sensível, que vivifica o corpoestando em toda sua extensão e enquanto espiritualtranscende a si mesma comunicando-se através dainteligência. “A alma é todo o espaço  médio do todoformado pelo corpo, a alma, e o espírito” (STEIN, 1996,

p.386) Sua essência (do homem) enquanto espírito o faz

sair de si mesmo com sua vivencia espiritual para adentrarno mundo que se apresenta a ele sem perder nada de simesmo.

Perceba-se que é esta dimensão espiritual quecaracteriza o homem como ser pessoal capaz de seconhecer e de dominar seus atos “Ser pessoa quer dizer

18 Conectadas com exatidão significa que corpo, alma e espírito são dimensões de umúnico ser, o homem. E que de forma natural não é possível separar uma dimensão daoutra sem comprometer a existência do homem.

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ser livre e espiritual. Que o homem é pessoa: isto é o que odistingue de todos os seres da natureza” (STEIN, 1998, p.141). Edith percebe que somente o ser humano podepronunciar “eu”, pois somente o homem pode ter

consciência que percebe. Conseqüentemente capaz derefletir se o sofrimento possui um sentido.

Quanto ao corpo, o ser humano percebe-se limitado,pois não lhe é possível observar-se de todos os lados, detodos os ângulos, pois ele não consegue sair de si mesmopara observar-se (aqui se referindo a substância material).Contudo, o homem pode se perceber por dentro não só porser corpo, mas por ser corpo animado, ou seja, corpo-alma-espírito. Em outras palavras, o espírito transcende aslimitações físicas do corpo, o espírito busca o universal edesta forma supera o particular que é a substância materialdo corpo. Por exemplo, racionalmente sabemos que ocorpo é finito, contudo o espírito humano anseia e buscapelo eterno. 

3.2.1. A estrutura da alma.

Para São João da Cruz a estrutura da alma19  é daseguinte forma: a alma é dotada de varias faculdades:inferiores (sensíveis) e superiores (espirituais). Na parteinferior encontram-se as faculdades cognitivas e apetitivas.

Os sentidos são como janelas da alma por ser o meio deaceso ao mundo exterior. Contudo, nenhum conhecimentosensível ocorre sem a atividade do espírito, parte superior.

 A parte inferior abrange tudo que o entendimento podealcançar por meio dos sentidos corporais e própriaperspicácia e a parte superior diz respeito a tudo quanto

19

  São João da Cruz usa o termo alma se referindo ao homem enquanto ser espiritual.Em outras palavras se refere às atividades da interioridade do homem. Deste ponto emdiante estão presentes de forma mais direta a antropologia  –  filosófica de São João daCruz atualizadas por Edith Stein.

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recebe o entendimento de modo mais elevado que suaprópria capacidade e aptidão natural.

Neste pensamento, São João considera ainteligência, a vontade e a memória como faculdades daalma. As faculdades são responsáveis pelas diversasatividades da alma, cada qual com uma funçãodeterminada. Como vimos no primeiro e segundo capítulo,Stein tem um conteúdo bastante tomista, mas aqui eladiscorda de Santo Tomás e reconhece o pensamento deJoão da Cruz que considera a memória como terceirafaculdade espiritual da alma, além da inteligência e davontade, diferente do tomismo que considera somente ainteligência e a vontade.

Em sua atividade natural, a alma está ligada aossentidos e realiza todos os processos que competem àinteligência, interagindo com o mundo. Igualmente avontade realiza escolhas e se projeta. A memória cuida dereter as impressões dos sentidos e atividades espirituais.

Contudo, o espírito não tem por finalidade prender-se àscoisas criadas, pois desta forma haveria uma inversão desua genuína essência. O espírito deve ser elevado à suaverdadeira finalidade que é voltar se para o ser eterno. É afé20 que conduz o espírito ao ser eterno.

“O espírito deve privar-se de tudo aquilo com que seocupa naturalmente, deve ser educado para Deus e

somente nele colocar sua alegria. Isso vem a realizar-seporque se oferece às forças naturais algo de mais atraentee satisfatório do que elas naturalmente seriam capazes deaproveitar. A fé dirige a inteligência para o Criador de todasas coisas, aquele que é infinitamente maior, mais alto emais digno de ser amado do que todas elas.”  (STEIN,2004, p.98)

20 Entenda-se a fé no sentido explicitado no segundo capítulo sobre filosofia cristã, fécomo aquisição de um conhecimento que ultrapassa os limites da razão natural. 

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Interagindo com o mundo, a alma é atingida por tudoque é exterior, arrastando-a para fora, porém o ser humanoé chamado a viver no seu íntimo para governar-se a simesmo, sendo assim livre e somente livre se estiver nesteponto de apoio. O ser humano em sua liberdade pode sairda superficialidade e descer nas profundidades da verdade.

Percebe-se então, que o homem que se entrega aosprazeres dos sentidos geralmente se encontra entregue aalgum prazer sensível ou impelido a buscá-lo, por issomuito longe de seu intimo. É no intimo da alma onde resideo desejo de buscar a verdade. Aquele que busca a verdadebusca Deus (sendo consciente disto ou não) “Deus é a

verdade. Aquele que procura a verdade está à procura deDeus, mesmo que não o saiba” (STEIN apud   SCIADINI,2007, p.58) e desta forma, a alma adentra em suainterioridade já antecipando o que será melhor explanadono próximo tópico sobre a relação alma e Deus. A alma aotrilhar um caminho de maturação se aprofunda em si

mesma e ao mesmo tempo cresce no conhecimento daverdade plena, Deus. Nesta mutua relação entreautoconhecimento e busca pelo ser eterno a alma encontraseu âmago.

“Quem procura a verdade prefere escolher comoponto central de sua permanência a atividade indagadorada inteligência; e, se é realmente a verdade que tal pessoa

procura (e, portanto, não um mero amontoado deconhecimentos particulares), podemos afirmar que elaesteja talvez se aproximando de Deus, que é a própriaverdade, e portanto esteja se aproximando de seu próprioíntimo: estaria mesmo bem mais próxima do que se poderiaconjeturar.”( STEIN, 2004, p.137)

Note-se que é intrínseca ao homem esta inclinação

pelo universal. O homem busca a plenitude por trazer em sio reflexo de Deus, e desta forma, participa da divindade de

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seu criador. “(...) a alma é feita toda divina, e se torna Deuspor participação, tanto quanto é possível nesta vida.”

(CRUZ, 2002, p.713). Esta participação do homem nadivindade do criador ocorre porque o homem sendo serfinito só poderia atingir a plenitude participando do sereterno, sendo assim, o ser humano torna-se Deus porparticipação, enquanto o ser eterno é Deus por natureza.Esta união tem como força de atração o amor.

“Deus não pode amar nada fora de si; para ele, amaruma alma é, de certo modo, introduzi-la em si mesmo,igualando-a consigo. Assim, ele ama a alma em si, consigoe com o mesmo amor com que se ama. E por isso cadauma das obras da alma a faz merecer aumento de amor deDeus – pois a alma age em Deus. Elevada a essa altura egraça, em cada obra a alma merece o próprio Deus.” (STEIN, 2004, p. 212)

No pensamento steiniano esta participação do homemna divindade do criador está ligada ao aperfeiçoamento

pessoal e, por isso mesmo, realiza-se aos poucos, pordepender da disposição da alma. Neste processo dematuração em que o homem vai gradativamente seassemelhando mais com Deus, percebe-se que foramusados os conceitos de Aristóteles21  que distinguem aforma da matéria (substância). Por exemplo: um bloco deouro (matéria) se torna uma estátua por meio de um

processo em que vai sendo moldado dentro de certa figura(forma).

Note-se que para Aristóteles o que fazia algo ser oque é e não outra coisa é sua forma, sua essência. Porexemplo: Sócrates é composto de matéria e forma. Asubstância primordial, que é a forma, é o que faz com que

21  Aristóteles (382 -322 a.C.): Filósofo grego que construiu seu pensamento principalmente influenciado por Platão e também se valendo dos pré-socráticos.

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Sócrates seja o que ele é, e, neste caso, é a alma aessência de Sócrates. Prosseguindo nesta reflexão, aalma, neste processo de autoconhecimento, segundo Stein,vai se assemelhando com o ser eterno. “Tal união das duas

naturezas, com tal comunicação da natureza divina àhumana que, embora nenhuma delas mude de essência,cada qual parece Deus. Ainda que nesta vida isso nãoaconteça de modo perfeito, já é superior a tudo quanto sepossa dizer e pensar” (CRUZ apud   STEIN, 2004, p.205).Não esquecendo que a essência do homem, que é serpessoa,  realiza-se nesta relação ser finito e ser eterno equanto mais à alma, ser finito estiver em seu intimo mais seassemelhará ao ser eterno, pois no pensamento steiniano éno intimo do homem que se encontra a verdade, a verdadeque é Deus.

3.3. O sentido do sofrimento humano.

3.3.1. A relação da alma com Deus.

O pensamento steiniano que responde a questão dosofrimento humano tem como pressuposto a relação daalma, ser finito, com Deus, ser eterno. Em primeiro lugar énecessário supor Deus como o fundamento de todo o ser,aquele que dá a existência e a conserva.

São João da Cruz designa Deus como “o ponto de

repouso da alma” (CRUZ apud   STEIN, 2004, p.129), ouseja, o centro gravitacional. Ele utiliza esta comparação,tirada das ciências naturais de sua época, para explicarcomo o ser eterno atrai o ser finito. Este conceito de centrogravitacional diz que os corpos são atraídos com força totalpara o centro da terra, que é o ponto de maior atração. Por

exemplo: uma pedra enterrada já estaria em certo ponto derepouso, mas não teria alcançado o pondo de repouso

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absoluto, pois ainda teria capacidade, força e tendênciapara uma queda mais profunda que a fizesse alcançar ocentro da terra.

De forma análoga o homem, usando a linguagem deSão João da Cruz: a alma, valendo-se de todas as suasforças pode alcançar seu centro de repouso absoluto que éDeus. Contudo, esta plenitude não se realiza nesta vida.Mesmo que a alma atraída pelo ser eterno tenhaencontrado um ponto de repouso, não terá atingido omáximo, por ser possível adentrar em Deus maisprofundamente, pois a força que atrai é o amor, que emnossa existência sempre pode alcançar graus maiores.Quanto mais próxima a alma (o homem) estiver desteponto de repouso absoluto, mais estará próxima de simesma, mais conhecerá o ser eterno e conseqüentementeconhecerá a si mesma, seu íntimo, seu centro. Em outraspalavras conhecerá sua essência.

“Quanto maior o grau de amor, tanto mais intimamente

a alma é possuída por Deus. Pelos degraus da escada, aalma sobe para Deus, para a união com ele; e quanto maissobe para Deus, tanto mais profundamente desce em simesma: a união há de realizar-se no intimo da alma, nasprofundezas do seu âmago.” (STEIN, 2004, p. 129)

Pode a princípio parecer contraditório, mas trata-se deimagens espaciais que se relacionam para indicar algo que

está fora do espaço e não podem ser traduzidos de formaconveniente usando-se de elementos da experiêncianatural. Enfim, o ser eterno e o ser finito estão em relaçãode tal modo que o crescimento da alma em direção aosumo bem é o mesmo movimento da alma aprofundar-seem si mesma.

Para Edith a alma (o homem) enquanto espírito possui

um intimo que é a sua essência, onde se encontra emcasa. Os sentidos condicionam e limitam a alma, porém em

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seu intimo ela pode mover-se livremente fundada naqualidade de ser um “Eu”. O “Eu” é o que permita a alma

abarcar a si mesma e o que se move nela, este “eu” lhe

permite buscar o conhecimento de si mesma. Neste pontomais profundo da alma reside sua liberdade: o lugar onde aalma abarca sua existência e decide sobre si mesma.Desta forma o ser humano é livre.

“É livre porque é dono de seus atos, porque determinapor si mesmo sua vida inferior a forma de atos livres. Osatos livres são o primeiro campo do domínio da pessoa.Porém toda natureza humana que lhe é própria lhepertence, posto que ela influa por sua ação sobre ainformação do corpo e da alma.” (STEIN, 1996, p.391)

Esta liberdade encontrada no próprio íntimo permiteao homem ser coerente com sua interioridade, significa quea alma trilha um caminho de autoconhecimento. Edith naobra Ser Finito e Ser Eterno cita a máxima de MaxScheller 22  para discordar dele: “queres conhecer -te a ti

mesmo, olha como agem os outros” (Schiller apud   Stein,1996, p. 364). Ela justifica a discordância dizendo não serpossível a alma encontrar a própria imagem nas outraspessoas, se ela não conhecer a si mesma.  Enfim, paraStein, o ser humano é imagem de Deus e em sua essênciao homem traz em si o reflexo desta imagem. Usando umaanalogia, o ser humano seria como um espelho. Deus se

reflete em toda sua criação, porém de modo particular nohomem.

O homem de forma livre e autônoma em seu processode amadurecimento e autoconhecimento vai se formandoimagem de Deus. “A imagem dinâmica de Deus no homem

vai se clarificando pelas vias do conhecimento de si mesmo

22 Max Scheller (1874-1928): foi um filósofo alemão da fenomenologia que dedicou-seespecialmente a reflexão sobre os valores.

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e pelo desenvolvimento das possibilidades de maturaçãodo ser.” (GARCIA, 1987, p. 60).

3.3.2. Causa do sofrimento.

O homem é capaz de reconhecer que a humanidadese encontra em estado decaído, pois nota-se claramenteque ela perdeu o valor e o sentido de sua dignidade.“existem sinais naturalmente perceptíveis a indicar que a

natureza humana, tal qual a conhecemos, encontra-se emestado decaído. Daí a incapacidade de aprendermosintimamente os fatos segundo seu valor e de reagirmosadequadamente a eles.” (STEIN, 2004, p.12)

Para Stein, este estado decaído deve-se à perca dadignidade humana por causa da queda dos primeiros pais(tal queda é suposta pela tradição judaico-cristã) 23.Chama-se pecado a este estado decaído, ele é fruto dolivre-arbítrio humano. Dito de outra forma: o pecado é a

ação moral fruto da escolha do homem que opta pelaprivação de seu bem maior, o sumo bem (Deus). Conformeo tomismo24 o pecado é o maior mal, pois é um mal moral(mos, vem do latim e significa costume, hábito). O malfísico se opõe somente a finalidade orgânica e imanente,enquanto o mal moral se opõe radicalmente ao fim últimodo homem que é voltar-se para aquele que lhe pode

conceder a plenitude: o ser eterno. Entenda-se o mal comoprivação do bem. Somente quando o homem pratica o malé que pode experimentá-lo, entendendo sua total oposiçãoao bem e conseqüentemente ao sumo bem, Deus.

23 Conforme a tradição judaico-cristã o homem passou de um estado pleno, no sentidode que o homem naturalmente percebia o essencial da realidade, para um estado decaído

 por causa do livre-arbítrio, onde a luz da verdade a sabedoria divina lhe é trevas para o

intelecto.24  Como vimos Edith Stein vale-se de um conteúdo tomista para fundamentar seu pensamento, também São João da Cruz usa o tomismo como fundamento de suareflexão. 

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“Debaixo da árvore do paraíso, a mãe (a natureza humana)

foi violada na pessoa dos primeiros pais, pelo pecado.”

(STEIN, 2004, p.205)Em outras palavras, para Edith Stein o pecado é a

deturpação da natureza humana, um distanciamento daprópria essência, de si mesma. Usando uma analogia, olivre-arbítrio do homem é a árvore do paraíso e seu fruto éo pecado. Das conseqüências do pecado, a mais terrível éa paixão e morte de Jesus Cristo, onde o pecado manifestatoda sua crueldade; onde Jesus experimenta o sofrimentomais profundo. “(...) Deus escondido é considerado o

sofrimento por excelência (...) O abandono por Deus, emgrau supremo, foi reservado a Jesus.” (Stein, 2004, p.206).

Jesus Cristo, por ser homem-Deus, é capaz de fazer ocaminho de retorno ao “ser em pessoa”

25  econseqüentemente abre para a alma a possibilidade de“ser pessoa”. Sendo Deus, Cristo não poderia sofrer, esendo simplesmente homem, não poderia avaliar a

felicidade de que se privara. “Eis porque a encarnação é

condição de tal sofrimento: a natureza humana, sendocapaz de sofrer e sofrendo realmente, é instrumento deredenção. O motivo do sofrimento redentor e, portanto, daencarnação é a natureza humana exposta à queda erealmente decaída.” (STEIN, 2004, p.206). Em outras

palavras o homem não é capaz de desfazer sua própria

corrupção, pois, preso ao sensível, não compreende oespiritual, que é seu estado primitivo; e Deus, sendoespírito, não poderia dar um valor transcendental aosofrimento, por não poder experimentá-lo. Em Cristo, aquestão se resolve, pois Jesus é ao mesmo tempo homeme Deus sendo capaz de sofrer dando novo sentido aosofrimento.

25 Deus é o ser em pessoa como consta na citação: “Aquele cujo nome é ‘eu sou’ é o ser

em pessoa” (STEIN, 1996, p.359)

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O homem-Deus, então, abriu o caminho que conduz aEle, desta forma a cruz torna-se caminho para a verdade: osofrimento purifica o homem do que lhe prende ao sensível,dando-lhe acesso ao espiritual, onde o ser humano seplenifica como pessoa. “A liberdade de todos os recursos e

apoios de ordem sensível lhe permite receber iluminaçõese tornar-se acessível à verdade” (STEIN, 2004, p.53).

Sendo assim, da mesma forma esta experiência dosofrimento redentor é aprofundar-se em conhecimentopróprio. “(...) a alma só chega à purificação pelo profundo

sofrimento causado pelo conhecimento da suapecaminosidade.” (STEIN, 2004, p. 207). Somente quando o homem reconhece que vive preso aos sentidos, e, destaforma, deturpando sua própria natureza espiritual é que elepoderá buscar o bem supremo o único capaz de revelar osentido real de seu anseio pelo universal, pela própriaplenitude. 

Perceba-se nesta citação que o meio para alcançar a

plenitude (restauração) do homem foi o mesmo usadoanteriormente pelo mesmo para deturpar-se: “Em que

sentido, porém havemos de entender que o lugar darestauração será o mesmo que o da queda, e que a árvoreda cruz seja a própria árvore do paraíso? A solução meparece estar no segredo do mistério do pecado.” (STEIN,

2004, p.207). Quer dizer que no pensamento steiniano

diante do sofrimento causado pelo pecado Deus quis seutilizar dos mesmos meios que foram utilizados para aruína e corrupção do homem para redimir 26a humanidade.

3.3.3. Redenção e liberdade.

26 Entenda-se redimir por fazer a alma retornar ao seu estado primitivo onde o homem élivre vivendo em sua interioridade, desprendido do condicionamento do sensível. Jesusabre para o homem o caminho de retorno ao bem supremo. 

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Como foi exposto anteriormente: o homem por meiodo livre-arbítrio optou pelo mal. Deus permitiu o mal paradele retirar um bem transformando a causa do pecado (osof rimento) em meio de redenção. “A este teor vai Deus

descobrindo à alma as ordenações e disposições de suasabedoria, mostrando-lhe como de modo tão sábio eformoso sabe ele tirar dos males bens; e assim, aquilomesmo que foi causa de tanto mal soube transformar emmaior bem.” (CRUZ, 2002, p.718). Ou seja, por meio do

livre-arbítrio do homem o pecado pode ocorrer,distanciando o homem do sumo bem e de sua própriaessência; desta forma distanciando-o da própria liberdade.Para ficar mais claro vejamos à luz do tomismo estarelação pecado, sofrimento e redenção nesta citação: “EmTomás o sofrimento é o padecer por certa dor, no corpo ouna alma. Por isso, em Tomás o sofrimento é sinônimo dedor, causa da dor, ou melhor, a dor é o sofrimento queperturba a alma. A história do sofrimento humano será a

própria história do mal na humanidade e a história destemal será a própria história do pecado. Pautados noanterior podemos dizer que o sofrimento é padecimento dedor pela alma, em razão da privação de bens espirituais oucorpóreos que a limita e a priva de alcançar algumaperfeição devida. “(FAITANIN, 2008, p.350)

Então, por meio deste mesmo livre-arbítrio e suas

conseqüências, o homem é remido com o sofrimento napessoa de Jesus Cristo. O sofrimento passa, então, a terum valor transcendental em Cristo ao se solidarizar com osofrimento humano, tornando-o sofrimento redentor,purificador.

“Em Cristo nada havia, quer em sua natureza, querem seu livre-arbítrio, que pudesse resistir ao amor. Ele

passou todos os instantes de sua vida em irrestrita entregaao amor divino. Tomando sobre si o peso do pecado da

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humanidade, abraçou-o com amor misericordioso e oguardou em sua alma (...). Assim se realizou o holocaustoexpiatório em seu íntimo: por meio de todos os seussofrimentos e durante a vida toda; mas principalmente nohorto das oliveiras e na cruz, porque então cessou osentimento de felicidade sensível, fruto da interminávelunião, e ele ficou inteiramente entregue ao sofrimento deexperimentar o extremo abandono de Deus.” (STEIN, 2004,p. 154)

 Ainda valendo-se da analogia: Stein apresenta aárvore do paraíso (o livre-arbítrio) cujo fruto é o pecado(causa o sofrimento) 27, é a mesma árvore da cruz. Querdizer que Cristo assume a vulnerabilidade humana (o livre-arbítrio) não só a vulnerabilidade, mas a condição humanatornando-se homem, e, por amor, se associa ao sofrimentohumano experimentando-o. Então, o fruto desta árvore (acruz) passa a ser a redenção, por meio do sofrimentoredentor, que antes tinha como conseqüência apenas o

sofrimento sem um sentido; agora a conseqüência é osofrimento, mas sofrimento redentor, sofrimento purificador.Se o primeiro fruto gerou o conhecimento do mal, o fruto dacruz também gera um conhecimento redentor: diante dopecado e de sua maior conseqüência à morte na cruz;Jesus abre uma nova forma de pensar e viver coerentescom a interioridade do homem, mesmo quando essa

coerência é provada no extremo sofrimento.“(...) O primeiro dano causado à alma por seus

apetites imortificados: a resistência ao espírito de Deus(...)” (CRUZ, 2002, p.  158). Quando a alma afasta-se de

27 Segundo o tomismo, o sofrimento é conseqüência do pecado A conseqüência é comoo homem percebe e experimenta o sofrimento; Santo Tomás diz que mesmo aquele que

tem prazer em praticar o mal não pode negar que, ao término do prazer, ele ressentiráem si a privação do mesmo, e consequentemente se manifestará o sofrimento, ele podeaté não ter consciência que o sofrimento é do mal cometido, mas não pode negar que ador pela ausência do prazer.

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sua essência, que é ser pessoa, e prende-se asuperficialidade dos sentidos, ela perde o acesso àqueleque é “o ser em pessoa”. Desta forma se priva da verdade

que é “o ser em pessoa”, tornando-se incapaz de sozinharetornar para Deus e para si mesma, em sua própriainterioridade.

Percebe-se no pensamento steiniano que são poucosos que chegam à perfeita união com Deus, não porque sejaesta a vontade de Deus, mas porque é apenas umpequeno número de almas que se dispõe a trilhar a via dosofrimento redentor. A maior parte das pessoas foge doesforço e da menor purificação, e, desta forma, não podemser purificados por Deus.

“ Assim, (Deus) já não prossegue a obra de purificá-lospela abnegação e renúncia e levantá-los do pó da terra... Óalma que quereis andar seguras e consoladas nas coisasdo espírito! Se soubésseis quantos sofrimentos convémpadecerdes para alcançar tal segurança e consolo...

tomaríeis a cruz e, nela cravados, haveríeis de quererbeber fel e vinagre puro, considerando-o grande ventura,ao verdes que, assim morrendo para o mundo e para vósmesmos, viveríeis para Deus (...)”  (CRUZ apud STEIN,2004, p. 165)

Note-se que o sofrimento não é o fim em si mesmo.Nesta luta contra as inclinações da natureza para

desprender-se do apego ao sensível, dando lugar aoespiritual, este espiritual é o objetivo, desta forma, osofrimento é sofrimento redentor. Este sofrimento quandoredentor faz a alma ir se assemelhando a Deus numprocesso de interiorização a caminho da plena liberdade.

Como ficou esclarecido, no pensamento steiniano, ohomem é livre somente em seu íntimo e para isto precisa

sair da superficialidade dos sentidos e aprofundar-se naverdade. “A purificação completa de todas as inclinações e

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desejos sensíveis leva a alma à liberdade de espírito (...)”

(STEIN, 2004, p. 54) Libertando-se do apego aos benstemporais, a alma consegue esta liberdade de espírito;consequentemente terá uma razão clara, que perceberá overdadeiro valor dos bens materiais e espirituais, gozandodo que é melhor, por penetrar a verdade das coisas,contrariamente daquele que, se valendo dos sentidos,experimentará o que há de enganador, ruim e acidental nomundo.

Como vimos, a alma possui uma unidade com o corpopara ter acesso ao mundo exterior a ela, assim ocorre seutilizando dos sentidos, dos órgãos corporais. Contudo, porcausa da deturpação da natureza humana, estes sentidosdeixaram de servir para dominar. Por exemplo: o homemtodos os dias precisa tomas decisões, todavia, sendo eleum homem sensual, preso ao prazer, quando vê apossibilidade de gozar de um prazer maior, ele agirá semmaiores reflexões, e passará para a ação que lhe trará o

prazer seguinte, caso o mesmo não siga sua razão.Este movimento ocorre sem uma decisão realmente

livre. Sendo assim, cabe ao espírito a função de libertar ohomem da opressão dos sentidos, recuperando o domíniosobre eles, alcançando uma vida puramente espiritual deconformidade com seu interior. “Nesse processo de

libertação, é a Fé quem conduz o espírito a Deus, levando-

o, por fim, a um relacionamento espiritual com ele. Aconcentração em Deus deve ser acompanhada de outraatitude – o abandono de tudo quanto não é Deus.” (STEIN,

2004, p.101) A alma anseia pelo universal, então deve sedesprender de todo o particular, deve buscar o essencial enão o contingente (aparente), que não é Deus.

Se os sentidos condicionam a liberdade do homem,

então se pergunta: ele só poderá agir com liberdadequando atingir sua plenitude enquanto pessoa? Stein

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afirma que na medida em que a alma se aproxima de seuíntimo vão diminuindo suas próprias atividades. Quando aalma atinge seu âmago, é Deus quem tudo opera, cabendoà alma somente receber, e é nesta atitude receptiva que aalma expressa a participação de sua liberdade. Estaliberdade é alcançada por meio do sofrimento redentor,isso quer dizer que o autoconhecimento é necessariamentesofrimento purificador de tudo que é empecilho parainterioridade da alma. O autoconhecimento énecessariamente via de sofrimento. 

Para Stein, esta purificação é pena e tormento, nãosomente porque a fé é treva para o intelecto28, mas devidoao fato de que este conhecimento apresenta à almaperfeições boníssimas, e, a alma, ainda não purificada, sevê em meio a tormentos, pois coisas contrárias não podemexistir num mesmo individuo. “Por não estar purificada, -não podem caber dois contrários num só sujeito que éalma. Logo, necessariamente esta há de penar e padecer,

sendo o campo onde se combatem os dois contrários quelutam dentro dela. Tal combate resulta da purificação dasimperfeições, que se opera por meio desta contemplação.”

(CRUZ, 2002, p.495). Sendo Deus a luz no sentido de sera própria sabedoria, e a alma, apegada aos bens sensíveis,ela está como que em trevas para esta luz. Assim, trevas eluz são opostas e dessemelhantes.

Usando um princípio aristotélico: "O mesmo atributonão pode, ao mesmo tempo, pertencer e não pertencer aomesmo sujeito com relação à mesma coisa"(ARISTÓTELES, 1969, Livro IV - 1005b - 19/20) Por

28  Na alma, o intelecto é responsável por todo entendimento natural. Sendo assim,“Treva para o intelecto” significa que, pela fé, o entendimento tem acesso a um

conhecimento que lhe ultrapassa os limites, ficando este conhecimento como trevas. Por

exemplo: quanto mais se olha diretamente para o sol, mais a potência visual fica emtrevas, do mesmo modo, a luz divina deixa o entendimento em trevas por lhe exceder oslimites.

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exemplo: Jesus é mestre da humanidade e discípulo deseu pai. Jesus é mestre e discípulo, atributos opostos, masnão ao mesmo tempo. O homem não pode ser ao mesmotempo, semelhante às trevas e semelhante a Deus. Ohomem vai se assemelhando a Deus na medida em que vaise desfazendo do que lhe é obstáculo, ou seja, do apegoao sensível. Dito de outra forma, o homem precisa sedesapegar do sensível para dar lugar ao espiritual. Estedesapego gera sofrimento para o homem. A alma sofre porcausa deste processo de deificação: ela se sente como queaniquilada, ao ter que se despojar de todos os apegossensíveis, pois estava de tal forma unida a eles que lheparece perder-se a si mesma, como se morresse de formacruel. Neste sofrimento, a alma se sente abandonado pelopróprio criador.

Outra forma de sofrimento é infligida à alma devido asua fraqueza natural, moral e espiritual que contradizemseu desejo de plenitude. Um dos principais tormentos da

alma se refere ao conhecimento de si, quando tomaconsciência de suas fraquezas e se percebe como oextremo oposto do sumo bem (Deus). A alma se percebepobre e miserável diante do ser eterno, padecendo porcausa deste novo conhecimento.

Contrário ao gozo que faz a alma prender-se àsaparências, neste caminho de retorno ao próprio íntimo,

cada modalidade de sofrimento torna a alma mais sabia eexperiente. “No sofrimento, a alma recebe força de Deus,ao passo que no agir e gozar põe à mostra suas fraquezase imperfeições. Ademais, no sofrimento, vão sendoexercidas e adquiridas as virtudes, e a alma vai-sepurificando e se tornando mais cautelosa e sábia.” (Stein,2004, p. 117)

Desta forma toda vida do homem é marcada pelosofrimento da contradição entre a alma sensível e a alma

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espiritual. “A carne do homem pecador está revoltada

contra o espírito; por isso, toda vida carnal é feita de luta esofrimento.” (STEIN, 2004, p.219). A alma sofre por não ter

pleno domínio de suas forças interiores, tendo aindatendências prejudiciais à vida espiritual, causadas pelarevolta da parte sensível.

Enfim, o ser finito, nesta busca pela plenitudeencontrada no ser eterno, encontra Jesus Cristo comoresposta e remédio para sua ignorância e fraquezaespiritual. O Cristo é remédio para alma, pois ele lhe revelaa sabedoria necessária para alcançar a plenitude almejada.O ser humano, com suas próprias forças e capacidadesnão seria capaz disto. Jesus Cristo, sendo o verdadeiroremédio, se solidariza com o sofrimento do homem, e oauxilia numa via única, caminho este de conhecimento eexperiência redentores: a práxis da cruz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perpassando este trabalho, chegamos a uma apuradareflexão sobre o sentido antropológico-filosófico dosofrimento na visão steiniana. Podendo, então, verificar queos sofrimentos de nossa realidade humana quandoorientados na fé (revelação) e no amor (práxis) para umfim: o ser eterno (Deus) é que se chega a um sentido: a

redenção.Valendo-se do tomismo, Edith problematiza a filosofia

cristã, dizendo que é próprio da filosofia buscar a verdadeplena. Contudo, não pode alcançar somente por meio darazão natural esta revelação. Então, um caminho paralelo,de acesso à verdade, é o caminho da fé, por meio do qualse alcança aquilo que foge a nosso conhecimento natural.

Desta forma, a filosofia não poderia negar a fé, pois estaleva o ser humano a verdades inacessíveis por outros

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caminhos, sendo portanto, acessível somente pela fé.Percebemos no pensamento de Edith Stein que o ser

humano tem lugar de destaque, pois é à consciência dohomem que os fenômenos se apresentam. É esta buscafenomenológica, busca pelo sentido essencial, queimpulsiona a pesquisa de Edith Stein, bem como suaprópria vida.

Edith encontrou na “scientia crucis”   o tão desejadocaminho de acesso à verdade plena. Em sua vida, Steinverificou a verdade desta ciência pela realização damesma, testemunhada na práxis até sua extremacoerência, quando se juntou ao seu povo no campo deextermínio em Auschwitz, onde foram assassinados. Paranossos dias, fica este testemunho de alguém que buscou averdade, e com sua vida concluiu que a verdade é adesãoincondicional ao amor e que o amor nunca é desprovido daverdade.

Valendo-se do método fenomenológico, Stein nos

lembra que o fenômeno do sofrimento se mostra a nós deforma inegável, e cabe a nós, seres capazes de refletir, daruma resposta espiritual, pois é próprio da estrutura humanachegar neste nível de percepção. Conforme este método,devemos fazer uma epoché, ou seja, purificar a inteligênciade tudo que é contingente em busca da intuição eidética,intuição da essência. Em nossos dias é fundamental

encontrar o sentido da vida, pois percebemos que ohomem contemporâneo está passando por uma criseexistencial. Stein conclui de suas pesquisas que o homemé essencialmente um ser espiritual, é isto que o fazdiferente dos outros seres da natureza, sendo que apalavra que melhor define o homem é pessoa. Este termo“pessoa” indica que o homem é um ser vivente dotado de

razão. O homem, então é, por natureza, um ser chamado aviver no seu interior, chamado à reflexão.

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Sendo o homem um ser limitado que deseja aplenitude, este ser finito, então, só pode possuir a infinitudeparticipando do ser eterno (Deus). É no íntimo do homemque ele encontra a verdade, Deus é a verdade absoluta,desta forma quanto mais o homem adentra em si mesmo,mais tem acesso a verdade plena (Deus) e é neste íntimoque o homem encontra sua liberdade. Quando o homemvive condicionado ao sensível, ele se distancia de seuíntimo e perde o acesso à verdade. De forma contrária,quando o homem, de forma livre e autônoma em seuprocesso de maturação e autoconhecimento, vai seassemelhando a Deus, aproxima-se cada vez mais de seuâmago. Conforme a tradição judaico-cristã osprimeiros pais valendo-se de seu livre-arbítrio cometeram opecado. O pecado é visto como a deturpação da naturezahumana; conhecido como o mal moral. Comoconsequência disto surge o fenômeno do sofrimento. Deusse solidariza com o homem se encarnando, e usa o livre-

arbítrio para dar uma resposta diferente do mal, abrindopara o homem um caminho de retorno ao sumo bem.Quando Jesus, homem-Deus sofre; ele dá ao sofrimentoum sentido transcendental, o sofrimento passa a serredentor, purificador. O homem é convidado a desapegar-se do sensível para aprofundar-se em si mesmo e estedesapego implica em sofrimento, contudo um sofrimento

redentor.Deus restaura a humanidade valendo-se do mesmo

instrumento da deturpação do homem e sua consequência.Se, pelo livre-arbítrio, o mal pode ocorrer; é por meio dolivre-arbítrio de Jesus que se tem acesso ao sumo bem(Deus). Se a consequência do pecado foi o sofrimento; emCristo Jesus, o sofrimento torna-se redentor. Este

sofrimento não tem por fim último, causa final, o ato de

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sofrer, mas tem o objetivo de alcançar a maior coerênciainterior e a práxis.

Lembre-se de que Jesus é homem, capaz de sofrer, eé Deus, capaz de abarcar a felicidade da qual se privou ahumanidade ao afasta-se do sumo bem. Desta formaJesus é o único capaz de ser tocado pelo sofrimentosupremo, que é sentir-se abandonado por Deus.

 A via do autoconhecimento e da maturidade é via desofrimento por consequência da irresponsabilidade dohomem. Não se pode escapar do sofrimento, é um caminhoinevitável, por onde todos deverão passar. Sendo coerentecom nossa capacidade reflexiva, o amor é a única respostaracional; e Jesus é o testemunho histórico por excelência.O que Deus deseja é restaurar nossa humanidade decaída,e torná-la semelhante a ele. Este conhecimento só éacessível pela fé, pela práxis da cruz. Cabe a cada homema livre decisão de abarcar esta ciência da cruz por meio dolivre-arbítrio.

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“Irmã Teresa Benedita da Cruz disse a todos nós: Nãoaceitem como verdade nada que esteja privado de amor. E nãoaceitem como amor nada que esteja privado da verdade! Umsem a outra se torna uma mentira destruidora. A nova Santa

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