Vieira e Ramos - Ferreira Gullar - Poesia e Politica Dentro de Uma Noite Veloz

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FERREIRA GULLAR: POESIA E POLTICA DENTRO DA NOITE VELOZ. Thas Leo Vieira1 Rosangela Patriota Ramos2

RESUMO: Este texto busca pensar historicamente a produo literria do poeta Ferreira Gullar, em especial o romance de cordel Joo Boa-Morte (1962-1967) e a obra Dentro da Noite Veloz (1962-1975). Pretende-se tambm analisar como em Dentro da Noite Veloz a voz pblica do poeta se confunde com seu toque ntimo expressando a poesia lrica moderna.

ABSTRACT: This text searchs to think historically the literary production of the poet Ferreira Gullar, specially the cordel novel Joo Boa-Morte (1962-1967) and the work Dentro da Noite Veloz (1962-1975). Its also claimed to analyse how in Dentro da Noite Veloz the poets public voice confound itself with his internal touch expressing the modern lyric poetry. PALAVRAS-CHAVE: Histria, Poesia, Literatura Engajada, Arte e Poltica. KEYWORDS: History, Poetry, Engaged Literature, Art and Politics. [...]Qual fase da histria foi vivida s de instantes presentes, pura e abstrata contemporaneidade sem memria nem projeto, sem as sombras ou as luzes do passado, sem as luzes ou as sombras do futuro? A pergunta ganha toda a pertinncia quando se trata de histria da cultura e, mais ainda, de histria de uma prtica simblica to densa como a poesia.

Graduanda em Histria pela Universidade Federal de Uberlndia, aluna de iniciao cientfica do PIBIC/CNPq/UFU sob orientao da Prof. Dr. Rosangela Patriota Ramos e integrante do NEHAC (Ncleo de Estudos em Histria Social da Arte e da Cultura). Endereo: Avenida Araguari, 06; Bairro Bom Jesus; Uberlndia-MG. CEP 38400-464. E-mail: [email protected] 2 Professora Doutora do Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia. Autora de: Vianinha: um dramaturgo no corao de seu tempo. So Paulo: HUCITEC, 1999. Endereo: Rua dos Antrios, 11; Bairro Cidade Jardim; Uberlndia-MG CEP: 38412-100. E-mail: [email protected]

1

2

Alfredo Bosi

H inicialmente no estudo entre o histrico e o literrio uma

objetividade

histrica,

no

mais

analisando o documento como verdade mas como representao. A

preocupao da qual no devemos nos esquivar: o discurso histrico

documentao para o profissional de Histria vista como indcios do que pode ter acontecido, evidncias com as quais o historiador constri a sua verso. Neste caso, a Histria se reveste da presena da ficcionalidade, que deve ser entendida no como falsidade ou coisa desprendida do real, mas como representao. Essa fico no trabalho do historiador vista por Sandra Jatahy PESAVENTO, como um ofcio da profisso na medida em que a tarefa do profissional da rea de Histria no se

diferente do discurso literrio, mas ambos possuem mtodos que almejam construir uma verossimilhana no texto. A Histria possui uma lgica interna3, que corresponde aos mtodos que o historiador deve utilizar em seu

trabalho, mas da mesma maneira o literato possui seus mtodos. Apesar desses discursos serem distintos,

possuem algumas semelhanas e uma delas a representao do mundo social. A Histria vem perdendo o estatuto de verdade e os historiadores j esto mais conscientes quanto

baseia em descrever fatos ou atos mas interpretar, narrar, recortar os

acontecimentos, denotando a existncia de um processo de montagem que

Sobre esse assunto ver THOMPSON, 1981.

3

implica no uso de recursos ficcionais.

3

Porm,

trata-se

de

uma

fico

controlada pelos mtodos do fazer histrico, que implicam na busca de efeito de verdade: O texto histrico comporta a fico, desde que o tomemos na sua acepo de escolha, seleo, recorte, montagem, atividades que se articulam capacidade da imaginao criadora de construir o passado e represent-lo. H, e sempre houve, um processo de inveno e construo de um contedo, o que, contudo, no implica dizer que este processo de criao seja de uma liberdade absoluta. A Histria, se a quisermos definir como fico, h de se ter em conta que uma fico controlada. A tarefa do historiador controlada pelo arquivo, pelo documento, pelo caco e pelos traos do passado que chegam at o presente.(PESAVENTO, 1999:820) Se o discurso histrico possui

campo preferencial de realizao do imaginrio, comporta tambm, a preocupao da verossimilhana. A fico no seria, pois, o avesso do real, mas uma outra forma de capt-la, onde os limites de criao e fantasia so mais amplos do que aqueles permitidos ao historiador. [...] Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que h para ler nela a representao que ela comporta. Ou seja, a leitura da literatura pela histria no se faz de maneira literal, e o que nela se resgata a re-apresentao do mundo que comporta a forma narrativa. Alis, pode-se argumentar que, segundo esta postura, a histria tambm no passvel de uma leitura literal, sendo tambm ela uma representao do real e comportando, pois, a atribuio de um sentido.(Ibidem: 822) Dessa forma, o objetivo deste texto originar uma interpretao da representao feita por Ferreira Gullar na dcada de 60 e 70, quando seus

esse dado ficcional, o literrio possui poemas ligaram-se a uma esttica estratgias documentais, preocupao poltica. Para isso, contextualizar o com a realidade e uma historicidade na momento no qual Gullar escreveu seus medida em que a obra foi escrita num poemas determinado momento e o autor nela entendermos como o contexto histrico insere elementos dos quais ele foi incorporado no eu potico de vivenciou: Gullar. Pode-se dizer que o discurso literrio, consagradamente tido como o faz-se necessrio para

4

Mas, o que seria contextualizar? Consideramos que contextualizar no significa apenas datar o poema: inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama j em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu lrico vive ora experincias novas, ora lembranas de infncia, ora valores tradicionais, ora anseios de mudana, ora suspenso desoladora de crenas e esperanas.(BOSI, 2000: 13) Nesse sentido, buscaremos

No incio dos anos 60, o movimento estudantil vivenciou uma intensa atuao poltica que pode ser exemplificada pela forte participao dos estudantes na Campanha da

Legalidade capitaneada por Brizola no Rio Grande do Sul4. A fora dos estudantes mostrava-se nesse momento na luta poltica para a normalidade democrtica, representada pela posse do

captar os mnimos rastros deixados por vice Joo Goulart. Gullar nos poemas, a fim de identificar Neste perodo havia dentro da neles a conjuntura e as experincias que UNE (Unio Nacional dos Estudantes) o poeta vivenciou, haja vista que nossa uma inteno - captar a lrica de Gullar - conhecida como AP (Ao Popular). A dimensionada pela concepo de que a origem da AP dissidncia de esquerda lrica moderna se expressa por meio do da olhar para o outro do artista e seu Catlica) no movimento estudantil processamento na poesia de sua viso de mundo.Com a renncia do presidente Jnio Quadros em Agosto de 1961 irrompeu uma tentativa de golpe pelos militares na medida em que estes queriam impedir a posse do vice Joo Goulart presidncia. No entanto, uma forte reao, de modo especial no Rio Grande do Sul, ocorreu com a liderana do governador Leonel Brizola, a conhecida Campanha da Legalidade, que pretendia defender o cumprimento da Constituio, a qual determinava que, com a renncia do presidente, quem deveria assumir o governo era o vice-presidente.4

frente

poltica

hegemnica

JUC

(Juventude

Universitria

A dcada de 60 revolucionrias.

e

as

utopias

5

data de 1961, quando Aldo Arantes chega presidncia da UNE. A Juventude Universitria Catlica uma das correntes de mobilizao poltica estudantil dos anos 60, defendendo diversas reformas sociais, dentre elas a reforma universitria. De sua ala

agremiaes

polticas5.

Da

mesma

maneira que interessava ao CPC uma entidade como a UNE, a ela interessava tambm a atuao do Centro Popular. Para este, era vantajoso na medida em que ela viabilizava seu projeto de teatro, cinema, msica, literatura, dentre

esquerdizante surgiu a Ao Popular, faco detentora da hegemonia do movimento estudantil por quase toda a dcada de 60. justamente neste momento de hegemonia da AP que foi criado o Centro Popular de Cultura (CPC). No entanto, a criao do CPC no tem relao direta com a AP. Os artistas e intelectuais militantes do CPC eram em sua grande maioria ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), levandonos a pensar que poucas vezes na histria poltica desse pas uma unio foi to bem sucedida entre duas

outros. J para a Unio Nacional dos Estudantes ele servia como uma

possibilidade de divulgar suas idias polticas por meio da arte. Apesar de relacionar-se diretamente Unio dos Estudantes, o CPC possua autonomia administrativa e financeira, o que lhe acarretou certas dificuldades na

obteno de verbas. Nesse sentido, no se pode dizer que o Centro Popular5

Em entrevista cedida a Jalusa BARCELLOS, Carlos Miranda, ator e produtor teatral, revela que Nos trs anos de existncia do CPC 1962, 1963, 1964 as lideranas da UNE foram todas da AP: Aldo Arantes, Vincius Caldeira Brant e Jos Serra, respectivamente. Enquanto isso acontecia na diretoria da UNE, na direo do CPC estavam maciamente pessoas ligadas ao Partido Comunista. E isso nunca estabeleceu impedimento para a diretoria da UNE realizar as propostas do CPC. A diretoria tinha clareza poltica de que aquele movimento artstico era de pessoas

6

pertenceu UNE do ponto de vista organizacional, embora tenha sido seu agente cultural. Em agosto de 1961, logo aps a queda de Jnio Quadros, Vianinha e Chico de Assis, no decorrer do processo da montagem da pea A Mais-Valia vai acabar, seu Edgar, foram buscar no ISEB6 algum para explicar durante a

apresentao do espetculo, de forma didtica e cientfica, a questo

econmica sugerida na pea. Comeou, deste modo, a relao entre Carlos Estevam Martins, socilogo vinculado ao ISEB, com os dissidentes do Arena7. Durante o perodo de encenao de A Mais-Valia... no teatro da Faculdade de Arquitetura no Rio de Janeiro, formouse um pblico constante que alm de

essencialmente ligadas ao PC. (BARCELLOS, 1994: 111). 6 O ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) foi um rgo vinculado ao Ministrio da Educao e Cultura legalmente institudo em julho de 1955 por ato do ento presidente Joo Caf Filho. No entanto, ganha repercusso no governo de Juscelino Kubitschek ao teorizar o desenvolvimento pela perspectiva de justificar a ideologia do desenvolvimentismo. O ISEB foi precedido pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica (IBESP) organizado no incio da dcada de 50 por um grupo de intelectuais que tinham como objetivo discutir e propor solues para o que consideravam como problemas nacionais. Da presso do IBESP ao governo com o intuito de ampliar seu alcance poltico e alargar seu espao de atuao surgiu o ISEB. Nos nove anos de existncia do ISEB (1955 a 1964) vrias tendncias tericas fizeram parte de sua histria mas foi precisamente a ltima que se relacionou com o CPC. Esta fase (a partir de 1958) foi marcada por uma crescente oposio ao governo de JK, fazendo com que o ISEB se dividisse em dois grupos: um representado por nomes como os de Guerreiro Ramos, Roberto Campos e Hlio Jaguaribe; outro por Roland Corbisier, Nelson Werneck Sodr e lvaro Vieira Pinto, para citar apenas alguns. Em 1960 lvaro Vieira Pinto assume juntamente com Nelson Werneck Sodr a direo do ISEB, marcando uma hegemonia marxista e uma posio

assistir pea estava interessado em conversar sobre uma questo em

comum: a arte. Entre essas pessoas estavam Leon Hirszman, Carlos Lyra, Carlos Diegues e Armando Costa. Entendendo interessados que em esses diversas jovens frentes

favorvel s Reformas de Base de Joo Goulart. 7 O Teatro de Arena fundado em 1955, comeou com uma proposta diferenciada do Teatro Brasileiro de Comdia (TBC), uma vez que no se apoiava em peas estrangeiras de sucesso comercial. Propunha um teatro nacional relacionado com os problemas locais. Para o Arena a perspectiva era fazer uma dramaturgia poltica mas, no entanto, no consegue atingir as classes populares. Buscando isso, Vianinha vai para o Rio levar ao pblico popular a conscientizao por meio do teatro. Para saber

7

artsticas tinham de ser organizados para que as questes ali colocadas no se perdessem, Vianinha, Leon Hirszman e Carlos Estevam tiveram a idia de montar um curso de filosofia ministrado pelo professor Jos Amrico Peanha conhecido na poca como filsofo das multides. O curso reuniu cerca de duzentas pessoas acarretando problemas de espao para os organizadores. e Estevam

trabalho do Movimento de Cultura Popular (MCP) em Pernambuco.8 Dessa influncia, das discusses ocorridas na poca e das vontades dos participantes surgiu o CPC que inicialmente, com a aproximao de Vianinha, Hirszman e Estevam junto a UNE, conseguiu uma pequena sala para reunies no fundo de um auditrio. Com base nas diversas frentes de atuao foram criados vrios departamentos sendo os primeiros de teatro e de cinema e posteriormente foram criados os de msica, arquitetura, artes plsticas, administrao, literatura e alfabetizao de adultos. O CPC estava diretamente

Vianinha,

Hirszman

procuraram a UNE solicitando-lhe um espao que possibilitasse a organizao do evento. Essa por sua vez cedeu-lhes um auditrio, o que tornou possvel a realizao do curso e, mais que isso, permitiu que no transcorrer das aulas fosse amadurecida a idia da criao de um centro popular de cultura que viria a se tornar o CPC da UNE. A inspirao deu-se por meio de Paulo Freire que freqentava o ISEB e divulgava o

ligado a uma concepo de que a conscincia poltica no passava apenas pela8

discusso

economicista.

mais sobre a ligao entre Teatro de Arena e CPC ver: BERLINCK, 1984.

Criado durante o governo de Miguel Arraes, o MCP foi ligado secretaria de Educao de Recife e teve como principais atividades o programa de alfabetizao baseado no mtodo Paulo Freire, cursos profissionalizantes como os de corte e costura e o Teatro de Cultura Popular. O MCP diferia-se do CPC por sua vinculao ao Estado e por no ser formado basicamente por

8

Acreditando que a cultura era o espao privilegiado de transmitir conscincia, grande parte dos militantes doou seu tempo quase integralmente em reunies, discusses e outras atividades com o grupo cepecista. Nesse contexto,

documentrio Isto Brasil, rodado durante a UNE-Volante10; cursos de Teatro, Cinema, Artes Visuais para formao profissional e artstica

tambm foram ministrados. Houve ainda a publicao dos Cadernos do Povo Brasileiro sob a direo de nio Silveira e lvaro Vieira Pinto, destacando-se Que so as Ligas Camponesas?, de Francisco Julio, e Quem o Povo no Brasil?, de Nelson Werneck Sodr. Alm dos Cadernos, o CPC publicou os cordis Joo Boa Morte, Cabra Marcado para Morrer e Quem Matou Aparecida?, de Ferreira Gullar, As Extraordinrias Aventuras de Z Fominha e O Homem que Engoliu um Navio, de Flix de Athade, eUm Favelado, de Marcos Farias; Z da Cachorra, de Miguel Borges; Escola de Samba Alegria de Viver, de Carlos Diegues; Pedreira de So Diogo de Leon Hirszman; e o curta finalizado em 1960, Couro de Gato de Joaquim Pedro de Andrade. (RAMOS, 1990: 333-334). 10 Partindo da concepo de que a reforma universitria passava necessariamente pelas reformas das instituies como um todo a UNEVolante percorreu diversos estados brasileiros

montaram-se inmeras peas de teatro, dentre elas Eles No Usam Black-Tie (Gianfrancesco Guarnieri) A Vez da Recusa (Carlos Estevam), Misria ao Alcance de Todos (Arnaldo Jabor), Os Azeredo mais os Benevides (Oduvaldo Viana Filho), Auto dos 99% (Texto coletivo escrito por Vianinha, Carlos Estevam, Cecil Thir, Marco Aurlio Garcia, Armando Costa e Antonio Carlos Fontoura) e Auto dos Cassetetes (Joo das Neves); foram feitos shows musicais, gravaram-se discos como O Povo Canta e Cantigas de Eleio, dois filmes, o longa Cinco Vezes Favela9 e opessoas ligadas a arte tal qual acontecia com o CPC. 9 Este longa-metragem composto de quatro episdios, acrescidos de um outro curtametragem j finalizado um ano antes. So eles:

9

Safadeza do Diabo com a Mulher do Coronel de Reinaldo Jardim, dentre outros. A publicao dos Cadernos teve uma grande contribuio do ento presidente e principal acionista da Editora Civilizao Brasileira, nio Silveira. A editora possua

Liberdade

as

colees

intituladas

Violo de Rua, antologias de poesia engajada. Nos volumes, ao lado de poetas j consagrados na dcada de 60 como Vincius de Moraes, Moacyr Flix e Ferreira Gullar eram divulgados tambm nomes estreantes como

Affonso Romano de SantAnna e Jos Carlos Capinam. Apesar de alguns participantes no terem vnculos diretos com o CPC, esses volumes inseriram-se em seu projeto cultural de arte popular revolucionria e seus poemas foram colocados ao lado do proletariado e do campesinato, das lutas e de suas aspiraes, de acordo com Moacyr Felix (APUD KRAUSCHE, 1984: 02). Foi de Carlos Estevam

proximidades com o propsito do CPC, o que garantiu muitas publicaes de livros populares em formato de bolso. O CPC funcionava como distribuidor dos volumes e a editora assegurava-lhe 50% do preo da venda ao pblico. Com tiragens de 20 mil exemplares, nmero significativo para a dcada de 60, esses volumes eram lidos e discutidos em Centros Acadmicos e debatidos no CPC. Como volumes extras da srie Cadernos, foram publicadas com o ttulo geral de Poemas para a

MARTINS a primeira publicao sobre a concepo terica do CPC, em 1962, na qual discutiu a questo da arte popular. O Anteprojeto do Manifesto do CPC explicitou a opo pela arte

procurando discutir temas relacionados aos problemas estudantis e nacionais.

popular revolucionria dentre as outras

10

duas formas de manifestao cultural (arte do povo, arte popular) que tinham como pblico alvo o povo. De acordo com o Anteprojeto a arte do povo era produzida por comunidades

cujo objetivo consistia em distrair o espectador em vez de form-lo e despert-lo para a conscincia crtica. A prova do carter perfeitamente alienado dessas formas artsticas

economicamente atrasadas, na qual o artista no diferia de seu pblico. Neste caso, este tipo de arte s poderia ser feita em zona rural ou em reas urbanas onde no havia ainda um avano industrial. J a em arte popular era

destinadas ao povo est em que no assumem posio radical diante das condies de sua prpria existncia. [...] No merece outro ttulo que o de arte dos senhores para o

povo.(MARTINS, 1979: 72) O que significava optar pela arte popular revolucionria? De acordo com o Anteprojeto a arte popular

desenvolvida

centros

urbanos

avanados e os artistas diferiam-se de seu pblico e este por sua vez era um mero receptor de informaes. Segundo o Manifesto do CPC a arte do povo era ingnua e poderia ser considerada apenas pela sua funo de ludicidade necessria ao homem. J a arte popular apresentava melhor elaborao tcnica, mas em contrapartida, servia somente como entretenimento, pois no se preocupava com os problemas reais, sendo um tipo de arte para as massas

revolucionria tinha o objetivo de revolucionar a sociedade isto , passar o poder ao povo. Ser popular para aqueles que participaram do CPC tinha uma significao essencial na medida em que era prprio do "povo" deixar de ser "povo" tal qual ele se apresenta nessa sociedade, ou seja, era destino do povo governar a sociedade na qual ele era subjugado. Da a necessidade da arte

11

popular revolucionria levar ao povo o significado humano do petrleo e do ao, dos partidos polticos e das associaes de classe, dos ndices de produo e dos mecanismos Ao assumir uma postura literria engajada na dcada de 60, Gullar incorpora tambm novos temas e

formas de linguagem12. Neste perodo escreve Joo Boa-Morte, Cabra

financeiros(Ibidem: 73) A concepo de uma arte

Marcado para Morrer, Quem Matou Aparecida, Peleja de Z Molesta com Tio Sam e Histria de um Valente, cujos protagonistas so um lavrador

popular revolucionria influenciou toda uma gerao que durante muito tempo lutou para evidenciar o povo e coloclo em debate. Ferreira Gullar foi um dos que se engajaram nesta proposta, tendo inclusive sido o ltimo presidente do CPC (entre 1963-1964), extinto com o golpe militar. Assim, o caminho

paraibano, uma favelada carioca, um cantador cearense e o campons e militante pernambucano Gregrio

Bezerra, respectivamente. Do ponto de vista esttico, para quem acompanhava a trajetria do poeta foi grande a surpresa ao passar dos versos concretos para a literatura de cordel:

percorrido por Ferreira Gullar na dcada de 60 pode fazer-nos refletir como essa proposta de arte estava inscrita nas manifestaes artsticas produzidas por aqueles artistas.

12

Introduzo na Poesia a Palavra Diarria11 Ferreira Gullar e seu Tempo11

Retirado do poema (GULLAR, 2000: 156).

A

Bomba

Suja.

Na dcada anterior o poeta fizera parte do movimento concretista e, posteriormente, do neoconcretista, de onde radicalizaria suas pesquisas formais por meio dos poemas espaciais. Neste novo perodo da obra de Gullar ele opta pela literatura de cordel como forma de levar ao povo de maneira mais direta a conscincia revolucionria.

12

verme lacre vermelho alarme verde boca maa

olho

velho (GULLAR, 2000: 98)

caractersticas

fundamentais

do

movimento, quais sejam: a abolio do Vou contar para vocs um caso que sucedeu na Paraba do Norte com um homem que se chamava Pedro Joo Boa-Morte, Lavrador de Chapadinha: Talvez tenha morte boa Porque vida ele no tinha. (Ibidem, 111) verso, a apresentao do texto de acordo com critrios que enfatizem os valores grficos e fnicos relacionais das palavras e a eliminao dos laos da sintaxe lgico-discursiva em prol de uma conexo direta entre as palavras. Neste instante da potica de Gullar ele No primeiro poema, da fase concreta13,13

almeja a palavra pura, dura e objetiva. Para que isso ocorra, os verbos e artigos so abolidos do poema. O Plano Piloto

esto

algumas

das

A Poesia Concreta a denominao de uma prtica potica cristalizada oficialmente em 1956, com a Exposio Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de So Paulo. No entanto, os trs poetas que consagraram as experincias concretistas Dcio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos - j se encontravam agrupados desde 1952, quando do lanamento da revista Noigandres. Partindo da assertiva de que o verso tradicional j havia encerrado seu ciclo histrico, a poesia concreta prope o poema-

objeto, em que se utilizam mltiplos recursos: o acstico, o visual, a carga semntica, o espao tipogrfico e a disposio geomtrica dos vocbulos na pgina. Entre os precursores brasileiros dessa tendncia so citados Oswald de Andrade e Joo Cabral de Melo Neto. Alm de Dcio Pignatari e dos irmos Campos, integram a corrente concretista Jos Lino

13

da Poesia Concreta escrito pelos irmos CAMPOS e Dcio PIGNATARI reflete quais as propostas deste movimento:

uma resposta a este novo mundo industrial (governo de JK

desenvolvimentismo) com a criao de formas racionais, matemticas,

poesia concreta: produto de uma evoluo crtica de formas. Dando por encerrado o ciclo histrico do verso (unidade rtmico-formal), a poesia concreta comea por tomar conhecimento do espao grfico como agente estrutural. Espao qualificado: estrutura espcio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporstico-linear. Da a importncia da idia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, at o seu sentido especfico [...] de mtodo de compor baseado na justaposio direta- analgica, no lgico-discursiva(CAMPOS et alli, 1975: 156) Retomando o poema citado luz

capazes de atender ao novo homem e a nova sociedade igualmente racionais. Buscava-se mudar o prprio modo de produo da arte, refazer seu repertrio formal e redefinir as posies do produtor processo. Se em boa parte esse programa foi aceito pelo grupo de So Paulo, em outra, certamente, no. O e do consumidor nesse

neoconcretismo, grupo de dissidentes da concepo terica do concretismo, (Gullar entre eles) do movimento notamos que nele no possvel uma concretista composto inicialmente por leitura tradicional e linear. A construo cariocas que censuraram os excessos em forma de um grande X, sugere matemticos e racionalistas de seus vrias leituras a partir das linhas que se pares paulistanos, no concordava com cruzam no texto (VILLAA, 1984: 78). a objetividade proposta pelos paulistas. Esta arte com referncias geomtricas, A resposta de Gullar surgiu em 1959 no se props objetiva como meio de dar Suplemento Dominical do Jornal doGrnewald, Ronaldo Azeredo, Jos Paulo Paes, Edgar Braga e Pedro Xisto, dentre outros.

14

Brasil

ao

publicar

o

Manifesto

A momentos

diferena

destes

dois e

Neoconcreto. A expresso neoconcreto indica uma tomada de posio em face da arte no-figurativa geomtrica [...] e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa

(concretismo

neoconcretismo) para os poemas de cordel grande. A literatura de cordel uma forma de romanceiro popular nordestino, impressos publicado e em folhetos venda

exacerbao racionalista (GULLAR, 1959)14. O grupo preocupava-se mais com o tempo do que com o espao, mais com a prtica do que com a teoria. Desse perodo, o poeta Ferreira Gullar constri o "livro-poema" e o "Poema enterrado"15 ao lado de Hlio Oiticica.14

expostos

principalmente em feiras e mercados. Do ponto de vista formal, a literatura de cordel se apresenta predominantemente no Brasil, em sextilhas. Em menor nmero, encontramos estrofes de sete slabas e em dcimas. Raramente, surgem folhetos em quadras, a forma

Utilizamos a cpia do Manifesto disponibilizada no site do poeta www.uol.com.br/ferreiragullar/ Consultado em 08/09/01. 15 O Poema Enterrado foi pensado numa perspectiva arquitetnica. A construo dele realizava-se numa sala subterrnea por onde as pessoas desciam, encontravam a porta do poema, entravam em outra sala em cujo centro havia um cubo vermelho. Tirava-se o cubo vermelho e embaixo dele um cubo verde que era retirado e encontrado um cubo branco. Debaixo dele, estava escrito: rejuvenesa. De acordo com Ferreira Gullar o poema enterrado foi um projeto de um cubo enterrado no cho que chegou a ser construdo na casa do Hlio Oiticica, na Gvea Pequena. O pai dele ia construir uma caixa-dgua, e ele brigou com o pai dizendo que tinha de construir um poema. O velho acabou concordando e fomos inaugurar o poema num domingo. Eu, Lygia Clark, Mrio Pedrosa, Oiticica, um bando de gente, mas chovera muito na vspera, e o poema acabou inundando, virou caixa dgua, como alis, era

clssica dos primeiros cantadores de viola. A sextilha uma estrofe com rimas deslocadas, constituda de seis linhas, ps ou seis versos de sete slabas, nomes que tm a mesma significao. Na sextilha, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos brancos, ou seja, aso propsito inicial do pai do Oiticica. GULLAR, Ferreira. Entrevista a SECCHIN et

15

rimas ocorrem no segundo, quarto e sexto ps: ABCBDB. Prevalece a forma potica prosa, preferentemente em redondilha maior (versos de sete slabas contadas at a ltima tnica). Saliente-se escritos formados estrutura por que os cordis so

manifestao artstica mensagens sobre explorao, misria, etc. Neste texto analisaremos um desses poemas, Joo Boa-Morte Cabra Marcado pra Morrer16. A poesia narra a histria de um lavrador

Ferreira

Gullar na

nordestino explorado que rebela-se devido a sua condio (No temos terra nem po,/ vivemos num cativeiro./ Livremos nosso serto/ do jugo do fazendeiro.). Sucede sua rebeldia e a ela sua punio. Joo expulso da terra do coronel e rejeitado junto com sua famlia por todos os fazendeiros da regio. Da rejeio resultam a fome, o desespero, a percepo de que sua volta tinha terra e mais terra vazia e a morte de um de seus filhos. A posio que o homem do campo ocupa no latifndio transparente descrita (Essa de guerra forma do

basicamente supracitada:

mesma versos

setissilbicos, rimados, em estrofes de extenso mdia (predomnio das de seis a nove versos), de ritmo bem marcado. Desta opo esttica observa-se a primeira caracterstica importante desta nova fase de Gullar: a tentativa de proximidade com a poesia popular como maneira de encurtar a distncia entre a linguagem cepecista e o povo, mas no apenas do ponto de vista formal. Os poemas de cordel esto conectados aos objetivos definidos pelo CPC: levar ao povo por meio de uma

16

alli, 1998: 09.

Este poema foi escrito inicialmente para compor a estrutura de uma pea a pedido de Vianinha. Como a pea no foi escrita, o poema foi publicado em cordel.

16

Nordeste/no mata quem doutor./No mata dono de engenho,/ s mata cabra da peste,/s mata o trabalhador). At esse momento na narrativa reina a lgica capitalista: o fraco subjugado aos poderosos (coronel). Deste ponto em diante h uma nova perspectiva: a possibilidade do fraco tornar-se forte por meio do engajamento nas Ligas Camponesas (Agora o campons/

rebelde,

marcado

por

atitudes

individuais, para o revolucionrio que age em conjunto, orientado pelas Ligas (J vo todos compreendendo,/ como compreendeu Joo,/ que o campons vencer/ pela fora da unio/ que entrando para as Ligas/ que ele derrota o patro,/ que o caminho da vitria/ est na revoluo). Tendo Joo Boa-Morte como nosso referencial podemos observar que h um projeto poltico claro na narrativa potica. E, sobretudo, que o poeta Gullar realiza no interior da conjuntura de seu tempo sua potica. Busca demonstrar ao povo por meio da arte literria a perspectiva que o levar a se libertar, via processo revolucionrio. O poema de Gullar representa o contexto no qual ele estava vivendo e os projetos polticos nos quais ele passou a lutar a partir da dcada de 60. Pensando Joo Boa-Morte enquanto expresso de luta poltica diante da conjuntura dos anos

cansado de fazer prece/ e de votar em burgus/ se ergue contra a pobreza/ e outra voz j no escuta,/ s a que o chama pra luta/ - voz da Liga Camponesa). O poema didtico: quando Joo toma uma atitude

individual por motivos salariais expulso da terra do fazendeiro e no tem outra perspectiva que no a de matar sua famlia e suicidar. No entanto, aparece no poema Pedro Teixeira que participa das Ligas Camponesas e ir mostrar-lhe o caminho da vitria: a revoluo. A passagem ntida: do

17

60, podemos analisar a obra do poeta deste perodo, sem correr o risco de nos tornarmos a-histricos, e cairmos na armadilha de distanciar a obra de arte do momento no qual ela foi produzida. Nesse sentido, em Joo Boa-Morte ao falar ao homem do campo a posio que ele ocupa na estrutura capitalista, o papel que ele desempenha nessa

esperanas que possibilitam e atualizam o exerccio da vontade de libertar e de se libertar.(MARTINS, 1979: 73) Assim, como toda obra de arte carrega as marcas de seu tempo, Joo Boa-Morte traz as questes e embates de um determinado perodo histrico, tanto do ponto de vista formal quando Gullar opta por uma arte feita pelo povo (cordel) para aproximar-se de seu pblico-alvo, quanto do ponto de vista temtico ao descrever o processo de explorao seguido da potencialidade revolucionria do campons. Tais

sociedade que o subordina e, sobretudo, ao mostrar-lhe o caminho da libertao (pelo processo revolucionrio) Gullar est construindo representaes sobre esse perodo utilizando a arte como meio de interveno social, tal qual foi exposto no Anteprojeto do CPC:

marcas no so apenas resqucios do momento em que a obra foi produzida, sendo antes, elementos constitutivos da

Quando o homem do povo pergunta nossa arte: o que sou? devemos responder-lhe, em primeiro lugar, com a posio que ele ocupa no mapa da objetividade, com o papel que desempenha nas conexes causais entre os fenmenos, com o desafio que encontra nas articulaes materiais a que est subordinado o ser do homem em seu essencial pertencimento ao mundo; e, em segundo lugar, devemos responder-lhe com as atitudes, as predisposies, as crenas e as

estrutura da obra.17

17

Sobre a internalizao do externo na obra ver: CANDIDO, 2000.

18

A Noite Veloz se fecha sobre o rosto dos mortos A Poesia em Dentro da Noite Veloz18

passadas, como as da infncia em So Lus (MA), reelaborando-as. Nesta fase, trabalha o passado enquanto

retrospeco de memria afetiva, social Uma outra obra de Gullar que marca a trajetria de engajamento poltico Dentro da Noite Veloz, escrita entre 1962-1975, cujo ttulo retirado de um poema em memria a Che Guevara. Produzida em sua maior parte a partir de 1964, composta por quarenta e um poemas organizados em trs partes de acordo com alguns temas prximos. Em sua primeira parte, as temticas so a denncia da situao do pas, a "poesia-revoluo", a falta da liberdade e por fim, metapoemas que traduzem entender uma maneira seu Na do poeta papel segunda e poltica, resultado de escolhas e de uma criao atual, da a poesia ser o presente. Na terceira parte, em torno do trigsimo-quinto poema, o tema mais explorado pelo poeta o exlio. Este livro expressa ainda o cotidiano da clandestinidade, a

fatalidade do exlio, o golpe de 64, a guerra do Vietn, a priso poltica aliada a tortura. Nesses e em outros temas, Gullar incorpora, durante os treze anos nos quais foram escritos os poemas, a realidade social, que mudou rapidamente assim como as reflexes dentro do livro. Um desses outros temas o derrotismo de Voltas para Casa em que o poeta denuncia a mesmice da vida de um trabalhador comum que retorna

poltico/revolucionrio.

parte, Gullar, j na clandestinidade, faz reflexes sobre suas sensaes

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Retirado do poema: Dentro da Noite Veloz (GULLAR, 2000, 197).

sua casa depois de um dia inteiro de

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trabalho e no encontra perspectivas de mudana, embora sua vontade fosse ter uma vida semelhante um roteiro cinematogrfico no qual a vida bela. Nesse sentido, o verso amanh ainda no ser outro dia precedido pelo No ser teu dever mud-lo? significativo, pois indica a

momento no qual ele est vivendo, que por sua vez representado por um tempo noturno (sombrio), mas que ao mesmo tempo muda com bastante rapidez o que pode ser exemplificado pelo adjetivo veloz. A noite veloz da obra de Gullar passa por transformaes rpidas haja vista, o longo e conturbado perodo em que o livro foi escrito (1962-1975). A velocidade desse tempo provocou na conscincia lrica do poeta respostas mltiplas em seus versos. Devemos nos ater aos movimentos do sujeito neste tempo, na noite veloz. Para isso preciso analisar como Gullar constri uma determinada imagem do que para ele essa noite veloz. A primeira observao diz respeito insistncia do poeta de contradizer esse tempo de sombras luz. por Nesse meio de

possibilidade, no final do poema, da transformao a partir da

responsabilidade do prprio trabalhador de mudar a realidade na qual vive. O ttulo do livro pode ser bastante revelador na medida em que indica termos que dizem respeito potica envolvida na obra. De acordo com Alcides VILLAA, a colocao do sujeito nesses termos do ttulo declara a definio espacial de Gullar nesse perodo qual seja, pertencer

interioridade negativa de um tempo de sombras.(VILLAA, 1984: 105)

referncias

sentido,

palavras como fogo e sol so muito presentes nos poemas, tais como Meu Povo, Meu Poema (No povo meu

Dentro da Noite Veloz indica um sujeito do lado interior (dentro) do

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poema est maduro/como o sol) e No Mundo h muitas armadilhas

Nesse sentido, Dentro da Noite Veloz a poesia de um eu que no quer se reconhecer seno fazendo parte de um processo. A convico de Gullar nesses poemas a de que a salvao do seu eu passa pela condio de compreender-se enquanto parte do

(Contudo, olhas o teu filho, o bichinho/ que no sabe/ que afoito se entranha vida e quer/ a vida/ e busca o sol, a bola, fascinado v). Alm pelo dessa

contradio

expressa

binmio

sombra/luz, os paralelismos temporais utilizados por Gullar so recursos importantes para se entender o sujeito dentro da noite veloz (a memria e o tempo presente, as sensaes ntimas e os conflitos sociais vivenciados nesse perodo). Nosso desafio, portanto, no a anlise do eu em si de Ferreira Gullar, idealizvel abstrativamente em algumas perspectivas da crtica literria, mas a maneira como esse eu toma forma com o mundo, isto , compreender como o eu em Ferreira Gullar aparece interagido com o cotidiano do poeta e com as relaes sociais das quais ele vivenciou.

processo histrico, cuja direo o poeta espera ser determinada via pelos processo

trabalhadores,

revolucionrio e no pelo capital. Nesse sentido, Gullar faz da subverso o carter de sua obra: Agosto 196419 Entre lojas de flores e de sapatos, bares, mercados, butiques, viajo num nibus Estrada de FerroLeblon. Volto do trabalho, a noite em meio, fatigado de mentiras. O nibus sacoleja. Adeus, Rimbaud, relgio de lilases, concretismo, neoconcretismo, fices da juventude, adeus, que a vida19

GULLAR, 2000: 170.

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eu a compro vista aos donos do mundo. Ao peso dos impostos, o verso sufoca, a poesia agora responde a inqurito policial-militar. Digo adeus iluso mas no ao mundo. Mas no vida, meu reduto e meu reino. Do salrio injusto, da punio injusta, da humilhao, da tortura, do terror, retiramos algo e com ele construmos um artefato um poema uma bandeira Os trs elementos finais no

considera tais movimentos uma iluso e opta por uma poesia que no esteja distanciada para ele, da realidade, do salrio injusto/da punio injusta/da humilhao/da tortura/do terror. No final do poema o termo artefato garante a idia central de Gullar. Muito utilizado na identificao blicos de

equipamentos

rudimentares

durante a guerrilha urbana no Brasil, a relao que o poeta estabelece a de um artefato-poema, que indica a proposta

poema

artefato-poema-bandeira, de resistncia democrtica direcionada pelo PCB ps-golpe de 64, da qual

refletem a perspectiva da interao entre o sujeito lrico e o sujeito histrico, na acreditava ser a arte um instrumento de medida em que Gullar despede-se de atuao nas brechas do regime militar. todos os aspectos que ele considera ser Ao relacionar o termo artefato com prejudicial classe operria. Nesse poema Gullar est realizando um sentido, dar adeus aos movimentos dilogo direto com a luta armada. Para o concretista e neoconcretista bastante poeta, assim como para o PCB a arte significativo uma vez que Gullar fez deveria ser no ps-golpe a maneira mais parte deles e agora no v mais sentido coerente de lutar contra a ditadura uma em tais j que a poesia responde a vez que, viam como desestrutura dos inqurito policial-militar. O poeta que optaram pela luta armada, travar

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uma luta com o regime no campo em que ele era mais forte. O termo bandeira tambm forma uma

indcios da dureza do presente so marcadas pela identificao de um eu que de carne e osso memria (infncia) e esquecimento (tempo

significao do envolvimento que a lrica de Gullar tem com a prxis revolucionria. A bandeira muito utilizada para indicar um determinado horizonte de expectativas de classe bandeira de luta ou como estratgia de ao coletiva uma bandeira. O lado subjetivo, o eu de Gullar que viaja, cansado de mentiras e iluses identificase com as questes sociais sobretudo, porque agora tambm ele responde a inqurito policial. Em um outro poema, Homem

presente). Homem Comum reflete o julgamento de Gullar dos fatos

contemporneos ao mesmo tempo em que indica um projeto poltico/potico. Nesse poema o impacto do golpe de 64 e as conseqncias sociais e polticas que dele surgiram pode ser visto por esses versos:

Poeta fui de rpido destino. Mas a poesia rara e no comove nem move o pau de arara. O termo pau-de-arara indica

Comum (GULLAR, 2000: 167) Gullar uma prtica de tortura comum nos tambm tem essa preocupao com o pores da ditadura. Mas, a referncia de outro. A utopia proposta a partir da Gullar vai alm, na medida em que sua concretude de um tempo presente, potica sombrio, de nomes dos quais o poeta interveno social, para servir a esses nem se lembra mais e da felicidade milhares perdida no passado (defuntas transformao da dureza do tempo alegrias). Lembranas da infncia e de homens comuns s tem sentido como

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presente. Os verbos que ligam poesia a pau-de-arara ressaltam esse sentido de projeto poltico/potico: comove e move. No primeiro, Gullar como que diz ao seu receptor que a poesia dele no comove o pau-de-arara mas, quer comov-lo para que possam juntos transformar a realidade em que vivem (Comoo: Gullar/Poesia/Receptor). No segundo verbo, a poesia no move o pau-de-arara mas, juntos os homenscomuns podem mov-lo. Por isso o poeta quer falar com o seu receptor comparando-se com ele e alertando-o de que o tempo que eles possuem para mudar a realidade pouco:

Se nos atermos aos documentos produzidos pelo PCB na poca,

percebemos uma grande proximidade entre a discusso travada no interior do partido e a poesia de Gullar20: A submisso do Pas aos interesses dos monoplios norteamericanos assume propores jamais vistas. Foi praticamente abolida a lei que limitava a remessa de lucros para o Exterior. Realizou-se a negociata da compra do acervo da Bond and Share. Duplicou-se o montante do Acordo do Trigo com os Estados Unidos. Facilitase a importao de produtos agrcolas norte-americanos. Adotou-se uma poltica de minrios de acordo com as exigncias da Hanna Mining Co. [...] A poltica econmica e financeira ditada pelo FMI. (CARONE, 1982: 17) Com essas referncias Gullar revela na poesia o tema do imperialismo norte-americano que foi freqente nas

Que o tempo pouco e a esto o Chase Bank, a IT & T, a Bond and Share, a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton, e sabe-se l quantos outros braos do polvo a nos sugar a vida e a bolsa

discusses

da

esquerda.

As

multinacionais referidas por Gullar como polvos que nos sugam so as

20

No dia em que o regime militar se instala no pas, 1 de abril de 1964, o poeta filia-se ao Partido Comunista Brasileiro para poder continuar de uma maneira organizada a luta em que acreditava.

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mesmas que os militantes do PCB denunciam como invasoras do pas. custa da recuperao de uma poesia simultaneamente individual e coletiva, o poeta elabora um projeto literrio que faz convergir lirismo e ideologia No verso Cruzo a avenida sob a presso do imperialismo, h esse imbricamento que buscamos demonstrar na obra de Gullar entre o sujeito lrico e o sujeito histrico. O momento pessoal cruzo a avenida junta-se ao da anlise genrica a presso do

contra o pau-de-arara, o latifndio, o imperialismo onde possa ser

recuperada as alegrias mortas desse tempo j esquecido pelo poeta. Essa muralha no mais a da violncia do opressor mas, de sonho e margaridas, onde possa ser recuperada a beleza e a comoo do poema. A utilizao do termo margarida passa pela identidade de um interesse comum, sem distines, margaridas formam uma imagem de extenso no campo em que as flores no se distinguem por singularidades, mas por afinidades. (FONSECA, 1997: 221). Assim, Gullar recupera no interior de seus poemas os anseios no apenas seus durante aqueles duros anos do regime militar, mas de uma grande parte

imperialismo. O poeta aponta, j no final do poema, o caminho a seguir:

Mas somos muitos milhes de homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonho e margaridas. A possibilidade de lutar juntos para formar uma muralha de sonho -

de artistas e intelectuais de esquerda que optaram pela resistncia democrtica que queriam formar uma muralha de margaridas contra a ditadura militar.

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