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DO DIÁLOGO FREIREANO À DIALOGICIDADE NA RELAÇÃO DE CUIDADOS EM SAÚDE MENTAL NILSON GOMES VIEIRA FILHO Universidade Federal de Pernambuco Introdução O diálogo em Paulo Freire é teorizado a partir de uma práxis educativa libertária. Diferencia-se assim da perspectiva filosófica e interpessoal (Eu-Tu) de Buber, sobretudo, quando propõe o conceito de dialogicidade ancorado no interior de uma relação de direito. Afirma que “não é possível o diálogo entre os que querem a pronuncia do mundo e os que não querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue” (Freire,1987,p.79). A relação dialógica pressupõe então uma relação de direito e cidadania na qual o profissional trabalha em horizontalidade com o usuário e não para ele. Em saúde mental, no contexto da reforma psiquiátrica, essa relação implica que no espaço instituído de cuidados visando a promoção e/ou terapêutica deve existir a possibilidade concreta do exercício do contra-poder do usuário, ou de seu empoderamento, onde sua voz, subjetividade e situação sócio-existencial são respeitadas. O objetivo deste trabalho é refletir sobre esse espaço e as conversações dialógico-terapêuticas como parte de sua dinâmica interna. Comunicabilidade dialógica e subjetividade Para Freire (1977, p.65) o mundo humano, cultural e histórico, é postulado como um mundo de comunicabilidade tendo como característica primordial a intercomunicação ou a intersubjetividade. Trata-se de uma comunicabilidade relacional dialógica que implica numa “reciprocidade que não pode ser rompida” (ibid, p.67) visto que não há aqui sujeitos passivos. Conseqüentemente, “os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo” (ibid, p.67), e “a expressão verbal de um dos sujeitos tem que ser percebida dentro de um quadro significativo comum ao outro sujeito” (ibid, p.67). Continua explicitando que a compreensão se dá quando há acordo em torno dos signos lingüísticos, caso contrário não há

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DO DIÁLOGO FREIREANO À DIALOGICIDADE NA RELAÇÃO DE CUIDADOS EM

SAÚDE MENTAL

NILSON GOMES VIEIRA FILHO

Universidade Federal de Pernambuco

Introdução

O diálogo em Paulo Freire é teorizado a partir de uma práxis educativa libertária.

Diferencia-se assim da perspectiva filosófica e interpessoal (Eu-Tu) de Buber, sobretudo,

quando propõe o conceito de dialogicidade ancorado no interior de uma relação de direito.

Afirma que “não é possível o diálogo entre os que querem a pronuncia do mundo e os que não

querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados

deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial

de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante

continue” (Freire,1987,p.79).

A relação dialógica pressupõe então uma relação de direito e cidadania na qual o

profissional trabalha em horizontalidade com o usuário e não para ele. Em saúde mental, no

contexto da reforma psiquiátrica, essa relação implica que no espaço instituído de cuidados

visando a promoção e/ou terapêutica deve existir a possibilidade concreta do exercício do

contra-poder do usuário, ou de seu empoderamento, onde sua voz, subjetividade e situação

sócio-existencial são respeitadas. O objetivo deste trabalho é refletir sobre esse espaço e as

conversações dialógico-terapêuticas como parte de sua dinâmica interna.

Comunicabilidade dialógica e subjetividade

Para Freire (1977, p.65) o mundo humano, cultural e histórico, é postulado como um

mundo de comunicabilidade tendo como característica primordial a intercomunicação ou a

intersubjetividade. Trata-se de uma comunicabilidade relacional dialógica que implica numa

“reciprocidade que não pode ser rompida” (ibid, p.67) visto que não há aqui sujeitos passivos.

Conseqüentemente, “os sujeitos co-intencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu

conteúdo” (ibid, p.67), e “a expressão verbal de um dos sujeitos tem que ser percebida dentro de

um quadro significativo comum ao outro sujeito” (ibid, p.67). Continua explicitando que a

compreensão se dá quando há acordo em torno dos signos lingüísticos, caso contrário não há

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comunicação. Por isso a compreensão, inteligibilidade, comunicação se dão simultaneamente,

fazendo parte de um mesmo processo e não podem ser vistas separadas umas das outra.

Reconhece o aspecto emocional da comunicação, mas considera que se o profissional se

encontra enredado neste aspecto numa situação pedagógica é difícil que os interlocutores

tenham o objeto de pensamento mediador passível de verbalização e de criticidade.

No referido texto Freire focaliza o processo de comunicação relativo ao ato de

conhecimento apreendido numa relação de ensino cuja “função gnosiológica não possa ficar

reduzida a simples relação do sujeito cognoscente com o objeto cognocível. Sem a relação

comunicativa entre sujeitos cognoscentes em torno do objeto cognoscível desapareceria o ato

cognoscitivo” (ibid, p.65). Consequentemente, a função cognoscitiva desta relação implica

necessariamente uma outra comunicativa. Nessa última, é valorizado o aspecto objeto pensado

pelo interlocutor cuja compreensão dos significados, significativos do contexto, supõe um “nós

pensamos” de caráter co-participativo, associado a uma ação cultural pela liberdade. Explicita

ainda que “nessa comunicação que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação

pensamento-linguagem-contexto ou realidade” (ibid, p.70). A compreensão desse pensamento

deve, ao menos, considerar que esses significados/ significativos verbalizados estejam ligados à

experiência sociocultural do grupo de referência pedagógica, sendo assim portadora de

subjetividade, valores, visão de mundo, convicções ou crenças etc. Em relação ao profissional, a

atenção de Freire foi mais voltada para um conceito de cultura ligado à ação cultural articulada

com a mudança societária.

Comunicabilidade dialógica e cultura

No período dos anos setenta, o conceitualização de cultura freireana tende a ser mais

“compreendida enquanto resultado de uma práxis e do trabalho humanos em sua relação

dialética com o mundo. Ela compreende o universo simbólico e ‘abrangente’ em que os homens

atuam como seres conscientes. Não é uma coisa, mas uma relação (grifo nosso), um processo

dialético em permanente movimento, criado pelo homem, mas que, ao mesmo tempo, o cria”

(Lima, 1981, p.109). Se bem que ligada a uma práxis, a impressão que se tem, é que a atenção

de Freire estaria mais voltada para uma compreensão de cultura ainda arraigada a uma

teorização que tendia encarar a captação do real coincidindo com o “pensado objetivo” referente

ao modo de cientificidade dominante.

Provavelmente, em decorrência deste modo de teorizar ele interprete, por exemplo, o

dito “pensamento mágico” como uma compreensão mágica ou ingênua da realidade da parte dos

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analfabetos. E, sua ajuda pedagógica, entre outras coisas, teria a intenção de superar

dialeticamente essa compreensão desenvolvendo com eles um entendimento mais crítico dessa

realidade, na medida em que os analfabetos fossem tendo uma percepção cada vez mais global e

menos focalizada da mesma, possibilitando assim construir uma “síntese cultural” em oposição

dialética à “invasão cultural”. Aqui a “realidade objetiva” parece ser mais aquela percebida pelo

professor ou monitor e a “subjetiva” (visão mágica de mundo) ser mais aquela percebida pelo

alfabetizando, o primeiro introduziria elementos críticos em sua visão de mundo, mas

dialogicamente discutidos e aí contradições aparecem nessa lógica.

Afirma Freire que “´ad-mirar´ a realidade significa objetivá-la, apreendê-la como campo

de sua ação e reflexão. Significa penetrá-la, cada vez mais lucidamente, para descobrir as inter-

relações verdadeiras dos fatos percebidos” (Freire, 1988, p.31). Notamos que a operação lógica

do “ad-mirar” realizada pelo educador apreenderia a realidade objetivando-a enquanto objeto de

conhecimento e a partir daí descobriria as relações “verdadeiras dos fatos percebidos” (idem). A

seu turno, o camponês (analfabeto) imerso em seu “mundo mágico” tem dificuldade de praticar

essa operação lógica do “ad-mirar” na medida em que mantém um forte “cordão umbilical” que

o liga ao mundo natural/cultural. Freire insiste aqui que a captação dele dos nexos de um fato a

outro, “embora objetiva, provoca uma compreensão não verdadeira dos fatos, que, por sua vez

está associada à ação mágica” (ibid, p.32).

Destaca ainda que, nesse caso, “em face de formas ingênuas de captação da realidade

objetiva; estamos em face de formas desarmadas de conhecimento pré-científico” (ibid, p.32).

Dá a entender que a captação perceptiva do real, enquanto “realidade objetiva” de

conhecimento, se faz por intermédio da lógica do conhecimento científico moderno. Esclarece

que a ação educativa tenta “superar o conhecimento preponderantemente sensível por um

conhecimento, que, partindo do sensível, alcança a razão da realidade” (ibid, p.33). Nesse caso,

seria a razão científica enquanto verdade referente à realidade objetiva dos fatos, o caminho

pelo qual o educando se aproximaria gradativamente para poder se armar de um conhecimento

necessário para enfrentar o analfabetismo associado ao mundo da opressão.

Entretanto, não há em Freire um modo linear de pensar. As questões que ele vai

colocando estão ligadas a uma práxis educativa e sua preocupação dialógica é como (o método)

introduzir um conhecimento crítico sem ser invasivo/opressivo. Assim, o pensamento mágico

“tem sua lógica interna e reage, até onde pode, ao ser substituído mecanicistamente por outro.

(...) sobrepor a ele outra forma de pensar, que implica noutra linguagem, noutra estrutura e

noutra maneira de atuar lhe desperta uma reação natural. Uma reação de defesa ante o ‘invasor’

que ameaça romper seu equilíbrio interno” (ibid, p.31). Quando essa invasão ocorre “revela sua

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resistência à transformação que operam esses elementos. (...). Ao perceber os elementos

culturais estranhos, os modificam, submetendo-os a uma espécie de ‘banho purificador’, do que

resulta que aqueles mantêm algo de sua originalidade, sobretudo no formal, e ganham uma cor

nova, uma significação nova que o marco cultural invadido lhes impõe” (ibid, p.31).

Freire propõe então uma “síntese cultural” em oposição dialética a essa “invasão

cultural” como uma forma de superar a contradição entre o saber da ciência moderna do

primeiro e o conhecimento empírico popular dos outros, numa ação prática de liberdade,

transformadora da realidade cultural. O caminho seria investigar principalmente as temáticas

significativas do contexto vivenciado pelos educandos em diálogo criativo com eles. Em termos

gerais, esse estudo “tem como sujeitos de seu processo não apenas os investigadores

profissionais, mas também os homens do povo, cujo universo temático se busca” (Freire, 1987,

p.181). E, no decorrer desse processo problematizam-se os sentidos dessa temática, numa

situação concreta e histórica, num vai-e-vem entre ação e reflexão.

A partir dessa experiência participativa, a teorização freireana parece ir além de uma

concepção do real ligada à explicação científica. Em Pedagogia do Oprimido, ao explicitar a

importância da visão do mundo de um povo ele também denota um entendimento de um real

socialmente construído. Eis então: “muitos erros e equívocos comete a liderança ao não levar

em conta esta coisa tão real (grifo nosso), que é a visão do mundo que o povo tenha ou esteja

tendo. Visão do mundo em que se vão encontrar explícitos e implícitos os seus anseios, as

dúvidas, a sua esperança, a sua forma de liderança, a sua percepção de si mesmo e do opressor,

as suas crenças religiosas, quase sempre sincréticas, o seu fatalismo, a sua reação rebelde. E

tudo isto, como já afirmamos, não pode ser encarado separadamente, porque, em interação, se

encontra compondo uma totalidade” (Freire, 1987, p.182).

Conversações dialógico-terapêuticas

No trabalho publicado nos Anais do III Colóquio Internacional Paulo Freire (Vieira

Filho, 2003) questionamos o termo “conversação terapêutica” de Anderson & Goolishian

(1998) e propomos uma mudança para “conversação dialógico-terapêutica”. Esses últimos

autores destacavam que a fixação do profissional no diagnóstico oficial para explicar um

fenômeno clínico acarretaria uma interpretação unilateral da problemática do paciente fazendo

prevalecer a narrativa do terapeuta em detrimento daquela do paciente. O “conversar” surge e

pode fluir em continuidade na medida em que o terapeuta desvincula-se de sua posição de

superioridade procurando um entendimento mútuo com o paciente sem que ele precise se

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esforçar para convencê-lo de suas narrativas e sentimentos. Foi destacado que esse processo

interativo não era suficiente para ser dialógico, pois necessitava, ao menos, que neste

entendimento ficasse explícito a relação instituída de direito, o reconhecimento do contra-poder

do paciente e de sua visão do mundo.

Assim, nesse encontro entre interlocutores, mediado pela linguagem, as palavras teriam

que ter um peso de eqüidade e de participação ativa de ambas as partes. E, que o diálogo

pressupunha ainda co-operação e colaboração que permitissem também uma conscientização

cognoscitivo-afetiva da problemática existencial e de saúde do usuário, possibilitando ações e

re-significações pertinentes a seu sofrimento psíquico. Então, faz sentido utilizar a noção

conversação dialógico-terapêutica (Vieira Filho, 2003). De um lado, a distinguimos de um

mecanicismo ativista de perguntas e respostas “compreensivas”, e de outro, esse processo

relacional-afetivo leva efetivamente a sério a fala e a comunicação em diálogo com o usuário

cidadão.

Conversações dialógico-terapêuticas em educação e saúde mental

Nas ações dialógicas de educação em saúde (promoção/prevenção) e de terapêutica em

saúde mental valoriza-se o aspecto emocional do usuário, a subjetividade, o reflexivo e pré-

reflexivo não privilegiando assim a linguagem falada, o verbal e o reflexivo. Mas, o usuário

inserido numa “cultura do silêncio” pode ter dificuldade de “conversar” com o educador em

saúde e/ou terapeuta.

Nesse sentido, a conversação dialógico-terapêutica implica uma intencionalidade

amistosa entre educador/terapeuta e usuário que é fundamental para que haja cooperação e

adesão à(s) ação(ões) de saúde / saúde mental. A empatia está presente nessa relação. Empatia

(do grego empátheia): tendência para sentir o que se sentiria caso se estivesse na situação e

circunstâncias experimentadas por outra pessoa (Dic. Aurélio). Para Rogers (1977, p.72), esse

sentir as emoções e significados de uma outra pessoa, se passam na condição de “como se”,

caso contrário haveria uma espécie de fusão identificatória que dificultaria a relação de ajuda.

Rogers considera que a empatia é processual e requer, de um lado, “sensibilidade

constante para com as mudanças que se verifica nessa pessoa em relação aos significados que

ela percebe, ao medo, à raiva, à ternura, à confusão ou ao que quer que ele/ela esteja

vivenciando” (ibid, p.73) e de outro, uma avaliação freqüente com ele/ela do que o profissional

sente e significa se guiando nessa constante retroação, ressaltando a necessidade de prudência

quando transmitir e revelar percepções, significações e sentimentos que a pessoa não está

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consciente, assim por diante. Em todo caso, esse processo requer também da parte do

profissional a suspensão de pré-julgamentos, preconceitos, imposições de opiniões, valores e

normas.

O baixo grau de empatia teria relação com o pouco ou o insucesso do tratamento ou

poderia causar dificuldade na comunicação dialógica em educação em saúde. Esse grau

indicaria uma situação de pouco ou não compreensão pelo profissional do sofrimento ou

problema de saúde daquele que sofre situação susceptível de dar origem a um sutil ou explicito

processo de exclusão social com efeitos negativos na auto-estima e na auto-aceitação.

Rogers (1977, p.81) cita Laing referindo-se a um paciente: “é uma sensação tão horrível

perceber que o médico não é capaz de ver a gente como a gente é, que ele não consegue

compreender o que a gente sente e que ele vai em frente apenas com suas próprias idéias! Eu

começava a sentir –me como se fosse invisível ou como se talvez não estivesse presente”. E,

continua no mesmo texto: “é impossivel sentir adequadamente o mundo perceptual de outra

pessoa sem que valorizemos essa pessoa e seu mundo” (ibid, p.81).

Um clima empatia permitiria um clima positivo de compreensão evitando julgamento

normativo, possibilitando a auto-aceitação e a auto-exploração da pessoa (usuária) em relação a

sua problemática existencial e de saúde. Essa compreensão indica que “alguém a valoriza, está

atento para a pessoa que ela é e a aceita” (ibid, p.81). Aceitação que implica o reconhecimento

do outro, como pessoa humana, contribuindo assim para emergência de um fluxo dialógico de

narrativas de experiências vividas facilitando desbloqueios afetivos e comunicativos.

Esse processo dialógico e empático permitiria também perceber o que o outro quer

comunicar emocionalmente e/ou discursivamente na referida “conversação”. No primeiro caso,

o sistema emocional (SE) se concentra na experiência do momento existencial e não implica

“nem significante, nem significado, nem consequentemente signo ou código” (Pagès, 1993,

p.244). Nesse nível, há mais relação afetiva associada a uma elaboração mental pré-reflexiva. A

comunicação discursiva supõe também a anterior, podem até se alternar em certas

“conversações” (p.ex. silêncio e a fala), permite que a subjetividade e intersubjetividade sejam

manifestas e que na elaboração mental prevaleça a função simbólica e a da linguagem. Nessa

última comunicação a experiência do cultural se faz presente e com maior visibilidade.

Considerações finais

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O espaço de cuidados a saúde / saúde mental (promoção/prevenção/terapêutica) em

saúde publica sendo essencialmente um espaço relacional, é lugar onde se concretiza as

conversações dialógico-terapêuticas, entre profissionais e usuários no âmbito da educação

dialógica em saúde e terapêutica de rede (Vieira Filho, 2004). Essas diferentes práticas

implicam modalidades diferenciadas de conversações. Entretanto, nelas perpassam a

experiência cultural, comunicabilidade, subjetividade, empatia.

Na pesquisa realizada num Posto de Atenção Básica do Sistema Único de Saúde (SUS)

situado numa favela de Recife (Vieira Filho, 2003), notamos a persistência da vivência da

“cultura do silêncio” em usuários deste serviço que tomam medicação psiquiátrica e que

freqüentam para tratamento em saúde mental serviços ambulatoriais e hospitalares.

Lima (1981) aponta que o conceito de “cultura” em Freire está também associado à falta

de experiência democrática historicamente herdada do Brasil colonial que não desenvolveu um

estilo de vida comunitária com participação ativa do poder local ou de autogoverno. Lembra que

Freire se referia ao “silenciamento da fala” citando um dos sermões do Padre Antônio Vieira

(ibid, p.85), cujo autor apontava essa questão como um dos maiores males de nosso país desde a

colonização. Essa herança autoritária teria construído uma sociedade que tende a dar valor ao

“mutismo” e ao “comunicado” ao invés da participação política ativa do cidadão comum,

fortalecendo assim as relações de submissão e a construção de uma mentalidade dependente,

“hospedeira” do outro dominante, internalizado nas relações e mitos sociais de dominação.

Nesse sentido, a “cultura do silêncio” vivenciada pelos pacientes acima estaria sendo

construída por intermédio de relações de dependência, implícitas e/ou induzidas, nas relações

de cuidados em saúde mental e relacionadas à ideologia assistencialista, ainda persistente nos

referidos serviços. Essa ideologia estaria sendo reproduzida institucionalmente, sobretudo, em

conseqüência da “política do abandono” ou do desamparo social que estão submetidas

determinadas populações periféricas, particularmente aquela da pesquisa acima. Nessa

população, a participação política distrital desses usuários no planejamento da área de saúde era

inexistente, notava-se o contrário: uma verticalização centralizadora e uma falta de

conscientização sobre a emergência dessa participação.

Entretanto, consideramos que essa “cultura do silêncio”, vivenciada pelos usuários e/ou

seus grupo(s) de referência, pode ser trabalhada no cotidiano institucional nas “conversações

dialógico-terapêuticas”. Prática que pode possibilitar a emergência de processos comunicativos

em reciprocidade e formas dialógicas de intervenções em saúde (Educação, Terapêutica) que

podem contribuir para momentos políticos participativos dos usuários no contexto local e

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societário, bem como a desconstrução desta “cultura do silêncio” nas relações de cuidados à

saúde / saúde mental.

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