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PET Filosofia – UFPR

Data: 25.03.2015

Aluna: Fernanda Ribeiro de Almeida

Fichamento do terceiro capítulo, A Prisão de Petrus Valvomeres, do livro Mimesis, de

Erich Auerbach

Vimos no capítulo anterior, Fortunata, Auerbach realizar um contraste entre

dois tipos1 possíveis de compreensão da realidade através da literatura: um deles, a

compreensão moralista-retórica, é representada por Petrônio e Tácito. Típica da

tradição clássica, essa compreensão é incapaz de captar as forças históricas

subjacentes ao cotidiano, e dele se aproxima somente em tom cômico ou satírico. Já

no outro tipo, a realidade é apreendida como movimento histórico e um trecho do

Novo Testamento serve como referência. Acontecimentos banais, como a negação de

Pedro, passam então a emergir na literatura com forte dramaticidade e

problematicidade, marcando o surgimento de uma consciência histórica ausente nos

autores clássicos. Veremos agora, no terceiro capítulo, os seguintes pontos abaixo

resumidos:

Inicialmente, o estilo clássico dos historiadores-moralistas, como o de Tácito e

Amiano, servirá, para Auerbach, como expressão da decadência da cultura Antiga

tardia. Para tanto, serão apontadas as modificações na sintaxe, no vocabulário e no

modo de representação da realidade pelas quais passam o estilo desses autores, em

comparação com a forma e o conteúdo da tradição clássica. No caso de Amiano, nota-

se que a retórica elevada e o discurso carregado de juízos morais incorporam o

sensível-gestual, produzindo um “realismo berrante”. Marcado pelo predomínio do

horripilante, do grotesco e do sádico, o realismo do oficial romano eliminará a

existência de qualquer força positiva que se contraponha a essas forças terríveis. A

ausência de um contrapeso aos aspectos sombrios de sua obra é a mesma ausência de

1 Divisão realizada por Waizbort em seu artigo Erich Auerbach e a condição humana, p. 192.

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um fator positivo na situação política e social do Império, que carecia, na época, de

qualquer esperança quanto ao seu futuro. Neste sentido, Auerbach notará que as

Metamorfoses de Ovídio, conhecidas desde o início do século I d.C., representam com

precocidade as mesmas tendências do estilo de Amiano.

Enquanto a literatura da Antiguidade tardia reflete, para Auerbach, as

circunstâncias históricas em que foi produzida, a literatura da tradição judaico-cristã

realiza, por sua vez, dois movimentos em direção ao estilo da tradição clássica. Um

deles, exemplificado por uma epístola de São Jerônimo, se volta mais fortemente para

o estilo da Antiguidade tardia do que para o clássico propriamente dito, assimilando a

linguagem barroca e o aspecto sensual-imagético presentes em obras tais como a de

Amiano. Entretanto, o conteúdo dessa vertente da literatura judaico-cristã se

diferencia dos temas tratados pelos autores clássicos na medida em que é permeado

por valores cristãos – no caso da carta de São Jerônimo, os valores da humildade e

abnegação.

O outro movimento realizado pelos escritores cristãos encontra sua expressão

máxima na estilística criada por Santo Agostinho. De maior influência para o

desenvolvimento da literatura realista do que a “corrente” representada por Jerônimo,

o novo estilo dos Pais da Igreja é o ponto para o qual todo o capítulo terceiro de

Mimesis converge. Nele, o conceito de Auerbach de interpretação figural, já

mencionado no segundo capítulo, aparece como suma do método literário judaico-

cristão e principal componente de uma estrutura que compreende os movimentos

históricos de uma maneira muito peculiar: a conexão racional espaço-temporal entre

os acontecimentos é quebrada, ou melhor, redirecionada para um terceiro elemento,

Deus. A lacuna racional que é deixada pelos fatos que preencheriam a distância

temporal e espacial entre acontecimentos como o dilúvio e a fundação da Igreja

Católica, passa a ser preenchida pela significação divina. E a significação divina, ainda

que escape em seu todo da compreensão humana, figura profeticamente a história – e

é aí que cabe aos Pais da Igreja interpretá-la na exegese. Por fim, ao lado da

interpretação figural, chega o fim da divisão entre estilos. Passemos agora a uma

apresentação mais detalhada do conteúdo do terceiro capítulo, A Prisão de Petrus

Valvomeres.

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Nos escritos de Amiano Marcelino, historiador e oficial romano do século IV

d.C., encontra-se o registro de uma sequência de tumultos da plebe romana que

resultaram na prisão de um homem apelidado Petrus Valvomeres. No primeiro desses

tumultos, a plebe raivosa, motivada por uma causa menor, se dirige ao prefeito

romano Leôncio, que aplaca a multidão através de chicoteadas e deportações. Já no

segundo levante, causado pela escassez de vinho, a ferocidade da plebe chega a tal

ponto que o prefeito é desencorajado, por seus conselheiros, a enfrentá-la. O prefeito,

contudo, não só se aproxima da multidão, como também nela identifica o mentor

plebeu das agitações, Petrus Valvomeres. Petrus é então amarrado e açoitado, e a

visão de sua impotência faz com que a multidão se disperse. O destino último de

Petrus Valvomeres ainda é mencionado por Amiano: condenado por estupro, recebe a

pena capital.

Se, como afirma Auerbach, na descrição da rebelião dos soldados, Tácito não se

preocupou em apresentar as causas que moviam a insatisfação, menor ainda é a

preocupação de Amiano em apontar, no trecho acima, as circunstâncias de formação

dos levantes da plebe. Ainda que a plebe constituísse, de fato, uma horda imprestável

– tal como era segundo o julgamento dos historiadores-moralistas -, um historiador

moderno se preocuparia em, pelo menos, procurar causas e uma possível explicação

para o estado corrompido desse estrato social. E mesmo Tácito foi capaz de delinear,

em seu relato, uma racionalidade nos protestos dos soldados romanos, de modo a

formar um conjunto de exigências compreensível, em certa medida, inclusive para

seus superiores. É a falta dessa “relação objetiva e racional” 2 entre a multidão descrita

por Amiano e as autoridades que elimina, nesse relato, a possibilidade de uma

“relação humana baseada em respeito mútuo” 3, acabando-a por delimitar a uma

esfera meramente física, “baseada em magia e violência” 4.

O laconismo de Amiano quanto às circunstâncias históricas dos fatos por ele

narrados acaba por ser maior que o de Tácito inclusive por que no seu relato não há

nem mesmo algo comparável à fala de Percênio, que discursa para os soldados

revoltosos. A retórica de Amiano é tamanha que obscurece qualquer clamor popular,

2 AUERBACH, p. 45.3 Idem.4 Idem.

3

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mas deixa uma “forte impressão sensorial, talvez desagradavelmente realista” 5 em

seu leitor. Dessa forma, Amiano constrói seu relato segundo um princípio que

Auerbach denomina sensível-gestual. Presente na escolha das palavras e das imagens,

o estilo sensível-gestual de Amiano, quando comparado ao texto de Tácito, servirá

para acentuar o enfraquecimento do humano e do objetivo-racional no mundo da

Antiguidade tardia e passagem do sensível e do mágico para o primeiro plano. Os

elementos gestuais e imagéticos da punição de Petrus ganham um aspecto grotesco

quando apresentados através do estilo pomposo de Amiano, aspecto este que acaba

por determinar todo o caráter de sua obra. Assim, Auerbach afirma 6:

Em Amiano não sobrou nada além do mágico, do grotesco

e também horrível-patético, e surpreende-nos o gênio que

um alto oficial, sério e objetivamente ativo, desenvolve

neste sentido. Quão poderosa deveria ser a atmosfera que

levou homens desta classe e experiência vital

(evidentemente ele passou grande parte da sua vida em

campanhas duras e estafantes) ao desenvolvimento de tais

talentos!

A classe dominante retratada por Amiano é grotesca, sádica, sanguinária,

fantasmagórica, supersticiosa, ambiciosa porém covarde – reflexo talvez da atmosfera

em vivida pelo oficial, como nota Auerbach. Um senso de humor também depravado,

onde há com muita freqüência algo de “desumanamente convulsivo” 7, percorre a obra

do historiador. O grotesco-horrível é a marca do seu mundo, “um espelho deformante

do costumeiro ambiente humano no qual nos movimentamos”. Entretanto, é verdade

que o estilo de Amiano, mesmo com seu latim rebuscado e seu mundo grotesco,

pertence à mesma tradição do estilo de Tácito, isto é, a dos historiadores moralistas.

Em seus relatos, ambos emitem juízos acerca da conduta das pessoas, mas nunca as

deixam falar por si mesmas, isto é, evitam, de propósito, o estilo realista, por se tratar

5 Idem. 6 P. 467 P. 51

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de um estilo baixo. Essa tradição privilegia episódios e assuntos sombrios, para que

mais facilmente sejam contrastados ao “ideal de primordial simplicidade, pureza e

virtude que piram em suas mentes” 8. Entretanto, devido à forte carga grotesca e

sombria dos conteúdos presente nas narrativas dessa tradição, é possível notar uma

alteração no estilo elevado dos historiadores moralistas – e essa alteração se faz

notável sobretudo em Amiano, onde há uma “hipertrofia do sensorial e do

perceptível” 9

Assim, a linguagem de Amiano “começa a pintar a realidade deformada,

sangrenta e fantasmagórica com palavras cintilantes e pomposas deformações

fraseológicas” 10, o elegante equilíbrio do estilo clássico é quebrado, “o distinto

retraimento converte-se em pompa sombria”, e a gravidade do estilo elevado torna-se

menor que sua sensualidade, uma vez que o gestual, imagético e sensorial

predominam. O exagero no sensível-gestual, contudo, não elimina a gravidade do

estilo clássico, mas com ela contrasta e a exacerba. Assim, “o estilo elevado torna-se

patético e horripilante” 11 e cria uma espécie de realismo gritante, dominado pelo

sensivelmente pictórico.

Porém, não basta que a linguagem de Amiano seja rebuscada para que sua

sensibilidade esteja de acordo com a sensibilidade clássica: sua sintaxe, seu

vocabulário e o seu mundo sensorial são exageradamente refinados, a ponto de

possuírem uma força que desfigura o realismo clássico - pois desfigurada é a realidade

que Amiano representa. Nessa realidade, o elemento mais opressivo se torna a

ausência de forças contrárias àquelas opressivas e sombrias, forças como o “amor e

auto-sacrifício, heroísmo professo e busca incessante de possibilidades de uma

existência mais pura”12, que são necessariamente geradas quando existem forças tão

aterradoras quanto aquelas descritas por Amiano. Assim, a Historiografia de Amiano é

carente de um elemento remissor, porque a própria cultura antiga encontrava-se

acuada, reduzida, decadente e sem perspectivas de melhora. Perspectivas que, para

8 Idem, p. 49.9 Idem.10 Idem.11 Idem.12 P. 51

5

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Amiano, não eram oferecidas pelo Cristianismo. Logo, resta ao oficial viver em um

mundo

[...] sombrio, cheio de superstição, sede de sangue,

exaustão, medo da morte, gestos irados e magicamente

petrificados; e como contrapeso nada se mostra além da

decisão igualmente obscura, patética, no sentido do

cumprimento de um dever que se vai tornando cada vez

mais desesperado e difícil: proteger o Império, ameaçado

de fora, em decomposição por dentro 13.

O “realismo sombrio e ultrapatético” 14 de Amiano expressa uma modalidade

de representação que já se anunciava em obras mais antigas, como as de Sêneca,

Ovídio e, como já se sabe, Tácito. O destaque do horrivelmente sensorial que desfigura

a realidade pode ser encontrado, por exemplo, nas Metamorfoses. Nesta obra de

Ovídio, retórica e realismo se misturam, e a sensualidade, a tolice e o horripilante,

indissociáveis entre si, predominam. O seguinte episódio das Metamorfoses é utilizado

por Auerbach para exemplificar essa aproximação entre os autores: Lúcio, o narrador,

vai às compras em um mercado de uma cidade estrangeira e, após barganhar alguns

peixes com um vendedor, encontra um conhecido que agora exerce o cargo de fiscal

do mercado. Pítias, o fiscal, toma conhecimento da compra de Lúcio e acusa o

vendedor de cobrar um valor elevado pela mercadoria, censurando-o. Como medida

“punitiva”, Pítias ordena a um funcionário que pisoteie o jantar de Lúcio. O narrador,

então, é aconselhado por Pítias a deixar o mercado, e se vê privado tanto de sua

comida quanto de seu dinheiro.

Assim como em Amiano, é possível perceber, neste episódio, uma deformação

da realidade. Ainda que de efeito cômico, a ação de Pítias é maliciosa. O leitor é capaz

de perceber que uma peça foi pregada em Lúcio, mas a finalidade dessa ação

permanece totalmente desconhecida e inexplicada: “tolice, maldade ou loucura?” 15.

Resta, por fim, a sensação de desconforto perante uma realidade sombria, semelhante

13 P. 4814 P. 5215 P. 54

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a de Amiano. Para Auerbach, as ferramentas que Amiano utiliza para construir essa

realidade sombria – retórica rebuscada, estilo sensível-gestual - anunciam o

solapamento paulatino que a divisão clássica de estilos sofrerá. E serão também

utilizadas por autores cristãos, que, embora não separassem realismo e estilo elevado,

não faziam um uso ostensivo da retórica. Neste aspecto, São Jerônimo evidencia essa

apropriação da retórica por parte de autores cristãos, pois seu é estilo rebuscado, mas

ao mesmo tempo realista e pictórico. Como exemplo, Auerbach menciona um trecho

de uma epístola de Jerônimo, onde um recém-viúvo, Pamáquio, é louvado por seus

atos altruístas em relação aos pobres. Sobre Pamáquio, Jerônimo escreve que,

“acompanhado por esta comitiva [formada pelos miseráveis] ele avança; neles ele

reanima Cristo, nas suas imundícies, purifica-se” 16.

As imagens da procissão dos doentes e do contato físico com eles, enfatizadas

por Jerônimos, encontram seu respaldo na Bíblia, aponta Auerbach. Nos tempos

primeiros do Cristianismo, a ética da nova religião tinha como elementos importantes

a abnegação em favor dos mais necessitados e a aproximação corporal de doentes

asquerosos, sinais de humildade e da busca pela santidade. Entretanto, a crueza com

que Jerônimo retrata o episódio de Pamáquio se deve, sobretudo, ao estilo retórico da

Antiguidade tardia. A insistência de Jerônimo em contrastar o extremo luxo com uma

miséria degradante, assim como a constante oposição de imagens e de conceitos que

realiza, são evidências de sua herança clássica. Há no trecho de Jerônimo, contudo, um

lirismo concordante com as ideias de esperança e redenção oferecidas pela história de

Pamáquio. Lirismo impossível de ser encontrado na obra de Amiano, sádica e

desfigurante. Mas, como frisa Auerbach, a esperança e redenção retratadas por

Jerônimo não dizem respeito à vida terrena, porém à vida eterna e somente nelas

podem se realizar. Essa destruição do terreno, que acompanha um ideal ascético e

virginal, acaba por tornar a obra de Jerônimo tão aterradora quanto a de Amiano, já

que

Também a sua chama é sombria, e o contraste entre a

pictórica pompa do discurso e o ethos sombrio e suicida, a

16 P. 55

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imersão no horripilante, naquilo que desfigura a vida e é

seu inimigo, chega também nele a ser amiúde quase

insuportável. Não é a última vez que se defronta na sua

obra, uma disposição ascética e assassina do mundo em

meio a um estilo pictórico extremamente rico 17.

Ainda que, como afirma Auerbach, esse modo de representar a realidade se

perpetue, em certa medida, na tradição cristã, é possível encontrar textos dos Padres

da Igreja onde rebuscamento de estilo é diminuído e travam com a realidade uma

“relação muito mais dramaticamente combativa” 18, aproximando-se, por essas razões,

da tradição clássica. É o caso da narrativa de Alípio, presente no sexto livro das

Confissões, onde Santo Agostinho nos conta como seu amigo se converteu em um

entusiasta dos espetáculos de gladiadores. Alípio, que a contragosto é levado por seus

conhecidos a uma arena, fecha seus olhos para não se deixar arrebatar pela visão das

lutas, mas a gritaria da multidão “entrou-lhe pelos ouvidos e abriu-lhe os olhos para

encontrar o caminho para dominar o seu espírito” 19.

Se é verdade que Alípio permitiu ser amigavelmente arrastado para um

anfiteatro onde, para ele, algo reprovável e desprezível – embora altamente sensorial

e sedutor - acontecia, é porque confiava na sua capacidade de autocontrole e

racionalidade, que julgava fortes o suficiente para torná-lo imune ao poder

hipnotizante do espetáculo. Isso se mostra falso e a vontade de Alípio é arrebatada,

suas forças internas se revelam débeis e falham na tentativa de controlar suas

emoções. O arrebatamento de Alípio, contudo, não é signo somente de sua própria

perdição, mas carrega consigo toda a tradição clássica, sinalizando a decadência e a

ineficiência de seu “autodomínio individualista, aristocrático, mesurado e racional” 20

(p. 58).

E a força vital de Alípio, que antes era direcionada ao controle de suas paixões,

passa agora a ser exercida no sentido contrário, pois do espetáculo dos gladiadores

17 P. 5618 Idem. 19 AGOSTINHO, in Mimesis, p. 58. 20 AGOSTINHO, P. 58

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“levou consigo dali a loucura que o estimularia a voltar: não só com os outros, que o

tinham arrastado, mas antes deles e trazendo outros consigo”. Uma reviravolta

tipicamente cristã, onde o indivíduo se mostra impotente para lutar por si mesmo

contra forças externas e necessita reconhecer essa impotência perante Deus, que

então virá em seu auxílio. Como Auerbach explica 21

O Cristianismo dispõe, na sua luta contra a embriaguez

mágica, de outras armas que não as da elevada cultura

racional e individualista da Antiguidade: ele próprio é um

movimento de profundidade, tanto da profundidade da

multidão, como da profundidade da emoção imediata; é

capaz de combater o inimigo com suas próprias armas. Sua

magia não é menos mágica do que a embriaguez sangrenta,

e é mais poderosa, porque é mais ordenada, mais humana e

esperançosa.

É o combate travado por Alípio e descrito em detalhes por Agostinho a

característica mais distintiva desse texto: a luta humana é retratada com

dramaticidade, ninguém duvida que “Alípio vive e luta” 22. Isso se deve à capacidade de

Santo Agostinho em representar “a vida humana que vive diante dos nossos olhos” 23.

Para tanto, Agostinho se vale de uma forma de expressão de sentimentos altamente

refinada e que o diferencia dos demais autores de seu tempo. A retórica de Agostinho,

tão clássica quanto a de Cícero, não basta para que o texto agostiniano se encaixe

nessa tradição: nele há “algo de penetrantemente impulsivo, algo de humanamente

dramático” 24; também as muitas parataxes - sequência de frases justapostas

freqüentes na Bíblia – presentes na forma dos escritos de Agostinho contribuem para

criação de um efeito anticlássico, pois

21 P. 5922 P. 5923 Idem. 24 P. 60

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Agostinho emprega o estilo do período clássico e as suas

figuras de dicção [...], mas não se deixa dominar por ele. O

impulsivo, o penetrante da sua essência exclui uma

acomodação no processo comparativamente frio, sensato,

que ordena as coisas de cima, própria do estilo clássico e,

especialmente, do estilo romano25

Não somente dramas humanos, mas também dramas teóricos, como o

problema do mal e a natureza da Santíssima Trindade, ganham vida na obra de

Agostinho. A luta e a coexistência de forças internas e opostas são temas caros à

literatura judaico-crista e em Agostinho são trabalhados ostensivamente. Não há em

Agostinho, contudo, uma “pintura sensorial do acontecimento externo” 26, mesmo em

um texto onde um amplo espaço para tanto é oferecido, como é o caso da narrativa de

Alípio. A realidade retratada por Agostinho, onde processos interiores são tratados

como problemáticos, densos e dramáticos – sem caírem, por exemplo, no aterrador

mundo imagético de Amiano – acaba por determinar a dissolução da linha que

demarca a divisão clássica de estilos. Neste sentido, a interpretação figural

desempenhará um papel fundamental, pois

[...] estabelece uma relação entre dois acontecimentos ou

duas pessoas, na qual um deles não só se significa a si

mesmo, mas também ao outro e este último compreende

ou completa o outro. Ambos os pólos da figura estão

separados temporalmente, mas estão, também, como

acontecimentos ou figuras reais, dentro do tempo. Ambos

estão contidos no fluxo corrente que é a vida histórica, e

somente a sua compreensão, o intellectus spiritualis da sua

relação é um ato mental.27

25 Idem.26 P. 6127 P. 62

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Assim, o método de figuração conecta e relaciona elementos distantes no

espaço-tempo, mas que somente ganham pleno significado histórico quando

sintetizados por um terceiro elemento, o intelecto espiritual. Atividade sintética que,

por sua, só é possível de se realizar com a providência divina, já que a quebra de uma

linearidade temporal torna irracionalizável a relação figural estabelecida entre

acontecimentos. “O agora e aqui não é mais elo de um corrente terrena”, como explica

Auerbach, “mas é, simultaneamente, algo que sempre foi e algo se consumará no

futuro”28. O aqui e agora, isto é, a realidade contemporânea, não era a preocupação

principal dos Pais da Igreja – com exceção de Santo Agostinho – que se valeram da

interpretação figural principalmente na atividade exegética das Escrituras e na

adequação da história romana à visão judaico-cristã; já na Idade Média, entretanto, o

método de figuração torna-se amplamente popular.

Cabe por fim mencionar que o estilo de Santo Agostinho muitas vezes deixa

entrever, através da tensão criada entre sua retórica de herança clássica e o latim

vulgar da Bíblia, a síntese que a literatura cristã efetuou entre os estilos baixo e

elevado. Sem essa síntese, o cerne da doutrina cristã, a Encarnação e a Paixão de

Cristo, seria contado de outro modo, ou, quem sabe, teria um conteúdo diferente.

Pois, como Auerbach aponta, narrar com uma linguagem popular a crucificação de um

homem sem nenhum status social, que passou a maior parte de sua vida em

companhia de pessoas tanto ou mais insignificantes, dando a essa narrativa peso e

profundidade sem precendentes, só foi possível quando o cotidiano passou a ser visto

de outra perspectiva. Uma perspectiva capaz de retratar o banal em toda sua

seriedade, problematicidade e dramaticidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura universal – 6.

Ed. São Paulo: Perspectiva, 2013.

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.

28 P. 63

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WAIZBORT, Leopoldo. Erich Auerbach e a condição humana; in O Pensamento Alemão

no Século XX – Volume 2. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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