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28ª RBA São Paulo, 2-5 julho 2012. Mesa-Redonda “O cuidado: entre o estado providência e as relações interpessoais” Org. Antónia Pedroso de Lima Adoção e “novas” parentalidades: entre a bio-genealogia e o cuidado Miguel VALE DE ALMEIDA ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia [email protected] Dois modelos em relação tensa parecem competir hoje pelo domínio nas atitudes e valores ocidentais face ao trinómio conjugalidade / família / parentalidade. Poderíamos designá-los, sem entrar aqui, nesta versão oral, em referências e citações bibliográficas científicas, como o modelo do cuidado e o modelo bio- genealógico. O modelo do cuidado assentaria na ideia de que: (a) as pessoas entrariam em relações de conjugalidade nos termos da “pura relação” definida por Giddens (2001); (b) as famílias projetar-se-iam como unidades sociais assentes sobretudo no sentimento positivo que motiva o cuidado mútuo e dele advém; (c) a parentalidade resultaria de uma escolha positiva planeada, estabelecendo relações interpessoais entre pais e filhos muito valorizadas ética e moralmente. O modelo bio-genealógico, por sua vez, seria, na verdade, a continuação de um antigo modelo genealógico,

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28ª RBASão Paulo, 2-5 julho 2012.Mesa-Redonda “O cuidado: entre o estado providência e as relações interpessoais”Org. Antónia Pedroso de Lima

Adoção e “novas” parentalidades: entre a bio-genealogia e o cuidado

Miguel VALE DE ALMEIDAISCTE – Instituto Universitário de Lisboa

CRIA – Centro em Rede de Investigação em [email protected]

Dois modelos em relação tensa parecem competir hoje pelo domínio nas atitudes

e valores ocidentais face ao trinómio conjugalidade / família / parentalidade.

Poderíamos designá-los, sem entrar aqui, nesta versão oral, em referências e

citações bibliográficas científicas, como o modelo do cuidado e o modelo bio-

genealógico.

O modelo do cuidado assentaria na ideia de que: (a) as pessoas entrariam

em relações de conjugalidade nos termos da “pura relação” definida por Giddens

(2001); (b) as famílias projetar-se-iam como unidades sociais assentes

sobretudo no sentimento positivo que motiva o cuidado mútuo e dele advém; (c)

a parentalidade resultaria de uma escolha positiva planeada, estabelecendo

relações interpessoais entre pais e filhos muito valorizadas ética e moralmente.

O modelo bio-genealógico, por sua vez, seria, na verdade, a continuação de

um antigo modelo genealógico, mas agora como que confirmado enquanto

verdade pelo conhecimento e verificabilidade dos mecanismos da biologia e da

genética. Ele assentaria na ideia de que: (a) as relações de conjugalidade

complementarmente reprodutivas seriam mais naturais e social e moralmente

mais válidas; (b) as famílias seriam unidades sociais naturais e a base da

reprodução social e humana; (c) a parentalidade seria marcada por uma

propriedade genética idealmente plasmada numa propriedade genealógica.

Uma complexificação e uma especificação necessitam ser feitas desde

logo. A complexificação tem a ver com o facto de que o segundo modelo não

exclui totalmente o primeiro – a ética do cuidado pode estar presente. O

contrário também é verdadeiro. A especificação tem a ver com o desafio que

coloca, a ambos os modelos, a forma simultaneamente marginal e emergente das

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relações entre pessoas do mesmo sexo e suas famílias. Parece pacífica a ideia de

que o modelo do cuidado potencia mais a inclusão dos projetos familiares

homossexuais, e o modelo bio-genealógico potencia mais a sua exclusão.

As transformações nos valores e relações de género terão mudado tanto

os contextos onde predomina o primeiro modelo como o segundo. No entanto, é

legítimo colocar a hipótese de que o primeiro potencia formas mais inovadoras e

equitativas de relações de género e o segundo potencia a manutenção de formas

mais conservadoras. Uma vez mais, é ao considerar as formas marginais e

emergentes das relações homossexuais que vemos os desafios de género de

forma aumentada – a sexualidade (e, antes dela, a questão reprodutiva enquanto

junção de patrimónios genéticos) como base ideológica/cultural última para as

construções de género, sendo que essa base é ela mesma construída por

significações de género enquanto construto social...

Este quadro complexo, emergente, contraditório, não totalmente

dicotómico (note-se que estou a falar de “modelos”, com toda a abstração e risco

de generalização que tal comporta) torna-se premente, visível, fonte de “guerras

culturais” justamente quando as polities / formações sociais se confrontam com a

demanda por: (a) igualdade no acesso ao casamento por parte de casais do

mesmo sexo; (b) reprodução medicamente assistida e possibilidade de

parentalidade legal por duas pessoas do mesmo sexo ou por uma só pessoa sem

parceiro de sexo oposto; (c) acesso à adoção por pessoas homossexuais ou por

casais de pessoas do mesmo sexo.

Concentrar-me-ei no último aspeto, por ser aquele em que as pessoas

nem sequer podem recorrer ao seu material genético para, de formas inventivas

ou mesmo ilegais, se reproduzirem, e por ser aquele em que o que se regula, nas

decisões legislativas e nos consensos culturais, também não ser a bio-genealogia.

O que a adoção permite perceber é que, quando se considera a inclusão de casais

do mesmo sexo, está-se a dizer que é uma ficção reprodutiva (CADORET 2002?)

e, inesperadamente, a revelar que também há ficção ou convencionalidade na

parentalidade bio-genealógica heterossexual. Por outro lado, a adoção permite

perceber os limites do valor atribuído ao modelo do cuidado enquanto modelo

cada vez mais hegemónico (recobrindo também, como disse, as práticas bio-

genealógicas): se é o cuidado que interessa como valor, então porquê estabelecer

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valoração diferente para casais hetero ou homo? A construção da figura do

“superior interesse da criança” – e da própria representação contemporânea de

Criança – passa a ser, por isso, um objeto a necessitar de atenção central pela

antropologia.

Poucas são as polities / formações sociais – prefiro esta expressão a

“países” – que consagram um ou todos os direitos relativos a conjugalidade

homossexual, reprodução medicamente assistida para casais homossexuais, ou

adoção conjunta por casais homossexuais. Existem dois modelos e um caso

único. O primeiro modelo é o das polities / formações sociais em que a adoção

e/ou a reprodução medicamente assistida foram consagradas antes do

casamento igualitário e onde elas são aceites de modo mais pacífico do que este.

É o caso de muitos estados dos E.U.A. O segundo modelo é o das polities /

formações sociais em que ambas as questões foram resolvidas ao mesmo tempo

ou onde é consensual, nos debates públicos, que devem ir juntas. É o caso da

Espanha, por exemplo. Quanto ao caso peculiar – e talvez por isso seja

apropriado eu ter escolhido abordar este tema – trata-se de Portugal, onde o

casamento igualitário foi conseguido mas as questões de reprodução e

parentalidade, incluindo a adoção por casais do mesmo sexo, não o foram1.

O que leva ao aparentemente diferente peso simbólico (logo, em termos

de decisões do Direito e no debate político) atribuído à conjugalidade e à

parentalidade? É, certamente, a noção de Criança e do seu interesse superior – da

Criança, com C maiúsculo mais ainda do que das crianças concretas. Na

realidade, essa diferença de peso não existe ou deve-se a circunstâncias

conjunturais em cada polity / formação social. Quer nas discussões sobre

casamento (em que não entrarei aqui, por ter já tratado bastante esse tema2),

quer nas discussões mais diretamente sobre parentalidade, a figura fantasmática

é a Criança, a sua educação, a sua futura orientação sexual – e o não-dito da

quebra da regra bio-genealógica ou da confirmaçãoo do seu caráter ficcional pela

adoção (dois homens ou duas mulheres não ficcionalizam tão bem a bio-

genealogia como um homem e uma mulher).

1 Na Bélgica aconteceu algo de semelhante. Três anos depois da aprovação do casamento igualitário, os direitos de parentalidade foram consagrados.2 Ver VALE DE ALMEIDA (2010)

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Nos debates em ciências sociais sobre esta temática o foco recai sobre as

práticas e valores, contextualizadas pela análise do Direito e das discussões

políticas, mas creio que é necessário incluir o que poderíamos chamar uma

economia política da adoção. Quantas, quais, oriundas de onde, são as crianças

disponibilizadas para adoção? Quantas e quais as pessoas adotantes? Note-se

que o “mercado” da adoção não é um mercado de oferta e procura: há a procura

dos adotantes, mas a oferta é mediada pelas instituições, privadas ou públicas,

que angariam e gerem o recurso escasso das crianças. Situações diferentes de

regulação do mercado, de desregulação ou de maior ou menor peso do estado

social apresentam-se. Nos E.U.A, por exemplo, onde a adoção por casais do

mesmo sexo tem sido mais largamente aceite e praticada do que o casamento, as

crianças são oriundas de dois tipos de meio: ou dos países em vias de

desenvolvimento ou das classes marginais da polity / formação social

estadunidense: “negras” e/ou “latinas” e/ou de pais pobres, toxicodependentes,

mães adolescentes ou sem-abrigo, etc. Isto é, as categorias problematizadas

socialmente são as categorias produtoras de crianças para adoção. Além disto, os

procedimentos de adoção são largamente controlados por agências privadas –

por empresas – intervindo o sistema de Justiça no controlo das regras e na

aprovação final do novo vínculo de parentesco.

O primeiro aspeto – origem social e geográfica das crianças – é bastante

comum na maior parte dos contextos ocidentais. Nalguns casos as crianças são

mesmo fornecidas apenas pelo circuito internacional, como é o caso da Espanha,

dos países do norte da Europa e dos países mais ricos em geral. Nestes casos,

todavia, é o segundo aspeto – quem regula? – que revela algumas diferenças,

nomeadamente a maior regulação e gestão dos procedimentos por parte de

organismos estatais ligados ao estado providência, sobretudo no caso Europeu.

Diferente situação é a que se apresenta no caso peculiar antes referido, o

português. Aqui a adoção internacional é praticamente inexistente, embora

esteja consagrada na lei. A Segurança Social aplica as mesmas regras de controlo

e gestão do processo de adoção apenas depois de o processo estar concluído no

país de adoção, segundo a lei local e sendo o adotante totalmente responsável

pela gestão e pagamento do procedimento. O resultado é que praticamente todas

as adoções em Portugal são nacionais, e de crianças oriundas de situações sociais

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semelhantes às referidas para a adoção nacional nos EUA. Em suma – e apesar de

terem recentemente surgido agências privadas para adoção internacional em

Portugal – o país encontra-se, como em muitos outros aspetos, numa situação

intermédia entre o modelo liberalizante americano e o modelo com base no

estado-providência europeu. Outra característica intermédia é o facto de

Portugal ser também local de fornecimento de crianças para adoção no norte da

Europa – crianças que não encontram adotantes em Portugal.

Quem são estas crianças? E assim passamos ao assunto seguinte. Portugal

tem uma quantidade considerável de crianças para adotar. Tem no entanto mais

procura do que oferta. O que caracteriza essa procura é a sua especificidade,

diferenciação, ficando por adotar as crianças rejeitadas pelos valores ou projetos

familiares dos adotantes: mais velhas, negras ou mulatas, em fratrias, com

problemas de saúde ou com situações familiares complexas. Vejamos o que isto

significa.

Em primeiro lugar revela que os projetos de adoção se constituem

maioritariamente em torno de uma ficção compensatória para a reprodução bio-

genealógica: crianças que possam passar por filhas biológicas do casal. Em

segundo lugar, uma ficção compensatória para os modelos familiares e

económicos vigentes: um filho e não dois ou mais. Em terceiro lugar, uma ficção

compensatória do bem-estar expectável, em que a ética do cuidado não se

desdobra em solidariedade: uma criança saudável. Em quarto lugar, uma ficção

compensatória para o ciclo de reprodução doméstica, com uma criança o mais

pequena possível – possibilitando a socialização na cultura familiar, de classe, etc.

E, finalmente, evitando que a decisão final do tribunal possa ser protelada,

contestada ou impedida – decisão judicial que é a criação de um laço de

parentesco sem qualquer distinção com o biológico, tornando-o, pois, biológico

por decreto.

Em Portugal é permitida a adoção por casais heterossexuais unidos de

facto ou casados, e por pessoas singulares. Como a discriminação com base na

orientação sexual não é permitida, pessoas singulares homossexuais podem, em

tese, adotar. Mas, aquando da aprovação da igualdade de acesso ao casamento

civil, em 2010, não foi aprovada a capacidade de adoção conjunta por um casal

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do mesmo sexo – nem mesmo no caso de uma criança viver com um pai ou mãe

legal e seu/sua companheiro/a3.

Como referido acima, as crianças disponíveis para adoção em Portugal

estão à guarda das instituições de Justiça que regulam os direitos dos menores.

Vivem em instituições geridas pela Segurança Social. Em alguns distritos a

função da Segurança Social é assegurada pelas Santas Casas da Misericórdia,

como acontece em Lisboa. Como referido também, o número de candidatos à

adoção é largamente superior ao número de crianças disponíveis; o tempo de

espera pela conclusão do processo pode ser extremamente longo; e o número de

crianças “indesejadas” é desproporcionadamente maior do que a sua

representatividade na sociedade. A função das equipas de adoção consiste na

seleção dos candidatos, no matchmaking com uma criança específica e na

finalização do processo em Tribunal – existindo ainda acompanhamento depois

da adoção de facto (antes da sentença) e apoio técnico pós-adoção.

Temos, portanto, várias agências em ação. Em primeiro lugar o sistema de

Justiça. É ele que retira as crianças à guarda dos seus pais quando estes não

cumprem as suas funções; que as remete para instituições em que as crianças

passam a ser tuteladas pelo Estado; e que sanciona, no final do processo, a

adoção restrita ou plena (à escolha dos candidatos) – sendo esta última a

instituição legal e definitiva de um vínculo de consanguinidade. O sistema de

Justiça, através da lei, performatiza, assim, a consanguinidade como um ato

voluntário. Este é certamente um dos aspetos que torna a adoção num ambíguo

cultural, se pensarmos nos dois modelos inicialmente referidos.

Em segundo lugar temos a orgânica do Governo que, através da Segurança

Social, executa os procedimentos legais conducentes à adoção. É aqui que

intervêm os técnicos especialistas, sobretudo psicólogos e assistentes sociais,

que se constituem em equipas de dois para o acompanhamento da candidatura

3 Este não será o contexto para analisar o assunto, mas tal deveu-se a duas questões pelo menos: 1) Uma conjuntura política em que o país havia passado pelo caso Casa Pia, caso de abusos sexuais de crianças numa instituição do estado e que envolveu, na mídia, a propagação da confusão entre pedofilia e homossexualidade, e serviu para aniquilar figuras políticas do setor mais à esquerda do Partido Socialista; 2) Os dois grandes partidos portugueses, Socialista e Social-democrata, recolhem apoios de todos os segmentos sociais, não se diferenciando muito claramente em termos ideológicos ou de base de apoio. Isso leva à necessidade de satisfazer segmentos opostos, nomeadamente os mais laicos e liberais, por um lado, e os mais católicos e conservadores, por outro – bem como a oposição entre liberalismo nos costumes / estatismo na economia vs conservadorismo nos costumes / liberalismo na economia.

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de uma pessoa ou casal heterossexual. É neste âmbito que se cruza a lei (e os

debates público-políticos) com os casos concretos de adotantes. O técnico é o

intermediário e o verdadeiro instrumento de governamentalidade, por assim dizer.

A gestão deste processo pelo estado-providência, e a remissão da adoção

internacional, residual, para a iniciativa dos candidatos e, agora, também de

emergentes agências entre o estatuto privado e o de ONG, especifica a ideia

cultural de que as crianças são propriedade das suas linhagens, questão privada

das famílias, mas que o Estado, em nome de valores éticos e morais, deve intervir

em nome da comunidade no sentido de sanar disfuncionalidades parentais

(admitindo que podem ser provocadas por marginalizações sociais) e procurar

para a criança um ambiente familiar o mais semelhante possível a uma família

normal.

Em terceiro e quarto lugar temos os atores sociais que poderão

efetivamente vir a engajar-se em formas de relação interpessoal. De um lado o ou

os candidatos à adoção, com as suas biografias, motivações e projetos; do outro

as crianças por adotar. São estes dois extremos do sistema que nunca se

encontram a não ser no momento em que está praticamente garantida, pelos

técnicos, a adoção. Embora a analogia com a gravidez possa ser estabelecida, a

verdade é que o processo de adoção reforça a ideia de que a situação é sui

generis, de que a criança é tutelada pelo estado, de que a Justiça ainda deve

tentar reatar os laços entre a criança e a família biológica, e de que as

capacidades parentais dos candidatos à adoção devem ser submetidas a um

estrito escrutínio.

Não se pense que tento aqui qualquer espécie de denúncia ou que

construo uma qualquer teoria da conspiração. Trata-se, em grande medida, de

um fenómeno de hegemonia cultural, em que candidatos, técnicos, juízes e

legisladores agem largamente de boa-fé com base no conceito de “supremo

interesse da criança”. O que me interessa perceber aqui é a lógica cultural não-

dita que está subjacente a essa máxima e à sua recursiva aplicação em todas as

fases do processo e níveis do debate.

Não fiz uma etnografia de um processo de adoção4. E não é minha

intenção aqui recorrer a trabalhos feitos já nessa área, mas sim analisar a 4 SOUSA (2000) é dos trabalhos mais relevantes feitos até hoje sobre adopção em Portugal, desde uma perspectiva antropológica.

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gramática da adoção, da sua subalternização cultural – aparentemente

contraditória com a emergente ética do cuidado – e de como o acesso ou restrição

à adoção por casais do mesmo sexo pode ser um caso de iluminação do centro

pelas margens (PINA-CABRAL, 2000). No entanto, e para os efeitos restritos

desta apresentação, socorro-me de experiência pessoal, não conduzida até ao

fim, de modo retrospetivo e sem intencionalidade ou metodologia científicas.

São as seguintes as fases do processo:

Compareça na Sessão Informativa (Sessão A) do Plano de Formação para a Adoção. Nesta ação de formação é informado sobre: Os objetivos da adoção; O que é necessário para poder adotar (requisitos e condições gerais a cumprir); O processo de adoção (processo de candidatura, formulários e documentos necessários); Preencha os formulários e junte toda a documentação necessária.

4. Entregue a sua candidatura nos serviços de adoção do organismo de segurança social da área onde mora. Quando entregar a candidatura recebe um certificado de candidatura.

5. A entidade que recebeu a candidatura faz uma avaliação social e psicológica do candidato (entrevistas, uma delas em casa do candidato).

6. Durante este período de avaliação será ainda convidado a participar numa segunda ação do Plano de Formação para a Adoção. (Sessão B)

7. No prazo de 6 meses, o candidato é informado se a sua candidatura foi selecionada ou rejeitada.

8. Se os/as técnic@s considerarem que a sua candidatura não deve ser aceite, antes de ser tomada decisão final, comunicam a intenção de rejeitar a candidatura ao interessado e dão-lhe a oportunidade de consultar o processo e apresentar novos documentos ou argumentos.

9. Se foi selecionada, o candidato passa a figurar na lista nacional da adoção e fica à espera que lhe seja proposta uma criança para adotar. Durante este período de espera poderá ser chamado a participar em diversas sessões de formação, com o objetivo de se preparar para a futura integração de uma criança.

10. Quando lhe apresentarem uma criança, há um período de contactos para se conhecerem e ver se se aceitam um ao outro.

11. Se esta fase correr bem, a criança é confiada ao candidato e fica em situação de pré-adoção por um período que pode ir até 6 meses. Durante este tempo, são acompanhados e avaliados pela entidade que está a tratar do processo de adoção.

12. Esta entidade faz um relatório que o candidato envia, junto com o pedido de adoção, para o Tribunal competente (Tribunal de Família e Menores da sua área de residência).

13. Quando o Tribunal proferir a sentença, o processo de adoção está concluído.

(FAMÍLIAS ARCO-ÍRIS, 2012)

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O processo começa pelo preenchimento de um formulário de candidatura. As

seções mais qualitativas do mesmo, onde o candidato deve formular uma

narrativa, focam duas dimensões: uma relativa ao ambiente familiar de origem e

outra relativa às motivações e imaginação da futura vida com o adotado. Trata-se

da aplicação de um modelo psicologista que centra a formação da personalidade

nas relações da família nuclear e que supõe que os projetos de vida familiar são

projeções dessa experiência. Este tipo de informação é complementado por

outro, mais objetivo, e que se prende com as condições materiais de subsistência,

capital cultural e organização da vida prática no quotidiano.

O formulário é preenchido depois de se ter comparecido a uma reunião

em que estão presentes vários candidatos – cerca de 12 a 15 – entre casais e

singulares. Dirigida pelas chefias locais do sistema, e ainda não com a equipe

designada para cada candidato, a reunião explica como funciona o sistema (um

pouco à maneira do que aqui foi feito...), e é focada na explicitação de

dificuldades: tempo de espera, desadequação entre procura e oferta, tipos

problemáticos de crianças, dificuldades de adaptação, desistências da adoção que

são traumatizantes, etc. É bastante claro que a intenção é promover a desistência

e filtrar as pessoas com verdadeira motivação – que assim é vista como

diretamente proporcional à capacidade de sacrifício, paciência e abnegação.

Recebido o Certificado de Candidatura – que assim investe as pessoas

numa categoria administrativa mas também identitária – o terceiro momento

consiste na primeira reunião com a equipa, no caso constituída por uma

psicóloga e uma assistente social. São realizados testes psicológicos, de avaliação

de personalidade, e é feita uma entrevista que discute o que se escreveu no

formulário de candidatura e que reforça a pedagogia da reunião anterior.

Todos os candidatos são obrigados, semanas depois, a comparecer a uma

ação de formação, coletiva, desta feita com workshop em pequenos grupos, em

que são apresentadas situações inspiradas em factos reais, pedindo-se o

comentário e decisão com base em discussões entre os membros dos pequenos

grupos de candidatos. As ações de formação – que se repetem, noutros moldes,

após e se os candidatos forem aceites como potenciais adotantes – são

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obrigatórias e enquadram-se na figura programática e pedagógica de “Plano de

Formação para a Adoção”.

Após esta fase começam as visitas da equipe a casa do candidato. No meu

caso houve duas longas entrevistas em minha casa. Na primeira criou-se um

clima de crescente intimidade em que as questões relacionadas com a motivação

foram centrais. O processo tem uma penosidade próxima da terapia, já que o

candidato é obrigado a refletir, em conversa com as técnicas, sobre todas as

pequenas dúvidas que estas possam ter sobre a sua vida em criança, o seu

crescimento, relações com os pais, afetos, etc. O candidato é obrigado a uma

autoanálise que rapidamente parece mudar as suas perceções positivas sobre si

próprio, inserindo elementos de autosuspeita. A segunda entrevista, em casa, foi

feita já depois de ter sido pedido ao candidato que refletisse sobre se quer

manter a decisão de adotar. De permeio, foi feita uma entrevista à irmã do

candidato, momento em que foi feita uma conversa sobre a sua avaliação do

percurso de vida e motivações deste.

Todas estas fases demoram cerca de seis meses, após os quais a equipa

técnica determinará a capacidade para a adoção dos candidatos, iniciando-se

então um período de espera por uma criança adequada que pode ir de meses, em

pouquíssimos casos, a vários anos em muitos casos. Só então os adotantes

conhecem uma criança concreta, com quem começam a conviver no meio

institucional desta e com supervisão da equipa. Ao longo deste período os

candidatos devem ainda frequentar várias ações de formação.

Foi no momento imediatamente anterior à decisão pela equipa sobre a

capacidade para adoção, e depois das duas entrevistas em casa, que desisti do

processo, por razões que não interessa partilhar aqui. Todavia, há vários planos

que devem ser sublinhados. Em primeiro lugar, a ausência de homofobia

explícita das técnicas. Tal não impediu, porém, que denotassem ambiguidade

com o facto de se tratar de uma candidatura singular, de um homem e de uma

pessoa mais velha. Todavia, são muito conhecidos os casos de vários casais de

homens ou de mulheres que escondem, na candidatura, a existência do parceiro,

nomeadamente “limpando” a casa de registos da sua existência. A interiorização

das expectativas culturais de homofobia é, neste caso, exemplar. Em segundo

lugar, o facto de eu exercer a parentalidade social de uma criança em regime de

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co-parentalidade foi usado, nas conversas, não como um elemento em meu

detrimento, nem tão-pouco como um elemento de comprovação de capacidades

parentais, mas sim como possível compensação para uma eventual decisão

negativa quanto à minha “Capacidade para a Adoção” não-adoção. Em terceiro

lugar, há que ver que, no meu caso, as técnicas sabiam quem eu era por causa do

meu papel cívico e político no debate que conduziu à legislação sobre casamento

igualitário. Isto tornava a minha homossexualidade explícita, o que em princípio

não seria um problema, mas tornava também explícitos os meus valores e

crenças, bem como a minha composição familiar e a situação conjuntural da

mesma. Em quarto lugar, há que realçar o papel da equipa técnica: são elas quem

verdadeiramente estabelece uma relação interpessoal. Esta não é, naturalmente,

estabelecida entre o estado-providência e o candidato; nem entre o candidato e a

hipotética criança, mas sim entre o candidato e as técnicas da equipa. Em suma, é

nessa relação interpessoal – onde há uma negociação de poder e de apresentação

de si; expectativas de suspeita e desconfiança de parte a parte; desejo de vitória

por parte do candidato; desejo de resolução do problema de “alguma” criança

por parte da técnicas; etc. – que a pessoa homossexual (e eventualmente o seu

companheiro escondido) dialoga com o estado e através de uma situação

psicologizada.

A minha desistência do processo acabou, curiosamente, por surpreender

as técnicas que, em virtude quiçá do meu capital cultural e estrutura afetiva,

poderão ter-me achado digno de ser aceite como candidato – e isso notou-se na

pressão crescente no sentido de vender a ideia de uma criança mais velha,

produto com dificuldade de escoamento5. Quis trazer o meu caso à baila não como

comprovação da homofobia, mas justamente pelo contrário: comprovação da

homofobia do sistema, não necessariamente dos seus agentes, que se confrontam

com a realidade de forma mais flexível, em virtude quer da sua experiência

anterior com adoções bem sucedidas por parte de homossexuais, quer, no lado

oposto, por eventualmente partirem do princípio de que as crianças para adoção

já estão fora da ideal sobreposição entre adequação bio-genealógica e alvo de

uma ética do cuidado.

5 De modo a satisfazer alguma eventual curiosidade, na candidatura fui muito explícito quanto à minha indiferença “racial” (um critério muito referido), à minha recusa de problemas de saúde e a uma preferência relativa por uma criança o mais jovem possível.

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O estado e os técnicos acabam por controlar a genuinidade das intenções

de cuidado, como já controlam a ficção da família bio-genealógica como

supostamente mais eficaz. Mas insistem na família bio-genealógica como ideal e

impedem o acesso de certas estruturas – as homossexuais, desde logo – à prática

do cuidado. A adoção revela limpidamente estas ambiguidades. É um campo de

suspeita. E esta suspeita aumenta face às estruturas liminares ou marginais – já

não a margem social de onde são oriundas as crianças por adotar, mas a margem

moral em que candidatos singulares e homossexuais se situariam.

O discurso cultural dominante elogia o ato de adotar como um ato nobre,

sacrificial, humano, baseado na ideia da vontade de cuidar. Simultaneamente

subalterniza as crianças adotadas e os pais adotantes com a adversativa “mas” (é

filho dela mas é adotado) ou com a especificação categorial (ela tem dois filhos e

um terceiro adotado). O desconhecimento das origens familiares das crianças, o

desconhecimento da sua genética herdada são sistematicamente recordados aos

candidatos como problemáticos e o fantasma maior, manifestado pelos

candidatos e motivado pelos técnicos, é o da busca futura dos pais biológicos

pela criança adotada. O sistema, por sua vez, reforça isto, incentivando, até ao

último momento de um longo e desgastante processo, o reencontro familiar do

adotável com a família biológica, ainda que sejam parentes remotos; ao mesmo

tempo que aposta na análise das capacidade de cuidar dos adotantes de uma

forma que não o faz com os pais biológicos, inteiramente livres de se

reproduzirem (a não ser de forma reparadora, quando os pais manifestamente

prejudicam as crianças, manifestando assim uma anormalidade que é lida como

sobretudo psicológica, mesmo quando se reconhece a origem social do problema

– um pouco à semelhança das ideias de “cultura da pobreza”). Achamos que o

que é “natural” é que o projeto reprodutivo bio-genealógico seja à partida O

projeto de cuidado por excelência. Se não o for é porque algo não funcionou, algo

de anormal e raro sucedeu. Por outro lado, achamos que há condições

estruturais prévias para que isso aconteça e outras situações que não estão

estruturalmente preparadas para tal – casais heterossexuais versus casais de

gays ou de lésbicas. Do mesmo modo que a adoção desafia as crenças na

heterossexualidade e na bio-genealogia, a crescente ética do cuidado

(promovida, desde logo, pelo estado providência e assegurada por este quando

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do seu incumprimento pelas famílias), desafia as limitações impostas às

estruturas permitidas para a adoção. E a homossexualidade desafia a honestidade

consequente do discurso do cuidado.

Num texto sobre a reinvenção do reconhecimento legal da parentalidade,

Paulo Côrte-Real (2012) diz que, na realidade, o “biológico” acaba por ser pouco

relevante em si para a Lei, que se preocupa sobretudo com a “lógica do biológico”

– através da presunção da paternidade biológica pelo marido ou companheiro da

mãe, sem que se proceda necessariamente a uma verificação genética.

Defendendo como princípios o bem-estar da criança, a garantia da

responsabilização no exercício da parentalidade como compromisso inquebrável

e inalienável, ele propõe que a adoção (e não a parentalidade “biológica”) seja o

modelo a seguir por excelência:

... a lei prevê o registo de uma criança que nasça. Por que não chamar a esse registo um ato de adoção, pela componente volitiva envolvida, pela solenidade do compromisso assumido, pela assunção de uma assimetria relacional que durará para o resto da vida? (...) A lei poderia... especificar que qualquer criança tem que ser adotada... (CÔRTE-REAL, 2012: 223)

Talvez então a adoção fosse resgatada da sua subalternidade concreta (em

contradição com o discurso piedoso sobre a sua nobreza) e o cuidado passasse a

ser o modelo verdadeiramente providenciado pelo estado.

BIBLIOGRAFIA

CADORET, Anne, 2002, Des parents comme les autres. Paris: Odile Jacob.

CÔRTE-REAL, Paulo, 2012, “A lei e a parentalidade”, Reinventar Portugal, Lisboa:

estampa, pp 215-228.

FAMÍLIAS ARCO-ÍRIS, 2012, “(quase tudo sobre) Adoção em Portugal: contexto,

passos obrigatórios e enquadramento”, http://familias.ilga-portugal.pt/quase-

tudo-sobre-adocao-em-portugal.

GIDDENS, Anthony, 2001, As Transformações da Intimidade. Oeiras: Celta.

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PINA-CABRAL, João, 2000, “A difusão do limiar: margens, hegemonias e

contradições”, Análise Social, XXXIV (153): 865-892.

SOUSA, Ana Teresa, 2000, Como se fora seu filho: Representações da família e do

parentesco em processos de adopção em Portugal. Tese de Mestrado,

Antropologia, ISCTE.

VALE DE ALMEIDA, Miguel, 2009, A Chave do Armário. Homossexualidade,

casamento, família. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, e 2010, Florianópolis:

Editora da Universidade Federal de Santa Catarina.

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