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VII Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XIII Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental
As implicações psicopatológicas da Acídia
Autora: Veronika Sousa Pereira
Co-autor: Prof. Manoel Tosta Berlinck, Ph.D.
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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As implicações psicopatológicas da Acídia
A acídia
A acídia era um dos oito pecados mortais instituídos por Evágrio Pôntico (346
– 399 d.C.) e pode ser caracterizada por um estado de torpor e de ausência, no qual há
um lapso de atenção e cuidado, tanto interior quanto exterior: há um alheamento
consigo mesmo e em relação ao ambiente. A pessoa torna-se repentinamente ausente.
A acídia foi notada na antiguidade tardia e na Idade Média, mais precisamente
nos monges e outros ascetas que mantinham uma vida solitária. Neste contexto, o
estado de desânimo e indolência acaba sendo diretamente relacionado à incapacidade
espiritual de cumprir deveres de culto ou de aproximação a Deus. Considera-se um
pecado mortal porque acaba dissociando a pessoa da vida espiritual, ou seja,
propriamente de Deus; ela configura uma insolência, desobediência e ausência de
caridade perante o Pai-criador.
A acídia e o problema da interpretação
Já observamos aqui um possível problema estrutural na interpretação atual da
acídia: como compreender um pecado capital proveniente de um contexto religioso no
qual vigia um fundamento divino? Como transpor para os dias atuais um pecado
mortal que implicava o afastamento de Deus se na atualidade o fundamento de tudo o
que existe passa a não ser mais Deus, mas as ciências naturais?
É muito fácil cairmos em um erro bastante comum: a interpretação que
desarticula o acontecimento de seu período histórico. Esta interpretação reduz o
fenômeno da acídia e a separa de seu horizonte originário. Esta forma de investigar
acaba por permitir interpretações violentas e arbitrárias, pois acabam por conduzir a
acídia para uma leitura meramente psiquiátrica.
A acídia, desprovida da ligação com o sagrado ou, no caso, com uma
dissociação com Deus, passa a ser ingenuamente explicada a partir de determinados
estados cerebrais e psicodinâmica específica. Deste modo, a fé cristã, a entrega
incondicional ao Deus criador, a caridade e a submissão aos ritos e aos cultos acabam
ficando incompreendidos em uma interpretação que recorta, separa e domina.
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O desaparecimento do conceito de acídia
Atualmente, e não por acaso, houve um esquecimento da acídia e sua
substituição por outros termos como a tristeza ou preguiça. Tal equivalência implica
em desvirtuar o conceito de acídia e desconsiderar sua complexidade, à medida que
esta apresenta inclusive estados de tristeza, mas não apenas.
Inicialmente os pecados mortais instituídos por Evágrio Pôntico sofreram uma
reordenação, estes foram estruturados a partir da doutrina dos sete pecados capitais.
Nesta nova organização, São Gregório Magno (540-604 d.C.) extingue o conceito
acídia que passou a ter como equivalente à tristeza subvertendo o conceito e
esvaziando o seu sentido.
A ausência do conceito de acídia para o homem contemporâneo nos remete
para além de um problema léxico, a falta da palavra nos impede de acessar as
realidades ético-antropológicas incitadas pela falta de linguagem.
Segundo Laund (2004), para São Tomás de Aquino não se trata de estruturar
uma linguagem para especialistas, pois este nos orienta quanto à necessidade da
relação dialética entre percepção (e vivenciamento) da realidade moral e a existência
de linguagem viva: o empobrecimento da linguagem embota a visão e esvazia (ou
deforma) as palavras.
A compreensão da acídia recorre à palavra tristeza para elucidar a condição
vivida diante da busca de um modo elevado de vida, em que todo o trabalho está
orientado por um alto nível de exigência enquanto rendimento espiritual e
profissional, exigência esta nunca atingida uma vez que está equiparada à figura de
Deus, na qual sustentar o alto rendimento e contemplar as exigências estipuladas pela
vida monástica dizem de uma maior aproximação com a figura divina. Além disso,
compreender a acídia significa olhar para o que paralisa o trabalho produtivo, e acima
de tudo o que impede o amor ao outro e a si mesmo.
A acídia também parece se relacionar de forma íntima com a melancolia.
Segundo Rovaletti e Pallares (2014), pode ser tentador equivaler estas patologias, mas
uma percepção atenta nos convoca a pensar a melancolia enquanto intenso sofrimento
decorrente da falta de autoestima, uma redução psicomotora e uma temporalidade
atravessada por um intensa queixa de si mesmo e acerca da realidade mundana. Já na
acídia, pelo contrário, a queixa está orientada para o sentido das coisas, na qual o
indivíduo permanentemente se interroga sobre o “para quê”, que o submete a uma
condição de preguiça e aflição.
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Resgatar os conceitos de melancolia antiga e de acídia aponta para elementos
que nos auxiliam a pensam a Modernidade, amplia a compreensão acerca das
recorrentes queixas de fatiga, tédio e tristezas apontadas pelos pacientes. Estas
manifestações são vivenciadas pelo paciente de modo que estes questionam qual seria
o sentido do seu existir.
Portanto, o pensar da relevância histórica e a constituição destas
psicopatologias auxiliam o analista a pensar a questão do tédio e os atravessamentos
a que este se submete ao longo da trajetória humana, elementos estes que apresentam
similaridade com que atualmente conhecemos como depressão.
Para aprofundar esta reflexão, proponho um olhar mais atento à obra de
Evágrio Pôntico, apesar de sua obra ser fruto da observação de monges no deserto no
século V, sua escrita descritiva passa a ser de grande interesse para o campo da
psicopatologia. Pôntico apresenta os pensamentos que tomam o monge e argumenta
que a negatividade por estes vivida é fruto da influência diabólica que é soprada no
ouvido do monge tomado pela acídia.
Estes pensamentos são por ele nomeados como logismoi, segundo Vazquez
(2015) não são meras sugestões diabólicas, trata-se de representações fruto de
paixões, estas instâncias psíquicas fruto da influência do espírito tentador. Ao nomear
os obstáculos que podem obstruir a vida monástica, superar os oito males representam
a primeira etapa a ser vivida por aquele que opta pela vida cristã, a este processo é por
ele chamado de praktiké.
Portanto, o demônio da acídia pode conduzir o monge a uma sensação de
vazio em sua alma, uma forte falta de vigor capaz de gerar pensamentos e sensações
que podem levá-lo à “loucura”.
Evágrio constrói esta teoria com base na observação de monges, este processo
pode ser entendido em certa instância como um relato de caso, conteúdo central para a
Psicopatologia Fundamental. A observação destes monges apontavam para um modo
rigoroso de vida, orientada por uma permanente busca da perfeição. Este ideal de
perfeição submete o monge a uma dura rotina de trabalho desprovida de descanso,
ideal de perfeição fortalecido pela crença de que só esta é capaz de aproximá-lo de
Deus.
Diante da necessidade de exaltar o trabalho excessivamente rigoroso, evoca a
condutas maníacas depositadas na crença que suas exigências o conduziram a uma
condição de perfeição, alcançando assim a tão desejada proximidade com a figura
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divina. Este ideal de perfeição que aliena o monge e o coloca sobre a incessante busca
por reconhecimento foi nomeado por Evágrio por philautia.
A acídia e o Super-eu (Überich)
Segundo Freud no texto o Eu e o Id (1923), o Super-eu é herdeiro do
complexo de Édipo e, deste modo, expressão dos impulsos mais poderosos impulsos e
dos mais importantes destinos libidinais do Id. Com isto, a constituição narcísica do
indivíduo se estrutura a partir da vivência edípica e o modo com que se deram as
identificações.
Para compreendermos a constituição do Super-eu é preciso ter clareza que este
se estabelece a partir de um objeto perdido que é novamente estabelecido no eu, ou
seja, um investimento objetal é substituído por uma identificação. Diante desta
dinâmica, compreendemos que tal substituição contribui enormemente para a
configuração do Eu. Portanto, é por este processo que entendemos o quanto o Super-
eu e o narcisismo dialogam diante da composição desta dinâmica psíquica.
Portanto, Freud assinala que o Super-eu é uma instância psíquica que se
configura a partir do narcisismo infantil, pois sobre este irá recair o amor que obteve
na infância e determinará como este pode ser vivido pelo Eu.
Segundo Vazquez, este Super-eu adquire funções fundamentais na
constituição e desenvolvimento psíquico, dentre estas, o mecanismo de repressão
responsável pela constituição da consciência moral e as categorias valorativas do
sujeito.
O indivíduo acometido pela acídia enfrenta o fracasso diante da realização do
ideal de perfeição, frente à esta impossibilidade o monge se depara com uma condição
de dívida com a figura divina; no entanto, podemos entender esta incapacidade
enquanto uma falta em relação ao seu ideal de Eu. Ao experimentar um estado de
tristeza e desânimo, em que o tempo é vivido como algo extenso e desprovido de
sentido. Em contrapartida, esta alta exigência também o conduz a um estado em que
Eu e ideal se confundem de modo que o sujeito, dominado pelo sentimento de triunfo,
fica desprovido de critica e temporariamente sente que atingiu seu ideal e está
equiparado à figura divina, lugar este que tanto almeja.
O Super-eu conservará o caráter do pai, e quanto
mais forte o complexo de Édipo tanto mais
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rapidamente (sob influência de autoridade, ensino
religioso, escola, leituras) ocorreu sua repressão,
tanto mais severamente o Super-eu terá domínio
sobre o Eu como consciência moral, talvez como
inconsciente sentimento de culpa. (Freud,
1923/2013, p. 43).
Ainda que a acídia faça menção a uma vivência religiosa descrita por Evágrio
no século V, tal compreensão configura-se como importante conhecimento para a
psicopatologia, seu caráter descritivo nos remente a instâncias psíquicas descritas por
Freud muitos séculos depois. A elucidação acerca do Super-eu introduz à vivência dos
monges do deserto ricos elementos que nos possibilitam entender a força que a
autoridade pode adquirir em uma determinada vivência e quanto as religiões e os
preceitos por esta estabelecidos adquirem forca e concretude na vida do individuo.
A interpretação psicanalítica do pecado da acídia ilustra psicodinamicamente o
quanto a vida monástica pode sucumbir perante um ideal, com suas obrigações
mantendo-se não satisfeitas, podendo-se traçar um paralelo atual perante novos ideais,
ainda que não vinculados ao Deus cristão. Lançar este olhar pode ser de grande
contribuição clínica à medida que amplia o entendimento acerca dos sintomas
atribuídos às depressões modernas, adoecimento tão recorrentes na atualidade.
A possível atualidade da acídia e a ligação com o tédio
Deus é uma entidade que fracassa em oferecer plenitude definitiva ao homem,
e neste fracasso o homem pode ter acídia, ele pode ressoar o vazio. O homem, este
ente marcado por finitude e transitoriedade, sempre buscou algo que pudesse retirá-lo
deste estado de falta.
Por mais que criemos deus e deuses, ciências e artefatos, a transitoriedade da
existência sempre se fará presente. Deus ou qualquer fundamento não retiram do
homem a possibilidade de vivências de vazio, muito pelo contrário, o homem só pode
acessar Deus ou ciência por terem em seu cerne uma falta. Não há mais uma presença
divina que compense a nossa ausência. Ocupamo-nos não de Deus, mas de prazeres
provisórios, mas uma vez que cessa, o vazio desperta.
O tédio é exatamente esta condição, ainda que na plenitude de ocupações
incessantes que compulsivamente preenchem o tempo do homem moderno, seja com
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gastronomia, sexo, jogos, viagens ou qualquer outra diversão. O mundo moderno é
marcado por uma tentativa de supressão total da emergência deste vazio, seja na
figura do analgésico que suprime a dor, da diversão que aplaca o tédio ou do
politicamente correto que não tolera mais qualquer diferença e discriminação.
Referências
FREUD, S. Eu e o Id in Sigmund Freud: Obras Completas, volume 16. Tradução:
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1923/2013.
MESSIAS, T (2013). Evágrio Pôntico: introdução à vida, obra e teologia espiritual.
Revista do departamento de Teologia da PUC - Rio, Ano XVII n 44, 292-318.
ROVALETTI, M. L.; PALLARES, M. (2014). La acedia como forma de malestar
en la sociedad actual. Revista Latinoamericana de Psicopatología Fundamental,
17(1), 51-68.
VAZQUEZ, S. H. (2015). Las implicancias psicopatológicas de la acedia en
Evagrio Póntico. Revista Latinoamericana de Psicopatología Fundamental. 18 (3),
679-703.