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Vilanias saltitantes: crianças infames e maquinismos da bicha televisiva Steferson Zanoni Roseiro Mateus Dias Pedrini Jésio Zamboni Alexsandro Rodrigues Resumo: Compreendendo o lugar privilegiado na produção de modos de vida agenciados pelos programas de televisão, esse texto objetiva inserir personagens tomados por anti-heróis no campo da produção de corpos e de vidas biopotentes. Se, em meados da década de 1980 e início da década de 1990, a televisão brasileira é investida na tarefa de promover programas educativos, artísticos, culturais e informativos, é preciso que toda a produção televisiva seja analisada na lógica de produção de corpos e de vida desejáveis à lógica política em vigor. Assim, é imprescindível inserir os heróis nas lógicas da subjetividade ideal e, portanto, pensar nas contrapropostas ao corpo e à sexualidade produzida em amplos processos. É nesse contexto de massificação das subjetividades desejáveis que emergem os corpos atravessados por forças capazes de provocar deslizamentos e desterritorializações. Em meio às crianças televisivas nasce a criança televisiva infame, a criança bicha que, em meio a fluxos heterossexuais, produz simulacros. Eis que, diante da força da infâmia, é a vilania quem cria campo de atuação. Saltitantes, as vilanias acabam por produzir corpos errantes e heroísmos travestidos. Palavras-chave: Bicha. Vilã. Televisão. Crianças televisivas Imagem 01. Vida televisiva. Artista: Mr. Sith. Disponível em: http://sithzam.deviantart.com/

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Vilanias saltitantes: crianças infames e maquinismos da bicha televisiva

Steferson Zanoni Roseiro

Mateus Dias Pedrini

Jésio Zamboni

Alexsandro Rodrigues

Resumo: Compreendendo o lugar privilegiado na produção de modos de vida

agenciados pelos programas de televisão, esse texto objetiva inserir personagens

tomados por anti-heróis no campo da produção de corpos e de vidas biopotentes. Se, em

meados da década de 1980 e início da década de 1990, a televisão brasileira é investida

na tarefa de promover programas educativos, artísticos, culturais e informativos, é

preciso que toda a produção televisiva seja analisada na lógica de produção de corpos e

de vida desejáveis à lógica política em vigor. Assim, é imprescindível inserir os heróis

nas lógicas da subjetividade ideal e, portanto, pensar nas contrapropostas ao corpo e à

sexualidade produzida em amplos processos. É nesse contexto de massificação das

subjetividades desejáveis que emergem os corpos atravessados por forças capazes de

provocar deslizamentos e desterritorializações. Em meio às crianças televisivas nasce a

criança televisiva infame, a criança bicha que, em meio a fluxos heterossexuais, produz

simulacros. Eis que, diante da força da infâmia, é a vilania quem cria campo de atuação.

Saltitantes, as vilanias acabam por produzir corpos errantes e heroísmos travestidos.

Palavras-chave: Bicha. Vilã. Televisão.

Crianças televisivas

Imagem 01. Vida televisiva.

Artista: Mr. Sith. Disponível em: http://sithzam.deviantart.com/

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Um som dispara e, desesperada, uma criança corre para a frente da televisão, sorridente.

Passa-se uma série de programas televisivos, todos cheios de luz, de cor, de ação, de

heroísmo. Cenas de luta, de triunfo, de derrota do antagonista; da vilania. E, sempre

felizes, as crianças gritam, pulam, endossam as falas heroicas, repetindo-as. "Açúcar,

tempero e tudo que há de bom!", entoam as crianças.

A maquina televisiva não quer deixar nada passar. As crianças não são

arrastadas apenas a uma realidade virtual, mas, principalmente, atualizam o plano de

imanência com as possibilidades traçadas diante daquele aparelho mágico.

A bem da verdade, fomos, também, essas crianças. Essas crianças televisivas.

Façamos uma pausa.

Há muito se destaca o papel corrosivo da televisão, o caráter capitalístico desse

aparelho que não veicula apenas histórias, mas também modos de existir, de consumir,

de pensar, de produzir. Como Lazzarato (2014) destaca, a vida diante da televisão é uma

vida de preenchimento de informações significantes e a-significantes; toda uma

economia subjetiva é coengendrada junto a esse aparelho. Mede-se o ibope, reprisam-se

as maiores audiências, reiteram todas as forças capitalistas, consumistas e imperiais dos

modos de existir. Decerto, não faltam estudos para destacar todos os problemas da

criança televisiva.

Certamente, não ignoramos nenhuma dessas afirmações. Somos, a todo

momento, lembrados do caráter maquínico de nossas relações, isto é, daquilo que não

pode ser traduzido em linguagem, em discurso; daquilo que, no cotidiano, não damos

conta de nominar, de elucidar, de anunciar. Jamais poderíamos dizer que

compreendemos todas as forças atuantes sobre nosso corpo! A televisão não apenas

vincula o discurso à vida da criança televisiva, mas também dimensiona todo um marco

de possibilidades afetivas, econômicas e políticas. Diante de muitos desenhos, a criança

televisiva aprende a esperar pelo herói, aprende que "salvar o dia" é um alegria, que

comprar é engraçado, que a inveja é desejável.

Não há dúvida: as imagens televisivas são perigosas. E a criança, permanente

alvo, parece frágil e facilmente capturável, manipulável e dominável; e, sobre ela,

investem-se as mais variadas gamas de possibilidade.

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De algum modo, pareceriam, assim, invariavelmente destituídas de um corpo, de

uma possibilidade de existir diferente. A vida seria, nessa ótica, um caminho já definido

e muito bem delimitado. A criança televisiva, alvo frágil, não teria alternativa: cresceria

amante dos heroísmos, dos romances duradouros, da vida generalizada, vivendo a regra

"natural" da heterossexualidade.

Uma multidão de crianças televisivas, no entanto, por pura depravação –

certamente –, não concordam. Se se deleitam em heroísmos, é por um herói às avessas,

pela mudança mais que pela "proteção", pelos "anarquismos" mais que pela ordem

cívica; se se multiplicam como românticos, despontam, ao mesmo tempo, para

romances indesejáveis, inexplicáveis, multiplicáveis em lógicas corrosivas. Algumas

crianças, para medo geral, preferem passar mais tempo brincando de supervilão que

quer dominar o mundo, de cientistas malucos ou, simplesmente, de malucos. Assistem

aos desenhos e, ainda que inseridas em todas as lógicas maquínicas da produção de

modos de vida, arranjam pequenas rupturas para se multiplicarem em pontos de

intercessão que conduzem a rumos inesperados. Algumas crianças, ainda que

televisivas, descobrem-se imorais (NIETZSCHE, 2015), ingovernáveis pelas lógicas da

boa pedagogia.

É nesse sentido, portanto, que produzimos esse corpotexto como uma aposta na

produção da vida bicha maquínica pela via da cultura pop, especialmente a

televisionada. A vida contemporânea está marcada pela produção em meio a

agenciamentos de servidão. Em termos de sexualidade, as produções televisivas atuam

ativamente na produção da sexualidade que importa, isto é, a heterossexualidade. Os

corpos da contemporaneidade estão também marcados por economias subjetivas

agenciadas pela maquina Capital e, portanto, são amarrados por estéticas do corpo

perfeito, do corpo idealizado. Na lógica da televisão maquínica do Capital, máquinas

produtoras de sexualidades e corpos incidem no incessante processo de produção de

crianças Johnny Bravo. Vemos a todo momento, entretanto, traços das crianças

depravadas, das crianças infames (FOUCAULT, 2003); e elas, sem hesitarem, brincam

com os códigos, os fluxos e as máquinas de modo a introduzir mudanças no rolamento

das engrenagens. Elas, de algum modo, inserem vidas viadas mesmo em personagens

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tão marcadamente heterossexuais, tão marcadamente heteroprodutoras. A criança

infame imita o Johnny em cinco decibéis mais viada.

Imagem 02. Johnny-5-decibéis-mais-viada.

Fonte: Google imagens.

Nesse ponto reside nossa aposta: produzir um arranjado maquínico com a vida

da criança infame que vive, justamente, a época em que os maquinismos incidem sobre

o corpo infantilizado, dependente das mediações do Capital e do Estado. Justamente ali

onde o corpo tende a se fazer nas articulações mais servis ao agenciamento capitalístico

heteroproduzido é que essas crianças, de algum modo, fazem-se bichas maquínicas

porque bichas televisivas. A televisão chama e a criança televisiva corre para assistir aos

desenhos heroicos sob um agenciamento intensivo e de curta duração não previsto pela

televisão. A criança infame, tão logo se senta, começa a torcida: "O que faremos essa

noite, Cérebro?", "A mesma coisa que fazemos todas as noites, Pinky: tentar conquistar

o mundo!".

Maquinismos televisivos: a década de 1990 e a incidência do corpo heroico

Ora, mas quem são as crianças televisivas?

De modo muito simplório, poderíamos reduzir assim: as crianças televisivas são

as crianças nascidas após a "redemocratização". São as crianças da cultura pop.

Se pensarmos o Brasil em termos de produção de subjetividades, teríamos,

claramente, crianças muito distintas entre as que cresceram em meio ao período da

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Ditadura Militar e as crianças da chamada "redemocratização". Obviamente, o mínimo

se encontra no próprio arranjado político muito diferente dessas duas crianças. Todavia,

os modos de governamento político nacional dizem não apenas de relações

macrossociais, mas também de toda uma política econômica dos afetos. Ou, como dizia

Guattari e Rolnik (2007) enquanto andavam pelo Brasil: há toda uma nova crise

subjetiva nos impelindo a buscar outros modos de produção de vida.

Essa nova economia dos afetos afirmada com mais força – no Brasil – com a

redemocratização é, em primeiro lugar, uma economia internacional. Isto é, a partir

deste momento, o amor à pátria depende do estabelecimento das relações de "boa

vizinhança" nas políticas internacionais. Em termos práticos, isso implica toda uma

ampliação das redes de comércio, de trocas políticas, sociais e afetivas. Se vivíamos,

durante a Ditadura Militar, um longo processo de nacionalização do sujeito, a partir do

período de redemocratização, na década de 1980, há quase uma inversão tempestuosa:

começaríamos a produzir, agora, um sujeito global (AGUIAR, 2011), o "cidadão do

mundo" e imperam as políticas de amizade globais.

O mercado global começa a vender, justamente, modos de produção de vida,

modos de nos relacionarmos com nossa memória, de ativarem nossos "cérebros"

(LAZZARATO, 2006). É estabelecida toda uma "rede cerebral" em que as mentes são

postas a conversas, são colocadas para intercambiarem afetos e memórias. É a memória

que é trabalhada nas novas produções subjetivas; é a memória e é para poder afirmar

afetos em momentos distintos, não apenas "localizados". A própria subjetivação é

negociada ativamente nesse novo cenário e, na memória, encontramos tanto o

controlável quanto o incontrolável. Na memória, exercitam subjetivações do sujeito

global, do herói inter e transnacional. Não mais basta a criação de ideais locais; o

grande mercado veicula a vida perfeita – memorável! – a todos os países.

Ora, nem de longe apáticas ou distantes a estas estratégias gerais, as redes de

televisão começam a investir, em larga escala, a produção da vida globalizada,

conectada aos maquinismos capitalísticos pelas redes de comunicação pré-internet. O

final da década de 1980 e toda a década de 1990 são marcados, justamente, por uma

televisão internacional e indistinta (MATTOS, 1990), por uma televisão que não apenas

é feita irrestrita em termos de programação, como também é encarregada, na

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Constituição, de promover programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e

informativas. Em termos explícitos, a televisão se torna um dos mecanismos mais

predominantes na produção de subjetividades no contemporâneo. Forma-se, então, uma

geração de crianças televisivas no final do século XX.

E, entretanto, ainda que pesquisadores possam "medir o 'tempo cerebral

disponível' gasto diante da televisão" (LAZZARATO, 2014, p. 45), nenhuma pesquisa

pode prever os agenciamentos resultantes na combinação de imagens, sons e

informações. Nenhuma pesquisa pode dar conta da vida que se multiplica diante do

aparelho de televisão. Destinada a ser comum e corriqueira, a vida cotidiana – ao se

encontrar com um agenciamento de poder –, descobre-se infame. A criança televisiva,

saturada da vida com de cores "desejáveis", encontra um emaranhado de poder e faz-se

anti-heroica.

Aos modos de Foucault (2003), em um instigante ensaio sobre os homens

infames, a criança televisiva pode descobrir-se em um arranjo de subjetividades

dissidentes. Em meio à vida comum, quase desapercebida, um delírio fátuo, um

momento de paixão atravessa o corpo e é tomado por uma lufada de ar sombria, por

uma vilania, por certo ardor, que lhes dava, "[...] à proporção de sua própria

mediocridade, uma espécie de grandeza assustadora ou digna de pena" (FOUCAULT,

2003, p. 210).

Arrastada no jogo de forças maquínicas da televisão – jogos de afecção, jogos de

identidade, jogos de consumo, jogos de sociabilidade, jogos de paixões... –, a criança

televisiva tende à paixão pelos heroísmos, pelo corpo feito mercadoria. Decerto, em

meio aos agenciamentos intensivos da máquina Capital, somos cooptadas por esses

jogos. Vivemos a vida comum. Entretanto, somos também perturbadas, perturbadoras.

Fazemo-nos bichas em atos de imitação, em produções de simulacro. Se a bicha

é o estereótipo produzido para uma sociedade machista, se ela representa todos os

corpos e traços esperados pela sociedade, ela o faz na medida em que zomba da própria

mesmidade que lhe esperam (ZAMBONI, 2016). A televisão produz, na criança, todos

os desejos da Grande Máquina Capital, todos os modos de produção de vidas

pertinentes às lógicas globais. Contudo, as crianças bichas – porque infames –

produzem múltiplas rupturas e deslizamentos nesse processo de cooptação,

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desarranjando a maquínica midiática na medida em que se apropriam dos efeitos

televisivos imprimindo-lhes outros destinos.

A televisão, tão esperta e pronta para agenciar os desejos e os fluxos

desterritorializados, não consegue, entretanto, ajustar completamente a vida infame.

Pela imitação perfeita e, ao mesmo tempo, "errada" da criança infame, rui o projeto de

conformação subjetiva.

A década de 1990 foi, justamente, o período em que a televisão brasileira

começou seus maiores investimentos sobre os modos de produção das vidas desejáveis

pela Máquina Capital. É, também, o período em que a televisão começa, junto à política

nacional, a se "democratizar": nunca antes existiram tantos aparelhos de televisão nas

casas. Justamente, nesse cenário de produção em série de subjetividades desejáveis, é

que, junto à criança televisiva, nasce a criança infame com mais força.

O potencial de servidão midiática da televisão é imenso e, por isso mesmo, a

força das crianças infames, que se apropriam dela, também o é para afirmar outras

possibilidades de vida. Ao biopoder responde seu duplo da biopotência. Porém, não é

uma resposta em mesma força e medida de sentido contrário, uma nulificação de forças;

Trata-se da promoção de um desvio, uma dobra das formas de poder hegemônicas,

deformando-as para que aí transite a vida em suas múltiplas possibilidades. Infames, as

crianças imitam o Pernalonga: "O que há velhinho?". E tudo nesse personagem é feito

bicha.

Imagem 03. Pernalonga bichérrima.

Fonte: Google imagens.

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Corpos errantes; heroísmos travestidos

Afinal, o que quer o corpo sadio, heroico e másculo dos heroísmos de televisão?

Ou, melhor, quem o que quer?

Há, decerto, encantos nos corpos masculinos desenhados nas redes televisivas. E

também seria inapropriado afirmar que, ao longo de todos esses anos de televisão como

máquina integradora aos propósitos capitalísticos, apenas um corpo heroico foi

veiculado. Muitos foram e são os corpos valorizados e desejáveis a toda a maquinaria.

Afinal, justamente por ser uma máquina interligada – isto é, a Grande Máquina Capital

– é que o corpo não poderia ser um único. O corpo é uma construção, isto é, é uma

produção de todas as maquinarias existentes e, portanto, não caberia como um único

corpo. É produção escolar, farmacêutica, midiática, artística, cinematográfica, telefônica

e radiofônica, econômica, médica, política, militar, religiosa... e, ainda que

imprecisamente, transitamos e somos assediados por todas essas instâncias.

Assim, talvez devêssemos nos perguntar quais corpos heroicos circulam na

máquina televisiva; talvez devêssemos ponderar sobre como diferentes corpos se

articulam na produção de subjetividades pertinentes à Grande Máquina Capital. E daí

perguntar, aos modos deleuzianos e espinosistas, o que pode um corpo?

Na cena de abertura do desenho A Vaca e o Frango, um corpo caminha, aos

modos militares sobre o que poderia ser uma esteira de montagem. Um mesmo corpo

repetido inúmeras vezes, com diferentes roupagens e uma mesma expressão.

Imagem 04. Senhor Bundefora.

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Edição própria.

A personagem logo se apresenta um ser infame, um ser de absurdas intenções! O

Senhor Bundefora – e agradeçamos à tradução super inventiva, visto que, no original,

seu nome é Red Guy (Cara Vermelho)! – mescla humor com vilania, prazer e

provocação. Mal é apresentado e o personagem logo se mostra apegado a múltiplas

representações de gênero, a múltiplas possibilidades de habitar o corpo. Desinteressada

em ser apenas homem ou apenas mulher, em cada episódio o Senhor Bundefora se veste

e interpreta um modo de estar com seu corpo.

E a constante, como poderia nos lembrar Preciado (2014), é o centro erógeno

comum a aos corpos: o cu. "Ai, como eu sou maligno!", brinca a personagem.

Imagem 05. Bundefora na alavanca.

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Edição própria.

E as expressões – dorprazersurpresaansiedade – em três pequenas e efêmeras

imagens fazem brincadeira de uma questão demasiadamente séria: afinal, como não

"[...] considerar o corpo como superfície, terreno de deslocamento e de localização do

dildo" (PRECIADO, 2014, p. 49)? Em três imagens, é o dildo e a pele, o dildo e a carne,

o dildo e o corpo que se excitam. Em um momento fragmentado, a criança infame,

porque televisiva, produz rompantes com as possibilidades de reprodução e da produção

do prazer unicamente genital. No ato de brincarem e mimetizarem o Bundefora, é o

andar de bunda que torna possível ensaiar um simulacro, uma cópia malfeita das pernas,

das genitálias, dos órgãos, dos ossos...

Nas núpcias entre a travesti de Zamboni (2016) e a pele de Preciado (2014), a

criança viada não quer saber do pinto ou da xana, mas de tornar todo o corpo eriçável e

passível de gozo. De gozo em que a ejaculação é o próprio riso.

É, pois, precisamos afirmar o fogo no rabo, as formiguinhas no cu

(RODRIGUES; FERREIRA; ZAMBONI, 2013) das crianças infames, das viadas

televisivas.

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O corpo bicha, ainda nas suas crianças de se fazer, é demasiadamente

inapropriado para todas as maquinarias de captura e de integração. Há vida em excesso

nas depravações da criança viada. Se as tecnologias da informação penetram, com a

grande manobra estratégica da televisão, a esfera privada (RODRIGUES; FERREIRA;

ZAMBONI, 2013), é igualmente possível traçar uma linha de rupturas, uma linha do

privado que foge ao público.

E, convenhamos, nenhuma vilã viada faz essa ruptura melhor que Elle, em As

meninas superpoderosas. Poderosíssima, Elle é mestre das travessuras e admirador das

desordens. Longe de se restringir ao "privado", Elle torna-se figura pública das

brincadeiras, das confusões.

Longe de ocupar um corpo humanoide, Elle cria para si variações de corpos

demoníacos e apruma-se em disfarces. Elle – travesti louca – oscila entre corpos e

produz, sempre, estranhamentos nas formas e nas reverberações da voz. Elle, ainda que

possa atender por "senhor", carrega feminilidades e devires-mulher em seu corpo

capazes de confundir todos os pronomes e gêneros (ROSEIRO, 2014). Se Bundefora

vestia-se para momentos, Elle carrega a ambiguidade não-binária dos gêneros a cada

movimento.

Imagem 06. O corpo maligno.

Fonte: Google Imagens.

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E, no limite, preocupa-se apenas em produzir o corpo dissonante.

- Ahn... a gente tava pensando...

- Como eu mantenho a minha fora? Bom, agora vocês já sabem!

- Ahn... não. Na verdade, você fez alguma coisa ruim hoje?

- Ah! Não, hoje não. Por que essa pergunta?

- Por nada, só para saber...

- Não é fácil manter esse corpinho, sabia?

Assim, é na lógica dos corpos errantes que a criança viada começa as produções

do heroísmos travestidos. Rompe o heroico masculinizado, indiferente das formas que

toma, e produz linhas anti-heroicas. À toda musculatura dos heróis dos quadrinhos e das

televisões, a todos os traços bem definidos dos heróis clássicos (BEIRAS et all, 2007), a

criança exercita cusparadas, danças e movimentos duvidosos, questionáveis. Cria

exercícios como quem faz academia, mas menos para manter a ideia da boa forma e

mais para manter, em sua memória, vilanias saltitantes, bichices poderosas. Exercita seu

corpo para carregar traços de outros gêneros e outro e de outros possíveis corporais. No

exercício da vida viada, a criança pode, inclusive, criar para si um corpo malhado, um

corpo estereotipado do herói masculino e, ainda assim, produzir rasgos anais, tessituras

afeminadas.

No limite, não é preciso que a criança faça o Johnny Bravo bicha; o próprio

Johnny Bravo se faz bicha, convidada pelo momento de cisão da criança infame. E,

mesmo hoje, parece ser preciso que as crianças nos mostrem em seus comentários e

brincadeiras, em suas imitações e seus gozos gargalhantes.

Limiar: maquinar o corpo saltitante

Debruçamo-nos sempre à televisão e lançamos a ela toda uma série de críticas,

de questionamentos e de ponderações sobre os agenciamentos por ela criados.

Debruçamo-nos, continuamente, para dizer dos estragos que a rede indeterminada é

capaz de produzir. E, certamente, não são poucos.

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Todavia, no limiar, talvez nos seja preciso destacar a potência da infâmia, da

vida que é ordinariamente apática. Talvez nos seja preciso duvidar daquilo que

pintamos de cinza.

Talvez devêssemos, em conversa com Lara Vascouto (2016), indagar como

esses corpos saltitantes têm sido produzidos em um duplo de corpo-espantalho – corpo

que assusta, que agrupa tudo para espantar, para afastar – e no corpo defensável. Talvez

devamos, nos nossos limites, perguntar como um corpo pode carregar força a rompante

e ainda circular nos espaços de exercício social do corpo. Se o problema da cultura pop

é a ridicularização dos corpos errantes e das vilanias saltitantes, talvez pudéssemos fazer

disso nossa própria esperança: esperança acompanhada do ridículo e do absurdo público

que extravaza o "privado" para figurar nas cenas públicas.

Imediatamente, o corpo masculinizado tão bem cuidado do herói é indagado. O

herói pode sempre vencer e, como bem o sabemos, a máquina televisiva pode sempre

incorporar um novo corpo ao jogo heroico, ao lugar de herói. E, todavia, como as

crianças infames – porque bichas televisivas – ensinam-nos na carne, é possível pegar o

mais másculo dos corpos e bichificá-los, e infamizá-los, e violá-los.

Imediatamente damo-nos conta: na pele da criança infame, toda personagem é

pura vilania. Vilania das boas pedagogias. Na pele da criança infame, a vida maquina o

corpo saltitante.

Referência

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