Vilma Aparecida

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Tese Doutrorado

Transcript of Vilma Aparecida

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    INSTITUTO DE LETRAS E LINGUSTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LINGUSTICOS

    A interveno do professor no processo de construo da

    escrita: um olhar sobre o aluno com dificuldades de

    aprendizagem

    VILMA APARECIDA GOMES

  • Vilma Aparecida Gomes

    A interveno do professor no processo de construo da escrita: um olhar sobre o aluno

    com dificuldades de aprendizagem

    Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao

    em Estudos Lingusticos da Universidade Federal de

    Uberlndia curso de mestrado e doutorado, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora

    em Estudos Lingusticos.

    Linha de pesquisa 2: Linguagem, texto e discurso

    Orientador: Prof. Dr. Ernesto Srgio Bertoldo

    Uberlndia

    2013

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    G633i

    2013

    Gomes, Vilma Aparecida.

    A interveno do professor no processo de construo da escrita: um

    olhar sobre o aluno com dificuldades de aprendizagem / Vilma Aparecida Gomes. -- 2013.

    255 f. : il.

    Orientador: Ernesto Srgio Bertoldo.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Uberlndia,

    Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos.

    Inclui bibliografia.

    1. Lingustica - Teses. 2. Anlise do discurso - Teses. 3. Ensino e

    aprendizagem - Teses. 4. Escrita Teses. I. Bertoldo, Ernesto Srgio. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de Ps-graduao em

    Estudos Lingusticos. III. Ttulo.

    CDU: 801

  • Dedico este trabalho

    memria de meu pai, Geraldo, pelo exemplo de serenidade, alegria e sabedoria.

    minha me, Maria, por nos mostrar que o amor pela vida no tem dimenso.

    Aos meus irmos, Jos Eurpedes e Maria de Ftima, pela oportunidade de

    compartilharmos uma vida.

    Elisa e ao Alexandre pelo carinho e cumplicidade.

  • Uma homenagem....

    A meu pai

    Que no escrevia com a caneta,

    Mas escrevia com o olhar,

    Escrevia com o sorriso,

    Escrevia com a bondade.

    Escrevia com a voz,

    O destino da humanidade,

    Que caminhava sem rumo,

    Sem destino, sem amor.

    Escrevia com o sorriso,

    O amor pela esposa, filhos e netos.

    Com o sbio olhar,

    Escreveu no rosto seu ltimo Adeus!

    Vilma

  • Agradecimentos

    A Deus, essa fora maior, que me lana pelo mundo da determinao, da perseverana,

    condio pela qual me oportunizou ensinar.

    Ao meu orientador, Prof. Dr Ernesto Srgio Bertoldo, pela motivao, pela seriedade e pelo

    respeito com que conduziu as suas intervenes, sobretudo, em momentos em que me

    encontrava emocionalmente frgil. Agradeo, imensamente, sua acolhida, sua confiana, o

    que de certa forma, contribuiu para a concluso desta pesquisa.

    Aos meus pais, Geraldo (in memoriam) e Maria Jos, que souberam nos educar pelo exemplo,

    nos conduzindo pelo caminho da honestidade, justia e determinao. Agradeo, ainda, pelos

    ensinamentos e pelas exigncias ao longo da vida.

    Aos meus irmos, Jos Eurpedes e Maria de Ftima, pela motivao e pela cumplicidade em

    nosso percurso de vida, que de certa forma, singularizou a minha existncia. Muito obrigada.

    Marlene que, h doze anos, dedica o seu trabalho cuidando dos meus pais.

    As professoras Dr Carmen L. H Agustini e Dr Carla Nunes Vieira Tavares pela leitura

    criteriosa que fizeram do meu trabalho na ocasio dos exames de qualificao.

    Ao professor Dr Joo Bsco Cabral dos Santos que me acolheu muito gentilmente e aceitou

    orientar-me no trabalho de rea complementar. Agradeo imensamente.

    Prof. Dr Eliane Mara Silveira pela outra leitura de Saussure.

    prof Dr Carmen L. H. Agustini por mergulhar-me no mundo singular de Benveniste.

    Aos colegas da ps-graduao e do grupo de pesquisa- GELS, pela convivncia, pelas

    discusses que muito contriburam para que eu pudesse repensar o desenvolvimento desta

    pesquisa.

    amiga Lazuta, pela leitura cuidadosa e ao amigo Mrcio, pela excelncia do Summary.

    Muito obrigada.

    Aos colegas da ESEBA: Giulliana, Walleska, Claudia, Neli, Dorinha, Mrcio, Juliano,

    Clemilda, Marileusa e Vilminha Botelho pela fora e apoio em momentos em que precisei

    garantir o meu direito.

    amiga Vilminha Botelho pelas interlocues, o que fez com que fortalecesse a nossa

    amizade.

    Aos amigos, Joo de Deus e Onilda, para alm das interlocues, as boas risadas em

    momentos de descontrao.

    s alunas, Luza e Mariana, razo do desenvolvimento desta pesquisa.

  • O escrito no para ser lido, porque h um abismo entre o que se escreve e o que se l.

    (Lacan)

  • Resumo

    Esta tese surgiu das minhas inquietaes advindas da experincia em sala de aula como

    professora de Lngua Portuguesa. Em sendo assim, ao examinar os dizeres que constituem as

    leis que regulamentam o processo de educao inclusiva no Brasil, constatei que as discursividades engendradas, a partir desses dizeres, afetavam os agentes escolares e,

    consequentemente, traziam implicaes para o processo de ensino da escrita. Analisei alguns

    enunciados dessas leis, embasando-me na Anlise de Discurso de linha francesa. Mostrei

    como os dizeres dessas leis foram sendo discursivizados no Brasil e no mundo e apresentei

    possibilidades de interpretao que puderam engendrar discursividades as quais possibilitam

    afetar aqueles responsveis pelo processo de incluso na escola. A pesquisa se desenvolveu por meio de um trabalho longitudinal o qual acompanhei, como professora e como

    pesquisadora, por um perodo de dois anos, o percurso de trabalho de escrita de Luiza e

    Mariana, em uma escola de ensino fundamental de uma Universidade Pblica. Essas alunas

    foram afetadas pelas consequncias das discursividades engendradas pelos agentes escolares a

    partir do dizer das leis sobre a incluso ao serem consideradas alunas que apresentavam dificuldades de aprendizagem na escrita. Tendo em foco essas consideraes, desenvolvi a pesquisa perseguindo a hiptese de que considerando o papel que o parecer, que designou Luiza e Mariana como alunas com dificuldades de aprendizagem, exerce na perspectiva das polticas de incluso, o professor, uma vez implicado fortemente com a subjetividade daquele que escreve scriptor pode suscitar, nesse caso especfico, mudana de posio discursiva a partir do processo de escrita, que, de certo modo, desestabiliza a perspectiva do

    parecer que se pretende to categrico. Para confirmar ou refutar essa hiptese constru uma interlocuo entre os campos tericos da Anlise de Discurso de linha francesa, da Teoria da

    Enunciao e da Psicanlise freudo-lacaniana. Analisei a escrita e reescrita dos textos de

    Luiza e Mariana para responder pergunta: tomando como base as minhas intervenes feitas

    no trabalho de escrita dessas alunas, houve indcios de que elas estabeleceram uma relao

    diferente com a escrita? Os resultados da anlise indicam que os efeitos de minhas

    intervenes alteraram a posio discursiva de Luiza e Mariana, uma vez que elas se

    implicaram com o trabalho de escrita e buscaram meios para enfrentar as dificuldades no

    momento da escrita. Puderam ainda entrar no jogo da linguagem, o que lhes possibilitou uma

    relao com a escrita que nos parece ser de constituio e, em decorrncia, lhes possibilitou,

    ainda, relaes outras com o saber na escola.

    Palavras chave: escrita, ensino, discurso, enunciao.

  • Summary

    This thesis emerged from my anxieties originated from the classroom experiences as a

    Portuguese teacher. Therefore, examining the words that constitute the governing laws of the

    "inclusive" education process in Brazil, I have found that the discourses engendered, from

    these sayings, affected school stakeholders and, consequently, brought implications to the

    writing teaching process. I analyzed some of these law statements, basing myself in the

    Discourse Analysis of French line. I showed how the words of these laws were being

    discoursed in Brazil and abroad, and presented possible interpretations that could engender

    discourses which make it possible to affect those responsible for the "inclusion" process in

    school. The research was developed through a longitudinal study in which I followed, as a

    teacher and as a researcher for a period of two years, Luizas and Marianas course of writing in an elementary school at a public university. These students were affected by

    consequences of discourses engendered by school workers from the "inclusion" law words

    being considered students who had "learning difficulties" in writing. Taking these

    considerations into focus, I developed the research pursuing the hypothesis that considering

    the role that the "opinion" which appointed Luiza and Mariana as students with "learning

    difficulties" has a view of the "inclusion" policies. The teacher, once heavily involved with the

    subjectivity of that who writes - scriptor - may raise in that particular case, changing the

    discursive position from the writing process, that somehow destabilizes the perspective of the

    "opinion" that is intended to be as categorical. To confirm or refute this hypothesis I built a

    dialogue between theoretical Discourse Analysis of French line, the Linguistics of

    Enunciation and The Psychoanalysis of Freudian and Lacanian fields. I analyzed the writing

    and rewriting of Luizas and Marianas texts to answer this research question: taking into account my interventions made in the writing work of these students, has there been evidence

    that they have established a different relationship with writing? The analysis results indicate

    that my intervention effects altered the discursive position of Luiza and Mariana, since they

    were involved with the work of writing and sought ways to cope with difficulties at the time of

    writing. They could even get into the language game, which enabled them to have a

    relationship with writing that seems to be that of a constitution and, as a result, they also

    resulted in relationships with other knowledge

    Fields in school.

    Keywords: writing, teaching, speaking, enunciation.

  • Lista de Imagens

    Primeira verso do texto - A gata .............................................................................. 126

    Segunda verso do texto - A gata .............................................................................. 131

    Terceira verso do texto - A gata ............................................................................... 135

    Primeira verso do texto - O Machucado .................................................................. 137

    Primeira verso do texto - O fantasma ....................................................................... 140

    Primeira verso do texto - O mito de Orfeu ............................................................... 148

    Segunda verso do texto - O mito de Orfeu .............................................................. 150

    Resenha do filme - A Bssola de Ouro ...................................................................... 155

    Segunda verso da resenha do filme - A Bssola de Ouro ........................................ 156

    Resenha do programa - TV Culinria ........................................................................ 158

    Segunda verso da resenha do programa - TV Culinria .......................................... 160

    Relatrio das oficinas ................................................................................................ 163

    Crnica - O ladro ..................................................................................................... 163

    Texto expositivo-argumentativo ................................................................................ 171

    Texto - Dona Dalva ................................................................................................... 177

    O fantasma ................................................................................................................ 180

    Selo do correio da copa do mundo de 2010 .............................................................. 186

    O povo do Egito comemora o fim da ditadura .......................................................... 189

    Imagem jogo Brasil e Frana no Stade de France ..................................................... 189

    Notcia - Brasil perde por 1 a 0 ................................................................................. 190

    Segunda verso da notcia - Brasil perde por 1 a 0 ................................................... 191

    Quadrinho da Mnica ................................................................................................ 192

    Primeira verso texto em quadrinhos ........................................................................ 192

    Regras do jogo ........................................................................................................... 196

  • Sumrio

    Introduo.................................................................................................................. 23

    PARTE I

    Anlise do discurso, Teoria da Enunciao e Psicanlise: uma interface ................ 37

    Captulo 1 O discurso e seus efeitos ....................................................................... 39

    1. Discurso e seus efeitos ........................................................................................... 41

    1.1. Os discursos da incluso: uma contextualizao ................................................ 41

    1.2. Contextualizao terica: o discurso como acontecimento ................................ 46

    1.3. Algumas regularidades enunciativas: as discursividades ................................... 52

    1.4. Movimento dos discursos da incluso no meio escolar .................................. 60

    Captulo 2 Espao escolar e construo de procedimentos de anlise .................... 65

    2. Descrio da escola onde se realizou a pesquisa ................................................... 67

    2.1. O funcionamento da escola ................................................................................ 68

    2.2. A natureza da pesquisa ....................................................................................... 70

    2.3. Um pouco de Luza ............................................................................................ 71

    2.4. Um pouco de Mariana ........................................................................................ 74

    2.5. Procedimentos de anlises ................................................................................. 75

    2.6. Metodologias utilizadas em sala de aula: ensino de escrita por meio dos

    gneros ......................................................................................................................

    77

    Captulo 3 Lingustica e escrita .............................................................................. 81

    3. Lingustica e escrita .............................................................................................. 83

    3.1. Linguagem e Lngua .......................................................................................... 83

    3.2. A escrita ............................................................................................................. 88

    3.3. O ensino da escrita ............................................................................................. 91

    Captulo 4 - Escrita e subjetividade .......................................................................... 99

    4. Escrita e subjetividade .......................................................................................... 101

    4.1. A escrita como suporte material da subjetividade ............................................. 101

    4.2. Um sujeito que no evidente ....................................................................... 111 4.3. A questo da transferncia em sala de aula ....................................................... 116

    Parte II

    A lgica que subjaz a construo lingustico-discursiva dos textos de Luza e

    Mariana e o percurso de anlise..........................................................................

    119

  • Captulo 1 O percurso das anlises ............................................................ 121

    1.1. O percurso de escrita de Luza: um trao de singularidade .............................. 125

    1.2. Outro momento de produo: outra enunciao ............................................... 161

    Captulo 2 - O percurso de escrita de Mariana ........................................................ 173

    2. A escrita de Mariana: um percurso imprevisvel ................................................. 175

    2.1. Um possvel deslocamento enunciativo frente escrita ................................... 185

    2.3.1. Os efeitos da interveno da professora na escrita de Luza e Mariana ........ 197

    3. Consideraes finais ........................................................................................... 203

    Referncias .............................................................................................................. 211

    Anexo 1 .................................................................................................................... 223

    1. Primeira verso do texto - A gata ......................................................................... 225

    1.1. Segunda verso do texto - A gata ...................................................................... 226

    1.2. Terceira verso do texto - A gata ...................................................................... 227

    1.3. Primeira verso do texto - O Machucado .......................................................... 228

    1.4. Primeira verso do texto - O fantasma .............................................................. 229

    1.5.Primeira verso do texto - O mito de Orfeu ....................................................... 230

    1.6. Segunda verso do texto - O mito de Orfeu ..................................................... 231

    1.7. Resenha do filme - A Bssola de Ouro ............................................................. 232

    1.8. Segunda verso da resenha do filme - A Bssola de Ouro ............................... 233

    1.9. Resenha do programa - TV Culinria ................................................................ 234

    1.10. Segunda verso da resenha do programa - TV Culinria ................................ 235

    1.11. Relatrio das oficinas ...................................................................................... 236

    1.12. Crnica - O ladro ........................................................................................... 237

    1.13. Texto expositivo-argumentativo ..................................................................... 238

    Anexo 2 - Textos produzidos por Mariana 2009 e 2011 .......................................... 241

    2.1. Texto - Dona Dalva ......................................................................................... 243

    2.2. O fantasma ....................................................................................................... 244

    2.3. Notcia - Brasil perde por 1 a 0 ........................................................................ 245

    2.4. Segunda verso da notcia - Brasil perde por 1 a 0 .......................................... 246

    2.5. Primeira verso texto em quadrinhos .............................................................. 247

    2.6. Regras do jogo ................................................................................................. 248

    Apndice - Entrevistas .............................................................................................. 249

    3.1. Entrevista 1 ..................................................................................................... 251

    3.2. Entrevista 2 ..................................................................................................... 255

  • 23

    Introduo

    ______________________________

  • 24

  • 25

    1. INTRODUO

    O que me motivou a desenvolver esta pesquisa foi a minha experincia em sala de aula

    como professora de Lngua Portuguesa. A minha prpria prtica em sala de aula suscitou-me

    inquietaes advindas de questes relacionadas aos alunos que vo avanando para o ano

    escolar subsequente sem vencer algumas habilidades de escrita. Em todas as escolas nas

    quais trabalhei, um grande nmero de alunos chegava ao sexto ano do Ensino Fundamental

    com dificuldades de compreenso e interpretao de textos considerados de baixa

    complexidade lexical, alm de no conseguir articular o texto escrito.

    Nos momentos de reunies pedaggicas, em todas as escolas em que atuei como

    professora de Lngua Portuguesa, quando havia questionamento a respeito da necessidade de

    reter determinados alunos para que eles pudessem desenvolver as habilidades de escrita ou de

    leitura que no haviam sido alcanadas naquele ano, o argumento para que isso no

    acontecesse era de que aqueles eram alunos de incluso 1 e, por esse motivo, poderiam dar

    sequncia aos anos escolares mesmo sem apreender as habilidades de leitura e escrita nas

    quais apresentavam dificuldades.

    Mesmo quando a escola decidia reter esses alunos, alguns reprovavam por vrios anos,

    outros avanavam para o ano seguinte sem superar as dificuldades e muitos deles

    abandonavam a escola. Dentre as vrias razes que justificariam esses desdobramentos,

    interessam-me as situaes as quais foram consequncias das discursividades produzidas no

    meio educacional com a implementao da proposta de uma educao inclusiva. Beyer

    (2009, p.73) afirma que a educao inclusiva caracteriza-se como um novo princpio

    educacional, cujo conceito fundamental defende a heterogeneidade na classe escolar; como

    situao provocadora de interaes entre crianas com situaes pessoais as mais diversas.

    Mas as discursividades engendradas pelo princpio da educao inclusiva parecem-me que se

    tornaram uma justificativa para facilitar o percurso dos alunos que no conseguem

    desenvolver o processo de escolarizao, obedecendo ao tempo cronolgico que priorizado

    1 A Conferncia Mundial de Educao para Todos, realizada em Jomtien, na Tailndia, em 1990, e a Conferncia

    Mundial de Educao Especial, realizada em 1994, em Salamanca, na Espanha, de onde se originou o importante

    documento denominado Declarao de Salamanca. Essa Declarao reitera e enfatiza a importncia de se

    orientar uma Educao para Todos com o objetivo de atender aos grupos minoritrios, mas o fio condutor que

    alinhava esse documento o acesso de crianas, jovens e adultos, considerados pessoas com necessidades

    educacionais especiais, educao. Tendo como base essa declarao, foi elaborado um novo documento que

    orienta os paradigmas da educao brasileira, Lei de Diretrizes e Bases da Educao/96. As consideraes sobre essa conferncia sero expandidas no captulo desta tese Discurso e seus efeitos. Alm disso, a palavra incluso est com aspas, por no acreditar que haja incluso, ao mesmo tempo em que se tenta incluir h a excluso, conforme mostro em minhas anlises.

  • 26

    na escola. Digo isso porque pude presenciar muitos alunos aprovados para o ano seguinte sem

    terem apreendido habilidades necessrias para o desenvolvimento da aprendizagem do ano a

    cursar.

    Paralelamente a essa proposta de educao inclusiva que garante a matrcula de

    alunos com deficincia na escola regular, foi institudo pelas Secretarias de Estado e

    Educao de vrios estados brasileiros o processo de avaliao por meio da progresso

    automtica. Nesse processo, o aluno era aprovado para cursar o ano subsequente sem

    desenvolver as habilidades/competncias necessrias do ano em curso. A justificativa para a

    aprovao do aluno era de que, no ano seguinte, seria proposto um trabalho com atividades de

    reforo para que ele conseguisse desenvolver as habilidades/competncias ainda no

    adquiridas. Muitas vezes essas atividades no eram realizadas, ficavam apenas no plano das

    intenes, porque a prpria escola encontrava dificuldades em viabilizar o retorno do aluno e

    do professor escola, e, ainda, havia a dificuldade da famlia em garantir a presena do aluno

    no extraturno. Por essa razo, o aluno continuava, nos anos seguintes, com as mesmas

    dificuldades.

    Compreendo que as dificuldades enfrentadas pelos alunos em relao ao processo de

    escrita devem ser tratadas de outra maneira. Nunca concordei com essa perspectiva de

    avaliao do processo de aprendizagem de alunos com dificuldades de aprendizagem,

    porque, em meu entendimento, nesses casos, os princpios da educao inclusiva no devem

    ser aplicados aos alunos que no apresentam problemas de ordem cognitiva e/ou

    neurolgica, caso contrrio, devem ser devidamente diagnosticados por um laudo mdico.

    Por isso, nesta tese, proponho-me a mostrar como as intervenes realizadas por mim,

    como professora, nos textos escritos das alunas, Luza e Mariana, que foram consideradas, por

    meio de um parecer como alunas com dificuldades de aprendizagem da escrita,

    possibilitaram que elas se deslocassem de um lugar passivo, at ento designados a elas, uma

    vez que este lhes fora imposto pela instituio. Na escola havia vrias realidades, muitos

    professores preocupavam-se e implicavam com essas questes, outros nem tanto. Deparei-me

    com a realidade dessas alunas, especificamente, e pude observar que o fato de terem sido

    designadas como alunas com dificuldades de aprendizagem fez com que alguns agentes

    escolares2 se eximissem da responsabilidade3 de desenvolver um trabalho com essas alunas.

    2 Os agentes escolares so pedagogos, psiclogos, psicopedagogos, gestores e coordenadores pedaggicos e

    docentes.

  • 27

    Esse parecer, imputado a essas alunas, foi definido em reunies de conselho de

    classe, momento em que os agentes escolares socializam os problemas enfrentados no dia-

    a-dia da sala de aula e, em consenso, definem aes para resolver questes relacionadas ao

    aprendizado do aluno. Embora esse parecer no tenha sido elaborado por um especialista,

    ele ganha peso de um diagnstico.

    Entendo que dependendo da interpretao dada lei que regulamenta o processo de

    incluso, podem ser produzidas discursividades de forma a afetar a comunidade escolar,

    suscitando conflitos de diversas ordens. Um dos conflitos, suscitados por esse gesto de

    interpretao, foi o fato de a escola, lcus desta pesquisa, considerar as alunas participantes

    deste estudo como alunas que apresentavam dificuldades de aprendizagem, sem que

    houvesse um laudo mdico, apontando algum parecer de dificuldade cognitiva e/ ou

    neurolgica, referente ao seu processo de aprendizagem de escrita.

    Considero importante ressaltar que o parecer sobre Luza e Mariana, elaborado pelos

    agentes escolares como um todo, tomou como base a histria delas desde quando ingressaram

    na instituio. No caso de Luza, a famlia procurou a escola algumas vezes para conversar

    sobre a timidez da filha. Os pais estavam preocupados com o desempenho escolar dela, pois

    eles achavam que a timidez estava prejudicando o seu desempenho. J, em relao a Mariana,

    a escola que convocou os pais para conversar sobre o seu desempenho escolar. O setor

    psicopedaggico solicitou uma avaliao de um especialista, psicopedagogo, e convocou a

    aluna para oficinas extraturnos. No entanto, os pais alegaram que a filha ainda no havia

    despertado para o aprendizado e no acataram as sugestes da escola.

    Alm desses impasses, outro fator que contribuiu para a elaborao desse parecer foi

    o modo como essas alunas se inscreveram no processo de produo de textos escritos: ainda

    3 Os termos responsabilidade, responsvel e ato responsvel esto sendo usados, nesta tese, tanto para se referir

    s aes dos professores, como para se referir s aes de Luza e Mariana. O sentido que pretendo construir ao

    usar esses termos mostrar que os sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem assumem uma postura compromissada no momento em que a demanda escolar assim os exige. Na viso de Bakhtin, essas aes

    de no indiferena no campo de atuao dos professores so consideradas um ator responsvel. Segundo esse

    autor: o ato responsvel , precisamente, o ato baseado no reconhecimento dessa obrigatria singularidade. E

    essa afirmao do meu no-libi no existir que constitui a base da existncia sendo tanto dada como sendo

    tambm real e forosamente projetada como algo ainda por ser alcanado. E apenas o no-libi no existir que

    transforma a possibilidade vazia em ato responsvel real (atravs da referncia emotivo-volitiva a mim como

    aquele que ativo). E o fato vivo de um ato primordial ao ato responsvel, e a cri-lo, juntamente com seu peso

    real e sua obrigatoriedade; ele o fundamento da vida com ato, porque ser realmente na vida significa agir, ser

    no indiferente ao todo na sua singularidade (BAHTIN,2010, p. 99 grifos do autor).

  • 28

    no dominavam o mecanismo e o funcionamento da pontuao de acordo com a gramtica

    normativa, cometiam erros ortogrficos que, em tese, j deveriam ter sido superados. H a

    possibilidade de fazer essa afirmao, porque os erros ortogrficos cometidos pelas alunas

    podem ter sido motivados por homofonia. Alm disso, apresentavam dificuldades em

    construir os pargrafos de seus textos e, muitas vezes, escreviam em um registro muito

    informal. Somadas a todos esses problemas, estavam as dificuldades de leitura e interpretao

    de textos. Esse panorama em tela contribuiu para que os agentes escolares, de uma maneira

    geral, apresentassem s alunas, famlia e prpria comunidade escolar, um parecer de

    alunas com dificuldades de aprendizagem.

    Dadas essas consideraes, todas as questes discutidas acima ganham estatuto de

    problema. Isso porque as alunas que receberam essa designao sofrem efeitos advindos desse

    parecer, efeitos que se mostram negativos, j que emperram ainda mais o seu processo de

    aprendizagem, embora eu no discorde necessariamente de que as alunas tenham

    dificuldades de aprendizagem, sobretudo na escrita. Dado o carter do parecer e, em

    decorrncia de seus efeitos, nada foi feito em relao essas dificuldades, isto , algo que

    pudesse se reverter em uma situao escolar a favor das alunas, Luza e Mariana. Assim, eu,

    como professora e pesquisadora, no fiquei apenas com a constatao das dificuldades de

    Luza e Mariana, assumi uma postura diferente diante desse quadro, ou seja, parti para um

    trabalho caracterizadamente de interveno.

    Nesse sentido, minhas preocupaes sempre estiveram relacionadas ao efeito perverso

    que esse parecer acarretava para o processo de aprendizagem da escrita das alunas. No caso

    das participantes desta pesquisa, elas se assujeitaram ao lugar que lhes fora colocado: o de

    alunas com dificuldades de aprendizagem. Por essa razo, elas haviam deixado de cumprir

    as atribuies que todo estudante tem a funo de assumir, tais como: procurar resolver as

    dificuldades solicitando a ajuda do professor, fazer tarefas de casa e de sala de aula, realizar

    leituras solicitadas pelos professores, dentre outras.

    Diante do parecer apresentado pelo conselho de classe, isto , o de categorizar as

    participantes desta pesquisa como alunas com dificuldades de aprendizagem em leitura e

    escrita, o corpo docente como um todo deveria agir de forma a reverter a questo apresentada

    a favor das alunas. No entanto, percebi que as aes que foram combinadas, em consenso,

    entre a equipe pedaggica e professores, ao longo dos anos das alunas na escola,

    permaneceram no nvel das intenes, porque elas chegaram ao sexto ano com as mesmas

  • 29

    dificuldades de escrita identificadas em anos anteriores, o que, a meu ver, contribuiu para que

    elas fossem excludas pelos colegas na prpria sala de aula.

    Dessa forma, eu, como professora e pesquisadora, optei, ao ter contato com a situao

    das alunas, como sempre fiz durante toda a minha carreira, por intervir no processo de

    aprendizagem de escrita4 dessas alunas. Intervir nesse caso significa assumir uma posio

    enunciativa e discursiva de professora, e tentar fazer algo no processo de escrita das alunas

    que, de alguma forma, pudesse vir a reverter em uma situao a favor de tais alunas, por

    acreditar, assim como Coracini (2010, p. 40), que a escrita permite dar visibilidade

    identidade da criana, mas, por outro lado, pode tambm ser o lugar do sintoma e no h uma

    nica resposta para diagnosticar dificuldades de escrita, que pode ser desconhecida, pois tem a

    ver com as formaes inconscientes. As dificuldades advindas da inscrio dessas alunas no

    processo de ensino-aprendizagem da escrita podem estar relacionadas ao processo de

    constituio do sujeito pela linguagem. Segundo Coracini (op.cit. p. 44), a criana quando se

    interessa em aprender a lngua daqueles que a fizeram sujeito da linguagem, o faz por uma

    espcie de reconhecimento ou gratido; porque essa lngua chamada materna ser sempre

    estranha, estrangeira porque a lngua do outro.

    Desse modo, entendo que, apesar dessas alunas serem designadas, pela escola, como

    alunas que apresentavam dificuldades de aprendizagem, na prtica, possvel que elas

    sejam capazes de desenvolver habilidades que poderiam lev-las estruturao lingustica de

    um texto escrito, conforme descrito pelo ensino normativo. Por isso, acredito que, em relao

    s dificuldades de se ensinar a escrever, a escrita um processo subjetivo e singular,

    [...] mas possvel o professor provocar uma situao semelhante da

    transferncia na clnica sem transformar a sala de aula em div. O professor

    se colocaria em uma posio de sujeito suposto saber inexistente no aluno,

    4 O conceito de posio enunciativa e posio discursiva, que estou mobilizando nesta pesquisa, parte do pressuposto que h

    um processo enunciativo em que a subjetividade constitutiva. Em sendo assim, esse conceito perpassa por uma articulao

    entre os pressupostos tericos da Teoria da Enunciao e Anlise de Discurso de linha francesa. O fato de Benveniste (1995)

    definir a enunciao como um evento lingustico nico e irrepetvel, possibilitou-me entender, conforme Guimares, (2005,

    p.14), a enunciao como um acontecimento. Esse entendimento viabilizou uma articulao com os pressupostos da Anlise

    de Discurso da terceira fase da teorizao de Pcheux, que foram mobilizados nesta tese, o discurso como acontecimento.

    Posio enunciativa da professora como um evento de acontecimento passa pelo entendimento de que um processo

    envolvido de subjetividade em um determinado espao de enunciao (GUIMARES, 2005, p.18). Esse processo

    reatualizado por uma memria discursiva, sendo que tanto a professora como as alunas articulam isso de modo a fazer operar

    o seu desejo, ou seja, de modo a fazer operar um investimento subjetivo nesta posio. Sendo assim, o professor enuncia do

    lugar de algum que detm o conhecimento e possui autoridade para ensinar e, as alunas, por sua vez, enunciam de um

    espao de enunciao de quem busca esse conhecimento.

    A posio discursiva da professora refere-se ao fato de que ela, em uma determinada posio enunciativa, deve assujeitar-se e

    subjetivar-se quilo que est previsto discursivamente para que algum ocupe essa posio, ou seja, implica apostar no

    envolvimento da docente com as suas atividades, com responsabilidade com a formao das alunas. no se colocar numa

    posio de indiferena, mas assumir uma postura compromissada com o aprendizado das alunas.

  • 30

    que se sentiria instigado pelo desejo de saber, pelo desejo de ser o desejo do

    outro, e, assim, seguir em busca do que lhe falta. (CORACINI, 2010,

    p.46),

    A partir dessa perspectiva, o parecer apresentado pela instituio, em relao s

    alunas, caracteriza-se como uma expectativa de homogeneizao do processo de ensino-

    aprendizagem da escrita, porque considera que todas as crianas desenvolvem esse processo

    no mesmo ritmo e que possuem as mesmas vivncias. Essa viso de que as crianas aprendem

    de forma homognea cristaliza-se justamente porque o corpo pedaggico da escola, incluindo

    os professores, ao fazer a leitura das leis e documentos oficiais sobre incluso, privilegiou

    uma leitura que desconsiderou a singularidade o de cada um. Segundo Mrech (2005, p. 25),

    em favor de um Todo,

    Pensar em uma Educao para o sujeito no a mesma coisa que pensar em

    uma Educao para Todos. O Todos no diz respeito a cada um. O Todos

    da ordem de um modelo moderno de Educao, que privilegia o social da

    categoria e no a especificidade de cada aluno.

    Esses profissionais, ao no enfrentarem o fato de que as duas alunas participantes

    desta pesquisa, Luza e Mariana, tm um desenvolvimento e um ritmo que lhes so prprios,

    particulares, abrem uma brecha para se afastarem da possibilidade de fazer uma diferena

    nesse espao da escola, tratando as alunas como Todos e possibilitando que isso seja visto no

    tratamento dado ao ensino da escrita. Por isso, assumi a postura de intervir no processo de

    escrita dessas alunas, apostando na premissa da singularidade, pois justamente por esse

    percurso que h, a meu ver, a possibilidade de resultados outros, uma vez que questiono a

    noo de incluso da escola e entro no universo de singularidade das alunas.

    Para desenvolver esta pesquisa, neste estudo estabeleo uma interface entre a Anlise

    do Discurso, a Teoria da Enunciao e a Psicanlise, com a finalidade de discutir as

    implicaes dai advindas para o processo de ensino da escrita, ao assumir que esses trs

    campos tericos esto perpassados fortemente por um sujeito efeito de linguagem. Segundo

    Kupfer (2007, p. 123-124),

    [...] a principal dificuldade na apreenso da noo de sujeito reside no fato

    de que ela, em muitos textos, acaba por confundir-se com a noo cartesiana,

    na qual o sujeito fundamentalmente agente de seu prprio discurso e est

    centrado em seu prprio eixo. Para a psicanlise lacaniana, o sujeito no se

    confunde com o ego ou, se quiserem, com o eu. No responde lgica ou ao

    tempo da conscincia, no se faz regular pelo princpio da realidade. Este

    sujeito no coincide com o sujeito do cogito da filosofia cartesiana,

    tampouco com o sujeito-organismo de Piaget. Para a psicanlise, o sujeito do

  • 31

    inconsciente se constitui na e pela linguagem. Desta perspectiva, a

    linguagem no instrumento de comunicao, mas a trama mesmo de que

    feito o sujeito. Tal formao aparece de modo evanescente, nos interstcios

    das palavras, como produto do encontro entre elas. Como a fasca que surge

    quando duas pedras se chocam, no est nem em uma nem em outra.

    Tomando como base esses pressupostos, a noo de escrita para o desenvolvimento

    desta pesquisa, por sua vez, est fortemente vinculada noo de processo de trabalho de

    escrita, conceito este elaborado por Riolfi (2003, p. 47) em sua pesquisa em educao. Para a

    elaborao desse conceito, Riolfi (op.cit.) d vazo noo de sujeito do inconsciente e

    argumenta que existe uma especificidade no trabalho de escrita que faz com que ele se torne

    radicalmente diferente das demais atividades lingusticas, porque

    [...] o sujeito quem trabalha efetuando deliberadamente diversas operaes

    discursivas para a construo de uma ficcionalizao, atravs da qual o

    processo de construo do texto escrito fica escondido e velado para o leitor.

    a escrita que, uma vez depositada grosseiramente no suporte, trabalha no

    sujeito, fazendo com que ele mude de posio com relao ao prprio texto e

    possa, sobre ele, exercer um trabalho (RIOLFI, 2003, p. 47).

    Esse conceito desenvolvido por Riolfi (op.cit.) fundamental para o desenvolvimento

    de minha pesquisa, visto que um dos focos de minhas investigaes so os deslocamentos

    enunciativos, marcados textualmente na escrita das alunas ao longo dos dois anos de

    acompanhamento. Observei esses deslocamentos pelos diferentes encaminhamentos dados

    pelas alunas ao processo de trabalho de escrita por meio da escrita e (re)escrita dos textos,

    aps minhas intervenes.

    Conforme dito anteriormente, a palavra interveno est sendo aqui usada para nomear

    a tomada de posio de um professor que se constitui, diferentemente, em uma posio

    enunciativa e discursiva de professor. Essa tomada de posio incide no processo de trabalho

    de escrita, tanto no que se refere s correes indicativas marcadas no texto, quanto na

    relao intersubjetiva estabelecida entre professor e aluno.

    Com o olhar voltado para esse conceito de trabalho de escrita, percebi que as alunas

    puderam aprender a escrever e aprender ao escrever. Esse postulado me autoriza a trazer

    para as minhas argumentaes o que Andrade (2008, p.4) considera a faceta pedaggica da

    escrita. Para essa autora, a escrita ocupa um lugar privilegiado no ensino ao proporcionar a

    possibilidade de os alunos serem formados e transformados ao serem submetidos aos efeitos

    da linguagem em si mesmo. Nesse vis, Andrade defende que a escrita pode ser um

    dispositivo a partir do qual uma pessoa aprende. O fato de trabalhar com esse pressuposto,

    isto , de que a escrita ensina, permitiu-me considerar as alunas participantes desta pesquisa,

  • 32

    Luza e Mariana, como scriptors, termo utilizado por Calil (2008, p. 20) para apresentar suas

    pesquisas sobre os manuscritos escolares. Segundo ele,

    [...] O termo scriptor, e no escrevente, procurar, por um lado, evitar o sentido atestado no dicionrio eletrnico Houaiss (2001): diz-se de ou aquele que, por profisso, copia o que o outro escreveu ou dita; escriturrio,

    copista; por outro, manter o termo consagrado nos estudos sobre processos de escritura e criao, em que no se tem um escritor senhor de sua escritura, mas sim um sujeito dividido, cindido, muitas vezes refm daquilo

    que escreve. Assumirei ainda que o texto , para o scriptor, um espao em

    que se funde aquele que escreve e aquele que l, enredado por foras de diferentes ordens (lingusticas, discursivas, culturais, histricas) que

    convergem no texto produzindo-o.

    Esses conceitos os quais mencionei acima so fundamentais para este trabalho,

    porque, no caso desta pesquisa, a investigao tendo como suporte o texto manuscrito das

    alunas, possibilitou-me desconstruir um parecer que as nomeava, e imputando-lhes o

    rtulo de alunas que apresentavam dificuldades de aprendizagem.

    Tendo em foco as consideraes acima, com o intuito de compreender os movimentos

    ocorridos no trabalho de escrita das alunas, defendo a tese de que as discursividades

    engendradas com base nos discursos de uma educao inclusiva podem afetar a constituio

    da subjetividade dos agentes escolares e trazer implicaes para o processo de ensino-

    aprendizagem da escrita. Por isso, considerando o papel que o parecer exerce na perspectiva

    das polticas de incluso, avento a seguinte hiptese: o professor, uma vez implicado

    fortemente com a questo da subjetividade daquele que escreve - scriptor (CALIL, 2008,

    p.64), pode suscitar, nesse caso especfico, deslocamentos na relao das alunas com a escrita

    que, de certo modo, coloca em questo a perspectiva do parecer que se pretende to

    categrico.

    Entendendo que o processo de ensino-aprendizagem da escrita de ordem subjetiva,

    procuro responder s seguintes perguntas: a) Que efeitos as discursividades engendradas, a

    partir dos discursos produzidos pelo dizer das leis sobre a incluso, podem provocar

    naqueles que so responsveis na escola por esse processo de incluso? E, em decorrncia,

    no tratamento dado aos alunos com dificuldades de aprendizagem? b) Baseando-se nas

    intervenes feitas no processo de escrita dos textos das alunas, em diversos momentos, h

    indcios de uma relao diferente com a escrita?

    Tomando como base essas perguntas, desenvolvo esta pesquisa perseguindo o objetivo

    geral de considerar que, por meio deste estudo, seja possvel a construo de novos sentidos

    para o processo de incluso nas prticas escolares do ensino - aprendizagem da escrita. Por

  • 33

    sua vez, os objetivos especficos que norteiam a minha discusso procuram: a) compreender

    como as discursividades, engendradas a partir dos dizeres sobre a incluso, afetam o

    processo de produo escrita das alunas; b) mostrar os efeitos que as intervenes feitas pela

    professora, enfatizando como essas intervenes possibilitaram o movimento das alunas com

    seu processo de escrita, as quais haviam recebido um parecer de alunas com dificuldades

    de aprendizagem.

    Organizei a escrita da tese em duas partes e seis captulos. A primeira parte compe-

    se de quatro captulos. No primeiro Captulo, intitulado O discurso e seus efeitos, discuto as

    implicaes advindas dos efeitos das discursividades disseminadas a partir dos discursos de

    uma educao inclusiva. Efeitos esses que podem trazer implicaes para o processo de

    ensino-aprendizagem da escrita. Inicialmente, fao uma contextualizao histrica e social em

    que foram elaboradas as leis que orientam a perspectiva de uma educao inclusiva. Em

    seguida, busco apresentar revises tericas da Anlise de Discurso Francesa, tal como teoriza

    Pcheux, dando relevncia terceira fase de sua teorizao - o discurso como estrutura e

    acontecimento. Aps essa explanao terica, coloco em causa a transparncia da lngua e

    apresento os conceitos que foram sendo discursivizados ao longo dos anos, no Brasil e no

    mundo, tomando como base o dizer das leis sobre a incluso escolar. Apresentei tambm

    anlises de alguns enunciados das leis, apresentando possibilidades de interpretao que

    podem engendrar discursividades as quais possibilitam afetar aqueles que so responsveis

    pelo processo de incluso.

    Finalizando o captulo, coloco em foco o dizer dos agentes escolares que fazem parte

    do corpo docente da escola em que a pesquisa foi realizada, apresentando como esses

    profissionais subjetivaram as discursividades engendradas, tendo como foco o dizer das leis

    que sustentam o processo de uma Educao Inclusiva. A partir das anlises das entrevistas,

    percebi que o conceito de incluso, que disseminado na escola, o de incluso referente

    deficincia e necessidade de educao especial. De acordo com esse conceito, considera-se

    as dificuldades individuais que se apresentam para cada estudante, durante o seu percurso

    escolar, pelas mais diversas razes, desde a deficincia mental ou fsica, at as dificuldades

    que todos encontram em seu percurso de vida.

    No segundo Captulo, intitulado Espao escolar e construo de procedimentos de

    anlise, fao uma descrio da escola na qual se realizou a pesquisa, descrevendo sua

    estrutura, corpo docente e funcionamento dirio. Fao uma descrio detalhada da natureza da

    pesquisa e da construo do corpus, inclusive, discorrendo sobre a perspectiva terica

  • 34

    segundo a qual os textos foram produzidos e tambm apresento o perfil das participantes da

    pesquisa.

    No terceiro Captulo, intitulado Lingustica e escrita, apresento os conceitos de

    linguagem, de lngua e de escrita que podem servir como ponto de partida para a anlise no

    trabalho feito com as alunas. Para tal fim, neste captulo, trato desses conceitos tal como so

    teorizados pela Lingustica na viso de Saussure (1972). Em seguida, fao algumas reflexes

    sobre o ensino da escrita tomando como base a minha prtica como professora de Lngua

    Portuguesa de uma escola pblica do Ensino Fundamental.

    No quarto Captulo, Escrita e subjetividade apresento o recorte conceitual que tomo

    como base para pensar e analisar a situao especfica de sala de aula, qual seja: a relao

    professor-aluno e a produo de textos escritos. Inicialmente, exponho a teorizao de

    Benveniste, apontando os indcios de que o sujeito pensado por ele no se elenca na

    perspectiva de sujeito logocntrico. Em seguida, discorro acerca das noes de sujeito e

    de transferncia na viso da Psicanlise freudo-lacaniana e aponto as possveis interseces

    com a intersubjetividade que, segundo Benveniste, o que torna possvel a enunciao

    lingustica.

    Na segunda parte da tese, intitulada A lgica que subjaz a construo lingustico-

    discursiva dos textos de Luza e Mariana, est organizada em dois captulos. No quinto

    Captulo, O percurso de escrita de Luza: um trao de singularidade, o desenvolvimento das

    anlises ocorreu em dois momentos. No primeiro ano de acompanhamento, analiso o

    desenvolvimento do trabalho de escrita da aluna sob minhas intervenes, inclusive, so

    analisados os textos aps a reescrita. Para isso, discuto o funcionamento lingustico discursivo

    do gnero textual produzido, apontando as estratgias utilizadas por ela para estabelecer a

    coerncia ao desenvolver em seu texto os aspectos discursivos, textuais e estruturais.

    Paralelamente a essa discusso, problematizo os erros cometidos pela aluna em relao aos

    aspectos normativos: ortografia, pontuao, concordncia verbal e nominal, enfatizando a

    importncia de entender que [...] fundamental considerar o princpio de diferencial

    constitutivo do funcionamento da lngua (CALIL, 2007, p. 91).

    No segundo momento de anlise, Outro momento de produo: outra enunciao, as

    anlises baseiam-se nos textos produzidos pela aluna no segundo ano de acompanhamento.

    Nesse momento, tomei como objeto de anlise a primeira verso dos textos produzidos, sem

    levar em considerao a reescrita, com o propsito de investigar os possveis deslocamentos

    enunciativos que podem ter ocorrido no processo de trabalho de escrita de Luza.

  • 35

    No sexto Captulo, O percurso de escrita de Mariana, as anlises foram desenvolvidas

    tambm em dois momentos. No primeiro momento, A escrita de Mariana: um percurso

    imprevisvel, analisei os textos do primeiro ano de acompanhamento de Mariana, levando em

    considerao a reescrita dos textos, e, no segundo momento, Um possvel deslocamento frente

    escrita, as anlises privilegiaram a primeira verso dos textos sem levar em considerao a

    reescrita. Os procedimentos de anlise dos textos de Mariana seguiram os mesmos

    procedimentos utilizados para a anlise dos textos de Luza.

    Nesse momento, convido o leitor a entrar no meu universo de escrita e percorrer

    comigo as trilhas da escrita de Luza e Mariana, enfrentando, inclusive, os labirintos tericos

    que alinhavam e entrelaam os recursos lingusticos, razo pela qual, elas perderam o controle

    dos fios da escrita.

  • 36

  • 37

    Parte I

    _________________________________

    Anlise do discurso, Teoria da Enunciao

    e Psicanlise: uma interface.

  • 38

  • 39

    Captulo 1

    O Discurso e seus efeitos

    A palavra meu domnio sobre o mundo Clarice Lispector

  • 40

  • 41

    1. O DISCURSO E SEUS EFEITOS

    Neste captulo, discorro sobre o desenvolvimento terico da Anlise de Discurso

    Francesa. Esse campo terico o que me autoriza a discusso realizada, a partir do meu

    objeto de anlise, em funo da maneira como a Anlise de Discurso prope a articulao

    entre lngua, sujeito e histria. Na introduo, argumentei que a interpretao dada ao dizer

    das leis que regulamentam a educao inclusiva gera discursividades as quais podem

    acarretar implicaes para o processo de ensino-aprendizagem da escrita, visto que essas

    discursividades provocam efeitos na constituio da subjetividade dos docentes da escola.

    Primeiramente, tomando como base a viso metodolgica dos estudos foucaultianos,

    problematizo os discursos que veiculam nas escolas sobre uma educao inclusiva e os

    efeitos desses discursos no processo de subjetivao docente. Em seguida, busco sinalizar um

    espao de produo de sentido que propiciou a produo de discursividades, tomando como

    base a Anlise do Discurso Francesa, tal como teoriza Pcheux, dando relevncia terceira

    fase de sua teorizao, o discurso como estrutura e como acontecimento e as interseces

    possveis com os fundamentos de Foucault sobre o discurso, especificamente, ao que se refere

    constituio da subjetividade, da verdade e do poder-saber.

    1.1 Os Discursos da Incluso: Uma Contextualizao

    O termo incluso escolar comeou a ser discursivizado nas escolas, fundamentado

    nos princpios de uma educao inclusiva. A discusso e a elaborao das leis que orientam

    essa perspectiva de escola aconteceram em meio a um contexto histrico e social de uma

    poltica neoliberal. Embora ainda sejam realizadas vrias pesquisas e publicaes que versam

    sobre essa temtica, parece que j se exauriram todas as possibilidades de anlises.

    No entanto, entendo que ainda seja produtivo problematizar tal temtica,

    especialmente, porque, na presente tese, no pretendo desenvolver uma apologia em favor de

    uma escola inclusiva, exaltando os seus benefcios para a sociedade. Tampouco, pretendo

    aqui apresentar crticas negativas em relao s prticas desenvolvidas nas escolas sob o vis

    das polticas de incluso. A minha problematizao est focada em compreender os efeitos

    dos discursos sobre as leis de uma educao inclusiva para os docentes que esto

    envolvidos com o ensino da escrita.

    Lopes (2009, p.154) faz um estudo a partir de anlises polticas de assistncia e de

    educao, problematizando a excluso via polticas de incluso social. Ela desenvolve o seu

  • 42

    estudo, tomando a incluso como prtica poltica de governamentalidade. Tomando como

    base o referencial terico foucaultiano, tais como os cursos: Segurana, Territrio, Populao

    e Nascimento da Biopoltica que Michel Foucault ministrou no collge de France, a

    pesquisadora articula tcnicas de sujeio e subjetivao com conceitos de incluso",

    excluso, norma, normalizao, (neo)liberalismo e governamentabilidade e argumenta que

    incluso e excluso esto inscritos no jogo econmico de inveno de um estado

    neoliberal. Na perspectiva de Foucault (2004, p. 242) , a incluso um objeto do discurso,

    que ele define como

    [...] conjunto das prticas discursivas e no discursivas que faz alguma coisa

    entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o

    pensamento (seja sob a forma da reflexo moral, do conhecimento cientfico,

    da anlise poltica, etc.).

    Gomes (2004, p. 44), em sua leitura de Foucault, argumenta que as condies

    histricas sob as quais o objeto do discurso imiscui-se so fundamentais para que se possa

    dizer alguma coisa e a partir dele vrias pessoas possam dizer coisas diferentes para que se

    possa estabelecer com ele, objeto do discurso, relaes de semelhana, de vizinhana,

    afastamento, diferena e transformao.

    Como objeto do discurso, esse movimento da educao inclusiva emergiu em meio

    aos reflexos de uma poltica educativa, perpassada por um pensamento neoliberal. O

    neoliberalismo uma corrente de pensamento conservador que, na perspectiva social, volta

    aos antigos valores que idealizam instituies, como a famlia e a religio. Na perspectiva

    econmica, implementa uma poltica que se harmoniza com uma conjuntura de crise e com os

    postulados do Fundo Monetrio Internacional, ou seja, um regresso aos postulados do

    capitalismo liberal.

    No campo educacional, esta poltica efetiva-se por meio de uma real reduo do

    oramento para a educao, pois a ideia produzir mais por menos. Barriga (2002, p. 53)

    afirma que os fundamentos conceituais do neoliberalismo:

    [...] so expressos atravs de noes como: qualidade da educao, eficincia

    e eficcia do sistema educativo, maior vinculao entre sistema escolar

    (entenda-se currculo) e sociais, entenda-se modernizao e/ou reconverso

    industrial.

    Para a lgica neoliberal, a situao catica em que se encontra o sistema educacional

    considerada uma consequncia da m administrao e do desperdcio dos recursos financeiros

  • 43

    por parte dos rgos pblicos, porque os professores e gestores educacionais no estudam e,

    consequentemente, os mtodos de ensino so considerados atrasados e obsoletos, e os

    currculos inadequados. Silva (2001, p.19) faz uma crtica a essa constatao, ponderando

    que:

    [...] dado um tal diagnstico natural que se prescrevam solues que lhe

    correspondam. Tudo se reduz, nessa soluo, a uma questo de melhor

    gesto e administrao e de reforma de mtodos de ensino e contedos

    curriculares inadequados. Para problemas tcnicos, solues tcnicas, ou

    melhor, solues polticas traduzidas como tcnicas (tal como a privatizao,

    por exemplo). nesse raciocnio que se insere o discurso sobre a qualidade e

    sobre a gerncia da qualidade total.

    Silva (op.cit.) observa que h uma dificuldade em se discordar da descrio do quadro

    educacional na perspectiva do discurso neoliberal. Torna-se mais difcil ainda discordar de

    uma proposta de mais qualidade, sobretudo, quando essa qualidade anunciada como

    total. Por outro lado, o que o discurso neoliberal em educao ofusca o carter poltico,

    presente na educao pblica do pas.

    Nesse sentido, Amarante (1998, p. 269) analisa o cenrio scio-histrico desse

    perodo, apontando que:

    [...] aps o perodo da ditadura militar, a emergncia de discursos centrados

    no Estado desperdiador como responsvel pelo quadro de crise em todos os

    mbitos da vida nacional propiciou a instalao de governos neoliberais,

    cujo discurso de mudanas apregoava as vantagens do Estado mnimo e a

    eficincia dos setores privados. Nesse cenrio, consideramos que, durante o

    governo Collor, a hiperinflao vem a ser a fora motriz de nova investida

    neoliberal que culmina com a eleio de Fernando Henrique Cardoso,

    legitimando, por fora de sua autoridade intelectual e acadmica, um projeto

    neoliberal que aponta a estabilidade econmica globalizada como os

    caminhos para a democratizao poltico-social. Apontamos, ainda, que o

    quadro que ento se apresenta de exacerbamento das desigualdades sociais,

    conduzindo ao individualismo possessivo.

    Dessa forma, uso do recurso da memria discursiva5 para trazer para as minhas

    discusses a histria do papel que a educao inclusiva cumpre na sociedade e na escola.

    5 Memria discursiva so todos os dizeres enunciados antes, e em outro lugar a respeito do objeto do discurso, e

    todos os no ditos tambm (PCHEUX, 1983).

  • 44

    Edler (2004, p. 20) destaca o papel de relevncia que a educao exerce na sociedade,

    considerando-se que esta possui uma grande capacidade de influncia sobre os homens. Por

    isso,

    [...] revisitando as correntes tericas, a primeira constatao a de que as

    ideias que se tm cunhado sobre educao refletem o momento histrico da

    prpria sociedade, bem como a filiao filosfica dos pensadores. Estes,

    geralmente, traduzem em seus escritos o modelo de homem ideal vigente, cabendo educao concretiz-lo.

    Em virtude disso, o movimento das polticas de educao inclusiva organizou-se em

    meio a um ideal de resgate histrico do igual direito de todos a uma educao de qualidade.

    Os princpios da educao inclusiva comearam a veicular, a partir da Conferncia Mundial

    sobre as Necessidades Educativas Especiais: acesso e qualidade; e foram reiterados no Frum

    Mundial de Educao e apoiados pelas Regras Bsicas das Naes Unidas em Igualdade de

    Oportunidades para pessoas Portadoras de Deficincia.

    Esse princpio foi discutido novamente em novembro de 2008, durante a 48

    Conferncia Internacional de Educao em Genebra. A educao inclusiva de qualidade se

    baseia no direito de todos crianas, jovens e adultos a receberem uma educao

    (DIFOURNY, 2009, p. 6). O documento internacional mais importante na rea de educao

    especial - Declarao de Salamanca - defende que as escolas regulares orientadas por uma

    educao inclusiva [...] constituem o meio mais eficaz de combater atitudes

    discriminatrias, construindo uma sociedade inclusiva e atingindo educao para todos

    (AINSCOW, 2009, p.12).

    A incluso, como educao para todos, foi um movimento institudo em 1990, sob a

    coordenao, principalmente, da UNESCO. Tinha como finalidade gerir um conjunto de

    polticas educacionais, preocupadas com o acesso de crianas, jovens e adultos de todo o

    mundo, s escolas. Esse movimento ganhou fora, por meio de duas grandes conferncias

    internacionais, realizadas em Jontiem, em 1990, e em Dacar, em 2000 (UNESCO, 2000).

    Segundo Aisncow (2009, op.cit.), muitas pessoas envolvidas nesse movimento

    concebiam a educao como instruo e se preocupavam em refletir sobre algumas regies

    mais pobres do mundo, com o propsito de pensar a escola como um entre vrios outros

    meios de oferecer educao para as comunidades. Os organizadores dessa conferncia,

    preocupados com o fracasso de muitos pases em atingir os objetivos, institudos uma dcada

  • 45

    antes, chamaram a ateno para o grande nmero de meninas a quem foram negadas

    oportunidades educacionais no mundo todo, embora fossem apontados alguns avanos no

    sentido de se oferecer um sistema educacional inclusivo, que atendesse a todas as crianas,

    inclusive, as pessoas com deficincia. Isso s veio a ser institudo na Declarao de

    Salamanca.

    A Declarao de Salamanca foi um evento que contou com a participao de noventa e

    dois governos e de vinte e cinco organizaes internacionais. Essa Declarao reitera e

    enfatiza a importncia de se orientar uma Educao para Todos com o objetivo de atender aos

    grupos minoritrios, mas o fio condutor que alinhava esse documento o acesso de crianas,

    jovens e adultos, considerados pessoas com necessidades educativas especiais, educao.

    Por esse motivo, os princpios dessa Declarao orientam que as escolas devem possibilitar as

    condies necessrias para que todos os indivduos, independentemente de suas dificuldades

    ou diferenas, aprendam no mesmo espao. Conforme enuncia o excerto abaixo:

    [...] as escolas integradoras devem reconhecer as diferentes necessidades de

    seus alunos e a eles atender, como tambm devem adaptar-se aos diferentes

    estilos e ritmos de aprendizagem assegurando a elas um ensino de qualidade

    por meio de um adequado programa de estudos, de boa organizao escolar,

    criteriosa utilizao dos recursos e entrosamento de suas comunidades [...]

    (UNESCO, 1994, p.23).

    O discurso que perpassa esses documentos sugere que as escolas regulares, com a

    orientao voltada para a incluso, passem a representar [...] o meio mais eficaz de

    combater atitudes discriminatrias, de criar comunidades acolhedoras, construir uma

    sociedade integradora e dar educao para todos (UNESCO, 1990, p.10).

    Nessa perspectiva, parece-nos poder dizer que o fracasso ou o sucesso do aluno de

    inteira responsabilidade da escola se ela oferecer todo esse ambiente para o aluno. A esse

    respeito, Carmo (2001, p.45), ao no concordar com essa viso, faz a seguinte ponderao.

    interessante ressaltar que a equidade de oportunidades como forma de

    igualar os desiguais remete para o indivduo toda a responsabilidade de seu

    xito ou fracasso, isentando mais uma vez, a escola e as polticas pblicas de

    qualquer responsabilidade pelo fracasso e a disseminao dos mecanismos

    de excluso social.

    A citao acima faz uma crtica importante no que se refere ao processo de incluso,

    porque o parecer de alunas com dificuldades de aprendizagem que foi imputado a Luza e

    Mariana enderea a elas a responsabilidade do xito e do fracasso.

  • 46

    1.2 Contextualizao Terica: O Discurso como Acontecimento

    Tendo em vista as consideraes acima, a respeito da contextualizao poltica e ou

    histrica em que foram construdas as leis que direcionam o processo de incluso, ancorada

    nas bases tericas da Anlise do Discurso de linha francesa, terceira poca, busco apontar

    indcios de algumas regularidades enunciativas que foram marcadas por discursividades

    construdas com base no dizer das leis. As implicaes advindas desse posicionamento

    terico para o pesquisador esto relacionadas responsabilidade de uma anlise que no seja

    fundamentada apenas em uma suposta descrio e, tambm, na impossibilidade de uma

    interpretao definitiva.

    Tendo em vista que as discursividades so construdas discursivamente, para a

    compreenso de como esse processo foi subjetivado no espao escolar, busco as bases

    tericas em que Pcheux ( [1983], 2006) fundamentou-se para elaborar sua teoria, do discurso

    como acontecimento.

    Parafraseando Gregolin (2004, p.60-61), a teoria da Anlise do Discurso Francesa,

    cuja epistemologia de base marxista, foi desenvolvida em trs perodos os quais Pcheux (

    [1983], 2006) denominou de trs pocas da anlise do discurso. O quadro epistemolgico

    ao qual Pcheux e Fuchs ( [1975], 2010) recorreram para propor um dilogo entre a

    Lingustica e a Teoria do Discurso articulou trs regies do conhecimento cientfico: a) o

    materialismo histrico, como teoria das formaes sociais e de suas transformaes, incluindo

    a ideologia; b) a lingustica, como teoria dos mecanismos sintticos e dos processos de

    enunciao; c) a teoria do discurso, como teoria da determinao histrica dos processos

    semnticos. O mais importante dessa articulao a reflexo dos autores sobre o fato de

    esses trs campos tericos serem atravessados e articulados por uma teoria da subjetividade de

    cunho psicanaltica.

    As trs pocas da Anlise do Discurso foram perpassadas por controvrsias, advindas

    das implicaes ocorridas em funo das articulaes entre discurso, lngua, sujeito e

    histria. As discusses de Pcheux sobre o discurso iniciaram-se por meio de dois textos cuja

    autoria foi assumida pelo seu pseudnimo, Thomas Herbert (1966; 1968). Esses textos

    abordam questes da epistemologia das cincias sociais e de uma teoria geral das ideologias.

    O ltimo, intitulado, Em torno de Observaes para uma Teoria Geral das Ideologias, tinha

    como objetivo:

  • 47

    [...] apontar alguns elementos formulados que constituem o fundamento da

    Anlise do Discurso que o autor institui, a partir de 1969. Essa disciplina se

    inscreve no contexto da crtica antipositivista que caracterizou as cincias

    humanas no sculo XX, impulsionada pelos trabalhos da trilogia

    Marx/Freud/Saussure. Ao mobilizar os conceitos de ideologia e inconsciente

    para repensar a lngua saussuriana, Pcheux formula um novo objeto, o

    discurso, e coloca questes relevantes tanto para a Lingustica como para as

    cincias sociais (RODRIGUEZ-ALCAL, 2005, p.15).

    A primeira poca da Anlise do Discurso originou-se de uma proposta terico-

    metodolgica, marcada pelo livro Analyse Automatique Du Discours (2010) em que Pcheux

    faz a leitura de Saussure (1996), colocando o sistema da lngua e seu carter social como a

    base do funcionamento discursivo, envolvendo tambm o sujeito e a histria: na [...]

    concepo do objeto discurso, cruzam-se Saussure (relido por Pcheux), Marx (relido por

    Althusser) e Freud (relido por Lacan) (GREGOLIN, 2004, p.61). Com base nas teses

    althusserianas sobre os aparelhos ideolgicos e o assujeitamento, o sujeito tinha a iluso de

    que falava por si mesmo, mas era assujeitado por uma maquinaria. Portanto, quem falava

    eram as instituies, tais como: a igreja, a teoria da cincia, as comunidades polticas e sociais

    que defendiam uma determinada ideologia. Nesse sentido, os discursos eram produzidos por

    uma mquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-

    estrutura determina os sujeitos produtores de seus discursos (PCHEUX, 1990, p. 311).

    A crtica feita por Pcheux ([1983], 2006), em relao ao princpio metodolgico

    adotado na anlise automtica, pautou-se nas consequncias advindas de se assumir esse

    posicionamento terico, ao vislumbrar que as anlises realizadas na primeira poca no

    passavam de parfrases de enunciados que se repetiam. Reagindo a essa perspectiva, inicia-se

    o que foi chamado de segunda poca. poca esta em que se apostou na insero das

    heterogeneidades e do Outro nos processos discursivos. Entendendo que os discursos so

    constitudos heterogeneamente por outros discursos que lhes so exteriores, h uma

    impossibilidade de afirmar a respeito do possvel incio e fim de um discurso, porque sempre

    haver outro discurso j-dito, ou seja, todo discurso constitui-se por vrios outros.

    Essa noo de que os discursos so constitudos pela sua exterioridade que lhe

    constitutiva o que Pcheux (1997, p.167) define como interdiscurso. Esse interdiscurso o

    recorte discursivo que viabiliza todo dizer e que emerge por meio do pr-construdo, o j-

    dito. Ele influencia na maneira como o dizer significa em um referido lugar discursivo. Em

    virtude disso, o interdiscurso no reduz o dizer s suas determinaes histricas, porque est

  • 48

    sempre apresentando situaes e significaes novas, produzir sentidos outros que no

    estejam atrelados apenas s condies histricas de produo do discurso.

    No artigo escrito com Fuchs ( [1975], 2010), Pcheux faz um reposicionamento das

    anlises entre lngua, discurso, ideologia e sujeito, fazendo outra leitura das formaes

    discursivas, ao formular a teoria dos esquecimentos - nmero um e nmero dois (PCHEUX

    2010, p. 176-177). O falante pode e deve se inscrever na zona do esquecimento nmero dois,

    uma vez que ele usa de estratgias discursivas para estabelecer

    [...] um retorno de seu discurso sobre si, uma antecipao de seu efeito, e

    pela considerao da defasagem que a introduz o discurso de um outro. Na

    medida em que o sujeito se corrige para explicitar a si prprio, o que disse,

    para aprofundar o que pensa e formul-lo mais adequadamente, pode-se dizer que esta zona n 2, que a dos processos de enunciao, se caracteriza

    por um funcionamento do tipo pr-consciente/consciente (PCHEUX;

    FUCHS, 2010, p.176).

    J o esquecimento nmero um o oposto, uma zona em que no h acessibilidade do

    sujeito, por isso

    [...] aparece como constitutivo da subjetividade de lngua. Desta maneira,

    pode-se adiantar que este recalque (tendo ao mesmo tempo como objeto o

    prprio processo discursivo e o interdiscurso, ao qual ele se articula por

    relaes de contradio, de submisso ou de usurpao) de natureza

    inconsciente, no sentido em que a ideologia constitutivamente inconsciente

    dela mesma ( e no somente distrada, escapando incessantemente a si

    mesma...) (PCHEUX; FUCHS, 2010, p.177).

    Sob a tutela da interpelao ideolgica, o falante tem a iluso de que a fonte de seu

    dizer. Por isso, ele se reveste pelas vozes que povoam o seu universo discursivo, por meio de

    diversificadas situaes discursivas, inscreve-se em outros discursos e lhes atribui sentidos

    outros. Alm dessa possibilidade, h ainda as prticas de silenciamento, apagamento e da

    denegao. Essas prticas possibilitam ao sujeito apagar os sentidos indesejveis e fazer

    emergir os sentidos que ele tem a iluso de ser capaz de produzir.

    No que se refere a esta tese, as alunas Luza e Mariana sofreram os efeitos das prticas

    de silenciamento. O fato de serem consideradas alunas com dificuldades de aprendizagem,

  • 49

    automaticamente, foram apagadas as possibilidades de construir outros sentidos para a relao

    delas com a escrita. Por isso, importante trazer para a discusso terica essas questes do

    silncio.

    Os silncios, para Orlandi (2002, p.105), no esto apenas relacionados ao no-dito,

    porque h silncio nas palavras, ou seja, o silncio para significar no precisa ser proferido, o

    silncio significa, ele no fala. A referida autora diferencia as manifestaes do silncio, em:

    silncio fundante e a poltica do silncio (silenciamento). O silncio fundante constitutivo

    de significao, j a poltica do silncio est relacionada ao fato de que, ao dizer o sujeito est,

    inevitavelmente, apagando outros sentidos.

    Os apagamentos evidenciam-se, tambm, por meio de uma denegao ou opacidade

    dos sentidos, ou seja, dependendo da formao discursiva e da situao de enunciao, os

    sentidos considerados, ilusoriamente, imprprios, so apagados. J, a denegao processa-se

    por meio de um dizer que se sustenta em um no-dito. Nesse sentido, Pcheux e Fuchs (

    [1975], 2010, p.177) alertam que no pretendem resolver a questo entre ideologia,

    inconsciente e discursividade, mas caracterizar o fato de que uma formao discursiva

    constituda, margeada pelo que lhe exterior e que no pode ser confundida com o espao

    subjetivo da enunciao.

    Pcheux ( [1975], 2010) acirra esse posicionamento, ao assumir uma teoria

    materialista do discurso, com a publicao do livro, Les Vrites de la Palice (1975).

    Motivado pelos processos ideolgicos, Pcheux (2009, p.81) reafirma a sua posio de que

    pela lngua, enquanto materialidade que os processos discursivos so elaborados. Nesse

    momento de sua elaborao terica, Pcheux articula alguns fundamentos de filosofia da

    linguagem, tomando como referncia algumas questes de base semntica as quais ele recorre

    para propor uma possibilidade de analisar o discurso. Essa elaborao terica pautou-se na

    interface entre Lgica, Lingustica e Teoria do Discurso, desencadeando a posio de que os

    processos discursivos esto circunscritos por uma relao ideolgica de classe, mas essas

    relaes so contraditrias.

    Isso significa dizer que os sentidos so construdos, a partir de uma posio discursiva,

    colocando em causa a transparncia da linguagem, porque nem sempre uma palavra ou um

    enunciado queiram dizer o que realmente dizem, porque os sentidos so produzidos a partir da

    interpretao que o sujeito faz de determinado enunciado. Como no h o entendimento

    claro sobre o processo de incluso, os discursos da incluso vo se materializar nas

    escolas das mais diversas formas. Essa tomada de posio mascara o que Pcheux ([1975],

  • 50

    2010) denomina de o carter material do sentido das palavras e dos enunciados. Sendo

    assim, sob a perspectiva desse argumento, Pcheux (2009, p.150) retoma o pensamento

    althusseriano, ao evocar a tese da interpelao ideolgica, partindo do princpio de que o

    efeito do assujeitamento acontecer de maneira nica para cada um, uma vez que a ideologia

    no tem um carter s de reproduo, mas opera tambm no sentido de transformar as

    relaes de produo. Pcheux ([1975], 2010), nesse momento de elaborao terica, retoma

    o conceito de formao discursiva, impingindo a ele outra leitura, luz da materialidade do

    discurso e do sentido, defendendo que [...] os indivduos so interpelados em sujeitos

    falantes (em sujeitos do seu discurso) pelas formaes discursivas que representam na

    linguagem as formaes ideolgicas que lhes so correspondentes (PCHEUX, 2009,

    p.148).

    Em um momento de crise da esquerda na Frana, Pcheux ( [1983], 2006) rompe com

    sua posio defendida at aquele momento e estabelece uma discusso, colocando em foco

    discurso, interpretao, estrutura e acontecimento. Nesse momento, inicia-se a terceira

    poca de sua elaborao terica. Evidentemente, que, at esse momento, Pcheux ( [1983],

    2006) no havia dado a relevncia necessria para a questo da equivocidade do sentido, na

    perspectiva das implicaes entre estrutura e acontecimento, tal como tratado no livro de

    (1983), intitulado, O discurso: estrutura ou acontecimento.

    Pcheux ( [1983], 2006), na elaborao da terceira poca de sua teorizao, dentre

    as possibilidades apontadas por ele para propor a reflexo do discurso como estrutura e

    acontecimento - tomar uma sequncia discursiva e problematiz-la ou tomar uma reflexo

    filosfica -, opta por fazer o entrecruzamento entre o acontecimento, a estrutura e a tenso

    entre a descrio e a interpretao existentes no interior da Anlise do discurso. O texto

    elaborado por Pcheux ( [1983], 2006 ) contempla um estudo que d realce ao acontecimento,

    conceituando-o como o encontro de uma atualidade e de uma memria, e ao estatuto das

    discursividades que o trabalha (LEITE, 1994, p.174).

    Pcheux ( [1983], 2006, p. 19), para problematizar a construo do discurso por meio

    de um acontecimento, desenvolve uma anlise tomando como base o enunciado On a gagn

    [ Ganhamos], situando-o no espao e no tempo: enunciado em Paris, 10 de maio de 1981;

    s 20 horas (hora local), anunciando a vitria do ento futuro presidente francs, Franois

    Mitterand. A partir desse enunciado, ele coloca em discusso o estatuto de espao, tempo e

    pessoa em uma determinada cena enunciativa. Pcheux desenvolveu a anlise desse

    enunciado, enfatizando a questo da equivocidade do enunciado, por meio da tenso entre

  • 51

    transparncia e opacidade, [...] referidas quer no plano de uma abordagem lxico-sinttica,

    vale dizer, da estrutura do enunciado, quer ao jogo metafrico que estabelece uma matriz

    determinada de leitura (LEITE, 1994, p.175).

    Pcheux ([1983], 2006) descreve como o enunciado Ganhamos ganha o estatuto de

    acontecimento na medida em que vai sendo discursivizado por meio do confronto discursivo6

    e sendo atualizado por meio da memria que lhe convocada. O autor segue dizendo que o

    confronto discursivo para esse acontecimento comeou bem antes do dia 10 de maio, por um

    grande trabalho de articulaes polticas de um lado e de outro do meio poltico, [...]

    tendendo a prefigurar discursivamente o acontecimento, e dar-lhe forma e figura, na

    esperana de apressar sua vinda... ou de impedi-la (PCHEUX, 2006, p.20). Esse

    esclarecimento no tira a opacidade do acontecimento, os enunciados relatam o mesmo

    fenmeno, mas no constroem as mesmas significaes.

    Leite (1994, p.171-174) pondera que tomar o discurso como estrutura e como

    acontecimento significa pensar para alm do fato de testemunhar os deslocamentos que j

    vinham ocorrendo no interior das anlises e construes tericas da Anlise do Discurso.

    Convoca a necessidade de pensar outro conceito de estrutura, uma vez que esse campo terico

    prope pensar o real no seu estatuto de contingncia. Alm de outro conceito de estrutura,

    necessrio se faz, ento, pensar que se essa tese enuncia a Anlise do Discurso como um

    referencial terico que d lugar interpretao, h a necessidade da incluso do sujeito do

    desejo inconsciente, que fora duplamente foracludo do percurso da Anlise do Discurso.

    Pcheux ([1983], 2006) mobiliza, dentro da perspectiva terica da Anlise do Discurso

    Francesa, as questes que acarretam maior implicao para viabilizar uma anlise como

    descrio e uma anlise como interpretao. A reflexo desencadeia-se em direo

    existncia do real, que constitutivo de uma disciplina que trata da interpretao, isto , h

    algo no interior de uma teoria sobre o discurso que desestabiliza o que no logicamente

    estvel. O que entra em voga nesse momento de elaborao de Pcheux ([1983], 2006)

    tomar partido de um real que prprio de uma disciplina de interpretao. H real, pontos

    de impossvel, determinando aquilo que pode no ser assim. (O real o impossvel... que

    seja de outro modo) (PCHEUX, 2006, p.29).

    O real prprio de uma disciplina de interpretao convoca uma viso de que

    o no - logicamente estvel no seja considerado a priori como um defeito um simples furo do real. Um real constitutivamente estranho univocidade

    6 Formas de circulao dos enunciados

  • 52

    lgica, e um saber que no se transmite, no se aprende no se ensina, e que,

    no entanto, existe produzindo efeitos" (PCHEUX, 2006, p. 43).

    Essa elaborao terica de Pcheux ([1983], 2006) pauta na primazia da descrio das

    materialidades discursivas, o que no deve ser confundido com a interpretao, embora haja

    um imbricamento entre os dois gestos. Ao se conceber a descrio, a partir das materialidades

    discursivas, implica admitir que h um real sobre o qual ela se instala: o real da lngua.

    Nesse momento, Pcheux faz remisso ao texto de Milner (78) L amour de la langue.

    Eu disse bem: a lngua. Isto , nem linguagem, nem fala, nem discurso, nem

    texto, nem interao conversacional, mas aquilo que colocado pelos

    linguistas como a condio de existncia (de princpio), sob a forma da

    existncia do simblico, no sentido de Jakobson e de Lacan (PCHEUX,

    2002, p. 50).

    Tomar a lngua nessa perspectiva significa entender que ela est exposta ao equvoco,

    partindo do pressuposto de que no h metalinguagem, as descries esto sensveis ao

    equvoco. Segundo Pcheux (2006, p. 53), todo enunciado linguisticamente descritvel

    como uma srie de pontos de deriva possveis, possibilitando, assim, um lugar para a

    interpretao. Sendo assim, nesse espao que pretende trabalhar a anlise do discurso.

    a partir desta perspectiva de lngua e discurso que encontro subsdios para

    problematizar os efeitos dos dizeres das leis que propem uma educao inclusiva, tomando

    como base as discursividades construdas em funo das materialidades discursivas dos

    documentos oficiais que defendem uma escola inclusiva.

    1.3 Algumas Regularidades Enunciativas: As Discursividades

    Trazendo essa teorizao para o contexto escolar, especificamente, no que se refere ao

    dizer das leis sobre a educao inclusiva, os conflitos gerados em escolas brasileiras e em

    escolas de todo mundo, no que diz respeito educao inclusiva, esto relacionados ao

    modo como cada agente escolar subjetiva as discursividades sobre os discursos da incluso.

    Para Ainscow (2009, p.12), pode [...] ser um avano tomar como base a ideia de que

    a incluso um conjunto de princpios. Em pesquisas realizadas no Brasil e em vrios

    outros pases, o pesquisador aponta alguns problemas enfrentados pelos rgos que

    administram o processo educacional. No que se refere a incluso de crianas com

  • 53

    deficincia e com dificuldades de aprendizagem nas escolas regulares, de acordo com as

    pesquisas realizadas, foi possvel verificar que a perspectiva de se tornar as escolas em

    espaos de uma educao inclusiva perpassou por vrios estgios. Nesse perodo, elas

    experimentaram diferentes maneiras de atender s crianas com deficincia e com

    dificuldades de aprendizagem.

    Para que esse processo fosse viabilizado, vrias alternativas foram desenvolvidas pelas

    escolas tanto no Brasil como em outros pases. Uma das alternativas utilizadas por algumas

    escolas foi a transplantao de prticas especiais para o ambiente comum (AINSCOW,

    2009, p. 12), assumindo, assim, uma perspectiva de escola especial dentro de uma escola

    regular e, como consequncia, acarretou a falta de mudanas organizacionais nas escolas.

    Outra consequncia, acarretada por essa perspectiva de educao inclusiva em

    escolas de muitos pases, foi o fato de que houve um aumento significativo do nmero de

    alunos que foram considerados especiais, resultando, assim, em um maior nmero de crianas

    que receberam o rtulo de deficientes. A hiptese mais provvel para esse aumento da

    proporo de crianas com deficincia estava relacionada ao fato de que as escolas

    receberiam mais verbas para poder atender a essa demanda. De acordo com Ainscow (op.cit),

    pesquisas realizadas por Fulcher (1989), tendo como objeto de anlise polticas de educao

    especial de pases como Austrlia, Escandinvia e Estados Unidos apontaram para o fato de

    que isso pode ter sido consequncia do que previa a legislao da educao especial desses

    pases: mais dinheiro para as escolas que atendessem um maior nmero de crianas especiais.

    Essas pesquisas apontam que, em funo dessas questes, o rtulo de crianas com

    necessidades educacionais especiais passou a ser observado com cautela por alguns

    pesquisadores. A insatisfao gerada em funo desse grande nmero de alunos, designados

    como crianas com necessidades especiais, causou algumas preocupaes. Alguns

    pesquisadores adotaram um ponto de vista mais criterioso para se referir forma como os

    estudantes passaram a ser designados como pessoas com necessidades especiais.

    Na viso de Ainscow (2009, p. 13-14), esse um processo social, portanto,

    caracteriza-se como um desafio. Ele argumenta [...] que o uso contnuo do que por vezes

    referido como modelo mdico de avaliao pelo qual as dificuldades educacionais so

    explicadas, somente em termos da deficincia da criana, traz algumas implicaes no que se

    refere ao desenvolvimento do processo de uma escola inclusiva, porque desvia a ateno de

    questes, como: por que as escolas falham ao ensinar com xito tantas crianas? Esse

  • 54

    questionamento possibilitou um debate que desencadeou em outro conceito de necessidades

    especiais.

    A partir dessa (re)conceptualizao, o foco no era mais a criana, mas, sim, a escola.

    As crticas passaram a ser direcionadas ao modelo de escola que era oferecido. A grande

    questo girava em torno de que as escolas deveriam ser reformadas e o projeto pedaggico

    reelaborado de forma a atender diversidade dos alunos