Vinicius Soares Lima

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OS KURAKAS ANDINOS NA OBRA DE FELIPE GUAMAN POMA DE AYALA Vinicius Soares Lima Universidade Estadual de Maringá Resumo: O objetivo deste artigo foi analisar como a figura dos líderes regionais andinos, os kurakas, está representada na obra Nueva Corónica y Buen Gobierno, de Felipe Guaman Poma de Ayala. O trabalho buscou, na historiografia, evidências que possam ajudar a entender as representações do período criadas pelo cronista, sem esquecer que essas representações, em si, jamais podem ser tomadas como a reprodução exata de uma realidade histórica. Nesse sentido, a pesquisa considerou o texto da crônica, a historiografia e textos relacionados ao tema da representação. O resultado permitiu entender melhor a relação daqueles homens com os dominadores espanhóis e seus súditos indígenas, todos inseridos na dinâmica de uma situação colonial. Palavras-chave: Kuraka; Peru Colonial; Colonização Espanhola; Andes. Financiamento: Fundação Araucária.

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OS KURAKAS ANDINOS NA OBRA DE FELIPE GUAMAN POMA DE AYALA

Vinicius Soares Lima Universidade Estadual de Maringá

Resumo:

O objetivo deste artigo foi analisar como a figura dos líderes regionais andinos, os kurakas, está representada na obra Nueva Corónica y Buen Gobierno, de Felipe Guaman Poma de Ayala. O trabalho buscou, na historiografia, evidências que possam ajudar a entender as representações do período criadas pelo cronista, sem esquecer que essas representações, em si, jamais podem ser tomadas como a reprodução exata de uma realidade histórica. Nesse sentido, a pesquisa considerou o texto da crônica, a historiografia e textos relacionados ao tema da representação. O resultado permitiu entender melhor a relação daqueles homens com os dominadores espanhóis e seus súditos indígenas, todos inseridos na dinâmica de uma situação colonial.

Palavras-chave:

Kuraka; Peru Colonial; Colonização Espanhola; Andes.

Financiamento:

Fundação Araucária.

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Introdução:

Em 1492, o Império Inca era o mais poderoso da América. Naquele ano, o império ocupava uma vasta região que ia do norte do Chile ao sul da Colômbia, compreendendo o Equador e a Bolívia. O poder do Imperador Inca era baseado em uma noção de missão divina e ele era visto como “o filho do Sol”. Seus súditos eram organizados através de um sistema decimal que aperfeiçoava o aproveitamento do potencial humano para trabalho e dever militar. Logo abaixo do Imperador Inca, uma elite era educada para governar desde a juventude (KONETZKE, 2000, cap. 1). A maior autoridade imediatamente abaixo da administração inca era a dos kurakas, os caciques andinos.

Devido às limitações de um projeto de iniciação científica, origem do presente artigo, não levarei em conta o período pré-colombiano, mas qual passou a ser o papel dos kurakas após a conquista espanhola do Império Inca. O termo kuraka vem do quéchua e admite traduções como “senhor”, “senhor do povo” e “aquele que tem a voz por todos” (SPALDING, 1974, p 35). Os kurakas eram os chefes do ayllu, o grupo de parentesco sobre o qual estavam estruturadas as sociedades andinas. Ao contrário do governador provincial Inca, o kuraka era um membro integrante do grupo sobre o qual exercia autoridade.

É importante ter em mente que o termo era usado para definir chefes de distintos níveis da hierarquia social dentro de um mesmo grupo, cuja totalidade era representada por um kuraka principal. Essa organização obedecia o típico sistema decimal sobre o qual se estruturava a sociedade andina. Os kurakas mais elevados eram os que comandavam os blocos de mil unidades familiares (ayllus). Essa unidade era conhecida como waranqa ou waranga. Logo abaixo, dois outros kurakas lideravam as duas subdivisões de quinhentas unidades cada. Em seguida, um kuraka para cada grupo de cem unidades dentro da mesma waranga, e assim por diante (AYALA, 1987, p. 793).

Este tema foi escolhido pois este grupo tinha importância fundamental nos níveis cultural e político para o exercício da dominação estrangeira na região. De fato, tanto os dominadores incas quanto os espanhóis sabiam que o acesso à mão-de-obra e obediência dos indígenas dependia diretamente dos kurakas. A função principal de um kuraka era representar a comunidade e zelar pelas normas sociais que regulavam as relações entre os membros da sociedade. Inclusive as relações de trabalho e troca. Por isso os conquistadores não podiam prescindir deste valioso grupo. Isso não significa que o papel dos kurakas tenha se mantido inalterado após a Conquista espanhola. A metrópole teve de reestruturar internamente as sociedades andinas (SPALDING, 1974). O período mais dramático dessa reestruturação foi o governo do vice-rei Francisdo de Toledo, como veremos abaixo.

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Atualmente, a historiografia tem reconhece o valor das fontes literárias, como as crônicas, para reconstruir o passado. (PORTUGAL, 2009, p. 28). A conquista espanhola gerou um grande corpo de trabalhos escritos desse tipo, que hoje estão disponíveis para a pesquisa. Estudiosos que não tiveram ainda acesso aos arquivos e registros eclesiais do Peru e da Europa podem então utilizar as crônicas para realizar pesquisas históricas relevantes. Por esses motivos, a fonte utilizada na pesquisa que gerou o presente artigo é uma crônica peruana do século XVII.

Essas crônicas podem ser classificadas em dois grupos. O primeiro, muito maior, é o conjunto de crônicas escritas por observadores europeus que relatavam o que viam no Novo Mundo. São exemplos dessas crônicas as obras do frei Martin de Muruá, do escrivão Francisco de Xérez e do cronista Agustín de Zárate. O segundo, com exemplos que se contam nos dedos de uma mão, é o das crônicas escritas por indígenas. O cronista peruano mais conhecido talvez seja o mestiço Garcilaso de la Vega, com sua obra Comentarios Reales. Contudo, a crônica escolhida foi a Nueva Corónica y buen gouierno de Felipe Guamán Poma de Ayala, um auto-proclamado kuraka andino da etnia Yarovilca. Os Comentários Reales de Garcilaso foram publicados em 1609. Portanto, a obra já era conhecida há trezentos anos quando a Nueva Corónica y buen gobierno, foi descoberta na Biblioteca Real da Dinamarca, em 1908. A crônica de Ayala foi, portanto, bem menos estudada que as crônicas publicadas já no período colonial, o que proporciona mais oportunidades de pesquisa.

Ayala e sua obra estão imersos em mistério e controvérsia. Estudiosos como Nathan Wachtel viram em Ayala uma representação baseada em uma visão tipicamente andina da sociedade. Entretanto, a documentação ainda é pouca para que haja um consenso sobre a história do autor e sua obra e das datas envolvidas. Nos séculos XX e XXI, foram encontrados documentos que contestam até mesmo a iniciativa de Ayala em escrever a crônica, e dão a entender que o livro teria sido na verdade escrito pelo cronista jesuíta Blas Valera, que usou o autor andino como disfarce. A análise técnica do manuscrito pode confirmar sua autenticidade e época, e que a crônica foi toda escrita e desenhada por uma única pessoa. Quando comparado com outros documentos, o texto também deixa claro que seu autor era muito bem informado sobre o contexto social e político da época em que viveu. De qualquer forma, a existência de um índio chamado Felipe Guamán Poma de Ayala é confirmada por documentos coloniais autênticos que registram suas disputas legais por terras, também contadas no texto da crônica.

O fato que interessa aqui é que o autor da Nueva Corónica era profundamente preocupado com a questão indígena no período colonial. Mais importante, ele elabora representações em texto e imagem desses índios, e dos kurakas que os governavam. O objetivo deste artigo é mostrar o resultado da análise das representações desses kurakas no texto escrito da crônica e fazê-las dialogar com a historiografia americanista, de modo a comprender a importância desse grupo social nas relações entre colonizadores e colonizados. Essa tarefa se apoia nos pressupostos teóricos que delimitarei a seguir.

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Em primeiro lugar, é preciso ter clara a noção do que é uma realidade colonial. O sociólogo francês Georges Balandier abordou a questão na década de 1960 em seu texto A noção de situação colonial. De acordo com ele, uma situação colonial é a dominação imposta por uma minoria estrangeira, racial e culturalmente diferente, em nome de uma superioridade racial (ou étnica) culturalmente afirmada, a uma maioria autóctone com condições materiais inferiores (BALANDIER, 1960). É verdade que, em alguns aspectos, a técnica dos colonizadores pode ser considerada superior, sobretudo no que diz respeito ao uso de cavalos e armas de fogo. Mas pensar apenas nos espectos econômicos e técnicos da colonização é um erro, como adverte Balandier. Ele explica que muitos autores incidiram neste erro ao desconsiderar dois outros aspectos importantes da situação colonial: a ação missionária e a ação administrativa.

Balandier também destaca que a situação colonial sempre se modificou, de maneira cada vez mais acelerada. Isso significa que é imprescindível entender a colonização como processo histórico. A consagrada andinista Karen Spalding está de acordo. Para ela, a reestruturação interna de uma região colonizada é fundamental para que a metrópole possa exercer seu controle. O pressuposto básico de seu livro De indio a campesino é que as relações entre colônia e metrópole condicionam a estruturação interna da primeira. Para que sejam efetivas, essas relações não podem se basear unicamente no emprego da força bruta pela metrópole, que também deve se valer de outras formas de divisão interna, manipulação e controle, de modo a converter os colonizados em agentes de sua própria submissão. O Peru colonial é um exemplo claro deste princípio.

O segundo elemento teórico que orientou essa pesquisa é o da importância das crônicas como fontes históricas. De acordo com Ana Raquel Portugal, a história cultural aborda a problemática dos discursos das crônicas peruanas quinhentistas procurando perceber as representações culturais de cada grupo e a razão que os levou a serem construídos como tal (PORTUGAL, 2009, pp. 27-46). Para analisar esses discursos é preciso despir-se dos hábitos mentais próprios do nosso tempo. Também se faz necessário levar em conta que, mesmo muitas vezes motivadas por interesses coloniais, essas crônicas são também resultado das práticas culturais entre os povos do período colonial.

A obra do historiador italiano Carlo Ginzburg nos mostra que é possível construír uma explicação do passado a partir de elementos aparentemente isolados contidos nas fontes históricas. Documentos como as crônicas fornecem-nos apenas indícios, pistas do que poderá ter acontecido no passado. É através destes indícios que devemos tentar reconstruir realidades que não existem mais (GINZBURG, 2012). Os indícios não são o passado, mas o representam. Cabe ao historiador saber interpretá-los. Daí a importância do próximo pressuposto teórico de minha pesquisa: a representação.

A representação dos kurakas na crônica de Ayala não pode ser pensada, portanto, como uma reprodução exata da realidade histórica que ela trata. Textos como a crônica em questão mostram apenas aspectos dessa realidade. Para explicar esta ideia o historiador holandês Frank Ankersmit compara o ato de

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representar com uma série de fotos tiradas de uma mesma pessoa. Em uma foto de perfil, outra de frente, ou outra de costas, por exemplo, o representado é sempre o mesmo (ANKERSMIT, 2012, p. 190). Em nenhuma dessas representações se encontra a totalidade absoluta do representado, mas somente aspectos dele. Ankersmit também nos lembra que esses aspectos da realidade identificáveis na obra só são historicamente relevantes se puderem ser confirmados por evidências deixadas pelo processo histórico. Para ele, aquilo que é apresentado em uma representação pode ser encontrado naquilo do qual temos evidência histórica (idem, pp. 193-4). Em vista do que foi exposto, optei por conduzir a pesquisa que deu origem ao presente artigo em duas etapas: 1) leitura dos clássicos da historiografia americanista que tratam do tema dos kurakas, e 2) leitura da Nueva Corónica. Os resultados desse diálogo serão expostos nas páginas que seguem.

Para concluir esta introdução, é necessário destacar que, em virtude da extensão da obra (1384 páginas) e de sua variedade de temas, foi preciso fazer recortes. A edição utilizada na pesquisa foi a publicada em 1987 na coleção História 16, com texto introdutório de John Murra, Rolena Adorno e Jorge Urioste. Essa edição é dividida em três tomos. O Tomo B foi escolhido como fonte por ser o mais extenso e o que aborda em detalhe os temas relacionados ao período colonial. O tomo A trata do período pré colombiano e o tomo C aborda outros temas. Abaixo veremos como os colonizadores reorganizaram a estrutura administrativa interna da colônia após dois episódios chave da historia peruana no século XVI: a Conquista e o governo de Francisco de Toledo; e qual foi a resposta dos nativos como agentes históricos.

Os kurakas no Novo Mundo: resistir ou cooperar.

Um dos temas mais conhecidos da crônica de Ayala é o lamento diante de um mundo que se encontra de cabeça para baixo, invertido. Ele denuncia a inversão da ordem natural das coisas, problema que surge com a presença espanhola na América (AYALA, 1987; WACHTEL, 1971). Esse sentimento perfaz toda a obra. Quando o autor trata dos kurakas, esse lamento é direcionado ao fato de que os espanhóis tornavam senhores locais os índios sem ascendência nobre, como a que Ayala afirmava ter: y ancí está el mundo al rreués, yndio mitayo se llama don Juán y la mitaya doña Juana en este rreyno (AYALA, 1987, p. 818). “Índios mitayos” eram os índios submetidos à mita, uma forma de imposto pago em trabalho típico das sociedades andinas. Esses índios eram mão-de-obra, portanto não podiam ocupar altos cargos de senhorio.

O cronista acusa esses falsos caciques de explorar os índios e vender os produtos dessa exploração aos espanhóis. Esses caciques teriam conseguido grande influência junto aos corregedores e encomenderos, que os convidavam a comer em suas casas e, em troca, recebiam a mão de obra e os produtos que desejassem (idem, p. 819). Ayala descreve uma grande rede de troca de influências, na qual esses ‘falsos caciques’ não hesitavam em retirar o que podiam dos índios para ganhar influência entre os mais altos postos da administração espanhola, como os corregedores, autoridades eclesiásticas, visitadores e juízes (idem, p. 820). Y rreseruan de la tasa y de seruicios personales y cargas sobre los pobres yndios o

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yndias. Y ancí falta yndios a las minas y plasa. De dies yndios, los cinco son curacas y no ay rremedio (idem, p. 822).

O autor associa esses ‘falsos’ kurakas aos vícios da bebida e do jogo. De acordo com ele, aqueles índios não eram respeitados entre os nativos e entre os espanhóis, por cinco motivos: 1) não honravam a mulher e os filhos; 2) não serviam bem seus convidados; 3) eram bêbados e comiam coca; 4) eram mentirosos e 5) cometiam todos os sete pecados capitais (idem, p. 824). É certo que o alcoolismo foi um problema devastador entre os indígenas colonizados (MURRA, 1999). Entretanto, não se pode dar muita importância a isso, pois o autor carregava consigo a mágoa da derrota judicial contra outros grupos indígenas, e havia interesses pessoais por trás da maneira que caracterizava esses grupos rivais. Além disso, esse tipo de acusação é dirigida a todos os seus inimigos em toda a crônica, espanhóis e indígenas.

O artigo Os escaladores sociais: padrões flutuantes de mobilidade na sociedade andina sob o regime colonial, de Karen Spalding, ajuda a compreender esta questão. A autora afirma que a conquista não substituiu os padrões andinos de atribuição de cargos e posições sociais pelos padrões espanhóis, mas modificou os pontos de referência tradicionais e incorporou novos critérios de atribuição da posição social (SPALDING, 1974, p. 63). Esses novos critérios eram as necessidades e pretensões dos espanhóis, que obivamente não faziam parte do jogo antes. De fato, a presença espanhola em geral dava duas alternativas aos kurakas: resistir ou cooperar.

A conquista espanhola introduziu novos modos de fazer riqueza, o que ajudou a alterar substancialmente a estrutura da sociedade nativa. Uma das principais novidades foi o caráter individual das oportunidades trazidas pelos espanhóis, que eram oferecidas em troca da cooperação dos indígenas (SPALDING, 1974, pp 72-3). Essa cooperação trazia algumas vantagens para os indígenas. Uma delas era a compensação, que poderia vir em forma de exonerações da mita, dispensas do recrutamento de trabalho e de pagamento de impostos. Em alguns casos houve o pagamento de salários. A recompensa mais importante, contudo, era o poder que os índios que cooperavam com os espanhóis obtinham (idem, p. 77). Para Spalding, a crítica de Guaman Poma ao ‘mundo de cabeça para baixo’ é dirigida ao uso do poder obtido junto aos espanhóis por funcionários indígenas, que assim obtinham bens antes exclusivos de membros que ocupavam posições sociais mais altas. A autora acredita que a queixa de Poma era uma descrição literal do que estava acontecendo com a hierarquia social nos andes (idem, p. 79).

A estrutura econômica e administrativa pós conquista ofereceu aos andinos oportunidades de obter riqueza e poder fora de seus laços de parentesco tradicionais. Por outro lado, e mais importante, os novos canais de mobilidade social favoreceram mais a mobildiade individual que de grupo. Quando a economia vice-reinal começou a decair no século XVII, a população espanhola impôs mais demandas à população indígena, e o grupo de poder índio não conseguiu mais se sustentar. Assim, os kurakas se viram encurralados entre as demandas de seus amos e a incapacidade da comunidade índia em satisfazê-las (idem, p. 85).

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O historiador norte-americano Steven Stern acredita que não faltavam motivos

sólidos para que as sociedades andinas dominadas pelos incas se aliassem aos

espanhóis. Os kurakas dos lucanas de Laramati se proclamaram amigos dos

conquistadores espanhóis assim que eles passaram por Vilcashuamán em direção a

Cuzco. As comunidades locais passaram a atacar armazéns outrora consagrados

aos incas e às huacas imperiais. Os servos libertos dos incas passaram a servir em

número cada vez maior aos espanhóis. Sem o controle dos incas, as sociedades

autóctones agora estabeleciam relações com os conquistadores para patrocinar

interesses étnicos. E essa colaboração com os europeus, apesar de todo o ônus da

guerra, tributos e mão-de-obra, tinha suas vantagens.

Para Stern, um estudo mais aprofundado torna possível constatar que os

encomenderos inteligentes cultivavam relações de colaboração com as elites

autóctones. Diego Maldonado, um dos encomenderos mais ricos e exitosos, preferia

negociar com os kurakas a recorrer à força bruta (STERN, 1986, p. 67). É claro que

as relações entre os espanhóis e os nativos também foram conflituosas em

inúmeras ocasiões. Entretanto, o fato é que os índios tinham de se adaptar agora à

presença dos espanhóis, especialmente em localidades estratégicas como a região

de Huamanga, que o autor estudou mais profundamente. As partes das relações

pós-incaicas percebiam que necessitavam uma da outra.

O surgimento do Taki Ongoy, famosa revolta dos rebeldes incas contra os

espanhóis na década de 1560, desafiou os laços de cooperação estabelecidos entre

os espanhóis e os nativos (STERN, 1986, pp. 93-95). A possibilidade de participação

ou consentimento dos kurakas fazia com que a revolta do Taki Ongoy se tornasse

potencialmente perigosíssima para os espanhóis. As verdades e dilemas morais do

Taki Ongoy atraíam os líderes nativos. Eles não podiam simplesmente se omitir

diante do descontentamento e das tendências nocivas que atingiam os ayllus. A

rebelião prometia uma verdadeira utopia aos kurakas que já lutavam para derrubar o

sistema de encomiendas: sociedades locais autônomas submetidas unicamente a

seus chefes naturais.

Entretanto, forças poderosas também afastavam os índios do movimento.

Muitos deles achavam melhor colaborar com os espanhóis. Ainda que muitos

kurakas tenham apoiado o movimento, os dados de pesquisa disponíveis permitem

concluir que, como grupo social, os kurakas não utilizaram sua influência e prestígio

para converter-se em entusiastas do movimento ou respaldá-lo (idem, pp. 111-12).

Eles eram quem mais tinham a perder se o movimento falhasse em extirpar os

espanhóis e somente provocasse sua ira.

O Taki Ongoy foi uma divisória histórica porque fez com que os espanhóis

percebessem definitivamente a necessidade de implantar um aparato estatal mais

forte, bem como de melhoras nas condições de vida dos indígenas para que eles

pudessem exercer suas funções dentro do sistema colonial. O jurista Juan de

Matienzo escreveu sobre essa necessidade. Em primeiro lugar, a Coroa precisava

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estabilizar o governo interno da sociedade espanhola, de onde dependia a execução

de leis referentes aos nativos e à colônia. Em segundo lugar, era preciso reduzir a

autonomia de algumas comunidades indígenas reorganizadas através de

reassentamentos e inspeções e novos tributos. Por fim, Matienzo buscava

racionalizar as políticas, normas e instituições da colônia em um sistema de partes

interdependentes que promoveria estabilidade e desenvolvimento. Francisco de

Toledo foi quem buscou por em prática a visão de Matienzo (idem pp. 128-132)

O legado de Toledo

No capítulo de sua obra entitulado Buen Gouierno, Poma de Ayala cria

representações escritas e imagéticas de todos os vice-reis do Peru (AYALA, 1987,

pp. 444-498). Em geral, os vice-reis são elogiados por suas condutas cristãs

exemplares e por seus esforços na defesa dos indígenas. O tom elogioso cessa,

contudo, quando o autor trata do vice-rei Francisco de Toledo (1569 – 1581). Ayala

enfatiza o grande fato do governo de Toledo, que é a ampla campanha de visitas e

reduções das populações indígenas. Ele afirma que muitos índios ficaram perplexos

quando receberam terras muito distantes de seu núcleo de povoação. Este problema

é um reflexo do modelo andino de “complementaridade vertical” de exploração da

terra, posteriormente adotado e modificado pelos europeus. Nos andes, os núcleos

populacionais e de poder geralmente ficavam em terrenos mais elevados, mas

esses grupos controlavam territórios que ficavam entre 3 e 10 dias de distância,

onde seus parentes cultivavam, pastoreavam ou pescavam, de acordo com cada

região (AYALA, 1987, p. 452 – n. 2).

A primeira crítica direta a ação de um vice-rei na crônica é feita com relação à

política de Toledo para os índios. O autor afirma que as ações do vice-rei resultarão

na destruição de todo o vice-reinado e no empobrecimento do rei da Espanha. Além

disso, ele condena a presença de europeus em localidades destinadas aos

indígenas, fato que acontecia a despeito da proibição pela Coroa. Em sua opinião, a

presença europeia entre os índios gerava a “casta maldita” dos mestiços e inúmeros

outros males: Cómo don Francisco de Toledo dio orden de prouer corregidor

de prouincias em gran daño de los yndios deste reeyno, cómo

se a de perder la tierra por ellos. A causado gran daño y

pleytos y perdiciones de los yndios.

Y como se perderá la tierra y quedará solitario y despoblado

todo el rreyno y quedará muy pobre el rrey. Por causa del dicho

corregidor, padre, comendero y demás españolesque rroban a

los yndios sus haziendas y tierras y casas y sementeras y

pastos y sus mugeres y hijas, por ací casadas o donzellas,

todos paren ya mestisos y cholos. Ay clérigo que tiene ueynte

hijos y no ay rremedio.

(AYALA, 1987. p. 454)

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Se confrontarmos a visão de Ayala com os dados fornecidos por Stern, é

possível concluir que a mágoa do cronista tem motivos reais. O vice-rei Toledo

construiu o “braço político” da colonização, ou seja, a organização de instituições e

relações coercitivas e violentas em estruturas de poder capazes de levar adiante seu

grande projeto de desenvolvimento econômico. A ironia do regime extrativo de Toledo era que impunnha

cargas terríveis que acabaram por ameaçar as economias e os

ritmos de vida locais, mas não eliminava imediatamente a

capacidade de subsistência nem de independência econômica

dos indígenas. Nessas circunstâncias, só havia uma força que

podia transformar os horrores da mita, junto com um sistema

de pagamento de tributos, em instituições viáveis. Essa força

era a força propriamente dita.

(STERN, 1986, p. 151)

A novidade do período de Toledo foi a capacidade do Estado de racionalizar e

aplicar em grande escala os tributos e as mitas. A incorporação dessas práticas a

instituições capazes de fornecer uma corrente regular de mercadorias, dinheiro e

trabalho forçado à economia europeia em expansão requeria a organização e a

integração das estruturas locais de poder em uma rede efetiva de poder estatal. O

corregimento implantado por Garcia de Castro e campanha toledana de visitas e

reorganizações locais forneciam os meios de se impor as instituições extrativas

locais. Os visitadores resolviam os problemas locais, supervisionavam a construção

de igrejas e povoados e deixavam claro que o Estado substituiria os kurakas que

criassem problemas. Em Huamanga, por exemplo, Toledo agrupou os 23

repartimentos nucleares em quatro distritos rurais: Huanta, Angaraes-Chocorvos,

Vilcashuamán e Lucanas. (idem pp. 151-2).

Os corregedores eram as autoridades espanholas que substituíram a

administração do império inca nas províncias do vice-reinado. Nas primeiras linhas

do capítulo o autor denuncia a corrupção dos corregedores espanhóis, que

enriqueciam irregularmente à custa dos índios. Além disso, Ayala volta a denunciar a

cooperação dos kurakas andinos com a corrupção dos espanhóis (idem, pp. 498-

500). Apesar de admitir a existência de corregedores honestos, o tom geral das

páginas desse capítulo é de crítica aos governantes espanhois. O elemento principal

dessa crítica é a soberba, pecado do qual o autor também culpa Toledo e seus

vassalos:

y fueron enemigos de los caciques prencipales y de

los pobres yndios; comiendo su sudor de ellos y

sus trabajos, fue enemigo de pobre. Y ancí castiga

Dios a los soberbiosos; de Luysber, le hizo Lucefer,

prínsipe de las tinieblas (AYALA, 1987, p. 501).

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Os kurakas que escolhiam se aliar aos corregedores corruptos o faziam

porque isso podia trazer grandes vantagens materiais. De acordo com Spalding, As

fontes notariais mostram com certa clareza o ingresso dos kurakas no mercado

espanhol no século XVI. Há registros de kurakas realizando transações comerciais

menos de vinte anos depois da conquista espanhola do Peru. A maior parte dos

contratos entre espanhóis e kurakas consistiam em uma troca de mão-de-obra

indígena por dinheiro efetivo, e a maioria dessa mão-de-obra foi empregada no setor

têxtil. A existência desses contratos, assim, indica que já em meados do século XVI

parte do trabalho da sociedade indígena consistia na elaboração de bens para o

mercado espanhol em troca de dinheiro. E mais importante, isso era além do que

era requerido pelas autoridades espanholas (SPALDING, 1974, pp. 38-42).

A questão de como o kuraka utilizava o ingresso obtido através de trocas com

os espanhóis é importante para entender a dimensão dessas relações. Para a

autora, uma chave para entender o problema está nos costumes de armazenamento

da sociedade andina. Os depósitos mantidos pelo Inca tinham seus equivalentes em

nível familiar e da comunidade. Esses depósitos familiares eram os sapsi, ou “coisa

comúm a todos”. Quando o kuraka solicitava os serviços dos índios para a

confeccção de roupas que formariam parte de seu depósito de bens, ele fornecia a

lã de seus próprios depósitos. Entretanto, quando os contratos eram entre índio e

espanhol, a lã era praticamente sempre oferecida pela segunda parte. Como os

espanhóis forneciam a lã e a comunidade dava a mão-de-obra, os ganhos

resultantes da transação eram considerados bens da comunidade. O kuraka tinha

acesso a essas reservas para enfrentar as necessidades da comunidade como um

todo, que eram o pagamento de tributos, as construções e a manutenção da Igreja

(idem, pp. 45-6).

É certo que há registros de vários kurakas que se valeram de relações

comerciais com os espanhóis para construir fortunas pessoais, mas a maior parte do

ingresso gerado por essas transações estava destinada a satisfazer as demandas

da comunidade como um todo. Spalding quer dizer que havia limites culturais muito

definidos à capacidade do kuraka de converter o trabalho e os bens dos índios em

fortuna pessoal (idem, pp. 47-8). Se ele deixasse de cumprir com suas obrigações

materiais para com a comunidade, perdia a legitimidade que sustentava seu cargo.

Isso nos leva a crer que a representação de Ayala dos kurakas corruptos pudesse

ser um pouco exagerada. É mais provável que a mágoa do autor por não ser

reconhecido como desejava após uma vida de contribuição com a administração

espanhola e o cristianismo tenha afetado sua análise da situação (ADORNO, 1992 e

1993).

O legado de Toledo para os kurakas foi, então, positivo e negativo ao mesmo

tempo. Por um lado, as reduções forçadas, não inéditas mas intensificadas, privaram

muitos nativos de suas terras e bens, que foram redistribuídos ao prazer da

metrópole. Os índios que ainda preservavam as tradições religiosas andinas ou que

resistiram contra o domínio espanhol foram exemplarmente punidos, como mostra

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Guaman Poma (AYALA, 1987, p. 452 – n. 1). Por outro lado, as politicas de Toledo

acabaram contribuíndo indiretamente para o progresso de uma consciência histórica

dos índios. A mesma educação garantida por Toledo de modo a incluir os indígenas

na vida cristã acabou por criar paulatinamente um grupo de índios letrados e

pensantes, do qual Poma de Ayala é um dos primeiros exemplos.

Conclusão

De tudo que foi exposto, podemos concluir que seja como indivíduo ou como

grupo social, os kurakas andinos estiveram sempre ao centro das relações entre

dominadores espanhóis e indígenas dominados. Imersos em uma típica situação

colonial, os kurakas do vice-reinado do Peru tiveram de lidar com os três aspectos

da ação colonizadora espanhola: a missionária, a administrativa e a econômica.

A ação missionária era inevitável. Os indígenas foram obrigados a admitir

que o Deus cristão derrotara seus deuses. Na prática, isso significava que os

espanhóis eram os novos senhores da Terra. A ação administrativa, marcadamente

após Toledo, reconfigurou as estruturas da elite local e as deu um novo papel, com

mais ou menos poder em cada situação, de acordo com as necessidades

espanholas. No campo da economia, a presença espanhola trouxe novas

oportunidades de enriquecimento, principalmente individual, lícito e ilícito.

Em sua maioria, como grupo social, a decisão dos kurakas foi de colaborar

com os espanhóis contra os incas e ajudar a construir o sistema que os espanhóis

pretendiam. Se essa postura tivesse sido diferente, se mais kurakas tivessem se

juntado aos rebeldes milenaristas do Taki Ongoy, talvez teríamos uma história

diferente da colonização espanhola no Peru. Esses líderes nativos se aliavam aos

espanhóis diante das possibilidades de se libertarem dos antigos dominadores

incas, de obter poder, riqueza, de manter vivas suas comunidades e culturas, entre

outros motivos.

Após a reorganização de Toledo, o declínio dos kurakas se tornou inevitável.

A prosperidade econômica do período toledano foi construída, como visto, através

do uso da força pelos colonizadores. Os encomenderos em geral prosperaram e

viveram a maravilha do lucro rápido. Ávidos por mais lucros, que exigiam mais mão

de obra, os espanhóis pressionavam os kurakas para fornecerem maiores

contingentes de seus súditos para as minas, plantações e teares. Esse processo

erosionou a relação dos kurakas com seus súditos ao logo dos século XVI e XVII, o

que gerou o consequente declínio detectado por Spalding em sua coletânea De indio

a campesino. Para ela, o sistema vigente no século XVI não podia durar muito, visto

que existia uma contradição inerente à figura do kuraka: ele devia cuidar dos

interesses de sua comunidade ao mesmo tempo que era obrigado a fornecer o que

era exigido pela Coroa.

Diante deste traumático quadro, e depois da derrota das resistências armadas

no século XVI, pouca alternativa restava aos kurakas que desejavam manter suas

posses e poderes apesar dos desígnios dos espanhóis. De fato, a única forma de

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luta que lhes sobrava podia se dar no campo legislativo. A parte documentada da

história de vida de Guaman Poma é um exemplo fenomenal deste fato. O

protagonismo indígena na passagem dos séculos XVI para o XVII foi exercido ou

disputado nos tribunais. Devido às limitações deste texto, abordarei este tema em

artigo futuro.

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