Vinte Anos Depois - Vol.2 - Alexandre Dumas-1

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romance francês

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  • Table of Contents

    Vinte Anos Depois - 1 VolumeCaptulo I - O fantasma de RichelieuCaptulo II - Uma ronda noturnaCaptulo III - Dois antigos inimigosCaptulo IV - Ana dustria aos quarenta e cinco anosCaptulo V - Gasco e italianoCaptulo VI - DArtagnan aos quarenta anosCaptulo VII - DArtagnan v-se atrapalhado, mas um de nossos antigos conhecidos lheaodeCaptulo VIII - Das influncias diferentes que pode exercer meia pistola num sacristoe num menino de coroCaptulo IX - De como dArtagnan, procurando bem longe Aramis, notou que ele estavana garupa, atrs de PlanchetCaptulo X - O padre d'HerblayCaptulo XI - Os dois gasparesCaptulo XII - O Sr. Porthos du Vallon de Bracieux de PierrefondsCaptulo XIII - De como dArtagnan percebeu, ao encontrar Porthos, que o dinheirono d felicidadeCaptulo XIV - Em que se demonstra que, se Porthos no estava contente com a suasituao, Mousqueton estava contentssimo com a deleCaptulo XV - Duas cabeas de anjoCaptulo XVI - O Castelo de BragelonneCaptulo XVII - A diplomacia de AthosCaptulo XVIII - O Sr. de BeaufortCaptulo XIX - Em que se entretinha o Sr. Duque de Beaufort no Castelo de VincennesCaptulo XX - Grimaud entra em funesCaptulo XXI - O que continha os pastis do sucessor do tio MarteauCaptulo XXII - Uma aventura de Maria MichonCaptulo XXIII - O abade ScarronCaptulo XXIV - So DinizCaptulo XXV - Um dos quarenta meios de evaso do Sr. de BeaufortCaptulo XXVI - DArtagnan chega a propsitoCaptulo XXVII - Na estradaCaptulo XXVIII - EncontroCaptulo XXIX - Quatro velhos amigos se preparam para reverem-seCaptulo XXX - A Place Royale

    Vinte Anos Depois - 2 VolumeCaptulo I - A balsa do OiseCaptulo II - EscaramuaCaptulo III - O mongeCaptulo IV - A absolvioCaptulo V - Grimaud falaCaptulo VI - A vspera da batalhaCaptulo VII - Um jantar de outrora

  • Captulo VIII - A carta de Carlos ICaptulo IX - A carta de CromwellCaptulo X - Mazarino e a rainha HenriquetaCaptulo XI - De como os desgraados tomam, s vezes, o acaso pela providnciaCaptulo XII - Tio e sobrinhoCaptulo XIII - PaternidadeCaptulo XIV - Outra rainha que pede socorroCaptulo XV - Em que se prova que o primeiro impulso sempre melhorCaptulo XVI - O te deum pela vitria de LensCaptulo XVII - O mendigo de Saint-EustacheCaptulo XVIII - A torre de Saint-Jacques-la-BoucherieCaptulo XIX - O motimCaptulo XX - O motim converte-se em revoltaCaptulo XXI - A desgraa devolve a memriaCaptulo XXII - A entrevistaCaptulo XXIII - A fugaCaptulo XXIV - O carro do Sr. CoadjutorCaptulo XXV - De como dArtagnan e Porthos ganharam, o primeiro duzentos edezenove e o segundo duzentos e quinze luses, vendendo palhaCaptulo XXVI - Chegam noticias de AramisCaptulo XXVII - O escocs, perjuro sua lei, por um soldo vendera o seu reiCaptulo XXVIII - O vingadorCaptulo XXIX - Olivrio CromwellCaptulo XXX - Os gentis-homensCaptulo XXXI - Jesus SenhorCaptulo XXXII - Onde se demonstra que nem nas situaes mais difceis os grandescoraes perdem a coragem nem os bons estmagos o apetite

    Vinte Anos Depois - 3 VolumeCaptulo I - Saudao majestade cadaCaptulo II - DArtagnan acha um planoCaptulo III - A partida de LansqueneteCaptulo IV - LondresCaptulo V - O processoCaptulo VI - White-HallCaptulo VII - Os operriosCaptulo VIII - Remember!Captulo IX - O mascaradoCaptulo X - A casa de CromwellCaptulo XI - ConversaoCaptulo XII - A falua "o relmpago"Captulo XIII - O vinho do portoCaptulo XIV - O vinho do porto (continuao)Captulo XV - FatalidadeCaptulo XVI - Em que, depois de ter sido quase assado, Mousqueton quase foi comidoCaptulo XVII - RegressoCaptulo XVIII - Os embaixadoresCaptulo XIX - Os trs tenentes do generalssimo

  • Captulo XX - O combate de CharentonCaptulo XXI - A estrada da picardiaCaptulo XXII - O reconhecimento de Ana d'ustriaCaptulo XXIII - A realeza do Sr. de MazarinoCaptulo XXIV - PrecauesCaptulo XXV - O esprito e o braoCaptulo XXVI - O esprito e o brao (continuao)Captulo XXVII - O brao e o espritoCaptulo XXVIII - O brao e o esprito (continuao)Captulo XXIX - Os alapes do Sr. MazarinoCaptulo XXX - ConfernciasCaptulo XXXI - Em que se comea a acreditar que Porthos ser finalmente baro, edArtagnan capitoCaptulo XXXII - Onde se v que com uma pena e uma ameaa se faz mais e maisdepressa que com a espada e dedicaoCaptulo XXXIII - Onde se v que com uma pena e uma ameaa se faz mais e maisdepressa que com a espada e dedicao (continuao)Captulo XXXIV - Em que se prova que, s vezes, mais difcil aos reis voltar capitaldo seu reino do que deix-laCaptulo XXXV - Em que se prova que, s vezes, mais difcil aos reis voltar capitaldo seu reino do que deix-la (continuao)Concluso

    Bibliografia das notasVolumes Publicados

  • Vinte Anos Depois - 1 Volume

  • Alexandre Dumas

    Vinte anos depois1 volume

    Ttulo do original francs: VINGT ANS APRS

    Ilustraes - NICO ROSSO e J.A. BEAUC

    Traduo e notas de OCTAVIO MENDES CAJADO

    1963

    A propriedade literria desta traduo, realizada na ntegra do texto original francs, foi adquirida por

    SARAIVA S. A. LIVREIROS EDITORES SO PAULO

  • Captulo I - O fantasma de Richelieu NUMA sala do Palais-Cardinal, que j conhecemos, a uma mesa com cantos de prata, cheia de

    livros e papis, sentara-se um homem com a cabea apoiada nas mos. Atrs dele, em enorme e rubralareira, as brasas flamejantes desabavam sobre os ces dourados da chamin. O revrbero do lumeaclarava por trs as vestes magnficas do sonhador, que a luz de um candelabro carregado de velasiluminava pela frente.

    Quem lhe visse a loba vermelha e as rendas riqussimas, a fronte plida e curvada ao peso dameditao, a solido do gabinete, o silncio das antecmaras, o passo cadenciado dos guardas nopatamar da escada, diria que a sombra do Cardeal de Richelieu pairava ainda em seu quarto.

    Infelizmente, porm, era apenas a sombra do grande homem. A Frana enfraquecida, a autoridadereal desprezada, os grandes novamente fortes e turbulentos, o inimigo dentro das fronteiras, tudodemonstrava que Richelieu j no existia. Mas o que, melhor do que tudo, indicava que a samarraescarlate no pertencia ao velho cardeal era o isolamento, que mais parecia, como j dissemos, o deum fantasma que o de um vivo; os corredores sem fidalgos e os ptios pejados de guardas; o clamorescarninho que subia das ruas e penetrava pelas vidraas da sala que sacudia o sopro de toda a cidadeunida contra o ministro; eram, enfim, o som distante e repetido dos tiros, felizmente desfechados sempontaria e sem resultado, apenas para mostrar aos guardas, aos suos, aos mosqueteiros e aossoldados que cercavam o Palais-Royal, pois o prprio Palais-Cardinal mudara de nome, que o povotambm tinha armas.

    Esse fantasma de Richelieu era Mazarino.

  • Ora, Mazarino estava s e sentia-se fraco. Estrangeiro! murmurava italiano! Eis a palavra que me atiram em rosto! Com ela,

    assassinaram, enforcaram e devoraram Concini, e, se eu o permitisse, me assassinariam, enforcariam edevorariam tambm, embora eu no lhes tenha feito outro mal que o de aumentar um pouquinho osimpostos. Idiotas! No percebem que o inimigo no este italiano que fala mal o francs, mas os quesabem dizer coisas lindas com um sotaque parisiense to puro e to bom. Sim, sim. continuava o Ministro com o sorriso malicioso, que, naquele momento, pareciaestranho em seus lbios plidos sim, os vossos rumores me dizem que a sorte dos favoritos precria; mas, se o sabeis, deveis saber tambm que eu no sou um favorito comum! O Conde deEssex tinha um anel esplndido, cravejado de brilhantes, que lhe dera a real amante; eu tenho apenasum anel com um monograma e uma data1, mas abenoado na capela do Palais-Royal; por isso mesmo,no me derrubaro como pretendem. No percebem que com o eterno grito de "Morra o Mazarino!"ora os fao gritar "Viva o Sr. de Beaufort!" ora "Viva o Sr. Prncipe!" ora "Viva o Parlamento!" Pois oSr. de Beaufort est em Vincennes2. Mais dia menos dia, o Sr. Prncipe ir fazer-lhe companhia. Equanto ao Parlamento...

    A essa altura o sorriso do Cardeal assumiu uma expresso de dio, de que parecia incapaz o seu rostosuave.

    O Parlamento... Ainda veremos o que se far com ele; temos Orlans e Montargis. Oh! Htempo para tudo; mas os que comearam a gritar "Morra o Mazarino" ainda acabaro gritando"Morra!" a toda essa gente, cada qual por sua vez. Richelieu, que odiavam quando vivo, e no qual no

  • se cansam de falar depois de morto, Richelieu desceu mais do que eu; pois foi demitido vrias vezes eescapou de s-lo outras tantas. A Rainha nunca me demitir e, se eu for obrigado a ceder ao povo,ceder comigo; se eu fugir, fugir tambm, e quero ver o que faro os rebeldes sem Rainha e sem Rei.

    Oh! se eu, pelo menos, no fosse estrangeiro, se fosse francs, se fosse fidalgo!E recaiu em seus devaneios.A situao, com efeito, era difcil, e o dia que se passara complicara-a ainda mais. Espicaado

    pela sua srdida avareza, Mazarino esmagava o povo com impostos, e esse povo, que tinha de seuapenas a alma, como dizia o procurador Talon, porque no se lhe podia vender a alma em leilo, opovo, que o governo buscava aquietar com a notcia de vitrias conquistadas, e para o qual os laurisno eram carne de que pudesse alimentar-se3, comeara, havia muito, a resmungar.

    Mas no era s isso; pois quando somente o povo resmunga, a Corte, de que o separam aburguesia e os fidalgos, no lhe ouve o clamor; Mazarino, porm, cometera a imprudncia de atacar osmagistrados! Vendera doze diplomas de referendrios, e como os magistrados pagassem caro peloscargos e a adio dos doze novos confrades viesse abater-lhes o preo, os antigos se haviam reunido ejurado sobre os Evangelhos que no tolerariam o aumento e resistiriam a todas as perseguies daCorte, comprometendo-se, no caso de um deles perder o ofcio em virtude da rebelio, a cotizarem-separa restituir-lhe a importncia paga.

    Ora, eis o que acontecera: No dia 7 de janeiro, setecentos ou oitocentos comerciantes de Paris setinham reunido e revoltado em conseqncia de nova taxa que ameaava recair sobre os proprietriosde casas, nomeando dez deputados para conferenciarem com o Duque de Orlans que, segundo o seuvelho hbito, andava cata de popularidade. O Duque de Orlans recebera-os, e eles se declararamdecididos a no pagar a nova taxa, ainda que precisassem defender-se mo armada contra osfuncionrios do Rei que fossem cobr-la. O Duque de Orlans ouvira-os com suma complacncia,prometera-lhes moderao e assegurara-lhes que falaria, a esse respeito, com a Rainha. Em seguida,dispensara-os com a frmula comum dos prncipes: Veremos.

    De sua parte, no dia 9, os referendrios haviam procurado o Cardeal e um deles, que falava emnome de todos, expusera com tanta firmeza e ardimento as suas razes, que o Cardeal, pasmado,dispensara-os como o fizera o Duque de Orlans, dizendo: Veremos.

    E ento, para ver, reunira-se o Conselho e mandara-se buscar o Superintendente das finanasd'mery.

    Esse d'mery era detestado pelo povo, primeiro por ser superintendente das finanas e porquetodo Superintendente das finanas deve ser detestado; depois, cumpre diz-lo, por merecer um poucoque o detestassem.

    Filho de um banqueiro de Lio, chamado Particelli, trocara de nome depois de uma falncia epassara a chamar-se d'mery4. Reconhecendo-lhe os grandes mritos financeiros, o Cardeal deRichelieu apresentara-o ao Rei Lus XIII com o nome de Sr. d'mery e, querendo nome-lo Intendentedas finanas, fizera dele generosa apologia.

    timo! respondera o Rei Estimo que me faleis no Sr. d'mery para esse lugar, querequer um homem honesto. Disseram-me que protegeis o patife do Particelli e receei que meobrigsseis a nome-lo.

    Sire! tornara o Cardeal tranqilize-se Vossa Majestade. Esse Particelli foi enforcado. timo! timo! exclamara o Rei. No toa, portanto, que me cognominaram Lus, o

    Justo.

  • E assinara a nomeao do Sr. d'mery.Pouco depois, convertia-se d'mery em Superintendente das finanas.Tinham ido busc-lo da parte do ministro, e ele chegara muito plido e assustadssimo, dizendo

    que o filho escapara de ser assassinado naquele dia na praa do Parlamento: o populacho encontrara-oe lhe pedira contas do luxo da mulher, que tinha um apartamento forrado de veludo vermelho comfranjas de ouro. Era a filha de Nicolau Le Camus, Secretrio em 1617, que chegara a Paris com vintelibras e que, reservando para si quarenta milhes, distribura recentemente nove milhes entre osfilhos.

    O filho de d'mery por pouco no fora esganado, porque um dos amotinados sugerira que oapertassem at obrig-lo a devolver o ouro que devorava. Nesse dia, o Conselho no decidira coisaalguma, pois o Superintendente, impressionadssimo com o caso, vira-se impossibilitado de pensar.

    No dia seguinte, o Primeiro Presidente Mateus Mole, cuja coragem nessa ocasio, diz o Cardealde Retz, igualou a do Sr. Duque de Beaufort e a do Sr. Prncipe de Conde, isto , dos dois homens tidoscomo os mais corajosos de Frana; no dia seguinte, como dizamos, o Primeiro Presidente foraatacado tambm; o povo ameaara faz-lo pagar os males que lhe queriam infligir; mas o PrimeiroPresidente respondera com a calma habitual, sem se comover e sem se espantar, que, se os desordeirosno obedecessem vontade do Rei, mandaria erguer patbulos nas praas para enforcar,imediatamente, os mais rebeldes. E estes haviam respondido que no queriam coisa melhor, pois ospatbulos serviriam de enforcar os maus juzes, que compravam os favores da Corte com a misria dopovo.

    Nem era tudo; indo a Notre-Dame para assistir missa, como o fazia regularmente todos ossbados, a Rainha fora seguida por mais de duzentas mulheres que gritavam e pediam justia. Elas,alis, no tinham nenhuma inteno m e tencionavam apenas ajoelhar-se diante da soberana paramov-la piedade; mas os guardas impediram-nas, e a Rainha passara, orgulhosa e altiva, sem lhesouvir os clamores.

    tarde, reunira-se de novo o Conselho e nele se decidira manter a autoridade do Rei: emresultado disso, o Parlamento fora convocado para o dia seguinte, 12.

    Nesse dia, em cuja noite principia a nossa histria, o Rei, que completara dez anos de idade econvalescia de um ataque de varola, a pretexto de ir a Notre-Dame render graas pelo seurestabelecimento, mandara formar os guardas, os suos e os mosqueteiros e escalonara-os volta doPalais-Royal, nos cais e na Pont-Neuf, e, ouvida a missa, passara ao Parlamento, onde no s ratificaraos editos anteriores como promulgara cinco ou seis novos, cada qual, diz o Cardeal de Retz, maisruinoso do que o outro. De tal sorte que o Primeiro Presidente, partidrio da Corte, como vimos, nosdias precedentes, protestara ousadamente contra essa maneira de levar o Rei ao Parlamento parasurpreender e coagir a liberdade de voto.

    Mas os que sobretudo se ergueram contra os novos impostos foram o Presidente Blancmesnil e oConselheiro Broussel.

    Promulgados os editos, voltou o Rei ao Palais-Royal. Grande multido se postara no trajeto; mascomo todos soubessem que ele vinha do Parlamento e ignorassem-se l fora para fazer justia ao povoou para oprimi-lo de novo, nenhum grito de alegria se ouviu sua passagem felicitando-o pelorestabelecimento. Todos os rostos, pelo contrrio, se mostravam tristes e inquietos e alguns atameaadores.

    Apesar do regresso do soberano, as tropas no saram do lugar: temia-se que estourasse um

  • motim quando o povo conhecesse o resultado da sesso do Parlamento; e, com efeito, mal se divulgoupela cidade o rumor de que o Rei, em vez de diminuir os impostos, s os aumentara, grupos seformaram e por toda a parte ecoaram grandes gritos de "Morra o Mazarino!" "Viva Broussel!" "VivaBlancmesnil!" Pois o povo soubera que Blancmesnil e Broussel haviam falado em seu favor, e se bema sua eloqncia tivesse sido intil, nem por isso deixava de agradecer-lhes.

    Quiseram as autoridades dispersar os grupos e silenciar os gritos, mas, como acontece nessescasos, os grupos aumentaram e os gritos redobraram.

    E fora dada ordens aos guardas do Rei e aos guardas suos para resistirem e patrulharem as ruasde Saint-Denis e de Saint-Martin, onde esses grupos pareciam mais numerosos e animados, quando seanunciou no Palais-Royal o Preboste dos mercadores.

    Imediatamente recebido, declarou que, a no cessarem imediatamente as manifestaes dehostilidade, duas horas depois Paris inteira estaria em armas.

    Deliberava a Corte sobre o que lhe cumpria fazer, quando Comminges5, tenente dos guardas,apareceu com as vestes rasgadas e o rosto em sangue. Vendo-o, a Rainha soltou um grito de surpresa eperguntou-lhe o que acontecera.

    Acontecera que, vista dos guardas, como previra o Preboste dos mercadores, os nimos sehaviam exaltado. O povo senhoreara os campanrios e tocara a rebate. Comminges resistira, prenderaum homem que parecia ser um dos cabeas do motim, e, para exemplar os agitadores, mandaraenforc-lo na Cruz do Trahoir. Os soldados levavam-no para executar a ordem, quando, no Mercado,haviam sido atacados a pedradas e chuadas; o rebelde aproveitara o ensejo para safar-se, chegara rue des Lombards e entrara numa casa cujas portas imediatamente se arrombaram.

    Violncia intil, pois no se encontrou o culpado. Comminges deixara a rua guardada e, com oresto do destacamento, voltara ao Palais-Royal para inteirar a Rainha do que estava acontecendo. Masdurante todo o percurso fora perseguido por gritos e ameaas, vrios de seus homens tinham sidoferidos com chuos e alabardas e ele mesmo fora atingido por uma pedrada que lhe rasgara asobrancelha.

    O relato de Comminges corroborava o alvitre do Preboste dos mercadores e como o Governo notivesse meios para resistir a uma revolta sria, o Cardeal ordenou que se propalasse entre o povo anotcia de que os guardas s tinham sido escalonados no cais e na Pont-Neuf em razo da cerimnia eque iam retirar-se. De fato, cerca das quatro horas da tarde, concentraram-se todos nas imediaes doPalais-Royal; colocou-se um destacamento na barreira dos Sargentos, outro no Hospcio dos Cegos eoutro no morro de Saint-Roch. Encheram-se os ptios e pavimentos trreos de suos e mosqueteiros eaguardaram-se os acontecimentos.

    Eis, por conseguinte, o p em que estavam as coisas quando introduzimos o leitor no gabinete deMazarino, que fora, outrora, o do Cardeal de Richelieu. Vimos em que estado de esprito ouvia ele oresmungar do povo que chegava at sala e o eco dos tiros, que a abalavam.

    De sbito, ergueu a cabea com sobrecenho, como se tivesse tomado uma deciso, fitou os olhosno enorme relgio que ia dar dez horas e, pegando num apito de prata que jazia sobre a mesa, aoalcance de sua mo, chamou duas vezes.

    Abriu-se uma porta oculta na tapearia e um homem vestido de preto se adiantousilenciosamente, postando-se atrs da poltrona.

    Bernouin disse o Cardeal, sem se voltar, pois, tendo apitado duas vezes, no podia ser outroseno o seu escudeiro quais so os mosqueteiros que esto de guarda no palcio?

  • Os mosqueteiros negros, Monsenhor. De que companhia? Da companhia Trville. H algum oficial dessa companhia na antecmara? O Tenente d'Artagnan. Bom? Bom, Monsenhor. D-me uma farda de mosqueteiro e ajuda-me a vesti-la.Ps-se ento o Cardeal, silencioso e pensativo, a despir os trajos de cerimnia que envergara para

    assistir reunio do Parlamento e a substitu-los pela casaca militar, que usava com certo garbo,graas s suas antigas campanhas da Itlia; e, quando se viu completamente vestido:

    Vai-me buscar o Sr. d'Artagnan.O criado saiu, dessa feita, pela porta do meio, mas sempre silencioso e mudo. Dir-se-ia uma

    sombra.Ficando s, o Cardeal mirou-se com certa satisfao a um espelho; ainda era jovem, pois tinha

    apenas quarenta e seis anos, o porte elegante e a estatura pouco abaixo da mediana, a tez viva e bela, oolhar cheio de fogo, o nariz grande, mas bem proporcionado, a fronte larga e majestosa, os cabeloscastanhos encaracolados, a barba mais escura do que os cabelos e sempre bem frisada, o aspectodonairoso. Ps o boldri, considerou, satisfeito, as mos, belas e muito bem tratadas; e, logo,descartando-se das grossas luvas de gamo, em que j havia pegado e que eram as do uniforme, calouumas luvas simples de seda6.

    Nesse momento abriu-se a porta. O Sr. d'Artagnan anunciou o escudeiro.Um oficial entrou.Era um homem de trinta e nove a quarenta anos, de estatura pequena mas bem proporcionada,

    magro, olhos vivos e espertos, barba preta e cabelos agrisalhados, como sucede sempre s pessoas quelevaram uma vida muito boa ou muito m e sobretudo quando so muito morenas.

    D'Artagnan deu quatro passos no gabinete, que reconheceu por haver estado l no tempo doCardeal de Richelieu, e vendo que no havia ningum na sala a no ser um mosqueteiro da suacompanhia, parou os olhos no mosqueteiro, no qual reconheceu, incontinenti, o Cardeal.

    Ficou em p, em atitude respeitosa mas digna, como convm a um homem de qualidade, queteve, na vida, muitas ocasies de avistar-se com pessoas importantes.

    O Cardeal fixou nele um olhar mais sagaz que profundo, examinou-o com ateno e perguntou,aps alguns segundos de silncio:

    Sois vs o Sr. d'Artagnan? Eu mesmo, Monsenhor replicou o oficial.O Cardeal tornou a olhar para a cabea inteligente e para o rosto, cuja excessiva mobilidade fora

    encadeada pelos anos e pela experincia; mas d'Artagnan sustentou o exame como homem que haviasido examinado outrora por olhos bem mais penetrantes do que aqueles.

  • Senhor anunciou o Cardeal ireis comigo, ou melhor, eu irei convosco. s ordens de Vossa Eminncia respondeu d'Artagnan. Eu quisera visitar pessoalmente os postos que cercam o Palais-Royal; acreditais que haja

    algum perigo? Perigo, Monsenhor! volveu d'Artagnan com expresso de surpresa. Qual? Dizem que o povo est muito revoltado. O uniforme dos mosqueteiros do Rei bastante respeitado, Monsenhor, e ainda que o no

    fosse, eu e mais quatro homens poramos em fuga uma centena desses biltres. Mas no vistes o que sucedeu a Comminges? O Sr. Comminges pertence aos guardas e no aos mosqueteiros tornou d'Artagnan. O que quer dizer retrucou, sorrindo, o Cardeal que os mosqueteiros so melhores

    soldados do que os guardas? Cada qual tem o amor-prprio do seu uniforme, Monsenhor. Exceto eu, senhor replicou Mazarino, com um sorriso pois, como vedes, despi o meu

    para vestir o vosso. Cspite, Monsenhor! acudiu d'Artagnan isso j modstia. Quanto a mim, declaro que,

    se tivesse o uniforme de Vossa Eminncia, contentava-me com ele e no o trocava por outro. Sim, mas para sair esta noite talvez no seja o mais seguro. Bernouin, meu chapu.Tornou a entrar o escudeiro, trazendo um chapu de abas largas. O Cardeal colocou-o

    elegantemente sobre a cabea e, voltando-se para d'Artagnan: Tendes cavalos arreados nas cocheiras? Tenho, Monsenhor. Pois ento, partamos. Quantos homens deseja Vossa Eminncia? Dissestes que vos bastariam quatro para pr em fuga cem biltres; como poderemos encontrar

    duzentos, levai oito. Quando quiser Vossa Eminncia. Eu vos sigo; ou melhor volveu o Cardeal por aqui, no. Ilumina o caminho, Bernouin.O escudeiro pegou numa vela, o Cardeal pegou numa chavinha que estava sobre a secretria e,

    tendo aberto a porta de uma escada secreta, viu-se, ao cabo de um instante, no ptio do Palais-Royal.

    1 Sabe-se que, no tendo recebido nenhuma das ordens que impedem o casamento, Mazarino desposara Ana d'ustria. (N. do A.)

    2 Fundado por Lus VII e restaurado por Filipe Augusto em 1185, foi o Castelo de Vincennes, em vrias ocasies, residncia favoritados reis de Frana. Depois de Lus XI, porm, serviu inmeras vezes de priso poltica e nele estiveram sucessivamente presosHenrique de Navarra, o Duque de Beaufort, os Prncipes de Cond e de Conti, o Duque de Longueville, o Cardeal de Retz, Diderot eMirabeau. (N. do T.)

    3 Sra. de Motteville. (N. do A.)

  • 4 Dizia o Cardeal de Retz que esse d'Emery era "o esprito mais corrupto do sculo". E ajuntava: "Condenado em Lio, na mocidade,a ser enforcado, esse homem governava o Cardeal Mazarino em tudo o que dizia respeito aos negcios internos do reino."Enriqueceu de maneira to escandalosa quanto rpida e, um ano depois de ter sido nomeado Intendente das Finanas, comprou oCastelo de Chevrette, perto de Montmorency, magnfica propriedade que lhe custou a bagatela de trezentas e setenta e trs mil libras,uns doze milhes de cruzeiros atuais. No , portanto, muito de pasmar que fosse uma das primeiras vtimas da clera do povo notempo da Fronda, se bem cumpra reconhecer que se revelou, em muitas ocasies, hbil financista. (N. do T.)

    5 Sobrinho do Marqus Lus de Guitaut, o Conde de Comminges era um belo rapaz, inteligente, corajoso, tipo de heri de romance.Enciumado, sem dvida, pelo interesse que lhe demonstrava a Rainha, a quem o Conde servia com extrema dedicao, no quisMazarino deix-lo ao lado dela e mandou-o para a Itlia, onde morreu. (N. do T.)

    6 Nascido no dia 14 de julho de 1602, filho de um siciliano que servia a casa dos Colonnas como administrador, Jlio Mazarino eraum guapo cavaleiro, bem apessoado e extremamente inteligente. Alto, trigueiro, de olhar vivo e fisionomia doce, jovial e sorridente,muito insinuante, destro em todos os exerccios, possua "encantos inevitveis para ser amado por aqueles que desejava agradar".Impermevel aos sentimentos de dio ou amizade, sabia dosar-lhes as manifestaes de acordo com as suas convenincias. Alunomodelo do colgio dos Jesutas em Roma, bacharel pela Universidade espanhola de Alcala, doutor in utroque jure, capito deinfantaria, diplomata, agente papal, chamou a ateno de Richelieu no decurso das negociaes em que se empenhou, e o grandeCardeal, reconhecendo-lhe os mritos extraordinrios, chamou-o para o servio de Frana. Richelieu obteve para ele o chapu deCardeal em 1641 e, antes de morrer, designou-o Lus XIII para membro do conselho de regncia, a que deveria submeter-se Anad'ustria. Da a transformar-se em favorito da Regente e Primeiro Ministro pouco lhe custou. Segundo nos conta Tallemant desRaux, quando Richelieu apresentou Mazarino Rainha pela primeira vez, disse-lhe: "Vossa Majestade gostar muito dele, porque parecido com Buckingham." O fato que Ana d'ustria no tardou em afeioar-se ao elegantssimo ministro, que, alm de todas asqualidades intelectuais, possua uma bonita estampa e vestia-se com extraordinrio apuro. (N. do T.)

  • Captulo II - Uma ronda noturna

    DEZ minutos depois, saa a tropazinha pela rue des Bons-Enfants, atrs da sala de espetculosconstruda pelo Cardeal de Richelieu para que nela se representasse Mirame, e na qual o CardealMazarino, mais amante de msica que de literatura, acabara de montar as primeiras peras que serepresentaram em Frana.

    Ostentava a cidade todas as caractersticas de uma grande agitao; grupos numerosos percorriamas ruas e, apesar do que dissera d'Artagnan, paravam para assistir passagem dos militares com ar demofa e ameaa, a indicar que os burgueses haviam momentaneamente substitudo a mansidocotidiana por intenes mais belicosas. De tempos a tempos chegavam rudos das bandas do Mercado.Tiros de espingarda crepitavam dos lados da rue Saint-Denis, e por vezes, de repente, sem queningum soubesse por que, algum sino se punha a repicar, sacudido pelo capricho popular.

    DArtagnan caminhava com a indiferena de um homem sobre o qual essas e outras ninharias no

    exercem influncia alguma. Quando um grupo ocupava o meio da rua, atirava sobre ele o cavalo semdizer: gua vai! e como se os seus componentes, rebeldes ou no, soubessem com quem tratavam,abriam caminho e deixavam passar a patrulha. O Cardeal invejava-lhe a calma, que atribua ao hbitodo perigo; mas nem por isso deixava de sentir pelo oficial, sob cujas ordens se colocara, a espcie deconsiderao que a mesma prudncia concede coragem displicente.

  • Quando se aproximaram da guarda postada na barreira dos Sargentos, a sentinela gritou: "Quemvem l?" DArtagnan respondeu e, tendo pedido a senha ao Cardeal, continuou. A senha eraLus e Rocroy.

    Trocados os sinais de reconhecimento, dArtagnan perguntou se no era o Sr. de Comminges quecomandava a guarda.

    A sentinela mostrou-lhe um oficial que conversava, em p, com a mo apoiada no pescoo docavalo do interlocutor. Era o homem pelo qual d'Artagnan perguntara.

    A est o Sr. de Comminges disse d'Artagnan voltando para junto do Cardeal.Mazarino aproximou-se deles, ao passo que d'Artagnan, discreto, recuava; entretanto, pelo modo

    por que o oficial a p e o oficial montado se desbarretaram, percebeu que haviam reconhecido SuaEminncia.

    Bravo, Guitaut disse o Cardeal ao cavaleiro vejo que, apesar dos teus sessenta e quatroanos, s sempre o mesmo, atento e dedicado. Que dizias a esse jovem?

    Monsenhor retrucou Guitaut1 eu dizia-lhe que vivemos numa poca singular e que o diade hoje lembrava muitssimo os da Liga2, de que tanto ouvi falar quando menino. Saiba VossaEminncia que, nas ruas Saint-Denis e Saint-Martin, os rebeldes j pensavam em armar barricadas.

    E que te dizia Comminges, meu caro Guitaut? Monsenhor acudiu Comminges eu dizia-lhe que, para fazer uma Liga, s lhes faltava o

    indispensvel: um Duque de Guise; alis, ningum faz duas vezes a mesma coisa. No, mas faro uma Fronda, como dizem volveu Guitaut. E que vem a ser uma Fronda? perguntou Mazarino. o nome, Monsenhor, que do os rebeldes ao seu partido. E de onde vem esse nome? Parece que, alguns dias atrs, o Conselheiro Bachaumont disse, no Parlamento, que todos os

    organizadores de motins semelham os estudantes que atiram pedras com bodoques3 nos fossos deParis e se dispersam quando avistam o guarda, para de novo se reunirem depois que ele passa. Osrebeldes apanharam a frase no ar, como fizeram os gueux de Bruxelas, e apelidaram-sefrondistas. Hoje e ontem tudo se fez maneira da Fronda: pes, chapus, luvas, regalos, leques. Oua,oua, Eminncia.

    Nesse momento, de fato, abriu-se uma janela; surgiu um homem e principiou a cantar: Um vento da Fronda Ergueu-se mofino; Eu creio que ruge Contra o Mazarino.Um vento da Fronda Ergueu-se mofino! Insolente! murmurou Guitaut. Monsenhor acudiu Comminges, mal-humorado por causa do ferimento que recebera e cujo

    maior desejo era tomar uma desforra quer Vossa Eminncia que eu d um tiro naquele salafrriopara ensin-lo a cantar melhor?

    E levou a mo nos coldres do cavalo do tio.

  • No, no! exclamou Mazarino. Diavolo! Meu caro amigo, estragareis tudo; as coisas,pelo contrrio, vo que uma beleza! Conheo os franceses como se eu os tivesse feito, do primeiroao ltimo: se cantam, pagaro. Durante a Liga, de que h pouco falava Guitaut, s se cantavam missase tudo ia malissimamente. Vem, Guitaut, vem, e vamos ver se fazem to boa guarda no Hospcio dosCegos como na barreira dos Sargentos.

    E, cumprimentando Comminges com a mo, reuniu-se a d'Artagnan, que reassumiu o comandodo destacamentozinho, imediatamente seguido de Guitaut e do Cardeal, seguidos, por seu turno, dosdemais mosqueteiros.

    Est certo murmurou Comminges, vendo-o afastar-se eu me esquecia de que, empagando o povo, ele est satisfeito.

    A cavalgata desandou a rue Saint-Honor, dispersando os grupos, que no falavam seno noseditos do dia e lastimavam o Reizinho, que arruinava assim o povo sem o saber; toda a culpa eraatribuda a Mazarino e falava-se em procurar o Duque de Orlans e o Sr. Prncipe4, ao mesmo passoque exaltavam Blancmesnil e Broussel.

    D'Artagnan passava pelo meio dos grupos, displicente, como se ele e o seu cavalo fossem deferro; Mazarino e Guitaut conversavam em voz baixa; os mosqueteiros, que tinham reconhecido oCardeal, cavalgavam em silncio.

    Chegados rue Saint-Thomas-du-Louvre, onde se postara a guarda do Hospcio de Cegos,Guitaut chamou um oficial subalterno, que se aproximou.

    E ento? perguntou Guitaut. Ah! meu Capito disse o oficial vai tudo bem por estas bandas; mas parece que se passa

    alguma coisa naquele palcio.E indicava, com a mo, um magnfico palcio edificado exatamente no stio onde depois se

    ergueu o Vaudeville. Naquele palcio! tornou Guitaut. Mas se o palcio de Rambouillet! No sei se o palcio de Rambouillet retrucou o oficial mas sei que vi entrar l muita

    gente mal encarada. Ora! acudiu Guitaut, soltando uma gargalhada so poetas. Por favor, Guitaut! sobreveio Mazarino no me fales com tanta irreverncia desses

    cavalheiros! No sabes que tambm fui poeta na mocidade e que eu fazia versos no gnero dos que fazo Sr. de Benserade?

    Vossa Eminncia? Eu, sim. Queres que te recite alguns? No adianta, Monsenhor. No entendo italiano. Mas entendes francs, no verdade, meu bom e bravo Guitaut? volveu Mazarino,

    pousando-lhe amistosamente a mo sobre o ombro. E seja qual for a ordem que te derem nessalngua, sabers execut-la?

    Sem dvida, Monsenhor, como j o tenho feito, contanto que seja da Rainha. Ah, sim! exclamou Mazarino, mordendo os lbios. sei que lhe s inteiramente dedicado. Sou Capito de seus guardas h mais de vinte anos. A caminho, Sr. d'Artagnan tornou o Cardeal vai tudo bem deste lado.

  • D'Artagnan recolocou-se frente da coluna sem dizer uma palavra e com a obedincia passivaque caracteriza o velho soldado.

    Dirigiu-se para o alto de Saint-Roch, onde estava a terceira guarda, passando pelas ruas deRichelieu e Villedo. Era o posto mais isolado, porque se estendia quase at aos muros da cidade,pouco habitada nessa regio.

    Quem comanda este posto? perguntou o Cardeal. Villequier respondeu Guitaut. Diabo! exclamou Mazarino fala tu com ele, pois sabes que estamos de mal desde que

    foste encarregado de prender o Sr. Duque de Beaufort; ele entendia que, como Capito dos Guardas doRei, a honra lhe era devida.

    Eu sei, e j lhe disse mil vezes que no tem razo, pois o Rei no poderia dar-lhe essa ordem,visto que, naquela ocasio, tinha apenas quatro anos de idade.

    Sim, mas eu podia dar-lha, Guitaut, e preferi que fosses tu.Guitaut, sem responder, esporeou o cavalo e, dando-se a conhecer sentinela, mandou chamar o

    Sr. de Villequier. Este apareceu. Ah! sois vs, Guitaut! bradou com o mau humor que lhe era habitual que diabo viestes

    fazer aqui? Venho perguntar-vos se h alguma novidade por este lado. Que novidade quereis que haja? Toda a gente grita: "Viva o Rei!" e "Morra o Mazarino!" Isso

    no novidade; j faz algum tempo que nos habituamos a esses gritos. E fazeis coro com eles? tornou, rindo, Guitaut. Palavra que sinto, s vezes, muita vontade de faz-lo. O povo tm razo, Guitaut; eu daria de

    bom grado cinco anos de soldo, que no me pagam, para que El-Rei tivesse cinco anos mais. Sim? E que aconteceria se El-Rei tivesse cinco anos mais? Aconteceria que, sendo maior, El-Rei daria pessoalmente as suas ordens, e seria muito mais

    agradvel obedecer ao neto de Henrique IV do que ao filho de Pietro Mazarini. Pelo Rei, eu medeixaria matar com prazer; mas se fosse morto por causa do Mazarino, como o vosso sobrinhoescapou de s-lo hoje tarde, nem o mais deleitoso dos parasos seria capaz de consolar-me.

    Muito bem, Sr. de Villequier disse Mazarino. Tranqilizai-vos, que o Rei saber davossa dedicao.

    E, logo, voltando-se para a escolta: Vamos, senhores continuou tudo vai bem, regressemos. U! exclamou Villequier o Mazarino estava aqui! Melhor; havia muito tempo que eu

    desejava dizer-lhe pessoalmente o que pensava dele; vs me fornecestes a ocasio, Guitaut; e se bemas vossas intenes para comigo talvez no fossem das melhores, eu vos agradeo.

    E, girando sobre os calcanhares, tornou a entrar no corpo da guarda assobiando um estribilho daFronda.

    Mazarino, porm, regressou pensativo; o que sucessivamente ouvira de Comminges, Guitaut eVillequier confirmava-lhe a idia de que, ocorressem sucessos graves, no teria ningum por si senoa Rainha, e a Rainha tantas vezes abandonara os amigos que o seu apoio afigurava-se ao Ministro,

  • apesar das precaues que tomara, incerto e precrio.Durante todo o tempo que durara a ronda noturna, isto , cerca de uma hora, embora estudasse

    Comminges, Guitaut e Villequier, cada qual por sua vez, o Cardeal examinara um homem. Essehomem, que se mostrara impassvel diante da ameaa popular e cujo rosto no sofrer a menoralterao ante os gracejos feitos por Mazarino ou contra ele, esse homem lhe parecia um ser parte,talhado para os acontecimentos que ento se sucediam e, sobretudo para os que iam suceder-se.

    De mais a mais, o nome de d'Artagnan no lhe era de todo desconhecido, e se bem Mazarino stivesse chegado Frana entre 1634 e 1635, isto , sete ou oito anos aps os sucessos que referimosnuma histria precedente, cria o Cardeal t-lo ouvido pronunciar como o de um homem que, emcircunstncia de que j no se recordava, se notabilizara pela coragem, habilidade e dedicao.

    De tal sorte lhe senhoreou o esprito essa idia, que decidiu esclarec-la sem demora; mas asinformaes que desejava obter sobre d'Artagnan, no poderia pedi-las ao prprio d'Artagnan. Pelaspoucas palavras que pronunciara o Tenente de mosqueteiros, o Cardeal reconhecera-lhe a origemgasc; e os italianos e gasces se conhecem e parecem tanto que no se fiam do que possam dizer aseu prprio respeito. Por isso mesmo, chegado ao muro que rodeia o jardim do Palais-Royal, bateu auma portazinha situada mais ou menos onde hoje se ergue o Caf de Foy, e, depois de haveragradecido a d'Artagnan e de lhe ter dito que esperasse no ptio do Palais-Royal, fez sinal a Guitautque o seguisse. Apearam os dois, entregaram as rdeas dos animais ao lacaio que lhes abrira a porta edesapareceram no jardim.

    Meu caro Guitaut disse o Cardeal, apoiando-se ao brao do velho Capito dos guardas tume dizias, h pouco, que ests h mais de vinte anos ao servio da Rainha.

    verdade respondeu Guitaut. Sim, meu caro Guitaut continuou o Cardeal observei que, alm da coragem, que no

    admite contestao, e da fidelidade, a toda prova, tens uma extraordinria memria. Vossa Eminncia observou-o? tornou o Capito dos guardas; diabo! pior para mim. Por qu? Porque uma das primeiras qualidades do corteso , sem dvida, saber esquecer. Mas tu no s corteso, Guitaut, s um bravo soldado, um desses capites do tempo do Rei

    Henrique IV, como ainda os h, mas como, desgraadamente, j no haver daqui a pouco. Cspite, Monsenhor! Vossa Eminncia ordenou-me que o seguisse para tirar-me o horscopo? No redargiu Mazarino, dando uma risada; eu te pedi que viesses para perguntar-te se

    observaste o nosso Tenente de mosqueteiros. O Sr. d'Artagnan? Sim. No precisei observ-lo, Monsenhor, faz muito tempo que o conheo. Que espcie de homem ele? U! replicou Guitaut, surpreso um gasco! Eu sei, eu sei; mas queria saber se homem de que a gente pode confiar-se. O Sr. de Trville vota-lhe grande estima, e como Vossa Eminncia no ignora, o Sr. de

    Trville um dos grandes amigos da Rainha.

  • Eu queria saber se um homem experimentado. Se Vossa Eminncia se refere experincia militar, posso responder-lhe que um bravo

    soldado. No cerco da Rochela, em Susa e em Perpinho, ouvi dizer que fez mais do que o dever. Mas tu sabes, Guitaut, tu sabes que ns, pobres ministros, muitas vezes no precisamos apenas

    de homens corajosos. Precisamos de homens hbeis. O Sr. d'Artagnan no andou metido, no tempo doCardeal, numa intriga qualquer em que, segundo voz corrente, se houve com muita habilidade?

    Quanto a isso, Monsenhor tornou Guitaut, percebendo que o Cardeal queria faz-lo falar sou obrigado a dizer-lhe que sei apenas o que a voz corrente ter informado a Vossa Eminncia. Nuncame envolvi em intrigas por minha conta, e se tenho, s vezes, recebido confidencias sobre intrigasalheias, como o segredo no me pertence, Vossa Eminncia me permitir conserv-lo para quem moconfiou.

    Mazarino meneou a cabea. Ah! disse ele palavra que h ministros bem felizes, que sabem tudo o que querem saber. Mas esses, Monsenhor ripostou Guitaut no pesam todos os homens na mesma balana e

    procuram os de guerra para saberem de guerras e os intrigantes para saberem de intrigas. ProcureVossa Eminncia algum intrigante desse tempo e ficar sabendo o que quiser; pagando, bementendido.

    Com a breca! exclamou Mazarino, fazendo uma careta que sempre lhe escapava quando lhefalavam em dinheiro no sentido em que o fizera Guitaut... pagar-se-... se no houver outro meio.

    Vossa Eminncia me pede seriamente que lhe indique um homem que andou envolvido emtodas as cabalas daquele tempo?

    Per Bacco! tornou Mazarino, que principiava a impacientar-se faz uma hora que no tepeo outra coisa, cabeudo!

    H um pelo qual responde nesse sentido, se ele quiser falar. Isso comigo. Ah! Monsenhor! nem sempre fcil obrigar os outros a dizerem o que no querem dizer. Ora! Com um pouco de pacincia... Esse homem ... o Conde de Rochefort. O Conde de Rochefort! Mas h uns quatro ou cinco anos que, infelizmente, desapareceu e no sei o que foi feito dele. Eu sei, Guitaut acudiu Mazarino. Ento por que se queixava h pouco Vossa Eminncia de que no sabe nada? E tu crs disse Mazarino que Rochefort... Era a alma danada do Cardeal, Monsenhor; mas previno a Vossa Eminncia que isso lhe

    custar caro; o Cardeal era prdigo com os seus. Sim, sim, Guitaut volveu Mazarino era um grande homem, mas tinha esse defeito.

    Obrigado, Guitaut, aproveitarei o teu conselho hoje mesmo.E como, nesse momento, os dois interlocutores houvessem chegado ao ptio do Palais-Royal, o

    Cardeal cumprimentou Guitaut com a mo e, vendo um oficial que andava de um lado para outro,

  • aproximou-se dele.Era d'Artagnan, que esperava o regresso do Cardeal, como este lhe ordenara que fizesse. Vinde, Sr. d'Artagnan chamou Mazarino com a sua voz mais adocicada tenho uma

    ordem para dar-vos.D'Artagnan inclinou-se, seguiu o Cardeal pela escada secreta e, um instante depois, viu-se no

    gabinete de onde sara. Sentou-se o Cardeal diante da secretria e pegou numa folha de papel em queescreveu algumas linhas.

    Em p, impassvel, d'Artagnan esperou sem impacincia e sem curiosidade: convertera-se numautmato militar, que agia, ou melhor, obedecia por meio de molas.

    O Cardeal dobrou a carta e imprimiu-lhe o sinete. Sr. D'Artagnan disse ele levareis este ofcio Bastilha e trareis a pessoa a que ele se

    refere; providenciai um carro, uma escolta e guardai cuidadosamente o prisioneiro.D'Artagnan tomou a carta, levou a mo ao chapu, girou sobre os calcanhares, como o teria feito

    o mais hbil dos sargentos instrutores, saiu, e, volvido um instante, ouviram-no ordenar, com vozbreve e montona:

    Quatro homens de escolta, um carro e o meu cavalo. Cinco minutos depois retiniam sobre aslajes do ptio as rodas do veculo e as ferraduras dos cavalos.

  • ... levareis este ofcio Bastilha...

    1 Marqus Lus de Guitaut, capito dos guardas da Rainha. No seu caderninho de apontamentos, em que tinha o hbito de anotarquanto lhe parecesse de alguma importncia, observa Mazarino que o velho capito se apaixonara pela Rainha e tinha cimes detodo o mundo; e escreve: "Ghitto: gelosia, non mi guarda; bestiale et io non lo soffriro" ou seja: "Guitaut: cime, no olha paramim; estpido, e no o permitirei." (N. do T.)

    2 Tambm chamada Santa Unio, foi a Liga uma confederao do partido catlico em Frana, que se formou aps a concluso de umtratado que concedia grandes vantagens aos huguenotes, em 1576. Partido ao mesmo tempo democrtico e catlico, tinha comochefe Henrique de Guise, e chegou a exigir o estabelecimento da Inquisio em Frana. O Rei Henrique III, entretanto, ops-se spretenses dos partidrios da Liga e mandou assassinar- lhes o chefe, o Duque de Guise, sendo, pouco depois, assassinado pelodominicano Jacques Clment. Aps uma srie de lutas, em que os adeptos da Santa Unio se celebrizaram tristemente pelos excessosque cometeram, foram definitivamente vencidos pelo Rei Henrique IV. (N. do T.)

    3 Fronder significa, em francs, atirar pedras com funda, bodoque, estilingue, atiradeira, beca, etc. E releva acentuar que adenominao de Fronde aplicada revolta que estalou em Frana contra a autoridade de Ana d'ustria e, sobretudo, de Mazarino,durante a menoridade de Lus XIV, e que durou de 1648 a 1653, nasceu, efetivamente, da comparao feita pelo ConselheiroBachaumont (Retz, Memrias, II, 493). (N. do T.)

    4 Assim como chamavam ao Cardeal Mazarino o Sr. Cardeal, e ao Duque de Orlans "Monsieur", isto , "Senhor", assim se chamavaSr. Prncipe de Conde, primeiro prncipe de sangue. Essa maneira de designar as pessoas que desfrutavam de uma posioprivilegiada era corrente e significava que a pessoa mencionada era "o Prncipe" ou "o Cardeal" por excelncia. (N. do T.)

  • Captulo III - Dois antigos inimigos

    D'ARTAGNAN chegou Bastilha quando soavam oito horas e meia. Fez-se anunciar aoGovernador, que, sabendo que ele vinha da parte do Ministro e trazia uma ordem sua, foi receb-lo entrada.

    O Governador da Bastilha era, ento, o Sr. du Tremblay, irmo do famoso capuchinho Jos, oterrvel favorito de Richelieu, a quem chamavam a Eminncia parda.

    Quando o Marechal de Bassompierre estava na Bastilha, onde ficou doze anos bem contados, e oscompanheiros, em seus sonhos de liberdade, diziam uns aos outros: "Sairei em tal poca" e "Eu, em taltempo", Bassompierre respondia: "E eu, senhores, sairei quando sair o Sr. du Tremblay". O quesignificava que, morrendo o Cardeal, o Sr. du Tremblay no poderia menos de perder o lugar naBastilha e Bassompierre de retomar o seu na Corte.

    A predio, com efeito, quase se realizou, mas de maneira diversa da que pensara Bassompierre,pois, morto o Cardeal, contra todas as expectativas, as coisas continuaram como estavam: o Sr. deTremblay no saiu e por pouco no saiu tambm o Marechal.

    Por conseguinte, era ainda Governador da Bastilha o Sr. de Tremblay quando d'Artagnan seapresentou para cumprir a ordem do Ministro; ele recebeu-o com suma polidez e, como fosse sentar-se mesa naquele instante, convidou d'Artagnan para jantar.

    Eu teria o mximo prazer respondeu d'Artagnan; mas, se no me engano, no invlucroda carta est escrito urgentssimo.

    verdade concordou o Sr. du Tremblay. Ol, major! faa-se descer o nmero 256.Quem entrasse na Bastilha, deixava de ser homem para converter-se em nmero.D'Artagnan sentiu um calafrio ao rudo das chaves; por isso mesmo continuou montado, sem

    querer apear, examinando as grades, as janelas reforadas, os muros enormes, que s vira do outrolado dos fossos e que tanto medo lhe haviam provocado uns vinte anos antes.

    Um sino repicou. Com licena disse-lhe o Sr. du Tremblay esto me chamando para assinar a ordem de

    sada do prisioneiro. At vista, Sr. d'Artagnan. Raios me partam se correspondo ao teu cumprimento! murmurou d'Artagnan,

    acompanhando a imprecao com o mais gracioso dos sorrisos; s de ficar cinco minutos aqui noptio j me sinto mal. Estou vendo que prefiro mil vezes morrer na misria, o que provavelmente meacontecer, a juntar dez mil libras de renda como Governador da Bastilha.

    Apenas terminara o monlogo, surgiu o preso. Vendo-o, d'Artagnan fez um gesto de surpresa, quelogo reprimiu. O prisioneiro entrou no carro sem haver, aparentemente, reconhecido o gasco.

    Senhores disse d'Artagnan aos quatro mosqueteiros recomendaram-me que vigiasse como mximo cuidado o prisioneiro; ora, como o carro no tem fechaduras nas portinholas, irei ao seulado. Sr. de Lillebonne, tende a bondade de puxar o meu cavalo.

    Perfeitamente, meu tenente! respondeu o interpelado.D'Artagnan apeou, entregou as rdeas do animal ao mosqueteiro, subiu no carro, colocou-se ao

    lado do preso e, com uma voz em que seria impossvel distinguir a menor emoo: Para o Palais-Royal, a trote disse ele.

  • O carro partiu incontinenti e d'Artagnan, aproveitando-se da escurido reinante sob a abbada queatravessavam, atirou-se aos braos do preso.

    Rochefort! exclamou. Vs! Sois vs! No me enganei! D'Artagnan! exclamou, por sua vez, Rochefort, espantadssimo. Ah! meu pobre amigo! continuou d'Artagnan como no vos visse h quatro ou cinco

    anos, pensei que tivsseis morrido. A minha f tornou Rochefort no h muita diferena, creio eu, entre um morto e um

    enterrado; e eu, se no estou enterrado, pouco falta. E por que crime estais na Bastilha; Quereis que vos diga a verdade? Quero. No sei. Desconfiais de mim, Rochefort? No, palavra de gentil-homem! impossvel que me tenham prendido pelo motivo que

    alegam. Que motivo? Furto. Furto? Vs? Gracejais, Rochefort? Compreendo. O caso exige uma explicao, no exige? Confesso que sim. Pois bem, eis o que aconteceu: certa noite, depois de uma orgia em casa de Reinard, nas

    Tulherias, com o Duque d'Harcourt, Fontrailles, de Rieux e outros, props o Duque d'Harcourt quefssemos roubar capotes na Pont-Neuf; como sabeis, um divertimento a que deu muita voga o Sr.Duque d'Orlans.

    Estveis louco, Rochefort! Na vossa idade? No, eu estava bbedo; e no entanto, como o divertimento me parecesse medocre, propus ao

    Cavaleiro de Rieux assistirmos ao espetculo em vez de participarmos dele, e, para poder faz-lomelhor, subirmos ao cavalo de bronze. Dito e feito. Graas s esporas, que nos serviram de estribos,num instante conseguimos empoleirar-nos na garupa; estvamos muito bem e vamos tudo. Quatro oucinco capotes j tinham sido arrancados com insupervel destreza e sem que as vtimas ousassemreclamar, quando no sei que imbecil, menos cordato que os outros, cismou de gritar: "Aqui del-rei!" echamou a ateno de uma patrulha de arqueiros. O Duque d'Harcourt, Fontrailles e os outros abriramno p; de Rieux quis fazer o mesmo. Segurei-o dizendo-lhe que ningum nos descobriria ondeestvamos.

    Ele no me ouviu, apoiou o p na espora para descer, a espora partiu-se, ele caiu, quebrou umaperna e, em vez de ficar quieto, comeou a gritar como um condenado. Eu quis saltar tambm, mas jera muito tarde: ca nos braos dos arqueiros, que me conduziram ao Chtelet, onde dormi como umjusto, certo de que seria libertado na manh seguinte. Passou-se o dia seguinte, passou-se mais um,oito dias se passaram; escrevi ao Cardeal. Nesse dia foram buscar-me e conduziram-me Bastilha; ej faz cinco anos que l estou. Acreditais que tenha sido pelo sacrilgio de haver montado na garupa

  • de Henrique IV? No, tendes razo, meu caro Rochefort, no deve ser por isso; mas, provavelmente, sabereis

    agora por que foi. Ah! sim, porque eu me esquecia de perguntar-vos: aonde me levais? Ao Cardeal. Que me quer ele? No sei, pois eu nem sabia quem era a pessoa que me mandaram buscar. Impossvel! Vs, um favorito! Um favorito! Eu? exclamou dArtagnan. Ah! meu pobre Conde, sou hoje mais caula da

    Gasconha do que no dia em que vos encontrei em Meung, h vinte e tantos anos!E um profundo suspiro rematou-lhe a frase. Mas fostes encarregado de um servio. Porque estava, por acaso, na antecmara, e o Cardeal me chamou como teria chamado outro

    qualquer; continuo sendo tenente de mosqueteiros, e isso, se no me falha a memria, h quase vinte eum anos.

    O fato que no vos sucedeu nenhuma desgraa. J no pouco. E que desgraa quereis que me sucedesse? Como diz no sei que verso latino que esqueci, ou

    melhor, que eu nunca soube direito: "O raio no fulmina os vales"; e eu sou um vale, meu caroRochefort, e dos mais rasos.

    O Mazarino, ento, continua Mazarino? Mais do que nunca, meu caro; dizem-no casado com a Rainha. Casado! Se no marido ser amante, com certeza. Resistir a um Buckingham e ceder a um Mazarino! Assim so as mulheres! redargiu, filosfico, dArtagnan. As mulheres, sim, mas as rainhas! Ora! nesse sentido, as rainhas so duplamente mulheres. E o Sr. de Beaufort, continua preso? Continua; por qu? Porque, sendo meu amigo, poderia ajudar-me. Estais, provavelmente, mais prximo da liberdade do que ele. E, assim sendo, vs que

    podereis ajud-lo. Ento, a guerra... inevitvel. Com o espanhol? No, com Paris. Como?

  • No ouvis esses tiros? Ouo. Que que tm? So os burgueses que treinam antes do jogo. Acreditais que se possa fazer alguma coisa dos burgueses? Creio que sim. Eles prometem, e se tiverem um chefe que rena todos os grupos... uma desgraa no estar livre. Por Deus, no vos desespereis! Se Mazarino manda buscar-vos, que precisa de vs; e se

    precisa de vs, felicito-vos. Faz muitos anos j que ningum precisa de mim; por isso mesmo, vedeonde estou.

    E tendes coragem de queixar-vos! Escutai, Rochefort. Um pacto... Que pacto? Somos bons amigos. Se somos! Ainda conservo as marcas da nossa amizade: trs estocadas!... Pois bem, se cairdes novamente em graa, no vos esqueais de mim. Palavra de Rochefort; mas com a condio de que faais o mesmo. Feito: aqui est minha mo. Portanto, na primeira ocasio em que puderdes falar de mim... Falarei. E vs? Eu tambm. A propsito, e os vossos amigos? Ser preciso falar deles tambm? Que amigos? Athos, Porthos e Aramis. J os esquecestes? Quase. Que foi feito deles? No sei. Verdade? Verdade. Ah! meu Deus, ns nos separamos como sabeis: ainda vivem, e tudo o que posso

    dizer-vos; chegam-me, de longe em longe, notcias indiretas. Mas o diabo me carregasse se sei em quelugar do mundo se encontram neste momento. No, palavra de honra, o nico amigo que me resta soisvs, Rochefort.

    E o ilustre... como se chama o rapaz que nomeei sargento do regimento de Piemonte? Planchet? Ele mesmo. E o ilustre Planchet, que feito dele? Casou com uma confeiteira de rue Les Lombards. O rapaz sempre se lambeu por doces. De

    sorte que hoje burgus de Paris e, muito provavelmente, anda amotinado a estas horas. Vereis que opatife ainda ser vereador antes que me faam capito.

  • Vamos, meu caro d'Artagnan, um pouco de coragem! Quando estamos no ponto mais baixo daroda que a roda vira e nos eleva. Esta noite talvez mude a vossa sorte.

    Amm! disse d'Artagnan, mandando parar o carro. Que fazeis? perguntou Rochefort. Chegamos e no quero que me vejam sair do carro; no nos conhecemos. Tendes razo. Adeus. At vista; lembrai-vos da promessa.E d'Artagnan, tornando a cavalgar, ps-se frente da escolta.Cinco minutos depois, entravam no ptio do Palais-Royal.D'Artagnan conduziu o prisioneiro pela escada principal e f-lo atravessar a antecmara e o

    corredor. Chegado porta do gabinete de Mazarino, j se dispunha a mandar-se anunciar, quandoRochefort lhe ps a mo no ombro.

    D'Artagnan disse Rochefort, a sorrir quereis que eu vos confesse uma coisa em quepensei durante todo o trajeto, vendo os grupos de burgueses que atravessvamos e que vos olhavam, avs e aos vossos quatro homens, com olhos fuzilantes?

    Dizei respondeu d'Artagnan. Bastava-me gritar por socorro para que vs e a vossa escolta fsseis estraalhados e eu me

    visse em liberdade. E por que no o fizestes? perguntou d'Artagnan. Ora! tornou Rochefort. E a amizade que juramos? Ah! Se outro me escoltasse, no digo

    que no...D'Artagnan inclinou a cabea. Teria Rochefort ficado melhor do que eu? disse entre si.E fez-se anunciar ao Ministro. Fazei entrar o Sr. de Rochefort disse a voz impaciente de Mazarino, assim que ouviu

    pronunciados os dois nomes e pedi ao Sr. d'Artagnan que espere: ainda preciso falar com ele.Essas palavras encheram de jbilo o gasco. Como dissera, fazia muito tempo que ningum

    precisava dele e a insistncia de Mazarino a seu respeito lhe parecia um feliz pressgio.Quanto a Rochefort, no produziu sobre ele outro efeito que o de p-lo de sobreaviso. Entrou no

    gabinete e encontrou Mazarino sentado mesa com os trajos de sempre, isto , o hbito demonsignor, que era, pouco mais ou menos, a vestimenta dos padres do tempo, tirante as meias e omanto roxo que usava.

    Fecharam-se de novo as portas. Rochefort considerou Mazarino de soslaio e surpreendeu o olhardo Ministro, que cruzava com o seu.

    O Ministro era sempre o mesmo: bem penteado, bem frisado, bem perfumado e, graas suacasquilhice, no aparentava a idade que tinha.

    Quanto a Rochefort, o caso era outro: os cinco anos que passara na priso tinham envelhecidobastante o digno amigo do Sr. de Richelieu; os cabelos pretos haviam embranquecido completamentee o bronzeado da tez fora substitudo por uma palidez que se diria provocada pelo esgotamento.

  • Vendo-o, Mazarino sacudiu imperceptivelmente a cabea, como quem dissesse: Eis a um homem que j no me parece prestar para nada.Depois de um silncio realmente longo, mas que se afigurou um sculo a Rochefort, Mazarino

    tirou de um mao de papis uma carta aberta e, mostrando-a ao fidalgo: Encontrei aqui uma carta em que reclamveis a vossa liberdade, Sr. de Rochefort. Estveis

    preso?Rochefort estremeceu ouvindo a pergunta. Eu tinha a impresso de que Vossa Eminncia sabia disso melhor do que ningum disse ele. Eu? Absolutamente. H ainda na Bastilha uma quantidade de prisioneiros que l se encontram

    desde o tempo do Sr. de Richelieu, e cujos nomes at ignoro. Sim, mas comigo a coisa diferente, Monsenhor! E Vossa Eminncia no ignora o meu, pois

    foi por ordem sua que me transferiram do Chtelet Bastilha. Parece-vos isso? Tenho certeza. Sim, creio que agora me lembro; no haveis, nessa ocasio, recusado fazer para a Rainha uma

    viagem a Bruxelas? Ah! ah! exclamou Rochefort essa, ento, a verdadeira causa? Faz cinco anos que a

    procuro. Foi tolice minha no a ter encontrado. Mas eu no estou dizendo que tenha sido essa a causa da vossa priso; entendamo-nos, uma

    pergunta que vos fao, e mais nada: no vos recusastes a ir a Bruxelas a servio da Rainha, ao passoque concordastes em faz-lo a servio do finado Cardeal?

    Era exatamente por ter ido a servio do finado Cardeal que eu no podia voltar a servio daRainha. Eu estivera em Bruxelas numa circunstncia terrvel, durante a conspirao de Chalais1.Levara a incumbncia de surpreender a correspondncia de Chalais com o Arquiduque e, j nessapoca, quando fui reconhecido, quase me espedaaram. Como queria Vossa Eminncia que euvoltasse? Em vez de servir a Rainha, s vingaria perd-la.

    Pois a tendes como so mal interpretadas as melhores intenes, meu caro Sr. de Rochefort.A Rainha no viu na vossa recusa seno uma recusa pura e simples; Sua Majestade tivera sobejasrazes de queixa contra vs no tempo do finado Cardeal.

    Rochefort sorriu, desdenhoso. Justamente porque servi bem o Sr. Cardeal de Richelieu contra a Rainha, que, depois da sua

    morte, devia compreender Vossa Eminncia que eu o serviria bem contra toda a gente. Eu, Sr. de Rochefort disse Mazarino eu no sou como o Sr. de Richelieu, que aspirava

    onipotncia; sou um simples ministro, que no precisa de servidores porque sou um mero servidor daRainha. Ora, Sua Majestade muito suscetvel; sabedora da vossa recusa, t-la- interpretado comouma declarao de guerra e, sabendo que sois um homem superior e, portanto, perigoso, meu caro Sr.de Rochefort, ter-me- ordenado que vos vigiasse. Eis por que vos encontrais na Bastilha.

    Pois bem, Monsenhor, parece-me disse Rochefort que se por engano que me encontrona Bastilha...

    Sim, sim voltou Mazarino tudo isso, sem dvida, pode arrumar-se; sois capaz de

  • compreender certos negcios e, tendo-os compreendido, lev-los a bom termo. Era a opinio do Sr. Cardeal de Richelieu, e a minha admirao por esse grande homem torna-

    se ainda maior quando Vossa Eminncia se digna dizer-me que dela comparte. Com efeito tornou Mazarino o Sr. Cardeal era muito poltico, e da a sua grande

    superioridade sobre mim, que sou um homem extremamente simples e sem rodeios; o que meprejudica a minha franqueza verdadeiramente francesa.

    Rochefort mordeu os lbios para no sorrir. Chego, portanto, ao meu fim. Preciso de bons amigos, de servidores fiis; quando digo

    preciso, quero dizer: a Rainha precisa. No fao nada seno por ordem da Rainha, compreendeis? Nosou como o Sr. Cardeal de Richelieu, que seguia em tudo o seu capricho. Por isso, nunca serei umgrande homem como ele; mas, em compensao, sou um homem bom, Sr. de Rochefort, e esperopoder prov-lo.

    Rochefort conhecia-lhe a voz sedosa, em que se intercalava de quando em quando um silvo,lembrando o de uma vbora.

    Estou pronto para acreditar em Vossa Eminncia disse ele se bem, de minha parte, eutenha tido poucas provas dessa bondade, de que me fala. No se esquea Vossa Eminncia prosseguiu Rochefort, observando o movimento que o Ministro tentava reprimir no se esquea deque estou h cinco anos na Bastilha, e nada deturpa tanto as idias quanto ver as coisas atravs dasgrades de uma priso.

    Ah! Sr. de Rochefort, eu j vos disse que no tenho nada com a vossa priso. A Rainha...(clera de mulher e de princesa, que se h de fazer! Mas isso passa como vem e se esquece comopassa)...

    Imagino, Monsenhor, que ela o tenha esquecido, pois passou cinco anos no Palais-Royal, entrefestas e cortesos; mas eu, que os passei na Bastilha...

    Por Deus, meu caro Sr. de Rochefort, acreditais, acaso, que o Palais-Royal seja um stio muitoalegre? Nada disso. Ns tambm tivemos aqui muitssimas contrariedades. Mas no falemos maisnisso. Eu, como sempre, ponho as cartas na mesa. Vejamos: sois dos nossos, Sr. de Rochefort?

    Vossa Eminncia h de compreender que no desejo outra coisa, mas o caso que j no estoua par de mais nada. Na Bastilha, s falamos em poltica com soldados e carcereiros e Vossa Eminnciano faz idia da ignorncia dessa gente sobre as coisas que acontecem. Por mim, ainda estou no Sr. deBassompierre... Ele continua sendo um dos dezessete magnatas?

    Morreu, senhor, e foi uma grande perda. Era um homem dedicado Rainha, e os homensdedicados so raros.

    No duvido! acudiu Rochefort. Quando Vossa Eminncia os encontra, manda-os para aBastilha.

    Mas, afinal tornou Mazarino qual a prova da dedicao? A ao respondeu Rochefort. Ah! sim, a ao! repetiu o ministro, em tom reflexivo; e onde encontrar os homens de

    ao?Rochefort meneou a cabea. o que nunca falta, Monsenhor; mas Vossa Eminncia procura mal.

  • Procuro mal? Que quereis dizer, meu caro Sr. de Rochefort? Vamos, esclarecei-me. Deveis teraprendido muito na intimidade do finado Sr. Cardeal. Era to grande homem!

    Vossa Eminncia no se zangar se eu lhe pregar um pouco de moral? Eu? Nunca! Sabeis muito bem que me podem dizer tudo. Busco fazer-me querer e no fazer-

    me temer. Pois bem, Monsenhor, h no meu calabouo um provrbio escrito na parede com a ponta de

    um prego. E que provrbio esse? Ei-lo, Monsenhor: Tal amo... J sei: tal criado. No: tal servidor. uma modificaozinha que as pessoas dedicadas de que h pouco falei

    nele introduziram para sua satisfao particular. E ento? Que significa o provrbio? Significa que o Sr. de Richelieu soube encontrar servidores dedicados, s dzias. Ele, o alvo de todos os punhais! ele, que passou a vida aparando os golpes que lhe

    endereavam! Mas o caso que os aparou, e olhe que eram bem vigorosos os tais golpes. Pois se tinha bons

    inimigos, tinha tambm bons amigos. Exatamente o que desejo! Conheci pessoas continuou Rochefort, julgando azado o momento para cumprir a promessa

    que fizera a d'Artagnan conheci pessoas que, pela habilidade, puseram cem vezes em cheque apenetrao do Cardeal; pela bravura, venceram-lhe os guardas e espies; sem dinheiro, sem apoio,sem crdito, conservaram a coroa numa cabea coroada e obrigaram o Cardeal a pedir trguas.

    Mas essas pessoas de que falais disse Mazarino, sorrindo intimamente ao perceber queRochefort chegava aonde ele prprio queria conduzi-lo essas pessoas no eram dedicadas aoCardeal, visto que lutavam contra ele.

    No. Se o fossem, teriam sido melhor recompensadas; mas tinham a desgraa de seremdedicadas a essa mesma Rainha para a qual, h pouco, Vossa Eminncia pedia servidores.

    E como podeis saber todas essas coisas? Sei-as porque, nessa ocasio, essas pessoas eram minhas inimigas, porque lutavam contra

    mim, porque eu lhes fiz todo o mal que pude, porque elas me pagaram com a mesma moeda, porqueuma delas, com quem me precisei haver mais especialmente, deu-me uma estocada, h cerca de seteanos; era a terceira que eu recebia da mesma mo... saldo de uma conta muito antiga.

    Ah! exclamou Mazarino com admirvel bonomia se eu conhecesse pessoas assim! Ora! Vossa Eminncia tem uma sua porta h mais de seis anos e h mais de seis anos que a

    julga imprestvel. Quem ? O Sr. d'Artagnan. Esse gasco! bradou Mazarino, com surpresa muito bem fingida.

  • Esse gasco salvou uma rainha e forou o Sr. de Richelieu a confessar que, em matria dehabilidade, astcia e poltica, no passava de um aprendiz.

    Deveras? como tenho a honra de dizer a Vossa Excelncia. Contai-me como foi isso, meu caro Sr. de Rochefort. bem difcil, Monsenhor respondeu, sorrindo, o gentil-homem. Ele mesmo, ento, mo contar. Duvido, Monsenhor. Por qu? Porque o segredo no lhe pertence; porque, como eu j disse a Vossa Eminncia, o segredo

    pertence a uma grande Rainha. E ele executou sozinho tamanha empresa? No, Monsenhor. Tinha trs amigos, trs bravos que o secundavam, bravos com os que, h

    pouco, Vossa Eminncia procurava. E eram unidos esses quatro homens? Como se fossem apenas um, como se os quatro coraes batessem num peito s. E quanta

    coisa fizeram! Meu caro Sr. de Rochefort, a verdade que me despertais a curiosidade a um ponto

    extraordinrio. No podereis narrar-me a histria? No, mas posso contar-lhe um conto, um verdadeiro conto de fadas, Monsenhor. Oh! contai-me ento, Sr. de Rochefort; gosto muito de contos. Vossa Eminncia quer mesmo ouvi-lo? tornou Rochefort, procurando vislumbrar uma

    inteno no rosto sutil e astuto. Quero. Pois, ento, oua! Era uma vez uma rainha... uma rainha poderosa, rainha de um dos maiores

    reinos do mundo, a que um ministro queria muito mal por lhe haver querido, outrora, muito bem. Noprocure saber quem , Monsenhor! Vossa Eminncia no lograria adivinh-lo. Tudo isso se passavamuito tempo antes de Vossa Eminncia chegar ao reino em que reinava essa rainha. Ora, surgiu nacorte um embaixador, to corajoso, to rico e to elegante que todas as mulheres se apaixonaram porele, e a prpria rainha, de certo como lembrana do modo por que ele tratara os assuntos de Estado,teve a imprudncia de dar-lhe certa jia to notvel que no poderia ser substituda. E como fosse ajia um presente do rei, o ministro fez que o soberano exigisse da rainha que a ostentasse no baileseguinte. No preciso dizer a Vossa Eminncia que o ministro sabia, de cincia certa, que a jiaseguira o embaixador e que o embaixador estava muito longe, do outro lado dos mares. A granderainha viu-se perdida! perdida como a ltima de suas sditas, pois caa do alto de toda a sua grandeza.

    Sim, senhor! atalhou Mazarino. Pois bem, Monsenhor! quatro homens decidiram salv-la. No eram prncipes, no eram

    duques, no eram poderosos, no eram sequer ricos: eram quatro soldados de grande corao, braovigoroso e espada franca. Partiram. O ministro soube da partida e colocou os seus sequazes nocaminho para imped-los de chegarem ao seu destino. Trs foram postos fora de combate pelos

  • numerosos assaltantes; mas um chegou ao porto, matou ou feriu os que se atreveram a det-lo, cruzouo mar e devolveu a jia grande rainha, que pde galharde-la no dia marcado, para desespero doministro. Que diz Vossa Eminncia dessa faanha?

    Magnfica! respondeu Mazarino, reflexivo. Pois eu sei de uma dzia delas.Mazarino j no falava, meditava.Cinco ou seis minutos se passaram. Vossa Eminncia no tem mais nada para perguntar-me? indagou Rochefort. Tenho. Dizeis que o Sr. d'Artagnan era um desses quatro homens? Foi ele quem levou a bom termo a empresa. E os outros, quem eram? Permita Vossa Eminncia que eu deixa ao Sr. d'Artagnan o cuidado de nome-los. Eram

    amigos dele e no meus; s ele poderia influir-lhes no esprito e eu nem sequer lhes conheo osverdadeiros nomes.

    Desconfiai de mim, Sr. de Rochefort. Pois bem, quero ser franco at ao fim: preciso de vs,dele, de todos!

    Comecemos por mim, Monsenhor, j que Vossa Eminncia me mandou buscar e eu estou aqui.Depois falaremos dos outros. Vossa Eminncia no se admirar da minha curiosidade: depois depassar cinco anos numa priso, qualquer pessoa gostaria de saber aonde pretendem mand-la.

    Vs, meu caro Sr. de Rochefort, tereis o posto de confiana, ireis a Vincennes onde est presoo Sr. de Beaufort e guard-lo-eis vista. Mas, afinal, que tendes?

    Tenho que a proposta de Vossa Eminncia impraticvel tornou Rochefort, sacudindo acabea com ar decepcionado.

    Impraticvel? Como? E por que seria impraticvel? Porque o Sr. de Beaufort meu amigo, ou melhor, eu sou amigo dele; j se esqueceu Vossa

    Eminncia de que foi ele quem se responsabilizou por mim perante a Rainha?Mas, de ento para c, o Sr. de Beaufort passou a ser inimigo do Estado. Pode ser, Monsenhor; mas como no sou rei, nem rainha, nem ministro, ele no meu inimigo

    e eu no posso aceitar a oferta de Vossa Eminncia. E a isso que chamais dedicao? Meus parabns! A vossa dedicao no vos obriga a muito,

    Sr. de Rochefort. De mais a mais, Monsenhor tornou Rochefort Vossa Eminncia h de compreender que

    sair da Bastilha para entrar em Vincennes apenas mudar de priso. Dizei logo que sois do partido do Sr. de Beaufort. Ser mais franco de vossa parte. Monsenhor, estive encarcerado tanto tempo que hoje s tenho um partido: o partido do ar

    livre. Empregue-me Vossa Eminncia em qualquer outra coisa, encarregue-me de uma missoqualquer, ocupe-me ativamente, mas em plena liberdade, se for possvel.

    Meu caro Sr. de Rochefort disse Mazarino com o seu ar chocarreiro o zelo vos exalta;cuidais que ainda sois moo, porque tendes um corao jovem; mas no tereis foras suficientes.

  • Acreditai-me: neste momento estais precisando de repouso. Ol, venha algum! Vossa Eminncia, ento, no decide nada a meu respeito? Pelo contrrio, j decidi. Bernouin entrou. Chama um guarda ordenou e fica ao meu lado a juntou em voz baixa.Entrou o guarda. Mazarino escreveu algumas palavras, que entregou ao recm-chegado, e

    cumprimentou com a cabea. Adeus, Sr. de Rochefort!Rochefort inclinou-se respeitosamente. Vejo, Monsenhor disse ele que me reconduzem Bastilha. Sois inteligente. Volto, Monsenhor; mas repito-lhe que Vossa Eminncia faz mal em no querer aproveitar-me. Vs, o amigo de meus inimigos! Que quer? Vossa Eminncia deveria fazer-me inimigo de seus inimigos. Imaginais, Sr. de Rochefort, que sois o nico. Crede-me, encontrarei outros que vos valham. Assim o desejo. Muito bem. Ide, ide! E, a propsito, intil que tornei a escrever-me, Sr. de Rochefort; as

    vossas cartas seriam perdidas. Tirei as castanhas do fogo murmurou Rochefort, afastando-se; e se dArtagnan no ficar

    satisfeito comigo quando eu lhe contar, daqui a pouco, o elogio que lhe fiz, ser difcil de contentar.Mas aonde diabo me levam?

    Rochefort, com efeito, estava sendo conduzido pela escada secreta, em vez de passar pelaantecmara, onde esperava d'Artagnan. No ptio, encontrou o carro e os quatro homens da escolta queo haviam trazido; mas procurou em vo o amigo.

    Ah! ah! disse consigo mesmo o Conde o caso muda inteiramente de figura! E se aindahouver muita gente pelas ruas, como h pouco, tentaremos provar ao Mazarino que ainda prestamospara outra coisa, louvado seja Deus! que no guardar um prisioneiro.

    E saltou para o carro com a ligeireza de um rapaz de vinte e cinco anos.

    1 Henrique de Talleyrand, Conde de Chalais. Favorito de Lus XIII, notabilizou-se por atos de bravura nos cercos de Montpellier e deMontauban, mas teve a infelicidade de meter- se com a Duquesa de Chevreuse, sua amante, numa conspirao contra a vida deRichelieu: este o acusou de haver conspirado contra o prprio Rei, e Lus XIII, apesar da amizade que lhe votava, mandou-o prenderem Nantes, julgar e decapitar. Chalais tinha, ento, vinte e seis anos. (N. do T.)

  • Captulo IV - Ana dustria aos quarenta e cinco anos

    FICANDO s com Bernouin, Mazarino quedou pensativo um instante; j sabia muita coisa, masainda no sabia tudo. Mazarino trapaceava no jogo, segundo nos revela Brienne, e chamava a issotomar vantagens. Decidiu no iniciar a partida com d'Artagnan enquanto no conhecesse todas ascartas do adversrio.

    Vossa Eminncia no manda nada? perguntou Bernouin. Mando retrucou Mazarino; alumia-me o caminho, que eu vou ter com a Rainha.Bernouin pegou num castial e ps-se a andar na frente.Havia uma passagem secreta que ligava os aposentos e o gabinete do Ministro aos aposentos da

    Rainha; por esse corredor passava o Cardeal para comunicar-se com Ana d'ustria1.Chegado alcova em que desembocava o corredor, Bernouin encontrou a Sra. Beauvais. A Sra.

    Beauvais e Bernouin eram os ntimos confidentes desses amores caducos; e a Sra. Beauvaisencarregou-se de anunciar o Cardeal a Ana d'ustria, que se encontrava no oratrio com o jovem LusXIV2.

    Sentada numa grande poltrona, o cotovelo apoiado numa mesa e a cabea apoiada na mo, Anad'ustria contemplava o real menino, que, deitado no tapete, folheava um grande livro de batalhas.Ana d'ustria era a Rainha que melhor sabia entediar-se com majestade; e, a revezes, ficava horas ehoras recolhida assim no quarto ou no oratrio, sem ler nem rezar.

    Quanto ao livro com que brincava o Rei, era um Quinto Crcio enriquecido de gravuras,representando os altos feitos de Alexandre.

    A Sra. Beauvais assomou porta do oratrio e anunciou o Cardeal de Mazarino.O menino se ergueu sobre um dos joelhos, o cenho cerrado, e, encarando com a me: Por que perguntou entra ele sem pedir audincia?Ana corou levemente. preciso explicou que um Primeiro Ministro, na poca em que estamos, possa vir

    informar a Rainha, a qualquer momento, de tudo o que se passa, sem despertar a curiosidade ou oscomentrios de toda a Corte.

    Mas parece-me que o Sr. de Richelieu no entrava assim tornou menino, implacvel. Como te lembras do que fazia o Sr. de Richelieu? No podes sab-lo, pois eras muito pequeno. Eu no me lembro. Perguntei e disseram-me. E quem te disse isso? tornou Ana d'ustria, mal disfarando um gesto de enfado. No devo nomear as pessoas que respondem s minhas perguntas retrucou a criana

    pois, do contrrio, no me diro mais nada.Nesse momento entrou Mazarino. O Rei levantou-se, tomou do livro, fechou-o e foi coloc-lo

    sobre a mesa, diante da qual permaneceu em p, para obrigar Mazarino a ficar em p tambm.Mazarino observava com o olhar inteligente toda a cena, qual parecia pedir a explicao da

    cena anterior.Inclinou-se, respeitoso, diante da Rainha e fez profunda reverncia ao Rei, que lhe respondeu

  • com sobranceiro aceno de cabea; mas um olhar da me reprochou-lhe essa manifestao dossentimentos hostis que Lus XIV, desde criana, votara ao Cardeal, e ele recebeu com um sorriso noslbios o cumprimento do Ministro.

    Ana d'ustria procurava decifrar no rosto de Mazarino a causa da visita imprevista, pois oCardeal, de ordinrio, s a procurava quando toda a gente se achava recolhida.

    O Ministro fez um sinal imperceptvel com a cabea e a Rainha, dirigindo-se Sra. Beauvais: O Rei precisa deitar-se disse ela chama Laporte. A Rainha j dissera duas ou trs vezes

    ao jovem Lus que se fosse deitar, mas o menino, em todas elas, insistira ternamente em ficar; dessavez, porm, no fez nenhuma observao, mas mordeu os lbios e empalideceu.

    Instantes depois, entrava Laporte.A criana encaminhou-se diretamente para ele, sem beijar a me. E ento, Lus perguntou Ana por que no me beijas? Supus que estivsseis zangada comigo, senhora. Vs me expulsais. No te expulso: mas como ainda h pouco tiveste bexigas e no saraste de todo, receio que a

    viglia te fadigue. Mas no receastes a mesma coisa quando me mandastes hoje ao Parlamento para promulgar os

    editos horrorosos que tanto fizeram murmurar o povo. Sire acudiu Laporte, querendo mudar de assunto a quem deseja Vossa Majestade que eu

    entregue o castial? A quem quiseres, Laporte respondeu a criana contanto ajuntou em voz alta que

    no seja a Mancini.O Sr. Mancini era um sobrinho que Mazarino colocara ao p do Rei como moo fidalgo e para o

    qual transferia Lus XIV parte do dio que consagrava ao Ministro.E o Rei saiu sem beijar a me e sem cumprimentar o Cardeal. Ainda bem! observou Mazarino; praz-me ver que Sua Majestade est sendo educado no

    horror dissimulao. Por qu? perguntou a Rainha, quase tmida. Parece-me que a sada do Rei prescinde de comentrios; Sua Majestade, alis, no se d ao

    trabalho de ocultar a pouca afeio que me dedica; o que, de resto, no me impede de ser inteiramentedevotado ao seu servio como o sou ao de Vossa Majestade.

    Peo-vos perdo por ele, Cardeal acudiu a Rainha uma criana que ainda no podeconhecer as obrigaes que vos deve.

    O Cardeal sorriu. Vossa Eminncia, entretanto, deve ter vindo, sem dvida, por algum assunto importante. Que

    h?Mazarino sentou-se, ou melhor, deixou-se cair numa poltrona e disse, com expresso

    melanclica: H que, segundo todas as probabilidades, seremos obrigados a separar-nos dentro em pouco, a

    menos que a vossa dedicao por mim vos leve a acompanhar-me Itlia.

  • Por qu? perguntou a Rainha. Porque, como diz a pera de Thisb: O mundo inteiro conspira para dividir nossas paixes. Gracejais, Senhor! tornou a Rainha, tentando reassumir a antiga dignidade. Infelizmente, no, senhora! redargiu Mazarino infelizmente no gracejo; eu quisera

    antes chorar, crede-me; e teria razes para isso, pois reparai no que eu disse: O mundo inteiro conspirapara dividir nossas paixes. Ora, como fazeis parte do mundo inteiro, quero dizer que tambm medesamparais.

    Cardeal! Oh! meu Deus! Pois ento no vos vi sorrir, outro dia, muito agradavelmente ao Sr. Duque de

    Orlans, ou melhor, ao que ele dizia! E que me dizia ele? Dizia-vos, Senhora: "O vosso Mazarino a pedra de escndalo; se ele partir, tudo ir bem." E que quereis que eu fizesse? Oh! senhora, sois a Rainha, segundo me parece! Bela realeza, merc do primeiro escrevinhador do Palais-Royal ou do primeiro fidalgote do

    reino! Entretanto, tendes fora bastante para arredar de vs as pessoas que vos desagradam. Isto , que vos desagradam a vs! retrucou a Rainha. A mim! De certo. Quem mandou embora a Sra. de Chevreuse, que, durante doze anos, fora perseguida

    no outro reinado? Uma intrigante, que pretendia continuar contra mim as cabalas iniciadas contra o Sr. de

    Richelieu! Quem afastou a Sra. de Hautefort, amiga to perfeita que chegou a recusar as boas graas do

    Rei para conservar as minhas? Uma beata que vos dizia todas as noites, ao despir-vos, que perdeis a alma se amasseis um

    padre, como se algum padre por ser cardeal! Quem mandou prender o Sr. de Beaufort? Um sedicioso, que falava em assassinar-me! Como vedes, Cardeal, os vossos inimigos so os meus. Mas isso no basta, senhora, era preciso que os vossos amigos fossem tambm os meus. Os meus amigos, senhor!... a Rainha meneou a cabea: Infelizmente j no os tenho. Por que no tendes amigos na ventura quando os tnheis, to bons, na adversidade? Porque, na ventura, esqueci esses amigos; porque fiz como a Rainha Maria de Mdicis, que, de

    volta do primeiro exlio, desprezou todos os que haviam sofrido por ela e, exilada segunda vez,morreu em Colnia desamparada do mundo inteiro e do prprio filho, pois toda a gente, por sua vez, adesprezava.

    E ento? acudiu Mazarino no seria tempo de reparar o mal? Procurai entre os vossos

  • amigos mais antigos. Que quereis dizer? Apenas o que disse: procurai. Ai! por mais que olhe minha volta, no vejo ningum sobre quem eu exera alguma

    influncia. Monsieur, como sempre, dirigido pelo seu favorito: ontem era Choisy, hoje La Rivire,amanh ser outro qualquer.

    O Sr. Prncipe dirigido pelo Coadjutor, que, por sua vez, dirigido pela Sra. de Gumne. Por isso mesmo, senhora, eu no vos disse que procursseis entre os amigos de hoje, mas entre

    os de outrora. Entre os meus amigos de outrora? repetiu a Rainha. Sim, entre os amigos de outrora, que vos ajudaram a lutar contra o Sr. Duque de Richelieu e

    at a venc-lo. Onde querer ele chegar murmurou a Rainha considerando, inquieto, o Cardeal. Em dado momento continuou este ltimo com o esprito vigoroso e sutil que vos

    caracteriza, pudestes, graas ao concurso de vossos amigos, repelir-lhe os ataques. Eu disse a Rainha sofri, e mais nada. Como sofrem as mulheres tornou Mazarino: vingando-se. Mas vamos ao que importa!

    Conheceis o Sr. de Rochefort? O Sr. de Rochefort no era dos meus amigos volveu a Rainha mas, pelo contrrio, um

    dos meus inimigos mais encarniados, um dos sequazes do Sr. Cardeal. Eu supunha que soubsseisdisso.

    Sei-o to bem respondeu Mazarino que mandamos prend-lo na Bastilha. E ele saiu? perguntou a Rainha. No, tranqilizai-vos, ainda est l. E se vos falei nele foi para chegar a outro. Conheceis o Sr.

    d'Artagnan? continuou Mazarino, encarando com a Rainha.Ana d'ustria recebeu o golpe em pleno corao. "Ter sido indiscreto o gasco?" murmurou. E

    logo, em voz alta: D'Artagnan! esperai um pouco... Sim, sim, o nome me familiar. D'Artagnan, um

    mosqueteiro, que amava uma de minhas aias, uma pobrezinha que morreu envenenada por minhacausa.

    S isso? tornou Mazarino.A Rainha considerou o Cardeal com espanto. Mas parece-me disse ela que me submeteis a um interrogatrio! Ao qual, em todo o caso atalhou Mazarino com o eterno sorriso e a voz sempre suave

    respondeis apenas segundo a vossa fantasia. Exponde claramente o que desejais saber, senhor, e eu responderei da mesma forma

    recalcitrou a Rainha, que principiava a impacientar-se. Pois bem, senhora! voltou Mazarino, inclinando-se eu quisera que me dsseis os vossos

    amigos, como eu vos dei a pouca indstria e o pequeno talento que o cu me concedeu. As

  • circunstncias so graves e teremos de agir energicamente.Ainda! exclamou a Rainha imaginei que tivssemos sossego aps a priso do Sr. de

    Beaufort. Sim, vistes apenas a torrente que tudo arrasa, mas no reparastes na gua que dorme.

    Entretanto, h em Frana um provrbio sobre a gua que dorme. Terminai disse Ana. Pois bem! continuou Mazarino sofro todos os dias os insultos que me dirigem os vossos

    prncipes e os vossos lacaios afidalgados, autmatos que no percebem que lhes manejo os fios, e que,sob a minha paciente gravidade, no adivinharam o riso do homem irritado, que um dia jurouintimamente domin-los a todos. Mandamos prender o Sr. de Beaufort, verdade; mas era o menosperigoso de todos, h ainda o Sr. Prncipe...

    O vencedor de Rocroy! J pensastes nisso? J, senhora, e muito a mido; mas pacienza, como dizemos, ns os italianos. Em seguida,

    alm do sr. de Conde h o Sr. Duque de Orlans. Que dizeis! O primeiro prncipe de sangue, tio do Rei! No o primeiro prncipe de sangue, nem o tio do Rei, mas o conspirador covarde, que, no outro

    reinado, levado pela sua ndole caprichosa e fantstica, afligido por tdios miserveis, devorado deuma chata ambio, invejoso de tudo o que o excedesse em coragem e lealdade, irritado por no sernada, merc da sua nulidade, converteu-se no eco de todos os maus rumores, fez-se alma de todas ascabalas, mandou para a frente todos os bravos que tiveram a estupidez de acreditar na palavra de umhomem de sangue real e que os renegou quando subiram ao cadafalso! No o primeiro prncipe desangue, nem o tio do Rei, torno a repeti-lo, mas o assassino de Chalais, de Montmorency e de Cinq-Mars, que hoje procura repetir a faanha, e imagina poder vencer por ter trocado de adversrio eporque, em vez de ter diante de si um homem que ameaa, tem um homem que sorri. Mas ele seengana, pois perdeu ao perder o Sr. de Richelieu, e no tenho interesse nenhum em deixar ao p daRainha esse fermento de discrdia com que o finado Sr. Cardeal ferveu durante vinte anos a bile doRei.

    Ana corou e escondeu o rosto entre as mos. No desejo humilhar Vossa Majestade tornou Mazarino, reassumindo um tom mais calmo,

    porm de estranha firmeza. Quero que respeitem a Rainha e que lhe respeitem o Ministro, visto queaos olhos de todos no sou mais do que isso. Mas Vossa Majestade sabe que eu no sou, como dizmuita gente, um bonifrate chegado da Itlia; se preciso que o saibam todos como Vossa Majestade.

    E que devo fazer? perguntou Ana d'ustria, curvada sob a voz dominadora. Deveis procurar na memria o nome desses homens fiis e devotados que atravessaram o mar

    a despeito do Sr. de Richelieu, deixando marcas de sangue pelo caminho, para trazer-vos certa jia quehaveis dado ao Sr. de Buckingham.

    Ana se ergueu, majestosa e irritada, como se uma mola de ao a impelisse, e, considerando oCardeal com a altivez e a dignidade que a haviam tornado to poderosa ao tempo da sua juventude.

    Vs me insultais, senhor! disse ela. Quero, enfim continuou Mazarino, concluindo o pensamento interrompido pelo gesto da

    Rainha quero que faais hoje por vosso marido o que outrora fizestes por vosso amante.

  • Sempre essa calnia! exclamou a Rainha. No entanto, eu a supunha morta e extinta,porque ma haveis poupado at agora. Mas tambm ma lanais em rosto. Melhor! Porque agora adiscutiremos entre ns, e tudo se acabar, compreendestes?

    Senhora sobreveio Mazarino, espantado ante aquela manifestao de fora no estoupedindo que me conteis tudo.

    Pois eu quero contar-vos tudo respondeu Ana d'ustria. Ouve. Quero dizer que havia,efetivamente, nessa poca quatro coraes dedicados, quatro almas leais, quatro espadas fiis, que mesalvaram mais do que a vida, senhor, que me salvaram a honra.

    Ah! confessais fez Mazarino. Cuidais, ento, que s os culpados tm a honra comprometida, e que no ser possvel

    desonrar algum, sobretudo uma mulher, com simples aparncias? Sim, as aparncias estavam contramim e eu seria difamada. E, no entanto, juro que no era culpada. Juro...

    A Rainha procurou alguma coisa santa sobre a qual pudesse jurar; e, tirando de um armrioescondido na tapearia um cofrezinho de pau rosa incrustado de prata e colocando-o sobre o altar:

    Juro tornou ela sobre essas relquias sagradas, que amei o Sr. de Buckingham, mas que oSr. de Buckingham no foi meu amante!

    E que relquias so essas sobre as quais fazeis o juramento, senhora? perguntou, sorrindo,Mazarino; pois eu vos previno que, como bom romano, sou incrdulo: h relquias e relquias.

    A Rainha desprendeu do pescoo uma chavinha de ouro e apresentou-a ao Cardeal. Abri, senhor disse ela e vede com os vossos olhos...Surpreso, Mazarino tomou a chave e abriu o cofrezinho, no qual s encontrou uma faca roda pela

    ferrugem e duas cartas, uma das quais manchada de sangue. Que isso? perguntou. Que isso, senhor? repetiu Ana d'ustria com gesto de rainha e estendendo sobre o

    cofrezinho aberto um brao que continuara perfeitamente belo apesar dos anos vou dizer-vos. Essasduas cartas so as duas nicas cartas que escrevi a ele em toda a minha vida. A faca a mesma comque Felton o matou. Lede as cartas, senhor, e sabereis se menti.

    Apesar da permisso que lhe era concedida, Mazarino, por um sentimento natural, em vez de leras cartas, pegou a faca que Buckingham, morrendo, arrancara da ferida e, por intermdio de Laporte,enviara Rainha; a lmina estava toda roda, porque o sangue se convertera em ferrugem; em seguida,aps rpido exame, durante o qual a Rainha se tornou to branca quanto a toalha do altar sobre o qualse apoiara, recolocou-a no cofre, com um estremecimento involuntrio.

    Est bem, senhora disse ele fio-me do vosso juramento. No, no! lede insistiu Ana d'ustria, franzindo o cenho; lede, eu o quero, eu o ordeno, a

    fim de que tudo se acabe desta vez e no tornemos a este assunto, como j decidi. Imaginais ajuntou com um sorriso terrvel que eu esteja disposta a reabrir esse cofre a cada uma de vossasacusaes futuras?

    Dominado por essa energia, Mazarino obedeceu quase maquinalmente e leu as duas cartas. Umaera aquela em que a Rainha pedia a Buckingham que lhe devolvesse as agulhetas; a mesma que foralevada por d'Artagnan e que chegara a tempo. A outra era a que Laporte entregara ao Duque, em que aRainha o prevenia de que seria assassinado, mas que chegara demasiado tarde.

  • Est bem, senhora disse Mazarino no h o que responder a isto. H, senhor disse a Rainha, fechando novamente o cofrezinho e colocando a mo sobre ele;

    h qualquer coisa que responder: fui ingrata a esses homens que me salvaram e que tudo fizerampara salv-lo, a ele; no dei nada ao bravo dArtagnan, de que h pouco me falveis, seno a mo abeijar e este brilhante.

    A Rainha estendeu a mo formosa ao Cardeal e mostrou-lhe uma pedra admirvel que lhecintilava no dedo.

    Ele vendeu-o, segundo parece acrescentou ela num momento de dificuldade; vendeu-opara salvar-me pela segunda vez, para enviar a mensagem ao Duque e preveni-lo do que seriaassassinado.

    DArtagnan sabia disso? Sabia de tudo. Como? No sei. Mas vendeu-o ao Sr. des Essarts, em cujo dedo o vi e do qual

    tornei a compr-lo; este brilhante, porm, lhe pertence: devolvei-lho, de minha parte e, j que tendes aventura de ter ao p de vs um homem assim, buscai aproveit-lo.

    Obrigado, senhora! disse Mazarino seguirei o conselho. E agora volveu a Rainha, como que alquebrada pela em