Violência e Direitos de Crianças e Jovens

234
1 Violência e Direitos de Crianças e Jovens: mudanças com arte, educação e políticas públicas. 2012 Copyright by Maria Dolores de Brito Mota (org.) Dilma Rousseff Presidente da República Aloísio Mercadante Ministro da Educação – MEC Claudia Pereira Dutra Secretário de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI/MEC Jesualdo Pereira Farias Reitor da Universidade Federal do Ceará Antonio Salvador da Rocha Pró Reitor de Extensão da Universidade Federal do Ceará Promoção Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI Ministério de Educação e Cultura Realização Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família NEGIF Universidade Federal do Ceará ISBN-13: 978-1496159458

description

Coletânea sobre o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes

Transcript of Violência e Direitos de Crianças e Jovens

Page 1: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

1

Violência e Direitos de Crianças e Jovens: mudanças com arte, educação e políticas públicas.

2012 Copyright by Maria Dolores de Brito Mota (org.)

Dilma Rousseff Presidente da República

Aloísio Mercadante Ministro da Educação – MEC

Claudia Pereira Dutra Secretário de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e

Inclusão – SECADI/MEC

Jesualdo Pereira Farias Reitor da Universidade Federal do Ceará

Antonio Salvador da Rocha Pró Reitor de Extensão da Universidade Federal do Ceará

Promoção Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI Ministério de Educação e Cultura

Realização Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família – NEGIF Universidade Federal do Ceará

ISBN-13: 978-1496159458

Page 2: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

2

Violência e Direitos de Crianças e Jovens:

mudanças com arte, educação e políticas

públicas

Organizado por:

Maria Dolores de Brito Mota

Fortaleza-Ce

2014

Page 3: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

3

SUMÁRIO

Projeto Novas Cores e Escola que Protege: Facilitações com Arte

e Cultura de Paz. Dyseane Maria Araújo Lima; Rafaella Maria de

Carvalho Cruz; Juliana Hilario Maranhão; Camila Brasil Uchoa de

Albuquerque / p. 05

Diversidade Sexual e Mobilização Social: Questões conceituais e

políticas para educadores e educadoras

Alexandre Martins Joca /p. 27

Escola que Protege - Formação de Educadores para a

Interrupção do Ciclo de Violência contra a Criança e o

Adolescente: Um olhar Crítico.

Liliane Batista Araújo; Ana Maria Frota /p.56

A Escola Protetiva na Ótica do(a) Professor(a)

Ernny Coêlho Rêgo /p. 95

Sexismo e racismo: algumas considerações sobre o perfil

identitário e o movimento das mulheres negras

Zelma Madeira /p. 118

Trajetórias Juvenis: Trocas e Negociações Identitárias de

Meninas Envolvidas na Prática De Homicídio

Rilda Bezerra de Freitas /p. 126

A Relação entre Instituições de Acolhimento para Crianças e

Adolescentes com Direitos Violados e as Escolas: Uma

Experiência de Avanços e Desafios

Luciana Gomes Marinho / p. 160

Para (Re)encantar a Infância. Perspectivas da infância na pós –

modernidade: proteção, direitos e autonomia

Maria Dolores de Brito Mota; Julia Mota Farias /p. 179

Page 4: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

4

Sobrevivência Ameaçada: Assassinatos de Jovens em Fortaleza e

Região Metropolitana

Rita Claudia Aguiar Barbosa; Rafaela Menezes Martins; Rafael

Leite Neves /p. 191

Reflexões sobre a Práxis do Projeto Novas Cores na Escola Padre

Rocha

Juliana Hilario Maranhão; Liana Araújo Scipião; Anna Thércia de

Assis Ferreira; Camila Brasil Uchoa de Albuquerque;Rafaella Maria

de Carvalho Cruz; Alana Isla Montenegro Feire; Deyseane Maria

Araújo Lima /p. 204

Page 5: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

5

Projeto Novas Cores e Escola que Protege: Facilitações com Arte

e Cultura de Paz

Deyseane Maria Araújo Lima

1

Rafaella Maria de Carvalho Cruz2

Juliana Hilario Maranhão3

Camila Brasil Uchoa de Albuquerque4

Introdução

O Novas Cores é um Projeto de extensão do Núcleo Cearense de

Pesquisa e Estudos sobre a Criança e o Adolescente (NUCEPEC), que há

nove anos atua na construção da cidadania e na defesa dos direitos das

crianças e adolescentes, através dos recursos artísticos.

Em 2010.1 este Projeto iniciou uma parceria com o Programa

Nacional denominado Escola que Protege, que tem como intuito trabalhar a

violência contra crianças e adolescentes no Brasil. Para isto, é necessário a

capacitação dos profissionais para a sua atuação em situações de violência

identificadas, produzidas ou vivenciadas no ambiente escolar.

1 Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Especialista em Educação Inclusiva (UECE) e Educação a Distância (SENAC).

Integrante do Nucepec e supervisora do Projeto Novas Cores.

[email protected] 2 Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 3 Estudante de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bolsista

do Programa de Educação Tutorial – PET do Serviço Social. Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 4 Estudante de Serviço social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da

Psicologia d Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista do Programa de

Educação Tutorial – PET do Serviço Social. Integrante do Nucepec e membro do

Projeto Novas Cores. [email protected]

Page 6: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

6

Esta parceria teve como finalidade realizar palestras e oficinas com

os professores pautados na problematização das situações de violência na

escola, utilizando a arte educação e a cultura de paz neste contexto.

Desta forma, a proposta da nossa atuação foi de uma educação

através da arte, colaborando para a construção da cidadania de professores

da rede pública de ensino. Além de buscar soluções através do diálogo para

a violência na escola, refletir sobre o cotidiano escolar, sua relação com a

sociedade e a atuação dos professores através da arte e incitar a participação

social e comunitária dos profissionais.

As vivências com a arte podem promover a vinculação afetiva entre

professores e aluno, reconstruir e construir o conhecimento, propiciar o

autoconhecimento e desenvolver a criticidade dos participantes desta

formação.

Foram desenvolvidos quatro encontros, os dois primeiros com

estudantes da graduação de pedagogia, serviço social e psicologia; os dois

últimos foram com professores da rede regular de ensino, psicólogos,

educadores sociais, assistentes sociais e outros profissionais.

No primeiro momento realizamos uma exposição dialogada, em

que pudemos levantar questões relacionadas à violência e a escola, o

conceito de infância e adolescência, a construção da cidadania, os

princípios básicos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a

relação professor-aluno e aluno-aluno, a arte como metodologia de

intervenção na sala de aula e a educação para uma cultura de paz.

No segundo momento o público participante foi dividido em três

grupos para a realização das oficinas, onde trabalhamos as temáticas

abordadas na primeira parte com a discussão de casos e reflexões sobre a

realidade escolar. Estes casos refletem situações cotidianas dos professores

na sala de aula, em que estes devem buscar possíveis soluções e propiciar

Page 7: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

7

novas atuações neste ambiente. Teve também a construção de material

didático e jogos lúdicos para ser utilizado pelos professores na sala de aula

com os alunos do ensino infantil, ensino fundamental e médio, como

possibilidade de trabalhar as situações de violência na sala de aula.

Portanto, o objetivo deste artigo é abordar os conceitos de violência

escolar e bullying, trazendo reflexões sobre a prática do professor no seu

cotidiano e possibilitar novos posicionamentos do professor na sala de aula

através da arte e da cultura de paz neste meio.

1. Violência nas escolas

A violência na sociedade brasileira tem permeado a maioria das

relações sociais manifestando-se de forma multifacetada nas relações

interpessoais e institucionais, perpassada pela exclusão, injustiça e

desigualdade social inerentes ao sistema de produção capitalista

promovendo uma intensa cultura de violência.

Este país - caracterizado não só pela desigualdade, mas

pela existência de elites que privatizam a esfera pública

e reiteram em suas práticas a ausência de direitos,

fortalecendo a impunidade e da corrupção dos

governantes - tende a ser uma sociedade que produz,

ao mesmo tempo, a cultura da violência e a sua

banalização (PERALVA, 1995, apud, SPOSITO, 1998,

p. 2).

Esta violência se expressa no cotidiano em diferentes formas como

a física, a psicológica, a sexual e a institucional. No entanto, a situação de

violência não esta associada apenas às desigualdades sociais, mas também

se relaciona com a competição no mercado de trabalho, a mercantilização

da educação, a não garantia dos direitos básicos dos cidadãos, o consumo

exacerbado, a expansão e banalização de ações violentas a partir da

Page 8: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

8

naturalização de diversas formas de sociabilidade. Estas retiram o caráter

eventual ou episódico de determinadas práticas de destruição ou de uso da

força (SPOSITO, 1998), como o bullying, perseguições e segregação em

grupos por características e gostos pessoais de forma a menosprezar os

sujeitos não condizentes com o perfil do grupo, tem influenciado o modo de

agir e de se relacionar dos sujeitos no qual a escola está inserida.

A violência é todo ato que implica na ruptura de um

nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a

possibilidade da relação social que se instala pela

comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo

conflito. Mas a própria noção encerra níveis diversos

de significação, pois os limites entre o reconhecimento

ou não do ato como violento são definidos pelos atores

em condições históricas e culturais diversas

(SPOSITO, 1998, p. 3).

Podemos exemplificar este fato, nas facilitações do Projeto Novas

Cores com os professores e alunos da graduação no Programa Escola que

Protege, pois percebemos que os educadores se focavam bastante na

violência do educando em direção a eles, na qual são “vítimas”. Já que em

vários momentos expressaram as ameaças que sofriam, as situações de

agressão física e verbal que passaram e os momentos de medo que

vivenciaram.

O contexto escolar, em especial as escolas públicas, é perpassado

por questões de classe, gênero, geração, etnia e crenças, que se apresentam

no cotidiano como expressões violentas de agressão física e psicológica,

ameaças, roubos, destruição de patrimônio, bullying, entre outros. Além do

mais, a escola não é apenas o locus onde acontece a violência, mas também

é um ente provedor desta, não é à toa os casos de agressões físicas entre

alunos e de professores contra alunos e vice-versa, bem como de assédio

sexual como uma das maneiras mais comuns de violência de professores

Page 9: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

9

contra alunos, principalmente contra as mulheres naturalizando esses tipos

de relacionamento como não sendo passíveis de punição.

Distintamente da concepção estritamente jurídica - que

se refere à indução de favores sexuais mediante

pressões tendo por base assimetrias nas posições de

poder - o assédio sexual é entendido neste trabalho de

maneira mais ampla, podendo incluir formas diversas

de intimidação sexual - olhares, gestos, piadas,

comentários obscenos, exibições - e de abusos - como

propostas, insinuações e contatos físicos aparentemente

não intencionais - além de fofocas, frases, desenhos

nos banheiros, etc. (ABRAMOVAY, 2002, p.

247).

Porém, observamos durante os encontros do Escola que Protege que

os educadores esqueciam ou não comentavam das agressões e autoritarismo

presentes em relação aos educandos. Fazendo com que os facilitadores

pontuassem este fato, colocando questões como: Alguns professores

promovem também atos violentos na escola? Como pode acontecer isto?

Quais são os motivos? O que pode propiciar? Como está a relação professor

e aluno?

As respostas eram diversas a esta pergunta, alguns falaram que este

tipo de violência não existia, ou não conseguiam perceber; já, outros,

comentaram que já viram alguns colegas de trabalho fazendo. Estes

reclamavam de cansaço, ou uma rotina exaustiva com baixa remuneração,

ou por problemas pessoais ou familiares, que impedia a percepção da

dificuldade do aluno e agiam com agressão física e/ou verbal. Esta

problematização é uma forma de propiciar a percepção e tomada de

consciência dos professores sobre a realidade escolar, podendo discutir

sobre a violência direcionada ao aluno e ao professor.

Nesse sentido, a escola como instituição de construção social e

intelectual tem sido interpelada a interferir em casos de agressão e

Page 10: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

10

confronto dentro e fora do seu ambiente físico, demandando novas

atribuições à escola além da formação intelectual dos alunos, tais como,

discussões pertinentes à sociabilidade, depredação e agressões no ambiente

escolar, drogadição, problemas intrafamiliares e utilização de mídias para

denegrir ou difamar a imagem de alguém, dentre outros.

Responsabilizando-se também com o entorno de seus muros, o que tem se

estabelecido como desafio, visto a precariedade e falta de apoio da grande

maioria das escolas públicas no Brasil.

O desafio de trabalhar a violência na escola, bem como, o

comportamento “agressivo” ou “rebelde” dos alunos tem sido colocado

como uma questão de indisciplina o que recai sobre ações de controle,

punição e exclusão aqueles que não se adequam as normas escolares, fruto

de uma cultura baseada no autoritarismo donde se estabelecem práticas

repressivas de professores em relações interpessoais com os alunos em sala

de aula configurando-se como violência simbólica e pelo adultocentrismo

em que ocorre a supervalorização do adulto, revelando a discrepância nas

relações adulto/criança.

A instituição escolar não pode ser vista apenas como

reprodutora das experiências de opressão, de violência,

de conflitos, advindas do plano macroestrutural. É

importante argumentar que, apesar dos mecanismos de

reprodução social e cultural, as escolas também

produzem sua própria violência e sua própria

indisciplina (GUIMARÃES, 1996, apud,

ABRAMOVAY, 2002, p. 88).

Notamos na experiência de capacitação no Escola que Protege, que

algumas escolas apresentam uma rigidez em relação as suas regras, como

comentou um professor, que são construídas apenas por estes sem

participação dos alunos. Em alguns casos, os educandos não conseguem

cumprir estas normas e são severamente punidos, por exemplo, não

Page 11: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

11

conseguem chegar no horário na sala de aula (por um problema familiar, ou

trabalho ou desinteresse), o professor age grosseiramente e manda para a

coordenação sem saber o motivo, causando rebeldia e falta de compreensão.

Porém, o que percebemos é que esta autoridade baseada no medo

não tem se sustentado na realidade atual. As crianças e adolescentes da

nova geração estão recebendo um tipo de educação menos rígida do que a

educação militar dos anos da ditadura. Em função disso, não é possível

simplesmente querer controlar os alunos através do medo, mas sim

encontrar alternativas para lidar com crianças e adolescentes de maneira

mais efetiva. Uma das estratégias que se mostram ao alcance da escola é a

introdução em seu plano pedagógico de atividades que articulem o

conteúdo formal a assuntos contemporâneos a partir de aulas e atividades

lúdicas, proporcione espaços de integração e diálogo efetivos entre

professores, alunos, pais e comunidade sobre o processo pedagógico

reconhecendo o contexto da escola e o público a quem se dirige

possibilitando uma educação sintonizada com a realidade e interesses das

crianças e adolescentes.

É importante ressaltar que a escola não está e nem deve se sentir

sozinha, pois a família também tem um papel primordial no que tange a

discussão sobre a violência no âmbito escolar, uma vez que, ambas as

instituições são construções sociais que influenciam e são influenciadas

pelo meio exterior.

Pudemos analisar que os professores na capacitação reclamaram da

ausência da família na escola, que pode ser por falta de interesse, ou pela

escola não ser um ambiente atrativo para a mesma ou por outros motivos,

pois costumam ir somente para receber reclamações dos filhos e não há um

espaço de interação entre pais, professores e alunos.

Page 12: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

12

Assim como, é dever do Estado promover uma política pública de

educação de qualidade sintonizada com as questões contemporâneas, para

que se efetive uma educação que possibilite o desenvolvimento psicossocial

saudável de crianças e adolescentes e de sua cidadania.

2.1 – Bullying: Violência aluno-aluno nas escolas

Atualmente, uma das questões mais discutidas envolvendo

condutas agressivas provenientes de crianças e de adolescentes, no âmbito

escolar, diz respeito ao fenômeno denominado bullying, o qual compreende

um conjunto de comportamentos agressivos, repetitivos, intencionais e sem

motivação aparente ocorridos entre os próprios estudantes (ALMEIDA,

CARDOSO & COSTAC, 2009). Nesse sentido, caracterizam-se como

atitudes relacionadas ao bullying agressões físicas e verbais (apelidos

pejorativos e discriminatórios, ofensas ou insultos) que ocorrem dentro de

uma relação desigual de poder entre os alunos envolvidos, comumente,

fundamentada nas diferenças de idade, de condição física ou intelectual, de

nível socioeconômico e no maior apoio dos demais estudantes.

A partir da compreensão de que os sujeitos se desenvolvem e se

constituem na relação com o Outro e sob as influências do meio social, é

importante ter em vista que os comportamentos agressivos resultam da

interação entre o desenvolvimento e a forma de funcionamento individual e

as características dos contextos sociais (família, escola e comunidade) nos

quais as crianças e os adolescentes estão inseridos. Com isso, podem ser

fatores associados à ocorrência do bullying: presença de agressividade e de

desestrutura no ambiente familiar; ausência de limites por parte dos pais;

baixo nível de relacionamento afetivo; conflitos interpessoais na escola;

Page 13: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

13

exposição à violência no ambiente comunitário; influência da mídia; entre

outros (ALMEIDA, CARDOSO & COSTAC, 2009).

Com relação ao perfil dos sujeitos envolvidos, há predomínio do

bullying entre estudantes na faixa etária entre 11 e 13 anos de idade, sendo

menos comum na educação infantil e no ensino médio (NETO, 2005). Entre

os agressores é possível perceber a preponderância de sujeitos do sexo

masculino, enquanto que, na posição de vítimas, não existem diferenças

significativas entre os gêneros. Acredita-se que a ocorrência de formas de

agressões mais sutis esteja relacionada à dificuldade de identificar e,

conseqüentemente, de prevenir situações de bullying entre as meninas.

No que se refere as suas implicações, a presença do bullying nas

escolas pode acarretar significativas perdas e dificuldades de ordem

biopsicossocial, seja de curto ou longo prazo, na vida dos sujeitos

envolvidos. De um lado, têm-se os alunos agressores que, possivelmente,

apresentam fragilidades em seu desenvolvimento moral e afetivo enquanto

de outro se têm as vítimas, as quais sofrem com a deterioração de sua auto-

estima e autoconceito (FRANCISCO & LIBÓRIO, 2009). Assim, é

importante considerar que tanto os alunos que sofrem as agressões quanto

aqueles que as praticam precisam de ajuda e, por isso, devem ser

acompanhados por profissionais que trabalham com auxílio psicológico e

pedagógico como forma de amenizar as conseqüências decorrentes do

bullying.

Em suma, a presença do bullying parece acarretar

prejuízos físicos, psicológicos e sociais, tanto para

quem recebe quanto para quem pratica. Esses

prejuízos podem ser observados logo em seguida a

sua prática ou no decorrer do desenvolvimento da

criança, podendo perdurar à idade adulta (ALMEIDA,

CARDOSO & COSTAC, 2009, p. 203).

Page 14: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

14

A prática de atitudes agressivas no contexto escolar se trata de

um problema freqüentemente ignorado ou não valorizado pelos adultos que,

muitas vezes, acabam apreendendo a violência no interior da escola,

enfatizada aqui através do fenômeno bullying, como algo natural e que não

carece de atenção. Contudo, é essencial que tanto os professores quanto os

pais estejam atentos para a existência do bullying, de modo que o suporte e

a co-participação dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento

das crianças e dos adolescentes tende a favorecer a identificação dos

comportamentos agressivos e o planejamento de estratégias de intervenções

para a resolução e para a amenização das conseqüências dos mesmos.

A participação conjunta da família e da escola é de suma

importância para a prevenção das situações de bullying e para o tratamento

das vítimas, as quais percebem seus pais e professores como principal fonte

de apoio para a superação do mal-estar e da deterioração física e/ou

psicológica decorrentes dessa modalidade de violência. Além disso, se faz

fundamental o desenvolvimento de ações no ambiente escolar no sentido de

orientar os pais quanto à importância de conhecer a maneira como seus

filhos se comportam na escola e os professores quanto à necessidade de

conseguirem identificar e lidar com alunos que apresentam comportamentos

agressivos em relação aos colegas.

Ao analisar a quem os alunos recorrem quando

maltratados na escola, percebe-se então que, boa parte

busca o auxílio dos pais e professores. É fato que o

bullying se faz presente nas escolas e que muitas

vezes estes casos de violência estão tão bem

camuflados que ninguém consegue identificá-los e

media-los; ou as pessoas vêem e preferem não tomar

parte, ou até mesmo, não se sentem preparadas para

tal, inclusive os professores, justificando a

necessidade de maiores debates na área da educação

visando uma conscientização sobre os efeitos do

Page 15: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

15

bullying, os quais não ficam restritos às vítimas,

agressores e espectadores, mas à sociedade de uma

forma geral (FRANCISCO & LIBÓRIO, 2009).

Diante das afirmações dos professores na capacitação do Escola

que Protege, percebemos que o bullying é uma temática presente no

cotidiano das escolas, em que muitos não a observam apesar de existir, ou

que não conseguem lidar com ela. Acreditam que é apenas uma fase que vai

passar, ou que não precisa de tratamento, e por isso algumas vezes prefere

se omitir e não questionar esta problemática.

Como exemplos das graves conseqüências decorrentes das

situações de bullying aliadas à negligência proveniente dos pais e dos

professores em relação ao estado emocional dos jovens e aos conflitos entre

os pares é possível fazer referência aos casos de tiroteios em escolas norte-

americanas motivados, sobretudo, pela vingança e pelo senso de heroísmo

de alunos que sofriam segregação e humilhações nas instituições escolares

ou universitárias nas quais estudavam (VIEIRA, MENDES &

GUIMARÃES, 2009). Dois desses casos que ganharam grande repercussão

mundial diz respeito aos ocorridos na Columbine High School em abril de

1999, onde dois estudantes (Erick Harris e Dylan Klebold) provocaram a

morte de doze alunos e de um professor e suicidaram-se em seguida, e na

Virginia Polytechnic Institute and State University em abril de 2007, onde

um estudante de origem sul-coreana (Cho Seung-Hui) foi responsável pela

morte de 32 pessoas, entre alunos e professores, e também cometeu suicídio

em seqüência.

Entre os fatores apontados como determinantes para a ocorrência

de tais ações nas instituições de ensino norte-americanas destacam-se a não

percepção tanto dos pais quanto dos professores em relação à segregação,

aos constrangimentos e humilhações sofridos por seus filhos e alunos no

Page 16: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

16

ambiente escolar, ou seja, a ausência de monitoramento e de interferência

parece ter contribuído para a concretização do sentimento de vingança e da

ideação suicida mobilizados nos três estudantes protagonistas dos tiroteios

(VIEIRA, MENDES & GUIMARÃES, 2009). Desse modo, como

mencionado anteriormente, o papel pró-ativo da família e dos educadores

no sentido da apreensão de que tipo de relações seus filhos e alunos vêm

estabelecendo em seu cotidiano escolar é fundamental para procederem

com os cuidados e intervenções dos quais são responsáveis.

Tanto em Columbine como na Virginia Tech, práticas

de humilhação contra pessoas classificadas como

outsiders (excluídas) estavam presentes. Em ambos os

casos a prática de bullying e a falta de interesse e/ou

competência de pais, professores, diretores e colegas

para se aproximar dos adolescentes e tentar alguma

intervenção é marcante (VIEIRA, MENDES &

GUIMARÃES, 2009).

De maneira geral, o bullying deve ser apreendido enquanto um

fenômeno presente em escolas do mundo inteiro, bem como (re)conhecido

e estudado no sentido da prática contínua de estratégias preventivas desse

problema e capazes de estimular às crianças e aos adolescentes a

desenvolverem formas de convivência que incluam o respeito às

singularidades tanto no âmbito escolar quanto nos demais contextos sociais.

2. Estratégias para a problematização da violência nas

escolas: Arte-educação e Cultura de Paz

Neste tópico abordaremos a atuação na escola com recursos para a

promoção de uma cultura de paz e a utilização de recursos artísticos na sala

de aula, dando assim subsídios para os professores lidarem com situações

de violência no seu cotidiano.

Page 17: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

17

2.1 – Arte-educação

O ambiente escolar, segundo ECA (2010), caracteriza-se com uma

preocupação em introduzir o regramento da criança aos ditames societários

desde tenra idade, havendo uma dificuldade para o surgimento de uma

lacuna na qual os seus sentimentos e emoções possam ser trazidos à

superfície livremente e irrestritamente, como forma de expressão plena da

sua individualidade. Na rotina escolar, as brincadeiras e os jogos são

frequentemente destinados somente ao horário do recreio, sendo relegados

no ensino das disciplinas formais, esquecendo-se do caráter de ludicidade

próprio das crianças e jovens em sua forma de significar e intervir no seu

ambiente circundante. Em suma, “na escola vive-se rotineiramente, joga-se

pelo seguro, para os alunos terem bons resultados nos exames, porque a

escola e a sociedade acreditam que ter resultados nos exames é um

passaporte para o sucesso na vida futura.” (ECA, 2010, p.7)

Desta forma, para Lima, Siqueira, Sousa et all. (2009, p. 111),

A utilização dessa metodologia com crianças e

adolescentes adquire uma importância ainda maior,

visto que possibilita um desenvolvimento integral

desses sujeitos desde os períodos mais primevos de

suas vidas. Além disso, o mero repasse de conteúdos

intelectuais de forma clássica não desperta, nesses

jovens, a mesma atenção e interesse que as atividades

lúdicas e estéticas proporcionam. Isso porque,

inicialmente, a sensação apresenta-se como uma

maneira de ver o mundo mais desenvolvido do que as

abstrações conceituais.

Percebemos este fato na formação no Escola que Protege, alguns

professores separam o momento de brincar do destinado ao estudo. Então,

qual seria o momento em que as crianças preferem? O momento do recreio,

Page 18: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

18

em que podem brincar, se expressar de forma criativa e autêntica. Assim, o

que os professores poderiam fazer para transformar o momento de estudo?

Transformar em momentos lúdicos, já que é a linguagem de acesso a

criança, fazer com que possam aprender também brincando. Este é um

momento de criar, de trocar, de conhecer e de experimentar com o professor

e os outros colegas.

Nesse sentido, percebe-se que a arte-educação tem o

potencial para servir como uma grande influência para

uma metodologia baseada na arte, uma vez que ela

concebe a educação não como um processo penoso e

desgastante, mas sim como algo lúdico e estético, não

se baseando apenas na transmissão de conhecimentos

racionais. Para a arte-educação, é igualmente

importante exercitar a imaginação e a criatividade dos

indivíduos, pois, dessa forma, torna-se possível acessar

dimensões humanas impossível de simbolizações

conceituais. (LIMA, SIQUEIRA & SOUSA et all,

2009, p. 111)

A instituição escolar, desde a sua gênese caracteriza-se pela

produção de mão-de-obra para o mundo moderno, sendo que a sua visão

sempre parte da visão das classes dominantes (DUARTE JR., 1994). Em

relação ao jovem, a escola muitas vezes não o permite exercer a sua

idiossincrasia questionadora, configurando-se um instrumento de

normatização destes indivíduos em relação aos padrões incutidos pela

cultura moderna. Este fato é especialmente observado na questão da

discussão da sua profissionalização, que é realizada segundo o

enquadramento da inserção deste futuro trabalhador ao mercado de trabalho

de acordo com as necessidades do capitalismo. Desta forma, destaca-se a

necessidade de uma reflexão acerca do caráter da escola de repassar

conteúdos predominantemente distantes da realidade dos alunos, ao invés

de perceber a peculiaridade das formas de sociabilidade próprias das

Page 19: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

19

crianças e jovens e a possibilidade de priorizar formas mais participativas

de educação.

A escola pública brasileira em especial é perpassada por desafios

próprios, provenientes da falta de priorização da política pública de

educação pelo Estado. A defasagem do orçamento público na educação é

percebido em relação à falta de infra-estrutura de grande parte das escolas,

nas lotações das salas de aula, assim como a remuneração dos professores e

na carência de incentivo à qualificação constante dos mesmos, os quais

frequentemente reclamam uma percepção de desvalorização profissional.

Estes estão expostos às diversas formas de violência que penetram no

ambiente escolar, contudo, são escassos os recursos pedagógicos capazes de

abranger a prevenção e a resolução de conflitos de forma pacífica. Por conta

destes fatores, o processo de educação escolar da escola pública acaba

sendo prejudicada.

A diversidade própria do contexto escolar é geralmente

inviabilizada, havendo o surgimento de conflitos envolvendo a questão

étnica e a de gênero, dentre outras. O mesmo ocorre com as distintas

percepções de mundo destes indivíduos, advindas do contexto cultural onde

eles estão inseridos. No intuito de propor métodos pedagógicos que lidem

com estas questões, a utilização da arte como método na sala de aula tem

sido intensamente discutida por profissionais e estudiosos na área escolar a

partir da percepção dos benefícios que pode acarretar no processo de

aprendizagem.

Segundo Duarte Jr (1994), a arte-educação não tem como objetivo

principal ensinar técnicas artísticas e treinar os alunos para que se tornem

artistas e sim possibilitar uma forma de educação que tenha a arte como

aliada, permitindo uma maior sensibilidade do indivíduo em relação ao

mundo que o circunda. A aprendizagem, para o autor, pode ser entendida

Page 20: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

20

como um processo que requer uma conexão entre os símbolos ou conceitos

com a vivência do indivíduo e os sentimentos a ela relacionados. Assim, a

arte contém a capacidade de ampliar a possibilidade de aprendizagem dos

alunos, pois

O processo de conhecimento, já o notamos, articula-se

entre aquilo que é vivido (sentido) e o que é

simbolizado (pensado). Ao possibilitar-nos o acesso a

outras situações e experiências, pela via do sentimento,

a arte constrói em nós as bases para uma compreensão

maior de tais situações. (DUARTE JR., 1994, p.69)

Já, Barbosa (1975) contribui com esta colocação, afirmando que a

arte pode constituir-se como um importante auxiliar para o enriquecimento

do processo de aprendizagem dos demais conteúdos cognitivos escolares,

por conta dos processos afetivos que mobiliza.

Durante a realização de oficinas, fizemos alguns materiais lúdicos

para a atuação com crianças e jovens para o trabalho com as situações de

violência e outras questões relevantes da escola. As atividades realizadas

foram: o livro de histórias, o jogo de tabuleiro (circuito), a paródia, o

boliche, o dominó, as colagens, o teatro, a música, o jogo da memória, entre

outros.

Fizemos a construção destes materiais para o uso em sala de aula,

que podem ser criadas com o público alvo ou já levadas prontas,

dependendo do objetivo e tempo disponível para a atividade. E podem ser

usadas para a reflexão da realidade e o posicionamento crítico dos sujeitos,

bem como para realizar atividades do conteúdo programático, como por

exemplo fazer um dominó com operações matemáticas...

O incentivo da prática artística na escola possibilita que haja uma

promoção de protagonismo dos alunos, através da expressão da sua

criatividade e de seu pensamento crítico, o que contribui para uma educação

para a construção da cidadania, onde a peculiaridade daquele indivíduo seja

Page 21: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

21

alcançada. (CAMARGO & BULGACOV, 2010) Ademais, através de

atividades artísticas e lúdicas, os alunos estão em um momento no qual a

sua atenção está focada, e estão participando ativamente da construção do

conhecimento, quando os conteúdos não estão sendo internalizados

passivamente.

É relevante salientar a necessidade de que o professor se coloque

em posição de horizontalidade em relação ao aluno, na proposição de

construção do saber de forma conjunta, opondo-se à mera socialização de

conteúdos, inclusive no trabalho com arte na sala de aula. Desta forma,

O fazer-junto-com-o-aluno o coloca na possibilidade

de experimentar outras formas de relações em que o

exercício da criatividade torna-se possível, em que a

sensibilidade do aluno e do professor se constrói nas

interações de sujeitos concretos, totais e humanos; de

sujeitos não cindidos pelas relações autoritárias ainda

dominantes nas escolas, que superdimensionam o

racional e negam o sensível e o criativo como

dimensões fundamentais para a constituição de sujeitos

autônomos. (CAMARGO & BULGACOV, 2010, p. 8)

2.2. Cultura de Paz

A Cultura de Paz nas escolas é relevante por propiciar momentos de

reconhecimento das dificuldades existentes neste âmbito, como a violência,

o bullying, as drogas, entre outros, e a sua resolução de forma pacífica,

compreensiva e cooperativa.

Melman, Ciliberti, Aoki et. all. (2009, p. 2) afirmam que “falar de

paz e de não-violência neste mundo repleto de turbulências e injustiças

causa estranhamento e resistências.”

Isto é percebido nos meios de comunicação de massa, que

costumam priorizar os conflitos, as agressões e os atos violentos, com o

Page 22: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

22

objetivo de ter mais audiência e explorar o sofrimento humano. Geralmente,

não aborda ou pouco comenta os assuntos vinculados a solidariedade, a

cooperação e o cuidado com o outro. Melman, Ciliberti, Aoki et. all. (2009,

p. 3) consideram que,

Conflitos entre pessoas, grupos e organizações são

inevitáveis. A diversidade é necessariamente geradora

de conflitos. Não devemos fugir deles. Os conflitos são

essenciais para o aprimoramento das relações entre os

homens, e para a construção de uma sociedade mais

justa, igualitária, democrática e plural.

Assim, é necessária uma educação para a paz, que segundo Matos

(2006), não se faz na ausência de conflitos, mas visa à resolução destes de

forma pacífica, dialogada e cooperativa. Ressaltamos que não seria a

passividade, nem a submissão, mas a promoção de atos transformadores da

realidade que simbolizam a paz, o compromisso social e o diálogo. Focando

no respeito à vida, na cooperação, na tolerância, na convivência solidária,

em busca de uma paz consigo mesmo, com os outros, com a sociedade e

com o ambiente.

Ao falarmos de cultura de paz, remetemos ao conceito de diálogo,

para Freire (2005), pois considera que este é reflexão, é ação, é expressão e

elaboração do mundo, reconhecimento de si mesmo e do outro.

A dimensão dialógica é fundamental para uma cultura de paz, pois

permite a valorização das diferenças culturais e sociais (etnia, religião, entre

outras), conhecer o posicionamento do outro sobre determinada temática e

perceber as diversas possibilidades de abordar certo assunto, sem

naturalizá-lo. É uma forma de respeitar o que cada ser humano pensa, sente

e reflete sobre o mundo, a natureza, a sociedade, a comunidade e as suas

relações.

Page 23: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

23

Desta maneira, Freire (2005) critica o ensino bancário em que o

professor apenas deposita os conhecimentos alheios a realidade no aluno,

não os reconhecendo como sujeitos do processo de ensino e aprendizagem.

Reflete assim a violência, pois está relacionada com a antidialogicidade, a

situação de opressão, restrição da liberdade e o não reconhecimento da

transformação social. Não poder pensar nem expressar seus sentimentos e

emoções, apenas reproduzir um discurso e um conteúdo alienado e

alienante.

Observamos com os professores do Programa Escola que Protege,

que em algumas escolas não há espaço para o diálogo, assim não tem

espaço para que as crianças e adolescentes possam expressar seus

sentimentos, suas emoções, seu sofrimento, seus conflitos, suas alegrias,

entre outros.

No caso da violência escolar, para Matos (2006a), uma forma de

resolver isto seria o diálogo problematizador com os integrantes no

contexto escolar, para saber o que pensam, sentem e vivenciam sobre esta

realidade, bem como com a sociedade em geral, propiciando a escuta, a

solidariedade, o reconhecimento e o respeito com os alunos e professores.

Então, não seria eliminar os atos violentos, ou mascarar estes fatos

como se não existissem, mas propiciar momentos de diálogo sobre estes

atos no meio escolar, familiar, comunitário e social.

Na escola, é essencial trabalharmos com a noção de paz e violência

com as crianças e os adolescentes a partir do contexto social, pois a sua

percepção dos fenômenos modifica-se diante da realidade e podem ser

analisados por um viés crítico e transformador.

É um lugar que podemos problematizar a violência e a paz,

propiciando aos jovens, adolescentes e crianças um posicionamento crítico

sobre o contexto social em que estão inseridos. A cultura de paz ao ser

Page 24: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

24

dialogada e problematizada neste ambiente pode se estender para a família,

amigos, comunidade e outros grupos sociais que o indivíduo participará em

sua vida.

Considerações Finais

A formação propiciada pelo Programa Nacional Escola que Protege

com o Projeto Novas Cores e outros facilitadores, promoveram o processo

de conscientização dos professores, psicólogos, assistentes sociais,

educadores sociais e alunos de graduação que atuam ou irão atuar na rede

regular de ensino com crianças e adolescentes. Além disto, foi possível

refletir sobre a situação da escola, as regras institucionais, a participação

dos alunos e a solução conjunta dos problemas vivenciados neste contexto.

Para isto, é necessário estratégias para a reflexão e problematização das

questões fundamentais neste contexto, como a arte-educação e a promoção

de uma cultura de paz.

Referências bibliográficas

ABRAMOVAY, M. Violência nas escolas. Brasília: UNESCO,

Coordenação DST/AIDS do Ministério da Saúde, Secretaria do Estado dos

Direitos Humanos do Ministério da Justiça, CNPq, Instituto Ayrton Senna,

UNAIDS, Banco Mundial, USAID, Fundação Ford, CONSED, UNDIME,

2002.

ALMEIDA, S. B. de; CARDOSO, L. R. D; COSTAC, V. V. Bullying:

Conhecimento e prática pedagógica no ambiente escolar. Psicol. Argum.

2009, 27 (58), 201-206. Disponível em:

<http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=3247&dd99=view> Acesso

em: 20 de agosto de 2010.

BARBOSA, A. M. T. B. Teoria e prática da educação artística. São

Paulo, Cultrix, 1975.

Page 25: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

25

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069, de 13

de julho de 1990. Brasília: Senado Federal, 2008.

CAMARGO, D. de; BULGACOV, Y. L. M. A perspectiva estética e

expressiva na escola: articulando conceitos da psicologia sócio-histórica.

Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

73722008000300007&lang=pt>. Acesso em: 3 de agosto de 2010

DUARTE., JR. F. Porque arte-educação?.Campinas: Papirus, 1994.

ECA, T. T. P de. Educação através da arte para um futuro sustentável.

[online] Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

32622010000100002&lang=pt>. Acesso em: 3 de agosto de 2010.

FRANCISCO, M. V.; LIBORIO, R. M. C. Um estudo sobre bullying entre

escolares do ensino fundamental. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v.

22, n. 2, 2009 . Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

79722009000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 de agosto de

2010.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

LIMA, D. M. A; SIQUEIRA, F. Q; SOUSA, R. V. de; CAVALCANTE, A.

J. de l. SILVA, G. de S. & FIRMO, A. A. M. Infância(s) e Adolescência(s):

Cidadania e Arte no Projeto Novas Cores. In: CORDEIRO, A &

PINHEIRO, A. (Orgs.) Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes:

Aprendizagens Compartilhadas. Fortaleza: NUCEPEC/UFC, 2009, p 96-

116.

MATOS, K. S. L. Juventude, Escola e Imagens na Mídia. In: BOMFIM, M.

do C. A. & MATOS, K. S. L. de. (Orgs.) Juventudes, Cultura de Paz e

Violências na Escola. Fortaleza: Editora UFC, 2006, p. 33-46.

MELMAN, J.; CILIBERTI, M. E.; AOKI, M. & FIGUEIRA JÚNIOR, N.

Tecendo redes de paz. Saúde Soc., São Paulo, 2009. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

12902009000500012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 07 de setembro de

2009.

NETO, A. A. L. Bullying: comportamento agressivo entre estudantes.

Jornal de Pediatria, vol.81, n°. 5, 2005.

Page 26: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

26

SPOSITO, M. P. A instituição escolar e a violência. Instituto de Estudos

Avançados da Universidade de São Paulo, 1998. Disponível em: <http//

www.iea.usp.br/artigos>. Acesso em: 10 de Julho de 2010

VIEIRA, T. M.; MENDES, F. D. C.; GUIMARAES, L. C. De columbine à

virgínia tech: reflexões com base empírica sobre um fenômeno em

expansão. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 22, n. 3, 2009 .

Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

79722009000300021&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 de agosto de

2010.

Page 27: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

27

DIVERSIDADE SEXUAL E MOBILIZAÇÃO SOCIAL:

Questões conceituais e políticas para educadores e educadoras

Alexandre Martins Joca

Introdução

Este artigo traz às/aos educadores e educadoras algumas questões

conceituais acerca da temática “Diversidade Sexual” e socializa as lutas

empreendidas nas últimas décadas pela sociedade civil organizada em torno

dos direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e

transexuais - LGBT. De maneira transversal faz, também, questionamentos

importantes para a reflexão sobre as práticas educativas desenvolvidas no

espaço escolar e sua interface com as sexualidades.

As questões conceituais se tornam necessárias em virtude do

estranhamento que profissionais da educação vêem demonstrando frente a

expressões como “orientação sexual”, “identidade de gênero”,

“homofobia”, “Movimento LGBT”, “política identitária”, “queer” etc.

Observo esse estranhamento sob duas vertentes. A primeira, como um

indicador da carência (de educadores/as) de saberes relacionados às

sexualidades, às suas manifestações e reverberações sociais. A segunda, ao

crescimento acelerado da literatura sobre a temática, resultando em

constantes ressementizações que a primeira vista, podem parecer confusos e

incompreensíveis.

Quanto à abordagem sobre a mobilização social, ou melhor, sobre

as lutas, conquistas e desafios do movimento LGBT no Brasil, dar-se pela

necessidade de aproximação do espaço escolar com os movimentos sociais,

Mestre e doutorando em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará

(UFC) e membro do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB).

Page 28: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

28

perspectiva preconizada por Loiola (2001, 2005, 2006) em seus estudos e

pesquisas sobre homofobia e educação5.

01. Para Entender as Sexualidades

O docente, em seu desempenho profissional, no processo de ensino-

aprendizagem, necessita adquirir conhecimentos científicos específicos com

os quais trabalha, ou seja, conteúdos relacionados à formação intelectual e

humana dos sujeitos. Assim, quando me refiro à abordagem pedagógica

dos saberes sobre a sexualidade e a diversidade sexual, sob a perspectiva do

seu reconhecimento e do enfrentamento das desigualdades oriundas da

homofobia, quais os saberes docentes necessários à prática educativa?

Para a abordagem das questões teórico-científicas acerca da

diversidade sexual parto da discussão sobre a formação educacional-

pedagógica e suas implicações com a sexualidade6. Esse campo consiste no

processo de construção de significados e sentidos diversos atribuídos à

sexualidade humana, por meio das instâncias de produção e reprodução dos

saberes hegemônicos em nossa sociedade.

5 Refiro-me à dissertação “COISAS DIFÍCEIS DE DIZER: as manifestações

homofóbicas do cotidiano dos jovens”, da tese “DIVERSIDADE SEXUAL: para

além de uma educação escolarizada” e do livro “DIVERSIDADE SEUXAL:

perspectivas educacionais”. 6 Define-se como expressão de desejos e prazeres. Envolve preferências,

predisposições e experiências físicas e comportamentais, orientadas a sujeitos de

sexo oposto, do mesmo sexo ou de ambos os sexos. A partir do sexo XIX, torna-se

uma questão relevante para a vida em sociedade, como demonstram as ciências

humanas. De acordo com Anne Cranny-Francis, Wendy Waring, Pam Stavropoulos

e Joan Kirby, as teorias que explicam a construção da sexualidade, o desejo e a

orientação sexual variam do essencialismo/biológico ao construcionismo social, da

identidade sexual à atividade sexual, da patologia à preferência. De acordo com a

crítica feminista, no sistema da heterossexualidade compulsória e de oposição

binária de gênero, a sexualidade masculina é representada como naturalmente ativa,

agressiva e sádica, e a feminina como naturalmente passiva, masoquista e

narcisista, reduzida à maternidade (CARVALHO, ANDRADE & JUNQUEIRA,

2009, p. 41).

Page 29: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

29

Ao observar o processo educacional pedagógico dos sujeitos sobre

gênero, identidade de gênero7 e orientação sexual percebe-se como, na

formação do indivíduo, os valores baseados na dominação masculina e na

heteronormatividade vão se solidificando, tornando-se “verdades sobre o

sexo”. O caminho que temos percorrido em formações continuadas à

educadores/as é o de refazer as práticas cotidianas e pedagógicas de

construção de valores, conceitos e preconceitos hegemônicos, geradores do

sexismo8 e da homofobia em nossa sociedade.

Um conceito em constante construção e fundamental neste percurso

é o de “homofobia”. Numa tradução mais objetiva e sucinta, Mott (2006) a

traduz como “ódio generalizado contra os/as homossexuais e a

homossexualidade”. Carvalho, Andrade & Junqueira (2009), acrescentam:

Termo comumente utilizado para definir o medo,

o desprezo, a desconfiança e a aversão em relação

à homossexualidade e às pessoas homossexuais

ou identificadas como tais. A homofobia não diz

respeito apenas ao universo variado de

manifestações psicológicas negativas em relação à

homossexualidade. Ela está na base de

preconceitos, discriminações e violências contra

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e

todas as pessoas cujas sexualidades ou expressão

de gênero não se dão em conformidade com a

7 Entende-se identidade de gênero como um dos conceitos norteadores para a

compreensão da diversidade sexual. Partindo da premissa de que nos reconhecemos

como homens e mulheres a partir do processo de identificação à masculinidade

e/ou à feminilidade, “nem sempre o pertencimento a um gênero condiz com a

condição biológica do sexo anatômico. No caso das pessoas transexuais, o

sentimento de pertencimento ao gênero é discordante ao sexo biológico”

(LIONÇO, 2009). 8 Trata-se da discriminação ou tratamento indigno ou a um determinado sexo – na

história recente, o feminino. Como as representações acerca do sexo e da

sexualidade estão vinculadas ao binarismo de gênero e à heteronormatividade, a

homofobia também é uma forma de sexismo (CARVALHO, ANDRADE &

JUNQUEIRA, 2009, p. 40).

Page 30: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

30

heteronormatividade e as normas de gênero

(CARVALHO, ANDRADE & JUNQUEIRA,

2009, p. 24).

Neste sentido, para que se perceba como a sociedade moderna e

ocidental se constrói sob a perspectiva de uma hegemonia ideológica

sexista, racista e homofóbica, torna-se imprescindível a observação de sua

constituição organizacional, seus espaços de socialização, nos quais os

saberes sobre o sexual são produzidos e reproduzidos, histórico e

culturalmente, na “vontade de saber” (Foucault, 1988) e na proliferação dos

discursos diversos sobre ele. Como espaços de socialização do saber

legitimados na sociedade moderna, a Família, a Escola, a Igreja e o Estado

ocupam um papel de grande importância, ao delegar-se à tarefa de atribuir

aos sujeitos valores e regras quanto à formação, organização e legitimação

de suas relações sociais e sexuais. No campo da sexualidade, tem-se

perpetuado a heterossexualidade como possibilidade única para a vivência

da sexualidade, de modo que se torna bastante difícil aos sujeitos

compreenderem e reconhecerem a existência de outras possibilidades; é o

que Buther (2003) chama de heteronormatividade compulsória.

Conforme já mencionamos, um caminho para a compreensão este

contexto, no campo da sexualidade e das desigualdades oriundas dos

significados a ela atribuídos, pode ser a desconstrução dos caminhos

percorridos até então, ou seja, desmontá-los para conhecermos suas peças,

suas estruturas, suas engrenagens. Como se construíram as relações de

gênero? Quais os processos sociais e pedagógicos de produção e

reprodução da homofobia e do sexismo?

Vale lembrar que a categoria gênero adquire aqui um caráter

relacional, ou melhor, diz respeito às relações estabelecidas entre mulheres

e homens em sociedade, de modo que as questões de gênero assumem um

Page 31: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

31

campo central nas discussões sobre diversidade sexual, uma vez que o

“masculino” e o “feminino” são questionados constantemente e a

perspectiva da binaridade é posta em xeque pelas possibilidades múltiplas

de “ser homem” e “ser mulher”, ou seja, “o gênero culturalmente

construído”, diria Buther (2003), independente do biológico e fora da

perspectiva cristã da reprodução, do modelo padronizado da família e do

casamento. Parte-se do princípio de que a perspectiva biológica do sexo

torna confusa sua compreensão, pois limita a sexualidade ao ato sexual, à

genitália, ignorando o prazer, às inúmeras possibilidades do desejo,

seguindo a seqüência “sexo-gênero-sexualidade” (LOURO, 2004).

Daí a proibição pela igreja católica ao uso do contraceptivo e

especialmente do preservativo, pois são instrumentos da modernidade que

vai demonstrar a “furnicação” da humanidade na atualidade. Nesse

entendimento, o fundamentalismo religioso, sob a perspectiva essencialista

da sexualidade, tem contribuído significativamente para a perpetuação das

desigualdades de gênero e o não reconhecimento dos direitos de LGBT.

Essa concepção de gênero fundada no binário vem se reproduzindo na

história da humanidade, apesar das muitas transformações sociais em torno

dos papéis sexuais.No entanto, outras questões sociais como classe e etnia

perpassam pela vivência da sexualidade quando se percebe nas relações o

acúmulo de desigualdades e preconceitos com as quais os sujeitos se

deparam em referência à classe social, à raça e ao gênero9.

O rompimento com os fundamentalismos, com a perspectiva

positivista, binária, no campo da sexualidade implica em sua compreensão

9 Weeks (2001), no artigo “O corpo e a sexualidade” alerta que a importância de

reconhecer a sexualidade não é um “domínio unificado”, mas sim, que ela

estabelece eixos independentes com “forças que modelam as crenças e os

comportamentos sexuais, complicando as identidades sexuais” (p. 54), ou seja: os

eixos da classe, do gênero e da raça.

Page 32: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

32

como uma construção histórica e cultural, pois a sexualidade não vai seguir

uma norma uma vez que um dos seus aspectos fundamentais é o prazer. O

prazer entendido como “a necessidade de satisfação”, da satisfação da carne

e da alma, a satisfação “da existência humana”.

Então, a sexualidade como uma construção histórica e cultural é

instável (Louro, Butler, Foucault). Essa é a grande discussão. Ela não tem

uma norma fixa e rompe todos os padrões determinados da cultura. Ela não

segue as normas. Isso significa romper com o estado do “ser” para assumir

o “estar” sexualmente, ignorando, alguns sujeitos, as “fronteiras de gênero e

sexualidade” (LOURO, 2004). Se a sexualidade está em construção

permanente, no decorrer da vida, a orientação sexual - o desejo sexual e/ou

afetivo pelo sexo oposto, pelo mesmo sexo ou por ambos - será da mesma

maneira instável e flutuante e os sujeitos não haveriam de prender-se às

convenções de gênero e orientação sexual.

Diante dessas considerações, para a compreensão do

desenvolvimento do indivíduo, considera-se três elementos fundamentais:

um é a fase e vida que o indivíduo se encontra; o outro é o contexto

geográfico - o espaço em que ele está inserido - e o terceiro é o significado

dado pelo sujeito de acordo com suas experiências individuais e coletivas.

Assim, na seara da sexualidade, as experiências destacam-se

significativamente.

O que está centralizado nessa discussão é a questão do prazer. E em

se tratando do prazer, a homossexualidade afirma-se como uma

contracultura. É uma contracultura porque rompe com o paradigma da

reprodução, estando o prazer em evidência, o prazer sexual. Assim, a

questão central da homossexualidade é romper com o paradigma

biologizante porque as relações homossexuais, as práticas sexuais

homoeróticas, rompem com a lógica da sexualidade em função da

Page 33: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

33

reprodução; rompem com caráter binário do macho e da fêmea e da

perpetuação da espécie.

2. A Perspectiva da Diversidade Sexual

Nos últimos anos, algumas instituições e ativistas do movimento

LGBT, em suas ações comunitárias, no campo da organização da sociedade

civil LGBT, têm utilizado a expressão “diversidade sexual” em seus

discursos e práticas, ao referir-se às questões sobre orientação sexual, com

o objetivo de dar visibilidade à diversidade humana e às diversas

possibilidades de orientações e identidades sexuais. A princípio, a

utilização dessa expressão tem encontrado obstáculos no âmbito formal das

políticas públicas, pela possibilidade do seu entendimento relacionado às

várias maneiras e formas de viver a sexualidade, ou seja, a defesa e/ou

reconhecimento da diversidade sexual pode lingüisticamente ser entendida

como a defesa da pedofilia, zoofilia, necrofilia, poligamia, incesto, que não

é o caso (Joca, 2008).

Apesar dos percalços na interpretação lingüística da expressão, no

meu entendimento, sua utilização, pelo movimento LGBT, aponta para um

novo processo de abordagem da temática da orientação sexual, em que, a

reflexão esteja se direcionando a caminho de uma perspectiva pós-

identitária, ou seja, partindo do pressuposto das “diversidades” sexuais, das

subjetividades das expressões da sexualidade humana, opondo-se, portanto,

à perspectiva dicotômica das heterossexualidade/homossexualidade.

Assim, ao contrário de uma abordagem sobre a homossexualidade,

aparentemente fixada na lógica binária sob a concepção da

heteronormatividade, as discussões sobre a sexualidade adotam a temática

sob lógica da “diversidade”, evitando a dualidade desvio/norma e incluindo

no bojo da temática, também, a heterossexualidade, de modo que esta não

Page 34: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

34

esteja restrita apenas à concepção de sexualidade lícita, permitida

socialmente. Dessa maneira, a “despolarização”

heterossexualidade/homossexualidade problematiza a idéia de ambas como

pólos opostos, fixos, imutáveis, não tendo os sujeitos, necessariamente, que

se enquadrar em um dos pólos, conforme a ditadura do referido sistema

sexual.

Nesse sentido, trago alguns questionamentos: Essa perspectiva

rompe com a política identitária vigente? “É possível, ao movimento

LGBT, a adoção de uma perspectiva pós-identitária sem perder os ganhos

legais da política de identidade adotada até então?” questiona Vale

(informação verbal)10

. Seria a “diversidade sexual” uma afirmação

subversiva da ordem imanente? Segundo Silva (2000), “na perspectiva da

diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalizadas,

cristalizadas, essencializadas”.

Entendo que essa perspectiva não rompe definitivamente com a

política identitária da sexualidade, uma vez que os sujeitos permanecem sob

a ditadura da identidade, sujeitos às normas estabelecidas de acordo com

suas práticas sexuais. Entretanto, ela assume pressupostos identificáveis

com uma política pós-identitária. É verdade que se mantém ainda distante

de uma perspectiva queer, dada a persistência da política de categorias

sexuais, baseadas nas identidades sexuais, já que “a identidade queer não

tem, portanto, limites herméticos e definidos, e se caracteriza, ao contrário,

por sua fluidez, o que constitui uma espécie de desafio à identidade”

(VALE, 2006).

10

Nota de aula da disciplina “Antropologia do Corpo”, ministrada pelo Prof. Dr°

Alexandre Fleming Câmara Vale, no programa de Sociologia da Universidade

Federal do Ceará, no semestre 2007/2.

Page 35: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

35

3. A Política Pós-Identitária

Atualmente, a teoria pós-estruturalista, especificamente a Teoria

Queer11

, tem questionado veementemente a política identitária do sexual e

posto em xeque a fixidez das identidades de gênero e identidades sexuais

como também a relação entre sexo e gênero, através da denúncia de seu

caráter essencialista fundamentado nas “verdades” biológicas.

Trata-se não mais de privilegiar a homossexualidade

enquanto tal, mas de interrogar sobre as sexualidades

em geral e a pensar a marginalidade, examinando de

maneira mais atenta como o regime heterossexual

normativo não poderia existir sem as “sexualidades

queer” (VALE, 2006, p. 64).

Assim, há um investimento na crítica às oposições binárias –

masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade – nas quais, se

baseia o processo de fixação das identidades de gênero e das identidades

sexuais” (SILVA, 2000). Na definição de Louro,

Queer é estranho, esquisito. Quer dizer, também, o

sujeito da sexualidade desviante – homossexuais,

bissexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não

deseja ser “integrado” ou simplesmente “tolerado”.

Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o

centro nem o quer como referência; um jeito de pensar

e de ser que desafia as normas regulatórias da

sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade,

do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo

estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina

(LOURO, 2004, p. 7-8).

11

A Teoria Queer surgiu nos anos de 1990 com base na teoria pós-estruturalista

francesa e adota a desconstrução como método para a crítica às hierarquias sociais.

A Teoria Queer tem como uma de suas maiores representantes a feminista norte-

americana Judith Butler. “O termo queer que significa “estranho”, “bizarro” foi,

durante muito tempo, utilizado para designar os homossexuais de maneira

pejorativa. No final dos anos 80 e início dos anos 90, ele foi aprovado como

emblema teórico e militante do movimento queer” (VALE, 2006, p. 64).

Page 36: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

36

Assim, a drag é eleita tanto por Butler (2003) quanto por Louro

(2004) como exemplo de subversão a normalização do gênero e do sexo,

por subverter, através da paródia do feminino, tal lógica de maneira

“revolucionária” e híbrida, já que “a identidade que se forma por meio de

hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais,

embora guarde traços dela” (SILVA, 2000). A drag,

Assume transitoriedade, ela se satisfaz com as

justaposições inesperadas e com as misturas. A drag é

mais de um. Mais de uma identidade, mais de um

gênero, propositalmente ambígua em sua sexualidade e

em seus afetos. Feita deliberadamente de excessos ela

encarna a proliferação e vive à deriva, como um

viajante pós-moderno (LOURO, 2004, p. 20-21).

Ao utilizar a metáfora do sujeito enquanto um “viajante” e da

sexualidade enquanto territórios percorridos, as “fronteiras da

sexualidade” aparecem enquanto limites normatizadores do sexual, as

linhas divisórias dos sujeitos a partir do referencial identitário. A

fronteira,

È lugar de relação, região de encontro, cruzamento e

confronto. Ela separa e, ao mesmo tempo, põe em

contato culturas e grupos. Zona de policiamento, é

também zona de transgressão e subversão. (...) Quem

subverte e desafia a fronteira apela, por vezes, para o

exagero e para a ironia, a fim de tornar evidente a

arbitrariedade das divisões, dos limites e das

separações (Idem, 2004, p. 19-20).

Page 37: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

37

Portanto,

“cruzar fronteiras”, por exemplo, pode significar

simplesmente mover-se livremente entre os territórios

simbólicos de diferentes identidades (...) não respeitar

os sinais que demarcam – “artificialmente”- os limites

entre os territórios das diferentes identidades. (...)

Aqui, mais do que a partida ou a chegada, é cruzar a

fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que é o

acontecimento crítico (SILVA, 2000, p. 88-89).

Ao eleger a drag como exemplo de subversão à normalização do

gênero e do sexo, Butler (2003) e Louro (2004) pretendem questionar o

caráter homogêneo, contínuo e coerente das identidades sexuais e de

gênero, já que ela, a drag, brinca com seus elementos construtores e transita

constantemente pelo masculino/feminino, ignorando as fronteiras

normativas do sexual. O que pretendem os/as pós-estruturalistas é

questionar o caráter essencialista da já instituída normatividade do gênero e

do sexo e da relação entre ambos.

Contudo, “não há identidade de gênero por trás das expressões de

gênero; essa identidade é performativamente construída, pelas próprias

expressões tidas como seus resultados” (BUTLER, 2003, p.48). A

performatividade é entendida aqui “não como ato pelo qual o sujeito traz à

existência aquilo que ele ou ela nomeia, mas, ao invés disso, como aquele

poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos que ele regula e

constrange” (Idem, 2001, p. 155).

A proposta sugerida por Louro (1997) de desconstrução e

pluralização dos gêneros está respaldada na idéia de que o pensamento

dicotômico e polarizado sobre gênero, que associa a dicotomia

homem/mulher à dominação/submissão, associa, da mesma maneira, a

dicotomia heterossexualidade/homossexualidade à

Page 38: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

38

normalidade/anormalidade, partindo da construção do “ser homem” e “ser

mulher”, pois, no sistema binário do sexo, em relação à orientação sexual, o

segundo pólo assume, então, um caráter de inferioridade sobre o primeiro:

heterossexualidade/homossexualidade corresponderia à

superioridade/inferioridade, lógica produtora da homofobia.

Dessa maneira, a perspectiva queer não se limita apenas ao

processo de desconstrução das categorias – masculinidade/feminilidade e

heterossexualidade/homossexualidade. Estaria implicado nesse processo,

também, o aspecto plural e instável da sexualidade dos sujeitos, uma vez

que não nasceríamos heterossexuais ou homossexuais e, tão pouco,

estaríamos fadados, aprisionados às demais categorias identitárias –

lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – de modo que nos

constituiríamos enquanto sujeitos sexuados, com possibilidades múltiplas

de construir e reconstruir com nossas descobertas e experiências, nossa

sexualidade, independente do gênero e do sexo. Sujeitos sexuais

constantemente inconclusos, instáveis e inacabados, sujeitos de identidades

“cambaliantes”, “flutuantes”, com possibilidades diversas.

Todavia, a compreensão da sexualidade sob o aspecto da

instabilidade, da pluralidade e da construção da sexualidade e do gênero

torna-se complexa e de difícil entendimento, dada a solidez dos padrões

estabelecidos e cotidianamente reafirmados nos mais diversos espaços de

socialização e formação dos sujeitos.

Ao refletir sobre as inquietações trazidas pela teoria queer e

associando-as às práticas educativas escolares, tornam-se oportunos os

questionamentos trazidos por Louro (2001), quanto esta pensa a

possibilidade de uma pedagogia e um currículo queer desenvolvidos no

espaço escolar:

Page 39: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

39

Como um movimento que se remete ao estranho e ao

excêntrico pode se articular com a educação? Como

uma teoria não-produtiva pode falar a um campo que

vive de projetos e de programas, de intenções, os

objetivos e planos de ação? Qual o espaço, nesse

campo usualmente voltado ao disciplinamento e à

regra, para a transgressão e a contestação? Como

romper com o binarismo e pensar a sexualidade, os

gêneros e os corpos de uma forma plural, múltipla e

cambaliante? Como traduzir a teoria queer para a

prática pedagógica? (LOURO, 2001, p. 550).

Estes questionamentos soam como provocações à educação formal

(escolar) e nos instigam à reflexões sobre outras possibilidades de práticas

educativas em sexualidade. Uma alternativa sugerida por Loiola (2005) é a

aproximação do espaço escolar com o movimento social, especialmente o

movimento LGBT12

.

Na contramão da cultura vigente, vivida nas relações sociais

contemporâneas, LGBT, nos espaços dos movimentos sociais, nas últimas

décadas, têm posto à mesa suas inquietações e reivindicações e construído

uma história de luta por direitos sexuais e humanos, conforme veremos no

tópico que segue.

4. Mobilizações Sociais pela Diversidade Sexual e os Direitos de

LGBT

As três últimas décadas do século XX e o início do século XXI no

Brasil foram marcados por transformações políticas, sociais e culturais. Em

meados da década de 1970 e início dos anos de 1980, - com a Ditadura

12

Para maiores aprofundamentos, consultar a obra “Desatando Nós: Fundamentos

para a práxis educativa em gênero e diversidade sexual” na qual descreve e reflete

sobre práticas educativas dos movimentos sociais e da escola. Apresenta, também,

possibilidades de diálogo desses espaços sobre a educação para a sexualidade sob a

perspectiva da diversidade sexual.

Page 40: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

40

militar em declínio e o início do processo de redemocratização do país - o

movimento social13

, antes mobilizado basicamente em torno das lutas de

classe, nos espaços do movimento partidário e sindical, e destituído dos

direitos de participação política pelo autoritarismo militar, reorganizou-se

dando margem ao surgimento e constituição de outros espaços e sujeitos

sociais direcionados a lutas específicas. “Referidos a conflitos que teriam

sua origem na “esfera da cultura”, do indivíduo ou das escolhas pessoais,

esses movimentos foram tratados separadamente daqueles que permitiam

alguma conexão com o conflito de classe” (FACCHINI, 2005), sendo

chamados Novos Movimentos Sociais – NMS14

.

Esse reordenamento na organização da sociedade civil em vistas à

participação nas decisões políticas do país é observado por alguns

estudiosos como conseqüência da constituição de novas identidades

coletivas, constituídas a partir de demandas sociais específicas. Desse

modo, os NMS organizam-se em torno de questões diversas, tendo como

desafio o enfrentamento aos fatores sócio-culturais fontes de desigualdades

sociais. Dentre os mais visíveis estão as questões de gênero, étnica, direitos

humanos e ambiental.

Desde então, dentre esses novos sujeitos sociais, lésbicas, gays,

bissexuais, travestis e transexuais protagonizaram e protagonizam as lutas

13

Adoto o conceito de movimentos sociais de Melucci, que os define como uma forma

de ação coletiva baseada na solidariedade; desenvolvendo um conflito e rompendo os

limites do sistema em que ocorre a ação (MELUCCI apud SCHERER-WARREN,

1993). 14

Ao analisar a utilização, por estudiosos dos movimentos sociais, de adjetivos como

“alternativo”, “libertário” e “novos”, atribuídos ao movimento homossexual, feminista,

negro e ecológico para distingui-los dos movimentos baseados na luta de classe,

Facchini (2005) observa nessa distinção duas implicações: “Por um lado, conduz as

dificuldades no sentido de perceber que as classes sociais, como hierarquizações

baseadas em uma classificação daquilo que nos cerca, não estão tão distantes da “esfera

da cultura”. Por outro lado, obscurece a percepção de que a questão dos conflitos ou

identidades baseadas em classes sociais perpassa os movimentos referidos a questões

“culturais” FACCHINI, 2005).

Page 41: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

41

comunitárias em defesa do direito à liberdade de orientação sexual. No

entanto, apesar da conquista democrática, legitimada pela Constituição

Cidadã de 1988, e paralela à participação e mobilização social entorno de

ideais democráticos e das lutas por igualdade de direitos, o avanço das

políticas neoliberais em meados da década de 1990 e no início do século

XXI, na chamada “Era FHC”, aprofundou consideravelmente as

desigualdades sociais. Tais desigualdades, oriundas do sistema capitalista

neoliberal, e regidas pela primazia do capital em detrimento dos direitos

sociais, perpassam as questões de classe, de identidade de gênero e de

etnias, produzidas pelo machismo, heterosexismo e racismo, herança de

nossa cultura ocidental cristã. “O fato de não operarem com referências

diretas ao conflito de classe não significa que movimentos como o

movimento homossexual não tenham o potencial de produzir mudanças de

ordem cultural e criar novos tipos de hierarquia social”, lembra Facchini

(2005).

Nesta última década, com a chegada da “esquerda” ao poder e da

migração de um grande contingente de militantes dos movimentos sociais

para o governo, ampliou-se o diálogo entre movimento social e Estado no

sentido da efetivação de políticas públicas de enfrentamento às

desigualdades sociais. No entanto, a dinâmica do cenário político

permanece dependente de acordos externos, de modo que as desigualdades

continuam presentes em nosso cotidiano, a reafirmar valores e condutas

sociais e sexuais ratificadores de preconceitos e discriminações dirigidas

aos sujeitos LGBT.

Nesse contexto, o movimento LGBT tem, ao longo dessas quatro

décadas, construído uma história de conquistas e desafios frente aos fatores

importantes que caracterizam estes tempos de ânsia por democracia,

cidadania e igualdade de direitos. A discussão acerca dos saberes sobre a

Page 42: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

42

diversidade sexual foi fomentada a partir dos anos 1970, quando se dá

início a mobilização de LGBT (até então conhecido como movimento

homossexual) em busca de seus direitos, de sua cidadania. Esse movimento

sai dos guetos no Ceará, no Brasil e no mundo, “começando a ocupar cada

vez mais espaço na vida pública e social, fortalecendo e abrindo canais de

comunicação e interlocução social e política, moldando diferenças e criando

associações e grupos para defesa de seus direitos” (BRASIL, 2002).

5. Lutas, Conquistas e Desafios por direitos de LGBT

Durante as três últimas décadas, no Brasil, a sociedade civil

organizada LGBT tem se mobilizado em torno das lutas sociais pela

efetivação de seus direitos e defesa da cidadania de LGBT. Organizou-se

institucionalmente e formou militância. Criou redes de debates e troca de

informações. Catalogou, registrou e denunciou a violação dos direitos

humanos caracterizada pela homofobia. Protestou contra o descaso do

poder público frente aos muitos assassinatos homofóbicos15

. Foi às

Assembléias Legislativas, às Câmaras, às ruas - em milhões - em todo o

País. Desfilou pelos corredores da “casa do povo” a ecoar jargões de luta “É

legal ser homossexual!”, “União Civil Já!”, e estendeu o arco-íris na rampa

do Poder. Conquistou espaços, parcerias locais, nacionais e internacionais.

Entretanto, tem enfrentado desafios diversos, oriundos dos resquícios

15

O Grupo Gay da Bahia, desde 1980, sistematiza informações sobre homicídios

de LGBT, e divulga, desde 1995, uma análise dos homicídios gerados em

decorrência da homofobia. Segundo Mott (2007), neste período, 1963 – 2004, o

GGB documentou o número de 2.501 assassinatos de homossexuais. – “cifra

certamente muito inferior à realidade, posto que inexistindo no Brasil estatísticas

oficiais relativas a crimes de ódio, temos de nos valer de notícias publicadas na

imprensa, pesquisa na Internet e informações enviadas pelos próprios militantes

homossexuais” (MOTT, 2003, p. 11 – 10).

Page 43: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

43

machistas e heterossexistas da cultura cristã ocidental, que continuam a

reafirmar-se no cotidiano das relações sociais.

Nesse contexto de redemocratização do País, no qual esse

movimento está inserido, sobre a relação sociedade civil e Estado, Oliveira

(2003) observa que

O elemento central de discussão da sociedade civil

consiste em: intervir qualificadamente nas políticas

públicas através da negociação com o Estado;

preservar e conquistar direitos; desenvolver e apoiar

mecanismos que favoreçam o exercício do controle

social sobre a ação do Estado e a atuação do mercado;

e insistir no aprofundamento da democracia com

participação (OLIVEIRA, 2003, p. 38).

Porém, o referido autor nos chama a atenção para o perigo de

inversão das funções entre sociedade civil e Estado, ao identificar, “no

contexto neoliberal, uma inversão de funções entre o Estado e a sociedade

civil. Setores da sociedade vêm cada vez mais assumindo atribuições do

Estado, ao passo que esse toma o papel de fiscalizador, que é tarefa

intrínseca da sociedade civil” (OLIVEIRA, 2003).

Dessa maneira, as ações de advocacy protagonizadas pelo

movimento LGBT junto ao Legislativo, Executivo e Judiciário brasileiro

merecem nossa atenção, pois retratam como a sociedade brasileira vem

exercendo, ou tentando exercer, a difícil e ainda incompreendida

“democracia participativa” através da inserção popular na construção e

efetivação das políticas públicas.

LGBT e o Poder Legislativo

Um marco das lutas para efetivar os direitos da população LGBT

foi o projeto de lei Constitucional – PLC 1.151/95, elaborado e apresentado

Page 44: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

44

ao Congresso Nacional pela então Deputada Federal Marta Suplicy em

1995. O projeto previa legalizar a união entre pessoas do mesmo sexo,

tendo em vista reparar as perdas legais ocasionadas pelo não

reconhecimento das uniões homoafetivas16

.

No Congresso Nacional, a resistência à legalidade da união civil

entre pessoas do mesmo sexo teve como obstáculo maior a férrea oposição

16

Dentre as questões, estão as seguintes: Não podem aceder ao casamento civil;

Não têm reconhecida a união estável; Não adotam sobrenome do parceiro; Não

podem somar renda para aprovar financiamentos; Não somam renda para alugar

imóvel; Não inscrevem parceiro como dependente de servidor público (admissível

em diversos níveis da Administração); Não podem incluir parceiros como

dependentes no plano de saúde; Não participam de programas do Estado

vinculados à família; Não inscrevem parceiros como dependentes da previdência

(atualmente aceito pelo INSS); Não podem acompanhar o parceiro servidor público

transferido (admissível em diversos níveis da Administração); Não têm a

impenhorabilidade do imóvel em que o casal reside; Não têm garantia de pensão

alimentícia em caso de separação (posição controversa no Judiciário, havendo

diversos casos de concessão); Não têm garantia à metade dos bens em caso de

separação (quanto aos bens adquiridos onerosamente, têm direitos pois constituíam

sociedade de fato. Contudo, não há que se falar em meação de bens); Não podem

assumir a guarda do filho do cônjuge; Não adotam filhos em conjunto; Não podem

adotar o filho do parceiro; Não têm licença-maternidade para nascimento de filho

da parceira; Não têm licença maternidade/ paternidade se o parceiro adota filho;

Não recebem abono-família; Não têm licença-luto, para faltar ao trabalho na morte

do parceiro; Não recebem auxílio-funeral; Não podem ser inventariantes do

parceiro falecido; Não têm direito à herança (precisam de previsão testamentária,

mas quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência, há sociedade

de fato, recebendo o sobrevivente a sua parte); Não têm garantida a permanência no

lar quando o parceiro morre; Não têm usufruto dos bens do parceiro (precisam de

previsão testamentária); Não podem alegar dano moral se o parceiro for vítima de

um crime; Não têm direito à visita íntima na prisão (visitas autorizadas por grande

parte do Judiciário); Não acompanham a parceira no parto; Não podem autorizar

cirurgia de risco; Não podem ser curadores do parceiro declarado judicialmente

incapaz (grande parte do Judiciário admite o exercício da curatela pelo parceiro,

mas não é possível que este promova a interdição); Não podem declarar parceiro

como dependente do Imposto de Renda (IR); Não fazem declaração conjunta do

IR; Não abatem do IR gastos médicos e educacionais do parceiro; Não podem

deduzir no IR o imposto pago em nome do parceiro; Não dividem no IR os

rendimentos recebidos em comum pelos parceiros; Não são reconhecidos como

entidade familiar, mas sim como sócios; Não têm suas ações legais julgadas pelas

varas de família. (ABGLT, 2007).

Page 45: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

45

da bancada religiosa fundamentalista, respaldada por valores e crenças

oriundas do cristianismo ocidental. Em 2003, diante do grande número de

aprovação da união civil em países como Holanda, Canadá, Espanha,

Argentina e Suíça, o Papa João Paulo II lançou a carta “Considerações

sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas

Homossexuais” com o objetivo de intervir junto a legisladores católicos no

sentido de evitar a legalização da união civil em países onde esta ainda não

se havia efetivado. “Onde o Estado assume uma política de tolerância de

facto (...) àqueles que, em nome dessa tolerância, entendessem chegar à

legitimação de específicos direitos para as pessoas homossexuais

conviventes, há que lembrar que a tolerância do mal é muito diferente da

aprovação ou legalização do mal” (Papa João Paulo II, 2003).

É entendendo a homossexualidade como um “mal” que o referido

Pontífice prossegue suas argumentações, equiparando e opondo a união

civil entre pessoas do mesmo sexo ao matrimônio, já que a legalização

dessas uniões dar-lhes-ão direitos jurídicos equivalentes aos do matrimônio.

“O Estado não pode legalizar tais uniões sem faltar ao seu dever de

promover e tutelar uma instituição essencial ao bem comum, como é o

matrimônio”, e ressalta, “a sociedade deve a sua sobrevivência à família

fundada sobre o matrimônio” e “a legalização das uniões homossexuais

acabaria, portanto, por ofuscar a percepção de alguns valores morais

fundamentais e desvalorizar a instituição matrimonial”, causando a

redefinição do mesmo e, conseqüentemente, a perda de sua “referência

essencial aos fatores ligados à heterossexualidade, como são, por exemplo,

as funções procriadora e educadora” (Papa João Paulo II, 2003). Finaliza

com as seguintes recomendações:

Page 46: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

46

Se todos os fiéis são obrigados a opor-se ao

reconhecimento legal das uniões homossexuais, os

políticos católicos são-no de modo especial, na linha da

responsabilidade que lhes é própria. Na presença de

projetos de leis favoráveis às uniões homossexuais, há

que ter presentes as seguintes indicações étnicas. No caso

que se proponha pela primeira vez à Assembléia

Legislativa um projeto de lei favorável ao reconhecimento

legal das uniões homossexuais, o parlamentar católico

tem o dever moral de manifestar clara e publicamente o

seu desacordo e votar contra esse projeto de lei. Conceder

o sufrágio do próprio voto a um texto tão nocivo ao bem

comum da sociedade é um ato gravemente imoral. (Papa

João Paulo II, 2003, p. 5 e 6)

As ações de pressão popular do movimento LGBT foram diversas,

nas quais o grito: “União Civil Já!” ecoava constantemente. Paradas no

Brasil inteiro pautaram como questão principal de discussão a legalidade da

união civil entre pessoas do mesmo sexo. Eventos e encontros de ativistas

foram realizados em Brasília, no sentido de aproximar e intensificar a

discussão entre ativistas do movimento LGBT e o Poder Legislativo.

É nessa arena de enfrentamento entre a lei civil e a lei “moral”

cristã que há 15 anos a proposta de legalização da união civil entre pessoas

do mesmo sexo tramita no Congresso Nacional, sem sequer entrar na pauta

de votação da referida casa legislativa. No entanto, em 05 de maio de 2011

o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a união civil entre pessoas do

mesmo sexo. Um marco histórico para a democracia brasileira.

Como estratégia de avanço no campo constitucional, o movimento

LGBT propôs incluir na constituição brasileira a homofobia entre os atos

criminosos configurados pelo preconceito. Apresentado pela Deputada

Federal Iara Bernardes, o PLC 122/2006 de criminalização da homofobia

propõe alterar a Lei 7.716/198917

, que define os crimes ocasionados pelo

17

A emenda da lei passaria a vigorar com a seguinte redação: Art. 1º Serão

punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito

Page 47: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

47

preconceito de raça ou de cor. A alteração consiste em incluir os crimes

resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação

sexual, e identidade de gênero e indica, dessa maneira, sanções às práticas

discriminatórias dirigidas aos/às homossexuais. O projeto foi aprovado no

Congresso Nacional, em 2007, e atualmente tramita no Senado Federal.

Paralelas às ações nacionais, o movimento LGBT vem intervindo

nos âmbitos estadual e municipal junto aos legisladores, nas Assembléias

Legislativas e Câmaras Municipais, no mesmo sentido de incluir nas Leis

Orgânicas Municipais e Estaduais mecanismos de defesa e/ou visibilidade

da livre expressão sexual18

. Leis que instituem o Dia Municipal ou Estadual

da Consciência Homossexual, o Dia da Consciência Lésbica, o Dia de

Enfrentamento à Homofobia, assim como leis que sancionam punições a

estabelecimentos comerciais por discriminação em virtude da orientação

sexual.

LGBT e o Poder Executivo

A abertura política conquistada pelo processo de redemocratização

do Brasil possibilitou ao Estado e à sociedade civil, esferas por muito

tempo vistas como pólos opostos, uma nova relação sobre premissa da

participação democrática. Dessa maneira, as discussões voltadas à inclusão

da temática “orientação sexual” nos planos de políticas públicas do governo

brasileiro vêm se intensificando através das ações de advocacy realizadas

de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e

identidade de gênero. 18

Atualmente, cerca de 92 municípios possuem leis orgânicas nas quais constam a

expressa proibição de discriminar por orientação sexual. Dentre estes, estão os

municípios cearenses de Fortaleza, Maracanaú, Limoeiro do Norte, Juazeiro do

Norte, Horizonte, Barro, Farias Brito, Granjeiro e Novo Oriente. Quanto às leis

estaduais, apenas a Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São

Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Piauí, Pará, Paraíba e Alagoas possuem

leis de proibição da discriminação por orientação sexual. (ABGLT, 2007).

Page 48: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

48

pelo movimento LGBT, principalmente depois da segunda metade da

década de 1990, em vista ao enfrentamento das desigualdades ocasionadas

pela homofobia.

No campo da saúde, especialmente, nas ações de prevenção da Aids

e de outras doenças sexualmente transmissíveis (DST), o movimento LGBT

tem firmado constantes parcerias com gestores municipais, estaduais e

federal19

, dada as suas importantes contribuições nas ações de

enfrentamento à epidemia da Aids, por meio da mobilização comunitária

respaldada na educação entre pares. A partir da elaboração do Programa

Brasil Sem Homofobia20

, o diálogo no campo da justiça, cultura, direitos

humanos e educação tem se intensificado, abrindo novos espaços para o

fortalecimento e implementação de ações voltadas à cidadania

homossexual.

19

A parceria entre movimento LGBT e gestores da saúde consistia e ainda consiste,

principalmente, no financiamento de projetos - por gestores municipais, estaduais e

federais - através de editais de concorrência idealizados e executados pelas

instituições não-governamentais do movimento LGBT. 20

O “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação

contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual” foi elaborado pelo

Governo Federal, em parceria com o Movimento Homossexual do Brasil, em 2003,

com o objetivo de elaborar propostas de políticas públicas, visando promover a

cidadania de LGBT, tendo por base a equiparação de direitos e o combate à

violência e à discriminação homofóbica. Em 2004, o programa foi oficialmente

lançado pelo Governo Federal, mas sem previsão orçamentária para sua

implementação. As propostas de ações governamentais tinham em vista “à

educação e a mudança de comportamento dos gestores públicos” visando ao

enfrentamento do preconceito e da discriminação por orientação sexual, tendo

ações específicas nas seguintes áreas: Articulação da Política de Promoção dos

Direitos dos Homossexuais; Legislação e Justiça; Cooperação internacional;

Direito à Segurança: combate à violência e à impunidade; Direito à Educação:

promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação sexual;

Direito à Saúde: consolidando um atendimento e tratamentos igualitários; Direito

ao Trabalho: garantindo uma política de acesso e de promoção da não

discriminação por orientação sexual; Direito à Cultura: construindo uma política de

paz e valores de promoção da diversidade humana; Política para a Juventude;

Política para as Mulheres e Política contra o Racismo e a Homofobia.

Page 49: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

49

LGBT e o Poder Judiciário

O sistema judiciário brasileiro tem como regra maior a Constituição

Brasileira de 1988 – Constituição Cidadã. Elaborada na perspectiva de

constituir um Estado Democrático de Direito, tem como um de seus

fundamentos a dignidade da pessoa humana. Dessa maneira, dentre os

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no Art 3º, inciso

IV, está a promoção “do bem-estar de todos, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”

(BRASIL, 2003).

Assim, na Federação, regida pela prevalência dos direitos humanos,

o direito à igualdade e à liberdade estão garantidos constitucionalmente ao

cidadão como direitos fundamentais da pessoa humana. Em seu artigo 5°,

sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, garante que “todos são

iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito

à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança é à propriedade” (BRASIL,

2003, p. 05).

No entanto, no tocante à sexualidade, Dias (2004) alerta que,

“enquanto houver segmentos alvos de exclusão social, tratamento

desigualitário entre homens e mulheres, enquanto a homossexualidade for

vista como crime, castigo ou pecado, não se está vivendo em um Estado

Democrático de Direito”, sob o entendimento de que “ninguém pode se

realizar enquanto ser humano se não tiver assegurado o respeito ao

exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual

como a liberdade de livre orientação sexual” (DIAS, 2004). Isso porque,

mais especificamente, em relação aos direitos de LGBT, o judiciário

Page 50: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

50

brasileiro tem encontrado bastante dificuldade em assegurar-lhes o

pressuposto constitucional da “igualdade” e “liberdade”.

Ocorre que, em virtude das relações afetivas e/ou sexuais entre

pessoas do mesmo sexo não serem mencionadas na Carta Constitucional, as

questões decorrentes da homossexualidade no âmbito da jurisprudência

brasileira ficam a critério das interpretações dos/as operadores do Direito.

“Tenta-se excluir a homossexualidade do mundo do Direito, mas imperativa

sua inclusão no rol dos direitos humanos fundamentais, como a expressão

de um direito subjetivo que se insere em todas as subcategorias, pois ao

mesmo tempo é direito individual, social e difuso” (DIAS, 2008).

Nesse cenário, o movimento LGBT tem questionado o

conservadorismo do Poder Judiciário brasileiro, denunciando as profundas

injustiças ocasionadas pela desigualdade como são tratados/as LGBT, sobre

a prerrogativa de que “a inexistência de lei não exime a justiça de sua

função na garantia dos direitos, menos ainda é justificada para negá-los”

(KOTLINSKI, 2007). O tratamento desigual fica evidente, por exemplo,

quando observamos o grande número de declarações homofóbicas

propagadas publicamente em meios de comunicação por representantes de

igrejas, políticos e demais formadores de opinião e pelo desfecho jurídicos

de crimes homofóbicos, geralmente fadados à impunidade dos criminosos.

No campo judiciário, o mote das discussões tem girado em torno de

dois eixos temáticos. O primeiro diz respeito à garantia dos direitos sociais,

seguindo do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, “ora

para reconhecê-la com base de proteção do Estado às famílias por elas

formadas, diante de instituições públicas e privadas e, ora, para

conseqüentemente ter acesso a direitos previdenciários, hereditários, adoção

entre outros” (CORTÊS, 2007). O segundo eixo, com foco na

discriminação e indenização, está relacionado à discriminação e ao

Page 51: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

51

preconceito dirigidos à LGBT em virtude de sua orientação sexual ou

identidade de gênero, o que ocorre “por parte do Estado e das diversas

esferas da sociedade, quando são impedidas de exercerem seus direitos de

cidadania, como o exercício de cargo ou função, o direito de concorrerem a

cargos públicos, civil ou militar, ou quando são destratados de forma

acintosa por instituições ou pessoas” (Idem, 2007).

No entanto, nas últimas décadas, outras questões têm levado LGBT

a recorrer ao judiciário em vistas à solicitação de seus direitos em diversas

instâncias. Podemos citar, entre as questões mais recorrentes, o direito à

mudança de nome e gênero em documentos, solicitado por travestis e

transexuais; a solicitação junto ao Instituto Nacional de Seguro Social –

INSS de benefícios previdenciários; a solicitação ao SUS dos

procedimentos cirúrgicos de readequação do sexo, pelas transexuais.

Em 2000, no Rio Grande do Sul, o INSS editou a Instrução

Normativa n° 25/2000 que estabelece, por força de decisão judicial,

procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios

previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual. No Ceará,

em 2008, a Prefeitura Municipal de Fortaleza concedeu tais direitos a seus

funcionários e, no mesmo ano, a justiça cearense concedeu, pela primeira

vez, o direito do benefício de pensão à companheira homossexual, assim

como tem punido estabelecimentos comerciais por discriminação em

virtude da orientação sexual de LGBT, de acordo com a lei municipal

8.211/98.

Apesar da ausência de legislação específica, as questões de

jurisprudência relacionadas à homossexualidade têm alcançado importantes

ganhos, seja no aspecto da conquista de direitos, mesmo que ainda de forma

bastante tímida, seja por meio da inserção de tais questões no campo

jurídico, o que amplia, a nosso ver, as possibilidades de transformações da

Page 52: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

52

dinâmica jurídica. Todavia, consideramos que o grande número de casos

levados aos tribunais pela população LGBT ao passo que sinaliza para uma

maior consciência e busca de seus direitos, até então negados pelo Estado

Brasileiro, denuncia a falsa “igualdade” e “liberdade”, propagada

constitucionalmente, e desvenda a homofobia institucional do Estado, dito

laico e democrático por direito.

Muito embora as lutas do movimento LGBT tenham alcançado

êxito em alguns aspectos, os conflitos e desigualdades decorrentes da

homofobia continuam presentes nos mais diversos espaços de socialização

dos sujeitos, de modo que, no âmbito da educação formal, tais conflitos

estão presentes no cenário do espaço escolar e apresentam-se como um

desafio a educadores/as que visam desenvolver práticas educativas de

enfrentamento às desigualdades ocasionadas por preconceitos e

discriminação em virtude da orientação sexual e do gênero (Joca, 2009).

6. Considerações

Diante do exposto, finalizo este artigo reafirmando a importância

do empoderamento e da formação continuada de educadores e educadoras

das escolas brasileiras em gênero, identidade de gênero e orientação sexual.

Isso porque a educação escolar pode e deve ser um instrumento de

enfrentamento às desigualdades sociais decorrentes da homofobia e do

sexismo. Para isso, os sujeitos da cena escolar precisam se apropriar dos

saberes, das lutas e dos enfrentamentos (culturais, ideológicos, políticos e

pedagógicos) vividos na dinâmica social contemporânea em torno do

reconhecimento dos direitos sociais e civis da população LGBT.

As práticas educativas escolares em sexualidade - na perspectiva da

diversidade sexual – ainda se constituem enquanto um campo minado, no

qual os enfrentamentos se dão para além dos muros das escolas brasileiras.

Page 53: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

53

A formação continuada de professores/as nessas temáticas, empreendidas

nos últimos anos, é um passo importantíssimo na educação escolar para a

sexualidade, no entanto, a elaboração de políticas educacionais específicas

sobre essas temáticas, a formação inicial de educadores/as, a produção de

materiais educativos, a elaboração de diretrizes norteadoras, a produção de

conhecimento e o envolvimento e comprometimento de gestores públicos

são demandas emergentes a serem atendidas e postas nas pautas da arena

social e política.

7. Referências Bibliográficas

ABGLT. Site. Disponível em: < http://www.abglt.org.br> Acesso em:

junho. 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde.

Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de prevenção das DST/Aids

e cidadania para homossexuais. Brasília, 2002.

_______________. Ministério Público Federal. Constituição da República

Federativa do Brasil: Brasília: Ministério Público Federal, 2003.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da

identidade. Rio de Janeiro, 2003.

CARVALHO, Maria Eulina e ANDRADE, Fernando Cezar Bezerra e

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. In: Gênero e Diversidade Sexual: um

glossário. João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB. 56p.

CORTÊS, Iáris Ramalho. Nota Explicativa. In: KOTLINSKI, Kelly (org.).

Legislação e Jurisprudência GLBTTT: Lésbicas – Gays – Bissexuais –

Travestis – Transexuais – Transgêneros. Brasília: LetrasLivres, 2007.

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça!. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

Page 54: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

54

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e o direito à diferença. Site.

Disponível em: <http://

www.mariaberenicedias.com.br/site/frames.php?idioma=pt> Acesso em: 18

março. 2008.

FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: movimento homossexual e

produção de identidades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro:

Garamond, 2005.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 13ª

ed. Rio de Janeiro; Graal, 1988.

JOCA, Alexandre Martins. In: Diversidade Sexual: Um “problema”

posto à mesa. Dissertação de Mestrado. UFC, 2008;

_______________. Educação escolarizada e diversidade sexual: problemas,

conflitos e expectativas. In: Desatando Nós: Fundamentos para a práxis

educativa sobre gênero e diversidade sexual. Adrinao Henrique Caetano

Costa / Alexandre Martins Joca / Luís palhano Loiola (organizadores). –

Fortaleza: Edições UFC, 2009;

KOTLINSKI, Kelly (org.). Legislação e Jurisprudência GLBTTT:

Lésbicas – Gays – Bissexuais – Travestis – Transexuais – Transgêneros. Brasília: LetrasLivres, 2007.

LIONÇO, Tatiana e DINIZ, Débora. Homofobia, silêncio e naturalização:

por uma narrativa da diversidade sexual. In: Homofobia e educação: um

desafio ao silêncio / Tatiana Lionço; Débora Diniz (Organizadoras).

Brasília: LetrasLivres: EdUnB, 2009.

LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da

sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

_______________. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva

pós-estruturalista; Petrópolis, RJ; Vozes, 1997.

_______________. Um corpo estranho: Ensaios sobre a sexualidade e a

teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MOTT, Luiz. Matei porque odeio gay. Salvador: Editora Grupo Gay da

Bahia – (Coleção Gaia Ciência), 2006.

Page 55: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

55

OLIVEIRA, Francisco Mesquita de. Cidadania e cultura política no

poder local. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2003.

PAULO II, Papa João. Universo Católico. Congregação para a doutrina da

fé. Site. Disponível em:

<http://www.universocatolico.com.br/content/view/292/3/>. Acesso em:

setembro. 2007.

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 2. ed. São

Paulo: Loyola, 1993.

SILVA, Thomaz Tadeu da. Identidade e diferença: A perspectiva dos

estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

VALE, Alexandre Fleming. O riso da paródia: Transgressão, feminismo e

subjetividade. In: VALE, Alexandre Fleming; PAIVA, Antonio Cristian

Sararaiva (orgs.). Estilísticas da sexualidade. Fortaleza: Programa de Pós-

graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará; Campinas:

Pontes Editores, 2006.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes

(org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte:

Autêntica, 2001.

Page 56: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

56

Escola que Protege - Formação de Educadores para a

Interrupção do Ciclo de Violência contra a Criança e o

Adolescente. Um olhar Crítico

Liliane Batista Araújo21

Ana Maria Frota22

Introduzindo a questão: do que tratamos

O projeto Escola que Protege, em sua segunda edição (2007-2008),

objetivou a formação de 400 educadores para o fortalecimento da atuação

das escolas na rede de enfrentamento à violência contra a criança e o

adolescente, visando oferecer-lhes subsídios para identificar e encaminhar

ao atendimento especializado, crianças e adolescentes vítimas de maus-

tratos, negligência, exploração sexual e comercial, e exploração do trabalho

infanto- juvenil. Além disso, o projeto almejou a formação e consolidação

das Comissões Escolares de prevenção à violência e maus-tratos, nos quais

estariam inseridos funcionários, professores, alunos e pais.

A metodologia adotada pelo projeto visou à formação de

educadores-multiplicadores com capacitações presenciais e

semipresenciais. As formações semipresenciais eram dedicadas a atividades

de multiplicação. Assim, após os educadores receberem as formações,

tinham que realizar um curso de repasse, organizado em três fóruns

escolares. Fariam parte destes fóruns, professores, funcionários, alunos e

pais. As temáticas abordadas nas capacitações estavam relacionadas com

violência infanto–juvenil, sistema de garantia dos direitos da criança e

21

Economista Doméstica - Universidade Federal do Ceará 22

Psicóloga, Doutorado em Psicologia, Professora Associada da Universidade

Federal do Ceará

Page 57: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

57

adolescente, rede de proteção integral, o papel da escola como responsável pelas

notificações em casos de violência, dentre outros.

Partindo da seriedade dos assuntos abordados nas capacitações,

considerei de extrema importância verificar, na prática, como eles foram

repassados pelos educadores-multiplicadores para o restante do público que

o projeto ansiou atingir. Assim, levantei alguns questionamentos à eficácia

dessa metodologia, principalmente com relação à fase semipresencial.

Desde modo, este trabalho é uma pequena contribuição para a concretização

do Escola que Protege, através de uma incipiente avaliação da sua

metodologia utilizada nas capacitações.

Os procedimentos metodológicos para este estudo basearam-se: (1)

busca por relatórios elaborados pelo projeto Escola que Protege em outros

estados nacionais; (2) análise dos relatórios enviados pelas escolas para o

projeto Escola que Protege, a fim de escolher a escola ña qual faria a

pesquisa; (3) elaboração do instrumental para as entrevistas; (4) entrevistas

com as quatro categorias envolvidas no projeto: comissão, professores e

funcionários, pais e crianças; (5) análise e tabulação dos dados coletados.

O lugar de importância da escola na rede de proteção

Considerada um espaço de educação e formação dos indivíduos, é

na escola que são consolidadas as relações entre indivíduos, natureza e

sociedade. Assim, a escola é um local de formação, pois trabalha o

conhecimento, atitudes, valores e principalmente a concepção de hábitos

(SILVA, 2004).

Para Nascimento (2006), a escola deve ser pensada como um

espaço em que crianças e adolescentes possam ter todos os seus direitos e

deveres assegurados e onde o professor não exerça sozinho a

Page 58: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

58

responsabilidade do desenvolvimento integral da criança, mas em conjunto

com toda a comunidade escolar.

Os estudos sobre a violência apontam que, além dos familiares, as

pessoas mais próximas da criança ou adolescente são, na maioria dos casos,

seus maiores agressores, o que dificulta a denúncia. Deste modo, a escola é

importante vetor no trabalho de proteção à violência, estando muito ligada

ao cotidiano das crianças e adolescentes. Contudo, antes de se pensar na

escola como um agente de proteção, é necessário caracterizá-la e entendê-

la, tendo como referencial o ponto de vista dos seus componentes

(professores, diretores, coordenadores e demais funcionários), observando

como eles colaboram para sua instituição enquanto apoio e proteção. Todos

os profissionais do ensino que compõem a escola devem se identificar com

seus ideais, e compreender que fazem parte de uma rede de profissionais,

podendo ou não trabalhar como referência, apoio e proteção. Deste modo,

A escola deve se comprometer com a garantia dos

direitos das crianças e dos adolescentes, e a adesão dos

educadores fortalece a militância em defesa desses

direitos. A atuação do professor na identificação e

denúncia da violência sexual é fundamental,

principalmente nas primeiras séries, quando os

educadores permanecem cerca de quatro horas diárias

com as crianças (INOUE e RISTUM, 2008, p. 15).

De acordo com o Art. 70° do Estatuto da Criança e Adolescente, “é

dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da

criança e adolescente” (BRASIL, 1990a). Portanto, a escola deve exercer o

seu papel de instituição de proteção, além de constituir-se em um espaço

democrático, que possa proporcionar o desenvolvimento integral de crianças e

adolescentes em suas diversas necessidades. Este espaço deve valorizar o ser

humano, as relações interpessoais, o respeito ao próximo, desenvolvendo o

Page 59: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

59

senso crítico e a responsabilidade social, ou ainda, promovendo ações que

proporcionem a liberdade do pensamento. (MAIOR NETO, 2009).

É importante que toda a comunidade escolar compreenda que o

exercício das suas funções básicas de educação deve ser somado a ações que

promovam a garantia dos direitos da criança e adolescente, não podendo

pensar estes dois campos de atuação separados. Como explica Amaral (2007),

A escola, importante espaço de convivência de crianças

e adolescentes, pode se tornar um espaço de

enfrentamento das situações de violência, através de

sensibilização e formações aos atores sociais que com

eles convivem para que desenvolvam ações contínuas de

acolhimento e proteção23

O ambiente de ensino pode ser o canal de entrada da rede de

atendimento, em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. A

equipe gestora da escola, quando perceber esse fenômeno, tem o papel de

acionar a rede e realizar a denúncia, primeiramente ao Conselho Tutelar e

órgãos responsáveis. O corpo docente e administrativo da escola deve garantir

o sigilo do caso, como também entender a criança e o adolescente como

sujeitos em desenvolvimentos e de direitos, acima de tudo. Além disso, não

pode considerar que a vítima consentiu com a agressão, pois não se pode falar

em consentimento em uma situação que existe uma relação de poder adulto-

criança ou adulto-adolescente (QUIXADÁ, 2007).

A violência com crianças e adolescentes: o contexto escolar

Segundo Michaud (1989, apud PERES, 2009) a violência existe quando

um, ou vários atores, tem atitudes que causem danos a uma ou mais pessoas, seja

23

Trecho retirado da orelha do livro “A Escola diz não à Violência”. (

MOTA, MADEIRA e CORDEIRO, 2007).

Page 60: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

60

à sua integridade física, moral, em suas posses, ou ainda em suas participações

simbólicas e culturais. A partir da década de 80, a temática da violência surge

como problema de saúde pública, ampliando principalmente as discussões sobre

as questões de maus-tratos. Segundo a Associação Brasileira de Crianças

Abusadas e Negligenciadas, cerca de 4,5 milhões de crianças são vítimas de abuso

e negligência, por ano, em nosso país (DESLANDES, 1994). A violência familiar

é realidade no Brasil, merecendo maiores estudos:

No Brasil, a padronização para registrar situações de

violência familiar é fragmentada, o que provoca

prejuízo para uma rotina clara e eficaz, ocasionando

deficiências nos procedimentos a serem seguidos pelos

profissionais e instituições. Além disso, há carência de

políticas públicas eficazes que viabilizem a criação e,

principalmente, a manutenção de programas

preventivos e de tratamento, necessários para

promover o aprimoramento e evolução de técnicas

eficazes no enfrentamento dessa problemática (BRITO

et al, 2005, p. 144).

Um fator que pode originar a violência é o não, ou mau funcionamento,

dos dispositivos políticos. Isso pode ser observado através das lideranças dos

governos, ao promoverem políticas de gestão, e não de Estado. Ou seja, quando

há troca de governo, não há efetivação e continuação dessas políticas. Tal fato

acarreta sérios danos à população que dependem dessas políticas para

continuarem a viver ou exercerem sua cidadania (QUIXADÁ, 2007). Crianças e

adolescentes vítimas de violência sofrem essa violação dos direitos, muitas

vezes, pelo adulto que os impõe regras e limita-os frente à lei e sociedade.

Afirma Mota (2007):

A violência contra a criança e adolescente contém uma

confluência entre discriminação de gênero e de idade,

fundada numa cultura machista e adultocêntrica, que

Page 61: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

61

submete a infância não apenas ao cuidado, mas ao

controle dos adultos, extraindo-lhe sua plenitude como

indivíduo diante da lei e da sociedade. Reduzida a uma

condição de incompletude, insuficiência e fragilidade, a

infância é dominada, submetida, silenciada e excluída

diante dos interesses dos adultos [responsáveis por ela ou

não] (p. 26).

Os maus tratos, abandono e negligência, abuso, exploração sexual,

exploração comercial, além do trabalho infantil, ou seja, todas estas formas de

violência contra crianças e adolescentes, não são recentes, o que pode ser

comprovado pela trajetória histórica das crianças pobres do Brasil. Porém essa

realidade vem se alterando ao longo das últimas décadas. A divulgação do

Estatuto da Criança e do Adolescente contribuiu fortemente para que esta situação

se transforme (FRANCISCHINI e SOUZA NETO, 2007).

As situações de violências nas quais muitas crianças e adolescentes

encontram-se, podem ser percebidas mediante a identificação de alguns fatores,

sendo estes, muitas vezes, os principais facilitadores da vulnerabilidade infanto-

juvenil. Por isso, a importância em identificá-los e conhecer a realidade e o

contexto histórico de cada indivíduo violentado. Conforme Cordeiro (2007), para

que haja a identificação desses fatores, é preciso classificá-los em fatores de risco

e/ou fatores de proteção. Torna-se necessário entender a combinação entre eles,

pois podem servir de referência ao modo de acolhimento dos sujeitos vitimados.

A autora associa os fatores de risco à situação de violência, e afirma que a

violência e a violação dos direitos se confundem, na medida em que os indivíduos

vivem nesse contexto, e, muitas vezes, podem assumir a posição de excluídos.

Ainda, segundo a autora, os fatores de proteção são aqueles que transformam,

aliviando a resposta de um indivíduo a algum episódio que lhe causou sofrimento,

sendo combinado pela força e características internas, como também por recursos

familiares e sociais. A escola, neste contexto, é admitida como instituição

Page 62: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

62

participante da rede de enfrentamento à violência contra criança e adolescente, na

qual pode prover a garantia desses fatores de proteção.

Ao se falar em violência contra crianças e adolescentes, já se sabe que

esta é produzida muitas vezes nos lares, entre quatro paredes. Tem crescido o

número de profissionais, como professores, pedagogos, enfermeiros, médicos,

assistentes sociais, auxiliares de educação e saúde, que são capazes de, não apenas

identificarem, como também notificarem, os maus-tratos sofridos pelos jovens

(MACHADO e MACHADO, 2009). Daí a necessidade cada vez maior de

qualificação, no que diz respeito não apenas ao atendimento das vítimas, mas

antes de tudo na sua identificação. Assim, o professor que permanece muito

tempo junto das crianças, tem um papel muito importante. Para isso se faz

necessário promover capacitações, formações, que o levem a compreender a

criança em sua complexidade, mas também como sujeito de direito, zelando para

que esses direitos sejam garantidos.

A criança no Brasil não deve ser vista apenas como um objeto de tutela

do adulto, e sim como sujeito de direitos. A Constituição Federal de 1988, o

Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional – LDBEN (1996), expressam essa conquista das crianças

brasileiras. E hoje as crianças devem ser pensadas como

[...] um ser humano completo que, embora em processo de

desenvolvimento e, portanto, depende do adulto para sua

sobrevivência e desenvolvimento, não é apenas um “vir a

ser”. Ela é um ser ativo e capaz, motivado pela necessidade

de ampliar seus conhecimentos e experiências e de alcançar

progressivos graus de autonomia frente a condições de seu

meio (CEARÁ, 2004, p. 09).

Existem várias características que podem ser observadas em crianças e

adolescentes em situação de violência. Cordeiro (2007) ressalta: (elas) “são

traumatizados pelo medo, pela vergonha e terror. Eles se reprimem, evitam falar

Page 63: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

63

do assunto, mas sofrem de depressão, anorexia (diminuição do apetite),

dificuldades nos estudos, problemas de concentração, [...], fobias (medo

desmesurado), sensação de estar sujo”( p. 49).

Para que crianças e adolescentes possam ser atendidos, considera-se de

extrema importância a formação de educadores, por meio da perspectiva

preventiva, no que diz respeito às temáticas da violência física, psicológica, abuso

sexual, exploração do trabalho infantil, exploração sexual, exploração comercial e

tráfico para esses fins. Para isso é imprescindível oportunizar, não apenas a

comunidade escolar, mas toda a classe de profissionais relacionados à educação

escolar, a sensibilização e compreensão sobre o prejuízo das diversas formas de

violência para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Além disso,

torna-se imprescindível assegurar um adequado encaminhamento das vítimas.

É importante que o profissional que atenda uma criança ou adolescente

vítima de violência, esteja seguro, preparado para fazer o atendimento, como

também denunciar o caso ao Conselho Tutelar. Algumas atitudes que o

profissional deve assumir estão relacionadas a seguir: (1) creditar e validar a

história da vítima; (2) respeitar e zelar as informações passadas por ela e acima de

tudo não culpá-la, principalmente nos casos de violência sexual; (3) garantir que a

vítima tenha prioridade de atendimento (ELLERY e GADELHA, 2004).

Existem orientações que a comunidade escolar, a família, a sociedade

como um todo precisam saber, para poderem agir nos casos de violência A trilha

da denúncia pode partir das unidades escolares e saúde para o conselho tutelar e a

partir deste ser encaminhada para a Promotoria da Infância e Juventude. Dai

seguirá para a Polícia Militar, Perícia Técnica e, por fim, chegará ao Juizado da

Infância e da Juventude. Já a notificação, pode partir de qualquer unidade,

entidade, seja ela governamental ou não, ou ainda ser feita por meio da denúncia

anônima.Todas as notificações devem ser encaminhadas para o Conselho Tutelar,

para as demais unidades responsáveis, até chegar na última instância: o Juizado

Page 64: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

64

da Infância e da Juventude. O Conselho Tutelar deve ser acionado em primeira

instância, mesmo que exista a ameaça, risco ou ainda quando a violência já

ocorreu. A ele pertence à competência de “acolher, denunciar, averiguar,

encaminhar e orientar todos os casos de violação dos direitos da criança e do

adolescente e requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço

social, previdência, trabalho e segurança” (ELLERY e GADELHA, 2004, p. 25).

Deve-se sempre trabalhar assumindo como questão primordial a

prevenção e proteção integral de crianças e adolescentes. Sendo assim, compete à

escola atuar em uma perspectiva de minimizar a violência, promovendo ações

de formação dos profissionais que a integram. Para isso é necessário

desenvolver um trabalho de estímulo ao professor, levando em consideração a

realidade de cada criança.

A proposta do Projeto ESCOLA QUE PROTEGE

Trabalhar questões relacionadas à violência traz a necessidade de uma

abordagem especializada, devendo ser realizado um trabalho em Rede,

envolvendo todos os atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e

do Adolescente. É dentro desta crença que surge o Escola que Protege. Assim,

de acordo com o Ministério da Educação,

O objetivo do programa Escola que Protege é prevenir e

romper o ciclo da violência contra crianças e adolescentes

no Brasil. Pretende-se, portanto, que os profissionais sejam

capacitados para uma atuação qualificada em situações de

violência identificadas ou vivenciadas no ambiente escolar

(BRASIL, 2009b ).

Surgiu em 2006 na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade – SECAD do Ministério da Educação – MEC, o Curso de Formação

Page 65: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

65

de Educadores para a Interrupção do Ciclo de violência contra Criança e

Adolescente - Escola que Protege, em convênio com as Universidades Federal e

Estadual do Ceará. Este projeto contou com a parceria da Coordenadoria de

Desenvolvimento da Escola – CDESC e Secretaria de Educação do Estado do

Ceará – SEDUC, além da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza – SME

e Secretaria Municipal de Assistência Social – SEMAS/Fortaleza. Contou

também com o apoio do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente –

CEDECA e do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente –

CEDCA.

O projeto Escola que Protege, em sua segunda edição (2007-2008),

objetivou a formação de 400 educadores para melhor qualificação da Escola, na

rede de enfrentamento à violência contra a criança e o adolescente.

Segundo o Ministério da Educação, o projeto se propõe a estimular o debate

aos dispositivos de educação para que possam definir o andamento de

notificação e encaminhamento das ocorrências de violência identificadas ou

vivenciadas na escola, junto à Rede de Proteção Social (BRASIL, 2009b).

De acordo com Ministério da Educação, 21 Universidades já tiveram

recursos descentralizados para o cumprimento das ações do programa Escola que

Protege, no ano de 2009. Dentre elas estão algumas Universidades Federais como

a de Alagoas, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Acre e

Federal de Santa Maria (BRASIL, 2009b)24

. Algumas universidades já

iniciaram seus trabalhos, como é possível ver

O Instituto Federal do Piauí realizou um curso de

capacitação para multiplicadores do projeto Escola que

24

Através de pesquisas que efetuei, percebi que a maioria dos estados

atendidos pelo Projeto, ainda não publicou informações suficientes sobre suas

produções e/ou algum resultados da implantação do Projeto. Porém, encontrei

artigos com publicações dos estados do Rio Grande do Norte e Paraíba.

Page 66: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

66

Protege. Esse projeto é voltado para a promoção e a defesa

dos direitos de crianças e adolescentes, além do

enfrentamento e prevenção das violências no contexto

escolar, através do treinamento de profissionais da

educação. No estado do Piauí, o Instituto Federal foi

contemplado com o projeto, para atuar na formação de

profissionais da educação de 22 municípios (ESCOLA...,

2009).

O projeto Escola que Protege em João Pessoa foi desenvolvido

pela Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade

Federal da Paraíba/PRAC/UFPB, através de Convênio com Ministério da

Educação e Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade – MEC/SECAD, em parceria com a ONG Instituto

Companheiros das Américas – ICA. A metodologia contou com a aplicação

de dois cursos: um deles à distância, fornecido pela Universidade Federal

de Santa Catarina; e outro presencial, sob a responsabilidade da UFPB.

Em João Pessoa o projeto realizou as seguintes ações:

promoção de encontros para os cursistas sobre temáticas relacionadas à

violência contra crianças e adolescentes; criação da Comissão Gestora

Local; começo do processo de sensibilização da comunidade escolar quanto

aos danos originados pelas diversas formas de violência no

desenvolvimento integral de crianças e adolescentes; articulação com a

Rede de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; encaminhamento

de proposta de realização de um diagnóstico sobre a situação da violência

nas escolas e disponibilização para os alunos de uma sala apoio. As

principais dificuldades encontradas na implementação Projeto foram a

carência de materiais de consumo; atraso na liberação dos recursos

financeiros; pouca participação de alguns membros da Comissão Gestora

Local, especialmente da representação do Conselho Municipal dos Direitos

da Criança e do Adolescente; demora na entrega de material para os

Page 67: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

67

cursistas; atraso no envio da lista dos aprovados no módulo à distância;

baixa assiduidade dos alunos na modalidade presencial, muitas vezes

explicadas pela ausência de apoio dos gestores e sobrecarga de trabalho

para os professores apoio (NASCIMENTO et al, Ibid).

Já com relação à realidade do Escola que Protege na cidade de

Natal, existe alguma diferença: A Pró-Reitoria de Extensão, seguindo a

orientação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade - SECAD, inicialmente convocou as Secretarias de Educação –

Estadual e Municipal. Em seguida, convocou também um representante do

Conselho Tutelar – Zona Leste, um dos Conselhos de Direitos da Criança e

do Adolescente (Municipal e Estadual) e um do Ministério Público,

especificamente da Promotoria da Infância e Juventude. Formou-se, desta

forma, a Comissão Gestora, sob coordenação da Pró-Reitora de Extensão

(FRANCISCHINI e SOUZA NETO, 2007). Sob encargo das Secretarias de

Educação ficaram os procedimentos de escolha dos professores para

fazerem parte da formação, além do acompanhamento e organização de

infra-estrutura para realização do módulo à distância. No módulo à

distância, além do kit didático, que continha livro texto e video-aula em

VHS, os professores tiveram acesso a sessões de teleconferência. Contaram

também com um acompanhamento ao estudante, através de telefone, com a

participação de tutores e monitores qualificados pela UFSC. Após o

módulo à distância, a Comissão Gestora planejou o módulo presencial, com

duração de 20 horas, distribuído em duas turmas, durante três dias

consecutivos. Para as duas turmas foram selecionados 102 educadores. No

entanto, apenas 63 freqüentaram o curso. Foi observada uma desistência

significativa, ainda por ocasião do módulo à distância. Além disso, muitos

participantes não realizaram a atividade final prevista. No módulo

presencial os conteúdos foram distribuídos em aulas, com duração de 2

Page 68: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

68

horas para cada. Ao término do curso cada uma das turmas apresentaram

uma peça de teatro, com participação dos educadores, representando

situações de violência física intra familiar contra uma criança.

Os principais problemas identificados em Natal foram baixa

freqüência de educadores nas transmissões das teleconferências,

comunicação não eficiente entre coordenação do módulo à distância e os

representantes das Secretarias de Educação e/ou entre os monitores/tutores

e os educadores, dificuldades de acesso aos recursos tecnológicos mínimos

para o andamento do curso, o não recebimento do material do curso em

tempo hábil, a não eficiência da divulgação e inscrição e a ausência de uma

cultura de educação à distância e as conseqüentes dificuldades dela

originadas. Deste modo, como afirmam Francischini e Souza Neto(2007, p.

4): “Em seu conjunto, essas dificuldades levaram-nos, enquanto

coordenadores, à conclusão de que o módulo à distância não alcançou os

objetivos previstos”. Já os aspectos positivos destacados foram o bom

conteúdo programático do curso, a competência dos professores

ministrantes e a probabilidade de conhecimento da rede de proteção e do

Estatuto da Criança e do Adolescente, desconhecidos, até o momento, por

grande parte dos educadores. Como sugestões para a melhoria do projeto,

os cursistas referiram a expansão do curso, ampliando seus conteúdos e

carga horária. Além disso, também propuseram o aumento do número de

escolas e educadores participantes

O Escola que Protege no Ceará utilizou-se de capacitações como

metodologia, dividida em aulas presenciais (40 horas) e semipresenciais,

com a mesma carga horária. As formações semipresenciais foram dedicadas

a atividades de multiplicação. Assim, após os educadores receberem as

formações, os mesmos deveriam realizar um curso de repasse, organizados

em três fóruns escolares. A fase presencial ocorreu em quatro momentos, em

Page 69: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

69

semanas intensivas de trabalho, incluindo: (1) professores e técnicos da rede

estadual e da rede municipal; (2) educadores sociais, lotados em áreas especificas,

como saúde e assistência social; (3) pais e estudantes integrantes de conselhos

escolares. Os conteúdos abordados foram dirigidos para o entendimento e a

criação das Comissões Escolares. Nas capacitações presencias os educadores,

também chamados de formadores, foram divididos em quatro turmas. Cada turma

recebeu as mesmas formações, textos e CDs contendo informações sobre diversos

temas escolhidos pela equipe do projeto, para serem as vertentes de estudo dos

educadores. Alguns dos temas escolhidos para as formações disseram respeito aos

aspectos históricos sobre a infância/criança e adolescência no Brasil, como

também a constituição da criança e do adolescente como sujeito de direito. A

identificação dos principais tipos de violência, o trabalho do sistema de Garantias,

Direitos Humanos e a proposta no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA,

também foram discutidos. Outros temas estiveram relacionados com a

Intersetorialidade, constituição de Redes e controle social, concepção, estrutura e

funcionamento de comissões escolares de prevenção enfrentamento à violência

infanto-juvenil. Também se estudou os principais desafios da juventude na

sociedade atual, abordando as diferenças e desigualdades sociais.

Atualmente o projeto está em fase de conclusão, ou seja, a equipe gestora

está preparando um livro que publicará os resultados alcançados, os detalhes sobre

os temas, sucessos, falhas, impactos e lições aprendidas pela implementação do

Escola que Protege no Ceará.

Avaliar para efetivar: um caminho viável para as políticas públicas

Diante de um projeto como o Escola que Protege, que atualmente

abrange vários estados nacionais, se faz necessário realizar uma avaliação, mesmo

que simples, da eficácia da sua metodologia. A avaliação pode ser um utensílio

essencial para se alcançar melhores resultados de programas. Ela pode fornecer

Page 70: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

70

também aos gestores de políticas sociais e de programas, informações

significantes para a formulação de políticas mais eficientes e uma gestão pública

mais eficaz (COSTA e CASTANHAR, 2003)

As políticas são distintas e desempenham inúmeros papeis frente à

sociedade, existindo as políticas básicas, de garantias, as sociais, as de proteção

especial e as políticas públicas. Para Silva (2001), toda forma de regulação ou

intervenção na sociedade, onde se articulam diferentes sujeitos que expressam

interesses e expectativas distintas, é política pública. A autora afirma acerca do

que seja política pública:

Um conjunto de ações ou omissões do Estado decorrente de

decisões e não decisões, constituída por jogo de interesse,

tendo como limites e condicionamentos os processos

econômicos, políticos e sociais. Isso significa que uma

política pública se estrutura, se organiza e se concretiza

partir de interesses sociais organizados em torno de recursos

que também são produzidos socialmente (p. 37).

Assim, avaliar a metodologia de um projeto/programa requer

conhecimentos específicos, principalmente no que se refere ao

funcionamento completo do mesmo. Enquanto estagiária do Escola que

Protege pude acompanhar todo o processo de elaboração, planejamento e

execução de suas atividades. Contudo, desde o início questionei a eficácia

da metodologia que o projeto adotou, principalmente com relação ao

repasse das formações, indagando de que forma o projeto acarretaria

mudanças efetivas na realidade de cada escola. Para que haja a efetivação e

eficácia de programas é necessária a participação de todos os sujeitos

envolvidos. Este é um critério básico para que os projetos e políticas

continuem a ser implementados, a fim de contribuir para a qualidade de

vida dos indivíduos aos quais são destinados. Para Luck (2003)

Page 71: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

71

É importante lembrar que a participação é um processo que

envolve muito mais que consulta ou solicitação de

informações a várias pessoas, como também não significa o

arremedo de democracia pelo voto individual a respeito de

idéias que devem ser implementadas, sem o

comprometimento com sua implementação. A participação

implica sonhar uma nova idéia, uma nova realidade e

propor-se a sofrer junto às dificuldades de sua

implementação (p. 61).

Silva (2001) afirma que no Brasil ainda é restrita a prática de

avaliação de políticas e programas sociais, sendo muitas vezes utilizada apenas

para mesurar o controle de gastos e não para contribuir com o desenvolvimento de

programas ativos. A avaliação, quando considerada numa perspectiva de

cidadania, pode colaborar para a eficácia e controle social das políticas sociais.

Visto a importância da avaliação das políticas, principalmente para a

melhoria e efetivação de projetos sociais, considera-se relevante a avaliação da

metodologia adotada no projeto Escola que Protege, a fim de contribuir para

concretização e consolidação dos objetivos que o mesmo almeja.

Construindo um método para a pesquisa de campo

Este trabalho analisou, através de uma avaliação qualitativa e

quantitativa, a metodologia utilizada nas capacitações do projeto Escola que

Protege. O instrumento utilizado para fazer a coleta de dados foi um

instrumental elaborado por mim, com base nos questionamentos feitos no

início do trabalho.

O instrumental foi subdividido em três partes, assim denominadas:

I) Identificação; II) Questões objetivas sobre o projeto Escola que Protege;

III) Questões abertas sobre o projeto dentro da escola. A aplicação desse

instrumento foi feita por meio de quatro entrevistas, sendo entrevistados

Page 72: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

72

um membro da comissão, algumas mães, alguns professores e funcionários

e um grupo de crianças.

1. A escola escolhida para a pesquisa: Pequeno Mundo Durante o projeto Escola que Protege, como estagiária, tinha a

função de acompanhar e, na medida do possível, analisar os relatórios

enviados para o projeto, a fim de contabilizar a realização dos fóruns. Deste

modo, escolhi o relatório em que constava, dentre poucos, a descrição da

realização dos três fóruns, assim como a consolidação da comissão escolar.

A escola municipal selecionada para a realização da pesquisa para o meu

trabalho localiza-se no bairro Antônio Bezerra, recebendo um nome

fictício, Pequeno Mundo. Trabalha com a Educação Infantil, nos períodos

manhã e tarde, tendo em média 250 alunos.

Após a escolha da escola, o primeiro passo foi entrar em contato

com a direção para explicar o objetivo do meu trabalho, além de obter

autorização para realizá-lo.

2. Aplicando o instrumental:

Entrevistando as formadoras: Na primeira visita à instituição

escolhida, pude identificar que apenas uma das professoras, que era também

integrante do conselho da escola, foi quem participou da capacitação

presencial. Assim, a direção da escola a indicou para que eu pudesse

realizar a primeira entrevista, que foi dividida em blocos. As perguntas

foram dirigidas à formadora, mas, no momento da entrevista, a diretora da

escola também estava presente e respondeu algumas questões.

As perguntas do primeiro bloco tinham como objetivo saber sobre

os palestrantes, as temáticas, a carga horária, o local, dentre outras questões.

Quando perguntada como ela ficou sabendo do projeto Escola que Protege,

Page 73: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

73

a mesma disse que a escola Pequeno Mundo foi convidada pela Secretaria

Municipal de Educação de Fortaleza – SME, através de um ofício, que

convocava todas as pessoas do conselho. No entanto, nem todos puderam

participar. Assim, fizeram a inscrição outras pessoas também envolvidas,

ou seja, alguns pais e alunos, que foram para a capacitação, que aconteceu

no auditório da OAB, em Fortaleza.

Sobre as temáticas que mais lhe interessaram, a formadora

respondeu que o tema “Violência Doméstica” foi o que mais lhe chamou

atenção. Com relação aos palestrantes, a formadora elogiou bastante a

coordenadora do projeto e sua palestra, enfatizando ainda sua formação

ampla. Nas respostas da formadora pude perceber que a mesma se mostrou

satisfeita em ter participado da capacitação. No entanto, relatou por várias

vezes durante a entrevista, que o local, acomodação e principalmente a

alimentação, deixaram muito a desejar.

No segundo bloco as perguntas eram relacionadas à 2° fase do

projeto, ou seja, a fase semipresencial, na qual a formadora teria que passar

todas as formações recebidas em forma de fóruns para os demais

integrantes da escola em que leciona. Neste segmento, a formadora afirmou

que a carga horária da capacitação presencial foi o suficiente para repassar

as palestras para a diretora e vice-diretora, já que foram elas quem

receberam as primeiras formações. A partir desse primeiro encontro, houve

os outros momentos de multiplicação para os demais professores e

funcionários, pais e alunos. Afirmou também que não buscou ajuda de

nenhum outro profissional por ocasião da montagem do curso de repasse,

apenas do corpo docente da própria escola. Quanto ao material de estudo,

buscou auxílio em livros.

Para a elaboração dos fóruns, a equipe da escola foi dividida. O

primeiro grupo foi formado pela formadora, diretora e vice-diretora, que

Page 74: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

74

fizeram a elaboração do fórum dos professores e funcionários. Em seguida,

a mesma equipe, agora somada aos demais professores, elaborou a

formação dada aos pais e, posteriormente, às crianças. Ao perguntar se

houve resistência dos professores e funcionários em aceitar o projeto, como

também fazer parte e trabalhar para o mesmo acontecer, a formadora disse

que todos (as) aceitaram muito bem, havendo a participação integral

Percebe-se que a participação e envolvimento de todo o corpo docente da

escola em momentos como esse é de grande valia, não apenas para a escola,

mas para as crianças, pais e sociedade (DAVID, 1997 apud

VIODRESINOUE e RISTUM, 2008).

Quanto aos temas abordados nos fóruns elaborados pela escola,

percebi que os mesmo não foram os que a formadora recebeu na

capacitação presencial. Assim, alguns dos temas que foram abordados na

capacitação presencial, tornaram-se outros temas. Tal constatação foi

observada não somente a partir da entrevista com a formadora, mas também

constava na ata do fórum dos professores e funcionários, enviada

juntamente com o relatório pela escola Pequeno Mundo, ao projeto Escola

que Protege.

Vale ressaltar que os conteúdos abordados em cada capacitação

executada pelo projeto Escola que Protege, foram escolhidos via solicitação

do Ministério da Educação e Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade para que as escolas pudessem ser capacitadas

no sentido de definir o andamento de notificação e encaminhamento das

ocorrências de violência identificadas ou vivenciadas na escola, junto à

Rede de Proteção Social. Contudo, vale à pena refletir: Por que adaptar os

temas abordados nas capacitações? Acredito, pois participei da seleção dos

temas junto à coordenação, que cada assunto selecionado tinha o seu

objetivo, atendendo à demanda e conforme a experiência do projeto em

Page 75: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

75

outros estados do Brasil. Pois bem, o intuito final do projeto era a formação

de educadores-multiplicadores, ou seja, os cursos de repasse em forma de

fóruns teriam que abordar as mesmas temáticas vistas nas capacitações. Se

assim nao fora, qual sentido isso teria? Ao ser questionada sobre isso, a

formadora alegou que, ao chegar à escola, observou primeiramente sua

carência e, em seguida, adaptou as formações que ela recebeu a sua

realidade. Assim, no fórum dos professores e funcionários foram abordadas

as seguintes questões a serem respondidas: “Quais atitudes caracterizam

uma violência?”; “Que tipo de violência acontece na sua escola?”; “Quais

os tipos mais comuns de violência que ocorrem na sala de aula?”; “Qual o

papel da escola no enfrentamento à violência contra as crianças e

adolescentes?”.

Entrevistando os pais:

As quatro mães entrevistadas, na própria escola, foram escolhidas

aleatoriamente. Inicialmente, através da lista de presença do fórum para

pais, consegui o endereço e telefone de 15 pais, por meio das fichas das

crianças da escola. Liguei para todos(as). No entanto, consegui marcar a

entrevista com apenas quatro mães, devido metade dos números de

telefones estarem incorretos, ou não atenderem ou, ainda, não existirem.

O instrumental (em anexo), previamente elaborado, contou com

perguntas objetivas e abertas, para que pudesse coletar dados quantitativos e

qualitativos de cada aspecto analisado. Todas as quatro mães entrevistadas

responderam as questões objetivas e subjetivas do instrumental. Aqui vou

chamá-las de mãe 1, mãe 2, sucessivamente. Abaixo seguem alguns dados

relevantes a serem observados de cada entrevistada.

Quadro 1 – Dados pessoais das mães

Page 76: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

76

Fonte: Dados coletados no Instrumental utilizado na entrevista

Observando o perfil das entrevistadas, pude perceber uma idade

média de 32 anos; duas delas terminaram o ensino médio; apenas duas

exercem atividade remunerada.

O primeiro bloco do instrumental continha questões objetivas e

dizia respeito ao projeto Escola que Protege, constituindo-se em questões

que poderiam ser respondidas facilmente.

Observa-se que 100% não tinham ouvido falar sobre o projeto.

Como participar de um fórum deste e não ter ouvido falar do Projeto,

pergunto-me?! Apesar disso, analisavam como sendo de extrema

importância o tema violência ser debatido no ambiente escolar, por

considerarem a escola um local de aprendizado e formação. Interessante

perceber que o projeto não foi divulgado dentro da escola, mas as mães

demonstraram interesse em participarem dele.

Chama atenção a percepção que as mães têm quanto à participação

da família nas discussões, como também na comissão da escola. Na

verdade, os estudos já apontam para a necessidade desta relação. Para

Faleiros (1998 apud Viodresinoue e Ristum, 2008, p. 15) por exemplo, “a

família e a escola são redes fundamentais de articulação desse processo de

formação da identidade, de proteção, de socialização da criança”.

As questões seguintes se referem à análise do dia do fórum dos

pais. Pude observar, neste momento, que as mães tiveram dificuldades em

NOME IDADE PROFISSÃO ESCOLARIDADE

Mãe 1 32 anos Dona de casa Ensino médio

Mãe 2 34 anos Trabalha com vendas 1° grau completo e o 1°

científico

Mãe 3 31 anos Não respondeu Ensino médio

Mãe 4 31 anos Costureira Até a 8° série

Page 77: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

77

responder tais questões devido ao fórum ter ocorrido no dia 06 de dezembro

de 2008, e elas não conseguirem lembrar-se de tudo que ocorreu naquele

dia. Como resultado, temos o gráfico abaixo:

GRÁFICO 1 - Porcentagens referentes aos dados tabulados,

quanto à organização do fórum dos pais.

0

20

40

60

80

100

120

Ruim Regular Bom Ótimo

Organização

Temas

Palestrantes

Objetivos

Carga horária

Fonte: Dados coletados no Instrumental utilizado na entrevista

Através do gráfico pude perceber que 100% das mães

consideram o fórum bem organizado. No entanto, 25% avaliaram que a

carga horária foi regular, ou seja, consideraram que apenas uma manhã de

conversas e palestras foi tempo insuficiente para a explanação de assuntos

importantes, como os que foram abordados. Quanto aos objetivos, temas e

palestrantes, 75% analisaram em ótimo. Ou seja, na análise das mães, os

objetivos do fórum foram alcançados: os temas são por demais importantes

para serem debatidos na escola. Quanto aos palestrantes, avaliam que os

mesmos souberam ministrar muito bem cada palestra.

Page 78: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

78

Nas questões abertas do instrumental, as mães, quando perguntadas

sobre quais assuntos haviam mais lhe interessado, 50% responderam que o

tema “Como dizer não para criança”. Os demais 50%, responderam ter se

interessado pelo tema de “Limites”. Vale a pena ressaltar que temas como

estes podem está diretamente ligados com a realidade destas famílias,

principalmente com relação a dificuldades em por limites aos seus filhos.

Sobre o Escola que Protege, como um todo, 100 % responderam

que esse tipo de projeto é muito bom, porém deveria ter continuado, pois os

pais precisam desse tipo de informações. A partir da fala das mães nesta

questão, percebi que o desejo de querer que o projeto continuasse, foi o

mesmo expresso pela formadora, por considerá-lo importante para a escola,

crianças e família.

No que diz respeito à melhoria do projeto, apenas 25% solicitou que

houvesse o incentivo de todos(as) para o projeto continuar. Os demais 75 %

afirmaram que esse tipo de projeto deve continuar, para permanecer

levando os assuntos abordados no fórum, para as escolas e pais. Com

relação aos aspectos positivos e negativos do projeto, os pais, 100% deles,

afirmaram apenas ter pontos positivos, tais como:

“Os cuidados dos professores e funcionários com as crianças.”; (Mãe 4)

“Realmente houve uma melhora da parte tanto das mães com os filhos e

também com professores e alunos.”; (Mãe 2)

“Achei pontos positivos, por que meu filho está aprendendo mais.”; (Mãe

3)

“Só teve aspectos positivos no modo de comportamento dos pais.”. (Mãe

1)

No fórum dos pais também percebi que os temas abordados não

condiziam com a capacitação presencial da qual a formadora participou.

Assim temas como: “Limites, regras e vida em sociedade”; “Saber dizer

Page 79: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

79

não”; “Os limites, os castigos e a culpa”; “Dar exemplo – ajustá-lo à criança

/ ressaltar a diferença”; “Alguns limites e conselhos”, foram trabalhados,

com a justificativa da formadora de que as crianças apresentavam bastantes

dificuldades em obedecer a regras. Devido a isso, esses temas foram

divididos entre as professoras e direção da escola, para a exposição em

forma de palestras, no dia do fórum.

Entrevistando as crianças

Foram entrevistadas oito crianças com idades de 8 a 10 anos, todas

da 3° série do ensino fundamental da escola Pequeno Mundo. A conversa

com as crianças dividiu-se em dois momentos. O primeiro contou com a

apresentação do meu trabalho e objetivo e em seguida o resgate da história

do Escola que Protege, dentro da escola Pequeno Mundo. A segunda parte

incluiu a fabricação de dois desenhos, nos quais as crianças teriam que

demonstrar o que o projeto significou, assim como o que seria necessário

para acabar e/ou amenizar com a violência dentro da escola.

Inicialmente a professora trouxe as crianças até a sala dos

professores. Em seguida apresentei-me, e contei dos meus objetivos. Após

a apresentação de todas as crianças, fiz uma pequena explanação resgatando

o projeto Escola que Protege dentro da escola, como também o dia do

fórum em que elas participaram. A partir disso, fiz algumas perguntas, tais

como o que elas mais haviam gostado no fórum, do que elas ainda

lembravam do projeto, o que havia mudado na escola depois do projeto,

dentre outras. Percebi grande interesse delas em responderem as minhas

perguntas.

Seguindo a ata, que constava em anexo do relatório enviado pela

escola ao projeto Escola que Protege, relembrei alguns dos temas abordados

no dia do fórum das crianças. Ao falar do ECA, compreendi que algumas

Page 80: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

80

crianças concordaram com o que ele apresentava. Na medida em que o

explicava, elas relataram a violência que ocorre no momento do recreio,

como as brigas, desavenças e principalmente as “brincadeiras” com as

pedras do pátio que, segundo o relato delas, já machucaram várias crianças.

Alegaram que para o fim desses acontecimentos, a solução é falar para a

“tia”, referindo-se a professora.

Em uma de minhas visitas a escola Pequeno Mundo pude

presenciar uma situação parecida com a que uma das crianças havia

relatado na entrevista. Por uma determinada causa, que no momento não

pude identificar, a professora levou até a diretoria duas crianças que haviam

brigado em sala de aula. Chegadas à sala da diretora, a mesma pediu que as

crianças não mais fizessem isso, com a ameaça de punição, caso houvesse a

ocorrer novamente. Em seguida as crianças retornaram a sala de aula. Tal

situação me levou a refletir a respeito da forma como os temas abordados

no fórum para professores e funcionários foram tratados. Uns dos assuntos

discutidos, de acordo com o relatório da escola foram: “Quais atitudes

caracterizam uma violência?” e “Quais os tipos mais comuns de violência

que ocorrem na sala de aula?”. Partindo desse ponto, observo que, de

alguma forma, não houve a interação e comprometimento de todos(as)

nessas discussões, tal como afirmou a formadora (membro da comissão)

entrevistada inicialmente. Chamou atenção o ato de que até mesmo a

diretora da escola, que participou da elaboração do fórum, obteve uma

postura criticável, ameaçando as crianças que brigaram.

Analisando a postura da direção, professores, funcionários e

alunos dentro da escola, Maior Neto (2009, p. 62) afirma que

O aluno deve aprender os seus limites e os que

envolvem a autoridade, em convivência social

equilibrada. O tratamento pedagógico às atitudes

Page 81: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

81

incorretas do aluno deve se iniciar no exato momento

da primeira ação inadequada ao relacionamento

respeitoso, com ações apropriadas à verdadeira

compreensão do papel do aluno e do professor, a fim

de evitar situações de agressão, autoritarismo ou

anarquia.

Com relação ao projeto “Recreio sem violência”, que as professoras

e comissão implantaram na escola como resultado do projeto Escola que

Protege, as crianças disseram que se tratava do resgate das brincadeiras

antigas na hora do recreio, como as cantigas de roda, amarelinhas,

brincadeira da corda. Afirmaram, com tristeza, que hoje em dia elas não

ocorrem mais com a mesma freqüência do início do projeto. Percebi, então,

certa frustração nas crianças, que pode ser interpretada pela razão das

crianças terem gostado bastante desse projeto, que não teve continuidade.

Daí surge questões do tipo: se o projeto foi desenvolvido para as crianças, e

se as mesmas demonstraram interesse, por que ele não continuou? Por que a

equipe gestora não ouviu as crianças para saber o que poderia ser feito para

o projeto não acabar?

Segundo Rocha (2008) existem estudos onde crianças participam de

pesquisas e projetos, através de procedimentos que promovem sua

participação efetiva e o que elas expressam, seja através de desenhos,

expressões gestuais, corporais, faciais ou ainda através da fala. Dessa

forma, Rocha (2008, p. 46) traz que

A ênfase na escuta da criança justifica-se pelo

reconhecimento das crianças como agentes sociais, de

sua competência para a ação, para a comunicação e

troca cultura. Tal legitimação da ação social das

crianças resulta também de um reconhecimento e de

uma definição contemporânea de seus direitos

fundamentais – de provisão, proteção e participação.

Page 82: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

82

Na segunda parte da entrevista com as crianças, elas teriam que

produzir dois desenhos. Primeiramente foi solicitada a representação do

projeto. Observei, neste primeiro momento, que as crianças tiveram

dificuldades em entender o real objetivo do primeiro desenho e algumas

delas não conseguiram atender ao que foi solicitado. Algumas crianças

quiseram desenhar o pica-pau, outras disseram que não seria legal desenhá-

lo, por que o mesmo era violento, e assim surgiram inúmeros desenhos que

não se encaixaram ao que foi solicitado previamente. No entanto, algumas

crianças conseguiram desenhar, escrevendo o que podia e não podia ocorrer

no recreio da escola. Outras crianças desenharam o que elas desejariam que

tivessem no recreio, como brinquedos, parquinhos e até rodas gigantes.

Analisei que a dificuldade que as crianças demonstraram para fazer

o primeiro desenho, estava associada ao não lembrar, como também ao não

entendimento claramente dos objetivos do projeto Escola que Protege,

dentro da escola. A partir disso, surgiram alguns questionamentos, tais

como: as crianças não se lembram do projeto Escola que Protege, por que o

mesmo só foi repassado em forma de um fórum, ou seja, uma manhã de

conversa? O que foi repassado neste fórum foi o suficiente para que o

projeto fosse significativo para as crianças? Por que quando falei do Projeto

para as crianças, elas só conseguiram lembrar-se do projeto “Recreio sem

violência”?

Entrevistando os(as) funcionários(as)

Foram entrevistados cinco funcionários, dentre professoras e apoio

da escola. Os comentários a seguir dizem respeito a porcentagens dos dados

analisados em cada bloco de perguntas do instrumental, ressaltando que

esse instrumental foi o mesmo utilizado para a entrevista das mães. As

respostas dos funcionários foram tabuladas e analisadas em conjunto, pelo

Page 83: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

83

fato deles terem participado do mesmo fórum. Aqui os classifico todos de

funcionários, para garantir o sigilo.

Vale ressaltar que 100% afirmaram que projetos como estes podem

diminuir a violência dentro das escolas, o que nos leva a perceber o quanto

a comunidade escolar necessita de projetos neste molde. Entendi que existe

um desejo de que o Escola que Protege continue a existir, e que seja eficaz,

o que pode ser confirmado nas questões 4, 5, 9 e 11.

Analisando os dados coletados, segundo ao gráfico abaixo, observei que

80% dos funcionários consideraram boa a organização do fórum para

professores e funcionários. Em contrapartida, apenas 40% avaliaram que os

temas foram bons. Com relação à carga horária, notei que 60% dos

funcionários consideraram-na regular, afirmando que para abordar temas

como os que foram escolhidos para as palestras, seria necessário um tempo

maior. Vale ressaltar neste ponto que, tanto os pais, quanto os professores e

funcionários, expressaram a mesma opinião, ou seja, para a abordagem de

temas como a violência, demanda-se mais tempo. Os objetivos e temas

apareceram na classificação de ótimo, com a escolha de 60% dos

funcionários. Os palestrantes também atingiram a marca de 60% da escolha

dos funcionários, atingindo a classificação de bom.

Page 84: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

84

GRÁFICO 2: Porcentagem referente aos dados tabulados,

quanto a organização do fórum com os professores e

funcionários.

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

Ruim Regular Bom Ótimo

Organização

Temas

Palestrantes

Objetivos

Carga horária

Fonte: Dados coletados no Instrumental utilizado na entrevista

No segundo bloco, no qual estavam as questões abertas do

instrumental, pude analisar os dados qualitativos de cada resposta. A

primeira pergunta tratava do tema de interesse. As escolhas mais comuns

foram: “Quais os tipos mais comuns de violência que ocorrem na sala de

aula”; “Violência em casa”; “Quais atitudes que caracterizam a violência

em sala de aula”; “Violência na escola”.

Importante ressaltar que notei que o nome do funcionário que não

participou das discussões dos temas explanados pela escola no dia do

fórum, constava na lista de presença, como também sua foto em anexo ao

relatório enviado pela escola ao projeto. Quando perguntado por que não

participou das discussões, o mesmo afirmou que saiu no momento em que o

fórum iniciou e, mesmo não podendo mais retornar, assinou a lista de

presença. Assim, coloco uma questão: por que ter nomes na lista de

presença de pessoas que nem ao menos souberam o que se estavam

Page 85: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

85

discutindo naquele dia? Seria apenas para constar o número de

multiplicadores solicitado pelo projeto Escola que Protege?

Na questão posterior que tratava da opinião deles sobre o Projeto, 100%

afirmou que se trata de algo excelente para a escola, como também para as

crianças e pais. O projeto Escola que Protege, enquanto política pública,

segundo a opinião dos funcionários, deve promover ações para haver

envolvimento de todos, com capacitações periódicas para todos os

professores e funcionários, devendo ser obrigatório. Acreditam que tais

cuidados sejam necessários para que o combate à violência seja eficaz e

posto em prática já que, normalmente, fica apenas no papel.

Com relação aos aspectos positivos e negativos, alguns expressaram que a

falta de envolvimento dos pais como também a pouca participação, contou

negativamente para o projeto. Também pesou negativamente a sua não

continuidade dentro da escola. Ou seja, o projeto não prosseguiu ao longo

do ano. No que se refere aos pontos positivos foram colocados que as

crianças estão mais cuidadosas com os outros; os pais se preocupam mais

com o bem estar de seus filhos; as pessoas estão mais conscientes dos seus

direitos e, por fim, que foi muito positivo o trabalho em conjunto de

professores e funcionários.

Dentre as questões abertas, tinha uma específica para os funcionários da

escola, referente à contribuição do projeto na prática de cada um(a) no

ambiente de trabalho. Obtive algumas respostas interessantes:

“Decerto veio nos alertar para o que estava acontecendo dentro da

escola e até mesmo no recreio. Hoje já direcionamos o recreio com algumas

brincadeiras” (Funcionário 2);

Page 86: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

86

“O projeto fez com que eu ficasse mais atenta com a questão da violência

moral. Esse tipo de violência, tão comum, não é muito combatida” (Funcionário

1);

“Contribuiu no sentido de me tornar mais consciente em ter atitudes

corretas como não gritar, não ameaçar, não expor o aluno quando fizer algo

errado e estar atenta para que a violência entre os alunos seja amenizada”

(Funcionário 3);

“Continuo tratando todos muito bem. Sempre fui muito carinhosa, não

observei mudança, pois já sou assim” (Funcionário 5);

“Mudou muito, pois antes eu não sabia o que fazer. Agora mudou a

postura com as crianças. Não grito mais com elas, converso com as crianças,

com as mães e oriento os pais sobre as crianças” (Funcionário 4).

Analisando estas respostas, vejo que houve poucas mudanças, mas

que foram significativas para cada um. Pequenas mudanças fazem diferença

para o dia-a-dia de cada criança que estuda na escola. Deste modo, a escola

precisa se empenhar com a garantia dos direitos da criança e do

adolescente, e a união dos profissionais da escola fortalecem a militância

em defesa desses direitos. O desempenho do professor na identificação e

denúncia da violência sexual é fundamental, principalmente na Educação

Infantil, quando os educadores ficam cerca de quatro horas diárias com os

alunos (VIODRESINOUE e RISTUM, 2008).

Nos comentários finais, alguns funcionários colocaram a imensa

vontade que tinham que esse projeto continuasse na escola, pela sua

importância para as crianças. Gostariam também que nas escolas existissem

professores de recreação, para que houvesse um direcionamento na hora do

recreio. Em uma observação de um dos funcionários, constava a seguinte

frase, que considerei significativa para fechar este ítem: “O projeto é muito

interessante, pois sabemos que a violência existe tanto na escola, como

Page 87: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

87

fora dela, é preciso (o projeto) ser mantido, não só em palavras, mas em

atitudes, criando soluções concretas e condições no dia-a-dia da vida

escolar”.

3. Analisando o Projeto Escola que Protege: a escola Pequeno

Mundo

Pode-se afirmar que o projeto Escola que Protege dentro da escola

Pequeno Mundo tornou-se o projeto “Recreio sem violência”. Segundo os

entrevistados, o Escola que Protege resultou no projeto “Recreio sem

violência”, que não prosseguiu, assim como a implantação e formação da

comissão escolar, prevista inicialmente.

O projeto “Recreio sem violência” foi implantado no horário do

recreio, tanto pela comissão, como pela diretoria e demais professores e

funcionários da escola. Consistia no resgate das brincadeiras antigas, tais

como brincadeiras de roda, de corda, cantigas de rodas, amarelinhas, dentre

outras. Estas brincadeiras seriam ministradas sempre na hora do recreio, para

que as crianças pudessem ter um momento de lazer e entretenimento, para

não brincarem apenas de correr e/ou bater um nos outros. Quanto ao projeto

Escola que Protege na escola Pequeno Mundo, segundo a diretora e

formadora, foi positivo no aspecto da participação, pois houve o

envolvimento dos professores, funcionários, pais e alunos, dixando-as muito

felizes e com a sensação de trabalho cumprido.

Nos pontos ressaltados sobre a melhoria do projeto, a formadora

colocou que os pais deveriam não apenas ter vagas garantidas nas

capacitações, mas que fossem convocados também para a 1° fase do

projeto, a capacitação presencial. Acrescentou que a responsabilidade de

combater a violência não pode recair totalmente sobre os professores e

escola, devendo também contar com a participação dos pais. Tal

Page 88: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

88

perspectiva defendida pela escola se assemelha a de Maior Neto (2009) na

qual ele afirma que a participação dos pais e da comunidade em ocasiões de

discussão e decisão de melhores rumos para a educação, consiste em um

subsídio que não deve se esquecido, principalmente pela co-

responsabilidade que se põe e por surgir à relação direcionada à verdadeira

prática da cidadania.

Observei, enfim, que mesmo realizado os três fóruns, e a formação

da comissão na escola Pequeno Mundo, isso não foi o suficiente para que o

projeto Escola que Protege seguisse em frente. Analisando todas as

respostas da formadora, observei que existiram falhas no planejamento e

execução das atividades do projeto Escola que Protege dentro da Pequeno

Mundo, que me fizeram levantar alguns questionamentos: Será que a

metodologia utilizada pelo projeto, com aulas presenciais e semipresenciais

são suficiente para garantir a legitimidade do projeto na escola? Será que a

falha foi da própria escola, ou seja, na organização e comprometimento da

comissão em dar continuidade às formações periódicas, e/ou ainda em

cobrar da equipe gestora do projeto o apoio necessário? Onde houve a falha

maior? Embora não consiga responder a estas indagações, percebo que o

meu trabalho é de grande valia para que o projeto Escola que Protege

repense a sua metodologia. Sem dúvida, refletir sobre este assunto é

imprescindível para a efetivação de políticas públicas como essas.

4. Será possível concluir?

Por fim, chego a reflexões que me levam a pensar que projetos

como esse, por diversas vezes, tem apenas início. Quase sempre quem

perde são as crianças, pois a violência, negligência, maus tratos, e todas as

formas de opressão e exploração continuam. Não sabemos onde houve o

Page 89: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

89

entrave, mas sabemos que houve limites que não foram vencidos e

obstáculos que não foram ultrapassados. Os conhecimentos adquiridos são

perdidos ao longo do caminho, as formações são transformadas em aulas de

repasse e os conteúdos substituídos.

Para o Escola que Protege, enquanto projeto, acredito que

muito deve ser mudado, para que se torne um programa que traga resultados

positivos efetivos, e não apenas para constarem nos números esperados para

serem atingidos na meta esperada. Sua metodologia deve ser repensada e

adaptada a realidade das escolas que são convocadas a participarem das

capacitações. Assim, novos métodos devem ser criados, para que possam

garantir o comprometimento dos formadores em repassarem os

conhecimentos recebidos. Talvez se faça necessária a criação de uma

equipe multidisciplinar, que pudesse acompanhar as escolas na realização

dos seus fóruns, fornecendo recursos, como por exemplo, material didático

para serem trabalhados com as crianças, apostilhas para os professores,

dentre outros suportes necessários para essa realização. O que pude

observar é que as escolas são obrigadas a participarem das capacitações e

ainda fazerem os fóruns, mas sem nenhum apoio por parte da equipe

gestora do projeto.

Também a coordenação do projeto precisou lidar com

inúmeras dificuldades na gestão do Projeto: para realizar suas atividades

passou por entraves burocráticos, tais como a liberação do recurso

financeiro, que foi grande empecilho no desenvolvimento das atividades.

Contudo, compreendo que projetos como esses são audaciosos e que os

erros e acertos podem contribuir para a obtenção dos resultados esperados.

Assim, reconheço que os obstáculos vão continuar a existir dos

dois lados da questão, ou seja, dos participantes e dos gestores. Resta

continuar tentando e seguindo em frente, acreditando que um dia teremos

Page 90: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

90

políticas públicas efetivas e eficazes na prevenção à violência. Talvez assim

a escola possa se encontrar fortificada, enquanto instituição participante na

rede de enfrentamento, e esteja preparada para identificar, atender, notificar

e encaminhar as ocorrências de violência, garantindo assim os direitos de

crianças e adolescentes.

Referências

AMARAL, Célia Chaves Gurgel do, Fundamentos de Economia

Doméstica: perspectiva da condição feminina e das relações de gênero.

Fortaleza: EUFC, 2000.

BRASIL, Kátia T.; AMPARO, Deise M.; ALVES, Paola B. A escola

protege? reflexões sobre o lugar e papel da escola para o jovem. Brasília:

Universidade Católica de Brasília, [200-?]. Disponível:

<http://www.catedra.ucb.br/sites/100/122/00000857.pdf >. Acesso: 10 out.

2009.

BRASIL. Lei n. 8.069 de 13 de junho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da

Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Senado

Federal, 1990a.

BRASIL. Ministério da Educação. Disponível em:

<

:http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id

=12363&Itemid=565>. Acesso em 04 nov. 2009b.

BRITO, Ana Maria M. et al. Violência doméstica contra crianças e

adolescentes: estudo de um programa de intervenção. Ciência & Saúde

Coletiva, São José do Rio Preto, SP, v. 10, n. 1, p. 143-149, 2005.

Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n1/a15v10n1.pdf >.

Acesso em: 16 nov. 2009.

BEZERRA, Leila Maria Passos de Souza. Notas introdutórias sobre

violência, poder e cultura: algumas pistas para pensar a violência contra

crianças e adolescentes no Brasil. In: MOTA, Maria Dolores; MADEIRA,

Zelma; CORDEIRO, Andréa Carla Filgueiras. (Org.) A escola diz não à

violência. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. 100 p.

Page 91: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

91

CEARÁ. Educação com saúde: noções básicas de educação. v. 1,

Secretaria da Educação Básica. Coordenação de desenvolvimento técnico-

pedagógico. Fortaleza: Secretaria de Educação Básica, 2004. (Criança,

infância e direitos).

CORDEIRO, Andréa Carla Filgueiras. Abordagem de criança e adolescente

em situações de violência: aspectos comportamentais e psicológicos. In:

MOTA, Maria Dolores; MADEIRA, Zelma; CORDEIRO, Andréa Carla

Filgueiras. (Org.) A escola diz não à violência. Fortaleza: Expressão

Gráfica e Editora Ltda, 2007. 100 p.

COSTA, Frederico L. da; CASTANHAR, José Cezar. Avaliação de programas

públicos: desafios conceituais e metodológicos. RAP, Rio de Janeiro, v. 37, n. 5,

p. 969-992, set/out., 2003. Disponível

em:<http://www.enap.gov.br/downloads/ec43ea4favaliacao_programas_publicos

_desafios_conceituais_metodologicos.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2009.

DESLANDES, Suely F. Atenção a crianças e adolescentes vítimas de

violência doméstica: análise de um serviço. Cadernos de Saúde Pública.

Rio de Janeiro, v. 10 suppl., 1994. Disponível em: <

http://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0102-

311X1994000500013&script=sci_arttext&tlng= >. Acesso em: 16 nov.

2009.

FRANCISCHINI, Rosângela; SOUZA NETO, Manuel O. Enfrentamento a

violência contra criança e adolescentes: projeto escola que protege. Revista do

Departamento de Psicologia, v. 19, n. 1 Niterói, 2007. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-

80232007000100018&script=sci_arttext&tlng=andothers>. Acesso em: 18

de nov. 2009.

ELLERY, Celina Magalhães; GADELHA, Graça. Como identificar,

prevenir e combater a violência sexual contra crianças e adolescentes:

cartilha para gestores, técnicos e educadores da rede de enfrentamento à

violência sexual. Fortaleza: outubro de 2004.

ESCOLA que protege: apresentação de projetos. 2008. Disponível em:

<www.cefet.rj.br/comunicacao/noticia/2008-09-03.escolaprotege.htm>.

Acesso em: 09 nov. 2009.

INSTITUTO Federal do Piauí: recebe o projeto escola que protege. 17 jun. 2009.

Disponível em:

Page 92: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

92

<

http://www.45graus.com.br/geral/41237/ifpi_recebe_o_projeto_escola_que

_protege.html> Acesso em: 04 nov. 2009.

HINTZE, Gisele. Os dois lados da violência social. Disponível em: <

http://www.uniplac.net/emaj/Artigos/017.pdf >. Acesso em: 02 nov. 2009.

KRAMER, Sonia. De que professor precisamos para a educação infantil?

Uma pergunta, várias respostas. Pátio Educação Infantil. Porto Alegre:

Artmed Editora S. A, Ano 1 n. 2, ago/nov. 2003.

LORENZONI, Ionice. Escola que protege começa formação. Observatório

jovem do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 20 jan. 2009. Disponível em: <

http://observatoriojovem.org/materia/escola-que-protege-come%C3%A7-

forma%C3%A7%C3%A3o >Acesso em: 09 nov. 2009.

LUCK, Heloísa. Metodologia de projetos: uma ferramenta de

planejamento e gestão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

MAIOR NETO, Olympio de Sá Sotto. O Estatuto da Criança e do

Adolescente e o sistema educacional. In: SILVA, Paulo Vinicius B. da;

LOPES, Jandicleide E.; CARVALHO, Arianne. (Org.) Por uma escola que

protege: a educação e o enfrentamento à violência contra crianças e

adolescentes. 2.ed. rev. Ponta Grossa: Editora UEPG; Curitiba: Cátedra

UNESCO de Cultura da Paz UFPR, 2009. 198 p.

MACHADO, Alberto Vellozo; MACHADO, Márcia Caldas Vellozo.

Escola que protege histórico jurídico de proteção da criança e do

adolescente. In: SILVA, Paulo Vinicius B. da; LOPES, Jandicleide E.;

CARVALHO, Arianne. (Org.) Por uma escola que protege: a educação e

o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. 2.ed. rev. Ponta

Grossa: Editora UEPG; Curitiba: Cátedra UNESCO de Cultura da Paz

UFPR, 2009. 198 p.

MOTA, Maria Dolores de Brito. Notas para entender as desigualdades de

gênero e geração no Brasil. In:_____. MADEIRA, Zelma; CORDEIRO,

Andréa Carla Filgueiras. (Org.) A escola diz não à violência. Fortaleza:

Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. 100 p.

_____. MADEIRA, Zelma, CORDEIRO, Andréa Carla Filgueiras, (Org.).

A escola diz não à violência. Fortaleza, 2007. P. 100.

Page 93: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

93

NASCIMENTO, Allan Patrick F. et al. Projeto escola que protege:

estratégias para a prevenção de violência contra crianças e adolescentes.

PRACOUT01. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, [200-?].

Disponível em:

<http://www.prac.ufpb.br/anais/IXEnex/extensao/documentos/anais/3.DIR

EITOSHUMANOS/3PRACOUT01.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2009.

PERES, Emerson Luiz. Da violência estrutural à violência doméstica contra

crianças e adolescentes: aspectos conceituais. In: SILVA, Paulo Vinicius B.

da; LOPES, Jandicleide E.; CARVALHO, Arianne. (Org.) Por uma escola

que protege: a educação e o enfrentamento à violência contra crianças e

adolescentes. 2.ed. rev. Ponta Grossa: Editora UEPG; Curitiba: Cátedra

UNESCO de Cultura da Paz UFPR, 2009. 198 p.

QUIXADÁ, Luciana M. Violência sexual contra crianças e adolescentes:

algumas considerações. In: MOTA, Maria Dolores; MADEIRA, Zelma;

CORDEIRO, Andréa Carla Filgueiras. (Org.) A escola diz não à violência.

Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda, 2007. 100 p.

NASCIMENTO, Anelise M. do. A infância na escola e na vida: uma

relação fundamental. In: BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra D.;

NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do. (Org.) Ensino fundamental de nove

anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília:

Ministério da Educação. FNDE, Estação Gráfica, 2006. 135 p.

ROCHA, Eloisa Acires Candal. Por que ouvir as crianças? algumas

questões para um debate científico multidisciplinar. In: CRUZ, Silva

Helena Vieira. (Org.) A Criança fala: a escuta de crianças em pesquisas.

São Paulo: Cortez, 2008. 388 p.

ROLIM, Maria J. Esmeraldo. A violência na escola pública: como

prevenir e corrigir. [199-?]. Disponível em:

<http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/a-violencia-na-escola-

publica:-como-prevenir-e-corrigir-4248/artigo/>. Acesso em: 16 nov. 2009.

SILVA, Ainda Maria Monteiro. Educação e violência: qual o papel da

escola? 08 nov. 2004.

Disponível:

<http://www.foncaij.org/dwnld/ac_apoio/artigos_doutrinarios/educacao/edu

cacao_violencia_papel.pdf>. Acesso: 07 out. 2009.

Page 94: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

94

SILVA, Maria Ozanira da Silva e, Avaliação de políticas e programas

sociais: aspectos conceituais e metodológicos. In:______. (Org). Avaliação

de políticas e programas sociais: teoria e prática. São Paulo: Veras, 2001.

VIODRESINOUE, Silvia Regina; RISTUM, Marilena. Violência sexual:

caracterização e análise de casos revelados na escola. Estudos de

Psicologia. Campinas, v. 25, n. 1 p. 11-21, jan/mar 2008. Disponível em: <

http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v25n1/a02v25n1.pdf >. Acesso em: 02 nov.

2009.

Page 95: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

95

A ESCOLA PROTETIVA NA ÓTICA DO(A) PROFESSOR(A).

Ernny Coêlho Rêgo25

Introdução

Compreendendo que toda forma de violência é antes

transgressão aos direitos, e que os direitos para serem conquistados

necessitam de uma construção social e política, e de um desenvolvimento

de autonomia e consciência crítica, que os homens adquirem também

através da educação, seria infrutífero falar de direitos sem ensejar um

diálogo que passe pela dimensão pedagógica. Nesse sentido muito se tem

efetivado esforços para a promoção e fortalecimento da educação em

Direitos Humanos, tanto para alunos (as), como também para os (as)

profissionais que fazem educação.

O Projeto Escola que Protege, portanto, atua na esfera da

formação continuada em Direitos Humanos para os professores. A partir da

formação e produção de materiais didáticos e paradidáticos, o projeto visa

não só capacitar professores para que estes lidem melhor com a temática e a

ocorrência de violência contra crianças e adolescentes, sabendo quais

passos trilhar na defesa desses direitos, mas também para que através da

produção de materiais eles estejam aptos a promover uma educação em

direitos humanos com seus alunos, sabendo como didaticamente tratar do

assunto da violência em uma linguagem acessível.

O projeto nasce a partir da perspectiva de que a escola tem

papel primordial na educação em Direitos Humanos, contribuindo para o

nascimento de uma cultura de respeito à pessoa humana, à diversidade, mas

25

UECE, Curso de Serviço Social, Centro de Ciências Sociais Aplicadas –

CESA,Fortaleza, Ceará , Brasil. Endereço Eletrônico: [email protected].

Page 96: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

96

também na prevenção e no combate à violência; devendo, portanto,

participar ativamente da rede de garantias de direitos. Pretende-se com isso

transformar professores em agentes de defesa desses direitos,

(re)significando a representação que têm de suas funções e das funções da

escola, fazendo-os refletir que o espaço da escola é também um espaço de

proteção dos direitos da população infanto-juvenil.

Elenquei como objetivo central perceber através das falas dos

professores a compreensão que estes formulam acerca da “Escola enquanto

rede protetiva intersetorial”. Pontuo algumas considerações acerca deste

eixo temático, apresentando as concepções que os professores formulam a

respeito da escola como rede de proteção.

Levando em consideração que minha intenção é avaliar projeto

através das falas dos professores, era essencial que os participantes fossem

profissionais docentes do ensino público municipal ou estadual, que

tivessem participado o máximo possível das capacitações, que residissem

em Fortaleza, o que facilitou o meu acesso a eles,e finalmente era

necessário que apresentassem interesse em participar da pesquisa.

Sendo assim, das quatro turmas que somavam 346

participantes do projeto que ocorreu em 2008-2009, que contava com

professores, conselheiros tutelares, alunos, funcionários, pais, dentre outros

substratos, selecionei, aleatoriamente, somente os professores, que tinham

num mínimo 70 % de freqüência às capacitações – o que supõe uma maior

propriedade sobre o projeto por parte dos participantes - e que residiam em

Fortaleza. Procedi então com a execução de entrevistas semi-estruturadas

que atendiam aos objetivos da pesquisa qualitativa que busquei empreender.

Escola como Rede de Proteção Social

Page 97: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

97

O debate acerca das atribuições da instituição escolar tem

ocupado um papel de destaque na agenda de debates sobre Educação. De

acordo com Penin & Vieira (2002, p.13) “[...] a função social da escola é

um dos temas mais freqüentes no debate contemporâneo sobre educação.”

A escola tem expandido o conjunto de atribuições que lhe cabe, ou que lhe

cabia há alguns anos atrás. Evidente é que a escola assume papéis e funções

sociais distintas de acordo com o tempo histórico que vivencia. Se existe

um esforço de dar-lhe mais funções este é um movimento sócio-histórico

que tem suas bases em elementos políticos, ideológicos e sociais

evidenciados tanto pelas classes dirigentes quanto pelos movimentos

sociais.

Em 1961 aprova-se a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB)

do país, esta, porém, goza de uma vida curta, visto a iminência do Golpe de

Estado ocorrido em 1964 e a abertura dos tempos ditatoriais, quando desde

então outras legislações passam a regimentar desde o ensino básico ao

superior. Com a Constituição de 1988 são dadas as primeiras indicações da

Política de Educação. A LDB iniciou seu processo de discussão em 1983 na

Câmara dos Deputados, chegou ao Senado cinco anos após, e foi

promulgada em 1996 – resultado dos confrontos motivados por diversas

posturas ideopolíticas com direcionamentos distintos em acordo com os

projetos societários que defendem.

É a LDB de 1996 que norteia e dá todas as providências acerca

da Política de Educação e como esta deve ser processada atualmente.

Entretanto, devido à atuação do MEC que alterou diversas medidas

provisórias, emendas e portarias nos mais diferentes níveis, modificando

significativamente o sistema de educação proposto pelo texto inicial da

LDB, ainda mesmo antes da promulgação da lei, o que acarretou sérios

Page 98: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

98

problemas para esta política visto que, diante de tantas mudanças

desencontradas e confusas “resultou uma lei genérica e contraditória.”

(BACKX, 2006, p. 125).

Mesmo comprometida em diversos aspectos a legislação

brasileira acerca da educação e os princípios fundamentais que balizam esta

política são norteados por valores universalizantes, emancipatórios e de

respeito aos direitos humanos. O relatório produzido, na década de 1990,

pela Comissão Internacional sobre Educação – instituída pela UNESCO –

estabeleceu os quatro pilares sobre os quais estaria apoiada a educação.

Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser

são as instancias basilares que fundamentam a educação (PENIN

&VIEIRA, 2002).

Não apenas a aquisição de conhecimentos e saberes que são

constituídos universalmente, mas a qualificação profissional, a capacidade

de descoberta do outro e das relações de interdependência entre os seres

humanos, a exigência à convivência e à tolerância aos diferentes, e a

compreensão de desenvolvimento pleno físico, mental e espiritual dos

indivíduos também passam pela compreensão de educação. De acordo com

Penin & Vieira “a educação assim concebida, indica uma função da escola

voltada para a realização plena do ser humano (...).” (2002, p.28).

Ao passo que a escola tem reconfigurado e redimensionado

seu papel social e funcional dentro da realidade brasileira, este avanço não

tem sido acompanhado pelo reconhecimento das reivindicações históricas

da categoria docente. A deficiência no sistema de ensino tenciona a relação

entre profissionais que tem precárias condições de trabalho e níveis salariais

absurdos e as constantes exigências de renovação de conhecimentos, de

Page 99: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

99

inovações nas práticas pedagógicas, apropriação de técnicas e

aprimoramento de saberes.

Como pontua Matos et al (2007, p. 05)

A escola promoverá resiliência se apresentar

experiências como desafios e não como ameaças,

construindo interações de qualidade com estabilidade e

coesão, compondo uma rede de apoio com o ambiente,

que demonstre reconhecimento, aceitação e ofereça

limites (Pinheiro, 2004). Ou seja, o que faz da escola

uma instituição que se firma como uma instituição

protetora encontra-se relacionado com o parâmetro de

a escola ser constituída de sujeitos e são eles, em suas

interações próximas e simbólicas, que constroem e

consolidam esta instituição como uma instituição

protetiva.

Integram-se aí as iniciativas de reconhecimento da escola

enquanto espaço estratégico na construção e respeito aos direitos de

crianças e adolescentes. Existe uma tendência de ampliação das funções

escolares, tendo como pressuposto que a escola educa, mas também deve

proteger a partir da compreensão que não há desenvolvimento pleno nem

construção de cidadãos sem o respeito a esses direitos, sem que haja

condições dos indivíduos terem respeitados seus direitos.

“Essa multiplicidade de funções que se atribui à escola hoje

representa um grande desafio – essa instituição se vê como educadora, mas

também como protetora.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2001, p. 17).

É justamente esse momento de incerteza de suas funções e especificidades

que vivenciam a escola e seus profissionais.

A proposta do Projeto Escola que Protege exemplifica

claramente esta multiplicidade de funções que o autor supracitado coloca-

Page 100: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

100

nos. O objetivo do projeto é fortalecer a escola enquanto instituição

protetora dos direitos de crianças e adolescentes ao passo que através da

formação de profissionais da educação, promove o conhecimento e o

reconhecimento dos direitos dessa população, como também o incentivo a

produção de materiais didáticos e paradidáticos que tratem dos direitos da

população infanto-juvenil. Ou seja, o “Escola que Protege” incentiva a

apropriação pela escola das discussões que envolvem os direitos humanos,

para dessa forma transformá-la - ao passo que torna-se detentora de saberes

sobre a temática – em uma instituição parceira na promoção e defesa dos

direitos de crianças e adolescentes.

“Eu tô ali pra ensinar o aluno a ler, para repassar os

conhecimentos pra ele, mas não pra ele quando for

violentado lá fora vir aqui e me contar. O professor já

tem tanta coisa a resolver dentro da escola, ainda vai

se preocupar com o que acontece fora da escola,

porque é o que acontece na casa do aluno, então é

mais uma tarefa para o professor, o professor já é tão

desvalorizado, e só vem tarefa e trabalho e isso não é

reconhecido”. (Iracema, Jun/2010)

A narrativa depõe dois importantes aspectos: a multiplicidade

de funções atribuídas à escola; e o desconhecimento da docente sobre rede

de proteção na qual a escola deveria estar inserida, sendo este último um

indicativo de que a pesquisada não confecciona sentimentos de

pertencimento a esta rede. Em seu depoimento a interlocutora coloca com

desagrado o excesso de trabalho atribuído ao professor, deslocando a escola

da rede intersetorial, de articulação e parceria que deveria estabelecer com

outros aparelhos sociais.

Page 101: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

101

Problemáticas amplas e complexas requerem compreensões

genéricas e totalizantes que busquem tratar desses problemas de forma

ampliada. De fato a violência é um fenômeno complexo, interromper o

ciclo das suas práticas exige muito mais do que a ação individual de uma

política. A Política de Educação unicamente, assim como qualquer outra,

não possui capacidade de isoladamente interromper o ciclo violento. Ou

seja, o projeto Escola que Protege propõe antes de tudo o fortalecimento da

intersetorialidade entre as políticas.

Junqueira (2004, p. 26) compreende que “[...] a complexidade

dos problemas sociais exige vários olhares, diversas maneiras de abordá-

los, aglutinando saberes e práticas para o entendimento e a construção

integrada de soluções que garantam à população uma vida com qualidade.”

Inserir a escola em uma rede de proteção social, é encarar assim a

existência de uma malha, uma teia de instituições que trabalham com

diversas políticas, tendo atribuições específicas, mas conjuntamente devem

estar interligadas como forma de garantir uma atenção totalizante aos

indivíduos e fenômenos sociais. É admitir a intersetorialidade.

Tem-se por intersetorialidade a ação conjunta de diversos

saberes seja na resolução de problemas, seja na busca por uma compreensão

mais integral e totalizante dos fenômenos sociais ou dos indivíduos. É a

partir da compreensão que os problemas sociais ganham contornos cada vez

mais densos, complexos, e que os homens contêm uma multiplicidade de

esferas que o conformam, que a intersetorialidade surge como alternativa de

contemplar este homem e sua sociedade de forma mais plena, mais integral,

em sua totalidade e complexidade. (JUNQUEIRA E INOJOSA, 1997 apud

JUNQUEIRA, 2004).

Page 102: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

102

Que a escola seja um membro legítimo da rede de proteção

social que articula diversas políticas no intuito de em sinergia, em sintonia,

conseguir abarcar os indivíduos de forma integral, trabalhando em conjunto

para indicar alternativas de solução dos problemas sociais, é inquestionável.

A escola não pode fugir desta responsabilidade. Porém, a intersetorialidade

é um desafio, tanto pela secularização de compartimentação do

conhecimento, tornando-o fragmentado; como pelas dificuldades estruturais

as quais enfrenta o quadro das políticas públicas no cenário neoliberal de

pisoteamento dos direitos sociais.

A proposta do Projeto Escola que Protege é promover a escola

como uma instituição protetiva, que além das funções de socialização de

repasse do conhecimento, trabalha na garantias dos direitos, é membros de

uma rede de proteção social. Esta rede de proteção supõe uma ação coletiva

entre a Política de Educação e as demais políticas setoriais – como saúde,

assistência, segurança.

A dificuldade de atuação em bloco, a desarticulação das ações

que substancialmente objetivam o mesmo fim, a fragilidade da rede de

proteção, o isolamento e a sobrecarga de expectativas colocadas na escola e

docentes, sentidos pelos entrevistados é recorrente em suas narrativas.

“Quando está dentro das nossas possibilidades,

quando a gente pode ajudar de alguma; forma a gente

ajuda. Às vezes a gente ajuda com uma roupa para

uma família, com alimentação, mas diante da demanda

da sociedade, eu sinceramente como professora me

sinto assim de mão atadas, porque se a gente ajuda a

um não pode ajudar a todos, por mais eu a gente tente

fazer. Eu tenho a história de um aluno da turma de

Jovens e Adultos que o pai dele dizia que já que ele

não queria trabalhar, então que arrancasse a página

do livro e comesse quando sentisse fome. Meu papel

ali era de incentivá-lo a não desistir, a continuar,

apesar de todas as adversidades.” (Maria da

Conceição, Jun/2010).

Page 103: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

103

A presença de depoimentos que compreendem a questão dos

direitos sob o ponto de vista da filantropia se repete. De fato, percebe-se aí

um desconhecimento da rede de proteção social que deveria trabalhar em

parceria com outras instituições, articulando-se, nesse caso, com a escola. A

filantropia, a caridade, descaracteriza a questão dos direitos humanos, ao

passo que desmobiliza a ação do protesto e da reivindicação.

A Política de Educação enquanto política de proteção social

deve ser compreendida a partir da articulação com outras políticas,

fortalecendo as ações conjuntas, garantindo que a rede de proteção aos

direitos se efetive. As mazelas sociais que acometem os setores sociais

fragilizados requerem ações coletivas, onde os múltiplos vetores de ação de

cada política estejam entrelaçadas, com um fim em comum.

Como elucida Faleiros “(...) aos educadores, também vêm

sendo conferidas tarefas que não lhes competiam há algum tempo atrás, o

que tensiona ainda mais a frágil relação que se estabelece entre esses

profissionais e a escola como a encontramos hoje” (2001, p. 17).

Úrsula, em depoimento, afirma que

“[...] por exemplo, a inclusão social é direito do aluno,

mas a escola tem condições e está preparada para

receber essas pessoas, que tem direito de ser recebidas

da melhor forma possível? Não é somente receber por

receber, mas dar assistência ao aluno, como é direito

dele. Não adianta falar de inclusão social, se a escola

não tem as condições de receber esses alunos como

eles merecem. Eu vejo que o professor tem uma carga

pesada, querendo ou não a estrutura do nosso ensino

requer que ele passe o conhecimento formal, mas o

professor não foge das problemáticas que aparecem

na sala de aula. O professor não pode fugir dessa

problemática ele tem que lidar da melhor forma com

isso, mas também tem que dar conta do conteúdo

Page 104: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

104

formal, de provinha disso, provinha daquilo. Como é

que a gente resolve se é um conflito da família, da

comunidade, não depende só da gente, a escola não

tem essa capacidade de resolver, agora ela tem o

papel de estar tentando amenizar, ou orientar, ou

conscientizar, alertar que o aluno tem direitos de ir ao

órgão específico; ela tem que esclarecer os direitos

dos alunos. Então a escola tem feito isso de estar

mandando um encaminhamento ou um relatório para

outro órgão que vai atender o aluno; a escola está

fazendo esse papel social. Mas a escola sozinha não dá

conta, precisa de um psicólogo, de um psicopedagogo.

Como o professor vai dar conta de uma especificidade

de um aluno se ele tem uma turma de 35 alunos?”.

(Úrsula, Jun/2010).

É perceptível, em sua narrativa, o reconhecimento do papel da

escola enquanto instituição estratégica na garantia de proteção dos direitos

da população infanto-juvenil, no sentido de que lhe resgata o caráter

pedagógico da formação e do esclarecimento da comunidade sobre seus

direitos. Para ela, sua escola tem executado ações nesse sentido, e tem

compactuado com a percepção de que a escola é, e deve ser, um espaço de

construção e garantias de direitos, mas as condições objetivas para isso

dificultam em muito este trabalho.

Luzia em consonância com o depoimento anterior compreende

a escola como um espaço de proteção, de construção e garantias de direitos

da população infanto-juvenil, onde a comunidade encontra orientação e

esclarecimentos sobre seus direitos, mas também pontua as dificuldades

presentes nesse processo de se fazer protetiva e garantidora. A falta de

competência, de profissionais bem formados e de apoio intersetorial são

elencados como entraves para que a escola esteja consolidada como este

espaço protetor.

Page 105: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

105

“A escola pode proteger a crianças, ela é uma

instituição que pode fazer algo pelas crianças e

adolescentes desprotegidos, ela pode ser este espaço

de transformação, de ajuda, agora com um auxílio

competente. Se você está apta, especializada a

trabalhar com aquela problemática, se você tem

conhecimentos especializados para trabalha com isso

tudo bem. É por isso que existem os órgãos para que

tudo não fique nas mãos das escolas, porque a escola

como qualquer instituição tem um limite. Não compete

somente à escola trabalhar com isso, porque aqui não

é o espaço, mas se esse problema se apresenta na

escola ela não pode fechar os olhos. Ela não tem

competência, mas ela tem que ter noção, tem que

indicar caminhos, tem que orientar, ela não vai

resolver, mas ela dever dar um norteamento, agora

precisamos fortalecer essa competência. A escola tem

a função de educar e de preparar, mas ela não pode

fechar os olhos para as coisas de fora, não quer dizer

que ela vá resolver tudo, mas ela tem que esta atenta,

tem que estar apta a orientar, preparada, a tentar, de

alguma forma, contribuir”. (Luzia, Jun/2010)

De fato, o que é mais urgente nas falas dos professores que

colhi, é a necessidade de condições condizentes com a grandeza da

responsabilidade. Em sua maioria os professores têm a consciência de que a

escola é um espaço de proteção, que é não só seu papel, mas sua

responsabilidade fortalecer-se enquanto esfera institucional membro de uma

rede protetiva dos direitos da população infanto-juvenil. Para eles é

clarividente que a escola não tem as condições de resolver as problemáticas

vivenciadas pelos alunos, mas ela tem o dever de agir no sentido de lhes

garantir acesso à esclarecimentos e orientações, aos serviços públicos; e ela

própria trabalhar, em seu espaço institucional, na perspectiva de também

proteger e garantir esses direitos na sua rotina diária, no trato com o aluno e

com a comunidade.

Como já foi assinalado, é necessário garantir condições

nutricionais, de higiene, um ambiente familiar e comunitário adequado,

Page 106: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

106

condições de saúde, sócio-assistenciais, de cultura e lazer para que crianças

e adolescentes estejam plenamente aptos a participar dos processos de

ensino-aprendizagem e consigam desenvolver suas potencialidades

cognitivas.

“O professor é uma ponte para tentar uma solução. Aí

vem a questão da fragilidade dessa ajuda que ta lá do

outro lado e que muitas vezes limita a ação do

professor, não deveria, mas muitas vezes desmotiva,

desanima. O professor tem um papel importante de

identificação e na medida do possível tentar ajudar

dentro das possibilidades dele. O papel da escola é

identificar, chamar a família, tentar orientar, mas eu

sinto uma cobrança de efetivação, até de solução de

caso. Eu acho frágil essa rede de proteção de

assistência. É um pecado muito grande das

autoridades de não fazer esse fortalecimento; se a

gente tiver essa rede firme, confiável, onde você

pudesse sentir segurança, eu acredito que o papel da

escola, no primeiro passo de identificação e

encaminhamento, seria mais efetivo”. (Cecília,

Jun/2010)

Para Cecília o papel da escola de promoção, garantia e defesa

dos direitos de crianças e adolescente fica comprometido ao passo que a

rede de proteção social que deveria trabalhar em parceria com a escola, em

seu entorno, viabilizando medidas que garantissem os direitos dessa

população a partir dos encaminhamentos feitos pela escola, não funciona,

não tem condições de abarcar a demanda existente.

Parece-me possível afirmar que o projeto conseguiu

fomentar/despertar nos professores participantes à concepção de que a

escola e o professor são agentes de defesa e de garantias dos direitos da

população infanto-juvenil. As falas demonstram um apoderamento da

percepção do papel estratégico da escola para o fortalecimento desta rede

Page 107: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

107

imbuída de garantir que a população infanto-juvenil tenha seus direitos

respeitados.

É preciso dizer, contudo, que a sobrecarga de trabalho, o

desprestígio social, as péssimas remunerações, o déficit de uma formação

acadêmica inicial e continuada em Direitos Humanos, entre outros temas,

promovem na classe docente certo estado de anomia e isolamento, onde

busca-se cada vez menos novas atribuições, visto a sobrecarga de

atribuições que já possuem com as tarefas básicas da docência.

Na linha de frente do cotidiano onde é executada a Política de

Educação, os profissionais sentem ferozmente os resultados do Estado-

mínimo que investe irrisoriamente do desenvolvimento humano, o que gera

debilidade e fragilidade das políticas públicas.. A angustia, o desamparo

que latente percebi nas afirmações dos docentes é um grito de socorro da

própria política pública de educação.

Considerações Finais

A experiência do Projeto Escola que Protege indica muitas

possibilidades de reflexão. A importância da atuação do Serviço Social no

debate acerca dos Direitos Humanos, e do fenômeno da violência contra

crianças e adolescentes é urgente. É pertinente que o saber construído pelo

Serviço Social – que conserva os traços que conformam à profissão e à

formação acadêmica, tendo uma visão mais ampla e totalizante dos

fenômenos fragmentados da questão social - também esteja engajado no

diálogo acerca destas temáticas.

Toda transformação objetiva passa também por um processo

de reflexão, de busca de alternativas. Visto o caráter interventivo da

Page 108: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

108

profissão, mas buscando também uma compreensão plena dos fenômenos

sociais, é primordial que o Serviço Social, contribua com seu

posicionamento particular a este respeito; visto que a violência não emana

da questão social, mas toma contornos incontroláveis sob a égide do

sistema do capital.

A sobrecarga de trabalho enfrentada pelo professor é inegável,

mesmo tendo que dar conta das tarefas básica, de socialização e repasses de

saberes para o aluno, este não pode ausentar da sua tarefa enquanto agente

social. É preciso que o professor e a escola estejam apoiados em suas

funções, que gozem de parcerias para compartilhar tarefas e respeitar

competências profissionais e acadêmicas. A inserção do profissional de

Serviço Social na escola surge como uma alternativa importante.

É preciso fomentar progressivamente formações que capacitem

e mostrem estratégias para uma abordagem mais criativa a respeito dos

Direitos Humanos e da luta contra as violências à população infanto-juvenil

no espaço da escola; promovendo um empoderamento dessas temáticas por

parte dos professores para que estejam aptos a tratar destas temáticas na

sala de aula, contemplando assim não somente a idéia de uma escola

protetiva desses direitos na perspectiva da redução de danos, mas numa

linha de promoção, de prevenção e de legitimação desses direitos. Como

afirma Faleiros (2001, p. 17) “[...] esse conjunto de elementos desafia a

uma nova postura profissional que deve se construída por meio de

processos formativos permanentes”.

A escola, os professores – como qualquer cidadão – têm o

papel de identificar e comunicar aos órgãos competentes qualquer suspeita

ou comprovação de violência contra crianças e adolescentes, para isto basta

apenas o que os compete enquanto cidadãos. Este papel não pode ser

rechaçado pela escola e professores. Entretanto para além da formação em

Page 109: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

109

recursos humanos, é preciso garantir que a intersetorialidade aconteça; que

os aparelhos sociais funcionem e ajam como uma rede; uma malha social de

proteção aos direitos que possa planejar, executar e avaliar suas ações

coletivamente.

O Projeto Escola que Protege para interromper o ciclo de

violência – seu objetivo primeiro - ainda precisa caminhar bastante, o

horizonte que precisa trilhar é desafiador, contudo a causa justifica todos os

esforços. É preciso fortalecer a ação conjunta com outras políticas sociais

públicas como forma de garantir que a escola não seja um transeunte

solitário na luta pelo fortalecimento dos direitos e na construção das

cidadanias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACKX, Sheila. O Serviço Social na educação. In: REZENDE, Ilma;

CAVALCANTI, Ludmila (Org.). O Serviço Social e políticas sociais. São

Paulo: Ed. UFRJ, 2006.

BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social:

fundamentos e história. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Casa Civil. Decreto nº

8.069 de julho de 1990. Brasília, DF, 1990. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm> Acesso em: 15 mai.

2010.

_____. Lei de Diretrizes e Bases. Ministério da Educação, Decreto nº 9.394

de 20 de dezembro de 1996. Brasília, DF, 1996. Disponível em: <

http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf> Acesso em: 12 jun. 2010.

FALEIROS, Vicente de Paula, FALEIROS, Eva Silveira. Formação de

educadores(as): subsídios para atura no enfrentamento à violência contra

crianças e adolescentes. Brasília: MEC/SECAD; Florianópolis:

UFSC/SEaD, 2006.

Page 110: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

110

GRANEMANH, Sara. Políticas sociais e Serviço Social. In REZENDE,

Ilma; CAVALCANTI, Ludmila (Org.). O Serviço Social e políticas sociais.

São Paulo: Ed. UFRJ, 2006, p. 11-24.

INOJOSA, Rose Marie. Sinergia em políticas e serviços públicos:

desenvolvimento social com intersetorialidade. Cadernos FUNDAP, n. 22,

2001. Disponível em: http://www.scielo.org. Acesso em: 11 ago. 2010.

JUNQUEIRA, Luciano A. Prates. A gestão intersetorial das políticas

sociais e o terceiro setor. Saúde e Sociedade, v.13, n.1, p.25-36, jan. 2004.

Disponível em: http://www.scielo.org. Acesso em: 11 ago. 2010.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Educação integral: texto referência para o

debate nacional. Secretaria de Alfabetização, Educação Continuada e

Diversidade. Brasília: Mec, Secad, 2009.

OLINDA, Ercília Maria Braga de. O papel da escola como Comunidade

Inclusiva no Combate à Violência. In: MOTA, Maria Dolores de Brito;

MADEIRA, Maria Zelma; CORDEIRO, Andréa Carla Filgueiras (Orgs.). A

escola diz não à violência. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora Ltda.,

2007. cap.10, p. 79-84.

PENIN, Sonia T. Sousa; VIEIRA, Sofia Lerche. Refletindo sobre a função

social da escola. In: VIEIRA, Sofia Lerche (Orgs). Gestão da Escola.

Desafios a Enfrentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. cap. 01, p.13-43.

SANTOS, Vivian Matias dos. Políticas Públicas em Educação: a “lógica

subalternizante” vigente na América Latina e seus reflexos na universidade

brasileira. Revista Emancipação, n. 8.1, set. 2008. semestral.

Page 111: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

111

Sexismo e racismo: algumas considerações sobre o perfil

identitário e o movimento das mulheres negras26

Zelma Madeira

27

Introdução “Se nós, mulheres negras do

Brasil, quisermos de fato

alcançar um padrão de vida

compatível com a dignidade da

nossa condição de seres

humanos, precisamos sem mais

tardança fazer política...

Precisamos constituir um exército

de eleitoras pesando na balança

das urnas. Usar ao máximo as

franquias democráticas que nos

asseguram o direito que é

também o sagrado dever cívico

de votar e sermos votadas para

qualquer pleito eletivo...” (Maria

Nascimento) 28

Passados 124 anos de pós-escravidão, a desigualdade material e

simbólica da população negra subalternizada se manteve, e a desvantagem

em relação aos(às) branco(a)s no usufruto de recursos e benefícios continua

a afetar severamente esse grupo. Tal desigualdade se inscreve no nível de

26

Palestra proferida no seminário “O gênero da mudança: feminismo como projeto

de radicalização da democracia” na Mostra Nacional Curta o Gênero 2012, em 8 de

março de 2012, Fortaleza/Ceará. 27

Professora do Mestrado em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e da

graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Vice-

coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida) e

coordenadora do grupo de pesquisa Relações Étnico-Raciais, Cultura e Sociedade

da UECE. Pesquisadora da temática das relações de gênero, étnico-raciais e de

sociologia da família. E-mail: [email protected]. 28

Mulher negra e assistente social. Depoimento retirado do Jornal Quilombo, Rio

de Janeiro, ano II, n. 6, 1950.

Page 112: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

112

escolaridade, analfabetismo, inserção no mercado de trabalho, parca

representação política, marginalidade social, discriminação e violência.

Sobressaiu na sociedade brasileira o mito da democracia racial, pela

afirmação de uma convivência harmoniosa entre os grupos étnico-raciais.

Esse discurso ideológico tentou mascarar os conflitos raciais e deslocá-los

para a esfera individual de negras e negros “complexados”,

responsabilizando-os, portanto, por sua não inserção na sociedade e no

usufruto das riquezas produzidas.

Presenciamos cotidianamente as discriminações raciais. Pesquisas

têm elucidado que, diferentemente dos homens, o tipo de discriminação

racial29

que mais afeta e mobiliza as mulheres é aquela que parte de pessoas

conhecidas ou de alguém com quem se convive socialmente em ambiente

público e até privado. Esse tipo de discriminação traz complexidades,

quando ficam difusos o agente da ação e a natureza do racismo,

sobressaindo o sexismo romântico, com o silenciamento da violência e a

distorção das reais causas da desigualdade e da violência de gênero. As

explicações reafirmam as relações de amor, proteção e cuidado, acrescido

da culpabilização dessas mulheres.

Para as mulheres, é mais recorrente que os ofensores sejam de seu

círculo de relações interpessoais, ao contrário dos homens, normalmente

29 De acordo com a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as

Normas de Discriminação Racial da ONU, a discriminação racial é entendida como

toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,

descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular

ou restringir o reconhecimento, exercício em igualdade de condição de direitos

humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social,

cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.

Page 113: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

113

atingidos por discriminações feitas por estranhos ou por indivíduos

investidos de autoridade com o objetivo de impedir sua livre circulação ou

permanência em locais públicos.

Assim, este artigo encontra-se dividido em duas partes. A primeira

tratará da discriminação e violência que atinge as mulheres negras, com

fortes impactos na construção do “ser mulher negra”, e das vulnerabilidades

a que estão submetidas. A segunda parte vai além das desigualdades

inscritas sob a forma do racismo e sexismo, com o propósito de demonstrar

a resistência dessas mulheres em movimento, do seu ativismo nos

movimentos sociais, em particular no movimento de mulheres e no

movimento negro.

1- Condição de vida da mulher negra e seu rebatimento na

construção do seu perfil identitário

Tornam-se inegáveis hoje as mudanças nas condições de vida das

mulheres. Alguns aspectos nos ajudam a verificar as alterações no

comportamento social referente às mulheres. Tem-se hoje a sua maior

inclusão social: redução da fecundidade, crescente participação no mercado

de trabalho, contribuição no rendimento familiar e elevação na

escolaridade.

Diante de uma gama considerável de mudanças na vida das

mulheres, aspectos contraditórios fazem-se presentes, principalmente

quando nos referimos ao nível de inserção no mercado de trabalho. Dados

de 2007 evidenciam salários menores para o desempenho da mesma função

que os homens, situação de constrangimento e violência no local de

trabalho por assédio sexual, cujas raízes encontram-se numa sociedade de

Page 114: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

114

ranço patriarcal, sexista, machista e racista de inferiorização das mulheres.

Essas práticas configuram o sexismo, em que há um tratamento

diferenciado para as mulheres, desencadeado pelas desigualdades nos

papéis de gênero.

Mesmo com todas essas transformações no Brasil, as formas de

discriminação, particularmente o racismo, são fatores estruturantes que

provocam desigualdades e exclusões, principalmente entre as mulheres. A

conjugação do sexismo e racismo tem se constituído no grande

impedimento para o desenvolvimento das potencialidades das mulheres

negras.

Imagens do passado de escravismo, de corpo-procriação e/ou

corpo-objeto de prazer do homem, somam-se a uma verdadeira ausência da

representação da mulher negra como mãe, com responsabilidade para com

sua família, através da socialização e cuidado com os filhos, justificando

um discurso ideológico de que a população negra não constituiu famílias. A

mulher negra foi retratada como a “mãe-preta”, a mãe dos filhos dos outros,

aquela que cuida dos filhos dos brancos em detrimento dos seus

(EVARISTO, 2005). A mulher negra teria negado o exercício da

maternidade e se destacaria pelo servilismo na função de empregada

doméstica. Interessante a forma como se reedita nos dias atuais esses

lugares para elas:

A categoria dos trabalhadores domésticos é formada

por aproximadamente sete milhões de profissionais,

sendo que, entre as mulheres, 61,7% são negras.

Historicamente, o trabalho doméstico é a principal

porta de entrada das mulheres negras no mercado de

trabalho e é onde a violação de direitos é mais

Page 115: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

115

evidente: praticamente 75% das trabalhadoras não têm

carteira assinada. (ONU, 2011, p. 7).

As características que assume a sexualidade da mulher negra,

fomentada por estereótipo que conformou o imaginário das mulheres negras

como quentes e fogosas, de fácil acesso e carentes, têm provocado

consequências sérias, em específico das jovens negras, que até os dias

atuais têm de conviver com formas perversas de exacerbação de atributos

físicos, corpo, lábios, cabelos, forma do nariz, seios, mediante exaltação dos

caracteres selvagens, robustos e primitivos, fomentando a violência

doméstica, física, psicológica e sexual. Na esteira dessa compreensão, os

dados revelam que:

Se, por um lado, a Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340,

de 2006 – criou mecanismos para coibir a violência

doméstica e familiar contra a mulher, de outro, as

estatísticas da violência são cada vez mais impactantes.

O Mapa da Violência 2010, elaborado pelo Instituto

Sangari, registrou 41,5 mil assassinatos de mulheres

entre 1997 e 2007, de acordo com dados coletados no

DataSUS. Esse índice posiciona o Brasil em 12° lugar

na classificação mundial de femicídios. A maioria dos

assassinatos de mulheres é cometida por parentes,

maridos, namorados e ex-companheiros. De acordo

com esses dados, 40% dessas mulheres tinham idades

entre 18 e 30 anos. No cruzamento entre gênero e raça,

o Dossiê Mulher 2010, elaborado pelo Instituto de

Segurança Pública do Rio de Janeiro, demonstrou que

as mulheres negras são a maioria entre as vítimas de

homicídio doloso (55,2%), tentativa de homicídio

(51%), lesão corporal (52%), além de estupro e

atentado violento ao pudor (54%) (ONU, 2011, p.8)

Nesse sentido, são elucidativos os dados apresentados no

documento das Nações Unidas no Brasil 2011: Ano Internacional das e dos

Afrodescendentes:

Page 116: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

116

Com relação aos postos de comando nas empresas, a

presença de mulheres negras é quase nula: apenas

0,5% delas está no executivo, 2% na gerência, 5% na

supervisão e 9% no quadro funcional, conforme

pesquisa do Instituto Ethos em 2010 (ONU, 2011, p.

8).

As mulheres negras teceram inúmeras críticas quanto à

invisibilidade de sua ação política. A ordem é ocupar todos os espaços na

sociedade – o poder público, o parlamento, os meios acadêmicos, as

associações, os partidos, os movimentos sociais. Essa ocupação vem

acompanhada de inúmeras dificuldades.

Cabe ressaltar que a compreensão hegemônica em torno das

mulheres negras está ainda fortemente colada com os papéis instituídos para

as relações de gênero segundo a cor ou raça no período de escravismo, de

modo que as mulheres negras continuam, mesmo diante de mudanças,

sendo desvalorizadas socialmente. Na esteira dessa compreensão, Carneiro

(2003) elucida a forma específica de violência que constrange o direito à

imagem ou a uma representação positiva das mulheres negras: a hegemonia

da branquitude, presente no imaginário social, e a violência invisível que

traz saldos negativos para a subjetividade e o desenvolvimento da

identidade e das relações sociais dessas mulheres nas relações sociais

concretas.

No que se refere às ações para combate à discriminação contra a

mulher negra, ainda são tímidas as ações no Ceará. No entanto, muito teve

ser feito para o enfrentamento à violência dirigida às mulheres negras.

Prolifera na sociedade uma representação mitificada e perversa da

sexualidade da mulher negra, provocando a autonegação da identidade

negra, numa ausência de referenciais positivos para o ser mulher negra. A

Page 117: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

117

grande maioria tem convivido sob péssimas condições de vida, subemprego

e desemprego, como já assinalado anteriormente.

Meninas negras, aqui no Ceará, vivem o drama da exploração

comercial e sexual cotidianamente, associam sexo, drogas e “diversão”

como festas, forró. Fazem uso de bebidas alcoólicas, de drogas como

maconha, cocaína, crack, passam a não mais frequentar a escola, como

meio de evitar constrangimento por parte dos estudantes – e até de

professores e daqueles que dirigem a escola –, sendo alvo de chacota e

discriminação. Acresce o fato de negarem a estética negra, buscando um

modelo de beleza da mulher branca, motivadas pelo ideal de

branqueamento que se fez presente na sociedade brasileira como um todo.

Essa ideologia é levada a cabo pela elite branca brasileira, que intentou

construir um Brasil europeu, passando pela negação e invisibilidade das

raízes negras e indígenas que compuseram essa nação. Assim, há uma

tendência de nossas meninas negras não se reconhecerem nem se

autoafirmarem como negras, não sendo empoderadas em nenhuma

instituição responsável pela socialização para seu pertencimento étnico-

racial.

Precisamos refletir sobre as oportunidades dadas a essas meninas

num país que sequer se reconhece como racista, que mais culpa as vítimas

do que efetiva políticas de reparação que possam ser afirmativas dos

direitos negados no decorrer destes séculos à mulher, à menina, à jovem

negras. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

(2004), no Brasil há pelo menos 300.000 meninas que trabalham como

empregadas domésticas ou babás em casa de família, um lugar que, como

vimos, desde os tempos coloniais é propício, um lugar típico para a

exploração e abusos sexuais.

Page 118: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

118

As percepções hegemônicas sobre as mulheres negras, associadas

às ideias de inferioridade e subordinação, influenciam o estabelecimento de

suas relações em todos os níveis da vida, e é a partir do desvelamento desse

processo de oposição/resistência que o movimento de mulheres negras se

amplia e aprofunda seu debate com a sociedade em geral, partindo da

articulação entre raça, classe e gênero para o entendimento acerca da

complexidade que envolve a questão das mulheres negras.

Mulheres negras em movimento

Desde o período colonial, as mulheres negras ocuparam, não sem

resistência e violência, o espaço público para comercializarem verduras,

frutas, peixes e quitutes, sobressaindo algumas negras de tabuleiros, que,

em meios às muitas dificuldades, conseguiram comprar sua liberdade e de

seus familiares. Fatos como esses denotam a força da mulher negra, em

meio às tantas adversidades, na garantia de melhores condições de vida e na

preservação do seu legado cultural.

Historicamente são mulheres que lutaram e lutam. Podemos afirmar

que, nas últimas décadas do século XX e no início do XXI, organizações do

movimento negro têm diretamente demonstrado os fatos que comprovam o

tratamento diferenciado e negativo dispensado à população

afrodescendente. Nesse sentido, essas organizações contribuíram

decisivamente para a destituição da ideia generalizada de que o Brasil

constituía uma democracia racial e da cristalização na mídia da mulher

negra em posições de inferioridade e associadas a aspectos negativos e

excludentes.

Page 119: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

119

O ativismo político dessas mulheres caracterizou-se pela sua

inserção nos diversos movimentos sociais, porém com maior participação

nos movimentos negro e feminista, cuja intervenção pautou-se no

rompimento do silêncio e da invisibilidade que as atingia e nas questões

específicas das questões de gênero, raça e lesbianidade. Carneiro (2003)

alerta que, como outros movimentos sociais progressistas, o feminismo

guarda relações com a visão eurocêntrica e universalizante das mulheres.

Nesse aspecto, tornam-se elucidativas as considerações de Michele

Lopes da Silva numa entrevista a Eliane Cavalleiro, ao tratar do ativismo

das mulheres negras e produção de conhecimento:

A constituição desse movimento tornou-se possível

quando suas integrantes perceberam que suas

vivências, experiências cotidianas, trajetórias e

histórias não estavam presentes nas avaliações e

bandeiras de luta do Movimento Negro nem do

Movimento Feminista. O Movimento Negro

desconsiderava o machismo como peça na engrenagem

da dominação capitalista. O Movimento Feminista, por

sua vez, ignorava a existência do racismo. Por esse

motivo, as mulheres negras perceberam que, mesmo

estando presentes nas lutas sociais, havia uma ausência

da percepção de gênero nas discussões, reflexões e

proposições de superação do racismo, bem como uma

ausência da raça na luta pela igualdade de gênero.

Diante disso, essas mulheres, como sujeitos coletivos,

passaram a demarcar suas diferenças entre os iguais e

os diferentes. O processo de intersecção entre raça e

gênero como movimento, uma vez que, nas trajetórias

das entrevistadas, o reconhecimento de sua condição

de gênero implicou a revisão de sua atuação em ambos

os Movimentos, culminou num processo de formação e

de recriação da representação dos papéis até então

desempenhados pelas mulheres negras

(CAVALLEIRO, 2010, p 11)

Page 120: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

120

Nos anos 1980 e 1990, num contexto sócio-histórico que

expressava a dificuldade de diálogo e a certeza da necessidade de discutir

temas específicos e fundamentais na vida das mulheres, estas decidem pela

criação de organizações autônomas, como as ONGs Criola, Geledes, Fala

Preta, Maria Mulher, Grupo de Mulheres Negras Mãe Andressa, Casa da

Cultura da Mulher Negra, dentre outras, tomando formato na realidade

brasileira. E, seguindo esse propósito, muitas outras vão surgindo, como

IMENA, Malunga, INEGRA e outras.

No cenário contemporâneo, é possível verificar o ativismo da

mulher negra em diversos espaços, como nos conselhos das políticas sociais

setoriais e nas conferências que tratam dos temas centrais a ela em âmbito

nacional e internacional. A 3ª Conferência Nacional de Políticas para as

Mulheres, realizada em dezembro de 2011, com o tema “Autonomia e

igualdade para as mulheres”, em Brasília, contou com a participação das

mulheres negras organizadas. Elas vêm ocupando espaço de definição das

políticas públicas nas conferências de políticas para as mulheres e de

promoção da igualdade racial nos níveis local, estadual e nacional, bem

como nos conselhos de políticas setoriais. No ano de 2011, deixaram suas

marcas, quando aprovaram resoluções que atendem as suas demandas no

âmbito da autonomia econômica e social, como a ampliação da participação

e permanência das mulheres no mundo do trabalho e mercado formal, em

particular defendendo a garantia dos direitos das trabalhadoras domésticas,

com especial ênfase na equiparação de direitos com as(os) demais

trabalhadoras(es) (PEC n° 478/2010 das trabalhadoras domésticas e

Convenção 189 da OIT).

No que concerne à inclusão produtiva e empreendedorismo nos

meios urbano e rural, apresentaram a urgência de fortalecer as organizações

produtivas de mulheres quilombolas, garantindo o acesso ao crédito, à

Page 121: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

121

assistência e assessoria técnica e socioambiental, à demarcação e titulação

de comunidades remanescentes de quilombos.

No enfrentamento à violência contra a mulher negra, aprovaram a

ampliação e o aperfeiçoamento da rede de atendimento às mulheres em

situação de violência e a implementação da Lei Maria da Penha. Na área da

saúde integral das mulheres, sexualidade, direitos sexuais e direitos

reprodutivos, houve o fortalecimento e implementação da Política Nacional

de Atenção à Saúde da Mulher, integrada à Política Nacional de Atenção à

Saúde da População Negra, com atenção à anemia falciforme, e a

insistência no critério cor nos prontuários de atendimento para melhorar o

registro de dados, capacitando profissionais de saúde.

No âmbito da autonomia cultural, apontaram a necessidade de uma

educação e cultura para a igualdade, com fortalecimento da cidadania, ao

incorporar as questões de gênero, raça e etnia, orientação sexual e

identidade de gênero, geracional e das pessoas com deficiência nos

currículos das instituições em todos os níveis, etapas e modalidades de

ensino, com ênfase na implementação da Lei n° 10.639/2003, que torna

obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, e da Lei n°

11.645/2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

[...] ao investimento na escolarização e qualificação

das mulheres negras; à promoção da igualdade racial

no mundo do trabalho a partir de políticas e ações

específicas e fortalecimento da dimensão racial nas

políticas e ações mais gerais; à igualdade de direitos

para as trabalhadoras domésticas (ONU, 2011, p.10).

De grande relevância têm sido as organizações das mulheres

negras, as ONGs em âmbito nacional e as valiosas articulações

Page 122: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

122

internacionais com a ONU Mulheres, cujo propósito é fortalecer essas

organizações, bem como possibilitar a implementação e monitoramento de

ações e políticas de promoção da igualdade racial já pactuada em espaços

como conferências e o Plano Durban. ONU Mulheres conta com o

Programa Regional Gênero, Raça, Etnia e Pobreza para atuar junto às

mulheres dos países do Cone Sul: Bolívia, Brasil, Guatemala e Paraguai

para que desfrutem de oportunidades iguais no mercado de trabalho e

conquistem autonomia financeira.

Um dos maiores desafios vividos por essas e outras mulheres

negras militantes foi o trato político e pessoal da diferença entre os

diferentes, no interior dos movimentos sociais de caráter identitário, em

suas responsabilidades em combater o racismo, em lutar e conquistar

políticas públicas de resgate da dignidade humana da população negra.

Movimentos sociais de caráter identitário – movimentos identitários.

As pesquisas atuais têm apontado um crescimento e a configuração

de novos rumos para o feminismo em cenário mundial. No Brasil, este

momento demonstra a abertura para um maior relacionamento entre

mulheres negras e não negras. Isso encontra sentido na unidade dos

objetivos coletivos na luta antirracista e antissexista, denotando uma

ampliação das mulheres advindas de múltiplos setores, como militância

sindical, popular, negra e lésbicas nos encontros do movimento feminista,

fomentando os debates, com capacidade de influência e de proposição

(CARNEIRO, 2003).

Considerações finais

Diante dos movimentos que reivindicam o direito à diversidade,

tratamos com os “diversos”, que têm suas reivindicações e demandas de

Page 123: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

123

inserção na sociedade global. A radicalização da democracia passa pelo

respeito à diversidade, à multiplicidade das expressões identitárias. O

reconhecimento da diversidade é na prática um pedido de palavra contra a

violência frente ao outro.

O movimento de mulheres e o movimento de mulheres negras

percebem as mulheres como sujeitos históricos da transformação da sua

própria condição social. Propõem que as mulheres partam para transformar

a si mesmas e ao mundo. No entanto, não é um movimento homogêneo.

Contém uma série de dificuldades de estruturação e de orquestração de sua

multiplicidade, como no tratamento da diversidade entre as mulheres

(racial, étnica, condição socioeconômica, diversidade sexual, geração ou

cultural), e também uma abordagem pluralista nos espaços políticos

conquistados na sociedade.

Coloca-se como desafio para o Estado brasileiro que reconheça as

organizações do movimento das mulheres negras como agentes

fundamentais na elaboração, implementação e monitoramento das políticas

públicas voltadas às mulheres e às negras. As mulheres negras assumem

importante papel político ao contribuir com singularidade para a articulação

entre a raça e o gênero no interior dos movimentos sociais nos quais atuam,

no que tange a imensa tarefa social e política de (re)educar homens e

mulheres para exercício das relações de gênero e raciais mais justas e

democráticas.

Diante do exposto, é válido dizer que o combate ao machismo,

sexismo e racismo é uma causa que diz respeito a toda humanidade. Cabe

uma reflexão e ações rumo à construção de uma brasilidade rica de

compartilhamento cultural dos diferentes povos que edificaram esta nação,

Page 124: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

124

inspirados em valores democráticos, fraternos e solidários. Essas

desigualdades de gênero, raça, diversidade sexual e classe social têm

comprometido o desenvolvimento das potencialidades da população negra

no Brasil, com desdobramentos sérios na condição de vida das mulheres

negras.

Referências bibliográficas

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na

América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Racismos

Contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Ed., 2003.

______. Mulheres Movimento. In: Revista Estudos Avançados, n. 17, 2003.

CAVALLEIRO, Eliane. Mulheres negras, ativismo e produção de

conhecimento: uma conversa com Michele Lopes da Silva. In: Revista da

ABPN, n. 1, v. 1, mar./jun. 2010. Disponível em:

https://abpn1.websiteseguro.com/Revista/index.php/edicoes/article/view/31/

38. Acesso em: 23 fev. 2012.

EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-representação da mulher

negra na literatura brasileira. In: Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira,

n. 1, ano I, ago. 2005

MADEIRA, Maria Zelma de Araújo Madeira. A maternidade simbólica na

religião afro-brasileira: aspectos socioculturais da mãe-de-santo na

Umbanda em Fortaleza-Ceará. Tese (Sociologia), 250 p. Programa de Pós-

Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.

MADEIRA, Maria Zelma de Araújo. Sexismo e racismo cordial. Jornal O

Povo, Caderno Vida & Arte, Fortaleza, 14 abr. 2007.

PINTO, Celi Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil l: suas

múltiplas faces. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2003.

RIBEIRO, Matilde. O feminismo em novas rotas e visões. In: Rev. Estudos

Feministas, Florianópolis, n. 3, v. 14, set./dez. 2006.

SANT’ANNA, Wânia. Novos marcos para as relações étnico/raciais no

Brasil: uma responsabilidade coletiva. Disponível em:

Page 125: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

125

http://www.criola.org.br/artigos/novos_marcos_para_as_relacoes_etnico_ra

ciais.pdf. Acesso em: 23 fev. 2012.

SEBASTIÃO, Ana Angélica. Memória, Imaginário e Poder: Práticas

Comunicativas e de Ressignificação das Organizações de Mulheres Negras.

Rio de Janeiro, 2007.

SILVA, Caroline Santos da. Violência e Cidadania: Aspectos Relacionados

às Mulheres Negras. In: Ver. Em Debate, Rev. do Depto. de Serviço Social

PUC-Rio, n. 6, 2007. Disponível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-

rio.br. Acesso em: 23 fev. 2012.

SILVA, Joselina. A União dos Homens de Cor: Aspectos do movimento

negro dos anos quarenta e cinqüenta. In Estudos Afro Asiático. Ano 25.

Vol. 2. (Maio-julho 2003) Rio de Janeiro.

__________. Mulheres Negras, Histórias de algumas brasileiras. Rio de

Janeiro: CEAP, 2009

_________. Maria de Lourdes Nascimento: liderança Afro-brasileira dos

anos quarenta. In História da Educação- vitrais da memória: lugares,

imagens e práticas culturais. Fortaleza: Edições UFC, 2008

ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas (ONU). 2011: Ano Internacional das

e dos Afrodescendentes. Nações Unidas no Brasil. Disponível em:

http://www.unifem.org.br/. Acesso em: 23 fev. 2012.

Page 126: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

126

Trajetórias Juvenis: Trocas e Negociações Identitárias de

Meninas Envolvidas na Prática de Homicídio

Rilda Bezerra de Freitas*

O presente artigo é fruto da minha pesquisa de doutorado em

sociologia intitulada “O ato de matar nas trajetórias juvenis: trocas e

negociações identitárias de meninas30

envolvidas na prática de homicídio”.

Meu interesse em retratar trajetórias de meninas envolvidas na prática de

homicídio é, antes de tudo, falar das juventudes contemporâneas, em sua

pluralidade e diversidade, entendendo-as como uma questão instigante para

as ciências sociais.

Nas teorizações contemporâneas, a juventude não se define

apenas como uma fase na vida dos sujeitos, ou como uma transição de faixa

etária, configurando-se, de forma efetiva, por características relacionadas a

um “estilo juvenil de ser e estar no mundo”. Nos percursos e negociações

do “estilo juvenil de viver” está a participação em determinados grupos que

se formam pretensamente a partir de um referencial de rebeldia,

*Graduada em serviço social (UECE), mestre em sociologia (UFC), doutora em

sociologia (UFC), participante do LEV-UFC (Laboratório de Estudos da Violência)

e pesquisadora da Fundação Brasil Cidadão. 30

Inspirada no romance “As Meninas”, de Lygia Fagundes Teles (1973) e,

também, consciente da restrita utilização do termo “menina” como categoria de

análise nas ciências sociais, optei por fazer uso desse termo “meninas”, tendo em

vista circunscrever um tempo na vida das adolescentes envolvidas na prática de

homicídio. Nesse sentido, pude demarcar um período de trânsito na vida destas

jovens. Vale ressaltar que, em “As meninas”, Lygia Fagundes Teles, também,

contextualiza os percursos de três meninas que, oprimidas pelo período violento da

época da repressão no Brasil, refugiam-se em um Pensionato, na região Central de

São Paulo, e dividem experiências, sentimentos e negociações identitárias, até a

dispersão de suas trajetórias.

Page 127: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

127

transgressão e nomadismo. É no cenário contemporâneo31

que as chamadas

“tribos juvenis” 32

- punks, emos, headbangers, gangues - se gestam. Dentre

31

Segundo a cientista social Alba Pinho de Carvalho (2010), “vivenciamos a mais

de duas décadas a mundialização do capital, as desigualdades e polarizações que

marcam o cenário contemporâneo. Neste cenário, de início do século XXI,

testemunhamos uma confluência de tempos – tempos de crise e de transição –

social. Em verdade, afirma Carvalho, “somos confrontados com questões da

modernidade para as quais as respostas modernas são absolutamente insuficientes,

como a questão da equidade, da justiça e da desigualdade” (CARVALHO,

2010:171). Neste contexto, é complexo e fundamental pensar o momento que

estamos vivenciando, circunscrito pela chamada “civilização do capital”, que

demarca novas formas de domínio e novas expressões de luta e resistência.

Segundo Carvalho, é “imprescindível, desvendar o atual contexto de crises, as

mudanças em curso e as tendências emergentes. Exige delimitar a utopia

democrática, nas suas possibilidades e limites, no âmbito da civilização do capital.

“Impõe discutir a Questão Social em suas manifestações peculiares no presente,

sobremodo, as vulnerabilizações, desmontes e tensões que atingem o mundo do

trabalho” (CARVALHO, 2010:171). Em sua análise sobre as vulnerabilidades

vivenciadas no tempo presente, Carvalho percebe as juventudes de todo o mundo

como uma “nova geração de excluídos”. São filhos de classe média e de

trabalhadores precarizados, com sérias dificuldades de integração à sociedade:

taxas elevadíssimas de desemprego jovem; excesso de qualificação para exercício

de trabalhos precários; reformas educacionais emperradas. São juventudes

marcadas pelo pessimismo, pela falta de confiança no sistema político, com uma

grande insatisfação a explodir em revoltas juvenis contemporâneas, caracterizadas

pela espontaneidade e articulação via circuitos virtuais e telemóveis.

Especificamente, no Brasil, é gritante o drama das juventudes, com elevados

índices de “mortalidade juvenil” que dizima jovens pobres, sobremodo negros, que

perambulam nas diversas “periferias da vida”. Vide: Carvalho, Políticas públicas e

o dilema de enfrentamento das desigualdades: um olhar crítico sobre a América

latina no século XXI, in: Sousa, Fernando José Pires, Poder e políticas públicas na

América Latina, Edições UFC, Fortaleza, 2010. 32

Sobre a concepção de tribo, quero remeter novamente ao entendimento de

Michel Maffesoli (1987), circunscrito na idéia de “tribalismo”, de nativo, de

bárbaro. Nesta perspectiva, “o termo tribo rediz a origem e, com isso, restitui vida

ao que tinha tendência a se esclerosar, a se aburguesar, a se institucionalizar”.

Assim, a juventude dos anos 90 e 2000 vivenciam o que Maffezoli chamou de

“tempo das tribos”, um tempo que se configura pela importância do sentimento de

pertencer a um grupo, a um lugar, enquanto fundamento essencial de toda vida

social. Destaco, também, a formulação de Magnani sobre o conceito de “tribo”.

Segundo o autor, o termo “tribo” é empregado como uma metáfora pode-se dizer

que evoca – primitivo, selvagem, natural, comunitário – características que se

supõe estarem associadas, acertadamente ou não, ao modo de vida de povos que

Page 128: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

128

estas tribos, encontram-se, também, as protagonistas do meu estudo.

Meninas, provenientes das classes pobres que, em suas trajetórias, se

envolveram com a prática de homicídio e experimentaram a sentença de

privação de liberdade e agora retornam aos seus contextos sociofamiliares,

onde vivenciarão novas experiências e outras personificações, no sentido de

encarnarem novos personagens.

Nesta perspectiva, decifrar “trajetórias juvenis” significa

percebê-las na dimensão da pluralidade e do movimento, compreendendo-

as de modo bem mais amplo do que uma simples demarcação cartográfica

ou geracional. É nesse sentido que ser jovem circunscreve uma dimensão

identitária, experimentada, de forma, peculiar, em processos de negociação

no interior de grupos e/ou “comunidades” onde vivenciam estilos juvenis

contemporâneos: família, escola, espaços do bairro ou do condomínio,

Igrejas, tribos urbanas, redes virtuais. São espaços físicos e virtuais onde

experimentam formas de sociabilidade, jeitos de estar no mundo, valores e

referências. Assim, as trajetórias de meninas que tem experiências em

comum – seja o habitar as “periferias da vida”, seja a prática do homicídio,

seja a vivência da reclusão – revelam percursos singulares marcados por

formas próprias de trânsito e negociação.

A rigor, “retratar trajetórias” é muito mais que “relatar

histórias individuais”. Diante desta afirmação, torna-se oportuno, resgatar a

sinalização crítica de Bourdieu (2006), onde a história de vida é

compreendida como “uma dessas noções do senso comum que entraram

apresentam, num certo nível, a organização tribal, designando pequenos grupos

concretos com ênfase não só em seu tamanho, mas nos elementos que seus

integrantes usam para estabelecer diferenças com o comportamento classificado

como normativo: “os cortes de cabelo e tatuagens de grupos punks, as cabeças

raspadas dos skinheads, a cor da roupa dos darks e assim por diante”. (1999:50).

Para aprofundar melhor essa questão ver: Maffesoli, Michel. O tempo das tribos: o

declínio do individualismo na sociedade de massa, Rio de Janeiro, 1987.

Page 129: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

129

como „contrabando‟ no universo científico; inicialmente, sem muito alarde,

entre os etnólogos, depois, mais recentemente, com estardalhaço, entre os

sociólogos”. (Idem, 2006:183). Assim, enfatiza este formulador que a vida

de um sujeito não está separada do conjunto dos acontecimentos de sua

existência, demarcando uma perspectiva diferenciada de trajetória,

entendida como uma série de posições ocupadas sucessivamente por um

mesmo sujeito ou um mesmo grupo, estando ele próprio ou o grupo sujeito

a transformações. Inspirada nessa noção de trajetória “bourdieuniana” foi

possível perceber os limites e romper com a visão de “história de vida”

como “série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem

outro vínculo se não a associação a um sujeito cuja constância certamente

não é senão aquela de um nome próprio... (Idem, 2006: 189).

Sob a inspiração de Bourdieu, tais demarcações conceituais

levaram-me a assumir o desafio de trabalhar trajetórias, dando

conseqüência metodológica a esta opção analítica, através da construção de

retratos sociológicos33

de seis personagens, meninas envolvidas na prática

de homicídio 34

. Nestas trajetórias, circunscrevo, mais especificamente, o

desenrolar dos fatos vividos por cada adolescente: as lembranças da

infância, da escola, dos amigos, a sociabilidade dos grupos e “tribos” a que

pertencem, bem como as situações e acontecimentos

33

A idéia de construir retratos sociológicos, como procedimento metodológico, não

se configura como simples reconstrução histórica, ou seja, do passado vivido por

meninas em conflito com a lei. Assumo, aqui, os retratos sociológicos como via

investigativa inovadora, consubstanciada nos procedimentos propostos pelo autor

Bernard Lahire, enquanto instrumento de compreensão de um suposto ethos. Desse

modo, a metáfora do “social em estado dobrado ou desdobrado”, utilizada por

Bernard Lahire (2002), pode explicar minha escolha por tal procedimento. Vide

Lahire, Bernard. Retratos Sociológicos: Disposições e Variações Individuais,

Artmed Editora S.A, 2002. 34

Os dados apresentados referem-se ao momento da investigação: final de 2007 e

2008 (com as jovens ainda no internato), 2009 (com a maioria das jovens já

desligadas do internato).

Page 130: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

130

“desestabilizadores/perturbadores” 35

de suas identidades e trajetórias. Cabe

assinalar que, detalharei aqui, apenas o retrato sociológico da jovem

D.P.D.L (17 anos). As demais trajetórias serão apresentadas de forma

resumida nesta parte introdutória do artigo. Portanto, segue abaixo um

resumo de cada retrato pintado, ao longo da tessitura desta investigação.

1. D.F.S., 17 anos, oriunda do município de

Majorlândia/Aracati, onde então residia com a mãe e irmãos. Foi

encaminhada ao internato na condição de primária, sendo sentenciada,

posteriormente, pela prática de homicídio. Envolveu-se na prática de um

homicídio no exercício da “prostituição”. Foi testemunha do assassinato do

“parceiro” pelo “suposto intermediador do “ato prostituinte”, assumindo,

posteriormente, o crime sob ameaças, conforme narrou a adolescente: “O

homicídio aconteceu por causa de uma dívida de prostituição. Eu saí com

um gringo, „filho da p...‟ E ele não quis pagar. Aí contei prá um amigo

nosso lá de Aracati 36

, na mesma hora, ele resolveu cobrar o “furo” (gíria

referente a descontar, cobrar, tomar satisfação). Só sei que sobrou prá

mim. Não matei ninguém e vim parar aqui. Apenas vi quem matou. “Ele

esfaqueou o cara com facadas no pescoço, umas três facadas...”

35

Segundo Hall (2000), “precisamos vincular a discussão sobre identidade a todos

aqueles processos e práticas que têm perturbado o caráter relativamente

“estabelecido” de muitas populações e culturas: os processos de globalização, os

quais, eu argumentaria coincidem com a modernidade. (HALL, 1996), e os

processos de globalização forçada (ou livre) que têm se tronado um fenômeno

global do assim chamado mundo pós-colonial” (2000: 108). Inspirada em Hall

percebo as “práticas perturbadoras” como um “momento desestabilizador” nas

rotas das minhas personagens. De fato, nas narrativas das meninas envolvidas na

prática de homicídio, identifico situações e acontecimentos que desestabilizam seus

percursos, levando-as a redefinições: a morte da mãe, o uso de drogas, o

envolvimento afetivo com um namorado traficante, a mudança para um bairro

periférico, enfim. Para aprofundamento, ver: Hall, Stuart. Quem precisa da

identidade? In: Silva, Tomaz Tadeu (org.), Identidade e diferença: a perspectiva

dos Estudos Culturais, 2004, Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 2000. 36

A jovem não revela qual a participação desse amigo na prática de prostituição

em Aracati, um suposto “cafetão”? Refleti comigo mesma.

Page 131: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

131

2. D.P.D.L., 17 anos, provinda do município de Iguatu, onde

reside com a família: mãe, irmãos e avós. Foi encaminhada ao internato por

descumprimento da medida de semiliberdade em seu município, sendo

sentenciada, posteriormente, pela co- autoria de um homicídio. A trama do

homicídio descrito pela jovem parece configurar um “ato de rivalidade e

disputa afetiva”. De acordo com a adolescente, o ato cometido desencadeia-

se a partir de uma série de mudanças em sua vida: dificuldades financeiras e

familiares, deslocamento para um bairro periférico de Iguatu, envolvimento

com drogas e a relação afetiva com um novo namorado, suposto motivo da

disputa afetiva. Nesta disputa, a adolescente, após sair ferida em uma briga

com a ex-namorada do jovem, resolveu se vingar, impulsionada por uma

amiga e o próprio namorado, que lhe empresta a arma do ato de morte.

Sobre este homicídio, D.P.D.L. sustenta a versão contida nos autos

processuais, afirmando que não atirou na vítima: “como eu estava com a

mão cortada da briga anterior, eu não conseguia atirar..., minha amiga

que me acompanhava atirou por mim. “Eu queria só dar um susto na

menina, tipo atirar no pé, ou coisa assim, prá ela não tentar me matar de

novo, mas ela acabou morrendo”.

3. M.F.A., 17 anos: nascida em Fortaleza, no bairro Genibaú.

Segundo a adolescente, seu envolvimento na prática do homicídio inicia-se

com a morte da mãe, com câncer de mama e, posteriormente, a experiência

de uso de drogas. Em suas narrativas, afirma que matou a vítima por que

esta reagiu ao assalto. “Era ele ou eu. Engraçado que aconteceu em um dia

que eu não esta chapada, drogada, nada, nada... No assalto ele veio bater

em mim, tentou me estrangular. Eu tinha de matar mesmo. Fui roubar prá

usar droga... não me arrependo não”.

4. M.J.V.A, 16 anos: é oriunda do município de Crateús,

porém, há algum tempo habita os espaços da cidade de Fortaleza, seja em

Page 132: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

132

abrigos públicos ou nas ruas da capital, exercendo a prática da prostituição

e cometendo furtos. Sua irmã mais velha mora em um prostíbulo na cidade

de Crateús, tendo dois irmãos que, também, cumprem sentença de privação

de liberdade. Sobre o “ato infracional cometido, a jovem afirma que, não

sabia o que seu companheiro e seu grupo planejavam: “Meu namorado

pediu prá mim chamar a menina, prá gente, todo mundo ir tomar banho no

rio. Tudo parecia uma diversão, uma brincadeira entre casais. Eles

disseram prá mim que ela tinha aceitado ir. Mas, chegando no rio, o colega

do meu namorado tentou fazer sexo com a menina, aí ela não quis, mas já

era tarde, ou ela fazia ou morria. Foi um estupro e depois eles mataram

ela. Eu vi tudo”.

5. B.J.F.N., 16 anos: É nascida em Fortaleza, no bairro Bom

Jardim, onde reside com a avó e 04 irmãos. Afirmou que, após a morte de

sua mãe, passou a usar drogas e a perambular pelas ruas de Fortaleza,

cometendo roubos e assaltos com um grupo formado. Reincidente no

internato, a jovem cumpre sentença por vários atos infracionais: lesões

corporais, assaltos, porte de arma, roubos e tentativa de homicídio. Sobre a

tentativa de homicídio praticada, B.J.F.N. afirmou: “Eu fui pra uma festa

com amigos e depois de todo mundo louco, roubamos dois carros,

seqüestramos o dono de uma loja e trocamos tiros com a polícia. Depois

com os pneus todos furados nos entregamos. Não tinha mais nada a fazer.

Estávamos feridos e com o carro “no prego”.

6. A.L.S.V., 14 anos: É nascida em Fortaleza, no bairro do

Carlito Pamplona, onde reside com a avó e tios. Possui três irmãos

maternos, os quais residem com sua mãe no bairro Pirambú. A família é

natural de Manaus e migrou para Fortaleza quando a jovem possuía apenas

06 anos de idade. Seu envolvimento infracional envolve uma trama de

rivalidade e disputa afetiva. Na narrativa da jovem, a trama do ato

Page 133: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

133

cometido: “Ela me acusou de ter roubado o celular dela, mas eu sei que

ela queria era confusão, por causa do ex-namorado dela, que eu tava com

ele. Eu pensei assim: „diabo é isso, o que essa doida quer‟? Se fosse prá

disputar na mão, eu até tinha ido, né? Eu tava no reggae e chegaram

dizendo que ela ia me matar... Eu tava de cara limpa, só com cigarro, aí eu

pensei assim: quer saber... prá evitar confusão, eu vou embora. Mas, aí,

quando eu vou andando, lá vem ela com a faca. Aí eu disse: ei mulher,

solta essa faca aí, vamos se esbagaçar nós duas aqui na mão mesmo... Foi

na ora que ela veio prá cima de mim, aí eu segurei na mão dela, tomei a

faca dela e saí metendo nela... Eu não tinha certeza se queria matar ela

não, mas eu não podia parar prá ficar olhando prá faca, o jeito que a faca

era, de que cor era e tal. Eu só fiz tomar e meti nela de todo jeito... Eu

puxei a faca e saí furando ela.

Ao focar as minhas lentes nestas trajetórias, percebo que meu

desafio na construção dos retratos, é compreender os caminhos percorridos

por estas protagonistas, como expressão de negociações com rotas e

percurso trilhados, encarnando um jeito de viver, ou melhor, de

experimentar a vida, com dimensões conscientes e inconscientes a se

hibridizarem.

Ao longo das tessituras dos retratos, iluminou-me a convicção

teórico-metodológica de que o esforço desta construção ia muito além das

habilidades de convencer as meninas a narrar a prática do homicídio, como

marcador essencial de suas vidas. Na verdade, meu esforço foi recompor

caminhos, andanças destas personagens, em diferentes espaços e

momentos, em meio as encruzilhadas das tramas do que é designado,

institucionalmente, como delinqüência.

Page 134: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

134

1. D.P.D.L: A Participação num Jogo de Disputas, Rivalidade e

Morte.

Cheguei cedo ao internato e entrei juntamente com os técnicos

do plantão naquele dia. Encontrei D.P.D.L. com os cabelos molhados e um

sorriso de menina que se diverte com a participação na pesquisa.

Apresentando-se como alguém da paz e sem problemas de relacionamento

no internato, a adolescente entrou na sala de atendimento técnico e disse:

Oi, vou participar de uma pesquisa, é isso?

De forma bem espontânea e sem precisar ser convencida a

narrar sua trajetória, D.P.D.L começa a contar sobre o percurso percorrido

até o internato.

Quando eu saí de Iguatu, quando o Juiz resolveu me mandar prá

Fortaleza, chorei tanto... Eu olhava prá minha mãe e dizia: não

deixa mãezinha, não deixa. Mas, ela não podia fazer nada.

Chorava eu, ela e uma amiga dela que tinha ido com a gente.

Mas, o Juiz não voltou atrás. É que ele já tinha me dado outra

chance e me deixou na semiliberdade em Iguatu mesmo, mas eu

fugi. Dessa vez, ele não teve pena. Ele disse prá minha mãe que,

dessa vez, eu tinha me envolvido numa coisa grave, além do mais

tinha fugido...

Assim, a jovem vai construindo narrativas sobre o seu

município de origem, a saudade da família e o ato infracional cometido.

Segundo D.P.D.L, sempre recebeu apoio de sua família, mesmo após o

envolvimento com homicídio. “A minha mãe nunca demonstrou

preferência por este ou aquele filho, ela trata todo mundo da mesma forma,

por isso me sinto como a filha caçula problemática”.

Na narrativa acima, é perceptível a assimilação de uma

imagem construída pela família. Essa auto-imagem de “filha caçula

Page 135: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

135

problemática” parece apontar para uma forma de representação exterior,

onde o olhar do outro repercute na representação de nós mesmos. Assim, os

discursos construídos por outros sujeitos construiriam, também, os lugares a

partir dos quais os indivíduos podem se posicionar. Cabe aqui refletir: Em

sua trajetória, estaria D.P.D.L a se posicionar como a “filha caçula

problemática”? Que influência teria a imagem da

“filha/caçula/problemática” em sua trajetória de vida?

1.1 As lembranças de Iguatu, da família, da escola e dos grupos

de amigos.

Nascida em Iguatu, em uma família composta de três irmãos,

D.P.D.L guarda em suas lembranças, o apoio da família e o carinho da mãe,

durante todo a sua trajetória. Assim, afirma em suas narrativas, que nunca

se sentiu abandonada.

Eu sempre contei com o apoio dos meus irmãos e da minha mãe.

Com meu pai, eu nunca tive proximidade. Ele mora em Santa

Catarina. Quando eu nasci, acho que meus pais já estavam

separados. A figura paterna que eu tenho como pai mesmo é meu

avô. É a ele que a minha mãe recorre nos momentos difíceis.

Minha irmã ainda hoje não acredita como eu me envolvi com

isso. Quando eu era criança, lembro da minha irmã me levando

prá escola, penteando meus cabelos, me ensinando as tarefas da

escola. Quando ela vem me visitar, ela diz D..., por favor se

esforça prá voltar logo prá casa, faz tudo que eles pedirem,

participa de tudo direitinho, estuda, faz as tarefas tá?

Percebe-se nas narrativas desta jovem, o apoio e a participação

da família ao longo de seu percurso, conforme relata a própria adolescente:

“eu sempre contei com o apoio dos meus irmãos e da minha mãe”. É

perceptível, a confluência de imagens distintas, que convergem e

Page 136: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

136

contrastam em um processo de definição identitária: “a menininha caçula,

que a irmã leva prá escola, contrastando com a “adolescente que se

envolveu no homicídio”. Sobre as lembranças da escola, a adolescente

relata:

Eu até bagunçava na escola, mas as professoras gostavam de

mim. Só depois que passei a usar drogas é que resolvi me afastar

da escola. Quando saí da escola passei por um tempo bem difícil.

Comecei a usar drogas. Fui perseguida pela polícia e até senti

falta das orientações da diretora da escola e dos colegas, das

brincadeiras e de alguns professores.

Sempre me considerei estudiosa, sou uma pessoa bacana,

divertida, mas eu tenho um grande defeito, que é o de não aceitar

tudo, nem saber ouvir não. Aqui no internato eu tô tentando

melhorar isso, aqui tem regras que devem ser cumpridas né?

Acredito que algumas brigas e confusões na minha vida

aconteceram por causa disso. Se alguém me faz algo ruim eu

penso logo em descontar, “cobrar o furo” e tal. Costumo dizer

que sou um “saco de vacilo”, tia.

Ao mesmo tempo, em que a jovem se define como uma

“pessoa da paz, “bacana”, “divertida”, ”regular na escola”, “apoiada

pela família”, outras personificações confluem em sua trajetória,

contrastando com estas imagens: “não levo desaforo prá casa”, “sou um

saco de vacilo”, “a filha caçula problemática da família”. A fala de D.F.S.

destaca ainda, sua incapacidade para acatar normas, para aceitar perdas, que

se configura por uma visão positivada, como marca de seu jeito de ser e

estar no mundo, mas, ao mesmo tempo, reconhece que está enveredando

por caminhos perigosos: “tomei decisões erradas e segui caminhos

perigosos. Se pudesse voltar no tempo, eu voltava. Sou teimosa, nunca

soube ouvir as pessoas, nem aceitar “não” como resposta. Sou cabeça

dura e acabei assim...

Page 137: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

137

De fato, nas falas da jovem é recorrente o esforço de

autocrítica, em coadunância a imagens contraditórias de si mesma. Nesta

confluência de imagens, D.P.D.L. aponta o uso de drogas como um

“momento desestabilizador” em sua trajetória. Aqui retomo a perspectiva

de Hall, sobre a necessidade de se vincular o debate em torno das

identidades “a todos aqueles processos e práticas que têm perturbado o

caráter relativamente “estabelecido” de muitas populações e culturas: os

processos de globalização..., os processos de migração forçada (ou livre)

que têm se tornado um fenômeno global do assim chamado mundo pós-

colonial...” (HALL, 2000:108). No meu caso empírico, especificamente, na

trajetória de D.F.S, o “momento desestabilizador” marca a experimentação

e o vício das drogas.

Cabe aqui, atentar para a relação “crime/droga”, como uma

articulação fundante nas rotas destas personagens, sendo uma relação

evidente em todas as trajetórias. Estas adolescentes, ao adentrarem o mundo

do crack, da cocaína, da maconha, passam a negociar com as rotas da

transgressão, vivenciadas, na maioria das vezes, nos grupos e “tribos” a que

pertencem. Sobre isso, define bem D.P.D.L: trata-se de um “jogo”, o “jogo

dos enturmados”. Desse modo, os que ousam adentrar este “território”, sem

conhecer o seu traçado, podem estar penetrando um terreno perigoso.

1.2 O mundo do crack e as rotas da transgressão: “Quero sair e

não consigo”.

Como “momento desestabilizador” de sua trajetória, o uso de

drogas redefine seu modo de ser e estar no mundo. Assim, a adolescente

passa a fazer parte do que designou “jogo dos enturmados”, adentrando em

uma forma específica de sociabilidade. Na relação com estes grupos,

Page 138: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

138

estabelece negociações e acordos próprios desta forma de sociabilidade.

Segundo D.P.D.L, as disputas, no interior desses grupos seguem a lógica da

vingança, nunca da aceitação de uma derrota:

Eu participei do homicídio por ser cabeça dura, me deixar levar

pelos outros. Queria me vingar. Às vezes até a gente acha que

pode aceitar a derrota, a humilhação, deixar pra lá, né? Mas, nos

grupos que eu participo impera a lei do mais forte, vêm sempre

alguém incentivar, aí você vê o poder de quem se dispõe a agir

com coragem, não aceitando ofensas e você vai ficando tentada a

aprender. Você pensa que se não fizer, não vai ser merecedor de

tá ali no meio né (...), que não vai ser considerada e tal, aí a gente

faz mermo (isso é um jogo, o jogo dos enturmados). É como a

droga, é só uma ilusão, ela te ilude e não deixa você perceber que

tá fazendo tudo errado (...). É uma euforia passageira e depois

quem se “lasca” é você, que não sabe mais como sair dela. Eu

comecei a usar crack muito cedo, bem no início da adolescência

eu já fui logo experimentar o crack, nem passei pela maconha

nem nada. E, agora quero sair e não consigo. Assim, também é

com o roubo, o crime, com tudo isso.

Assim, D.P.D.L ressalta sua dificuldade de negociação de

rotas, apontando para um desejo de trilhar um caminho diferente: “E, agora

quero sair e não consigo”. Cabe aqui indagar: qual seria o

“elemento/contexto” deflagrador da entrada de D.P.D.L no chamado

“mundo da drogadição”?

Sobre a dificuldade em negociar novas trajetórias, cabe atentar

para o contexto de insegurança e instabilidade que atinge a juventude na

cena contemporânea. No contexto da “civilização do capital”, os jovens

marcados pela situação de “conflito com a lei”, usuários de drogas e

empobrecidos, passam sérias dificuldades de integração à sociedade. Além

das taxas elevadíssimas de emprego, ainda soma-se a isso a questão do

descrédito. Sobre isso, assinala D.P.D.L: “quem vai me dá emprego”?

“Quem vai acreditar em mim”?

Page 139: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

139

Acerca do ato infracional cometido, a menina relata que não

tinha a intenção de matar e que se pudesse não estaria envolvida neste ato.

E, com um semblante triste, narra o acontecimento: “eu não queria matar

ninguém, eu nem sabia o que estava fazendo, quando a minha amiga se

ofereceu prá atirar eu aceitei. No dia da treta, eu tava tão drogada que ela

me furou, cortou a minha mão de faca e eu nem senti”.

Ao falar sobre o homicídio, revela que se sente prisioneira de

sua própria maneira de viver. Assim, ressalta determinadas prisões que

envolvem as juventudes no interior de “tribos” e grupos juvenis da

atualidade: “Somos prisioneiras de qualquer jeito, dentro ou fora daqui.

Prisioneiras de nós mesmas, reféns de amizades “sacanas”, de amigos e

grupos covardes, das drogas, dos traficantes, da prostituição, da vontade

de ter, de ser diferente, de tudo nessa vida”.

Em verdade, a sociabilidade da tribo, evoca um retorno ao

“tribalismo” e aos valores de grupo que a modernidade julgava enterrados.

Segundo Maffesoli (2000), na sociedade contemporânea o “tribalismo”

pode vir a ser um paradigma fundamental, capaz de substituir o

“individualismo”. Tal percepção fundamenta-se na idéia de que, este

paradigma, está “baseado na necessidade de solidariedade e de proteção

que caracterizam o conjunto social” (idem, 2000:50). Assim, a metáfora da

tribo, utilizada por Maffesoli (1987), evidencia a valorização do papel que

cada pessoa (persona) é chamada a representar dentro da “sociabilidade

tribal”, caracterizada pela fluidez, pelos ajustamentos pontuais e pela

dispersão. Tais papéis, nem sempre são aceitos pacificamente, ou sem

questionamento dentro das tribos. Assim, D.P.D.L descreve as disputas e

vivências na lógica dos “tribalizados”, personagens que encenam o “jogo

dos enturmados”.

Page 140: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

140

Olha não me arrependo não. Na hora, eu nem sei o que tava

fazendo, eu tava tão “chapada”, sei lá... Acho que só fui atrás dela

porque ela me atacou primeiro... Acho que faltou vergonha na

cara dela, respeito, sei lá. Como você pode tentar matar alguém

por causa de um carinha que não te quer? Ela tentou me matar por

causa dele e o carinha me deu foi o revólver prá atirar nela. Ele

queria era ver ela morta. Talvez, um dia ele vá querer me ver

morta também. Depois fiquei pensando nisso. Sou um “saco de

vacilo mesmo”. Acho que nem precisava disso sabe? Ô vida

louca, né? Morrer por causa de um homem.

1.3. O ato do homicídio nas rotas da droga e da disputa por um

“carinha”: “sou um saco de vacilo”.

Ao narrar o ato infracional, D.P.D.L afirma que tudo começou

com a mudança de bairro. “Eu não morava na periferia de Iguatu, residia

numa casa alugada de um bairro bem localizado do município, porém, com

tantas brigas e envolvimentos com a polícia o dono pediu a casa em que a

gente morava”.

Assim, prossegue sua descrição:

Foi horrível..., a gente teve de ir morar em um lugar bem

perigoso. Era onde o dinheiro dava pra pagar, pois o antigo bairro

era barato, o dono era legal, amigo da minha mãe e cobrava

pouco. Só que no bairro novo eu não me adaptei, nunca ficava lá,

sempre à noite eu ia para as minhas antigas áreas e para os

antigos amigos, apesar de ser longe. Quando chega alguém novo

num canto os “gatos” ficam todos querendo vê qual é e tal.

Novidade sabe como é né? Na minha calçada ficava cheia de

carinha, e aí começou a confusão por causa desses caras. Eu que

já não “me batia bem” com umas e outras e tal (gíria referente a

não se dar bem), comecei a ficar marcada. Também fui logo fazer

amizade com os caras, aí as “gata” do pedaço começaram a ficar

com ciúme, começou a ter confusão.

A fala da jovem, ao descrever o “ato infracional”, evidencia as

formas de sociabilidade experimentadas no interior das “tribos”, dando

Page 141: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

141

destaque a imposição de força e a parceria da amiga no momento do

homicídio: “elas me pegaram bem no caminho, era escuro e eu tava

drogada. Elas eram duas. Só sei que elas começaram a me quebrar e me

furaram com um canivete. A minha amiga ficou sem reação. Eu não

consegui atirar, por que minha mão tava cortada. Depois de pensar bem a

minha amiga disse: pois, vamo lá que eu atiro pra tu”.

Ao longo de suas falas, D.P.D.L vai construindo

representações sobre os laços de amizade e os amigos considerados

“verdadeiros”, conforme é perceptível no seguinte trecho: “se eu tivesse em

Iguatu, ia tá me metendo nas brigas. Porque você não vai deixar seus

amigos sozinhos no “fuguete” né? Acredito que Deus me colocou aqui pra

me livrar, me guardar e também me fazer pensar”.

Em sua narrativa, a jovem descreve o “ato infracional”,

demonstrando criticidade sobre o seu próprio contexto e as relações

construídas nas rotas da droga e da disputa afetiva.

Um dia eu e minha amiga fomos lá pras minhas antigas áreas, aí

elas me pegaram bem no caminho, era escuro e eu tava drogada,

elas eram duas e a minha amiga ficou sem reação. Só sei que elas

começaram a me quebrar e me furaram com um canivete. Aí eu

fiquei com ódio, a minha amiga ficou tentando me levar pro

hospital, e eu indignada sem querer ir... Aí eu fui lá nas antigas

áreas, lá num amigo meu, pedir um revólver, ele ficou me

enrolando e disse que o revólver tava sem bala, mas ele não

queria era me dá mesmo. Aí quando foi de manhã, chegou um

cara, eu não chamo esse cara de amigo não, porque amigo mermo

não faz isso que ele fez (os meus amigos mermo não me deram).

Só sei que ele me ofereceu a arma, dizendo assim: E, aí tem

coragem? Se garante? Era o dito “carinha” que a gata tava com

ciúme dele. Aí eu disse eu quero. Mas, eu não consegui atirar,

porque minha mão tava cortada, pois na hora eu me defendi com

a mão. A minha amiga que tava comigo na hora ficou sem ação,

porque se fosse duas contra duas até dava certo, mas ela ficou

paralisada, aí depois ficou se culpando: “égua, minha irmã eu

não fiz nada na hora”. Depois de pensar bem a minha amiga

Page 142: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

142

disse: pois, vamo lá que eu atiro pra tu. Aí eu fui lá na casa dela

(da vítima), chamei e disse: ei minha irmã, tu me quebrou ontem,

na covardia né? Ela ainda disse assim: Porque a tua amiga não

entrou na treta? Aí eu me afastei um pouco e disse: Olha aí fulana

ela queria que tu entrasse na história. Aí minha amiga deu o

primeiro tiro. Ela caiu assim, e eu fiquei dizendo dá outro..., dá

outro, mas a minha amiga disse não “cara”, não vou atirar mais

não, aí a gente saiu fora. O tiro pegou na barriga dela e diz o povo

que ela tava grávida de 03 meses. Depois a gente ficou sabendo

que ela tava grávida mermo. Aí eu pensei: ele só me emprestou a

arma por que queria ver ela morta. Um dia vai querer me ver

morta também.

Em suas narrativas, é evidente a percepção de estar

vivenciando um “jogo perigoso”, circunscrito no limiar entre a vida e a

morte. A referência ao risco e a eminência de morte é perceptível no

seguinte trecho: “O tiro pegou na barriga dela (refere-se a vítima) e, diz o

povo, que ela tava grávida de 03 meses. Depois a gente ficou sabendo que

ela tava grávida mermo. Aí eu pensei: ele me emprestou a arma por que

queria ver ela morta. Um dia vai querer me ver morta também”. Sobre esta

percepção, articulam-se outras narrativas:

Como você pode tentar matar alguém por causa de um carinha

que não te quer? Ela tentou me matar por causa dele e o carinha

me deu foi o revólver prá atirar nela. Ele queria era ver ela morta.

Talvez, um dia ele vá querer me ver morta também. Depois fiquei

pensando nisso. Sou um “saco de vacilo mesmo”. Acho que nem

precisava disso sabe? Ô vida louca, né? Morrer por causa de um

homem.

Bem que a minha mãe falou: D..., se afasta dele. Ele não presta

prá você. Vai acabar te metendo em algo perigoso. Se lembre que

vida, você só tem uma, se você morrer, não vai ter uma segunda

chance não, como acontece no Juizado. O Juiz dá uma segunda

chance, ele pode, mas a morte não...

Assim, D.P.D.L chama atenção para o “jogo do carinha” no

interior da trama de morte. Em minhas reflexões, fiquei a questionar: O

Page 143: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

143

homicídio cometido faria parte de um plano para livrá-lo da

responsabilidade paterna? Nas palavras de D.P.D.L, também, pairava a

mesma dúvida: “depois a gente ficou sabendo que ela tava grávida mermo.

Aí eu pensei: será se ele só me emprestou a arma por que queria ver ela

morta?Então, um dia vai querer me ver morta também...

Sobre o medo da morte, a jovem, assim, prossegue sua

narrativa:

Eu não vou mentir, eu tenho medo de morrer cedo. Parece que a

gente sempre fica entre uma vontade de sair dessa vida e o medo

de não conseguir e morrer antes. Cara é uma vida de doido lá

fora. As meninas que deixam de pelo menos cometer furtos é

porque estão sendo protegidas por traficantes ou com algum

gringo. Eu já vi meninas sair daqui e morrer na mão dos

traficantes, e vi outras que vem pra cá e sai pior, revoltada, com

ódio, pois já colocam na cabeça que “cumprir internação, é

cumprir cadeia”. Querem ser “fodona” e tal. Eu não penso assim

não, isso não tem nada a ver. Cara oh, também já vi meninas que

saíram do internato e nunca mais se envolveram com nada. Se

Deus quiser eu vou ser assim. Nunca mais vou voltar aqui.

A facilidade da jovem para narrar os fatos impressionou-me

desde o início. Diferenciando-se das demais neste aspecto, a jovem, não se

comunica de forma monossilábica e nem se expressa através de pausas

longas e frases curtas. Sobre o ato infracional cometido, descreve com certa

criticidade.

Quando a gente ia chegando lá em casa, a minha mãe vinha

voltando do trabalho. Eu disse pra minha mãe: a gente vai sair

fora, por que a gente deu um tiro numa pessoa ali e tal. A minha

mãe ficou doida, chorando. A gente fugiu, ficamos escondidas

num sitio, mas, nessa época eu era tão viciada em droga que

decidi sair de lá, e tava tudo muito calmo sabe? Resolvi sair do

sítio... Aí ficamo sabendo que ela tava no hospital entre a vida e a

morte, aí minha amiga resolveu ir pra casa, nós só andava junto,

pregada. Quando eu fui pra minha avó eu fiquei sabendo que a

Page 144: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

144

“desgraçada” tinha morrido. Aí eu saí desesperada pra casa da

minha amiga pra gente fugir de novo, mas, aí quando eu cheguei

lá eu soube que ela já tinha sido presa. Aí eu fui esperar em casa e

resolvi não mais fugir, porque eu que tinha inventado a parada

toda né? Tinha metido ela nesse “fuguete”. Aí os homens

(polícia) passaram lá em casa e me levaram, foi isso que

aconteceu.

1.4. A Justiça sob o olhar de quem recebeu e vivenciou a sentença:

“Tive a segunda chance e desperdicei”.

A representação de D.P.D.L acerca da justiça e dos agentes

institucionais é algo marcante em suas narrativas. Segundo a jovem, a

Justiça só apresenta seu poder, quando sentencia: “enquanto o Juiz me

aconselhava, me dando chance prá ficar com a minha família, ou perto da

minha família eu não levava sério... Somente quando me mandaram prá

Fortaleza, longe da minha família, eu pirei, chorei e vi que o negócio tava

ficando sério. Não dava mais prá convencer o Juiz”.

E continua a jovem em sua narrativa:

Eu tive a minha chance, mas desperdicei. Foi assim: o juiz lá de

Iguatu se convenceu a me dar uma chance, porque eu era

primária, ele falou assim: D.P.D.L, vamos fazer o seguinte: O que

você fez foi muito grave, mas eu vou lhe dar outra chance, já que

você tá colaborando com a justiça. Eu não vou lhe encaminhar

para a FEBEMCE (refere-se ao internato, extinta Fundação do

Bem-Estar do menor em Fortaleza), eu vou lhe deixar aqui no

município mesmo em semiliberdade. Aí eu fiquei em Iguatu

cumprindo sentença de semiliberdade, mas parece que a pessoa

não valoriza a chance dada, parece que ela não foi castigada né?

Aí não valorizei, pois pra mim funciona assim.

E deixa claro as representações do castigo:

A verdade, é que o meu castigo, o juiz não sabia ainda, mas era

exatamente ficar longe da minha mãe, da minha família. Só sei

que eu tava lá em Iguatu, cumprindo semiliberdade numa boa, aí

Page 145: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

145

fui discutir com o diretor do abrigo, porque ele me deixou

recolhida no final de semana e disse que eu não ia sair. Lá em

Iguatu não é como aqui, que a semiliberdade pode sair todo dia,

lá só sai de 15 em 15 dias. Aí eu fiquei “injuriada”.

Nesse sentido, cabe sublinhar os vínculos da protagonista com

a família, especialmente, com a mãe. De fato, na trajetória desta

personagem a mãe tem um papel de peso, enquanto referência afetiva, de

orientação e de apoio 37

. O sentido de punição para D.P.D.L

representa a distância familiar e, de modo especial, da mãe, enquanto

castigo real. Assim, a oportunidade de cumprir uma sentença de

semiliberdade em seu próprio município representou uma ausência de

punição, pelo fato de não distanciá-la da mãe e dos familiares. Desse modo,

a menina descumpre a medida imposta pelo Juiz, desconsiderando tal

decisão judicial, fugindo em seguida, da unidade de semiliberdade de seu

município38

, permanecendo um ano em liberdade.

Em seus relatos, D.P.D.L destaca as estratégias de fuga,

sublinhando sua astúcia, e os limites e falhas da própria Justiça, como

instrumento de aplicação da sentença, enfocando a precariedade e

desorganização de funcionamento desta Justiça.

37

É importante registrar, como via de investigação, a posição da mãe nas trajetórias

de jovens envolvidos nas rotas da droga, de transgressão e do crime. De fato, a mãe

acompanha, sofre, apóia o “filho” ou a “filha” para além dos envolvimentos e atos

cometidos. No caso das personagens em estudo, a mãe é presença e referência

constante nas narrativas da maioria das personagens e em duas trajetórias (M.F.A e

B.J.F.N), a perda pela morte da mãe é apontada como “elemento desestabilizador”

de percursos. 38

Unidade de Semiliberdade Regional de Iguatu é uma Instituição voltada ao

atendimento de adolescentes em situação de conflito com a lei. Sua meta é atender

25 adolescentes, sendo 20 adolescentes masculinos e 05 femininos, Através de

parcerias com a Prefeitura Municipal de Iguatu e outras instituições como o SESC,

Instituto Elo Amigo, CAIC (Centro de Atenção Integrada a Criança) e outros.

Através das parcerias, a Instituição realiza várias oficinas como: produção de papel

reciclado, marcenaria, padaria e uma cozinha para produção de doces e bolos

caseiros.

Page 146: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

146

Tava eu e uma amiga minha, aí eu disse: “vixe! Minha irmã, taí

que eu não vou ficar aqui não. Eu perguntei pra minha amiga: vai

sujar pra tu? E ela disse: vai sujar pra mim não, é pra tu que vai

sujar, tu tá recolhida doida. Ora, o final de semana sem sair não

dá pra mim não, aí ela disse: vamo fugir? Aí eu pulei o muro na

troca dos plantões e “peguei o beco” (gíria referente à fuga),

passei quase um ano na liberdade. Olha aí como a justiça é falha,

eu só fui presa de novo porque encontraram um bocado de

“parada” lá em casa, sabe? Era um bocado de droga e roubo e tal.

Aí fui encaminhada pro Juizado, chegando lá eles perguntaram:

você tá quites com a Justiça? Já cumpriu a sentença toda? E eu

disse: paguei, sim senhor! Só que na maior mentira né? Só sei que

não encontraram nenhum mandato contra mim, não tinha nada lá

nos computadores. Aí eu fiquei só cinco dias lá e aí eles me

liberaram. Um monte de processo tudo arquivado, eles nem

sabem mais quem deve ou quem já cumpriu. (risos).

Em suas narrativas, a jovem destaca algumas limitações

referentes ao trabalho da Justiça. Segundo ela é possível convencer o juiz

durante a audiência, pelo simples fato de que na hora do depoimento, na

maioria das vezes, não é feita a junção dos processos espalhados pelas

varas. Assim, não são encontrados nos arquivos da Justiça todos os

processos em trânsito nas Varas da Infância e da Juventude. Diante dessa

dificuldade, o juiz, muitas vezes, libera a adolescente por julgar um

processo antigo, cujo ato infracional, considerado de menor gravidade, já se

extinguiu. Somente, após juntar todos os processos, a Justiça expede um

Mandato de Busca e Apreensão, tendo em vista apreender a adolescente e

encaminhá-la para o cumprimento de sentença, conforme decisão judicial.

Assim narra a sua “saga” com a Justiça, que culmina com o

seu encaminhamento para Fortaleza.

Após a minha apreensão e liberação, porque não acharam nada

meu no arquivo, parece que eles foram procurar direito. Aí foi

“mó paia” (gíria referente à fuleiro, ruim), porque só passei uma

semana em liberdade, aí chegou os agentes do Juizado atrás de

Page 147: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

147

mim. Chegou um tal de mandado de busca, um pouco atrasado,

mas chegou (risos). Aí eu pensei que ia ganhar uma segunda

chance, porque alguns amigos meus foram para o Juizado duas

vezes e conseguiram ficar em seu próprio município, aí eu pensei:

não, tá tudo bem, é aquele juiz legal, ele vai me dar outra chance.

Só que dessa vez o Juiz não perdoou. Eu fui pro juizado. Chegou

lá a minha mãe já tava. Ela chegou do trabalho e foi pra lá, aí o

Juiz perguntou: Por que você sabendo que não tinha cumprido

toda a medida disse que estava quite? E eu disse: eu me

apresentei só que não constava nada contra mim aqui e a

promotora tava de férias. Ele perguntou: porque você fugiu da

semiliberdade? Eu disse: porque eu não queria ficar longe da

minha mãe e porque eu tava com medo de ir pra FEBEMCE de

Fortaleza. Aí ele disse: pois é pra lá que você vai. Eu comecei a

chorar dizendo: “ô mãe não deixa não, mãe”. Só faltei me

ajoelhar nos pés do juiz. A minha mãe disse minha filha o que eu

posso fazer. Aí eu fui pra delegacia e aí vim pra cá.

Esta narrativa de D.P.D.L mostra a sua astúcia na relação com

a própria Justiça, tentando uma negociação com a própria situação

vivenciada. E, mais uma vez fica em realce a figura da mãe e a sua súplica,

desesperada, no sentido de que ela impedisse a temida vinda para Fortaleza.

Cabe aqui uma reflexão: Quais as representações das jovens consideradas

em “conflito com a lei” sobre a Instituição que, segundo a caracterização do

E.C.A, deverá ser socioeducativa? No meu entendimento, este é um aspecto

claro em quase todos os retratos. De fato, o medo de ser encaminhada para

o internato de Fortaleza e ficar longe da família, especificamente, da mãe, é

um sentimento recorrente nos relatos de meninas encaminhadas do interior

do Estado.

1.5. A “viagem da volta”: o desligamento do internato e o

retorno para casa.

A “viagem da volta”, para as minhas protagonistas, parecia

seguir a mesma temporalidade. Agora, já eram duas meninas desligadas da

Instituição. Com as autorizações de desligamento percebi que, diante de

Page 148: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

148

mim, se abria uma estrada. No caso de D.P.D.L, os rastros e pegadas

deixados, guiavam-me a outro município. O tão comentado Iguatu,

município de origem da adolescente. Em seu relato, a saudade do lugar de

nascimento:

Bom mesmo é o lugar onde você nasce, entende? A sua gente,

seu povo. Eu amo Iguatu. Eu não gosto e nem nunca vou gostar

de Fortaleza. Essa cidade é de loucos. Mas, graças a Deus já tô

voltando para Iguatu. Lá eu tenho amigos e pessoas que, apesar

de tudo, gostam de mim. Gostam de mim como eu sou e tentam

me ajudar. Lá eu tenho a minha família acima de tudo.

O desligamento da jovem apontava a necessidade de ir além

dos limites de Fortaleza. Assim, tomei a decisão de ir a Iguatu 39

,

convencida pelo entendimento de que, o retrato sociológico de D.P.D.L,

ainda faltavam cores, tintas, matizes. Desse modo, pude refletir sobre as

formas e estratégias para sua composição, após o internato.

Sobre sua despedida do Aldaci Barbosa, infelizmente, não tive

oportunidade de presenciá-la, pois não compareci ao internato no dia de seu

desligamento. Após sua partida, passei a refletir: logo os documentos e

prontuários de D.P.D.L serão arquivados. Assim, tratei rapidamente de

anotar o endereço e o telefone de contato da jovem.

Uma semana após o desligamento da adolescente entrei em

contato por telefone com a adolescente, negociando um novo encontro. A

adolescente mostrou-se disposta a dar continuidade ao processo de

39

Iguatu em minhas lembranças é um lugar familiar. Ministrei vários cursos neste

município, durante os anos de 2004, 2005 e, mais recentemente, em 2009. Na

época, encarnava a personagem de professora nômade, que percorre os caminhos

do sertão cearense, em tempos de dura sobrevivência. De “mochila nas costas”, um

pouco caixeiro viajante, negociava com as rotas da instabilidade, vendendo pacotes

de saberes para as cidades do interior cearense, em um contexto “desestabilizador”

de papeis, profissões, vidas e paisagens.

Page 149: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

149

entrevista, afirmando que seria melhor nos encontrarmos em um final de

semana. Assim, relatou sobre o seu atual momento de vida:

É que eu tô em Liberdade Assistida aqui e me encheram de

atividades (risos). Voltei a estudar e tô continuando o supletivo.

Também tô fazendo um curso de computação, no Núcleo de

Inclusão Digital daqui de Iguatu. Olha, se você vier mesmo, pode

ficar hospedada aqui na minha casa. “A casa é pobre, mas é

limpinha” (risos).

Como assistente social e militante de uma causa político-

profissional, materializada na defesa de crianças e adolescentes, não pude

esconder meu contentamento e emoção, ao saber do atual momento vivido

por D.P.D.L. Sobre o convite para ficar hospedada em sua residência,

agradeci e justifiquei minha recusa, afirmando que já havia combinado com

alguns amigos de Iguatu os detalhes da minha hospedagem. Assim, marquei

a data do nosso encontro, para além dos limites institucionais.

1.6. Nosso encontro em Iguatu: em meus pensamentos a

descrição de D.P.D.L sobre Fortaleza, uma “cidade de

loucos”.

Recordando a descrição feita por D.P.D.L sobre Fortaleza –

“uma cidade de loucos” – desembarquei no terminal rodoviário com

destino á Iguatu. Exercitando o olhar “do estrangeiro”, efetivamente, tive

uma sensação de desorientação, ao observar certos detalhes da Capital do

Ceará.

Dentro do ônibus azul, como seus vidros escuros, janelas

fechadas, poltronas confortáveis, os roncos de pneus pareciam convidar-me

a uma viagem “além fronteiras”, ou no próprio tempo. Para trás ficava

Fortaleza. Assim, refletia sobre a trajetória de D.P.D.L e olhava a cidade de

Page 150: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

150

Fortaleza. Sentia a vertigem do começo de uma aventura, a luta incansável

do pesquisador que se desloca para investigar outros mundos e o desejo -

sempre recomeçado - de chegar a algum lugar, a alguma nova descoberta

acerca dos personagens de sua investigação. Desejos contraditórios,

multiformes, gestos e pequenos detalhes quase invisíveis.

Ainda na estrada, vejo de dentro do ônibus um senhor sentado

em sua cadeira de roda em pleno semáforo da Av. Pontes Vieira, na esquina

de uma transversal onde se encontra a Igreja de Fátima, local de romarias

que se agitam com suas novenas, terços e devotos. Uma esmolinha, pelo

amor de Deus! – suplica o pedinte. O olhar desinteressado da jovem

senhora, trancada no seu carro com ar condicionado, evidencia uma

fronteira que o separa do mundo visível. Tal invisibilidade, também, marca

as trajetórias das meninas envolvidas na prática de homicídio, e de tantos

outros meninos que disputam fregueses com seus rodos de água e as moças

que entregam papéis de propaganda anunciando novas ofertas, novos

empreendimentos imobiliários, um novo restaurante, uma negociação

qualquer. O sinal se fecha. Para muitos, este é um momento de quase

meditação, onde cada um parece habitar um universo diferente. Os olhares

até se cruzam numa sedução complexa, onde negociam forçosamente. Mas,

visto de outro ângulo, este é também um momento de mobilização de

corpos e outros tipos de olhares que negociam entre si, de outros interesses

que compõem uma coreografia. Meninas e meninos que roubam e até

matam, “homens-máquinas”, “homens-rodos”, homens – mulheres - seus

papéis e propagandas, homens pedintes, esmoleres. São esses e outros

personagens que desfilam no asfalto. Parece um desfile mambembe naquela

manhã de sábado. O instante condensa-se nesses intensos agenciamentos

multiformes e efêmeros.

Page 151: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

151

Quando me aproximo da rodoviária de Iguatu, percebo sua

forma arquitetônica fria de cimento e penso em seguida: aqui começam e

recomeçam os rituais de chegadas e partidas. É daqui que vejo Iguatu nesse

dia de deslocamento. A cidade tem ares de metrópole e sertão, com sua

Igreja matriz e suas rezas, com seus cavalos cruzando as ruas, seus

pedintes, enfim.

De repente, minha visão se desloca para as redondezas dos

galpões da rodoviária e vejo meninas, crianças e adolescentes que não se

sabe de onde vem. Estão envolvidos numa negociação permanente em

busca de um trocado, mapeando os aglomerados de transeuntes e seus

territórios, que conhecem como a palma da mão, pois convivem

freqüentemente ali. Assim, volto a refletir: o que representa a cidade de

Fortaleza vista a partir de seus olhares? Uma “cidade de loucos”, como

referiu D.P.D.L.? Um espaço de sobrevivência? Um espaço de liberdade?

Meus pensamentos se deslocam para as protagonistas deste

estudo, em busca de conhecer suas representações. Assim, descubro que no

nomadismo do cartógrafo, viaja-se também pela lembrança de outros

personagens, de outros tempos e de outros registros que invadem a

memória. De fato, a realidade em que eu estava imersa parecia virtual, cujas

faces se misturavam, numa confluência de imagens. O sertão parecia agora

com a dura realidade negada que visualizei em Fortaleza, cujos dramas

juvenis: drogas, crack, cocaína, violência, transgressão, que estão

permeando a vida das cidades – o espaço urbano – se desloca para os

municípios do interior. No tempo presente, o drama juvenil vivenciado nas

periferias de Fortaleza, também é vivido pelos moradores das periferias de

Iguatu.

Minha viagem prossegue, só que não mais dentro do ônibus.

Assim, chego ao local de hospedagem, todavia, sem perceber que estava

Page 152: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

152

diante de outro desafio. Ao solicitar informação sobre o bairro onde mora

D.P.D.L, descubro as dificuldades de acesso para chegar até lá. A aventura

continua, agora em busca de um moto-táxi que me levaria até a residência

da adolescente, aproximadamente uns 12 km do local onde estava

hospedada.

Ao chegar á residência de D.P.D.L fui recebida por sua mãe,

que informou sobre onde estava a adolescente, demonstrando alegria ao me

encontrar. Esta foi a primeira fala da mãe de D.P.D.L: “menina, eu não

acredito..., não é que você veio mesmo. Vou chamar a D..., ela tá ali, na

vizinha”. De repente, alguém tapa meus olhos com as palmas das mãos e

afirma: “adivinha quem é?”

Ao encontrar D.P.D.L, observei que a menina tinha ganho um

pouco mais de peso, estava bronzeada e vestia um vestido. Nunca a vi com

essa aparência antes. Em seu rosto, o mesmo sorriso habitual. Em sua

residência, a conversa toma um rumo descontraído, com direito a suco de

caju e biscoitos. Neste momento, D.P.D.L fala da sua trajetória em

liberdade:

Tô me esforçando para terminar o supletivo, tô fazendo um curso

de computação e já recebi uma proposta, de uma amiga da minha

mãe, que montou um mercadinho. Vou trabalhar com ela, graças

a Deus. Acho que vou começar a trabalhar próxima semana”.

Não quero mais viver sob suspeita, entende? Sendo perseguida e

com as pessoas me olhando de lado. Sua família já não acredita

em você. E você fica numa roda viva, como sair disso? Tem

meninas que já não querem mais sair mesmo, não acreditam que

podem mais retornar, tomar outro rumo na vida. Talvez, o

caminho que faz voltar, seja muito longo e doloroso, aí o jeito é

permanecer na merda mesmo. Eu ainda acredito que é preciso

retornar, vou continuar acreditando... Não sou bandida, não serei

bandida, digo isso todo dia prá mim. Estou preocupada, falta um

ano só pra completar 18 anos, preciso conseguir um emprego,

mudar minha vida. Acho que o bandido mesmo não tá

Page 153: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

153

preocupado com isso, quer continuar roubando, traficando,

matando... Mas, eu tô preocupada sim.

Em suas palavras, fica evidente o desejo de mudar, de “tornar-

se”. Tal desejo materializa-se na afirmação de que, as negociações com a

rota do crime, chegaram ao fim. Sobre o tempo de privação de liberdade e

“conflito com a lei”, assinala D.P.D.L:

Olha, sobre o internato, eu posso até lembrar e falar sobre isso.

Mas, acho que desse tempo, vão ficar apenas algumas

lembranças. Acredito que não voltarei a fazer essas coisas...

Principalmente agora que eu já to quase maior de idade. Seria um

desgosto muito grande para minha mãe e meu avô, se eu for parar

lá na delegacia, ou num presídio. Tô querendo é me “aquetar”,

sabe?

Saio da residência da jovem, ainda com a palavra “aquietar”

ressoando em meus ouvidos. Vou me aquietar dizia a jovem. Tornar-se

alguém “aquietada”? Seria esta a busca da adolescente? Sobre isso, pude

refletir que, a busca para se tornar alguém “aquietada”, ou “quieta” parece

contrastar com a representação construída por D.P.D.L sobre a cidade de

Fortaleza, ou seja, uma “cidade de loucos”. Entretanto, também encontrei

em Iguatu um pouco de Fortaleza: suas imagens, suas rotas, os imponentes

edifícios, as formas como se estabelecem as relações sociais no município e

seus serviços. Sobre isso referiu a mãe de D.P.D.L: “aqui pertinho, ali na

casa da esquina mora uma menina que também fez a mesma coisa que a

D.... Mas, a mãe dela conhecia o Juiz e ela nem foi lá prá Fortaleza. Não

cumpriu foi nada”.

O desabafo da mãe da adolescente faz emergir um dos pontos

desta discussão, cuja chave-analítica abre o entendimento de que as

“identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela”

(HALL, 2000:110). Em verdade, o fato de cometer um homicídio na

Page 154: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

154

trajetória de vida destas personagens, nem sempre representa a certeza de

ser sentenciada ou cumprir privação de liberdade. De fato, a marcação dessa

diferença acontece de diversas formas, sendo uma delas a desigualdade e

diferença de classe. Pode-se afirmar, portanto, que as formas de diferença –

tanto simbólica como social – são estabelecidas, ao menos em parte, por

meio de sistemas classificatórios.

De volta ao ponto de partida, ao entrar novamente no ônibus

em companhia de um agente rodoviário que logo fecha as janelas, percebo

o pau-de-arara que trafega ao lado, em coadunância com a miséria marcante

na beira da estrada. A moça que viaja ao meu lado carrega uma pasta. Em

cima do seu colo um jornal de Fortaleza noticiando o assassinato de uma

menina, de 16 anos, idade de duas das minhas protagonistas. O jornal

parece sinalizar as cenas do meu objeto investigativo. A partir das imagens

noticiadas, elaborei algumas reflexões: quem seria o autor ou a autora do

crime relatado em forma de notícia? Que negociações estaria a vivenciar a

jovem assassinada? Qual o seu envolvimento com as rotas do crime e da

transgressão? Estaria vivenciando uma disputa afetiva, tal qual D.P.D.L?

Ou estaria a negociar com as rotas da droga e da prostituição, tal qual

D.F.S? Estas e outras questões provocavam-me a pensar o contexto das

minhas protagonistas, numa busca incessante para decifrar as trajetórias de

jovens marcadas pelo crime e pela privação de liberdade.

CONCLUSÃO

Nos percursos por mim trilhados, a seguir pistas e vias

apontadas nas trajetórias de meninas envolvidas na prática de homicídio,

não consegui demarcar “pontos de partida ou de chegada”... A viagem

destas personagens – com quem convivi durante três anos de trabalho de

campo – passa por trechos inusitados e inseguros, podendo ser subitamente

Page 155: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

155

interrompida, a qualquer momento do trajeto. As passageiras experimentam

negociações extremas, incorporando, na maioria das vezes, imagens e

representações que lhes são construídas por outras pessoas, ao mesmo

tempo, em que vivenciam a privação de liberdade como sentença imposta e

punição judicial. E, assim, nestas andanças ziguezagueantes, vão

construindo suas “posições – de – sujeito”, que são temporárias, em

processos de redefinições identitárias, sempre em aberto... No assumir de

tais posições, as meninas vão incorporando personagens diferenciadas no

jogo das negociações identitárias. São personagens em cenas que vão se

metamorfoseando. Ao tentar fechar o trabalho, tenho a consciência da

incompletude dos retratos construídos. Parece-me que faltaram imagens e

tintas. Os matizes de cores não foram suficientes para registrar a força, a

dureza e a emoção de determinadas cenas.

Ao longo de três anos de trabalho de campo – observando,

analisando documentos, convivendo com as adolescentes, penetrando em

suas vivências e trajetórias – pude perceber, as trocas e negociações

identitárias, vivenciadas ao longo dos percursos trilhados por estas jovens,

antes, durante e depois da experiência no internato. Nesta empreitada,

refutei a idéia de trajetória linear, consubstanciada na compreensão de um

percurso tracejado em linha reta, constituído de início, meio e fim. Nesse

sentido, o desligamento do internato, não é entendido como o fim das rotas

de meninas marcadas pela prática de homicídio, mas, sobretudo, como um

momento peculiar na vida destas personagens a exigir novas negociações.

São meninas que voltam a contextos sócio-afetivos e a convivências em

grupos e “tribos”, onde vivenciam experiências que culminam no homicídio

e sentem a dureza das classificações estigmatitizantes, das representações

atribuídas e precisam negociar em novas rotas.

Page 156: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

156

Dentre os aportes teóricos que movimentei e que me abriram

vias fecundas de compreensão, destaco os conceitos de “trajetória

descontínua” e de “identidade em movimento”, desenvolvidos por Pierre

Bourdieu (2006) e Stuart Hall (2000). E, no esforço de decifrar trajetórias

marcadas pelo ato de matar, precisei estar vigilante – de fato, vigilância

permanente - a negociações identitárias que estas meninas vivenciam ou

vivenciaram com as trilhas de construção de novos sujeitos, moldados aqui

pelo deslocamento, gestados no âmbito da experiência de reclusão no

internato e do desligamento e da volta ao contexto sócio-familiar ou, em

casos extremos, do reencontro com as ruas.

No esforço de entender as trajetórias percorridas por estas

meninas, precisei investigar, não somente aquilo que estas personagens

foram ou são, sobremodo, em que pretendem “tornar-se”, afinal? – É o

“tornar-se” como um enigma em trajetórias marcadas por inseguranças em

cenários de juventudes mergulhadas no “presentismo”.

Ao “pintar” os retratos sociológicos destas seis personagens,

pude identificar convergências e divergências em suas trajetórias, quais

sejam:

1. Nestas trajetórias é perceptível a saudade da infância, da

família e do percurso trilhado antes da negociação com a rota da droga e

dos atos considerados infracionais. De fato, as lembranças da família, da

infância, da escola, dos amigos, do bairro e do município de origem são

recorrentes em todos os retratos sociológicos. Nas lembranças das jovens,

identifico pontos convergentes e contraditórios que confluem entre si.

Assim, a falta de sentido que a escola adquiriu em suas vidas, contrasta com

o desejo de retomar o percurso escolar interrompido, entendendo-o como a

forma valorizada e, de algum modo, viável de ascensão social. Sobre isso,

Page 157: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

157

bem define D.F.S: “tem de estudar e trabalhar prá não ser prostituta, nem

ser empregada e agüentar abuso de madame”.

2. Nas narrativas de algumas destas jovens é perceptível o

desejo de “metamorfosear-se”. De fato, ainda ousam delinear projetos

profissionais, consubstanciados pela busca de tornar-se educadora física,

jogadora de futebol, veterinária, enfermeira ou motorista, mesmo em meio à

baixa auto-estima e o pessimismo, que lhes faz incorporar representações e

personagens gestados ainda na infância, em suas vivências escolares, na

família e no interior dos grupos e “tribos”.

3. Nestes percursos juvenis, a posição da mãe, possui um peso

fundante. De fato, nas trajetórias das meninas envolvidas na prática de

homicídio, a mãe acompanha, sofre, apóia o “filho” ou a “filha” para além

dos envolvimentos e atos cometidos. No caso das personagens deste estudo,

a mãe é referência constante nas narrativas da maioria das personagens, e

em duas trajetórias (M.F.A e B.J.F.N), o falecimento da mãe é apontado

como “elemento desestabilizador” de trajetórias.

4. A relação “droga/crime”, em todas as trajetórias, é apontada

como um “momento desestabilizador” nos percursos de redefinição

identitária. Estas meninas, ao adentrarem o mundo do crack, da cocaína e

da maconha, passam a negociar com as rotas da transgressão e do crime,

vivenciando na sociabilidade das “tribos” e grupos a que pertencem

múltiplas redefinições identitárias. Como bem diz D.P.D.L: “trata-se de um

jogo, o jogo dos enturmados”.

5. Sobre a vivência em privação de liberdade, a maioria das

adolescentes, parece utilizar a estratégia de esquecimento como forma de

renegociação com o passado vivido, mesmo que, em suas lembranças, o

passado vivido no Internato “continue a lhe falar”. Desse modo, as jovens

definem o internato de diferentes ângulos e representações. Para D.F.S. é

Page 158: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

158

um lugar de punição, que deve ser esquecido, apagado de suas lembranças:

“o internato me causou muito sofrimento..., graças a Deus já tô em

casa...”. Para D.P.D.L, a sentença de privação de liberdade pode fazer

refletir: “tem meninas que vem prá cá e nunca mais se envolvem em nada,

o castigo serve prá fazer pensar”. Na visão de M.F.A, o internato é

pensado como uma barreira, capaz de impedir o uso de drogas: “aqui é

ruim, quando sair daqui eu quero esquecer dessa vida, mas, ao mesmo

tempo, é uma barreira que me impede de correr atrás de droga”. Segundo

M.J.V.A, o internato é uma experiência recorrente em sua vida: “o Aldaci

Barbosa não é mais novidade prá mim. Esta é a quarta vez que venho prá

cá”, diz a jovem. Na visão de B.J.F.N, o Centro Educacional é um espaço

contraditório e de incerteza, sendo definido da seguinte forma: “sei lá... às

vezes acho que vale a pena tá aqui, que a minha vida vai mudar e que eu

vou aprender a ser alguém melhor, que eu vou continuar meus estudos

depois daqui, mas, outras vezes me sinto revoltada, aprisionada e quero

sair desse inferno”. Para de A.L.S.V, o internato é percebido como

“barreira de proteção”, capaz de impedir vinganças, acerto de contas e,

conseqüentemente, a morte. Na fala da jovem é perceptível o medo da

morte: “o meu ex-namorado avisou a minha mãe que tivesse muito cuidado

comigo, por que estavam fazendo acordos para me matar. Se não me

pegassem pegariam um dos meus irmãos”.

Cabe destacar ainda que, nesta empreitada, para decifrar

trajetórias em movimento, o pensamento de Stuart Hall revela uma

profunda fecundidade analítica na perspectiva de identidades em

movimento, “celebrações móveis”, identidades sempre em negociação com

rotas e percursos. E, abre-me caminhos investigativos, a demarcação de

Hall de que as construções identitárias são temporárias. É preciso continuar

a caminhar com as meninas!... Mas, para onde?

Page 159: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

159

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. In: FERREIRA, de Moraes Marieta e AMADO,

Janaína (org.). Usos e abusos da História Oral, Editora FVG, 2006.

_________. O poder simbólico, 2ª. Edição, Rio de Janeiro: Bertrand do

Brasil, 1998.

________. Políticas públicas e o dilema de enfrentamento das

desigualdades: um olhar crítico sobre a América Latina no século XXI. In:

SOUSA, Fernando José Pires (org.). Poder e políticas públicas na

América Latina, Fortaleza: Edições UFC, 2010.

LAHIRE, BERNARD. Retratos Sociológicos: disposições e variações

individuais, Porto Alegre: Artmed, 2004.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. SOVIK Liv

(org.), Belo Horizonte, Ed. UFMG, Brasília: UNESCO no Brasil, 2003.

________. Quem precisa da identidade. In: SILVA. Tomaz Tadeu da.

Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis,

Rio de janeiro: Vozes, 2000.

________. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, n°. 24 – Cidadania, 1996.

MAFFESOLI, Michel. A dinâmica da Violência. São Paulo: Vertice,

1987.

________. O tempo das tribos: O declínio do individualismo na sociedade

de massas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

MAGNANI, José Guilherme C. Tribos Urbanas: Metáfora ou categoria?

Cadernos de Campo. Revista de Pós-Graduação em Antropologia. São

Paulo, USP, ano III, n° 02, 1999.

TELES, Lygia Fagundes. As Meninas. São Paulo: Companhia das Letras,

2009.

Page 160: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

160

A Relação entre Instituições de Acolhimento para Crianças e

Adolescentes com Direitos Violados e as Escolas: Uma

Experiência de Avanços e Desafios

Luciana Gomes Marinho40

1. INTRODUÇÃO

É prática antiga41

no Brasil, abrigar crianças e adolescentes com

direitos violados, seja por se encontrarem em situação de violência

doméstica e/ou sexual, seja por estarem imersos no universo do tráfico de

drogas, ou até mesmo por possuírem famílias que estão em condição de

indigência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, apresenta em seu artigo 5°

que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,

punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus

direitos fundamentais”.

Falar de direitos humanos para crianças e adolescentes é considerar

o que foi proclamado na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de

dezembro de 1948, especificamente no artigo 3° quando este afirma que:

404040

Mestranda em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do

Ceará - UFC. Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará -

UECE e Especialização em Saúde do Idoso também pela UECE. Atualmente é

Assistente Social da Sociedade para o Bem Estar da Família – SOBEF, entidade

não governamental que atua na garantia dos direitos da criança e do adolescente. 41

De acordo com Rizzini (2004) até o final da década de 80, os abrigos eram

denominados de “internatos de menores” ou “orfanatos” e funcionavam nos moldes

de asilos. Isto ocorreu porque desde 1900 a internação aparece nos termos jurídicos

como o “último recurso” a ser adotado. Desde então se instituiu no Brasil uma

verdadeira “cultura de institucionalização.”

Page 161: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

161

“toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” E é

baseado e orientado por esse princípio que desenvolvemos nossa fala neste

artigo, sem esquecer também, de considerá-lo em nossa prática profissional

dispensado ao público em questão.

Em uma sociedade contemporânea, caracterizada pela

mercantilização das relações, são diversas as maneiras de se violar direitos.

O UNICEF, com a contribuição de muitos teóricos como Maria Amélia

Azevedo e Viviane N. de Azevedo Guerra, elaborou documentos que

abordam sobre as diversas facetas da violência contra crianças e

adolescentes, originando documentos específicos para cada violência

citada, dentre elas: violência sexual, violência doméstica, violência nas

escolas, violência nas comunidades e nas ruas, violência institucional,

violência na mídia, violência contra criança e adolescente indígena,

violência nas áreas rurais.

Vamos nos deter e utilizar das definições de negligência, violência

sexual e violência doméstica, tendo em vista que as violações de direitos

sofridas pelas crianças e adolescentes que se encontram na instituição

investigada, permeiam majoritariamente estes universos. Além disso,

vamos incluir a definição de violência na escola, pois este tema está

entrecruzado com a discussão do artigo em questão.

De acordo com Azevedo e Guerra (1995) a violência doméstica é

definida por: atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou

responsável em relação à criança e/ou adolescente, que sendo capaz de

causar à vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica

implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do

adulto e, de outro, numa coisificação da infância. Isto se constitui numa

negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como

sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Page 162: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

162

A negligência representa uma omissão em termos de prover as

necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente,

configurando-se quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de

alimentar, de vestir adequadamente seus filhos etc. e quando tal falha não é

o resultado de condições de vida além do seu controle.

A violência sexual configura-se como todo ato ou jogo sexual,

relação hétero ou homossexual, entre um ou mais adultos (parentes de

sangue ou afinidade e/ou responsáveis) e uma criança ou adolescente, tendo

por finalidade estimular sexualmente uma criança ou adolescente ou utilizá-

los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou outra pessoa.

Por fim, Bernard Charlot (2002) define o conceito de violência na

escola, classificando- o em três níveis: violência (que inclui golpes,

ferimentos, roubos, crimes e vandalismos, e sexual), incivilidades

(humilhações, palavras grosseiras e falta de respeito) e violência simbólica

ou institucional compreendida como aquela que os alunos “suportam

através da maneira como a instituição e seus agentes os tratam” (p. 435)

expressam na forma de organizar as classes, de atribuir notas, de orientar,

de dirigir-se aos alunos etc., e, vivenciada entre outras coisas, como

desprazer no ensino, por parte dos alunos, até a negação da identidade e da

satisfação profissional, por parte dos professores.

Muitos são os motivos de abrigamento de crianças e adolescentes,

como também, muitas são as instituições que participam da rede de

atendimento às crianças e aos adolescentes abrigados, dentre elas as

escolas, hospitais, postos de saúde, Centros de Atenção Psicossocial, entre

outros. Muitas são as angústias partilhadas pelas equipes de profissionais

que trabalham diretamente com esse público, dentre elas vejamos: como

promover direitos humanos para crianças e adolescentes que precisam ter a

informação de que foram ou estão sendo afastados do convívio familiar e

Page 163: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

163

para lá não podem mais retornar, haja vista a perda do poder familiar aos

pais e responsáveis dos mesmos? Quais as perspectivas de futuro dessas

crianças e adolescentes? O fluxo interinstitucional facilita no processo de

captação de famílias substitutas e/ou adotivas? Como trabalhar

efetivamente a inclusão social dos abrigados? A rede de atendimento se

apropria de suas responsabilidades quanto à garantia da qualidade de seus

serviços prestados?

O referido artigo iniciará com o resgate histórico que permeia esta

temática de abrigamento. Na seqüência vamos abordar os diversos desafios

que circundam a prática profissional quanto à promoção dos direitos

humanos numa perspectiva da inclusão social de crianças e adolescentes

abrigados. Por fim, discutimos a interação entre a instituição de

acolhimento e a rede de atendimento à criança e ao adolescente,

especificamente a escola.

2. Da Violação dos Direitos à Institucionalização: Uma

História de Avanços e Retrocessos

Diversos são os fatores que cruzam a vida de milhares de famílias

brasileiras, de maneira determinante para o afastamento da criança e do

adolescente do convívio familiar. “Os motivos de abrigamento mais citados

são pobreza (24,2%); violência doméstica (11,7%); dependência química

dos pais ou responsáveis, incluindo alcoolismo (11,4%); violência de rua

(7,0%); e orfandade (5,2%)” (GUEIROS e OLIVEIRA, 2005, p. 125).

Depois de notificado o direito violado, as crianças são

encaminhadas por órgãos do Poder Judiciário e salvo, em caráter

excepcional e emergencial, pelos demais órgãos que compõem o Sistema de

Page 164: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

164

Garantias de Direitos, como o Conselho Tutelar, para equipamentos de

acolhimento institucional.

De acordo com a Secretaria dos Direitos Humanos, o Sistema de

Garantias de Direitos constitui-se na articulação e integração das instâncias

públicas governamentais e sociedade civil, na aplicação de instrumentos

normativos e no funcionamento de mecanismos de promoção, defesa e

controle para efetivação dos direitos da criança e do adolescente, nos níveis

Federal, Distrital, Estadual e Municipal. Este é composto por diversos

atores sociais, dentre estes: Conselho Tutelar, Centro de Referência

Especializado de Assistência Social, Juizado da Infância e Juventude,

Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Fóruns de

debate, Delegacia de Combate à Exploração Sexual de Crianças e

Adolescentes, profissionais que trabalham com público, sociedade civil

organizada, etc.

Depois de devidamente identificado o caso de violação de direito à

criança ou adolescente, o mesmo é encaminhado para entidade referenciada

em acolhimento institucional do município. Este equipamento precisa,

atualmente, estar inscrito no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e

do Adolescente, como também deve seguir orientações importantes do

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS.

Sabemos que inúmeros equipamentos sociais que trabalham com

programa de acolhimento institucional possuem vícios históricos balizados

no assistencialismo e na filantropia e até hoje perduram com práticas que

vão de encontro com leis e normativas atuais.

Para esses equipamentos que estão circunscritos no “ranço

assistencialista” as atuais regulamentações são motivos de grande ameaça,

pois são vistos como dificultadores da ordem vigente. A angústia dos

militantes da causa dos direitos infanto - juvenis se torna ainda maior, ao

Page 165: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

165

perceberem que neste cabo de guerra os únicos prejudicados nesse processo

de desconstrução legal são as crianças e adolescentes que se distanciam

cada vez mais de um atendimento digno e com a mínima qualidade que

precisa ser dispensada aos mesmos.

Essa realidade nos remete a outro aspecto negativo da

institucionalização de crianças e adolescentes: a falta de preparo técnico -

operacional de muitas entidades que compõem a rede de atendimento para

referida demanda. O despreparo é oriundo, majoritariamente, de relações

clientelistas estabelecidas nos abrigamentos de crianças e adolescentes em

nosso país.

Se faz necessário fazer um pequeno retrocesso histórico das formas

de institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil. De acordo com

Rizzini & Rizzini

[...] no passado, as instituições que acolhiam crianças, como

hoje, ofereciam „asilo‟ ou „abrigo‟ para crianças órfãs ou

abandonadas (física e moralmente), em geral porque as

famílias não tinham recursos para mantê-las; eram os „lares‟,

„educandários‟, „internatos para menores‟, „orfanatos‟, entre

outras denominações, que foram sendo incorporados em

diferentes períodos históricos” (2004, p. 59).

As mesmas autoras afirmam que “proteger crianças e adolescentes

cujos direitos estejam ameaçados, de forma que os mesmos possam

desfrutar do direito a viver junto à sua família e comunidade, é um grande

desafio.” (2004, p. 09)

Com isso, teoricamente os orfanatos/educandários não deveriam

mais existir, entretanto podemos perceber muitos destes distribuídos em

todo país. Trata-se quase sempre de instituições de cunho religioso e/ou

assistencialista com uma percepção equivocada de acolhimento,

caracterizando-se em verdadeiros depósitos de crianças e adolescentes.

Page 166: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

166

A aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA

possibilitou a ênfase no apoio à convivência familiar e comunitária e

destacou o caráter de brevidade e excepcionalidade na aplicação da medida

de abrigo. Diante do exposto, é necessário considerar o princípio de

Gueiros e Oliveira sobre família quando estes afirmam que a mesma “é uma

construção histórica e sociocultural cuja configuração como lócus de afeto e

de convivência entre pais e filhos é uma invenção da modernidade” (2005,

p. 118). O desenvolvimento da condição de proteção da família está

associada a fatores sociais, econômicos, culturais e psicológicos.

As destoantes desigualdades sociais presentes no bojo da família

brasileira e

[...] a crescente exclusão do mercado formal de

trabalho incidem diretamente na situação econômica

das famílias e inviabilizam o provimento de condições

mínimas necessárias à sua sobrevivência.

Consequentemente afeta sobremaneira a inserção

social dessa população, o que certamente traz

transtornos importantes à convivência familiar e

dificulta a permanência da criança em sua família de

origem, caso não contem com políticas sociais que

garantam o acesso a bens e serviços indispensáveis à

cidadania. (GUEIROS e OLIVEIRA, 2005, p. 119)

A crueldade do cenário descrito resulta muitas vezes na negligência

e abandono de crianças e adolescentes, pois seus genitores e responsáveis

estão inseridos na falta de acesso ao mercado trabalho como também na

ineficiência das políticas públicas que assegurem os mínimos sociais.

O grande paradoxo do abrigamento é que a pobreza não pode

justificar a perda ou suspensão do poder familiar (ECA - Art. 23. A falta ou

a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a

perda ou a suspensão do poder familiar), nem mesmo a medida de

Page 167: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

167

abrigamento, salvo a excepcionalidade e provisoriedade do caso, mas esta é

vista como violação de direitos básicos, e em geral o poder público acaba

sendo o gerador de inserção de crianças e adolescentes e suas respectivas

famílias pobres no sistema de justiça, quanto à institucionalização dos

mesmos e privação destes do convívio familiar e comunitário.

O Brasil, atualmente, apresenta inúmeras questões sociais

referentes às crianças e adolescentes que consistem num dos segmentos que

mais requerem o estado da cidadania e do tratamento dos direitos humanos.

De acordo com Sales (2009) são alvo de uma violência social, expressa na

falta de projetos de vida, no desemprego, nas dificuldades de acesso a

serviços públicos de educação, saúde, cultura, esporte e lazer de qualidade,

que se traduzem como negligência planejada. O montante de crianças e

adolescentes até 17 anos que vivem em condição de pobreza, ou seja, que

fazem parte de famílias com renda per capta de até ½ do Salário Mínimo é

de 21,1 milhões; 34,4% do número total de jovens de todo país.

Essa conjuntura demonstra que “a esfera econômica vem

sobressaindo às políticas sociais, com as quais a Declaração dos Direitos

Humanos almejava colaborar para sua construção e consolidação”, declara

Vidal (2010, p. 237).

No tocante ao movimento de discussão e aprimoramento dos

serviços socioassistenciais, fortalecidos no Governo Lula, substanciadas

mudanças ocorreram, dentre elas podemos citar: a aprovação, em 2005, da

nova Política Nacional de Assistência Social, que propõe grandes mudanças

e reformulações no âmbito dos atendimentos prestados à população;

também se destaca a aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e

Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e

Comunitária - PNCFC, e do Sistema Nacional de Atendimento

Socioeducativo – SINASE, ambos aprovados, em 2006, pelo Conselho

Page 168: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

168

Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA e

Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.

O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de

Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária - PNCFC,

diz respeito a um conjunto de ações propostas para serem desenvolvidas no

período de 2007 a 2015:

“a defesa deste direito dependerá do desenvolvimento

de ações intersetoriais, amplas e coordenadas que

envolvam todos os níveis de proteção social e busquem

promover uma mudança não apenas nas condições de

vida, mas também nas relações familiares e na cultura

brasileira para o reconhecimento das crianças e

adolescentes como pessoas em desenvolvimento e

sujeitos de direitos” (2006, p. 67).

Já o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE,

objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação socioeducativa

sustentada nos princípios dos direitos humanos, constituindo uma política

pública destinada à inclusão do adolescente em conflito com a lei que se

correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes campos das políticas

públicas e sociais.

Quanto às orientações vigentes, o Ministério do Desenvolvimento

Social e Combate à Fome - MDS propõe um grande avanço: a reordenação

dos serviços de acolhimento institucional elaborando e aprovando nas

instâncias de direito, em 2009. O documento entitulado de Orientações

Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes apresenta

como objetivo a regulamentação, no território nacional, a organização e

oferta de serviços de acolhimento para crianças e adolescentes, no âmbito

da Política de Assistência Social, cuja normativa parte “do princípio de que

toda situação de afastamento familiar deve ser tratada como excepcional e

Page 169: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

169

provisória, sendo imprescindível investir no retorno das crianças e

adolescentes ao convívio com a família de origem e, esgotada essa

possibilidade, o encaminhamento para família substituta” (2009, p. 15).

Nesta mesma época foi também aprovado a nova lei de adoção Lei

Nº 12.010, de 3 de agosto de 2009, que sinaliza mudanças fundamentais

para o desenvolvimento das atividades dos equipamentos de acolhimento

institucional, podendo citar algumas:

§ 1º Toda criança ou adolescente que estiver

inserido em programa de acolhimento

familiar ou institucional terá sua situação

reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis)

meses, devendo a autoridade judiciária

competente, com base em relatório elaborado

por equipe interprofissional ou

multidisciplinar, decidir de forma

fundamentada pela possibilidade de

reintegração familiar ou colocação em

família substituta, em quaisquer das

modalidades previstas no art. 28 desta Lei.

§ 2o A permanência da criança e do

adolescente em programa de acolhimento

institucional não se prolongará por mais de 2

(dois) anos, salvo comprovada necessidade

que atenda ao seu superior interesse,

devidamente fundamentada pela autoridade

judiciária. (2009, p. 01)

Para a referida lei, as entidades que desenvolvam programas de

acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes

princípios: “I - preservação dos vínculos familiares e promoção da

reintegração familiar; II - integração em família substituta, quando

esgotados os recursos de manutenção na família natural ou extensa.” (2009,

p. 13)

Page 170: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

170

A mesma lei recomenda que enquanto não localizada pessoa ou casal

interessado na adoção, da criança ou do adolescente, sempre que possível, o

menor será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de

acolhimento familiar. Tal ação exige um fluxo de atendimento entre os

órgãos que compõem o Sistema de Garantias de Direitos, objetivando

contribuir na agilidade do processo de captação de famílias, bem como na

garantia de direitos básicos ofertados ao público.

Como podemos perceber a paradoxal realidade institucional para

crianças e adolescentes busca avançar conjuntamente com as ordenações

legais, mas ao mesmo tempo se prende a vícios históricos que precisam ser

rompidos urgentemente, para assim promoverem os direitos humanos e a

inclusão social do referido público.

Uma vez institucionalizados, as crianças e adolescentes necessitam de

equipes técnicas que possam prover as exigências mínimas descritas

anteriormente, incluindo o processo de desligamento, que se inicia desde o

primeiro dia de abrigamento, até, de fato, a desinstitucionalização do

menor. Para isso é fundamental o resgate e fortalecimento da capacidade de

resiliência do público em questão, como também a busca incessante de

inclusão social nos mais diversos meios. O desafio é posto cotidianamente

para os diversos profissionais.

Na seqüência vamos partilhar experiências de uma instituição abrigo

vivenciadas com a rede de atendimento, especificamente, as escolas, desde

a implementação do equipamento de acolhimento até os dias atuais.

3. Fluxo de Atendimento entre os Atores da Rede da Criança

e do Adolescente Institucionalizado: Realidade ou Utopia?

Page 171: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

171

O foco da discussão deste artigo está em crianças e adolescentes

destituídos do poder familiar, extintos do poder familiar e em processo de

destituição do poder familiar, que se encontram em cumprimento de medida

de abrigamento, em instituição de acolhimento (abrigo), sendo estes,

exclusivamente, atendidos na Sociedade para o Bem Estar da Família –

SOBEF, localizada no município de Maracanaú.

Das 20 crianças e adolescentes atendidos na SOBEF, 02 (10%)

foram extintos do poder familiar, ou seja, tiveram o consenso da família, 03

(15%) estão sendo analisados sobre a possibilidade do retorno ao convívio

familiar, 06 (30%) foram destituídos juridicamente do poder familiar (grupo

de irmãos) e 09 (45%) estão em processo de destituição do poder familiar,

ou seja, 80% dos usuários do programa são objetos desta pesquisa. Destes

12: existem 03 grupos de irmãos, o que totaliza 11 usuários e apenas 01 está

fora deste perfil.

Deste universo descrito acima, 85%, ou seja, 17 usuários do

programa são objetos de discussão deste artigo. O referido público

apresenta as seguintes características: encontram-se extintos do poder

familiar, foram destituídos do poder familiar e estão em processo de

destituição do poder familiar. Além disso, existem outros aspectos

relevantes e preponderantes para o debate: a) estão fora dos padrões

preponderantes de adoção no Brasil, tendo em vista o grande quantitativo

de grupos de irmãos (igual ou acima de 03 pessoas em cada grupo); b) a

faixa etária está entre 09 e 15 anos; c) são afrodescendentes. Esses fatores

são considerados dificultadores para uma possível adoção, tendo em vista,

que o perfil das crianças adotadas no Brasil é: menina, menor de 02 anos,

cor branca e não faz parte de grupos de irmãos.

A realidade ideal para estas crianças e adolescentes seria a não

possibilidade de institucionalização. Certamente este é um grande desafio

Page 172: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

172

das Políticas Públicas para crianças em nosso país. Enquanto essa realidade

ideal não acontece de fato e de direito, acreditamos que através do

desenvolvimento de um bom trabalho intersetorial e transdiciplinar da Rede

de Atendimento à criança e ao adolescente e do Sistema de Garantias de

Direitos e das Políticas Públicas, é possível contribuir para iniciativas

positivas nas vidas destes meninos e meninas.

É necessário então definir intersetorialidade para termos o adequado

entendimento:

[...] intersetorialidade é articulação de saberes e

experiências com vistas ao planejamento, para a

realização e a avaliação de políticas, programas e

projetos, com o objetivo de alcançar resultados

sinérgicos em situações complexas. Trata-se, portanto,

de buscar alcançar resultados integrados visando a um

efeito sinérgico. (INJOSA, 2001, p. 105)

Neste sentido o objetivo do trabalho intersetorial da rede de

atendimento é a garantia de serviços que oportunizem a qualificação

profissional para os adolescentes, na perspectiva do desenvolvimento local,

bem como educação de qualidade para todos e serviços de saúde dignos,

dentre outros, teríamos uma esperança de vida futura melhor. Isso pode

acontecer dentro e fora dos circuitos institucionais, pois ao chegar no tempo

da desinstitucionalização dos abrigados possamos ter a consciência de ter

contribuído concretamente na formação destes como indivíduos.

A experiência da SOBEF com a rede de educação do município

encontra-se em processo de contínuo e tímido progresso, cujo ritmo se dá

devido a inúmeras tentativas de aplicabilidade de um fluxo adequado.

De acordo com Abramovav (2002), para entender o fenômeno da

violência nas escolas, é preciso levar em conta fatores externos e internos à

instituição de ensino. No aspecto externo, influem as questões de gênero, as

Page 173: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

173

relações raciais, os meios de comunicação e o espaço social no qual a

escola está inserida. Entre os fatores internos, deve-se levar em

consideração a idade e a série ou o nível de escolaridade dos estudantes, as

regras e a disciplina dos projetos pedagógicos das escolas, assim como o

impacto do sistema de punições e o comportamento dos professores em

relação aos alunos (e vice-versa) e a prática educacional em geral.

Já o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência

(UNICEF), por exemplo, entende que a questão da violência nas escolas

deve ser tratada sob a perspectiva da garantia de direitos e da qualidade da

educação. Isso significa que as escolas, assim como os serviços de saúde, a

assistência social, os Conselhos Tutelares e outros mecanismos e

instituições, são vistas como “agentes protetores” das crianças e dos

adolescentes, ou seja, têm um papel estratégico na defesa dos direitos dessa

faixa etária.

No início da relação entre SOBEF e a escola, nossas crianças

passaram e ainda passam, mas em menor quantidade, por muitas formas de

violência e discriminação. A nossa leitura era que os abrigados estavam

sendo estigmatizados, devido o fato de morarem em uma instituição de

acolhimento. Qualquer movimento mais brusco cometido por eles era

motivo de severas punições, seja a expulsão imediata da sala de aula, seja

pela suspensão de até 03 dias, sob a condição de retornarem depois de haver

uma conversa entre os técnicos das duas instituições.

Além das medidas punitivas realizadas pela escola, os demais alunos

que compunham o ambiente escolar se apropriavam de um discurso de

superioridade com relação aos abrigados, o que acarretou muitos desgastes

na relação das escolas com as nossas crianças e automaticamente com o

corpo técnico da SOBEF.

Page 174: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

174

Em diversas observações realizadas pela equipe do abrigo,

percebemos que estas atitudes estavam se tornando rotineiras e iniciamos

um longo e persistente processo de discussão a cerca das discriminações

sofridas e dos requisitos para a aplicação das punições com o corpo docente

das escolas. Concordamos com a Abramovav (2002), quando esta afirma

que a violência escolar resulta da interseção de três conjuntos de variáveis

independentes: o institucional (escola e família), o social (sexo, cor,

emprego, origem socioespacial, religião, escolaridade dos pais, status

socioeconômico) e o comportamental (informação, sociabilidade, atitudes e

opiniões).

Percebemos, a partir de então, mudanças em algumas escolas, no

sentido de combater a discriminação sofrida pelos abrigados por parte de

alunos e professores. É válido salientar que tais mudanças impactaram

positivamente na relação entre abrigados e a escola, tendo em vista o

significativo e súbito interesse dos mesmos em participar das atividades

escolares; outro fator observado foi a melhoria no rendimento escolar em

alguns abrigados.

Infelizmente, observamos que algumas escolas continuavam a

perpetuar e qualificar suas posturas violentas e excludentes, não se

motivando a contribuir com esse processo de implementação de fluxo e

realização de atividades intersetoriais entre os equipamentos. Tais atitudes

impulsionaram os técnicos da SOBEF de solicitar a transferência dos

abrigados que lá estudavam.

Por fim, depois das devidas correções de rumos, não podemos

afirmar que as nossas crianças e adolescentes são os melhores alunos das

suas respectivas escolas, mas também não são os piores. De um universo de

20 abrigados apenas 01 reprovou e 01 ficou de recuperação, representando

um percentual de 10%.

Page 175: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

175

4. Considerações Finais

Discutir sobre o acolhimento institucional de crianças e adolescentes

no Brasil, é levar em consideração a rede de atendimento socioassistencial

posta e o Sistema de Garantia de Direitos vigente, bem como as normativas

orientadoras e os marcos regulatórios. Muitos avanços foram conquistados,

mas muito precisa ser feito, seja por entidades governamentais, seja por

entidades não governamentais. O fato é que é o direito da criança e do

adolescente que está em jogo e por isso os movimentos sociais que lutam

por esse segmento buscam estratégias para exigir dos políticos a elaboração

e execução de projetos, programas e serviços que atendam efetivamente

esse público garantindo ações qualificadas.

A questão da institucionalização de crianças e adolescentes sinaliza

muitos desafios para os equipamentos de abrigamento, pois como afirma

Oliveira

[...] não basta atender ao ECA; é preciso cumprir o espírito da

lei, pois tanto quanto a missão institucional devem estar a

serviço das crianças, dos adolescentes e das famílias que

necessitem de proteção especial, não o contrário. Isso não vale

só para os abrigos, mas também para o Judiciário e o

Executivo; o Ministério Público, os Conselhos de Direitos, os

Conselhos Tutelares, dentre outros (2004, p. 47).

Podemos afirmar então que mesmo após 20 anos de implementação

do ECA muito ainda precisa ser feito, pois

[...] até por ser um instrumento de direitos humanos, as

resistências ao cumprimento do ECA deixam entrever o grau

de tensão entre as práticas político-jurídicas, sociais e

econômicas geradoras e/ou mantenedoras de desigualdades, e

a defesa efetuada pela sociedade civil democraticamente

organizada em torno da integralidade e exigibilidade do

Page 176: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

176

sistema de garantia de direitos. O empenho incansável desses

setores consiste, de um lado, em tentar superar de vez a

cultura da discricionariedade, da arbitrariedade, e o caráter

ambíguo – entre a compaixão e a repressão – com que sempre

foram tratadas a infância e a juventude, como resposta esse

tipo de refrações da questão social no Brasil. De outro, a meta

é fortalecer uma cultura de direitos, embasada em garantias e

no paradigma da proteção integral de crianças e adolescentes,

como condição mesmo de uma sociabilidade emancipadora e

livre de violências (SALES, 2009, p. 237).

Finalizamos o artigo afirmando que é sempre bom descobrirmos que

mesmo envoltos de um mar de dificuldades, ainda podemos contribuir para

a garantia dos direitos humanos e para inclusão social de crianças e

adolescentes vítimas deste sistema desagregador, através de iniciativas

baseadas por princípios de intersetorialidade e trabalho coletivo e de justiça

social.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. de Azevedo. Violência

doméstica contra crianças e adolescentes. Um cenário em (des)

construção. UNESCO, p. 15 a 23.

BARBOSA, Rosangêla N. de Carvalho. A Política Pública da Economia

Solidária. In: A Economia Solidária como Política Pública: uma

tendência de geração de renda e ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007.

BRASÍLIA. Plano de Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do

Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e

Comunitária - Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Brasília – DF:

CONANDA, 2006.

________. Orientações técnicas: Serviços de acolhimento para crianças

e adolescentes, Brasília – DF: CONANDA, CNAS, MDS, 2009.

Page 177: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

177

________. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo –

SINASE/Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Brasília – DF:

CONANDA, 2006.

________ LEI Nº 10.097 - DE 19 DE DEZEMBRO DE 2000 - DOU DE

20/12/2000) Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho –

CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

__________. Lei Nº 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre

adoção; altera as Leis nos

8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da

Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga

dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da

Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no

5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências.

________. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais –

Brasília- DF: CNAS, 2009.

CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses

abordam essa questão. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, nº 8, jul/dez. 2002,

p. 432-443. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/n8/n8a16.pdf.

Acesso em 10 abr 2011.

GUEIROS, Dalva Azevedo; OLIVEIRA, Rita de Cássia Silva. Direito à

convivência familiar. In: Serviço Social & Sociedade, Editora Cortez,

2005, p.117 a 134 ANO XXVI, 83

INOJOSA, Rose Marie. Sinergia em políticas e serviços públicos:

desenvolvimento social com intersetorialidade. Caderno FUNDAP: São

Paulo, 2001, n. 22, p. 102-110.

OLIVEIRA, Rita de Cássia. A história começa a ser revelada: panorama

atual do abrigamento no Brasil. In: Abrigo comunidade de acolhida e

socioeducação. Instituto Camargo Correa, Coletânea Abrigar, 2004, p 39 a

48

RIZZINI, Irene; RIZINNI, Irmã. Os questionamentos sobre as práticas de

internação de crianças nos anos 1980. In: A institucionalização de

crianças no Brasil. Edições Loyola, 2004, p. 45 a 61

Page 178: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

178

SALES, Mione Apolinário. Política e direitos de crianças e adolescentes:

entre litígio e a tentação do consenso. In: Política Social, Família e

Juventude. Editora Cortez, 2009, p. 207 a 241.

SILVA, Enid R. da; ANDRADE, Carla C. Política Nacional de Juventude:

Avanços e Dificuldades. CASTRO Jorge Abrahão de, LUSENI Maria C. de

Aquino, ANDRADE Carla Coelho (organizadores). In: Juventude e

Políticas Sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009.

Page 179: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

179

PARA (RE) ENCANTAR A INFÂNCIA – perspectivas da

infância na pós -modernidade - proteção, direitos e autonomia.

Maria Dolores de Brito Mota

42

Julia Mota Farias43

Introduzindo

Trata-se de refletir sobre a idéia hegemônica partilhada sobre a

infância no imaginário do mundo ocidental moderno e na sociedade,

acompanhando as suas modificações e a constituição de um ideal de

infância idílica, relacionada com pureza, fantasia, alegria e brincadeiras,

constituindo uma fase da existência humana vivida num mundo oposto ao

mundo adulto. Esse ideal contrasta com a realidade, uma vez que criança

está inserida em classes sociais vivendo experiências desiguais de infâncias.

A configuração de movimentos em defesa das crianças em situação de

violência e violação de direitos demarcou o surgimento de uma nova era em

que a criança emerge como sujeito de direitos, portadora de uma cidadania

especial. Superando-se a posição desses sujeitos como objeto de

intervenção, cuja existência era reconhecida apenas em contextos de

vulnerabilidade ou de risco social (violência, exploração, extrema pobreza,

morador de rua etc.), configurando-se uma nova condição em que a criança

e o adolescente se formalizam como cidadão de direitos e deveres. No seio

desse novo contexto social emergem possibilidades de uma infância

garantida e consciente.

A construção da infância – encantando e desencantando

42

Socióloga, Professora Associada da Universidade Federal do Ceará,

Coordenadora do NEGIF, Pesquisadora CNPq. 43

Psicóloga, Residente Multiprofissional em Atenção Hospitalar à Saúde em área

de concentração em saúde mental, mestranda em Psicologia da UFC.

Page 180: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

180

A idéia hegemônica partilhada sobre a infância no imaginário social

brasileiro e no mundo ocidental moderno é idílica, relacionada com pureza,

fantasia, alegria e brincadeiras, constituindo uma fase da existência humana

vivida num mundo oposto ao mundo adulto. Este último é concebido como

a fase da responsabilidade, do trabalho, da racionalização e das escolhas.

Para uma reflexão crítica sobre a infância é preciso inicialmente entender

que este período do desenvolvimento humano é uma construção social ou

uma invenção histórica. Essa perspectiva sócio histórica em busca de

compreender a infância foi desenvolvida primeiramente por Ariés (1981),

que reconhece o surgimento da noção de infância no século XVII, período

em que se verificam as mudanças para a sociedade moderna. No decorrer

dos períodos históricos, diferentes concepções sobre o sujeito infantil foram

sendo construídas de acordo com os valores, crenças e características das

sociedades. Assim, é preciso considerar as condições sociais das crianças,

raça/etnia, classe social, sexo e as estruturas sociais, a cultura, a tecnologia

e a organização social para compreendermos a configuração e os

significados de ser criança e vivenciar a infância em uma determinada

sociedade.

O desenvolvimento da sociedade capitalista trouxe mudanças

sociais que impactaram diretamente sobre o lugar e a representação da

criança, que foi deixando de ser considerada como um adulto em miniatura,

para ser vista como um ser em desenvolvimento. Ariès (1981), em seu

estudo mostra que no século XII a criança aos sete anos já assumia funções

úteis realizando tarefas na economia familiar, vestindo-se e participando de

festas e reuniões como adultos, preparando-se através das relações com os

mais velhos para assumir funções da vida adulta na sociedade. Este

comportamento a partir do século XVII foi se transformando visivelmente,

Page 181: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

181

com o combate ao infanticídio seletivo, passando a criança ser educada e

“paparicada” pela própria família até passar a ocupar um lugar especial de

cuidado e preparação para o que deveria vir a ser no futuro, constituindo

uma experiência num lugar separado. Naquele novo contexto da

modernidade, a “paparicação” é substituída pelo apego e a

“escola substituiu a aprendizagem como meio de

educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser

misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente,

através do contato com eles. A despeito das muitas

reticências e retardamentos, a criança foi separada dos

adultos e mantida à distância numa espécie de

quarentena, antes de ser solta no mundo” (Ibdem, p. 6)

Ao criar um mundo especifico para as crianças isso não significa

que todas as crianças foram alocadas a ele e tiveram as mesmas

experiências de infâncias. Na verdade esse novo lugar e esse novo

significado da infância vão estar relacionados com a classe social, a cultura,

a religião entre outras condições, que vão posicionar as crianças diante do

modelo dominante de ser criança. A idéia predominante sobre a infância

cristaliza-se no imaginário social como o idílico e ideal mundo infantil, mas

não se confunde com a realidade onde as crianças vivem situações diversas

e antagônicas a esse mundo imaginado de fantasias, brincadeiras,

ingenuidade e proteção.

Esses elementos configuram um modo de ser criança e a infância,

como uma etapa cronológica da existência humana marcada pela felicidade,

ausência de problema, ludicidade e plena dependência dos adultos. Emerge

a infância dependente e submetida ao adultocentrismo, sem vontade

própria, com o dever de “obedecer aos mais velhos” que sabem “o que é

melhor para ela”, devendo se preparar para ser um adulto responsável capaz

de cumprir o seu papel social. Partilhavam dessa perspectiva de

Page 182: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

182

incapacidade da criança também outros grupos sociais como os índios e as

mulheres, que estavam deslocados da cidadania e não tinham a atribuição

de autonomia socialmente reconhecida. Rocha (2002), analisando o

percurso histórico da criança com base em Ariés observa que a mudança

nos cuidados a partir do século XVII fará emergir a criança mística,

comparada com anjos, com pureza e passando a ter um papel central na

preocupação da família e da sociedade, mas que representa a história de

meninos ricos fazendo referência a uma outra situação de infância das

classes populares.

[...] percebe-se que a história apontada por ARIÈS é

uma história de meninos ricos, confirmando uma

educação diferenciada às duas infâncias, da criança

rica para a criança pobre... Por outro lado, é possível

inferir a existência da infância pobre percebida nas

crianças do povo, filhos de camponeses e artesões,

vivendo em espaços compartilhados com todos,

participando das conversas com os adultos, nas praças

com seus folguedos infantis, nas reuniões noturnas,

sem modos e talvez vestidas como adultos. Esta

caracterização das crianças do povo como indivíduos

sem modos, livres, com comportamentos inadequados,

deve-se ao fato de que o conceito de pudor e vergonha

são valores que foram sendo construídos a partir das

relações das famílias abastadas, sendo uma relação que

se constrói verticalmente das classes altas para as

baixas. Todavia, isso não quer dizer que o sentimento

ou a educação, mesmo informal, das crianças pobres

não existisse (p. 58).

Podemos afirmar que a infância tem classe social, levando-nos a

buscar compreender as infâncias e as crianças com existências

diferenciadas. Além da classe social é também necessário considerar o

gênero, a etnia e a condição física como fatores que instituem condições

particulares de vivencia pessoal e coletiva. Afirma Rocha (2002, p. 61) que:

Page 183: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

183

Temos registros de meninos e meninas com suas

histórias marcantes e presenciamos a infância de

muitas dessas crianças que vivem à margem da

sociedade, experimentando o abandono, os maus-

tratos, a pobreza, sendo exploradas no trabalho infantil,

na mídia, no abuso precoce da sua sexualidade e nas

tentativas de modelagem à imagem e semelhança do

adulto. Vemos crianças que já lutam pela

sobrevivência, por uma vida digna e uma educação

básica de qualidade. E também as crianças presas em

castelos-condomínios, rodeadas por videogame,

computadores, televisão, supervisionadas

constantemente por babás e professoras interessadas

em efetivar uma educação restrita aos seus padrões

sociais.

Esse olhar mais abrangente é um chamado para uma compreensão

das particularidades de ser criança e das vivências diferenciadas da infância

relacionadas a condições sociais, econômicas, culturais e físicas diversas,

responsáveis por uma variedade de existências da população infantil.

Variedade que esconde e revela ao mesmo tempo desigualdades e

preconceitos instituindo três grandes campos de posicionamento das

crianças, o mercado em que elas são consumidoras de produtos e serviços, a

polícia em que são tratadas como problemas por envolvimento com a

violência e a criminalidade, e a política em que estão colocadas como

sujeitos de direitos em busca de cidadania.

A infância pós moderna – o alegórico encanto do mercado

No cenário do tempo presente, desde os anos 1980 até o momento

atual (março de 2011), parece que os limites que separavam o mundo da

infância do mundo adulto estão diluídos. Crianças e adolescentes vivem os

mesmos espaços dos adultos, seja porque têm uma vida cheia de atividades,

Page 184: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

184

valores, deveres e compromissos a cumprir, partilhando de um estilo de

vida marcado pelo excesso de informação e de demandas ditadas pela mídia

e pelo mercado, seja porque estão envolvidos proximamente em lugares e

práticas como a violência e a criminalidade urbana e, são vítimas de

engrenagens sociais violadoras de direitos como tráfico de seres humanos,

exploração sexual comercial, violência policial entre outras, de modo que

parece não haver mais uma infância que se acredita deva ser protegida e

afastada desses problemas. Assim, estaríamos testemunhando um retorno ao

tempo medieval em que a infância é vivida como a vida adulta? Postman

(1999) define esse momento atual como o desaparecimento da infância que

teria se iniciado nos anos 1950.

Em suas reflexões Postman (1999), atribui às invenções

tecnológicas, especialmente das telecomunicações, o desenvolvimento de

condições para o desaparecimento da infância. Segundo o autor, a

revolução tecnológica, a partir do telégrafo, afetou o controle que a família

e a escola tinham sobre as crianças, principalmente no aspecto de que com a

televisão não é possível controlar as condições em que a criança recebe as

informações e quais os efeitos de sua recepção. Destaca a televisão, que

destrói a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras:

primeiro não requerendo treinamento para aprender sua forma; segundo não

fazendo exigências especiais nem à mente nem ao comportamento; e

terceiro não segregando seu público. Para o autor, a família se enfraqueceu

quando os pais perderam o controle da informação que seus filhos recebem,

de tal forma que “a mídia reduziu o papel da família na moldagem dos

valores e da sensibilidade dos jovens” (p.164). Nessa perspectiva, é

possível observar outras práticas sociais em que as fronteiras desses dois

mundos estão muito próximas.

Page 185: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

185

As crianças se vestem praticamente como adultos, as brincadeiras

tem novos formatos como os play space dos shopping centers, os

computadores e as lan houses, além dos índices de crimes envolvendo

menores como autores e vítimas, e crianças e adolescentes fazendo sucesso

na carreira de modelos, artistas etc. É comum ouvirmos a expressão

“adultização da infância” relacionado à “infantilização dos adultos”. Esse

fenômeno precisa ser melhor investigado, pois são indícios de uma nova

relação entre idade cronológica e vida social, talvez ligado a um

encurtamento do tempo da infância, aumento da adolescência e da

juventude, aliado a uma ressignificação do envelhecimento.

Esse cenário de mudanças geracionais forma uma paisagem etária

ainda em curso e que vem causando estranhezas e indagações há mais de

uma década como expressa Sarlo (1997) em trabalho que chama a atenção

para a infância como uma experiência que praticamente desapareceu,

estando comprimida por uma adolescência muito precoce e uma juventude

que se prolonga aos 30 anos. Não se pode responsabilizar apenas a mídia e

as comunicações pelo desencadeamento desse fenômeno, mas sem dúvida

as formas de vida social estão diretamente afetadas pelo conjunto da

indústria cultural, que organiza e significa as práticas de vida que segundo

Sarlo (1997), fragilizaram a escola uma vez que “a cultura sonha, somos

sonhados por ícones da cultura. Somos livremente sonhados pelas capas de

revistas, pelos cartazes, pela publicidade, pela moda: cada um de nós

encontra um fio que promete conduzir a algo profundamente pessoal, nessa

trama tecida com desejos absolutamente comuns” (p.26).

Assim, nos tornamos o que sonham para nós, processo que

Baudrillard (1995) explica como um tipo de consumo que não se organiza

em torno das diferenças individuais, ao inverso, são estas diferenças que se

organizam em torno de modelos comunicados pelo sistema de consumo.

Page 186: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

186

A infância mudou de lugar social, não sendo mais apenas uma

categoria que proporciona felicidade e inocência, (Sarlo, 1997), mas se

torna consumidora, e uma vez que o público infantil é agora consumidor,

que relação a sociedade desenvolve para com elas? Proteção, preservação,

cuidado ou exploração, apropriação e exigências?

Emmel e Krul (2010, p. 2) afirmam que:

As palavras infância e cultura, neste estudo são escritas

no plural, pois conforme Barbosa (2006, p. 82) no

Brasil conviveram e convivem diferentes infâncias,

passadas por uma história de desigualdades sociais, de

dificuldades, mas também uma história de brincadeiras

e reconhecimento social.

Compactuando com esses autores, pensamos uma “concepção de

escolas como “máquinas de sonho” (SIMON, 1995) enquanto conjuntos de

práticas sociais, textuais e visuais planejadas para provocar a produção de

significados e desejos que podem afetar a idéia que as pessoas têm de suas

futuras identidades e possibilidades” (EMMEL e KRUL, 2010, p. 4).

Como professores, podemos contribuir para um modo de pensar e de agir

que leve em conta os campos culturais das identidades das infâncias

presentes em nossas realidades escolares e familiares. Consideramos que

não há apenas um movimento e uma única identidade de infância e

voltamos nossos olhares para algumas expressões de resistência ou de

criação de outros valores e significações para as crianças e as infâncias que

não a tutela de seres idílicos e incapazes, nem tampouco a exploração de

sujeitos às lógicas de uma sociedade organizada para o consumo.

Re-encantando as infâncias? Outras formas de pensar e fazer

infâncias

Page 187: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

187

Do interior da engrenagem que envolve as crianças e os

adolescentes num contexto de violência, de criminalidade e de mercado,

reaproximando-os do chamado “mundo adulto”, emergem expressões de

uma infância e adolescência como experiência de brincadeiras e de fantasia,

não como elementos idílicos e irreais, mas com princípios éticos e atuais,

com valores de solidariedade, de consciência ambiental, de saúde, de

criatividade, de direitos humanos. Assim, outra infância passa a ser gestada

a partir da ação e do entendimento de pessoas e de movimentos sociais que

reposicionam as imagens e as vivências de crianças e adolescentes

respaldados em conceitos atuais de cidadania e de condição humana, não

apenas no campo da política, mas estendendo-se a outros campos sociais

como a cultura e o até mesmo o mercado.

Historicamente as crianças e adolescentes pobres no Brasil sempre

foram vistos como problema cuja ação primordial do estado se centrava na

internação e no controle, enquanto aqueles de classes mais privilegiadas

eram vistos como ingênuo e incapazes que requeriam total proteção. Essa

distinção pode ser identificada na atuação do departamento Nacional da

Criança – DNCr, criado em 1940 que tinha um caráter preventivo

funcionando como política de proteção à criança e a maternidade, enquanto

o Serviço de Atendimento ao Menor – SAM, ligado ao Ministério da

Justiça, destinava-se aos “menores” (infratores etc.) que recebiam

tratamento de castigos, torturas, maus tratos (XAVIER, 2008).

Vale ressaltar o período mais recente diante do qual, setores sociais

democráticos vão se posicionar criticamente dando origem, nos anos 1980,

aos primeiros movimentos em defesa dos direitos das crianças e

adolescentes numa perspectiva de instituição da criança como sujeito de

direitos. Destaque para o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de

Page 188: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

188

Rua, criado em 1982, instituindo-se como entidade civil em 1985, que teve

atuação decisiva na mobilização social para a inclusão de direitos das

crianças na Constituição de 1988 e na formulação do Estatuto da Criança e

do Adolescente em 1990. Essas legislações estabeleceram dois conceitos

fundamentais, o de criança sujeito de direitos e o de criança como ser em

condição especial de desenvolvimento.

Posicionar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos

institui-os como portadores de uma cidadania especial, superando-os como

objetos de intervenção, cuja existência não é reconhecida apenas quando

estão em situação de vulnerabilidade ou de risco social (de violência, de

exploração, de extrema pobreza, de rua etc.), por uma situação a que estão

colocados, mas sim por serem portadores de direitos, titulares de direitos e

de obrigações. O entendimento de ser portador de uma condição especial de

desenvolvimento busca superar o paradigma de incapacidade e do

paternalismo de modo a atribuir um atendimento diferenciado inclusive na

imputabilidade da lei. A construção da cidadania se dá com atribuição de

direito e de responsabilidade; este é o desafio.

Não apenas do ponto de vista do campo político emergem outras

infâncias e adolescências, mas também em outros campos sociais. Podemos

destacar que a imagem prevalecente das crianças e adolescentes tem se

assemelhado à dos adultos, desde as roupas, sapatos, acessórios e até

maquiagem. O mercado dispõe de uma oferta de produtos do vestuário

infantil que reproduzem as formas e as modas dos adultos, especialmente

para as meninas. Encontramos maquiagem para crianças, calçados com

salto alto (saltinho), bolsas, vestimentas (shorts, saias, vestidos, blusas,

tops) que permitem a produção de uma imagem de menina e adolescente

sensual e sexualizada como a de mulheres adultas. Paterno e Müller (2009)

discutem esse fenômeno como uma erotização da infância, relacionada às

Page 189: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

189

formas atuais de sociabilidade em que as crianças substituem a convivência

com os pais pelos programas de televisão, as redes virtuais, a mídia e o

mercado.

Essa questão nos remete à reflexão sobre uma produção cultural

relacionada ao universo infantil, que reflete as imagens e projeções dos

adultos da sociedade ou de parcelas dela, sobre a criança e o adolescente.

Desse modo, é possível encontrar na televisão e no campo da arte

programas e produtos culturais infantis que formam um segmento

alternativo desvelando a realidade como um campo de conflitos, em luta.

Alguns programas televisivos como Cocoricó, e produção musical, como o

grupo Palavra Cantada são expressões de um imaginário infantil que

representa uma forma de ser criança integrada ao mundo atual, com

conteúdos relacionados com o conhecimento sobre problemas sociais,

ambientais, práticas de vida e de relacionamento que representam valores

de respeito, cuidado, consciência cívica, solidariedade, participação, ao

mesmo tempo em que preserva a infância de exposições, pressões e formas

de agir mais próprias do mundo adulto. Estimulando a brincadeira coletiva,

a socialidade, o aprendizado de conhecimentos básicos, mas também a

consciência de direitos e deveres, de reconhecimento e respeito à diferença,

a habilidade com a técnica e também a criatividade. O lúdico é

acompanhado por um despertar para os perigos e a auto-preservação,

necessários num contexto em que crianças são expostas a situações de

violência e violação de direitos.

Na sociedade do presente não basta mais uma infância idílica e uma

criança ingênua, mas uma infância garantida e uma criança consciente de si

e do seu mundo.

Referências Bibliográficas

Page 190: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

190

ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman.

2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.

ROCHA, Rita de Cássia Luis da. História da Infância: Reflexões a cerca de

algumas concepções correntes. Revista Analecta, Guarapuava – Paraná, v.

3, n. 2, p. 51-63, jul/dez 2002.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e

videocultura na argentina. 3. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

EMMEL, Rúbia; KRUL, Alexandre José. Reflexões acerca da produção de

identidades culturais na infância pós - moderna. Disponível em:

http://www.unicruz.edu.br/15_seminario/seminario_2010/CCHC/REFLEX

%C3%95ES%20ACERCA%20DA%20PRODU%C3%87%C3%83O%20D

E%20IDENTIDADES%20CULTURAIS%20NA%20INF%C3%82NCIA%

20P%C3%93S-MODERNA.pdf

XAVIER, Aracely. As ações, estratégias, lutas e desafios do movimento de

defesa dos direitos das crianças e adolescentes no Espírito Santo.

Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais da Universidade Federal do

Espírito Santo. Vitória, 2008. Disponível em:

http://web3.ufes.br/ppgps/sites/web3.ufes.br.ppgps/files/Aracely%20Xavier

.pdf. Acesso em 15 jul de 2011.

PATERNO, Kelly A. V. e MÜLLER, Verônica R. Normalização da

erotização da infância: cotidiano escolar e familiar. Seminário de Pesquisa

do PPE, 8 e 9 de jun 2009. Disponível em:

http://www.ppe.uem.br/publicacoes/seminario_ppe_2009_2010/pdf/2009/4

1.pdf

Page 191: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

191

Sobrevivência Ameaçada: Panorama dos Assassinatos de Jovens

em Fortaleza

Rita Claudia Aguiar Barbosa 1

Rafaela Menezes Martins 2

Rafael Leite Neves3

INTRODUÇÃO

Este trabalho estuda a violência no município de Fortaleza e região

metropolitana, e tem por objetivo analisar a mortalidade por assassinatos de

jovens com idades entre 12 e 24 anos. Trata-se de uma pesquisa

quantitativa e documental, de caráter exploratório, que mostra dados

preliminares acerca de homicídios de jovens no período de 2009 e 2010.

Nos últimos anos a violência juvenil tem sido reconhecida como um

fenômeno de âmbito nacional que não se encontra mais restrito apenas nos

grandes centros urbanos, sendo registrada inclusive em pequenas

localidades da zona rural. Essa violência, traduzida em óbitos por

assassinatos, apontam nas últimas décadas uma diminuição da idade entre

os jovens vitimados nesse tipo de crime. No município de Fortaleza e

região metropolitana, os resultados obtidos nesse estudo indicam que 51%

dos jovens assassinados tinham idade entre 21 e 24 anos e desses, 81%

eram do sexo masculino. Quanto ao agressor, 62% eram do sexo masculino.

Os principais motivos alegados pelo agressor ao cometer o crime são em

ordem decrescente drogas e acerto de contas (17%); assalto (10%);

vingança e discussão banal (7%); briga de gangue (6%); outros ( 11% ) e

não mencionados ( 25% ). As armas de fogo foram as principais

responsáveis pelos assassinatos (84%).Os dados apontam a realidade

Page 192: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

192

perversa a que estão submetidos os jovens de Fortaleza e região

metropolitana, onde lhe é negado o direito a chegar na adultice.

O mapeamento da violência juvenil em Fortaleza e região

metropolitana é um recorte do projeto de extensão da Hemeroteca do

NEGIF, desenvolvido no Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero,

Idade e Familia-NEGIF/UFC. Esse projeto, iniciou-se em 1999, e tem como

objetivo disponibilizar um acervo para consulta da comunidade acadêmica

e sociedade em geral, seja para leitura como também pesquisa.

O acervo da hemeroteca se constitui de reportagens sobre os temas

estudados no núcleo, que são coletadas através da imprensa escrita

cotidiana que são os dois jornais de maior circulação em Fortaleza (Diário

do Nordeste e O Povo). Dentre os temas estudados está o da violência

juvenil.

O material escrito é fonte clássica de pesquisa para todo cientista

social que utiliza de textos e material de arquivo ou imprensa constituído

como fontes secundárias. Ao nos servirmos de notícias de jornal, portanto,

não inauguramos um método. Valemos-nos dos dados que elas apresentam,

e que suscitam questões ao pesquisador (AlVIM, PAIM, 2000).

Em Fortaleza e região metropolitana, a grande incidência de óbitos

por assassinatos, de jovens e praticados por jovens, tem sido um dado desse

fenômeno urbano da contemporaneidade divulgado nos jornais. Portanto

acreditamos na possibilidade de utilização desse modelo analítico como

instrumento a fim de auxiliar o recorte da realidade a ser estudada.

É importante salientar que, o conceito de violência utilizado nesse

estudo corresponde ao do óbito por assassinato, que para o SIM

(Subsistema de Informação sobre Mortalidade) é considerado como morte

por “causa externa”, que são os óbitos por assassinatos, acidentes,

envenenamento, queimadura, afogamento ,etc.

Page 193: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

193

A violência não é um fenômeno da contemporaneidade. A história

das sociedades é marcada por manifestações diferentes de violência, com

características variáveis no tempo e no espaço.

As culturas e sociedade apresentam definições

diferentes de violência, pois essas definições

dependerão do contexto, do tempo e dos lugares

ocorridos. A violência pode ser percebida da mesma

maneira formando um fundo comum nos valores éticos

sendo “é percebida como exercício da força física e da

coação psíquica para obrigar alguém a fazer alguma

coisa contraria a si, [...], causando-lhe danos profundos

e irreparáveis, como a morte, a loucura, a auto-

agressão ou a agressão aos outros” (CHAUÍ, 2000,

p.336-337).

Nesse estudo objetiva-se analisar dados de mortalidade por

homicídios em Fortaleza e região metropolitana no período 2006 a 2011.

No que diz respeito à Metodologia do estudo foi feita uma análise

quantitativa e documental. Segundo Bandeira (2005), a pesquisa

documental é um método de tratamento de dados, que envolve coleta,

organização, classificação, seleção e análise de informações

consubstanciadas em documento. Possui uma abordagem muito ampla na

medida em que possibilita o manejo de toda uma diversidade de

informações sistemáticas, comunicadas de inúmeras [...] como fonte

durável de comunicação.

A partir da década de 1970, Fortaleza vem vivenciado uma intensa

transformação que tem se traduzido um aumento elevado de sua população,

preponderância das atividades terciária na sua economia, e uma intensa

integração na economia globalizada.

Page 194: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

194

Justapostos a esses aspectos que poderíamos considerar como de

indicadores de modernidade, a cidade apresenta um imenso hiato social

entre ricos e pobres, que se reflete na elevada concentração de renda,

crescimento desordenado da cidade, das áreas periféricas, precarização do

trabalho ou inexistência do mesmo, e aumento considerável da violência

urbana, em especial dos crimes contra a pessoa, mais particularmente os

homicídios contra Jovens.

A violência urbana, aqui retratada em numero de assassinatos, tem-

se se mostrado não somente como um problema de segurança pública, mas

como um fenômeno social que tem atingido de modo significativo grande

parte da população e se alastrado com velocidade surpreendente para

municípios cada vez menores.

Pires (1983), corrobora com essa afirmação quando sugere que no

Brasil a violência não está apenas nas grandes cidades, atinge também as

pequenas localidades. A lógica do capitalismo, o desenvolvimento da

indústria, ocasionou uma super população nos centros urbanos, e tem como

resultado a selvageria, a agressividade, onde nem todos podem ter acesso a

determinados bens.

O aumento da violência no Brasil divulgada no Mapa da Violência

dos Municípios (2006), indica que na década de 1994/2004, o número total

de homicídios registrados no Brasil passou de 32.603 para 48.374

representando um crescimento superior ao da população, que foi de 16,5%

nesse mesmo período. Sendo os jovens as principais vítimas,

compreendendo a faixa etária de 15 a 24 anos de idade.

Os jovens que vivem em condições econômicas mais precárias são

os que mais sofrem das adversidades, como também são mais excluídos de

bens e serviços individuais e coletivos de consumo e expostos a riscos

sociais maiores do que os outros jovens de regiões mais privilegiadas.

Page 195: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

195

Reis (2000), apud Novaes (1998) chama atenção para esse fato

onde ressalta que os jovens nascidos a partir dos anos de 1970 foram

“socializados em um tempo caracterizado pelo aumento da chamada

violência urbana, o que traz conseqüências para toda uma geração: os

excluídos da cidadania são mais vulneráveis aos efeitos mais cruéis da

criminalidade violenta

Na cidade de Fortaleza, o fenômeno da violência juvenil também

tem se mostrado evidente. Matéria divulgada pelo jornal O Povo trás um

estudo realizado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a

educação, à ciência e a cultura) mostrando que o número de homicídios de

jovens na faixa etária de 15 a 24 anos em Fortaleza cresceu 88,2% entre os

anos de 1994 e 2004, o que representa 127 mortes por homicídio em 1994,

e 239 no ano de 2004 (CAMELO, 2006).

Numa análise das taxas de homicídios nas capitais Brasileiras no

período de 1998 a 2008 Waiselfisz (2011), aponta que várias capitais

tiveram aumentos expressivos nas taxas de Homicídio (em 100 Mil) 15 a 24

Anos de Idade, dando a entender situações muito diferenciadas de

tratamento da segurança pública e, junto com ela, as questões relativas à

juventude. Maceió e Salvador aparecem no topo, com incrementos

altamente preocupantes. Porém, não são menos preocupantes os também

elevados incrementos de São Luís, Curitiba ou Florianópolis. Para Fortaleza

a taxa foi de 114,4%, indicando um crescimento considerável no período de

dez anos.

A violência juvenil não tem se restringido a Fortaleza. Os demais

municípios do Estado do Ceará já apresentam dados preocupantes com

relação a esse fato. Na região metropolitana, observa-se que a mesma tem

presenciado um crescimento populacional considerável, decorrente muitas

vezes da migração rural ou pelo aumento do preço da terra na cidade sede.

Page 196: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

196

Em busca de melhores condições de vida essa população passa a residir em

um espaço desprovido muitas vezes de condições mínimas de

sobrevivência. Verdadeiras cidades dormitórios essas regiões não tem

conseguido suprir a demanda de serviços públicos essenciais.

Metodologia / Materiais e Métodos

Para a realização deste trabalho foram utilizadas informações

relativas a óbitos por assassinatos de jovens de 12 a 24 anos, publicados nos

jornais O Povo e Diário do Nordeste do acervo da Hemeroteca do NEGIF,

relativos ao período de 2006 a 2011.

A análise documental enfoca o uso do jornal como fonte de dados

capaz de reconstituir cotidianamente o passado, podendo assim, completar e

enriquecer o uso de outras técnicas de coleta de informações (BANDEIRA,

2005).

Em um segundo momento esses dados foram repassados para fichas

a fim de sistematizar as notícias coletadas. Cada ficha continha campos de

questões acerca dos jovens assassinados, dos que cometeram o crime e

sobre as condições da ocorrência do óbito.

Posteriormente utilizou-se o programa Microsoft Acces afim de

construir um banco de dados com o material coletado das fichas.

Para análise dos dados, fez-se uso da estatística descritiva, por meio

de tabelas, usando o programa Microsoft Excel.

Resultados e Discussão

Pela dimensão e complexidade assumida no Brasil atual, a violência

expressa muitas vezes em homicídios, exige uma reflexão sobre os sujeitos

envolvidos.

Page 197: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

197

Nas últimas décadas presenciamos um novo padrão de mortes de

jovens. Segundo Waiselfisz (2011), apud Vermelho e Mello Jorge (1998),

estudos históricos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro mostram

que as epidemias e doenças infecciosas – as principais causas de morte

entre os jovens há cinco ou seis décadas –, foram progressivamente

substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade,

principalmente, acidentes de trânsito e homicídios. Em 1980, as “causas

externas” já eram responsáveis por aproximadamente a metade (52,9%) do

total de mortes dos jovens do país. Vinte e oito anos depois, em 2008, dos

46.154 óbitos juvenis, 33.770 tiveram sua origem em causas externas, pelo

que esse percentual elevou-se de forma drástica: em 2004, quase ¾ de

nossos jovens (72,1%) morreram por causas externas.

Na cidade de Fortaleza e região metropolitana, no período de

análise, dos jovens assassinados 22% encontrava-se na faixa etária de 12 a

15 anos. Percebe-se que os mesmos encontra-se no inicio de um novo ciclo

de vida: adolescência. Já os jovens se encontram entre 21 e 25

correspondem a 51% dos assassinados. (Tabela 01)

Tabela 01 – Número de jovens que foram assassinados por faixa

etária.

Faixa etária N %

12 a 15anos 25 22

16 a 20 anos 58 27

21 a 24 anos 30 51

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa

De acordo com a tabela 2 e a tabela 3 percebe-se a preponderância

do sexo masculino tanto dos jovens assassinados, 81%, como os que

Page 198: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

198

causaram o óbito, 64%. Vale, porém salientar que no que diz respeito a

participação da mulher nessa pratica de crime é irrelevante( 2%).

Giddens (2010), ao discutir sobre as razões que levam a

diferenciação no padrão de violência praticados entre os sexos, argumenta

que atualmente, tanto os traços de “feminilidade” como o de

“masculinidade” são vistos, em grande medida, como produtos sociais.

Muitas mulheres são socializadas para dar valor à qualidade na vida social,

como cuidar dos outros e manter relações pessoais, diferentes das que são

valorizadas para os homens.

Ainda segundo o autor, é importante ressaltar, é o fato de o

comportamento das mulheres serem frequentemente confinado e controlado

de modo distinto dos das atividades masculinas, através da influencia da

ideologia e de outros fatores- como a idéia de “boa menina”.

Tabela 02 – Número de jovens assassinados por sexo

Sexo do agredido N %

Masculino 91 81

Feminino 22 19

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa

Tabela 03 – O sexo do agressor

Sexo do agressor N %

FEMININO 2 2

MASCULINO 76 64

NÃO MENCIONADO 35 31

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa.

Page 199: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

199

No que diz respeito óbitos por armas de fogos no Brasil, os

registros do SIM (Subsistema de Informação sobre Mortalidade) permitem

verificar que, entre 1979 e 2003, acima de 550 mil pessoas morreram

resultado de disparos de algum tipo de arma de fogo, num ritmo crescente e

constante ao longo do tempo. Das 550 mil mortes por armas de fogo,

205.722, isto é, 44,1%, foram jovens na faixa de 15 a 24 anos. Esse dado

adquire sua devida dimensão se consideramos que os jovens só representam

20% da população total do país. Isto indica que, proporcionalmente,

morrem mais de o dobro de jovens vítimas de armas de fogo do que nas

outras faixas etárias (WAISELFISZ, 2005).

Apesar das políticas de desarmamento posterior ao período da

divulgação desses dados, tais medidas não foram suficientes para coibir o

acesso a esse instrumento, assim como sua utilização por grande parte da

sociedade civil.

Esse violento crescimento da mortalidade por armas de fogo pode

ser observado através dos dados da nossa pesquisa que indicam que as

armas de fogo foram as que tiveram maior representatividade (84%),

ficando as armas brancas (7%), tabela 04.

Tabela 04 – Tipo de arma utilizada.

Tipo de arma N %

ARMA DE FOGO 95 84

ARMA BRANCA 8 7

OUTROS 10 9

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa.

Dentre os motivos que levaram ao óbito dos jovens, as drogas e

acertos de contas despontam em primeiro lugar com 17%. Assalto 10%;

Page 200: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

200

vingança e discussão banal, 7%; briga de gangue 6%; outros 11%, e não

mencionado 25%. (Tabela 5).

O consumo de substancias psicoativas tem se mostrado evidente em

grande parte das sociedades contemporâneas. É importante salientar que

esses elementos sempre existiram e foram utilizados desde os primórdios

das civilizações. Chamamos atenção aqui que as drogas referidas,

correspondem aos psicoativos ilícitos, ao serem consumidos, apresentam

um dano físico ou social para o dependente ou para a sociedade como

homicídios, assaltos, brigas.

Tabela 05 – Motivo que os jovens morreram.

Motivos N %

Drogas 19 17

Vingança 8 7

Assalto 12 10

Discussão banal 8 7

Briga de gangue 7 6

Acerto de contas 19 17

Outros 12 11

Não mencionado 28 25

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa.

Fortaleza lidera no espaço da ocorrência do crime (81%), porém já

é indicativo a presença da violência na região metropolitana (19%). É o

retrato da interiorização da violência.

Page 201: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

201

Tabela 07 – Região de ocorrência do crime

Região N %

FORTALEZA 92 81

REGIÃO

METROPOLITANA

21 19

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa.

Tabela 08 – Motivo que os jovens morreram.

Motivos N %

Drogas 19 17

Vingança 8 7

Assalto 12 10

Discussão banal 8 7

Briga de gangue 7 6

Acerto de contas 19 17

Outros 12 11

Não mencionado 28 25

Total 113 100

Fonte: dados primários da pesquisa.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da mortalidade juvenil em Fortaleza e região

metropolitana retrata a realidade perversa a que estão submetidos nossos

jovens. Os achados apontam que esse fenômeno atinge mais fortemente os

jovens 21 a 24 anos (51%), porém a faixa etária de 12 a 15 é bastante

significativa (22%).

Page 202: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

202

Os homens tiveram uma participação considerável na prática desse

delito (64%), como também os que foram mais assassinados (84%). Isso

mostra que a violência juvenil em Fortaleza é um fenômeno

predominantemente masculino.

Os resultados sugerem que há um acesso fácil a utilização de armas

de fogo por parte da sociedade civil, na medida em que 84 % dos

assassinatos foram praticados por esse instrumento.

Os psicoativos ilícitos e acertos de contas foram os principais

motivos que levaram a prática do assassinato, refletindo nesse contexto a

banalização da vida.

O estudo da relação entre juventude e violência busca trazer um

debate sobre a perplexidade de um panorama que para nos é

incompreensível.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVIM, R, PAIM, E. Os jovens suburbanos e a mídia: conceitos e

preconceitos. In: ALVIM, R e GOUVEIA, P.(Orgs). Juventude anos 90.

Contra Capa. Rio de Janeiro, 2000.

BANDEIRA, João T. S. Análise documental: o uso do jornal na pesquisa

qualitativa. In: DAMASCENO, Maria N. e SALES, Celecina. V.(Orgs). O

caminho se faz ao caminhar: elementos teóricos e práticas na pesquisa

qualitativa. Fortaleza: Editora UFC, 2005, p. 148.

CAMELO, Carlos Henrique. Número de homicídios entre jovens cresce

88,2% na capital. O povo, Fortaleza, p. 01, 27 out. 2006.

CHAUÍ, Marilene. Convite à filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000

GIDDENS, Anthony. Sociologia. :Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010.

MAPA da Violência dos Municípios Brasileiros (2006).

Page 203: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

203

PIRES, Cecília. A violência no Brasil. São Paulo. Editora Moderna, 1983.

V. 3. (coleção Polêmica).

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência no Brasil 2011-Os jovens

no Brasil. São Paulo. Instituto Sangari ,2011.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mortes matadas por armas de fogo no

Brasil-1979-2003. BrasiliaUNESCO, 2005.

Page 204: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

204

Reflexões sobre a práxis do Projeto Novas Cores na Escola Padre

Rocha

Juliana Hilario Maranhão44

Liana Araújo Scipião45

Anna Thércia de Assis Ferreira46

Camila Brasil Uchoa de Albuquerque47

Rafaella Maria de Carvalho Cruz48

Alana Isla Montenegro Feire49

Deyseane Maria Araújo Lima50

Introdução

O Projeto Novas Cores, vinculado ao Núcleo Cearense de Estudos e

Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC), surgiu em 2001 com o

objetivo de atender crianças e/ou adolescentes em situação de

vulnerabilidade social. Constitui-se como uma educação pautada na

cidadania, a fim de que os participantes possam perceber-se como

sujeitos de direitos e deveres, ativos no processo de construção de

suas histórias.

44

Estudante de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET do Serviço Social. Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 45

Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 46

Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 47

Estudante de Serviço social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e da

Psicologia d Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista do Programa de

Educação Tutorial – PET do Serviço Social. Integrante do Nucepec e membro do

Projeto Novas Cores. [email protected] 48

Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. [email protected] 49

Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do

Nucepec e membro do Projeto Novas Cores. 50

Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Especialista em Educação Inclusiva (UECE) e Educação a Distância (SENAC).

Integrante do Nucepec e supervisora do Projeto Novas Cores.

[email protected]

Page 205: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

205

As atividades realizadas utilizam a arte como instrumento, uma vez

que, a partir desta, é possível a representação da realidade e a expressão de

pensamentos, sentimentos e emoções, facilitando o auto-conhecimento e

permitindo ao sujeito construir e ressignificar sua maneira de estar e atuar

no mundo.

O Projeto dedicou-se ao estudo de temáticas como desenvolvimento

infantil, cidadania, psicologia comunitária, educação popular, arte-

educação, arte-terapia, violência, criatividade, metodologia, ludicidade e

atuação profissional, visando a um embasamento teórico e momentos de

reflexão, crítica, problematização e criação que enriquecessem nossa

experiência e contribuíssem para o incremento das atividades no campo a

ser indicado para o referido período. É válido ressaltar que a escolha do

público alvo varia tanto de acordo com o interesse dos que correntemente

fazem parte do Projeto quanto das instituições que nos convidam para

formar parcerias.

Decidimos atuar em uma instituição de ensino a Escola de Ensino

Fundamental e Médio Padre Rocha, situada no bairro Joaquim Távora, após

a diretora contatar uma das integrantes do Projeto, buscando viabilizar uma

nova parceria. A ideia era de que trabalhássemos com dois grupos de

crianças entre 8 e 10 anos do 3º ano do Ensino Fundamental. Tal proposta,

depois de lançada em uma das reuniões do Novas Cores, foi aprovada pelo

grupo. Atuamos, então, durante dois semestres, de agosto de 2009 a junho

de 2010. Neste período, houve a inserção de estudantes de Serviço Social e

Psicologia, estimulando a atuação interdisciplinar e a introdução de um

olhar social e político.

Histórico da Escola Padre Rocha

Page 206: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

206

O relato das profissionais elucidou um pouco sobre o contexto no

qual a escola foi criada. Através dele, informamo-nos que a instituição

surgiu em 1967 na forma de associação. A Associação Social da Paróquia

da Piedade (ASPADE) foi idealizada e fundada pelo Padre Rocha, na época

pároco da Igreja. Mais tarde, quando oficialmente instituída escola, levou o

nome em homenagem ao seu fundador. Alguns membros da comunidade,

no momento da criação, apoiaram consideravelmente o movimento. Hoje

em dia, contudo, a maioria dos moradores pouco se apropria do espaço.

Atualmente, a instituição funciona nos três períodos. Conquanto

não haja aulas no turno da tarde, permanece aberta para atividades

complementares e outros eventos. Verificamos em sua estrutura física a

existência de 11 salas de aula (informática e multimeios). Por meio de

registros, contabilizamos o corpo docente, dos quais 16 são efetivos e 17

temporários. Na secretaria trabalham 6 profissionais efetivos. Conta, ainda,

com o apoio de 7 profissionais terceirizados que auxiliam no que diz

respeito à segurança e na limpeza, além de 2 merendeiras e 1 auxiliar de

serviços gerais.

O Núcleo Gestor busca constantemente trazer profissionais para

que sejam ministrados cursos para os professores acerca de novas

metodologias de ensino, ressaltando a importância de uma formação

contínua para os que educam. Esforça-se para trabalhar os aspectos

psicossociais de seus alunos para além da sala de aula. Mesmo não

possuindo recursos suficientes para uma melhor infraestrutura, a escola já

dispõs para os estudantes de atendimento voluntário com profissionais de

Psicomotricidade Relacional, ofertou oficinas de canto e palestras sobre

diversos temas, dentre outras atividades. A maior parte dos que estão

matriculados reside nas proximidades da instituição e encontra-se inserida

Page 207: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

207

num contexto de violência e drogas; a urgência em se realizar alguma

atividade, portanto, nunca se esvai.

Nessa perspectiva, percebemos uma aproximação entre o trabalho

que a instituição vinha desenvolvendo – e pretende continuar instaurando –

e os objetivos do Projeto, sobretudo no que pode se referir à promoção da

cidadania e desenvolvimento da autonomia dos sujeitos.

A Interdisciplinaridade no Projeto Novas Cores

Reflexões sobre a Contribuição do Serviço Social

O Serviço Social surge como profissão inscrita na divisão sócio-

técnica do trabalho (IAMAMOTO, 2008) a partir da intervenção do Estado

na chamada questão social caracterizada pela pauperização da classe

trabalhadora e sua inserção no campo político pleiteando melhores

condições de vida.

O assistente social atua no trato individual de necessidades de

caráter coletivo (IAMAMOTO, 2008), mediando à relação entre o Estado e

a sociedade e apaziguando possíveis conflitos entre esses entes, bem como

lidando com situações de violação de direitos sociais. Sua atuação ocorre

no âmbito da esfera social por meio da elaboração, execução e avaliação de

políticas sociais públicas, na orientação social de indivíduos, famílias e

comunidades, tendo como espaços sócio-ocupacionais entidades estatais,

empresas privadas, organizações não-governamentais, hospitais, sendo seu

objeto de intervenção as diversas expressões da questão social presentes na

sociedade, tais como pobreza extrema, violência urbana e doméstica,

favelização, drogadição, exploração do trabalho e exploração sexual de

mulheres, crianças e adolescentes, situação de moradia de rua, dentre outros

e, como matéria-prima os serviços sociais.

Page 208: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

208

Cabe ressaltar que pelo fato das facilitadoras estarem em processo

de formação profissional nossa atuação não se estabeleceu como a de um

profissional do Serviço Social, mas dada a nossa formação acadêmica nossa

participação e a problematização sobre as vivências no Projeto pautou-se

numa perspectiva sócio-política e ética que perpassa a profissão e o curso

de graduação.

No qual, trata-se de uma ação global de cunho sócio-educativo ou

socializadora (IAMAMOTO, 2008), apoiada em um projeto ético-político

donde visualiza como princípio central a liberdade, propondo-se a

construção de uma nova sociabilidade e a defesa intransigente dos direitos

humanos.

Durante a atuação na escola encontramos situações de violência

entre os alunos por meio de bullying, agressões físicas, preconceito por

raça, gênero, assim como pudemos perceber que a escola também era

provedora de violência simbólica e institucional tanto contra as próprias

crianças em relação à hierarquia estabelecida entre professor-alunos,

funcionários-alunos como coordenação-professor e coordenação-

funcionários.

Um fato interessante que exemplifica tais situações foi o caso de

uma criança que estava na fila do lanche e que entrou em conflito com uma

funcionária do refeitório e ambos trocaram ofensas. A criança ao ser

chamada a atenção para os combinados do grupo e diante das ameaças da

funcionária se escondeu em uma sala de aula, necessitando da intervenção

das facilitadoras que ocorreu por meio do diálogo com a criança para que

refletisse sobre sua atitude. No momento, a criança argumentou que sua

ação foi movida por ter sido destratada pela funcionária e que por isso falou

as ofensas. Foi explicado para a criança que sua atitude não foi correta, mas

que não eximia a culpa da funcionária. No entanto, devido trabalharmos

Page 209: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

209

valores como o diálogo, compreensão e o respeito, foi solicitado a criança

que se desculpasse com a funcionária. Como a criança se mostrava

envergonhada, uma das facilitadoras mediaria o diálogo, onde ambos

reconheceram suas atitudes e pediram desculpa.

Outro fator que impulsionou as temáticas e atividades dos

encontros foi às características sócio-econômicas e culturais do bairro onde

a escola se localiza e onde as crianças moram, devido à comercialização de

entorpecentes, situações de roubo e furto, situações de trabalho infantil e

violência sexual. O que refletia no modo de agir das crianças que tinham

como brincadeiras algumas agressões como chutes, empurrões, ofensas,

dentre outros. Nesse sentido, procuramos dialogar com as crianças

propondo um novo modo de agir por meio da reflexão do seu cotidiano, tal

como situações que considerem relevantes para elas, como a atitude que

deveria ser tomada quando nos sentíssemos agredidos pelo colega. Isto

possibilita a construção de novos valores por meio da utilização dos

combinados, assim como a autonomia e o posicionamento das crianças

diante de suas vivências.

Reflexões sobre a Contribuição da Psicologia

A escolha do campo de atuação do Novas Cores, na Escola Padre

Rocha, trouxe desafios para as facilitadoras do projeto, pois o contexto

escolar possui particularidades em seu bojo que deveriam ser apreendidas

no intuito de obter resultados mais abrangentes na ação extensionista. Neste

sentido, vale salientar a relevância do olhar psicológico acarretado pelo fato

de que, durante este período, parte das facilitadoras do projeto eram

graduandas em Psicologia, além da supervisora ser psicóloga. Desta forma,

a atuação extensionista foi embasada em capacitação semanal, que incluiu o

estudo de textos cujos temas remetem à Psicologia Educacional, sub-área

Page 210: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

210

da Psicologia que diz respeito à inserção do saber psicológico no meio

escolar, diferenciando-se da Psicologia Escolar, que diz respeito à atuação

profissional do psicólogo nas escolas (ANTUNES, 2008).

Através do contato com profissionais e técnicos da Escola Padre Rocha,

percebemos que havia uma concepção errônea e freqüentemente conflituosa

acerca do que o Projeto propunha, vinculada à representação de que a

inserção do saber psicológico na escola se dá no sentido de “tratar”

comportamentos de alunos que não estão de acordo com determinados

padrões de conduta. Freqüentemente, algum funcionário procurava as

facilitadoras no intuito de relatar acerca de determinado aluno, que possuía

atitudes agressivas, caracterizando o seu cotidiano escolar, e vinculando o

comportamento à informações que diziam respeito ao contexto familiar ao

qual a criança estava inserida. A abordagem das facilitadoras em relação a

este fato, inicialmente, possuía a preocupação no sentido de não

estigmatizar a criança, e manter um olhar atento no intuito de entender os

motivos de determinado comportamento, e buscar ferramentas para que as

relações que constitui neste âmbito sejam positivas para o seu

desenvolvimento. A partir disto, apeendemos que a escola ainda não possui

mecanismos para abranger a diversidade contida nesta, ou lidar com

configurações de família contemporâneas. Desta forma, entendemos que a

inserção da Psicologia no âmbito escolar,

(...) situa-se, sobretudo, no âmbito da análise das

relações que se estabelecem na escola, intervindo no

sentido de apontar mecanismos psíquicos envolvidos

nas situações de impasse, bem como identificando

brechas que possam indicar saídas possíveis (SILVA,

2010, p.123).

Ademais,

Uma contribuição que a Psicologia pode oferecer à

Educação consiste em apontar os mecanismos

subjetivos que dificultam a resolução dos impasses, ou

seja, destacar o que há de relacional − e, portanto,

Page 211: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

211

implicando todos os sujeitos envolvidos − nos

problemas identificados na escola. Essa é uma

perspectiva que muitas vezes causa estranhamento no

contexto escolar, cujas estruturas física e funcional

foram elaboradas para receber, atender e formar em

massa. Sendo assim, a atenção ao que é peculiar a

determinado sujeito ou a determinada relação não

constitui prática sistemática nessa instituição (SILVA,

2010, p. 135).

Entendemos que a relevância do olhar da Psicologia no contexto

escolar se dá pelo fato de que esta apreende a singularidade dos alunos,

advindos de contextos sociais distintos, com suas peculiaridades. Na escola

Padre Rocha, foi percebida a necessidade de que os temas fossem

trabalhados através de dinâmicas, por conta do público participante, que se

mostrava indiferente a abordagens tradicionais de aprendizagem. Assim,

aos poucos eles foram demonstrando maior interesse em relação às

atividades e revelando detalhes pertinentes à sua socialização no contexto

escolar, familiar e comunitário, que foram acolhidas pelas facilitadoras

como relevantes, e, desta forma, vínculos foram criados, o que contribuiu

para o êxito da atuação do Projeto.

Cidadania e Infância: Algumas Considerações.

O surgimento da cidadania está relacionado à pólis grega onde o

surgimento da vida na cidade torna capaz aos homens o exercício dos seus

direitos e deveres a partir da atuação na esfera pública, numa relação de

iguais mediante palavras e persuasão (sem violência), sendo o espírito da

democracia. No entanto, era restrita aos homens livres, os cidadãos,

enquanto mulheres, crianças e escravos eram considerados meros objetos de

sua vontade (MANZINI COVRE, 2002).

Page 212: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

212

É com o desenvolvimento da sociedade capitalista que a

democracia e a cidadania retornam ao cenário político a partir da

contestação do feudalismo e do direito natural pelos princípios da

Revolução Francesa, quais sejam a liberdade, igualdade e fraternidade, no

que tange ao plano jurídico necessário ao novo modo de produção

estabelecido pela burguesia, constituindo-se o Estado de Direito51

.

Nesse sentido, a cidadania está relacionada ao usufruto de direitos

(bens sociais como saúde, educação, assistência social, trabalho, habitação,

lazer,...) e ao exercício de deveres para com os demais integrantes da

sociedade. Necessitando da articulação de direitos civis, políticos e sociais

para se efetivar.

Podemos demarcar no Brasil, no final da década de 1970 e início

dos anos 1980, a emergência de movimentos sociais e segmentos, antes a

margem da sociedade e das políticas do Estado, que reivindicavam uma

maior visibilidade e seu reconhecimento como sujeitos sociais viabilizando

políticas sociais públicas que promovessem a igualdade e efetivação de seus

direitos considerando suas peculiaridades tornando-os efetivamente

cidadãos.

A Constituição Brasileira de 1988 traz como um de seus

fundamentos a cidadania, caracterizada como a igualdade perante a lei e o

acesso igualitário dos direitos sociais e políticos. Tal Constituição marca

uma nova fase para o país em que o restabelecimento da democracia e de

direitos políticos possibilitou a abertura de espaços para a participação

popular e o surgimento de novos sujeitos sociais. Nesse sentido,

51

O Estado de Direito coloca-se como o oposto ao Estado de Nascimento, ao

Estado Despótico, até então existente sob a regência da aristocracia. Neste último, a

sorte dos homens podia ser decidida arbitrariamente; não havia como se opor à

morte ou a outras imposições (...). Tudo isso mudou com o surgimento do Estado

liberal burguês, quando a burguesia instaurou o Estado de Direito.

Page 213: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

213

A cidadania é o próprio direito a vida no sentido pleno.

Trata-se de um direito que precisa ser construído

coletivamente, não só em termos do atendimento às

necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis

de existência, incluindo o mais abrangente, o papel

do(s) homem(s) no Universo (MANZINI COVRE,

2002, p. 22).

No entanto, pensar em cidadania requer inseri-la no contexto sócio-

histórico brasileiro. Como falar em direitos em um país onde as

desigualdades de classe, gênero e etnia emergem cotidianamente nas

relações sociais, seja pelo preconceito, exploração do trabalho e violência?

Ou como exercitar deveres como cidadão numa cultura marcada pelo

individualismo, banalização das formas de violência e pela corrupção de

gestores públicos?

Tais questionamentos acerca da cidadania são vivenciados nos

espaços de atuação do Novas Cores e posto em debate pelo Projeto a partir

do trabalho com crianças por meio de atividades lúdicas e pela discussão

dos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), utilizando

como método a arte-educação incentivando a expressão, a espontaneidade,

a autonomia e o reconhecimento como sujeitos de direitos, propondo uma

nova sociabilidade voltada para valores humanos e igualitários.

Na atuação do Projeto Novas Cores procurávamos articular o

contexto comunitário, escolar e familiar das crianças com os direitos e

deveres preconizados no ECA, dialogando sobre os seus princípios e suas

vivências, o que visualizavam como direitos e deveres, seu papel na

construção de sua história. Ressaltando além da discussão dos problemas,

mas as possibilidades de atuação com a comunidade, a escola e as crianças.

Nas reuniões de supervisão, questionávamos o papel exercido pelas

integrantes do Projeto e o trabalho com as crianças, em especial nas

Page 214: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

214

atividades e temas propostos refletindo sobre os direitos e deveres da

criança e do adolescente e suas violações articulando ao contexto social de

neoliberalismo e pauperização da população, que afeta diretamente as

condições de vida das crianças, expandindo e articulando o debate no plano

micro e macro estrutural, imprescindível para o trabalho condizente com a

realidade dos atendidos pelo Projeto.

Assim, faz-se necessário refletir que tipo de infância se é pensada

quando falamos de cidadania, bem como são garantidos os direitos e

deveres desses sujeitos.

Estatuto da Criança e do Adolescente: a Construção de um Novo

Olhar sobre a Infância.

A infância tema recorrente na sociedade atual foi sendo construída

ao longo da história da humanidade de acordo com a cultura e o contexto

histórico de cada civilização. Segundo Ariès (2006), o sentimento de

infância como conhecemos hoje resulta de uma construção social e

histórica, que ele definiu como várias etapas lentas e gradativas. Sua

evolução pode ser acompanhada na história da arte e da iconografia

européia a partir do século XIII até o século XVI.

No entanto, é no século XVII que o desenvolvimento do conceito

de infância torna-se particularmente numeroso e significativo em considerar

uma particularidade infantil distinguindo a criança do adulto sendo

fundamental a reforma moralista e o surgimento da escola no final do

século XVII como meio de educá-la (ARIÈS, 2006).

A família passa a se organizar em torno da criança e a lhe dar tal

importância, que essa sai do seu antigo anonimato, tornando-se impossível

perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, sendo primordial a afeição

entre os pais e seus filhos para a manutenção social da família. Surgem dois

Page 215: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

215

novos sentimentos, quais sejam o de intimidade e o de identidade entre os

membros da família que passam a se unir pelo sentimento, o costume e o

gênero da vida dando um contorno do que viria ser a família moderna

burguesa (ARIÈS, 2006).

Cabe ressaltar que, segundo Cohn (2005) o estudo de Ariès mostra

que a idéia de infância é uma construção social e histórica do Ocidente,

podendo em outras culturas e sociedades, não existir tal idéia em relação à

infância ou ser formulada de outros modos. O que é ser criança, ou quando

acaba a infância, pode ser pensado de maneira muito diversa em diferentes

contextos socioculturais.

A década de 1970 é marcada pela efervescência das lutas em defesa

dos direitos humanos no mundo. No Brasil, no final daquela década e

durante a década de 1980 emergem lutas pela redemocratização e

restabelecimento da democracia no país. Assim, no período pós-ditadura

militar novos sujeitos entram em cena para lutar por direitos sociais e

políticos, antes fornecidos de forma precária ou restritos. Neste momento

singular do país estudantes, profissionais e militantes ou demais cidadãos

saíram às ruas e aos espaços de participação existentes para discutir uma

nova sociedade baseada na democracia, o que culminou na Constituição

Federal Brasileira de 1988.

Nessa conjuntura o movimento em defesa de crianças e

adolescentes começa a ganhar espaço a partir da visibilidade de situações

de negligência familiar, exploração sexual e trabalho infanto-juvenil e de

descaso do Estado para com o cuidado e proteção dessas pessoas. É a partir

da mobilização popular que é garantido a referência nos artigos 227 e 228

sobre a criança e o adolescente na Constituição, bem como a garantia e

reconhecimento desses como sujeitos de direitos em condição peculiar de

desenvolvimento. Donde,

Page 216: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

216

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar

à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de

toda forma de negligência, discriminação, exploração,

violência, crueldade e opressão (BRASIL, 2010,

Constituição Brasileira de 1988, Artigo 227).

Considerando ainda que, na Constituição Brasileira de 1988 em seu

artigo 228 são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos,

sujeitos às normas da legislação especial.

Posteriormente, tais artigos possibilitaram a criação do Estatuto da

Criança e do Adolescente no ano de 1990, que traz como principal mudança

o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e a

responsabilização da família, do Estado e da comunidade em cuidar do

desenvolvimento integral daqueles, contrapondo-se a idéia de menor

problema do Código de Menores de 1979. Nesse sentido,

A criança deixa de ser enfocada como um adulto em

miniatura, um ser a qual faltam às qualidades dos

adultos. A criança é reconhecida como sendo

constitutivamente dotada de qualidades intrínsecas, com

pessoas peculiares de desenvolvimento pessoal e social.

Disto resulta a principal alteração no tratamento dado às

crianças, que é a de serem portadoras de direitos,

cabendo à sociedade zelar pelo seu cuidado. (GOHN,

1997 apud PINHEIRO, 2006, p. 89).

Novo olhar sobre a questão infanto-juvenil

O Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) foi promulgado pela

Lei número 8.069 de 13 de julho de 1990, baseado na doutrina da proteção

integral preconiza no plano legal que,

Page 217: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

217

É dever da família, da comunidade, da sociedade em

geral e do poder público assegurar, com absoluta

prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à

saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,

à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,

à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Art.

4º, Lei n. 8.069 de 1990).

E, Nenhuma criança ou adolescente será objeto de

qualquer forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão, punido na

forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão,

aos seus direitos fundamentais (Artigo 5º, Lei n. 8.069

de 1990).

Para tanto, considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa

até 12 anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre 12 e 18 anos

de idade (ECA, Lei 8.069/90, 1990, Artigo 2°).

O ECA traz uma nova concepção de infância e adolescência

baseado na doutrina da proteção integral percebe a criança e o adolescente

como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e como sujeitos de

direitos. Segundo Pinheiro (2006), entende-se por proteção integral um

conjunto de cuidados voltados para a proteção e a assistência à criança, de

forma a assumir suas responsabilidades na comunidade.

No entanto, a infância e a adolescência no Brasil são marcadas por

situações de negligência, maus-tratos, drogadição, agressão, dentre outros,

demonstrando a negação de seus direitos, perpassado por questões de

gênero, etnia e classe social.

O Novas Cores busca viabilizar os direitos da criança e do

adolescente a partir da arte e de jogos lúdicos onde os sujeitos possam

expressar por meio da linguagem lúdica e artística o que pensam e refletem

sobre o mundo a sua volta e suas próprias experiências. Corrobora para a

Page 218: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

218

prática do Projeto a definição da alínea I do artigo 13º da Convenção das

Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC) (1989), no qual

A criança terá o direito à liberdade de expressão. Esse

direito incluirá a liberdade de procurar, receber e

divulgar informações e idéias de todo tipo,

independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita

ou impressa, por meio das artes ou de qualquer outro

meio escolhido pela criança (p. 109).

Na execução do Novas Cores no ano de 2009 e 2010 atuamos no

contexto escolar vivenciado pelas crianças, trabalhando a partir das

demandas que emergiam das crianças advindas das relações construídas no

espaço, assim como na comunidade e na família, possibilitando a expressão

dos sujeitos sociais.

Ao significar a criança e o adolescente como sujeitos,

essa representação leva a concretização de práticas

sociais, caracterizadas, no geral, pela preferência de

atividades desenvolvidas com a criança e o adolescente

em meio aberto e no interior de sua própria

comunidade, ou seja, em seu contexto sócio-histórico

de origem. Essas práticas contrapõem-se, com efeito,

às instituições fechadas, utilizadas particularmente sob

a orientação da repressão, marcadas pelo isolamento

com a comunidade de inserção da criança e do

adolescente (PINHEIRO, 2006, p. 82).

Foi trabalhado temas do cotidiano e da realidade comunitária e

escolar das crianças, tais como drogadição, trabalho infantil, família,

comunidade, escola, contribuindo para a percepção dos espaços sociais

ocupados por elas, assim como refletir de que modo intervêm na sua

realidade e nas relações interpessoais com seus colegas, profissionais da

escola, e com a família, proporcionando o exercício da cidadania, o

estímulo à participação como sujeitos autônomos, bem como sua

criatividade e expressão.

Page 219: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

219

A criança atuante é aquela que tem um papel ativo na

constituição das relações sociais em que se engaja, não

sendo, portanto, passiva na incorporação de papéis e

comportamentos sociais. Reconhecê-lo é assumir que

ela não é um adulto em miniatura, ou alguém que

treina para a vida adulta. É entender que, onde quer

que esteja, ela interage ativamente com os adultos e as

outras crianças, com o mundo, sendo parte importante

na consolidação dos papeis que assume e de suas

relações (COHN, p. 27-28).

Afetividade e Relação Interpessoal:

O Novas Cores, em suas diversas formas de atuação, prioriza as

relações estabelecidas entre os membros da equipe bem como com aqueles

que participam do Projeto (crianças e/ou adolescentes). Além disso, vê-se a

importância do contato com os funcionários da instituição, tais como

professores, diretores e servidores. Quando possível, também se estabelece

contato com os familiares dos participantes.

Essa atitude de ampliar as relações interpessoais decorre por

“entender a escola como integrante de um sistema social mais amplo e

constantemente influenciada por ele” (TULESKI, EIDT & et. al., 2005,

p.132). Há, de fato, a necessidade de compreender o contexto escolar bem

como seus “arredores” a fim de facilitar as relações estabelecidas entre os

diversos profissionais, alunos, familiares e comunidade.

Segundo Bariani-Pavani (2008, p.68), “durante muito tempo,

acreditou-se que o professor era o único responsável pelos resultados

alcançados no processo ensino-aprendizagem”. Atualmente, as escolas têm

se esforçado para entender a relação professor-aluno como “marcada pela

bi-direcionalidade” (BARIANI-PAVANI, 2008, p.68), ou seja, há uma

troca de conhecimentos entre ambos. O professor ensina o aluno, mas este,

Page 220: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

220

contudo, também compartilha os seus saberes com aquele. Os dois sujeitos

estabelecem uma relação e são mutuamente influenciados por ela.

Ao afirmar que “a criança participa ativamente quando é capaz de

compreender os objetivos de cada tarefa ou exercício executado, e,

principalmente, quando seu desenvolvimento particularizado é respeitado”,

Tuleski, Eidt & et. al. (2005, p. 133), ressalta a importância de ter um olhar

diferenciado para o aluno bem como de estimular a participação durante as

atividades que são desenvolvidas no ambiente escolar. Essa visão, porém,

não se restringe apenas ao professor, mas deve ser estendida a todos os

profissionais que trabalham na escola.

No Projeto, a intervenção na escola se efetivou por meio dos dois

grupos. As facilitadoras, bem como as crianças, sentiram-se à vontade na

medida em que foram se reconhecendo como um grupo. Tudo o que foi

vivenciado foi parte de uma construção coletiva, ou seja, todos estavam

contribuindo, de forma singular, para que o grupo se mantivesse.

Durante o último ano, por exemplo, na Escola Padre Rocha, os

membros do Projeto estabeleceram, em comum acordo com as crianças, um

conjunto de regras de convivência grupal. Através do diálogo e da

cooperação, foram criadas as “regrinhas”, que favoreceram um ambiente

lúdico, mas também de responsabilidade. As regras firmavam, por exemplo,

o compromisso de não gritar, de não brigar com os coleguinhas, de jogar

lixo na lixeira.

O intuito de estabelecer essas regras de convivência foi não

somente facilitar as relações dos membros do Projeto com as crianças da

escola, mas também o relacionamento entre elas. Isso foi proveitoso na

medida em que fortaleceu os vínculos entre todos, bem como possibilitou

aos membros do Projeto conhecer o contexto em que as crianças estão

inseridas.

Page 221: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

221

Além disso, durante os encontros, percebeu-se o quanto as crianças,

em suas falas e atitudes, traziam elementos das suas relações familiares.

Sabe-se que, no contexto escolar, não se pode apenas considerar as relações

dos alunos com os professores e funcionários. Os familiares (pai, mãe,

irmãos, tios, avós) bem como os amigos, vizinhos, membros da

comunidade, precisam ser incluídos nesse contexto.

Torna-se evidente, assim, a importância do psicólogo entender o

espaço escolar além das salas de aula e das outras áreas da escola. Mais do

que isso, é necessário reconhecer a forte influência de pessoas que estão

“fora” da escola, por exemplo, os familiares, bem como a relação com os

demais (alunos, professores, funcionários). Na verdade, estão

profundamente vinculadas à escola na medida em que os próprios alunos

levam à instituição as experiências vivenciadas em família e na

comunidade.

Por fim, é válido considerar as influências do ambiente escolar

nessas relações interpessoais. As relações que cada um estabelece com o

ambiente também são permeadas pela identificação com o lugar e, de certa

forma, com o apego a esse espaço.

Segundo Lima e Bomfim, “a identificação com o local promove a

capacidade de se vincular afetivamente a este, promovendo o apego a este

lugar” (2009, p.496). Assim, se o ambiente escolar propicia condições

satisfatórias para os alunos, tais como segurança e conforto, estes

conseguem se apegar com mais facilidade ao espaço. Isso contribui

significativamente para as relações interpessoais, tendo em vista que na

medida em que o aluno reconhece o ambiente escolar como um lugar que é

seu, ele se apropria não somente do espaço, mas também estabelece

vínculos com as pessoas que convivem com nele. Desta forma, essa

Page 222: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

222

apropriação do lugar pode ser algo positivo no favorecimento das relações

interpessoais, por exemplo, entre professor e aluno.

Arte

O homem pode se expressar de variadas formas. Antes mesmo da

linguagem verbal, expressa-se artisticamente, como é possível constatar nos

desenhos rupestres ou mesmo nos primeiros desenhos e rabiscos das

crianças pequenas. A arte comporta os desenhos, as pinturas, a música, a

dança, o teatro ou, em linhas gerais, tudo o que é feito para expressar ideias

e sentimentos. Além disso, a “arte também pode ser útil por funcionar como

'objeto intermediário' entre cliente e terapeuta, ou entre uma pessoa e

outras, ajudando a estabelecer relações e facilitando a comunicação”

(CIORNAI, 2004, p. 77).

A arte, no Projeto Novas Cores, é utilizada como instrumento de

expressão e conhecimento do grupo. Durante nossas atividades, fizemos

uso de várias modalidades artísticas, entre elas: teatro de bonecos, desenhos

e pinturas livres, breves encenações, música, dança, cirandas e capoeira,

incluída como expressão artística, pois concluímos, que pode ser definida

como arte, ludicidade e dança.

Através de desenhos, encenações, danças, músicas e tantas outras

expressões artísticas, as crianças podem dizer o que sentem, o que

imaginam, o que esperam. Podem também conhecer sobre si e sobre o

outro. Também através da arte, as crianças podem conhecer e se apropriar

de seus direitos e deveres, visto que temos como mote principal o Estatuto

da Criança e do Adolescente (ECA). E através das atividades de arte, e dos

jogos e brincadeiras, estabelecemos uma relação com o grupo de crianças.

Vale ressaltar o que Oaklander (1890) fala sobre trabalhos com crianças em

grupo.

Page 223: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

223

O grupo é um lugar para a criança tomar consciência

de como interage com outras crianças, para aprender a

assumir responsabilidade pelo que faz, e para

experimentar comportamentos novos. Além disso, toda

criança precisa de contato com outras crianças, para

saber que as outras têm sentimentos e problemas

semelhantes. (OAKLANDER, 1980, p. 318)

Ao permitir que as crianças se expressem livremente através da

arte, estamos de acordo que elas também são cidadãs, reconhecendo-as

como sujeitos ativos e co-construtores de sua realidade, coadunando com os

artigos 3o e 53o do ECA que, respectivamente, dizem que:

Art. 3. A criança e o adolescente gozam de todos os

direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem

prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,

assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas

as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o

desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e

social, em condições de liberdade e de dignidade.

[...]

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à

educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua

pessoa, preparo para o exercício da cidadania e

qualificação para o trabalho […].

(BRASIL, 2010).

Ademais, Ciornai (2004, p. 74) ao dizer que “ao vivenciar na

'realidade da arte' o que não lhe é usual, o indivíduo pode surpreender-se:

pode obter um conhecimento inusitado e inesperado sobre si mesmo, sobre

os outros e sobre o mundo” corrobora nossa prática de utilizar a arte como

meio para expressar, conhecer e descobrir a própria realidade e tantas outras

que parecem distantes à nossa.

Experiência Novas Cores na Escola Padre Rocha

Neste tópico refletimos sobre a o relato da experiência das

facilitadoras na escola em questão. Foram realizados dois grupos com a

Page 224: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

224

duração de duas horas uma vez na semana. No primeiro grupo tinha

crianças, sendo meninos e meninas. Já, no segundo grupo, eram crianças,

sendo meninos e meninas.

Grupo 1:

Nos encontros iniciais as crianças mostraram-se agitadas.

Percebemos como reação das crianças um “teste” em relação às

facilitadoras pelo fato da novidade de nossa presença na escola, bem como

da metodologia diferenciada.

No primeiro encontro, foram realizadas atividades que

proporcionaram uma aproximação das crianças visando conhecer a

dinâmica e as preferências, a fim de estabelecer o vínculo, bem como o

estabelecimento de regras de convivência. Para tanto, foi proposto que se

apresentassem através de desenhos, expressando a imagem que possuíam a

respeito de si mesmas e aquilo que gostavam e não gostavam. As

facilitadoras fizeram o mesmo, no intuito de haver uma aproximação do

grupo, entre as crianças e as mesmas. No segundo momento, tentou-se

dialogar com as crianças, por meio da roda de conversa, a respeito das

temáticas do projeto (infância, escola, dentre outros) e que seriam

trabalhadas através da arte e de atividades lúdicas. Contudo, tais objetivos

não foram alcançados, pois se mostraram dispersas no trabalho de grupo.

As dificuldades encontradas foram de se apropriar da dinâmica das

crianças, dos gostos, relações de amizade, afinidade na escola e do contexto

familiar. Percebíamos que muitas desavenças, formação de grupos e

amizades tinham relação com o período no qual as crianças estudavam,

levando-nos a refletir nos grupos os valores e regras como algo cotidiano

nos espaços ocupados e não só específico do Projeto.

Page 225: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

225

Ressalta-se que a execução e construção das regras não é passiva,

pois as crianças podem questionar e construir as propostas, proporcionando

sua reflexão como sujeito sendo, muitas vezes, reforçado no grupo quando

não são cumpridas, o que resgata a percepção da criança sobre o seu ato e

responsabilidades, articulando com seus direitos e deveres.

Destaca-se no primeiro semestre a exibição de vídeos e filmes

abordando situações que instigavam a discussão das crianças sobre suas

vivências. Foram tratados temas como as relações familiares e

interpessoais, os valores, as regras de convivência, a importância da escola,

o respeito à diversidade e a não-violência. Além dessas atividades, foram

realizadas outras dinâmicas e brincadeiras de forma participativa.

Vale ressaltar que durante o primeiro semestre de atuação do Novas

Cores na escola Padre Rocha, a atividade que chamava a atenção das

crianças era a realização de pinturas e de desenhos, quando as mesmas

expressavam suas formas de pensar e sentir a respeito dos conteúdos

trabalhados relacionando-os às suas vivências, por meio de sua linguagem.

As produções das crianças foram exibidas na confraternização com os pais

no final do semestre, momento de diálogo acerca dos significados do

Projeto para as facilitadoras, crianças e pais, aproximando-nos do contexto

familiar das crianças.

No segundo semestre, houve um enfoque na agressividade, no

bullying e nos limites, temáticas que se mostraram emergentes no primeiro

semestre e que necessitavam ser trabalhadas considerando o papel da

escola, família e comunidade como entes que influenciam no modo de agir

das crianças. Pudemos trabalhar efetivamente o ECA abordando a situação

de drogadição, trabalho infanto-juvenil, assim como o direito à educação,

ao esporte e ao lazer, utilizando para tanto, o recurso de imagens, vídeos,

contação de histórias e montagem de cartazes. Foi acrescentado ao final dos

Page 226: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

226

encontros, o tempo livre, um momento no qual aflorava a espontaneidade

das crianças por meio de brinquedos e brincadeiras sem proposta pré-

definida. Nesse semestre, as crianças se mostraram mais próximas das

facilitadoras ao proporem brincadeiras do cotidiano possibilitando uma

aproximação da realidade e de como ocupam os espaços de sua

comunidade.

Nos primeiros encontros do segundo semestre, trabalhamos

brincadeiras agitadas devido o processo de conhecimento das crianças por

parte das facilitadoras em relação ao seu ritmo e preferências de jogos,

sendo que aos poucos fomos introduzindo rodas de conversas com as

crianças demonstrando um amadurecimento do grupo para discutir os

assuntos propostos. Quando trabalhávamos o ECA, realizávamos por meio

de brincadeiras lúdicas, como “caça ao tesouro” e “caça-palavras”,

discutindo com as crianças suas percepções sobre os direitos e deveres no

Estatuto. Nesses momentos, deixávamos as crianças falarem e a partir do

seu conhecimento é que eram feitas as considerações e explicações. As

discussões suscitaram questões cotidianas, tais como: o respeito com os

idosos, reconhecimento de situações de trabalho infantil, drogadição no seu

cotidiano, violência, entre outros.

Um momento significativo foi quando os direitos do ECA foram

abordados, através de figuras sobre as representações da infância e da

adolescência. Foi interessante perceber que a partir do diálogo as crianças

conseguiram relacionar elementos do Estatuto com suas experiências

cotidianas, como, no exemplo, uma criança ao questionar sobre o que era

situação de trabalho infantil, expressando que:

“é diferente a criança que ajuda nos afazeres de casa,

como eu, cuidando dos irmãos, arrumando a casa para

aquelas crianças que têm de trabalhar quando os pais

não têm condições de sustentar a família, como alguns

colegas da escola”

Page 227: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

227

Já outra criança que vivenciava a situação de trabalho ficou retraída

no grupo, apenas comentando sobre as figuras que apresentavam crianças

puxando carroças de reciclagem, ou vendendo bombons.

Outras atividades, como a “dança das cadeiras” e o “circuito”,

tinham como objetivo trabalhar tanto temas referentes ao ECA quanto a

cooperação, frustração, respeito as singularidades dos colegas e sentimento

de pertencimento ao grupo. A partir das atividades conseguíamos perceber

questões relacionadas à agressividade, gênero, limites, regras e preconceito

no sentido de problematizar com as crianças a respeito de suas atitudes. Um

exemplo de atividade na qual emergiu a questão de gênero foi quando

realizamos uma corrida de obstáculos, na qual as crianças se dividiram em

duas equipes, uma composta só por meninas e outra por meninos, fato que

gerou conflitos sendo necessário a intervenção das facilitadoras para

problematizar a divisão.

Apesar de haver um relacionamento entre as crianças na escola, foi

percebido que o sentimento de grupo e de igualdade não era compartilhado

por todos. Como forma de trabalhar a questão, no segundo semestre, foram

utilizadas metodologias participativas no intuito de incitar a integração do

grupo. Assim, foram feitas colagens em grupo e construção de cartazes

coletivos a respeito das temáticas abordadas.

Uma das questões que se sobressaiu, foi à necessidade da

participação da família com as facilitadoras, principalmente, em se tratando

de mudanças em relação à forma de agir das crianças que não eram

passíveis de compreensão já que o contato com os familiares não era

freqüente. Como exemplos de tais mudanças, é possível citar os casos de

duas crianças, uma que no início mostrava-se cooperativa com o grupo, mas

que posteriormente apresentou-se arredia e hostil, e outra que não

participativa das atividades e nem cumpria as regras e que, com a

Page 228: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

228

proximidade do fim do Projeto, passou a colaborar e aproximar-se dos

demais colegas. Apesar do pouco conhecimento das facilitadoras sobre a

vida familiar e escolar das crianças, procuramos promover questionamentos

e discussões acerca das modificações de comportamento observadas,

especialmente, em relação à mudança de uma atitude afetuosa para uma

agressiva.

Grupo 2:

Nos primeiros encontros, foram contempladas tanto a apresentação

do Projeto, de forma simples e rápida, na qual enfatizamos o caráter lúdico

das atividades, quanto a elaboração do contrato grupal, no qual o lúdico,

propriamente, já passou a vigorar.

Foi possível colher informações, nesses momentos iniciais, acerca

das expectativas das crianças e das impressões, a que se sobressaiu foi a de

que seria um espaço para brincar – e somente brincar; os termos

"cidadania" e "Estatuto da Criança e do Adolescente" aparentemente não

surtiram efeito, a princípio.

É válido ressaltar que o intuito de, coletivamente, construir o

contrato está para além de meramente estabelecer regras de convivência,

embora tenha sido bastante importante esclarecer o que, pela própria

instituição escolar, era permitido ou não. Aliamos duas brincadeiras para

realizar esse intento; a "dança das cadeiras" e o "jogo do certo ou errado"

com figuras (retiradas da internet) referentes às temáticas do Projeto.

Colocávamos uma música agitada para que as crianças se movimentassem

ao redor dos assentos, com uma cadeira a menos que o número de

participantes, e, ao pausarmos o som, todas deveriam sentar-se em alguma

das cadeiras dispostas em círculo. A criança que não obtivesse êxito

escolheria uma das imagens para, então, fixá-la no quadro branco,

Page 229: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

229

subdividido previamente em "o que é legal" e "o que não é legal".

Enquanto situava a figura em uma das duas opções, justificava o porquê da

escolha. As demais crianças tinham liberdade para expressar sua opinião.

Tal atividade se estendeu até que as imagens estivessem devidamente

anexadas ao quadro.

Os temas apresentados nas figuras tratavam sobre amizade, cuidado

com o outro, respeito, zelo pelo espaço físico e questões voltadas a sair da

sala sem permissão, pegar material escondido, usar nomes inadequados,

agressões físicas ou verbais, dentre outros. Algumas das respostas emitidas,

como afirmar ser ruim "apelidar o colega de forma pejorativa", entravam

em contradição com as atitudes de crianças que, constantemente, dirigiam-

se chamando-as de "filho da macumbeira" ou "gata preta", por exemplo.

Embora cientes de que não era a postura adequada, insistiam em agir assim.

Durante os encontros seguintes, a temática preconceito avultou-se

inúmeras vezes. Decidimos, pois, utilizar ferramentas outras, além do

diálogo, para investigar o assunto. Exibimos um vídeo, em formato de

desenho, que possibilitasse problematizações. Nele foi abordado o quanto

as pessoas têm dificuldade em lidar com diferenças. Através de

dramatizações, passamos a trabalhar como cada um reagiria se em suas

respectivas salas entrasse, por exemplo, um aluno cuja cor de pele fosse

azul52

e como eles, colocando-se no lugar do garoto novato, sentiram-se

vivenciando a inversão de papéis. A maioria portou-se com uma postura

acolhedora ao "aluno diferente", mas, ao insistirmos na cena, elementos de

rejeição surgiram. Em outro momento, uma das facilitadoras atuou como

agressora e uma das crianças interpretou o papel de excluída, a que sofria o

preconceito. Vale ressaltar que a criança tinha comportamentos recorrentes

52 Esta sugestão pode parecer um pouco absurda, mas a optamos em vez de outra plausível,

para que não se sentissem constrangidos com a situação.

Page 230: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

230

de agressividade verbal e intolerância contra alguns de seus colegas. Após a

cena, relatou ter se sentido mal no papel, pois a facilitadora não se

disponibilizou a brincar e nem quis conversar.

Utilizamos tais atividades envolvendo interpretação e brincadeiras

de “faz-de-conta”. Para tanto, fizemos uso de fantoches, bonecas e até de

filmadoras para estimular a atuação como forma de expressão. Essas

atividades não eram ensaiadas. Em outras palavras, eram representações

espontâneas, improvisadas. Cedíamos o material (bonecos, fantoches,

figurino, etc.) e, às vezes, um tema para nortear, como “relações na escola”.

As crianças ficavam livres para representar os papéis que escolhiam.

Segundo Oaklander (1980, p. 160), “ao brincar de representar as

crianças de fato nunca saem de si mesmas; elas usam mais de si na

experiência da improvisação”. Percebemos quando, por exemplo, as

crianças interpretaram, além dos dois casos já citados, os professores, a

diretora da instituição, os pais, e até eles mesmos – os alunos – em

situações de conflito na escola. Assim, foi possível notar como as crianças

entendem esses papéis, compreendendo que colocam muito de si na

interpretação.

O desenho possibilitou-nos entrar em contato, direta ou

indiretamente, com a percepção de cada criança acerca dos assuntos

propostos nos encontros. Ao trabalharmos o “direito à educação”, por

exemplo, destacando o papel das instituições de ensino, sugerimos que

representassem numa folha a escola na qual estudavam e, em outra, como a

queriam, em um plano ideal. Muitos desenharam espaços que eram

importantes, tais como a quadra, seus amigos e a entrada do colégio, pois

significavam o espaço de lazer, onde brincavam e se divertiam nos

intervalos e no final da aula. Na folha que representava a escola ideal,

colocaram espaços que não existiam, tais como uma piscina, e

Page 231: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

231

acrescentaram objetos como, por exemplo, aparelhos de ar condicionado.

Nessa atividade, pudemos perceber como cada criança compreendia a

instituição, o que era importante em suas concepções e quais suas

expectativas para mudança no lugar.

As brincadeiras em grupo, tais como a já mencionada “dança das

cadeiras”, caça ao tesouro e capoeira, por exemplo, eram oportunidades de

fortalecer o coletivo, isto é, de fazer com que as crianças se percebessem

como um grupo. Algumas, porém, tinham dificuldades de se integrar nas

atividades. Como facilitadoras, atentávamos para os casos de isolamento e

tentávamos integrar, na medida do possível, tais crianças ao grupo. Era

preciso compreender – e respeitar – o momento de cada uma e perceber o

que, de fato, não lhe atraía na brincadeira.

Nos momentos finais dos encontros, acontecia o que denominamos

de “brincadeira livre”. Utilizamos atividades que proporcionavam a

integração do grupo, como jogos de memória e quebra-cabeças. Como

facilitadoras, dividimo-nos em dois ou três grupos, com as crianças, a fim

de termos maior proximidade com elas. Em cada grupo, além de

proporcionar a cooperação entre as crianças, pois ajudavam a encontrar as

peças e a colocá-las no lugar, as crianças também conversavam, contavam

histórias de sua família, eventos escolares, etc. Era propício para

compartilhar experiências pessoais e uma oportunidade para termos contato

com a realidade de cada criança.

Considerações finais:

A experiência na escola foi rica para a formação das facilitadoras,

pois foi o primeiro contato com a realidade escolar e situações faziam

refletir sobre a atuação como estudante e profissional, bem como sobre a

postura ética diante de situações que faziam emergir questionamentos sobre

Page 232: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

232

nossos valores e a necessidade de acolher os modos de pensar, sentir e agir

de cada criança. Ressaltamos a importância do exercício de reconhecer os

nossos limites e os das crianças para as atividades propostas, tentando

refletir sobre nossos sentimentos e os das crianças para propor atividades

que fossem ao encontro das demandas das mesmas, fato que demonstra o

valor da flexibilidade das facilitadoras e do estímulo a participação ativa

das crianças no grupo.

Uma das dificuldades do Projeto e da nossa intervenção foi o pouco

contato que tínhamos com as próprias crianças, pois só estávamos com elas

durante um dia da semana o que de certa forma encobria sua vida escolar, e

a relação com a família delas que não se mostrou presente na escola e nem

no Projeto dando sugestões ou buscando informações sobre seus filhos.

Referências Bibliográficas

ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro:

LTC, 2006.

ANTUNES, M. A. M. Psicologia Escolar e Educacional: história,

compromissos e perspectivas. Psicol. Esc. Educ. 2008, vol.12, n.2, pp. 469-

475. ISSN 1413-8557. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

85572008000200020&lang=pt> Acesso em: 10 de dezembro de 2010.

BARIANI, I. C. D & PAVANI, R. Sala de aula na universidade: espaço de

relações interpessoais e participação acadêmica. Estud. psicol.

(Campinas), Campinas, v. 25, n. 1, mar. 2008. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

166X2008000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 05 out. 2010.

Page 233: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

233

BRASIL. Regulamentação da Profissão de Assistente Social. Lei n°

8.662, de 7 de junho de 1993.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal n° 8.069 de

13 de julho de 1990.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acessado em 15

de agosto de 2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 de outubro de 2010.

CIORNAI, S (org.). Percursos em arterapia: arteterapia gestáltica, arte em

psicoterapia, supervisão em arteterapia. São Paulo: Summus, 2004

COHN, C. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2005.

IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no Serviço Social.

10 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

LIMA, D. M. A & BOMFIM, Z. A. C. Vinculação afetiva pessoa-

ambiente. Revista Psico. 2009 Out.-Dez.; 40(4), p. 491-497. Disponível

em: <http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=3250&dd99=view>.

Acesso em: 03 set. 2010.

OAKLANDER, V. Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com

crianças e adolescentes. São Paulo: Summus, 1980.

MANZINI COVRE, M. de L. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense,

2002.

PINHEIRO, A. Representações sociais como eixo analítico da investigação:

construindo suportes teórico-metodológicos. IN: Criança e adolescente no

Brasil: porque o abismo entre a Lei e a Realidade. Fortaleza: Editora

UFC, 2006.

SILVA, V. P. da. Escola não é ambulatório e psicólogo não é professor:

O que faz um psicólogo na educação?. In: Experiências profissionais na

construção de processos educativos na escola /Conselho Federal de

Psicologia. Brasília: CFP, 2010.

Page 234: Violência e Direitos de Crianças e Jovens

234

TULESKI, S. C; EIDT, N. M; MENECHINNI, A. N.; SILVA, E. F. da;

SPONCHIADO, D. & COLCHON, D. P. Voltando o olhar para o

professor: a psicologia e pedagogia caminhando juntas. Rev. Dep.

Psicol.,UFF, Niterói, v. 17, n. 1, jun. 2005 . Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

80232005000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 05 out. 2010.