Violência Em Salvador e as Formas de Enfrentamento Violência Em Salvador e as Formas de...

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 Violência em Salvador e as Formas de Enfrentamento iolência em Salvador e as Formas de Enfrentamento iolência em Salvador e as Formas de Enfrentamento iolência em Salvador e as Formas de Enfrentamento ______________________ Heloniza O. G. Costa 1  Tânia R. F. Cordeiro 2  Maria Eunice Xavier Kalil 3  Ana Elizabeth Brandão 4  1. Introdução 1. Introdução 1. Introdução 1. Introdução  A violência constitui hoje um tema cuja presença não pode ser ignorada. Longe de ser uma instigante preocupação teórica é, provavelmente, uma das questões que mais nos causa pânico e aflição [....] Com sua carga de dor, sofrimento e morte, a violência conseguiu fazer parte de nossas preocupações cotidianas e avança sobre os territórios físicos, mentais e sociais, [....] em várias cartografias possíveis (NUNES, 1999, p. 24).  A situação referida acima decorre da exacerbação da violência, a partir da década de 1980, revelada tanto pela elevação da mortalidade por causas externas, nos grandes centros urbanos, como pelas mudanças na configuração da violência, o que colocou o fenômeno na pauta dos problemas nacionais 5 . No Brasil, as violências — predominantemente os homicídios e os acidentes de trânsito — que no início da década de 1980 ocupavam o quarto lugar no perfil das principais causas de óbito, a partir de 1989 passam ao segundo lugar, perdendo apenas para as doenças do aparelho circulatório. Em algumas capitais brasileiras, as violências chegam a ocupar o primeiro lugar 1  Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da UFBA e Doutora em Administração. Rua Apoena, 274. Condomínio Aldeia  Jaguaribe. Piatã. Salvador/BA. Tels.(71)3367-5163/(71)9145-7664. E-mail: [email protected] 2  Professora do Curso de Comunicação Social da UNEB. Mestre em Comunicação. Tel:33589125. E-mail: [email protected]  3  Médica Sanitarista da Secretaria Estadual de Saúde (SESAB).Mestre em Saúde Comunitária. Rua Aracaju, 108/301 - Barra  Avenida – Salvador/BA. Tels(71) 3237-6739/(71)8178-7345. E-mail: [email protected] 4  Professora Adjunta da Escola de Dança da UFBA e Licenciada em Dança. Rua Marquês de Leão, 46/83 Barra. Tels: (71)3264- 7130/(71)8868-7130.E-mail: [email protected] 5  A violência aqui considerada é qualquer ação realizada por indivíduo ou grupo, dirigida a outro que resulte em óbito, danos físicos, psicológicos e/ou sociais (AGUDELO, 1990). Na Classificação Internacional das Doenças (CID), esse conjunto de eventos e danos pertence ao grupo de “causas externas”: homicídios, acidentes de trânsito, outros acidentes (afogamentos, envenenamentos, quedas, desabamentos, queimaduras), e suicídios (OMS, 1994). 

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  • VVVViolncia em Salvador e as Formas de Enfrentamentoiolncia em Salvador e as Formas de Enfrentamentoiolncia em Salvador e as Formas de Enfrentamentoiolncia em Salvador e as Formas de Enfrentamento ______________________ Heloniza O. G. Costa1

    Tnia R. F. Cordeiro2

    Maria Eunice Xavier Kalil3

    Ana Elizabeth Brando4

    1. Introduo1. Introduo1. Introduo1. Introduo

    A violncia constitui hoje um tema cuja presena no pode ser ignorada. Longe de ser uma instigante preocupao terica , provavelmente, uma das questes que mais nos causa pnico e aflio [....] Com sua carga de dor, sofrimento e morte, a violncia conseguiu fazer parte de nossas preocupaes cotidianas e avana sobre os territrios fsicos, mentais e sociais, [....] em vrias cartografias possveis (NUNES, 1999, p. 24).

    A situao referida acima decorre da exacerbao da violncia, a partir da dcada de 1980, revelada tanto pela elevao da mortalidade por causas externas, nos grandes centros urbanos, como pelas mudanas na configurao da violncia, o que colocou o fenmeno na pauta dos problemas nacionais5.

    No Brasil, as violncias predominantemente os homicdios e os acidentes de trnsito que no incio da dcada de 1980 ocupavam o quarto lugar no perfil das principais causas de bito, a partir de 1989 passam ao segundo lugar, perdendo apenas para as doenas do aparelho circulatrio. Em algumas capitais brasileiras, as violncias chegam a ocupar o primeiro lugar

    1 Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da UFBA e Doutora em Administrao. Rua Apoena, 274. Condomnio Aldeia Jaguaribe. Piat. Salvador/BA. Tels.(71)3367-5163/(71)9145-7664. E-mail: [email protected] 2 Professora do Curso de Comunicao Social da UNEB. Mestre em Comunicao. Tel:33589125. E-mail:

    [email protected] 3 Mdica Sanitarista da Secretaria Estadual de Sade (SESAB).Mestre em Sade Comunitria. Rua Aracaju, 108/301 - Barra

    Avenida Salvador/BA. Tels(71) 3237-6739/(71)8178-7345. E-mail: [email protected] 4 Professora Adjunta da Escola de Dana da UFBA e Licenciada em Dana. Rua Marqus de Leo, 46/83 Barra. Tels: (71)3264-7130/(71)8868-7130.E-mail: [email protected] 5 A violncia aqui considerada qualquer ao realizada por indivduo ou grupo, dirigida a outro que resulte em bito, danos fsicos, psicolgicos e/ou sociais (AGUDELO, 1990). Na Classificao Internacional das Doenas (CID), esse conjunto de eventos e danos pertence ao grupo de causas externas: homicdios, acidentes de trnsito, outros acidentes (afogamentos, envenenamentos, quedas, desabamentos, queimaduras), e suicdios (OMS, 1994).

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    como causa de morte, afetando principalmente os adolescentes e adultos jovens6. Esta repercusso da violncia no perfil sanitrio da populao levou sua incluso no campo da Sade Pblica (SOUZA; MINAYO, 1995; SOUZA e outros, 2003).

    Alm disso, os dados sobre a situao da violncia evidenciam que as condies de vida tornam alguns grupos populacionais mais vulnerveis que outros. Estes grupos alm de no terem acesso aos direitos bsicos so vtimas da violncia institucional inscrita nas prticas, nos regulamentos, na linguagem, nos currculos das escolas, entre vrios outros aspectos. Registram-se, de modo freqente, ocorrncias de desvios das instituies formalmente criadas para cumprir funes de proteo social, contribuindo para o sentimento de desamparo dos cidados que mais necessitam dos mecanismos de proteo do estado. Neste sentido, pode-se dizer que o setor pblico falha duplamente: primeiramente, no assegura a esses indivduos condies favorveis a uma vida em segurana, no sentido amplo; em segundo lugar, falha, muitas vezes, no momento de prestar assistncia de carter reparador.

    Vale salientar que a atuao frgil do estado se torna mais comprometedora no contexto atual, pois a dinmica da violncia urbana nas duas ltimas dcadas passou a estar fortemente vinculada aos efeitos diretos (guerra entre quadrilhas e entre estas e a polcia, as balas perdidas) e indiretos do trfico de drogas (maior circulao de armas de fogo, delitos praticados por dependentes de substncias psicoativas). A vinculao da violncia ao trfico mais intensamente revelada nos espaos pobres (favelas, loteamentos perifricos, conjuntos habitacionais) utilizados como base de apoio logstico para o comrcio dessas substncias. Gerenciado por quadrilhas cada vez mais bem estruturadas e equipadas com armamento pesado e sofisticado, o trfico transformou essas reas em cenrios de guerra pela disputa de pontos de venda e pela relao dos traficantes com os moradores, submetendo-os, pela difuso do terror, lgica e dinmica do negcio ilegal (SOARES, 2000).

    Assim, a violncia, sob diversas formas, distribudas desigualmente nos espaos urbanos e populacionais, insere-se como parte do cotidiano das cidades. Tal insero, contudo, simultnea e contraditoriamente, traz a possibilidade de colocar o problema na pauta das questes a serem enfrentadas pelo governo e pela sociedade, dada a sua magnitude e gravidade, ao mesmo tempo em que produz uma tendncia naturalizao da situao, o que provoca a inrcia e a indiferena, tanto dos governos como da sociedade, dificultando a adoo de medidas e aes para o seu enfrentamento. Ao lado disto cresce a disposio de encarar o problema como questo de ordem pessoal e privada a ser enfrentada atravs do consumo de bens e servios de proteo particular. Esta tendncia se verifica em todos os espaos sociais com a adoo do consumo de itens que prometem a segurana para indivduos e pequenos grupos que passam a adquirir os bens e servios em consonncia com as disponibilidades financeiras de cada um.

    Alm disso, problemas complexos relacionados com a violncia vm exigindo novos formatos de interveno, onde a articulao de diversos setores, agncias e atores governamentais, no-governamentais e das organizaes comunitrias assume papel preponderante. Isto porque a articulao pode potencializar recursos para a adoo de Polticas Pblicas e implementao de aes capazes de atuar na promoo e proteo da vida, direcionadas para a diminuio da excluso social geradora das violncias e ameaadora da segurana humana.

    6Para uma descrio mais detalhada da situao da violncia pode ver Laurenti e outros (1972), Mello Jorge (1979, 1981, 1982), World Bank (1989), CBIA/UNICEF (1991), Souza; Minayo (1995), Soares (2000), Souza (2000), Macedo e outros (2001), Zaluar (2002, 2004), Minayo (2003), Souza e outros (2003).

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    Desse modo, a complexidade da violncia no est apenas na sua gnese e nas suas diversas formas de expresso, mas, tambm, nas formas como o governo e sociedade assumem o problema e o enfrentam.

    Diante desse quadro, algumas questes so colocadas: 1) como articular Estado e Sociedade para combater um problema que reflete a prpria estrutura e modelo desse Estado e dessa Sociedade? Ou, colocando de outro modo,como encontrar caminhos para combater um problema que exige atuao em vrios planos e articulao de todos os setores do Estado e da Sociedade, dado que a violncia a expresso mais exacerbada das desigualdades e excluso sociais perpetradas pelo prprio Estado e pela Sociedade; 2) como superar a estrutura j consolidada de interveno do Estado, caracterizada por intervenes setoriais, fragmentadas, pontuais e descontnuas, para assegurar a implementao de polticas pblicas que afetem as causas da violncia?

    2. Situao da Violncia em Salvador2. Situao da Violncia em Salvador2. Situao da Violncia em Salvador2. Situao da Violncia em Salvador Na Regio Metropolitana de Salvador, tambm,observou-se um crescimento das taxas de

    mortes por causas externas ou violncias a partir da dcada de 1990, sobretudo dos homicdios, que passaram de 14,9 bitos por 100 mil habitantes, em 1989, para 25,8 por cem mil habitantes, em 1990 (CBIA; UNICEF, 1991). Em 1998, em Salvador, a taxa de mortalidade por homicdio chegou a 39,4 bitos por 100 mil habitantes (SANTANA; KALIL; OLIVEIRA, 2002).

    Fonte: IMLNR / FCCV/Observatrio da Violncia. Apresentao O Rastro das Mortes Violentas em Salvador, 2002 e 2003.

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    Em Salvador, semelhana dos demais centros urbanos do Pas, as violncias, ou as causas externas7 tm sido a segunda causa de morte da populao em geral (situao que se vem mantendo nos ltimos 10 anos, a exceo do ano de 2004, quando se constituram na terceira causa de morte) e a primeira quando se considera o gnero masculino na faixa dos 15 aos 39 anos. Na verdade, tm sido a primeira causa de morte para a populao a partir dos cinco anos de idade. Nesta cidade, tem-se uma mdia de cinco mortes violentas por dia (SANTANA; KALIL; OLIVEIRA, 2002). O nmero mdio, no entanto, no corresponde a uma distribuio igualitria na populao ou no espao fsico da cidade: a maior parte das pessoas mortas composta por homens jovens, negros, de baixa escolaridade, com profisso pouco qualificada, moradores de bairros onde se registram condies scio econmicas mais precrias.

    Os dados do Instituto Mdico Legal Nina Rodrigues, analisados pelo Observatrio da Violncia reforam esta afirmao quando mostram que, entre 1997 e 2003, a taxa mdia de mortalidade foi de 69,4/100.000 hab. Mas algumas dessas reas chegam a ter coeficientes de mortalidade por causas externas de 285,2/100.000 habitantes. Pode-se dizer, pois, que os mortos da violncia foram crianas, adolescentes e adultos que no tiveram garantido o direito educao, moradia adequada, sade, ao lazer, dentre outros direitos que tornam a vida digna e segura.

    Grfico 1 - Taxas de mortalidade por causas externas para Salvador e 3 de suas Zonas de Informao, 1998 a 2001

    72,3 66,4 64 64,3

    152,4 159,6 152 161,3

    35,6

    127,6

    178,2

    110

    21,8

    290

    218,8

    285,2

    1998 1999 2000 2001

    SSA 7 / NE de Amaralina 20 / Campinas de Brotas 29 / Cabula

    Fonte: IMLNR / FCCV / Observatrio da Violncia

    Assim, estes dados demonstram que os grupos sociais de menor renda constituem-se nas maiores vtimas de mortes violentas. Refora-se, portanto, a compreenso de que em uma sociedade marcadamente desigual, inclusive no que se refere ao cumprimento dos direitos sociais, a mortalidade e a morbidade tambm se distribuem de modo desigual, tornando algumas camadas da populao mais vulnerveis do que outras. O que revela a determinao social, poltica e econmica das diversas manifestaes do fenmeno.

    7 O Ministrio da Sade tem uma poltica para acidentes e violncias. A Organizao Mundial de Sade publicou, em 2002, o primeiro informe mundial sobre violncia, incluindo homicdios, acidentes e suicdios, alm de toda uma gama de outras situaes que no produzem morte direta ou imediatamente.

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    3. Caminhos para enfrentamento da violncia3. Caminhos para enfrentamento da violncia3. Caminhos para enfrentamento da violncia3. Caminhos para enfrentamento da violncia em Salvador em Salvador em Salvador em Salvador

    Na verdade, o combate violncia tem sido uma preocupao relativamente recente da sociedade brasileira e dos seus governos, nos mbitos federal, estadual e municipal. Do lado do governo, essa preocupao est expressa em polticas, planos e arranjos organizacionais que tomaram corpo a partir da dcada de 1990 e vm apontando para formas de interveno que buscam articular diversos setores governamentais e/ou a articulao entre governo e sociedade, a exemplo do Plano Nacional de Segurana Pblica de 2000 do Governo Federal; da Poltica Nacional de Reduo da Morbimortalidade por Acidentes e Violncias do Ministrio da Sade, de 2001; do Plano de Ao para a Reduo da Morbimortalidade por Causas Externas na Bahia, da Secretaria Estadual de Sade da Bahia (SESAB), 1998. No entanto, so documentos que indicam o que fazer, mas no explicitam os mecanismos do como fazer. Constituem-se, portanto, muito mais em cartas de intenes do que um instrumento operacional para a ao. Em Salvador, duas iniciativas se destacaram por sua abrangncia territorial e durao neste perodo: a iniciativa da Prefeitura Municipal de Salvador, consubstanciada no Plano Intersetorial Modular de Ao para a Promoo da Paz e da Qualidade de Vida na cidade de Salvador (PIMA), de 2000 e, entre as iniciativas da sociedade, o Frum Comunitrio de Combate Violncia, constitudo em 1996. Estas duas iniciativas foram objeto de estudo de Costa (2005), cujos resultados esto sumarizados nos sub-itens seguintes:

    3.1 O Plano Instersetorial Modular de Ao para a Promoo da Paz e da Qualidade de

    Vida na Cidade do Salvador (PIMA)

    O Plano Intersetorial Modular de Ao para a Promoo da Paz e da Qualidade de Vida

    na Cidade do Salvador, iniciativa da Prefeitura de Salvador, elaborado pelo Instituto de Sade Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aprovado em 2000, teve como propsito orientar a execuo de aes intersetoriais destinadas a enfrentar o problema da violncia no municpio de Salvador, sob a perspectiva da promoo da paz, e elevar a qualidade de vida da populao. O Plano foi composto de onze mdulos contemplando diferentes intervenes caracterizadas como: intervenes mestras voltadas diretamente para a paz e qualidade de vida e para o desenvolvimento de espaos de convivncia saudvel (arte, esporte, lazer, bolsa de estudos etc.); intervenes horizontais ao intersetorial dos distintos rgos municipais capazes de atuar na reduo de acidentes e violncias e as intervenes verticais articulao da Prefeitura com os nveis estadual e federal de governo (NORONHA e outros, 2000, p. 7).

    Os achados empricos do estudo de Costa (2005) revelaram que a trajetria do PIMA foi marcada pela dificuldade de articular as diversas secretarias e rgos municipais para uma atuao conjunta. O modelo organizacional assumido, e mesmo modificado durante o processo de implementao de aes, no conseguiu provocar a articulao intersetorial pretendida para a realizao das aes de combate violncia. Ao contrrio, a dinmica estabelecida no processo de implementao das aes gerou um contexto interno, onde a no explicitao e tratamento dos conflitos, aliado aos inmeros problemas polticos e financeiros, resultou em descompromisso com a ao, desero e boicotes de muitos atores envolvidos.

    Um outro problema identificado no processo de operacionalizao do Pima foi referente no captao de recursos externos que impediu a realizao das aes previstas.

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    Assim a operacionalizao do Plano ficou reduzida realizao de eventos pontuais; seminrios de sensibilizao dos dirigentes municipais; realizao dos cursos de capacitao, voltados para as pessoas das comunidades: Mediador da Paz (que resultou na organizao de sistema de segurana comunitria, com os mediadores sendo pagos com recursos doados pelos prprios moradores da comunidade); Agente Ambiental (reciclagem de lixo) e Agente de Limpeza. Aconteceram tambm as aes consideradas de comunicao, a exemplo da Feira Tecendo a Rede da Paz.

    No obstante a inexistncia de resultados consistentes, a experincia do PIMA deve ser registrada como a primeira vez que a municipalidade incluiu no mbito de suas preocupaes a violncia como questo a ser encarada pelo executivo municipal, admitindo-se, desse modo, que tambm este poder tem determinadas responsabilidades no que se refere ao assunto. 3.2 O Frum Comunitrio de Combate Violncia

    A iniciativa da sociedade, materializada no Frum Comunitrio de Combate Violncia de Salvador, criado em 1996, tambm desenhava uma proposta de interveno de carter multissetorial e multiorganizacional. O desenho conta com a participao de organizaes governamentais, no governamentais, comunitrias, religiosas, empresariais, organismos internacionais, organizaes corporativas e instncias de controle social. A inteno foi possibilitar a experincia de um novo modo de interveno sobre a violncia fora dos espaos hierrquicos administrativos na cidade de Salvador, com vistas constituio de um ator poltico para demandar polticas pblicas de combate violncia, entendida como problema prioritrio de sade, de expresso e determinao multifacetria e complexa (UFBA, 1996). O arranjo organizacional previsto contava com a cooperao voluntria de distintos e diversos atores para a realizao de aes conjuntas.

    O foco privilegiado do seu trabalho tem sido a proposio de polticas direcionadas promoo da paz, preveno da violncia e ateno s pessoas em situao de violncia. Nos seus 10 anos de atuao, o Frum organizou o Observatrio da Violncia, que vem monitorando e divulgando a situao de violncia no municpio; estimulou e continua estimulando organizao em rede dos servios de sade, policiais, jurdicos e sociais para atender s pessoas em situao de violncia. Tambm vem desenvolvendo projetos voltados para educao e ao para a cidadania, que j envolveram mais de 2000 jovens das reas que apresentam os mais elevados coeficientes de mortalidade por causas externas. Alm disso, o trabalho junto mdia e as aes de comunicao permitiram tematizar a violncia como problema de sade e projetar socialmente o nome do Frum. Hoje, ele reconhecido pela sociedade e autoridades locais como interlocutor para assuntos de violncia e propositor de polticas pblicas para o combate violncia.

    4444. Urgncia: Das aes pontuais implementao de Pol. Urgncia: Das aes pontuais implementao de Pol. Urgncia: Das aes pontuais implementao de Pol. Urgncia: Das aes pontuais implementao de Polticas Pblicasticas Pblicasticas Pblicasticas Pblicas

    A anlise das duas experincias e o acompanhamento de outras iniciativas desenvolvidas por diversos atores sociais na cidade tm contribudo para indicar que a trilha para o combate violncia requer no apenas a participao da Sociedade e do Estado, mas o desenvolvimento conseqente, continuado e articulado de polticas pblicas, entendidas como aes de governo que produzem resultados e mudanas na vida dos cidados (SOUZA, 2003). Nesse percurso, destacamos algumas urgncias:

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    4.1 Organizao e Difuso da Informao sobre Violncia

    Um pressuposto para uma interveno responsvel e eficaz sobre determinado problema dispor de conhecimento criterioso e detalhado da situao. As informaes referentes violncia, porm, encontram-se fragmentadas, so precrias em termos qualitativos e quantitativos, so produzidas com distintos critrios e geralmente, em sua apresentao encontram-se agregadas para grandes unidades espaciais como Estados e cidades. Essa conformao impede que se tenha uma compreenso mais clara do problema e que se use a informao para orientar intervenes mais adequadas para um fenmeno que se distribui, nas suas diversas expresses, de forma muito desigual no interior do espao social. Isto quer dizer que os dados apresentados negligenciam a distribuio desigual das manifestaes violentas no espao, gerando a impresso de que estas manifestaes esto igualmente distribudas.

    Os levantamentos do Frum Comunitrio de Combate Violncia evidenciam, claramente, como j mencionado, o registro de propores muito diferentes de violncia a depender da origem social e econmica das vtimas. Tem-se, portanto, a necessidade de dispor de informao mais sistemtica e trabalhada sobre a ocorrncia de manifestaes da violncia, em sua distribuio na populao e no espao da cidade. Informao que seja accessvel no apenas para quem a produz (servios, gestores, pesquisadores), mas tambm para a populao. Especialmente considerando o processo de incremento da democracia participativa, em curso no Pas a partir da Constituio de 1988, e do interesse em aprimorar o controle social sobre as aes do Estado.

    Essa foi a motivao e justificativa do Frum Comunitrio de Combate Violncia (FCCV) quando definiu como uma das linhas prioritrias de ao, desde 1998, a sistematizao, anlise e difuso da informao sobre mortes violentas na cidade do Salvador, produzindo, at o momento, duas publicaes intituladas O Rastro da Violncia: mortes violentas de residentes em Salvador, cobrindo o perodo de 1997 a 20018. Realizou-se ainda o estudo da morte por causas violentas dos residentes de Salvador nos anos 2002 a 2004, cujas informaes esto nas pginas do FCCV na Internet9 e tm sido difundidas sob demanda de organismos de governo e da sociedade.

    Como a expresso da violncia no se traduz em mortes, apenas, alm do Ncleo de Mortalidade faz-se necessrio organizar o Ncleo de Morbidade, como parte fundamental para a estruturao do Observatrio da Violncia. Este ncleo dever organizar as informaes dos eventos violentos que no levaram morte. A oferta de informaes devidamente sistematizadas permitir a atuao mais eficaz do estado e da sociedade civil seja para respaldar as proposies de polticas pblicas quanto no que se refere ao acompanhamento dirio do problema e as subseqentes tomadas de posies e adoo de procedimentos emergenciais. Desse modo, com um banco de dados rico em informaes e estruturado a partir de padres convencionados com o conjunto das agncias que operam no controle e na preveno da violncia resultar em um servio capaz de atuar a partir de prioridades definidas tendo em vista a quantidade e natureza das incidncias.

    A estruturao e funcionamento do Observatrio pressupem a constante negociao e estabelecimento de acordos tcnico-polticos em torno da produo, organizao, compartilhamento, uso e difuso dos dados de produo cotidiana de servios (e dos sistemas

    8 Tm participado do desenvolvimento dessa linha o Instituto Mdico Legal Nina Rodrigues, a Diretoria de Informaes da Secretaria de Sade do Estado da Bahia, o UNICEF e os projetos UNI-Bahia,; Espao , Paz e Ao e o Ampliando o Espao de Ao para a Paz., financiados pela Fundao Kellogg. 9 www.fccv.ufba.br

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    de informao) das polcias (civil, militar e tcnica), da justia, da sade, da assistncia social e de outros setores envolvidos com a proteo e promoo de direitos na sociedade. Implica na articulao de entidades governamentais das trs esferas de governo (municipal, estadual e federal) e no governamentais em cada unidade espacial ou grupo populacional ou expresso da violncia que se considere.

    Por fim, parte do trabalho do Observatrio, expor e difundir o mais amplamente possvel as informaes sobre a situao da violncia, de modo a mobilizar mais pessoas e rgos, pblicos e privados, para o enfrentamento articulado do problema nas suas diversas manifestaes. A difuso sistemtica da informao sobre um fenmeno social complexo, que passou a ser a primeira preocupao dos brasileiros e constitui problema prioritrio de sade, deve ser parte integrante da poltica de enfrentamento desse problema, quando se entende que este enfrentamento demanda participao de todos, em todos os planos de organizao da Sociedade e do Estado.

    4.2 Formao dos Jovens

    Os jovens aparecem como vtimas preferenciais e como autores de violncia em muitas

    das expresses do fenmeno, em especial naquelas manifestaes que tm sido definidas como violncia urbana e que tm estado crescentemente associadas ao trfico de drogas e ao crime organizado.

    Por esta razo, alm da responsabilidade e preocupao social com o desenvolvimento das novas geraes, os jovens tm sido o pblico privilegiado de vrias iniciativas e intervenes, em especial de organizaes no governamentais10.

    O Frum, atravs dos seus projetos de apoio, que contava com a atuao dos parceiros, mais especificamente as comunidades, o Liceu de Artes e Oficio e a Escola de Dana da Ufba, desenvolveu experimentos especficos com jovens, visando produzir indicativos para a implantao de polticas pblicas que permitissem que a interveno junto a crianas, adolescentes e jovens fosse mais consistente, constante e eficaz, no sentido de diminuir o risco de que venham a encontrar-se em situao de violncia, seja do lado da vtima, seja do lado do agressor.

    Alguns indicativos para a elaborao e desenvolvimento de polticas pblicas foram extrados no s da experincia articulada pelos projetos do Frum, mas tambm da reflexo sobre as diversas iniciativas de trabalho com crianas, adolescentes e jovens na Cidade do Salvador. Estes indicativos se expressam, por exemplo, na experincia que vem sendo desenvolvida pela Escola de Dana da UFBA.

    Desde o final da dcada de 90, a Escola de Dana da UFBA vem integrando o Frum Comunitrio de Combate Violncia, desenvolvendo projetos e aes na linha da educao, da cultura e da cidadania. A experincia acumulada nestes dez anos ofereceu sinalizaes claras sobre a importncia do trabalho junto juventude na perspectiva de constituio de sujeitos com potencial de insero social e de mobilizao de outros jovens para atuarem na preveno da violncia e na construo de uma cultura solidria e inclusiva. Isto significa concentrar esforos na formao complementar dos jovens e no apoio s suas iniciativas em comunidades.

    10 Em Salvador, vrias organizaes se tm ocupado de jovens, usando diversos enfoques e metodologias. Algumas h mais de 100 anos, como o caso do Liceu de Artes e Ofcios, e outras bem mais recentemente, como a Organizao do Auxlio Fraterno OAF, ou o Centro de Referncia Integral para Adolescentes CRIA, ou a CIP Comunicao interativa, ou o Projeto AX, ou o Cidade Me ou o Centro de Defesa da Criana e do adolescente Yves Roussan (CEDECA) para citar apenas algumas que fazem parte do Frum Comunitrio de Combate Violncia.

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    O grande desafio o de potencializar os recursos humanos e materiais existentes, atravs de uma interveno, e de uma proposio de aes compartilhadas que favoream o surgimento de novas formas de participao, no sistema e nos processos educacionais, possibilitando o desenvolvimento de prticas scio-educativas articuladas e comprometidas. Prticas que apontem para novas formas de relao e de organizao, que possibilitem a incluso de um grande contingente da populao brasileira, titular das garantias fundamentais estabelecidas pela ordem constitucional, como reais sujeitos de direitos O desenvolvimento de novas e interativas competncias surge como forma de capacitao instrumental na educao, tendo em vista as determinaes da contemporaneidade. Tais competncias visam auxiliarem jovens a compreenderem, agirem e interagirem o/ em/ com, respectivamente, seu contexto como indivduos (nicos e singulares), cidados (seres coletivos) e humanos (em sua evoluo - ao contribuir para o conhecimento humano). A educao em arte descortina perspectivas diferenciadas para compreenso do mundo, para o exerccio crtico de apreciao de cada cultura revelada, de valores ticos que presidem as relaes entre os homens numa sociedade. Mais especificamente, os processos de ensino da arte desenvolvem o pensamento artstico e a percepo esttica e se caracterizam por estabelecer parmetros complexos e distintos de ordenamento para atribuir sentido experincia humana.O ensino da arte, ao mobilizar a sensibilidade e a percepo dos indivduos, reiterando a cada momento que imprescindvel transformar, que necessrio mudar e atualizar referncias, exercita a flexibilidade, dentre outros valores, como condio essencial para a aprendizagem. Outrossim, indicadores externos reforam este movimento de mudana. O Relatrio da UNESCO (1999), elaborado pela Comisso Internacional sobre Educao para o sculo XXI, apresentou um desafio para a Educao a partir do momento em que prope e amplia suas responsabilidades rumo uma educao que, de forma flexvel, atenda necessidades diversificadas e ao mesmo tempo especficas, visando uma formao mais integral e unificada do ser humano. Como forma de orientar esses novos passos, a Comisso da UNESCO, considerando a prioridade de metas, identificou quatro pilares do conhecimento, que no futuro devero servir como bases informativas e norteadoras das competncias. So eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Reafirmando as intenes do Frum, as propostas scio-educativas apresentadas definem-se com base em pressupostos artsticos que aliceram a afirmao da capacidade da arte, como tecnologia educacional capaz de agir nas dimenses do sentir, pensar e agir, que contribuem em processos de desenvolvimento humano, com possibilidades de uma re-significao da sua funo. Alm disso, redefine a sua relao com a educao, ao oferecer capacidades de potencializar seus resultados, participando de forma dialgica nas suas conquistas e nos seus desafios, com possibilidades de grandes resultados pedaggicos, com impactos repercutidos nos campos educacional, cultural e social. 4.3 Rede de Ateno a Pessoas em Situao de Violncia

    O estmulo articulao, em rede, dos servios que prestam ateno policial, jurdica, social e de sade a pessoas em situao de violncia tem se constitudo em uma das principais linhas de trabalho do Frum..

    A proposta para articulao em rede dos servios de ateno a pessoas em situao de violncia conseqente compreenso de que para que as pessoas possam enfrentar as situaes de violncia em que se encontram, elas precisam de apoio e servios de diversas ordens e naturezas. Estes servios, dada a forma de organizao do Estado, esto dispersos em

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    vrios setores, o que requer um esforo de articulao para que os diversos, dispersos e diferentes servios entrem na composio de uma resposta/uma sada para as pessoas que se encontram em situao de violncia. Por isso, essa resposta deve ser construda de forma articulada e integrada entre os diversos organismos responsveis por cada uma das partes necessrias para produzi-la.

    Assim, a proposta de organizao em rede desses servios visa a melhoria da ateno prestada em cada rea e sua articulao de forma a ampliar o acesso e garantir resposta s necessidades de servio das pessoas em situao de violncia.

    O esforo para articulao em rede tem se traduzido na tentativa de explicitao e definio do objeto mesmo das intervenes de cada um dos servios e na construo de formas de relao e comunicao, com o objetivo de estabelecer relaes horizontais e articuladas de funcionamento entre estruturas de diferentes naturezas

    Nesta direo, uma das primeiras realizaes do Frum foi a elaborao do Guia de Servios, pensado como um instrumento de trabalho no sentido de facilitar o conhecimento da existncia de outros envolvidos nos processos de ateno. Outra estratgia para articulao dos servios em rede tem sido a promoo de encontros para discutir a ateno a determinadas situaes / expresses de violncia e/ou a determinados grupos em risco, buscando explicitar os tipos de cuidado e ateno demandados por cada situao e as seqncias desejveis ou possveis para a dispensao desses cuidados e dessa ateno de modo a minimizar os problemas decorrentes da situao de violncia em questo.

    Em Salvador, algumas partes do conjunto de servios tm tido maior presso de demanda e estmulo para a articulao em rede e tm respondido mais ativa e prontamente a esse estmulo do que outros. o caso, por exemplo: da ateno a mulheres em situao de violncia, com a presso do movimento de mulheres; das aes de preveno e combate ao trabalho infantil e a violncia e explorao sexual de crianas e adolescentes, decorrentes do esforo social para implantao plena do Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), que busca a efetivao das crianas e adolescentes como sujeitos de direito.

    Contudo, o processo de articulao dos servios em rede no espontneo e demanda tempo, negociao, reviso de procedimentos, capacitao permanente dos operadores em todos os setores, seja nos organismos governamentais, seja naqueles no governamentais. Exigem-se desenvolvimento de tecnologia de comunicao e o estabelecimento de processos de trabalho interinstitucionais, que s podero ser sustentados se forem assumidos como parte da poltica pblica para enfrentamento da violncia.

    Esta rede de articulao inclui, tambm, o grupo de servios relacionados ao Sistema de Justia Criminal. Este esforo nasceu da necessidade de romper o ciclo de perpetuao da violncia ocasionado pela dificuldade de acesso dos familiares das vtimas ao direito justia. No entanto, dada s suas particularidades e complexidade, ser tratado como um item especfico, colocado a seguir.

    4.4 Acesso ao Sistema de Justia Criminal

    Como j foi observado, em Salvador, a violncia responsvel por cinco mortes dirias. As vtimas preferenciais so jovens, do sexo masculino, negros, pobres, moradores de bairros populares. Uma das implicaes imediatas geradas por essas mortes o lugar para onde devem convergir os esforos no sentido de se fazer a justia e este lugar o sistema de justia criminal. Entretanto, o acesso a esse sistema no se d de modo simples e automtico, ao contrrio, exige-se um esforo e um conjunto de competncias e poderes que, por sua vez, no esto distribudos eqitativamente pela populao. Izumino (2004, p.27) se refere ao acesso

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    desigual justia e produo das desigualdades sociais nas prticas judicirias, recordando que tambm a justia tem o seu funcionamento vinculado a interesses e necessidades de certos grupos sociais.

    As vtimas habituais de mortes violentas e suas famlias no esto entre aqueles sujeitos mais favorecidos pela estrutura jurdica do estado. A comear pela falta total de domnio da linguagem praticada nessas instncias que se constitui em barreira de difcil transposio e a prpria falta de conhecimento dos prprios direitos, freqente nessa parcela da populao mais afetada pelo problema.

    Os familiares, a partir do bito de um de seus membros, iniciam a sua trajetria, comeando pela ida delegacia de polcia, primeiro ponto de acesso ao sistema de justia criminal. Em lugar de advogados, contam com vizinhos, com outros membros da famlia e com amigos que funcionam no momento como uma pequena rede de solidariedade que se expressa pela disponibilidade em relao a uma gama de afazeres sobre os quais no se tem qualquer familiaridade. Ali os enfrentam um tipo de insegurana derivada do no conhecimento em relao ao que deve ser objeto de ateno naquele espao: que elementos so os mais adequados para a apurao mais rigorosa dos fatos? Como contribuir para se chegar produo de um inqurito policial o mais completo possvel? Que informaes so adequadas para a elucidao de um crime, do ponto de vista da instituio policial?

    Saindo do primeiro cenrio, os familiares no sabem o que representa o trabalho da delegacia de polcia civil e descobrem que o prximo passo a chegada do inqurito no Ministrio Pblico, porm desconhecem o sentido dessa trajetria. Comeam a ter a experincia no que se refere natureza do tempo no sistema de justia criminal, contrastada com a angstia que caracteriza seus nimos. Entra em cena a intensificao das sndromes nervosas, ao tempo em que vo se escasseando os recursos das redes de solidariedade e mesmo os prprios recursos financeiros, sempre exguos. A busca por informaes vai se tornando intil a medida em que as respostas passam a ser as mesmas e sempre no sentido de indefinio dos prazos. A pergunta que se faz : quando que o processo vai chegar s mos do juiz? A chegada justia, etapa final do trajeto, gera um nimo que vai se desfazendo medida que passam os dias, os meses acompanhados de silncio. mais um tempo em que os familiares se sentem inteis e se pem a imaginar: por onde andar aquele processo? Por que a justia demora tanto? A primeira audincia, quando os acusados so ouvidos, acende, mais uma vez, o nimo dos familiares. Mas o que significa aquele passo? Quantos outros passos semelhantes existiro at que saia um pronunciamento final? Tambm isto no um assunto conhecido dos interessados, muito menos a estrutura do ritual: por que os acusados tm advogado? Por que no se vai diretamente ao tribunal? Ao se acompanhar os familiares das vtimas fcil perceber o quanto esto vulnerveis ao longo do percurso. Ao mesmo tempo, descobre-se que absolutamente necessrio que estes indivduos estejam atentos durante toda a trajetria e devem procurar saber sobre as prximas audincias, estarem presentes em todos esses atos a demonstrar a importncia daquele que foi assassinado, atravs de mecanismos simblicos como uso de faixas, porte de camisas alusivas quela morte e outros adereos. Em outras palavras, os atos devem ser tomados como cenrios para a manifestao de desagravo por aquela morte e isto significa a mobilizao de pessoas e recursos o que implica numa operao complexa diante da fragilidade das famlias.

    O Frum identifica a necessidade de se criar um servio de atendimento s famlias dos mortos por violncia de modo a viabilizar a prpria luta por elas empunhada, considerando-se que a determinao desses grupos parentais gera um benefcio para a sociedade no que se refere promoo da justia, ou seja, esta luta no pode ser vista como de carter pessoal e sim uma

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    ao que beneficia a todos. Desse modo, o estado, nas suas mais diversas instncias deve promover um conjunto de servios nas reas de atendimento social e psicolgico; de assessoria jurdica e de custeio do transporte para os deslocamentos aos diversos percursos necessrios para o acompanhamento dos casos, para o pagamento de documentos e cpias necessrias, bem como a disponibilizao de remdios e outros tratamentos provenientes dos traumas gerados pela ocorrncia violenta.

    5. Consideraes Finais 5. Consideraes Finais 5. Consideraes Finais 5. Consideraes Finais Ao longo dos nossos dez anos de atividade pudemos observar que o crescimento da

    violncia no vem acompanhado de uma igual complexidade no que se refere s tentativas de combate pelo estado. Enquanto se verifica uma contaminao de todos os espaos que so nitidamente, tomados pelo medo no constatamos aes pblicas articuladas, capazes de fazer frente aos desafios que a violncia nos impe.

    Percebemos que o combate violncia tem sido definido a cada caso gerador de impacto junto opinio pblica. Trata-se de atuaes que mais respondem a uma onda momentnea de reivindicao coletiva do que uma ao poltica geradora de impactos duradouros visando minimizar o problema. Com este modelo de atuao passamos a uma constatao perversa: passamos a necessitar de seqestrador de um nibus parado em pleno Jardim Botnico, no Rio de Janeiro, de alguns nibus incendiados com vtimas tanto no Rio quanto em So Paulo, precisamos de motins no interior de nossas penitencirias e de vtimas bem situadas economicamente para que o estado seja chamado em causa e reconhea a necessidade de tomadas de posio mais complexa. Em lugar de tomada de posio definida pelas ocorrncias socialmente mais projetadas, necessitamos da adoo de aes dirias, atravs de polticas pblicas que ataquem as causas determinantes da violncia. Gostaramos que esta posio, que j adquiriu uma fachada de lugar comum, ultrapassasse o nvel do discurso e virasse novidade em prticas polticas concretas.

    Referncias Referncias Referncias Referncias AGUDELO, S.F. La violncia: un problema de salud pblica que se agrava en la regin. Boletim Epidemiolgico, v.11, n.2, p 1-7, 1990. BAHIA. Secretaria da Sade. Plano de ao para a reduo da morbimortalidade por causas externas na Bahia. Salvador: SESAB, 1998 BRASIL. Governo Federal. Plano Nacional de Segurana Pblica. Braslia: Presidncia da Republica, 2000. 35 p. BRASIL. Ministrio da Sade. Poltica nacional de reduo da morbimortalidade por acidentes e violncias. Portaria GM n. 737, de 16.05.01. Dirio Oficial da Unio, Braslia, p.3-8, maio 2001. CENTRO BRASILEIRO PARA A INFNCIA E ADOLESCNCIA - CBIA. Bahia: suas crianas e adolescentes: o que est acontecendo? Salvador: UNICEF, 1991. p.99-121.

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    RRRResumoesumoesumoesumo

    O artigo traz a discusso sobre a exacerbao da violncia no Brasil, nas duas ltimas dcadas. Revela a trajetria da violncia como principal problema de sade em Salvador, constituindo-se na primeira causa de morte entre os jovens e na segunda causa de morte da populao em geral. Demonstra a distribuio desigual deste dano, nos espaos urbanos e populacionais, ao apontar que a violncia atinge, principalmente, os jovens, negros, de pouca escolaridade e pobres. Com isso traz tona fatores que esto na gnese das violncias. O artigo apresenta, tambm, as formas de enfrentamento da violncia de expressiva dimenso, no municpio de Salvador, materializadas no Frum Comunitrio de Combate Violncia, iniciativa da sociedade e o desenho de uma poltica da Prefeitura Municipal de Salvador, expressa no Plano Intersetorial Modular de Ao para a Promoo da Paz e da Qualidade de Vida na Cidade do Salvador (Pima). Conclui o artigo ressaltando os pontos crticos para o enfrentamento de um problema complexo como o da violncia e enfatiza a necessidade urgente de adoo de polticas pblicas efetivas para combater a gnese da violncia nas suas diversas formas de expresso. Palavras-chave: Violncia; Combate violncia; Salvador

    AbstractAbstractAbstractAbstract

    The present text discusses violence exacerbation in Brasil in the last two decades, assuming it as the most important health problem in Salvador, Bahia, where it is youths first death cause and second death cause of the entire population. It shows the unequal distribution of violent death, pointing out its preponderant victims as poor young black men, what brings up elements of the genesis of violence. The article also presents two expressive forms of violence confrontation in Salvador: the Forum Comunitrio de Combate Violncia (FCCV), a society iniciative, and a public policy of the town government, known as Plano Intersetorial Modular de Ao para a Promoo da Paz e da Qualidade de Vida na Cidade do Salvador (Pima). The conclusion points out critical aspects of the attempts to face complex problems such as violence and emphasises the urgency for efective public policies to face violence genesis in its several and varied expression forms. Keywords: Violence; Violence combat; Salvador.