Violência estatal e manifestação estudantil nildo viana

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VIOLÊNCIA ESTATAL E MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL

VIOLÊNCIA ESTATAL E MANIFESTAÇÃO ESTUDANTIL

Nildo Viana

A manifestação estudantil no dia 28 de maio em Goiânia, contra o aumento do preço da

passagem do transporte coletivo resultou numa forte repressão policial aos

manifestantes. A truculência dos policiais ocorreu com uma operação repressiva em alta

escala, como se a manifestação fosse uma ação criminosa. É necessário compreender

melhor essa situação e o seu significado político no contexto atual. Para isso, é preciso

saber do processo que gerou a manifestação e a repressão violenta por parte do Estado,

via polícia militar.

Esse foi o quarto protesto contra o aumento dos preços das passagens. O transporte

coletivo em Goiânia, como em todo o país, é controlado por um conjunto de empresas

oligopolistas que lucram com o serviço prestado. Como o objetivo é o lucro, então,

obviamente, que a ampliação e reforma da frota, o salário dos motoristas, é algo que

atinge a lucratividade. Por isso, ônibus lotados significa lucro maior, pois a relação

motorista-passageiros é maior, assim como o número de ônibus, as despesas com

combustível, são menores. Nesse sentido, os usuários possuem interesses antagônicos

aos dos capitalistas do transporte. O Estado, que supostamente é o “arbitro” neutro

desse processo, defende os interesses capitalistas e, portanto, também se encontra em

oposição à população (não apenas nessa questão, e o crescimento do voto nulo é apenas

expressão da desilusão de parte cada vez maior da população). O aumento do preço da

passagem é algo que pesa no bolso dos setores mais pobres da população, bem como

enche ainda mais os cofres das empresas capitalistas de transporte coletivo.

O capitalismo contemporâneo é marcado por uma busca de ampliar o processo de

exploração em escala global, um processo que se iniciou nos anos 1980 e a emergência

dos governos neoliberais e da reestruturação produtiva, bem como das novas investidas

visando aumentar a exploração internacional, criaram um quadro de miséria e pobreza

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crescentes. Os 80 milhões de pessoas passando fome no mundo transformaram-se em

500 milhões e em poucas décadas foi aumentando até chegar a um bilhão de pessoas, ou

seja, de cada 7 pessoas uma passa fome. O desemprego cresceu mundialmente, bem

como diversos problemas sociais se avolumam.

O Estado neoliberal realiza a política do “mínimo” (em gastos e políticas sociais) e

“forte” (altamente repressivo), e por isso foi chamado pelo sociólogo LöicWacquant

como “estado penal”. O capitalismo atual se fundamenta no regime de acumulação

integral, cujo objetivo é aumentar a exploração dos trabalhadores sob inúmeras formas e

conter os gastos estatais com a população trabalhadora, pois desde meados de 1960,

quando a estabilidade conquistada nos países imperialistas é abalada com diversas

manifestações culturais, protestos, movimentos sociais, que culminaram com as lutas

sociais radicalizadas em diversos países, principalmente pelo movimento operário e

movimento estudantil. O exemplo máximo e mais radical foi o do Maio de 1968 em

Paris, num processo que gerou uma diversidade de ações estudantis, ocupação de

universidades, etc., aliado a uma greve de mais de 10 milhões de operários. A crise do

final dos anos 1960 e meados de 1970 gerou o novo regime de acumulação que visava

resolver o problema da acumulação capitalista e o papel do Estado foi fundamental

nesse processo e por isso até os partidos ditos de “esquerda” quando eleitos realizaram

(e continuam realizando) políticas neoliberais. A estabilidade acabou, o Estado de bem

estar social desabou na Europa e nos demais países imperialistas, o tema da “exclusão

social” aparece com a nova onda de desemprego nestes países. Por outro, a pobreza e

miséria avançam no resto do mundo, onde seu índice já era elevado. Contudo, os anos

1980 foram o da formação desse novo estágio do capitalismo e os anos 1990 a época de

sua consolidação e foi por isso que se cunhou a expressão “pensamento único” para se

referir à hegemonia neoliberal. Apesar de aumentar a exploração dos trabalhadores, o

desemprego, a miséria, e diversas consequências disso tudo (tal como o retorno de

doenças superadas desde a Segunda Guerra Mundial), se conquistou uma certa

estabilidade, garantida com a conversão da suposta esquerda ao regime neoliberal, com

um alto grau de repressão, e com a retomada da acumulação capitalista.

Esse mundo, no entanto, começou a ruir em 1999. Foi nesse ano que surgiu o chamado

“movimento antiglobalização”, onde o “pensamento único” perdeu sua hegemonia

quase absoluta e novas formas de protestos e lutas se desenvolveram. O ressurgimento

do anarquismo, inclusive graças ao fim do capitalismo estatal da União Soviética e

outros países e a capitulação das “esquerdas” partidárias em todo o mundo, bem como

novas concepções e formas organizacionais e políticas, teve um início nesse período. As

lutas sociais no México, onde a superexploração dos EUA gerou um empobrecimento

extremo, como na Argentina, são apenas mais um capítulo dessa história e que não

terminou (ainda persiste o movimento piquetero, entre outras formas de luta nesse país e

em diversos outros). Os protestos e revoltas de jovens, imigrantes, entre outros, passam

a fazer parte da história política de uma sociedade que anunciou sua eternidade

inúmeras vezes, desde Augusto Comte no século 19 até Francis Fukuyama, em 1992,

com seu livro célebre na época de seu lançamento e já esquecido nos dias de hoje por

não poder ser levado a sério: O Fim da História, pois a única história que teve fim foi a

do sucesso desse livro que dizia que a democracia liberal era a última etapa da historia

da humanidade. No plano cultural, a redescoberta do anarquismo, situacionismo,

conselhismo, ofereceu a possibilidade de novas formas de pensar a realidade social e

sua transformação, não mais através dos velhos, conservadores e burocráticos partidos

políticos de “esquerda”, sempre aliados ao poder e dispostos a se vender por quem

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pagar mais ou por um maior número de cargos. As lutas espontâneas aumentam e se

tornam cada vez mais intensas e assumindo várias formas em vários países e cidades.

Nesse contexto, temos uma característica fundamental do Estado Neoliberal: a

repressão. Uma vez que não vai realizar gastos com políticas sociais, com educação,

saúde, emprego, etc., então a repressão é a única solução tendo em vista o aumento da

exploração, da pobreza, etc., que, obviamente, tende a gerar mais violência,

criminalidade e protestos, revoltas, revoluções. O Estado neoliberal é repressivo por

natureza, ou “penal”, e isto está no seu próprio discurso, sendo que a política de

“tolerância zero”, surgida em Nova York, é a sua expressão mais acabada e diretriz para

todas as ações estatais no mundo inteiro.

Contudo, assim como em meados dos anos 1960 a situação do capitalismo começou a

deteriorar e a contracultura, os movimentos estudantis, o movimento operário, o

movimento negro, entre outros, começaram a se avolumar e radicalizar, e nada se fez

até a explosão ocorrer no final dessa década, o mesmo ocorre hoje. Os problemas da

acumulação capitalista retornam (e por isso é necessário ampliar mais ainda a

superexploração já existente), a crise financeira de 2008 reforçou essa tendência e as

constantes quedas nas bolsas de valores, embora oscilando entre quedas e altas, a

diminuição do crescimento econômico, são apenas sintomas desse processo que tende a

se acirrar. Isso traz a necessidade de aumentar ainda mais a exploração, e a inflação é

sempre um bom remédio para aumentar o lucro e foi a receita fundamental dos anos

1970 (e até anos 1980, no caso de alguns países como o Brasil). O problema é que

algumas pessoas suportam viver comendo um pão por dia. Elas vivem conformadas e

não protestam, mas, se tirarmos metade do seu pão, aí elas tendem a se revoltar. A

situação hoje é a de que estão prestes a retirar a metade do pão do conjunto da

população.

O aumento dos preços das passagens é uma expressão de todo este processo. O

problema do transporte coletivo e os protestos estão ocorrendo em várias cidades do

Brasil. O protesto em Goiânia foi marcado por uma forte e truculenta repressão. Essa é a

prática neoliberal comum. Contudo, houve um diferencial na intensidade e truculência

utilizada. A tática é a de aterrorizar a população, espalhar o terror e impedir protestos.

Espalhar o medo pela população para evitar que ela reaja, proteste, faça reinvindicações.

A ação policial no dia 28 de maio de 2013 foi nitidamente com tal intenção. A

truculência é para mostrar que todos correm risco e que portanto é melhor ficar em casa.

A humilhação (e agressão física) é para que as pessoas recuem. Ora, mas para fazer isso

e não criar uma situação de maior insatisfação geral é preciso justificar e legitimar a

ação truculenta. E a forma de se fazer isso é, obviamente, criminalizar os manifestantes

e o protesto. Obviamente que sair pelas ruas, com cartazes na mão, não é crime. A

liberdade de opinião, reunião e expressão, entre outras, são garantidas no que alguns

chamam de “Estado de direito”, então isso não pode ser criminalizado. É por isso que é

preciso apelar para “agência bancária incendiada”. Curioso é que os manifestantes não

colocaram fogo só em ônibus, mas até em agência bancária... Tão curioso quanto

estúpido. Obviamente que em todos os protestos que aglutinam multidões, existem

indivíduos de todos os tipos e isso é possível de ocorrer. E realizar uma repressão

intensiva e extensiva sobre o conjunto dos manifestantes é algo sem o menor sentido. E

um estudante conta o caso de que um policial teria tentado colocar maconha em sua

mochila para incriminá-lo. A questão é se tal incêndio de agência bancária também não

está dentro da mesma lógica. Queimar ônibus é uma tradição da sociedade brasileira,

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desde o final dos anos 1970 e nunca houve reação tão truculenta quanto a desta vez,

nem na época da ditadura militar. Os meios oligopolistas de comunicação, por sua vez,

aparecem para reforçar o processo de criminalização do protesto.

Essa tática do terror e do medo é eficaz apenas parcialmente e mais em um curto

período de tempo. Em curto prazo, pode inibir indivíduos e diminuir o número de

pessoas nas próximas manifestações. Contudo, mesmo nesse caso há contradições, pois

a violência estatal pode inibir participação de pessoas, mas o medo gera mais um

motivo para insatisfação e tende a ampliar a consciência da população sobre de qual

lado o Estado capitalista está e reforçar uma cultura contestadora. A longo prazo, a

persistência dessa tática tende a produzir novas formas de resistência e luta, maior

preparo dos manifestantes e novas estratégias além da mera manifestação. Outras

formas de manifestações, desconcentradas e em vários lugares simultâneos, também

podem ocorrer. Elas devem ser combinadas com outros processos de luta e devem ter

outros alvos além das sedes governamentais, tais como as sedes dos meios oligopolistas

de comunicação. Apesar da importância das manifestações, elas concentram os

manifestantes num mesmo lugar e possibilita uma repressão intensiva.

No entanto, o elemento fundamental da luta ocorre nos locais de trabalho, estudo,

moradia e consumo. Da mesma forma, o apoio e integração de outros setores da

população se tornam fundamentais, inclusive a pressão sob certos setores da sociedade

que estão cooptados e não realizam essa luta que deveria ser deles também, tais como as

associações de bairros, de usuários, etc. A longo prazo, a luta tende a se transformar e se

tornar mais forte e eficaz, e se a situação segue a tendência de deterioração das

condições de vida, tende a aglutinar cada vez mais pessoas e a se reforçar. Portanto, a

repressão policial e sua truculência não irá deter um processo que é a tendência da

sociedade contemporânea, será apenas um obstáculo que noutro momento pode ser um

incentivador. Pode, inclusive, ser o “detonador” de uma revolução, tal como no caso

russo do “Domingo Sangrento”, no qual o massacre fez explodir a insatisfação reinante

na sociedade. Dessa forma, não é uma boa tática o terrorismo estatal e a luta dos

estudantes, trabalhadores e outros setores da sociedade deve e vai continuar

independente dela.

Autor: Nildo Viana

Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2013/05/violenciaestatal-e-

manifestacao.html Acesso em: 02/9/2013.

Publicado em: QUINTA-FEIRA, 30 DE MAIO DE 2013