Virgilio Ferreira Para Sempre

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A vida inteira para dizer uma palavra!Felizes os que chegam a dizer uma palavra! Saul Dias 2 Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tardede Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final domeu destino. E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagemserena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e avida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros - é aHistória que se diz? abro a porta do quintal. É um p o r t ã o desconjuntado, as dobradiças a despegarem- se. Há muito tempo já queaqui não vinhas. Sandra era da cidade, gostava da capital, detestava avida da aldeia. Lá ficou. Abro a porta devagar, ela range para o espaçodo jardim. É um jardim morto, as plantas secas, os canteiros arrasadosnas pedras que os limitavam. Alguns têm só terra ou hastes secas d e roseiras. Vejo-as do portão, o carro à entrada a trabalhar. Depois meto-ona garagem, que é um barracão ao lado da casa. Um silêncio súbito,silêncio da terra. Só vozes ermas dos campos, ouço-as no calor paradoda tarde. Reparo agora melhor no pequeno jardim. Uma selva bravia.As plantas selvagens irromperam de todo o lado, aos cantos dos muros,à v o l t a , j u n t o à casa. Há algumas armações de madeira a i n d a , j á apodrecidas, suspensas de arames, sem flores. Olho-o um instante, olhoa casa, circunvago o olhar. Preparar o futuro - o futuro... E uma súbitaternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua comoção. Prepararo futuro, preparação para a morte. Está certo. Parte-se carregado decoisas, elas vão-se perdendo pelo caminho. Se ao menos uma breveideia. Não tenho. Não é bem a vida que faz falta só aquilo que a fazviver. Trago o carro para dentro, vou metê-lo na garagem. O carroacelera na tarde quente, a areia da alameda range., Paro, desligo omotor, um silêncio mais desértico. E um pequeno susto

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A vida inteira para dizer uma palavra!Felizes os que chegam a dizer uma palavra!Saul Dias2Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tardede Agos to . O lho-a em vo l ta , na su focação do ca lo r , na posse f ina l domeu des t ino . E uma comoção abrup ta - sê ca lmo. Na aprend izagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e avida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros - é aH i s t ó r i a q u e s e d i z ? a b r o a p o r t a d o q u i n t a l . É u m p o r t ã o desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se. Há muito tempo já queaqui não vinhas. Sandra era da cidade, gostava da capital, detestava avida da aldeia. Lá ficou. Abro a porta devagar, ela range para o espaçodo jardim. É um jardim morto, as plantas secas, os canteiros arrasadosnas pedras que os l im i tavam. A lguns têm só te r ra ou has tes secas de roseiras. Vejo-as do portão, o carro à entrada a trabalhar. Depois meto-ona garagem, que é um bar racão ao lado da casa . Um s i lênc io súb i to , silêncio da terra. Só vozes ermas dos campos, ouço-as no calor paradoda tarde. Reparo agora melhor no pequeno jardim. Uma selva bravia.As plantas selvagens irromperam de todo o lado, aos cantos dos muros,à v o l t a , j u n t o à c a s a . H á a l g u m a s a r m a ç õ e s d e m a d e i r a a i n d a , j á apodrecidas, suspensas de arames, sem flores. Olho-o um instante, olhoa casa, circunvago o olhar. Preparar o futuro - o futuro... E uma súbitaternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua comoção. Prepararo fu tu ro , p reparação para a mor te . Es tá cer to . Par te -se car regado deco isas , e las vão-se perdendo pe lo caminho . Se ao menos uma breve ide ia . Não tenho . Não é bem a v ida que faz fa l ta só aqu i lo que a faz v i v e r . T r a g o o c a r r o p a r a d e n t r o , v o u m e t ê - l o n a g a r a g e m . O c a r r o a c e l e r a n a t a r d e q u e n t e , a a r e i a d a a l a m e d a r a n g e . , P a r o , d e s l i g o o motor , um s i lênc io ma is desér t i co . E um pequeno sus to ins inuado àsco isas . São t rês ma las apenas , v i rá o res to depo is . Tomo duas , subo o3balcão até meio, vou buscar depois a outra. E de repente dobra o ângulooposto da casa, vem direita a mim. Um breve ruflar de saias compridasno silêncio, desliza imperceptivelmente, traz um molho de couves numbraçado, tia Luísa.- Já vieste, Paulinho?Pára um pouco ao pé de mim.- Estás morta! - grito-lhe eu para o espaço em redor.- Paulinho...Tem os lábios cerzidos, a face macilenta. Dá a volta à casa pela frente,v e j o - a a g o r a d e c o s t a s , d e s l i z a c o m o a r a g e m p e l o c é u . E m v o l t a , o jardim imóvel no silêncio. Mas de súbito, aponta de novo à esquina dacasa, vem de novo para mim, vem crescendo como um susto. Mas nãome o lha , não me fa la . Ve jo -a de cos tas ou t ra vez , desaparece a t rás dacasa. É uma tarde de Verão, ergue-se de horizonte a horizonte. Uma vozcanta ao longe, na dispersão do entardecer. Vem do fundo da terra, sobeem círculos pelo ar, evola-se na distância. Fico a ouvi-la no silêncio emredor. Um miúdo veio encostar-se ao portão dg entrada,

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não dei contade ele vir. Está imóvel, olha-me.T e m u m r i s o p a r a d o , f i t a - m e . S e r á a l g u m n e t o o u a i n d a f i l h o d a D e o l i n d a . E l a t r a t a - m e d a c a s a , m a s n ã o m e l e m b r o d e a a v i s a r d a minha vinda,- Eh, pequeno!Não se move, com o riso fixo na boca. Vou para ele, ele evapora-sen u m s o p r o . S e n t o - m e e u u m i n s t a n t e n u m d e g r a u d o b a l c ã o . E d e s ú b i t o , t i a L u í s a e n t r a p e l o p o r t ã o , e r a u m d i a q u e n t e d e j u l h o . E u sentara-me num sítio onde o balcão dava sombra, à espera de que mechamassem para o almoço. Tia Luísa vinha da aldeia, tinha ido decertobuscar coisas à loja. Trazia os olhos baixos, a boca travada de ira. Sem4me dizer palavra, subiu os degraus e desapareceu porta dentro. Céus.Que fiz eu? Vinha furiosa comigo, era evidente, que é que eu teria feito?Certa noite, eu erguera-me cauteloso, saíra sem ser ouvido, ia ter com apu ta Ade la ide que morava no Termo, o ou t ro ex t remo da a lde ia , eumorava no Cabo, que e ra opos to . Mas i sso fo ra há umas t rês no i tes ,a lguém lhe te r ia d i to? A Ade ia ide , eu combinara com e la , já es tava à minha espera, abriu a porta, o quarto era ao lado. E imediatamente, amão à p ressa por todo o corpo , pe las nádegas , pe las mamas que me m á g o a a t i r a d o s d e e s c a n t i l h ã o s o b r e a c a m a , a m i n h a c ó l e r a e m p é , enrodilhados, escabujados até à aniquilação. Silêncio. Está uma tardequente, um olhar suspenso na serra ao longe, na linha ondeada do seucume.- Vais sair, Paulinho?Quando regressava a casa, tia Luísa ouviu-me. julgava que eu ia sair,aproveitei:- Não consigo dormir, ia dar uma volta.- Vê se dormes. Não são horas de saíres.Entrei em casa, dormi. Agora tia Luísa vinha da aldeia, trazia o cabazda mercear ia . Des t ra , aguda . Uma fe roc idade l i near . Quanta vez me zurziste na aprendizagem de ser homem. Tão difícil ser homem. Mas euc r e s c e r a , a g o r a z u r z i a - m e d e o u t r o m o d o , a f a c e d u r a , c o r i á c e a , a palavra seca, reduzida ao essencial da agressividade. Passou por mim,s e m m e o l h a r . E s t o u s e n t a d o n u m d e g r a u à s o m b r a , e r a e m j u l h o , estava quente. Aguardo que me chamem para o almoço, ninguém mechama. Tia Luísa e tia Joana devem estar em conciliábulo, a acertarem oseu no jo pe la m inha perversão . Comêramos o a lmoço em s i lênc io , o prato empurrado de longe para o leproso. Deus. Quando serei homem,com a vida inteira na mão? Que ideia. Não a terás nunca na mão. É dos5outros, dela própria, da corrupção implícita ao seu durar. Tia Luísa. Dequalquer modo, tenho fome, quero almoçar. E tia Joana ouviu-me. Sai aporta, desce os degraus, era redonda. Tia Joana. Também às vezes todaf r i sada de i ra . Mas quase sempre a voz mac ia , em vo lumes suaves . Eum ar inocente diante das calamidades.- Olha, meu filho, temos de ir chamar o médico. A tia Luísa está mal.- Mal?Foi um homem à vila, o médico veio. já metida na cama, alagada desuor . E ra a l to , o méd ico , ve rgava . Vergado para e la a ta rde in te i ra , o pulso, a língua, a auscultação, o termómetro, tia Luísa ofegante. Andavaà v o l t a d e l a à p r o c u r a d o s í t i o d a d o e n ç a , n ã o a c h a v a . G u a r d o u o s aparelhos, disse que voltaria. Voltou. Foram oito dias. E de cada vez otermómetro, o

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pulso, apalpações pelo corpo. Mas a razão da doença nãoconferia com o seu saber. Estou sentado no balcão, a tarde finda ao altodos montes . T ia Joana desce os degraus , tem as mãos c ruzadas sob o avental. Fica diante de mim, o ar sem culpas:- Olha, meu filho, a tia Luísa morreu.Tem as mãos sob o avental, olha-me com compaixão. Tia Luísa, vejo-a . Vem da a lde ia , t raz o cabaz da mercear ia . Cer rada sobre s i , a bocacerzida de cólera. Passa por mim, nem uma palavra. E eu pensei «vemenvenenada comigo» - r iem me o lhou . Que ú l t ima pa lav ra me des te? Palavra de amor, de ira, de ordem seca em estalo. Palavra para lembrar.P e l a v i d a i n t e i r a , a t u a ú l t i m a p a l a v r a . A q u e s e l a s s e p o r u m a v e z a linguagem do sangue, de um destino comum. Não a recordo. Veio antesa tua face retraçada de cólera. E os olhos baixos, directos ao chão. Cóleracontra ti, contra a vida, contra mim. Forma talvez de me amares na tuadedicação animal.- Já vieste, Paulinho?6S im. Para sempre . Aqu i es tou . Levo as duas ma las para c ima, voub u s c a r a o u t r a a o c a r r o . E s t á u m a t a r d e q u e n t e . C é u d e z i n c o , carbonizado. Ao longe, a montanha, uma grande pedra ao sol. Uma vozcanta não sei onde. Ergue-se sobre o silêncio da terra.7IIMas quando volto com a mala - a casa. Olho-a ainda, não me cansode a olhar. É alta, toda de amarelo, agora desbotado. Lojas, dois pisos.As empenas chan f radas , um ar po l iéd r i co no seu face tado . E o o lhar cego das jarie4as cerradas. Bloco imóvel e à volta um ressoar grande dee s p a ç o . C o m o v e n t o s , n e v o e i r o s , o m u r m ú r i o d o t e m p o , o u ç o - o . E x t á t i c a , c o n t r a a p a s s a g e m d o s a n o s , a o a l t o , o l h o - a , l e v a n t a d a d e silêncio. Tomo enfim a mala, subo os degraus, abro a porta da casa. Umodor espesso a um espaço selado, a mofo, a coisas velhas fermentandon a s o m b r a . S i n t o - o n a f a c e , n a s n a r i n a s , c o m o u m b o l o r . C h e i r o a m a d e i r a s a p o d r e c i d a s , a l e m b r a n ç a s c o a l h a d a s c o m o s u o r q u e arrefeceu. Pela porta aberta entra a claridade da tarde. Estende-se pelocor redor en t re f i l e i ras de espec t ros . O soa lho range aos meus passosm e d r o s o s , o m i s t é r i o e c o a n a c a s a a b a n d o n a d a . E s t á e s c u r o . É u m c o r r e d o r e x t e n s o , d ã o p a r a e l e t o d a s a s p o r t a s a t é a o f u n d o . V o u entrando em cada quarto, a sufocação do calor. Nas frinchas das janelas,as riscas de luz brilham no escuro. Alguns fechos estão perros, coladosda t in ta . Ten to cor rê -los sem os par t i r , cons igo en f im abr i r todas as janelas de par em par para o horizonte. Fica num extremo da aldeia, acasa, o terreno desce abruptamente nas traseiras para um grande vale.Fico um instante a uma janela, olho. O vale ergue-se à distância, numtom roxo , vêem-se no hor i zon te s ina is b rancos de a lde ias . De uma auma, todas as janelas, e o ar quente, e a luz. Circulam agora livremente,a casa suspende-se , toda aber ta de espaço . A me io do cor redor f i ca asa la da varanda . Tenho de i r a inda abr i r as jane las do

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andar de c ima. S e n t o - m e à v a r a n d a - a q u i e s t o u . V i d a f i n d a . M a s n ã o p e r g u n t e s .8S o n h o s , l u t a s , e a o b s e s s ã o d o e n i g m a n ã o p e r g u n t e s . E d ó q u e o ordenasse ao universo - não penses., A palavra ainda, se ao menos., Apalavra final. A oculta e breve por sobre o ruído e a fadiga. A última, apr ime i ra . Em f ren te , a toda a la rgura , o ondeado da montanha . O so l embate contra ela, desnuda-a até à aridez. Vejo-a desdobrar-se desde aa l d e i a a t é a o a l t o , c o m g r a n d e s m a t a s e s c u r a s , e r g u e r - s e a i n d a e m grandes massas a té ao céu reque imado. Aos lados do por tão há do isv e l h o s c h o u p o s , a f o l h a g e m i m ó v e l à p r a g a d o c a l o r . , E p a r a l á d o por tão , a rua deser ta . Cor re - lhe a um dos lados uma f i l a de casebres rentes ao chão, no outro, um muro de quintais. É uma rua que terminapara cá , um pouco longe do por tão , con t inua depo is - em caminho de terra batida.O s i lênc io es ta la no a r b ranco , os pássaros ca lam-se na sombra das ramadas. Só de vez em quando, vem de longe, dá a volta pelos montes,uma voz canta pelo ermo das quintas. Ouço-a na minha alegria morta,na revoada da memória longínqua, escuto-a. E é como se mais forte queo c a n s a ç o e a r u í n a , d o l a d o d e l á d a a m a r g u r a , é a v o z d a t e r r a , d a divindade do homem. De repente:- Paulinho!Oh, tu agora também, Voz trémula em fífias, em pequenos saltos deescala como de galinha, é a tia Joana.Não ouças. Deve estar no quarto ao fundo, o do terraço, já ressequidade ve lh ice , os c í r ios à vo l ta , es tend ida no ca ixão . Não ouço . Mas e la insiste, cheia de urgência, vou ao longo do corredor.- Julguei que não viesses.- Como não vinha? Evidentemente que vinha.- Não te esqueças de escolher as batatas.- Não esqueço.9- Guarda as vermelhas para o fim, que não se estragam.Uma jane la ba teu lá para den t ro - ba teu? Mas nem há ven to . Vou fechá-la, vou fechar todas as janelas, tenho de abrir as do andar de cima.Porque o homem é só o seu futuro. Bem sei. Futuro findo o meu. já sei.Mas entender isso, entender. Sê calmo - e falas tanto. Organizar a forçaque te resta. Organizá-la, não para o futuro que já não há, mas para od ia -a -d ia que fo r havendo. Acabar em decênc ia - um ve lho es tá tão ama is . D isc re to , abr igado no que te sobra de homem - tenho de i r aoandar de cima. Recolhido à tua humildade, à tua miséria sobrevivente.Mas quando passo na saleta, a escada sobe daí, é a sala de costura. Estáencos tada à parede , a máqu ina , t i a Lu ísa , ve jo -a , sen ta -se- lhe d ian te , vergada para a tarefa. Mas está imóvel, as mãos pousadas no tampo damáqu ina , uma nuvem de fo lhos ca indo do tampo para o chão . Deve estar a costurar algum cortinado para a sala, algum lençol,. mas não semove. Petrificada, a face branca, os óculos com uma lente partida. Olho-a fixamente, tem as mãos imóveis segurando a roupa junto a agulha, aroupa ca i - lhe a té ao chão . Ba te - lhe a luz da jane la , a face de cera , os olhos fixos na costura, um pouco vergada sobre a máquina. Há silêncioe m t o d a a c a s a , a l g u m e s t a l i d o a p e n a s d a m a d e i r a a o c a l o r , n ã o s e move. Debruço-me eu também, é um lenço l . Conheço-o , é

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da minhacama. Es tá a coser um remendo, a agu lha da máqu ina parada sobre aprega . T ia Lu ísa o lha a agu lha com a tenção , mas tudo es tá imóve l na tarde de calor. Ao lado da máquina, vou olhando em redor, o baú. É umbaú de couro , pousado em do is supor tes de made i ra , o pê lo amare lo , safado em alguns sítios. Tem pregaria amarela ao correr das arestas, ocouro esbeiçado nos rebordos. E de repente, sentado no baú - não vejobem. O lho a inda e pouco a pouco , a m inha imagem, é no recan to da sala, lentamente os volumes da minha imagem na sombra, o esfumado10dos con to rnos como len ta reve lação . Conheço- te , sou eu num tempomuito antigo. Tens o teu fato preto de veludo, os calções até abaixo do joelho. O casaco com. um cinto prendendo por um botão, a gola brancada camisa para fora. Estás triste. Sentado no baú de couro, as mãos nocolo, os joelhos unidos. Os olhos fitos no chão. Sapatos e meias pretasaté ao meio da perna, um pouco encolhido em ti. É um fato de veludopre to , as pernas e a face i l uminam-se na sombra . Conheço- te , o lho- tea inda , es tás só , ves t ido de lu to . Por c ima há uma imagem da V i rgem numa moldura antiga. E uma imagem colada sobre uma renda de papel j á a d e s f a z e r - s e . P e l a j a n e l a a b e r t a , o h o r i z o n t e l o n g í n q u o , a l i n h a ondulante da montanha quase apagada num tom Violeta.- Paulinho - digo-lhe.- Que é que queres?Tem o cabelo corrido para a testa, mas ao canto direito erguia-se, opê lo con t ra a cor ren te , fo rmando n inho , o « n inho de car r i ça» . M inhamãe esforçava-se por me alinhar o cabelo, minhas tias, puxam-o a águae pen te , às vezes com uma escova . Mas logo que começava a secar , o cabelo saltava, formava o «ninho».- Paulinho - digo-lhe ainda -, porque estás triste?- Já te esqueceste?Como esquecer? Mas há tantos anos já. Sessenta, talvez. Tanta coisap a s s o u . A o l a d o , i m ó v e l s o b r e a m á q u i n a , t i a L u í s a . T e m a s m ã o s paradas sobre o lençol, a face parada fixa como figura de cera.- Do asilo mandaram-nos avisar. Fomos as tias e eu, estava a chover,não te lembras? A mãe estava na cama, chamou-me à cabeceira. Depoisdisse-me uma coisa que não entendi. Tu sabes o que fiz?Es tava a chover , l embro-me, o guarda-chuva não nos cobr ia . T ia Luísa apertava-me contra si, não nos cobria. O asilo era uma casa velha,11h a v i a o l h o s p e l a s p o r t a s , v e l h o s , o o l h a r f i x o , a l g u n s t i n h a m o r i s o p a r a d o n a e t e r n i d a d e . S u b i m o s à e n f e r m a r i a , m i n h a m ã e e s t a v a encostada a almofadas, tinha os olhos semicerrados de sofrimento.Q u a n d o m e r e c o n h e c e u , o s l á b i o s c o m e ç a r a m a e n c r e s p a r - s e - l h e num sorriso, as gengivas todas, num riso sem som. Depois fez-me sinaleu aproximei-me, o ouvido encostado à boca.- Tu sabes o que foi que ela disse?Estás só. Vestido de luto. Há sessenta anos, sessenta? conheço-te. Asmeias seguras com um elástico, o elástico estava sempre frouxo.- Puxa as meias!as meias sempre a cair. E quando encostei o ouvido à boca de minhamãe, e ra um murmúr io de sons soprados . O lhe i - lhe a boca , os láb ios remexendo, encrespavam-se, tornei a encostar. Mas não entendi. Depoisriu outra vez, tinha os olhos fechados. As gengivas todas à mostra numr iso sem som. Era

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uma ta rde de chuva . Ouv íamo- la embate r con t ra a janela.- ... uma coisa que não entendi. Tu sabes o que foi?T i n h a o s o l h o s f e c h a d o s , a s g e n g i v a s n u m a r r e g a n h o . D e p o i s morreu.- Paulinho! - digo-lhe ainda mas só já lá estava o baú. A máquina decostura irrumada, encostada a um canto.- Porque estás triste?Os móveis cheios de pó, a sala deserta.12IIIA escada dá uma volta rápida em baixo, na saleta, para subir depoisa o a n d a r d e c i m a c o m u m c o r r i m ã o . B a l a n ç a , o c o r r i m ã o , q u a s e a despegar -se , vou-o puxando com a mão esquerda . Aper to -o con t ra o polegar, sinto à pressão do dedo as arestas dos buracos dos bichos damadeira. Há escuro lá ao alto, vem de baixo a claridade da janela aberta.E de súb i to , de novo . Vem de longe , de uma memór ia an t iqu íss ima, aceno da vida que findou. É um canto claro, ouço-o do fundo da terra,da água das origens. Suspendo-me um instante, o passo aberto e paradona subida dos degraus. A voz ondeia pelo espaço, aproxima-se, afasta-s e à s r e v o a d a s c o m o u m s i n o . N ã o r e c o n h e ç o a c a n t i g a - v i r á j á d a minha infância? prolonga-se como um eco em cada final de frase. Maso u ç o n e l a o t r i u n f o q u e n ã o s o u b e , a l e g r i a d o s e s p a ç o s l i v r e s n a irradiação do sol. Detenho-me ainda, escuto. A alegria que morreu e mef a l a a i n d a . Q u a l q u e r c o i s a i n d i z í v e l , s e e u t e e n t e n d e s s e . S ê e m t i a n u l i d a d e d e t i . U m a v o z c a n t a a o l o n g e , v e m d o e s p a ç o d a t r a n s f i g u r a ç ã o . M i n h a m e l a n c o l i a g r a v e , n ã o a s e i . A p o i o o p é n o degrau, subo de novo, a escada range. Ao cimo há uma porta com umfecho de correr. Tia Joana fechava-o sempre quando cá não estávamos,reduzia o espaço do seu receio ao andar de baixo. Às vezes esquecia-se,nós f i cávamos p r i s ione i ros em c ima. Cor ro o fecho , a lguém deve te r selado a casa para a eternidade. E no corredor obscuro, o mesmo calor fechado, cheiro a madeiras velhas num espaço de asfixia. As portas dosquartos empenadas, meto o joelho à do nosso, os dois batentes oscilampegados , sa l tam en f im para o quar to deser to , eu com o joe lho a doer . Há uma pequena varanda, as portadas altas, os fechos de cima a baixo.13M a s n ã o o s d e v e m t e r p o d i d o f e c h a r , a s p o r t a d a s a l t a s e n c o s t a d a s , arrasto-as na soleira de pedra. Depois abro as vidraças, a montanha aol o n g e e m t o d a a s u a m a g n i t u d e . E u m a p e q u e n e z e m m i m s ú b i t o s e n t i d a , u m p a s m o s i d e r a l d e h o r i z o n t e s . A o l a d o o s c h o u p o s , t ê m quase a altura da casa, em baixo a destruição. Plantas secas, os canteirosarruinados - há quantos anos cá não vinhas? a confusão selvática de umc e m i t é r i o a b a n d o n a d o . E s t o u a s s i m u m i n s t a n t e , q u e e s t o u a f a z e r ass im? p reparar -me para a mor te , é da sabedor ia an t iga , t r i l hada naexper iênc ia , depo is vo l to -me. O quar to desab i tado , a acumulação de t ras tes pe lo chão . Uma cade i ra com o assen to de p lás t i co reben tado , cadeiras sobrepostas de pernas para o ar, uma fronha de travesseiro nosoa lho . E numa parede ,

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suspenso de um prego - meu Deus . Oh, nãoso f ras - o chapéu de pa lha de Sandra . É um chapéu de g randes abas flexíveis, uma fita azul de pontas cruzadas e suspensas - não sofras. Dacor do céu no teu cabelo, mas comover-me não. Dei a volta à vida toda--- meu Deus. Se eu tivesse um fim de que não me envergonhasse. Estáuma tarde linda. Uma voz canta-a da distância, enche o espaço do seutriunfo até ao meu olhar nublado. Sê calmo até à estupidez como a vida.E todavia. Dar a volta por quanto existi - e exististe tanto. Porque umavida humana. Como ela é intensa. Porque o que nela acontece não é oq u e n e l a a c o n t e c e m a s a q u a n t i d a d e d e n o s q u e a c o n t e c e n e s s e acon tecer . Tenho de i r p rocura r a Deo l inda ou ta lvez e la me p rocure , deverá saber já que cheguei. E então, debruço-me da varanda, está umamanhã de Verão . Sandra , ve jo -a em ba ixo . Ve jo - lhe a aba do chapéu *redondo tapando-a quase toda, tem um regador na mão. Rega de altoas flores dos canteiros quase sem interesse, o sol irisa as gotas de água,chuva de luz e de cor.14- Sandra! - digo-lhe eu para o espaço do jardim e ela olha para cima,vejo-lhe a face séria - oh, não, agora não, volto-me para dentro, regressoa o q u a r t o , d e s e r t o . N a o u t r a p a r e d e , n o h a l o d e l u z , é u r n a l u z esverdeada, vem no reflexo do tecto pintado a verde-cru. Aproximo-med e v a g a r , m a s e u j á s e i - h á q u a n t o s a n o s , X a n a , a m i n h a f i l h a , é A lexandra , mas chamávamos- lhe sempre ass im. No caderno a l i nhas duplas da escola primária, era oa e i o u,cabeça de burro és tu.- Diz lá,pai, o a e i o u e eu dizia.- Cabeça de burro és tu - ela diziae Sandra emoldurou a folha das vogais. Como guardou o primeirodentinho que caiu e se perdeu. Como toda a infância,. mas ridículo não.Sê em homem a tua condição humana, oh, ridículo não - mas a molduralá está, onde estás, Xana? Da alegria morta, do meu tempo perdido. Umhalo esverdeado, o espaço fechado de luminosidade como um êxtase.Ah , e se te ca lasses? tu fa las tan to . Como o s i lênc io submerso de um l a g o . E e n t ã o d e r e p e n t e - m a s j á m e n e m l e m b r a v a . A s v e z e s , c o m Sandra, ela era professora, tinha já trinta e vários anos de penitência. Eeu também, mas não era professor.- Quando nos aposentarmos - eu dizia.I n v e n t á v a m o s o f u t u r o p a r a a i n d a h a v e r f u t u r o q u a n d o o n ã o houvesse e a vida que lhe pertencia.- Oh, tu foste sempre assim - diz-me Sandra.- Que vens aqui fazer?- Sempre a ideia do fim, foste um túmulo toda a vida.Está sentada ao fundo da cama, pequena, a perna cruzada, o chapéude palha no joelho com as fitas pendentes. É linda a minha mulher, oscabelos pretos pelos ombros, olhos rígidos negros - não sei. Meu amor15d e p e d r a - q u e é q u e i s t o q u e r d i z e r ? E e n t ã o m u l t i p l i c a m - s e - m e o s a r g u m e n t o s . C o m o a r a m e f a r p a d o , m u l t i p l i c a m - s e - m e c o m o u m a agressão de dentes.- Sandra!M a s

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e l a n ã o e s t á , o q u a r t o v a z i o . M a s a s s i m m e s m o q u a n d o n o s aposentarmos - e então eu vinha trazendo coisas. Uma mobília velha deq u a r t o , a l g u n s q u a d r o s , a l g u n s l i v r o s - l á e s t ã o . E m d u a s e s t a n t e s f o r m a n d o â n g u l o n u m c a n t o d o q u a r t o , o s l i v r o s . L á e s t ã o . M a s e l a amava a cidade, o ruído que nos inventa um ser civilizado e imortal,- Que vamos fazer ria aldeia? Olhar as couves?o telefone que nos inventa o ser social, o tráfego que nos inventa umlargo raio de acção.- Conversar com as beatas amigas da tia Joana?e lá ficou. Era uma citadina. Lá ficou. Deves ouvir agora o tráfego nacova , uma poe i rada de ru ído passando às revoadas por c ima. Com a memória da cidade que continua. Lá ficou. Vim eu só, estou parado noquarto deserto. Olho os livros - e de súbito os livros multiplicam-se-med e s d e o c h ã o a t é a o t e c t o . P a r e d e s i m e n s a s , c o r r e d o r e s i n f i n d á v e i s compactos de livros, e as caves, e as escadarias interiores,, depósito dein-fólios no sótão, a cerimónia findou, estou eu só na Biblioteca Geral.Fecharam os portões, ninguém, todo o grande edifício deserto. Passopelos longos corredores, de cima a baixo os livros nos seus túmulos. Sãomilénios de balbúrdia, tagarelice infindável., filósofos, investigadores,poe tas , dou to res da Ig re ja , mora l i s tas , ju r i s tas , po l í t i cos , a lgarav iada in fe rna l , i n te rmináve l a lgazar ra a t ravés das e ras - es tão imóve is nos seus túmulos irrisórios. Passo ao longo dos corredores, ecoam pelo tectoos meus Passos claros no mosaico - silêncio. É a hora grave do fim, meut e m p o m o r t a l . P a s s o p o r o u t r a s s a l a s , o u t r o s c o r r e d o r e s , e n t r o n a16grande sala de leitura - ninguém. Houve a festa de despedida, da minhaa p o s e n t a ç ã o , a g o r a s a í r a m t o d o s , f i q u e i a i n d a . P e n e t r a r - m e d e s t e silêncio tumular, críticos, ensaístas, investigadores, ouvir ainda o seumurmúrio pela noite dos séculos, como loucos falatando, discutindo -q u e m v o s o u v e ? M a s p o r s o b t o d o e s t e l i n g u a j a r - q u e p a l a v r a essencial? A que saldasse uma angústia. A que respondesse à procurad e u m a v i d a i n t e i r a . A q u e f i c a d e p o i s , a q u e e s t á a n t e s d e t o d a s quantas se d isseram. A que mesmo d izendo não d iz como um penso para o que não tem cura. Há o ódio e o sonho e a inquietação de nada. Oenigma, o absurdo. O não sei quê que perdura como a fome que voltasempre . O mis té r io que renasce do que o reso lveu . E a be leza . A quedepo is de todas as co isas be las . E las enve lhecem, o aceno da be lezan o u t r o l a d o . M e s m o D e u s r e t i r a - s e p a r a a l é m d e D e u s . A p r o c u r a intérmina ofegante. Silêncio.Xana od iava os l i v ros , od iava le r , fechada no f renes im dos d iscos , bandeada com uns estupores de uns vadios, lá se foi para o seu preto,era o dia dos seus anos, da sua maioridade. O salão estende-se em filasde car te i ras , ao a l to ga le r ias compac tas de l i v ros , a t rás uma d iv i só r ia com os empregados, uma muralha de ficheiros. Acumulação do saberdas e ras , a tu rde-me o c lamor das d iscussões in te rmináve is , a mor teun iversa l coa lhou em cadáveres amontoados nas es tan tes . Mor te de mim, do meu tempo, Deus entreabre um olhar no silêncio do campo der u í n a s . D e p o i s a b r o a v i d r a ç a , a

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m o n t a n h a a o l o n g e e m t o d a a s u a imensidão. Pesa em toda a sua massa sobre a terra, ondeia numa linhafina até ao esvaimento dos meus olhos. Céu de cinza, requeimado, o are s t r í d u l o d e l u z . U m a a v e p a s s a , c a l a d a c o m o u m p u n h o . L a v r a o protesto da praga do calor, esconde-se nas ramadas. Os choupos. Estãoimóve is no b rase i ro da ta rde . Rodop iam a té ao a l to , ex tá t i cos agora ,17paralisados de terror. Só de longe., de vez em quando, como um sinalde memória, uma voz canta do lado de lá da vida.E n t ã o o s f u n c i o n á r i o s j u n t a m - s e n o g a b i n e t e . F a l a o P i n t o . T e m papéis na mão e pigarreia. Tem muita barba. Eu estou em pé, atrás dasecretária. Estou direito. Tenho as mãos dobradas sobre o tampo comoum tribuno a tirar o retrato. Por dentro dobro eu todo.18IVE f o i q u a n d o , n a v a s t i d ã o a s t r a l . M e u D e u s , e u d e v i a s e r g r a v e . Regressado ao silêncio fundamental - e falas tanto. Revertido ao osso daminha amargura . Que é que s ign i f i ca fa la res? e d isc re teares como se para um público a ouvir. - Estás só, não há ninguém a ser público à tuavolta. Nem tu. Mas de súbito, que sarrabulhada. De norte a sul, este aoeste. Era um cacarejo estridente, ouço-o na minha aflição. Dos quatroc a n t o s d o m u n d o , e s t o u p a r a d o à v a r a n d a , a m o n t a n h a a g u e n t a n o d o r s o t o n e l a d a s d e c a l o r . F i l ó s o f o s , p o l í t i c o s , p a s s o g r a v e e n t r e a s muralhas da Biblioteca, um dia Xana veio-me ali visitar. Era à tarde, nãohavia já ninguém, entre montanhas de papel. E a espantosa proliferaçãodos teor i zadores , dos sáb ios que t i ve ram razão para a e te rn idade e já não tinham, dos poetas que dedilharam na lira a sua melancolia para acomoção da intimidade das virgens e que nos fazem rir. E dos doutoresa o s c o n c í l i o s , d o s a s c e t a s , d o s p r e g a d o r e s . D o s h i s t o r i a d o r e s , d o s s a l v a d o r e s d o m u n d o , d o s f o l i c u l á r i o s . M a s e m c a d a m o m e n t o d o passado, a reun ião em to rno de uma verdade como um bo lo , toma i ec o m e i . L e v a v a - s e p a r a c a s a a f a t i a d a c i ê n c i a , d a a r t e - e a g o r a ? D a e x p l i c a ç ã o d a s c a u s a s e d o s f i n s , d a o r d e n a ç ã o d o s c o s t u m e s , d a regulamentação do choro e do riso, desde a melancolia do entardecer aoranger do den te na t reva , desde a d is tensão aérea dos láb ios ao r i so bronco e pançudo - e agora? Estou parado à varanda, dos quatro pontosc a r d e a i s . U m a s a r r a b u l h a d a d e v o z e s , a t u r d e m - m e . P o r e n t r e a balbúrdia, uma ou outra voz mais alta. As que falam dos deuses todosem to r ren te de ecos pe lo espaço , por en t re um fe rvor de lada inhas . Edas divindades subalternas, mais chegadas à humanidade, para socorro19das desgraças proletárias, desde o antraz e o coice de mula à espinhelacaída - com a casquinada crítica dos descrentes evoluídos, ressoa peloe s p a ç o , e n t r e m e a d a à d e v o ç ã o c o m o u m g r a s n a r d e c o r v o s . A d o s p o l í t i c o s s a l v a d o r e s d a

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h u m a n i d a d e - n u m h i s t e r i s m o c o m r e c e i t a s pron tas a av ia r e a de fesa aos gu inchos da l i be rdade e da au to r idade , que são iguais mas muitíssimo diferentes, porque a defesa da liberdadeobr iga a de fendê- la dos que são con t ra a l i be rdade e ex ige po is umaa u t o r i d a d e d e f e r r o p a r a d e f e n d ê - l a , d a p r o p r i e d a d e e d o i d e a l comun i tá r io e Comun i ta r i smo em esca lões , da ges tão , au toges tão , e s e m i - a u t o g e s t ã o , d o d i r e i t o à i n f o r m a ç ã o e q u e t e m d e s e r p o r i s s o desinformação por virtude do direito à informação e que tem de ser porisso informação correcta e deixa assim de ser direito à informação quetodavia ainda é esse direito mas melhorado embora não seja já direito àinformação por que não ter esse direito, do direito à cultura que é só àb o a c u l t u r a p o r q u e a m á c u l t u r a é c o n t r a a b o a e j á n ã o é c u l t u r a e p r e c i s a d e s e r a f a s t a d a P a r a s a l v a g u a r d a d o p o v o q u e g o s t a d a m á cu l tu ra pe lo v íc io in t r ínseco de ser P6vo . que p rec isa por tan to de serde fend ido con t ra s i pa ra não ser e le mas por aque les que de fendem a boa e podem defendê-la por virtude de serem mandatados pelo povoque não gosta de boa mas da outra, do direito ao trabalho que não é od e v e r d e t r a b a l h a r , e x c e p t o q u a n d o o s q u e d e f e n d e m e s s e d i r e i t o , mandatados pe los que não têm esse d i re i to , conqu is tam o d i re i to de imporem esse d i re i to que é en tão um dever e os que não t inham esse d i r e i t o j á n ã o q u e r e m , p o r q u e o d i r e i t o e o d e v e r e s t ã o c h e i o s d e a n t a g o n i s m o s , e a d e f e s a d a d e m o c r a c i a p o p u l a r d a d e m o c r a c i a parlamentar e da democracia orgânica, da república da monarquia daoligarquia.- Estai calados, estupores!20e da centralização, da descentralização e da anarquia, do presiden-c ia l i smo do semipres idenc ia l i smo da reg iona l i zação e das au ta rqu ias locais, do primado do grupo, do primado do indivíduo, do primado daidentidade nacional, e a interpretação das leis filtradas trabalhosamentepelos ódios ambições ralhos partidários dos que foram comissionadosp e l a v o n t a d e c o l e c t i v a e s q u a d r i a d a p e l o s g r u p o s q u e o s s o n h o s e a m b i ç õ e s e ó d i o s e s q u a d r i a m e f o r a m a p u r a d o s d e p o i s d e d i a s e semanas e meses e saíram depois ainda com uma rede intervalada deorifícios por onde se escaparam ainda em ginástica de rins as ambiçõesteorias princípios salvadores do bem comum que ficaram de fora dosprincípios salvadores do bem comum em que se entreteceu a rede dasleis, enquanto de outros cantos do mundo outras leis contrárias tambémp a r a o b e m c o m u m e r g u i a m - s e e m g r i t a e d o u t r o s c a n t o s o u t r a s também para benefício do ser-se em colectividade, cruzadas vozes porc i m a t r é m u l a s d e a r d o r e h i s t e r i a , e m b a t i a m u m a s n a s o u t r a s esgu ichavam como ondas que se en t rec ruzam pu lver i zavam-se num ruído anónimo de arraial popular.- Estai calados, desgraçados!e foi quando os filósofos. Eram tecnicistas especializados precisos,con fusos enrod i lhados sub t i l í ss imos , fa lavam de Deus que não hav iam a s h a v i a e m b o r a n ã o h o u v e s s e , e d a

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l i b e r d a d e i n t e i r a d o h o m e m determinada pe las c i rcuns tânc ias h is tó r i cas e pe las g lându las e pe la v o n t a d e d o s o u t r o s h o m e n s q u e e r a m l i v r e s e f o r m a v a m e s s a s circunstâncias em virtude de outras circunstâncias em que havia outroshomens l i v res e de te rminados por ou t ras , e fa lavam do esp í r i to e dam a t é r i a q u e e r a o e s p í r i t o d e u m a m a n e i r a q u e o n ã o e r a , e d a c o n s c i ê n c i a d o h o m e m q u e e r a i n c o n s c i e n t e e e r a c o n s c i e n t e p e l a consc iênc ia desse inconsc ien te , e da quan t i f i cação do inquan t i f i cáve l21q u e s e q u a n t i f i c a v a p o r e s s a q u a n t i f i c a ç ã o m a s n ã o p o d i a , e d a explicação do inexplicável que ficava explicável pela palavra que era on o m e d o i n e x p l i c á v e l p a r a s e r e x p l i c a ç ã o , e d e o u t r a s p a l a v r a s q u e formavam crosta por cima para tapar do que era intapável e ficava porbaixo mas não se via e era como se não ficasse,- Ide todos à merda!e foi quando os moralistas. Falavam do comportamento humano naf a m í l i a n a p o l í t i c a n a s r e l a ç õ e s e n t r e o s h o m e n s , d o s p e c a d o s circunstanciais para todas as situações e das virtudes, dos benefícios dafornicação livre e à tripa forra e do horror dessa fornicação na perversãodos usos e cos tumes das sagradas normas para a regu lamentação da espécie e da dignidade fora da ligeireza e inconsequência dos cães, dar e g r a c o n t r a o d e s t e m p e r o n a f ú r i a u n i t i v a d o s s e x o s d e s d e a l e i i n c o m p r e e n s í v e l e p r é - h i s t ó r i c a d o i n c e s t o a o n a m o r o d e l i c a d o e r e t r a c t i v o d a j a n e l a , e d a e s t u p i d e z d o s i n t e r d i t o s f a b r i c a d o s p o r c6nvenção humana para codilho dos homens, da dignidade da famíliacom a autoridade graduada por escalões e da hierarquia reaccionáriaespatifada ou da graduação dos escalões mas ao contrário, da sagradau n i ã o f a m i l i a r e d o d i r e i t o , t e m p o r ã o à f u g i t i v i d a d e c o m o a f a m í l i a piscícola, da criação dos filhos no choco materno e da criação colectivanas chocade i ras e léc t r i cas do Es tado , da f ide l idade mat r imon ia l e daconcepção da f ide l idade como uma opressão reacc ionár ia f i na lmenteultrapassada com o direito intervalar de mudar de cama ou o direito dea ir mudando em certos prazos consoante as necessidades comprovadaspelas estatísticas, da anulação simples do acasalamento com o direito àf o r n i c a ç ã o a v u l s a e a l e a t ó r i a , d a m a n u t e n ç ã o d a r e d e d a s l i g a ç õ e s f a m i l i a r e s - d o d i r e i t o a b a r a l h á - l a c o m o o s c a n í d e o s , d o d i r e i t o à f a b r i c a ç ã o d e f i l h o s c o m d e f e i t o s d e f a b r i c o e d a n e c e s s i d a d e d e22apuramento da raçacom cobridores profissionais, do direito à vida e àmorte, ao respeito e ao insulto, à suavidade compreensiva e à chicotada,à paz e à guerra, ao coração e ao fígado.- Para a puta que vos pariu!e fo i quando ou t ra vez os p regadores da re l ig ião . Mas eu já ma l os o u ç o . N o s i n t e r v a l o s d a m i n h a a t e n ç ã o a v u l s a , D e u s e o d e s t i n o

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d o h o m e m - q u e d e s t i n o é o t e u ? a q u i , s ó , f i l t r a d o a t r a v é s d e t o d a s a s i lusões , e a necess idade de jus t i f i ca r uma v ida quem senão Deus? e ac i tação dos t ra tad is tas desde o moto r imóve l e meta f í s i co do g rego , e o u t r a v e z a c a s q u i n a d a a l e g r e d o s a n t i m e t a f í s i c o s , e o m u r m ú r i o longínquo das beatas velhas a rezar o padre-nosso, e os métodos novose tecnocráticos, ou de pressão psicológica para se chegar à divindade,enquanto em f ren te , es tou parado à varanda , pesada massa imensa amontanha desnudada à a r idez , e os que p regam um Deus in t ra táve l cheio de fígados coléricos, e os que pregam um Deus porreiro cheio decomun icação p ro le tá r ia que va i connosco aos comíc ios aos ca fés e às putas, e os que dizem, outra vez que a matéria e que, os que esprememtodas as re l ig iões para te rem um Deus s in té t i co e os que aprove i tam e s s a s e s c o r r a l h a s p a r a f a b r i c a r e m d e u s e s a v u l s o s c o r r i q u e i r o s e en t remeados a todo o ser de c i rcuns tânc ia , os que fabr i cam re l ig iões novas com abaixo-assinados, e os pregadores dos malefícios da religiãoatravés dos tempos e do seu ódio vesgo ao progresso, e os pregadoresdos benefícios da religião e do seu amor ao progresso com o exemplod o s g r a n d e s s á b i o s q u e v e r g a v a m a c e r v i z e d i z i a m « e u c r e i o » , enquanto os outros com outros sábios que não diziam nem vergavam,estou imóvel à varanda, na tarde paralisada de calor - e foi quando osartistas.23- E s p e r a . F a l t a v a m a g o r a a i n d a e s t e s , o s a r t i s t a s . Q u e é q u e v ó s quereis, meus bardamerdas?Queriam coisas, queriam também dizer coisas. E imediatamente’ ummurmúrio larvar, ia crescendo, com esguichos histéricos aqui e além,depois foi a gritaria. Mas eu não quero ouvir. Fecho mesmo a varanda,não quero. Mas eles desvairam aos gritos, deve haver grossa pancadariapara as bandas da cultura. Devem ter vindo os mortos a ajudar. Dizemnomes bárbaros , é a barbar idade da nossa cond ição . Supremat ismo, p o i s , p o i s . E o r f i s m o p u r i s m o s i m u l t a n e í s m o o h , o h . E r a y o n i s m o neoplasticismo. E uma voz escura já cavernosa, cubismo, fliuvismo, eh,e h . E u m a s v o z e s n o v a s r a q u í t i c a s e m f a l s e t e , a p r e g a ç ã o d o v a z i o p r o g r a - m á t i c o o n u l i s m o . E o s i t i s m o q u e e r a a p r e g a ç ã o c o n t r a a existência do quadro e a defesa apenas e intrapsigente do sítio dele naparede - e os poe tas . A de fesa do regresso às fo rmas poé t i cas de base q u e u m j o c o s o c r i s m o u d e p a r o l i c e e q u e f i c o u o p a r o l i s m o . E o baralhismo que baralhava multas palavras e as atirava ao ar e caíam emforma de poema - e o saquismo. Que era metê-las num saco para as tirarao acaso da inspiração, e o mudismo. Que era a poesia muda em livrosem branco. E o canalhismo que era uma poesia ordinária para as classesmais des favorec idas . E o cara lh ismo, cu jo che fe de f i l a e ra o cé lebreautor de «Caralhícolas», e que era uma poesia ainda mais ordinária.- Ide berrar para as profundas do inferno!e o panicismo que considerava o pânico como medida fundamentaldo sentimento - e foi quando os músicos- Não quero! Não quero!tapei os ouvidos - meu Deus. Estou assim algum tempo, destapo oso u v i d o s , h a v i a a i n d a

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a t r a s a d o s o s r o m a n c i s t a s . E o s a r q u i t e c t o s , urbanistas. Os pedagogos, os cientistas. E os críticos.24Na tarde abrasada desértica.E os técnicos publicitários. E os técnicos dos cemitérios.Na tarde imóvel à praga do calor. Uma voz canta ao longe - canta?Não a ouço. Na tarde da minha condenação.E os economistas.25VE e n t ã o , d e f i n i t i v a m e n t e , o s i l ê n c i o . A b r o d e n o v o a v a r a n d a , demoro-me ainda um pouco, tomar posse do meu destino. Tenho de ira v i s a r a D e o l i n d a , o f i l h o n ã o l h e t e r á d i t o n a d a ? o u o n e t o . T o m a r p o s s e d a m i n h a c o n d e n a ç ã o . M a s n a r u a e m f r e n t e , d a s « c a s a s queimadas», casas rentes ao chão, eram antigos palheiros, nem o vultobreve de a lguém, só o s i lênc io do caminho . Ao longe , desdobrada a todo o hor i zon te , densa , a montanha . Arde ao so l na sua combus tão m i n e r a l . A m a l d i ç o a d a d e c a l o r , q u i e t a a a l d e i a s o b a p a t a d e f o g o , imóvel no seu recovo, fico a olhá-la um instante, tomar posse do meud e s t i n o f i n a l . E n t ã o , p a r a a d i r e i t a , l o c a l i z o - a e n t r e o s t e l h a d o s imbricados, era ao pé do pelourinho, a empena alta, a F2chw4a, toda emlousas como escamas, nós morávamos aí. Minha mãe vem à janela, euestou em baixo no pátio. Vejo-me lá daqui donde me vejo. Acocoradono chão do pá t io , devo es ta r a b r incar com um car r inho de la ta , e ram latas de sardinha,homo faber eu é que os fabricava. Minha mãe, vejo-a,mas não a ouço. É uma cena muda â distância da minha comoção. Estáà jane la , já lá dev ia es ta r há mu i to tempo. Desde manhã cedo , ta lvez desde véspera, desde sempre. Evoco a sua imagem – desde cedo, de queestavas à espera? desde sempre. Passa em baixo o carteiro, é o AugustoCorreio. Traz ao ombro um saco de couro, cheio de amor de família e deerros de ortografia. Gente de longe,, dos confins do imaginário, traz ap a l a v r a r e a l d o f o l h e t i m d o a m o r . À s v e z e s s o b e o s d e g r a u s , b a t e à porta- Correio!26e as pessoas alvoroçam-se de prazer, trazem-lhe um copo de vinho.Ao fim da ronda, já está bêbedo, o nariz em batata, vermelho de calorhumano. Do sítio onde estou, veio mal a minha mãe. A aresta da casade alto a baixo, minha mãe quase de perfil, veio mal. É uma cena muda,a o f u n d o d a m e m ó r i a , a n é v o a d a d i s t â n c i a , h á s e s s e n t a a n o s . A o p e i t o r i l d a j a n e l a , e s t e n d e o s b r a ç o s e m s ú p l i c a . V e i o - l h e o s b r a ç o s saídos da janela, estende-os abertos, os dedos estalados num apelo demisericórdia. Não a ouço. A boca aberta num grito, não a ouço, esfuma-se-me a imagem no horizonte da imaginação. Do fundo da rua vem ocar te i ro . Osc i la na sua marcha , o lha o chão , o saco pesado ao ombro . Veste farda cinzenta metalizada em botões, boné de pala. Transfiguradoe m l e g e n d a , t o d a a c e n a f a n t á s t i c a d e s i l ê n c i o . V e j o t u d o n u m a irrealidade sideral, num vago halo de névoa.

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Os braços de minha mãemais sa ídos da jane la , todo o bus to suspenso , deve a r remessá- lo no grito até à distância da montanha. Não abranda a sua marcha, sempree m f r e n t e , o A u g u s t o C o r r e i o d e v e j á l e v a r o t o m a t e d o n a r i z t o d o vermelho de confraternização humana. Mas quando passa por baixo da jane la , uma osc i lação ma io r nos b raços es tend idos , m inha mãe deveerguer ma is a l to o seu c lamor , o ca r te i ro , sempre em f ren te , e rgue aoa l t o u m d e d o a d i z e r q u e n ã o . E s t o u p a r a d o à p o r t a d o p á t i o , g e n t e passa para um lado e para o outro sem olhar. Num espaço de névoa, asformas oscilantes ao ondeado da neblina, e o silêncio, o silêncio. Minhamãe ges t i cu la a inda , tem o ges to f i xo na imob i l i dade da memór ia , a boca aberta num grito mudo, uma vaga de névoa esparsa no ar, apaga-se no horizonte. Silêncio. Na tarde opaca de calor.M a s t e n h o d e i r a b r i r a c a s a t o d a , o q u a r t o d e X a n a é a t r á s . M a i s emperradas as portadas da janela, não vai. Com a chave da porta meto-a no fecho, faço força, o fecho salta. O fecho de cima não está corrido e27devagar . A por tada range , os v id ros che ios de pó . E o che i ro a co isassepultas, apodrecendo na memória. As portadas rangem e eu hesito uminstante. Do fundo do tempo, do sepulcro das eras, como se despertasno seu sono tumu la r , l embranças de nada , da con fusão de um tempoant igo , espec t ros do meu desassossego, a p resença obscura de umaausênc ia an t iqu íss ima. Mas quando abro a jane la . Vem do fundo das leiras, talvez de baixo, da ribeira, abre-se à amplidão do espaço - canta,quem és? «ó minha amora madura, quem foi que te amadurou?» - sei acanção , can ta ! Pe lo in f in i to dos mi lén ios , a tua voz pura . «Fo i o so l e mais a lua» - na tarde imensa da minha solidão. Oh, não sofras. Arrasta-s e o c a n t o c o m o a t r a v é s d e u m t e m p l o . A n ú n c i o d a a l e g r i a q u e n ã o morre, vem do lado de lá da vida, que trabalho agora no campo? Canta.A apanha do milho, talvez, a tira das batatas. É um canto com um ritmode igreja, Deus mora ainda na sua infinitude, «foi o sol e mais a, lua e oca lo r que e la apanhou» - com um r i tmo de e te rn idade . E enquanto a música ondeia pelo ar, eu regresso da vila com as minhas tias.E r a I n v e r n o , a o e s c u r e c e r . A c a r r o ç a t i n h a u m t e j a d i l h o , n ó s vínhamos em silêncio nos banquinhos laterais. E eu chorava.- Porque choras , meu f i l ho? - t i a Lu ísa pergun tava , passava-me a mão na face, eu chorava.E disse porquê, já não me lembro.- J á n ã o t e l e m b r a s ? - o l h o a o l a d o , e s t o u a l i s e n t a d o n a c a m a d e X a n a , m e s m o p o r b a i x o d e u m g r a n d e r e c o r t e d e r e v i s t a c o m u m tocador de saxofone.- Lembro-me porque chorava, não me lembro do que disse.E s t o u s e n t a d o n a c a m a d e X a n a , e s t o u v e s t i d o d e I n v e r n o . F a t o g r o s s o , d e c a l ç õ e s c o m p r i d o s , m a s a s m e i a s s o b e m - m e a c i m a d o s joe lhos , seguras com um nas t ro . Tenho as mãos dadas no co lo , es tou28

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triste. O ninho de carriça na testa, o casaco com botões até ao pescoço,estás triste - que é que havias de dizer?- Que é que havia? Fomos levar a mãe àquela casa.- Ao asilo. Ou albergue.- Porque é que havia de chorar?M e n i n o t r i s t e . V e j o - t e d e l a d o , a l u z d a j a n e l a e m b a t e - t e n a f a c e , olhas-me com o teu olhar humilhado pela vida. Mas não penses que mevou comover. Esgotei tudo, não vou. Tinha agora que ver comover-meo u t r a v e z v a i - t e e m b o r a . T u e e s s e t e u a r e n c o l h i d o d e t o d a s a s o r f a n d a d e s d o m u n d o . D o a l t o d a m i n h a c o m p l e t u d e , e s t o u c a l m o . Vivi, sofri, vivi. Foi bom. Integrado de frigidez - de frigidez? vejo a mãesempre no banqu inho da car roça , ves te de v iúva como se o fosse . Devez em quando cor r ia -me o cabe lo com a mão suave , não me o lhava . íamos sempre com medo que f i zesse loucuras , não fez . Nem sequer insultou a lembrança de meu pai, dizia coisas horríveis. À janela da casapara a rua . Ou v inha para a Praça em t ra jes ín t imos . Fo i quando a t iaLuísa- Não pode ser!era ríspida rígida como um punho.- Não pode ser! Isto é uma vergonha para toda a família. Que vai serdesta criança?que era eu - e eu olhava até à distância a que estou, para entender. Eentão falou-se ao padre Rodrigo, ele estivera lá na aldeia. Depois viera opadre Parente, arranjara uma tuna, eu tocava violino. O padre Rodrigof o i p a r a a v i l a , a r r a n j a r a u m a l b e r g u e o u a s i l o p a r a l o u c o s v e l h o s e crianças. Vai sentada num banquinho lateral muito direita, minha mãe.E e m V e r ã o . E s p e r a - e r a V e r ã o ? T e n h o c a l o r n a m e m ó r i a , h á p e l o menos muito sol lá fora pelos campos para o meu olhar sem entender.29Não dizia uma palavra, toda entregue altiva ao destino. Mas ninguémdizia nada. Só às vezes tia Joana- Como é que te sentes, Carma? - tia Joana perguntava.Mas a tia Luísa foi toda a vida assim. Enviesada sub-reptícia. O denterilhado, cerzida, de cólera. Metia-lhe devagar por baixo do xaile os doisdedos em alicate e devagar, azeda de prazer, um beliscão torcionário,tia Joana torcia-se toda de dor surda, não soltava um queixume. Depoisarregaçava as mangas da blusa, mostrava a marca do suplício, os olhosarrasados de desgraça, a pedir compaixão. Depois continuávamos todosem silêncio, cada qual sentado direito no seu lugar, saltitando com osestremeções da carroça. Mas minha mãe nem olhava, a face de pau, osolhos fitos longe, na razão de irmos ali. Revejo-a na memória, revejo-nosa todos , somos qua t ro , as faces pá l idas h i r tas con t ra o fundo escuro , v a m o s t o d o s e m s i l e n c i o , v i a j a m o s n a e t e r n i d a d e . À f r e n t e v a i o cocheiro, não o vemos. Só no silêncio, ritmados, como se um bater derelógio, as patas do cavalo contra as pedras da estrada. Havia calor. Deum lado e do outro, corridas as cortinas de oleado, só atrás, abertas parao rasto de poeira que íamos largando. Então torci-me no lugar, a cortinaaberta do meu lado e os campos espraiados, ia olhando. Casas, árvores,s í t i o s e s t r a n h o s , n o p r a z e r m i s t e r i o s o d e p a s s a r m o s . O u o l h a v a e m f r e n t e , a e s t r a d a v i n h a v i n d o p a r a n ó s , o u o b l í q u o a o m e u o l h a r , o c a v a l o , s ó v i s í v e l n o j o g o d e o s s o s d a a n c a , n a g a r u p a . E à f r e n t e , e s p e t a d a s a s o r e l h a s . M a s t o d o o c o r p o v i s í v e l e s t r e m e c i a c o m o andamento. Até que a certa altura- Tia

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Luísa! O Pregador!que e ra um louco manso . Era um t ipo a inda mu i to jovem, agora à distância calculo-lhe melhor a idade. Mas tia Luísa despachou-me umaordem seca para me calar. Vem pela beira da estrada, de cabeça baixa, o30P r e g a d o r , g e s t i c u l a n d o à d i r e i t a e à e s q u e r d a s ó p a r a s i . D e v e i r a resmonear o seu d iscurso in in te l ig íve l , e ra o Pregador se r ia por i sso que? Chamavam-lhe assim. Atravessava a aldeia de uma ponta a outra,às vezes não resmoneava. Mas fazia sempre os gestos, a gente atirava-lhe coisas. Um bocado de pão, umas batatas, às vezes uma moeda. Àsvezes queriam-lhas dar por mão própria, não aceitava. Atiravam-lhas àfrente, ele apanhava, ia seguindo. Passa por nós, vejo-o agora de costas,os gestos a um lado e outro, a cabeça baixa, desaparece atrás na nuvemde pó . A té que as pa tas do cava lo , um som oco e redondo, embate de um lado e doutro contra as paredes das casas, era uma rua extensa, nósc h e g á m o s e n f i m à v i l a . T i a L u í s a m e t e u a c a b e ç a f o r a d a c a r r o ç a , a chamar a atenção do cocheiro, ele disse qualquer coisa áspera, tia Luísacalou-se, meteu de novo a cabeça dentro. Finalmente a carroça estacou,as patas do cavalo multiplicadas num som claro, era um Pátio de pedra.- Cá estamos - disse tia Joanamas tia Luísa foi a primeira a apear-se, minha mãe não dizia nada.Sa iu no f im pe la por t inho la de t rás , devagar , b ruscamente não qu isa juda . Padre Rodr igo dev ia -nos te r v i s to chegar , fa lou-nos do a l to deuma janela de guilhotina, estava debruçado para fora. Parados no pátio,em semicírculo, virados para a porta, padre Rodrigo desceu. Vejo-o nap o r t a , a b a t i n a p r e t a a t é a o s p é s , m a r c a d a d e c i m a a b a i x o d e b o t õ e z i n h o s m i ú d o s . T i n h a a c a b e ç a i n c l i n a d a s o b r e o o m b r o , p a r a baixar um pouco até à nossa humildade. E um sorriso. Estamos todosparados, minhas tias e eu beijamos-lhe a mão em silêncio. Então minhamãe voltou-me devagar para si, impôs-me as mãos sobre a cabeça. Euo lhe i de ba ixo a en tender , e la t i nha os o lhos longe , as mãos imóve issobre mim. Estivemos assim algum tempo, ninguém dizia nada, o pátiodeserto. Eu sentia as suas mãos quentes imóveis, sobre a minha cabeça,31a minha cara agora quase sufocada no seu colo. Depois tirou as mãos,virou costas e foi-se. Vejo-a por trás atravessar a porta de entrada semse voltar, os quatro a olhá-la, desapareceu pela porta. Depois tia Luísalevou-lhe a malinha da roupa. Estava uma tarde quente. Os cascos docavalo batiam as pedras do pátio.32VIE então olho pela janela - que fazer? Recuperar todo o espaço do meureino. Rei expulso, degredado, eu. Mas não é um exílio, és daqui, a terraúltima da tua condição. Dou a volta à casa toda, dou a volta à vida todae é corno se um desejo de a totalizar, a ter na mão. Ter a imagem visívelde tudo quanto a construiu, rever-me nela para a levar comigo. Morrertodo no que fui - para quê restos atrás de mim? ser perfeito na minhatotalização. Estou no quarto de Xana e a janela aberta, há o discurso doP i n t o d a B i b l i o t e c a , d e i x e i - o n o u s o d a p a l a v r a . I a c o m e ç a r a

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d i z e r « E x c e l e n t í s s i m o S e n h o r D i r e c t o r » - o u j á o t i n h a d i t o ? M a s h á t a n t a c o i s a a n t e s e d e p o i s . O m a i s d i f í c i l é n ã o t e r p e n a , a s s u m i r - m a s o homem é ass im. Sobre tudo ha ve lh ice . Fechado em s i , no seu pavor ressentido, é feito de partes moles como a criança. Tomar-se ao colo noreceio de que lhe façam mal. O mais difícil. Sê todo em ti. No atropeloda vida que te atira para a valeta. Na renovação natural que te esquece -é o quarto da minha filha. Na limpeza higiénica do que cheira mal. Pela jane la aber ta , meus o lhos esva ídos de lon ju ra . E en t remeada a í , uma indistinta e súbita pancada de comoção. Implícita oblíqua. É a saudadedo que ve jo de rea l idade e me fa la desde a i r rea l idade que lá es tá . O te r reno desce a l i num grande va le , e rgue-se depo is devagar a té a umespaço de neb l ina . Manchas roxas no azu lado da d is tânc ia , re ta lhosnegros de matas, trémulo casario branco – meus olhos fatigados. Brevea no i te v i rá e a v ida se fo i . No s i lênc io de t i e do mi lagre absurdo emque ex is t i s te . Pe la jane la aber ta , meu es ta r suspenso de mim, v ivo dea tenção para o nada do meu evocar . É a p resença in tensa de ma is do que estou vendo e é só isso que estou vendo na sua entregue nulidade.33Interposta comoção entre aquilo que vejo e o passado imóvel inscrito nae t e r n i d a d e . O h , n ã o p e n s e s . O l h a a p e n a s . N a i n d i f e r e n ç a f r i a d e somente es ta res o lhando . Percor ro a inda o quar to a o lhos b reves . A cama armada a um canto, a cómoda com um espelho pequeno giratório,um canto, de estanho manchado, recortes de revistas nas paredes. Háu m a à c a b e c e i r a , é u m a r a p a r i g a n e g r a a t o c a r c l a r i n e t e . A t i r a u m a perna à frente, esticando o vestido de seda amarela, a bochecha sopradano esforço, Um colar de pedaços de madeira suspensos de um prego. Eu m a s i g l a e s o t é r i c a c o m o d e s e i t a c l a n d e s t i n a q u e j á n ã o s e i , u m a espéc ie de t r ipé met ido num c í rcu lo . A lguém passou nesse ins tan te num rumor de sombra ao rectângulo da porta. Deve ser a tia Joana.- Tia Joana!mas não me responde. Deve te r ido ao só tão que dá para a asa de banho. Deve ter ido á casa de banho, mas há uma outra lá em baixo semescadas a subir. Espreito à porta, ela volta a passar , mas não me olha,s i lênc io . A casa dorme na ta rde de ca lo r . Fo i quando de novo , lá em baixo, ao longe. É um canto lento como o movimento interno da terra.Venho à janela, ouço-o, na distância aérea de mim. E assim estou semsaber que fazer – que tens ainda a fazer? Como a fruta que cai, a velhice,e vai apodrecendo até ser terra. Como um cansaço de tudo, e uma breveideia fortuita para mexer. Olho em volta e ao longe na fadiga da tardequente. E então de súbito, ao olhar em baixo no terreno junto à casa –espera . Mas sou eu , conheço-me pe lo cabe lo ra lo . Mas ma is b ranco . Pudeste então envelhecer ainda? Sou eu, um instrumento qualquer nasmãos, vergado para a terra, cheio de curiosidades, hortícolas. Sorrio depiedade – portanto, ainda mexes.- Paulo! – digo-lhe eu cá de cima.34e e l e e r g u e p a r a m i m a f a c e c a n s a d a . T e n h o p e n a d e m i m l á e m baixo, a face encarquilhada de pregas. E a barba

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por fazer, parece-me,es tás po is um re laxado . Mas também na a lde ia , quem va i repara r? e moras longe, não vais à «vila», que é propriamente a aldeia, tu moras jáfora de portas. Mesmo o teu vestuário, um pouco sujo.- Que andas aí a fazer?E le passa a mão pe la f ron te . Deves es ta r a suar em b ica , tu já não podes. E com este calor.- A arranjar aqui uns canteiros. A entreter.- Oh, tu estás nas lonas. Isso já não é ara ti.E como se só en tão o soubesse . End i re i tou o bus to , ouv i -lho cá emc ima ranger . E uma mão nos quadr is , ve jo - lhe a cara to rc ida de dor . Derreado portanto – tu devias era estar sentado. Aguardar o fim comdecência.- Mesmo flores aí, como é que queres? Virado a norte.- Talvez hortênsias. Vou pô-las a toda a roda da casa.F l o r e s à r o d a . L e m b r a u m t ú m u l o . M a s n ã o l h o d i g o – e s t a r á s a pensá-lo?- Que é que tu enfeitas com as flores? E estás sujo.Ele olhou-se de cima a baixo para se ver sujo pelos meus olhos, abriuos braços em resignação.- Que é que tu enfeitas?e ele pegou no queixo a meditar. Enfeitava a vida, a miséria do seufim. Enfeitava a alegria que devia existir, enfeitava a memória. Mas elenão o disse, eu o pensava por ele.- Estás sujo - disse eu ainda.A t e r r a q u e t e m p r e s s a d e t o m a r p o s s e d e t i . A i r m a n d a d e n u m e s t r u m e d e r a í z e s p a r a s e r e s a o n í v e l d a t u a c o n d i ç ã o . O l h o - t e c o m35pena, meu olhar nublado de melancolia. Pena pela tua ilusão de seresa i n d a . E t u j á n ã o é s . D e c o n s t r u í r e s u m f u t u r o c o m o q u e m t e m u m futuro para construir. De te imaginares um ser plausível dentro da tuacor rupção . De ju lgares ser , como se fosses . O lho- te cá de c ima com o olhar enxuto de uma vida que se cumpriu. Projectos, fantasias com quese preenche o vazio do que ainda se não preencheu, conquistas do quenunca se conqu is tou , a inda que se tenha conqu is tado , mesmo com a amargura do que doeu - foi bom que doesse por poder não ter doído eagora não podia, mesmo o desastre sem remédio e previsível que tinhaainda assim a surpresa de ser e agora não tinha, toda a aflição e o medoe a insónia que tinham visível o que não era isso para haver o que o nãof o s s e . A g o r a a v e r d a d e é u m m u r o s e m p l a u s i b i l i d a d e p a r a l á . O deserto normalizado. A noite exacta como o traçado da morte. Olho-tecá de cima - que andas aí a fazer?- A arranjar aqui uns canteiros. Para passar o tempomas n inguém me responde. A te r ra nua se lvá t i ca lá em ba ixo , ao longe manchas azu ladas de d is tânc ia . Ex tá t i ca a te r ra in te i ra no va le imenso , não é a inda a hora de uma aragem passar . Suspendo-me eu também e é como se de um tempo an tes do tempo. Há uma memór ia q u e s e a n u n c i a n o q u e r e c o r d o e e s t á p a r a l á d e l a e n ã o e s t á . N ã o a p r o c u r e s . U m a m e m ó r i a q u e e a f o r m a f l u i d a d o q u e s e l e m b r a , a i m a g e m e x a c t a d o q u e v e j o e o q u e a t r a n s c e n d e a o s e m - f i m . N ã o a penses . Grave , recupera- te na ins tan tânea rea l idade de t i , no l im i te perfeito da tua exactidão. Como o esquadriado de um túmulo. Olho à j a n e l a d o q u a r t o d e X a n a , é a j a n e l a d e u m d o s m e u s q u a r t o s - e m quantos quar tos ex is t i s te? Parado à jane la , um momento a inda , e que f a z e r ? É p r e c i s o q u e e u t e n h a r a z ã o d o t e m p o , p a r a

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e l e a n ã o t e r d e mim, p reenchê- lo a t ransbordar para eu ex is t i r a inda depo is . O ca lo r36p l a c a d o à t e r r a , o a r t r é m u l o d e l u z , o l h o - o , t o d o o e s p a ç o v i b r a , vertiginoso de memória. Mas a certa altura - espera - que sarrabulhada.São gritos e ralhos, deve ser a tia Luísa.- Quero só saber donde é que vens nesse estado!- Deve ser comigo - donde e que eu viria? Devo ter ido chafurdar àribeira ou atirar o papagaio, devo ter andado de púrria pela aldeia coma garotada.- Quero aqui saber por onde é que você andou.Afinal é a tia Joana, reconheço-lhe a voz entroncada de força, mas atia Luísa não deve estar presente. Terá ido à aldeia ou à loja, não deve.Porque quando está presente, toda a força passa para o lado dela. Tia Joana é ass im, há uma h ie ra rqu ia es tabe lec ida na e te rn idade ou nas várias circunstâncias de decisão. E quando a força maior está presente, amenor não está - que é que eu teria feito? Gostava de te dar coragem - seeu fosse ver? de te ensinar a dizer que- D iz - lhe ! Que a l i be rdade , como a a legr ia , no momento exac to da infância, que é quando o mundo começa a existir e o dever não foi aindainventado. Que a água da ribeira como a iniciação à vida e a divindadeoriginal., Que o papagaio - no ar - diz-lhe. E a aventura com os garotosda rua. O infinito da ascensão e a libertação da grossa materialidade. E acriação do mundo pela sua descoberta. Porque a vida de um homem étão escrava . E a apropr iação da verdade an tes de no- la su r r ip ia rem - diz-lhe.Mas eu não dizia nada, quem dizia era a tia Joana. Era assim:- S e u v a l d e v i n o s , s e u c o i s a r e l e s , a n d a r a g o r a m e t i d o c o m a canalhada da rua. Ir lá para a ribeira, que até se podia afogar. Andar acorrer atrás do papagaio. Chega-me cá uma veneta, que eu parto-lhe o37papaga io e tudo . Ve ja só o es tado em que vem, todo che io de te r ra , aescorrer em suormas não quero ouvir mais. Devias-lhe ter respondido que, não sei serespondeste. Está uma tarde quente. Apetecia-me ir à ribeira. Não vás.O lho pe la jane la - que fazer? Recuperar todo o espaço do meu re ino . Não vás.38VIIS a n d r a . S e s o u b e s s e s c o m o t e n h o p r e s s a d e f a l a r d e t i . D e e s t a r contigo longamente. De te recuperar desde o teu nome. Não é bonito oteu nome. Exp l i cas te -me como to deram, já não se i se se i . E todav ia .Lembra-me uma f ru ta exó t i ca , ta l vez o r ien ta l . Uma f ru ta . Co isa de sesaborear na boca e te r a í uma cor . Cas tanho-c la ro , ta l vez . E um sabor t e n r o , d e d o ç u r a e s m a e c i d a . M a s t u e r a s u m a f i g u r a b r e v e , t o d a facetada no teu modo racional de ser. Os teus dentes. Pequena serrilha,n ã o e r a m b o n i t o s . C e r z i d o s . U m o u o u t r o j á e s c u r o , t o c a d o d e destruição - tão poucas vezes tos vi. Mas estou a falar de ti e ainda não ét e m p o - e m q u e t e m p o é ? E s t á s e n t r e t e c i d a a t o d o o m e u s e r , p o d i a lembrar-te agora. Podia figurar-te já em Penalva, que é para onde meapetece agora ir. Podia-te imaginar lá, neste modo de igualar o real e o imag inár io , que tudo

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é rea l . Porque mesmo encon t rada na c idade da S o e i r a , a c i d a d e u n i v e r s i t á r i a . U m m e s t r e e x p l i c o u - m e - o u e u o i m a g i n e i ? q u e S o e i r a v i n h a d e S o l á r i a , a C i d a d e d o S o l . F i c a n u m a colina, o sol bate-a de todo o lado. Mesmo só encontrada aí, atravessas-me a vida para 9 passado e o futuro. Deixa-me dizer-te que te amei. Oh,tu irritavas-te tanto, não f6i fácil saber-to dizer. Discreta polida asséptica- deixa-me dizer. Estou cheio de necessidade de falar de ti. Mas tenhode ir a Penalva, é lá que quero começar. Não sei porquê. Há muita coisaa n t e s q u e q u e r o l e m b r a r , e n q u a n t o l á d e b a i x o , n a t a r d e s u f o c a n t e , ouço-o . Ouço-o sempre , can to da a legr ia da v ida , que é t r i s te por se r longe. É uma voz sem dono, não vejo quem canta, não sei donde vem.Aparece no ar, ecoa na distância, tem a força selvagem da germinaçãoda terra. Tenho de ir a Penalva, enquanto me sento na cama de Xana e39acendo um cigarro. Tenho de ir chamar Deolinda para combinar tudo.T e n h o d e i r - q u e t e n s q u e i r ? T e n s s ó q u e e s t a r . C o m o s e h o u v e s s e m u n d o a l é m , h á s ó a q u i . T a n t o t r a t a d o e s c r i t o s o b r e a i n f â n c i a , a juven tude , a idade adu l ta , que é a idade do homem. Em todas e las se f a l a d e i r - a v e l h i c e é e s t a r . Q u e r i a t e r i d e i a s p r e c i s a s s o b r e i s s o . P r e c i s a s l i m p a s a g r a d á v e i s - a v e l h i c e t e m t a n t a s u j i d a d e . T o d a s a s idades fazem parte da vida, a velhice é um sobejo. E só o que sobra lhepertence. O que sobra da mesa, das leis, da paciência. Do espaço que seocupa - mas tenho de ir a Penalva. Dos fatos que se usaram, das ideiasque nos remexeram, do ca lo r com que se fazem ser as pessoas co isas a n i m a i s - m a s t e n h o d e i r . P a s s a o c a r r o d a H i s t ó r i a , a t i r a - l h e c o m poeira para cima. Passam os proprietários do poder, os fabricantes dacivilização, os criadores da ciência, artes e letras, os agentes do comércioe do progresso económico, ela encosta-se à valeta, fica coberta de lixoorgânico - mas vão sendo horas. Na realidade - e como é que me disse atia Luísa? eu ia fazer o exame da quarta classe. Era uma noite quase deVerão , nós sen távamo-nos ao ba lcão a ver a lua nascer . Der reado de sono, então ela atacou, apanhando-me sem defesa - olha, meu filho.- Olha uma coisa, Paulinho.- E o que é?- Tu vais fazer exame e nós queríamos pôr-te a estudar.- Está bem.- E onde é que temos nós dinheiro para tu estudares.- Vais para padre - tia Joana acudiu, cheia de equilibrar a economiaLuísa não gostou. Deve-lhe ter aplicado a dentada de um beliscão,deve- lhe te r to rc ido a carne f i l ada , t i a Joana d isse u i . E ca lou-se . T iaL u í s a v o l t o u a o p r i n c í p i o - o l h a , m e u f i l h o . D i s s e c o i s a s c é u e d o inferno, para eu me sentir balanceado de40Disse co isas de côngruas e que i jo ve lho para Inverno , para eu mesentir cheio de apetites carnais. E então eu disse:- Não quero.- T ia Joana ia a t i ra r -se , t i a Lu ísa deve tê - la t ravado , t i a Joana d isseainda:- Vais para padre!m a s d e p o i s d i s s e u i e n ã o d i s s e m a i s n a d a . H á u m a l u a i r r e a I n a minha comoção, estou aí tão bem. Enquanto à volta, o silêncio da casa, oespaço aber to para lá da jane la , a té ao l im i te do meu vaz io . En tão t ia Luísa teve uma ideia e havia

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uma música de grilos no ar:- Amanhã vais rezar a S. Filipe Nery e depois logo vês. E seja o queDeus quiser.No chão, a um canto do quarto, está um livro de missa, conheço-o,deve te r andado lá por casa vár ias gerações , cober to das suas rezas epen i tênc ias . Apanho-o , já não tem capas , as fo lhas ao a l to douradas . São folhas grossas, como o tempo, quase cartonadas, com gravuras daPaixão de Cristo. Numa ou noutra os Judeus têm os olhos furados. Fuieu que lhos furei, tia Joana não desaprovou. Tomo o livro nas mãos e écomo se de repente eu tivesse muito mais anos. Porque o livro me abriana memória uma distância maior do que lá havia. Mas simultaneamentea presença material do livro tornava-me presente esse tempo remoto e oin fan t i l i smo que e ra de le . E eu es tou no me io sem saber de onde sou . Tomo o livro na mão, percorro devagar algumas folhas. E nelas abro otempo e a ve lh ice . Mas não posso demorar -me, tenho de i r rezar a S .F i l i pe Nery . Es tá na ig re ja , a um can to , no a l to de um a l ta r . T ia Lu ísaqueria fiscalizar-me a reza, vou sozinho, a igreja está deserta. De uma janela lá ao cimo resvala-lhe a claridade pelas vestes de pau. É um santoengraçado - porque é que é especialista em vocações para padre? É de41uma cor verde-escura, as vestes, a cara. Na cabeça um chapéu de quatrobicos, lembra um pequenino tabuleiro. Ajoelho em frente dele, Ponho omeu problema. E depois fito-o intensamente à espera de uma reposta.Mas ele, com o tabuleirinho à cabeça, fica imóvel, não me liga. Então eu,com paciências, explico de novo a questão. Compreendesse ele que eunão queria ir para padre, tinha o meu destino de homem a cumprir, jácom algumas urgências a inquietar-me, tia Luísa é que não fazia ideia -ele que dizia? Fito-o intensamente até me doerem os olhos - que é quediz? preciso de saber se vou. Olho-o fixamente até me doerem os olhos,a igreja está deserta, o silêncio estala-me os ouvidos. Então, devagar, acabeça do santo com o seu tabuleiro baixou-se e ergueu-se várias vezesa d ize r -me que s im. Sa l te i sobre os pés , desa te i em cor r ida para casa . Era longe, a casa, no extremo da aldeia. Vinha a suar, abrandei o passopara reflectir. Tia Luísa viu-me chegar, veio ao meu encontro ao portão:- Então rezaste, meu filho? E que é que S. Filipe te disse?- Disse-me que não.- Como que não?- Eu perguntei-lhe e ele abanou com a cabeça a dizer que não.T ia Lu ísa en ta lada . Porque o mi lagre ex is t ia . Mas não a fac i l i dade com que era assim corriqueiro. E balanceada de alternativa, acabou porse decidir. Foi no rabo que me arreou- Seu mentiroso reles!ouço lá baixo a pancadaria - não cedas! aguenta!- Aguenta! - berro-lhe cá de cima. - Diz que o santo disse que não!- Seu hipócrita!e esta? Que era isso de hipócrita? Estaladas, as nalgadas - aguenta!Desço as escadas a cor re r , o co r redor es tá deser to , o s i lênc io na ta rde quente:42- Aguenta!a minha voz ressoa na casa abandonada. Vou portanto para Penalva- s u b o d e n o v o a o a n d a r d e c i m a , v o u p u x a n d o o c o r r i m ã o q u e balanceia na sombra. Da janela aberta da sala de passagem a claridadevai subindo comigo, abre um halo no silêncio. A porta em cima range,tenho de ir abrir todas as janelas,

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varrer a casa do tempo que apodreceu.O q u a r t o d e X a n a , f o i o m e u q u a r t o , u m d o s . A u m c a n t o h á u m cubícu lo de a r rumos, a por ta p in tada de t in ta g rossa , rosa-pá l ido , ob u r a c o v a z i o d a f e c h a d u r a . O l h o - o d e v a g a r , a o r i t m o d a m i n h a e x p e c t a t i v a s u s p e n s a . P e ç a s d e v e s t u á r i o s o l t a s , u m a f r o n h a c o m manchas de humidade , ca ix i lha r ia par t ida , uma ca ixa de pape lão . Ee n c o s t a d a a u m c a n t o , a c a i x a p r e t a d o v i o l i n o . T e m a f o r m a d e u m caixão infantil - mas tenho de ir para Penalva. É um violino pequeno,u m v i o l i n o d e t r ê s q u a r t o s , p a d r e P a r e n t e d i s s e q u e u m g r a n d e n ã o dava para mim. A caixa é talhada a direito, larga num lado, estreitando-se para o outro, não desenha o contorno do violino, um pequeno caixão.Tomo a caixa devagar, está cheia de pó, teias de aranha, caliça. Limpá-laprimeiro - limpo-a primeiro. Poiso-a depois na cama de Xana, olho-a.Um certo receio de a violar. Contemplar na face o cadáver do que nãose,,. Subitamente, conglomerada ali, toda a história do mundo. Porquenós somos nós - tudo aquilo que nos fez ser. E nada mais existe para lá -mas f i l oso f i ce , não . Sê in te i ro em t i , no exac to ins tan te em que és . A c a i x a t e m u m f e c h o a m a r e l o , e u m g a n c h o d e l a t ã o . S o l t o - o , e r g o a tampa. Uma teia de aranha, presa ainda na juntura. Ergo a tampa, a teiasuja distende-se e estala. O forro da caixa é de um verde desmaiado, ov io l ino jaz de i tado no recôncavo in te r io r . Es tá a l i , i n te i ro , espera-me d e s d e a n t e s d e m i m . T e m a i n d a a s c o r d a s t o d a s , m a s d e v e m e s t a r podres . Na tampa e rgu ida , o a rco do v io l ino ins ta lado no seu lugar .43Tem as sedas frouxas, lassas do tempo, ou alguém as terá afrouxado?Não me lembro de ter mexido eu no violino, desde o tempo primitivo.Poucas vezes vim à aldeia - não me lembro. E então, devagar. Tomo ob r a ç o d o v i o l i n o , e r g o - o d o s e u c o f r e . E u m i n s t a n t e , c o m o s e u m ob jec to f rág i l , m is te r ioso , te r r í ve l no seu mis té r io . V i ro -o na mão, o verniz intacto de todo o lado. Espreito pelos SS, tem ainda a «alma» noseu lugar, o pauzinho a unir os dois tampos. E neste ter o instrumentona mão, não sei que estrita ligação orgânica com ele, sinto a aderênciacorpórea dos meus dedos com as cordas, o prolongamento necessárioda minha mão com o braço do violino. Na conformação do meu corpo,o i n s t r u m e n t o i n t e g r a d o n a m i n h a e s t r u t u r a t o t a l , c o m o s e e l e a p r o l o n g a s s e , f o s s e u m a s u a p a r t e n e c e s s á r i a . O s m e u s p é s , o m e u e s t ô m a g o , o m e u s e x o , a s m i n h a s u n h a s , t u d o e r a c o m o v i o l i n o a t o t a l i d a d e d o m e u s e r . N ã o e r a a s s i m u m a c r e s c e n t o , n e m b e m u m prolongamento, qualquer coisa que se estendesse para além de si *. Erauma sua par te in tegran te , a es t ru tu ra comple ta de mim, e e ra ass imc o m o s e m u t i l a d o e u r e c u p e r a s s e o q u e e m m i m r e i n s t a u r a v a u m a harmon ia perd ida , na in te i ra v i ta l idade de um corpo humano que se c u m p r e . E i r r e p r i m i v e l m e n t e a s c o r d a s f r o u x a s d i s t e n d o - a s . A s c r a v e l h a s r a n g e m a o s e s t a l o s , c o m o s d e d o s e m p i z i c a t o s , a f i n a r a s cordas nos

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intervalos de quinta. Melhor corri o arco, as sedas do arcoestão frouxas. Na cabeça dos meus dedos o parafuso que as retesa, háa inda um toco de res ina . Passo ne le as sedas do a rco , há a inda um pó f i n o j u n t o a o c a v a l e t e . N u n c a s e l i m p a a r e s i n a d o v i o l i n o , p a d r e Parente preceituava, eu um dia tentei limpá-la com um pano, o pó daresina como o pó de um vinho velho. E só, na casa deserta, a vibraçãoáspera das cordas do v io l ino , as cabeças dos meus dedos dor idos da pressão. Sei ainda aCanção de SolveJe(de Grieg?), oMomento Musicalde44Schubert, aDança Húngara- de quem é? O braço do v io l ino na minha m ã o e s q u e r d a , a p r e s s ã o d o s d e d o s d a d i r e i t a d o a r c o , o v i o l i n o entalado no queixo, a reconstituição, do meu todo perdido - toco mal. Édos ins t rumentos ma is be los bem tocado , insupor táve l quando não - toco mal. Um piano, toca-se uma tecla, o instrumento cumpre-se logot o d o . O v i o l i n o . N ã o é a s s i m . A s c o r d a s á s p e r a s , o s m e u s n e r v o s raspados - mas não o ouço. O violino. Melodia antiga, na perfeição dam e m ó r i a . N a d i s t â n c i a a é r e a d a m i n h a i m a g i n a ç ã o . C a s a d e s e r t a , o s i lênc io de uma ta rde quen te . E a t ravés das camadas sobrepos tas do tempo e da amargura. Minha melodia antiga. Tenho de voltar a estudar.Comprar talvez um violino maior. Tantos dias a preencher, mesmo quenão sejam tantos. Um violino ao tamanho da minha solidão. Tenho de irpara Penalva - arrumo o violino na sua caixa. Talvez leve Sandra paral á , m e s m o n ã o s e n d o e l a d e l á . T e n h o t a n t a p r e s s a d e e s t a r c o n t i g o . Mesmo que a tua presença lá não seja realidade. Que pulha a realidade.Tenho de ir, deponho o violino no seu caixão. Está uma tarde quente.Ninguém canta lá em baixo. Só o espaço aberto para lá da janela. A terrasuspensa. O ar Imóvel.45VIIIE numa manhã de Outubro , es tava já f r io , par t i . Pena lva f i cava noalto de um monte. Chego na camioneta com a mala, conheço a casa, é naRua do Marquês, já lá tinha vindo com as minhas tias a combinar. Batoà por ta , a senhora Gu i lhermina espre i ta a uma jane la , é uma c idade quase deserta, imóvel na eternidade. O trinco da porta estala, eu subou m a l a r g a e s c a d a d e m a d e i r a . A s e n h o r a G u i l h e r m i n a e s t á a o a l t o , imóvel, os braços crescem-lhe para os lados, um sorriso cresce-lhe naboca. Dá-me muitos beijos calados, diz-me em voz soprada que- Não faças barulho.Os meus sapatos rangem no soalho.- Não faças barulho!os o lhos em branco de te r ro r . Vou em b icos de pés , há uma nova escada mais estreita a subir, ela vem atrás de mim em chinelos de pano.Subo devagar, atento ao ranger dos sapatos, ela põe o dedo no nariz apedir silêncio estará alguém doente na casa?- Está alguém doente, senhora Guilhermina?- É o senhor Paixão que

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está a comer.F a l a - m e e m v o z b a i x a e s o p r a d a . A b r o a p o r t a d o q u a r t o c o m cuidado, é em cima, ao lado da cozinha.Avanço um pé, estupores dos sapatos. E o soalho. Fico suspenso, umpé no ar, todo eu agachado para a frente. Falo eu também baixo, comose houvesse um morto em casa. Eu trazia uma marmelada, a tia Luísamandara. Eram duas tigelas com um papel vegetal a tapar, trazia-as namala numa caixa. E então ela disse em voz sufocada- Leva-la tu46e d e s c e m o s o s d o i s o u t r a v e z a e s c a d a , p é a n t e p é , t r a n s i d o s d e rece io . Depo is segu imos pe lo cor redor à esquerda , enco lh idos sobre nós, eu levava nas duas mãos como oferenda urna tigela de marmelada.Des locou a por ta da sa la , a senhora Gu i lhermina , fez -me s ina l de que entrasse. Pela clareira da porta, vejo-o, o senhor Paixão está sozinho àmesa, tem os o lhos ba ixos . Es tá concen t rado ap l i cado , é um t raba lho minucioso, aplicado ao manejo do talher, nem nos olha. Estamos os doisa l inhados e eu tenho a t ige la o fe r tada nas duas mãos . En tão o senhor Paixão ergueu os olhos- Está aqui o Paulinho, Carlos, trouxe-te uma marmeladaergueu os o lhos para nos . E ram uns o lhos conges t ionados de uma p a i x ã o q u e o c o n v u l s i o n a v a p o r d e n t r o , t i n h a u m a c a b e l e i r a f u l v a a l t e a d a n a f r o n t e e a o s a n é i s . A s e n h o r a G u i l h e r m i n a , u m s o r r i s o grande abrindo lentamente pelas gengivas todas e depois disse em vozabafada- O senhor Carios Paixãoe eu es tava a l i com a marme lada . Os t rês f i t ados uns nos ou t ros , o s e n h o r P a i x ã o s é r i o , o s o l h o s a r d e n t e s d e u m a d e v o r a ç ã o i n t e r i o r . Depois estendeu as duas mãos para mim, tomou-me a tigela, colocou-an a m e s a , u m p o u c o a o l a d o , s u s p e n d e n d o -a b r e v e m e n t e e m q u a t r o dedos litúrgicos. Por urna ponta ergueu devagar o papel vegetal, olhavai n t e n s o , o o l h o e m f o g o , a s e n h o r a G u i l h e r m i n a m u d o u - l h e o p r a t o sub t i lmente . E le en tão cor tou uma pequena pe l í cu la de marme lada , estendeu-a sintética no prato. Ficou assim a olhá-la algum tempo, nósaguardávamos. Sobre tudo a senhora Gu i lhermina , - que i r ia o f i l hodizer? E ele disse- Um pouco escura47e ficámos à espera de mais. Estávamos todos em silêncio, o senhorPaixão concentrado como se fosse comungar, murmurou ainda- Em fins de Setembrodeve-se colher o marmelo em fins de Setembro. Deve-se colher quasemaduro. Não ficar muito tempo ao lume. Não se expor ao ar.Depo is re t i rou uma par t í cu la do p ra to , levou-a à boca devagar . Aboca remoía a partícula, tentava extrair-lhe a essência oculta do sabor. Epor fim engoliu-a já sem vida, como quem enterra um morto.- Pouco saborosa . Pouca ac idez . Não se deve cozer o marme lo emágua, mas em vapor. Mãe, o café.Uma metade da película de marmelo no prato.E subitamente - querida. Subitamente - querida Sandra. Tenho tantan e c e s s i d a d e d e e s t a r c o n t i g o . S e d e i x á s s e m o s e n t r e t a n t o o s e n h o r Pa ixão? Bem se i que não é a inda a hora de tu v i res à m inha v ida . Há que fazer o liceu em Penalva, há que ir depois para a Universidade. E sóe n t ã o - t u . M a s e s t o u t ã o

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c h e i o d e p r e s s a . E s t o u s ó , n e s t e c a s a r ã o d e s e r t o , d e i x a - m e f a l a r j á d e t i . D e i x a - m e f a z e r - t e e x i s t i r a n t e s d e e x i s t i r e s . D e q u e m e s e r v e t u d o q u a n t o m e a c o n t e c e u , s e m e n ã o aconteceres tu? Estás lá, em Penalva, esperas-me no alto da vida com osteus olhinhos vivos pretos. Estás lá, não tu, talvez, oh, foste sempre tãodifícil. O que me existes neste instante, não é decerto o que foste. O queme existes é o que em mim te faz existir. Estou só. E isto é horrível, nãos e i s e f a z e s b e m i d e i a a í n a c o v a . T e n s m o r t o s d e c o m p a n h i a e a comod idade de não seres . Eu não . Es tou v ivo a inda , sou a inda , e i s tonão é um modo cómodo de haver mor tos à m inha vo l ta . Vou fazer - te existir na intensidade absoluta da beleza, na eternidade do teu sorriso.V o u f a z e r - t e e x i s t i r n a r e a l i d a d e d a m i n h a p a l a v r a . D a m i n h a imaginação. Estou absolutamente decidido, como é que vou suportar48t a n t o s a n o s a i n d a s e m t i ? E s t á s a l t a , n a m e m ó r i a , a o a p e l o d o m e u cansaço. Como vou suportar a vida toda e a terra é o universo sem ti nocentro da minha cosmogonia? Tudo isto é absurdo - tu foste sempre tãodifícil. Mas estás morta, posso inventar-te agora como quiser. Agora aomenos, depois talvez te esqueça, enquanto a tarde lá fora, é uma tardede Verão. E estou só, quase morto também. Passei a vida toda à procurade uma palavra que ma dissesse. Não a encontrei. Na casa de banho aolado - em que é que estava a pensar? São portadas de alto a baixo, estãofechadas empenadas - em que é que estava? Realizar a vida em torno deuma ilusão qualquer. Vou amar-te intensamente como se o amor o fosse- eu disse os teus olhinhos pretos? Creio que já há bocado, tu sentada àborda da cama, o teu chapéu de grandes abas flexíveis, uma fita azul epontas cruzadas, mas agora não. Possivelmente serás assim, morena,minúscula, os olhinhos pretos e vivos - agora não. Vejo-te na mata dac idade , ve jo - te de cos tas . Va is a cor re r com um bando de co legas por um caminho de neve, e os teus cabelos louros. São louros, como é queme não lembre i? Saem de um gor ro azu l de ma lha , espa lham-se nas c o s t a s , a g i t a m -s e n a c o r r i d a c o m o o s e u t r i u n f o . E a s p e r n a s engrossadas de meias azuis, erguem-se alternadamente na corrida semrazão. A mata cobre-se de neve, há neve na beira do caminho, um solrígido ao alto. Depois parais num largo, pequenas pugnas de neve entrevós , fes ta de r i so . Enquanto nós , eu e uns co legas , t ínhamos cor r ido também, vou atirar-te uma bola de neve. No centro do teu riso e do teuolhar. É azul como agora a minha imagem da sublimação. Uma estrelad e n e v e n a t e s t a , v o u a t i r a r - t e u m a p e q u e n a b o l a , e l a e m b a t e - t e n a fronte, explode em pedaços para todos os lados do teu riso. E de súbitof i cas imóve l ass im, ins tan tânea de luz , a boca enorme de a legr ia e os dentes visíveis de sol, e os olhos rápidos de cintilação. Fica-te assim, oh,49n ã o t e m e x a s . T e n h o t a n t o q u e d a r u m a v o l t a à v i d a t o d a . N ã o t e movas . Sob a e te rn idade do so l e da neve . Uma

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mal íc ia súb i ta no teur i so , no teu o lhar . Um c la rão à vo l ta de des lumbramento . I r rad ian te fixo. Não te tires daí. Instantâneo da minha desolação. Tenho mais quefazer agora. Não saias daí. A boca enorme de riso, os olhos oblíquos deum pecado futuro. Fica-te aí assim, talvez te p1rocure ainda, talvez teescreva uma carta de amor. Daqui donde estou, está uma tarde quente.De amor.50IXP o i s . M a s r i d í c u l o , n ã o . S ê g r a v e c o m o a h o r a d o t e u f i m . N ã o s e p e d e m a i s a u m v e l h o . O a s s e i o , a s m a n e i r a s . E s t á s v i v o a i n d a , é incontestável, é um favor da natureza - que feio o pecado da ingratidão.A compostura. Imagina, uma carta de amor. Quero escrever uma cartade amor! Mas não fales alto. Quero escrever. Oh, não berres. Imagina sete ouv iam na a lde ia . Nas t in tas para que ouçam. Co i tado de t i . Meu D e u s . E s t o u t ã o c a n s a d o . E s t o u t ã o f o r a d o q u e e x i s t e . Q u e é q u e significa o eu estar ainda aqui, levantado de imaginação? é uma manhãde sol e de neve. Toda a mata refulge de brancura, o ar gélido na face.Sandra es tá no me io do g rupo . Imóve l , r i . Ve jo - lhe o r i so es t r iden te , irradiado de luz. Está imóvel, rodo o grupo imobilizado no instante emque o fixo. Uma das amigas está agachada, deve estar a apanhar neve.Outra ergue os braços em defesa, uma bola de neve, vejo-a parada noar. Sandra ri. Toda a alegria primordial da vida - enquanto puxo o fechodas portadas. A alegria inicial, cintila nas flechas de sol, mas os fechoses tão per ros . Há um desvão para a r rumos, a ver se um fe r ro para osba te r - imóve is todos os do is g rupos no ins tan tâneo da imag inação . D e p o i s , u m p e q u e n o m a q u i n i s m o q u a l q u e r , t o d o s r e c o m e ç a m a movimentar-se. Então corro para Sandra, digo-lhe muito depressa- S a n d r a , g o s t o m u i t o d e s i , v o u - l h e e s c r e v e r u m a c a r t a a p e d i r namoroe ela grita que não atirem mais neve e ri mais e desata a correr comas meias azuis, os cabelos louros bandeados pelas costas. Enquanto osf e c h o s d a s g r a n d e s p o r t a d a s , a s p o r t a d a s r a n g e m , a b r e m - s e p a r a o espaço do horizonte. «Gosto muito de si, se me aceitar namoro, mando-51lhe uma fotografia», as janelas arrastam na pedra do chão. Como umainiciação, uma varanda para o horizonte. Para aquele lado, a montanhad e s c e e m l e n t o d e c l i v e a t é à p l a n u r a l o n g í n q u a . D e b r u ç o - m e d a varanda, o olhar estende-se-me ao esvaimento de mim. Apreender bemo s e n t i d o d e u m a v i d a q u e a c a b o u , n ã o e s t á n a t u a m e d i d a d e en tend imento . Sempre ma is um ano poss íve l , um d ia poss íve l , ,umahora . E logo , em a t rope lo , o fu tu ro , que é uma var ian te modes ta da e t e r n i d a d e . C o n q u i s t a r u m i m p é r i o , e s c r e v e r u m l i v r o , a p e r t a r u m parafuso da porta. Amar ainda uma mulher - vou escrever uma carta deamor . Que ide ias amea lhas te para a mor te? Qua lquer co isa , qua lquer valor, qualquer brinquedo. Tenho ainda de ser homem algum tempo,c o m o v o u s e r j u s t i f i c á v e l a t é a o f i m ? D e v i a s t e r s i d o

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p r e v i d e n t e . Querida Sandra. Mon amour. Vou-te escrever uma carta no tempo emque te não conheci. Devias ter sido previdente. Guardar para a velhiceu m p o u c o , d e p o l í t i c a , o u d e a r t e , u m b o c a d o d e D e u s , q u a l q u e r porcaria assim. Esvaziado de tudo, estou agora bem aflito. Sandra. Se tua q u i . N ã o v a l e a p e n a p e n s a r . M a s d e s d e q u e d e s t e o c a s o p o r concluído, oh. Tenho a tua vida inteira na cabeça. Tenho-a nas mãos, atua mão pequena, de dedo a dedo f rág i l , o teu corpo b reve de l i cado . Tenho-a na boca, nas vísceras, nos dentes da imaginação - meu amor debrinquedo. Sento-te na palma larga da minha mão, ergo-te à vertigemd o m e u g r i t o - m e u D e u s , m e u D e u s , e e s t a ? E s t á b e m . M a s destemperos, não. Histerismos, não. Estou aqui à varanda, entalada aum canto está a sanita. A sala é grande, fora congeminada para outrosfins. Mas um dia a aldeia teve água canalizada, minhas tias fizeram ali are t re te . Tenho um pouco de h is tó r ia l i gada à re t re te como todo o ser humano que tem uma retrete. Mas agora estou à varanda, deixem-meestar. Sandra era um nome estranho ao meu ouvido de nomes. Mas ela52explicou-me que o pai. -, era um nome russo? um nome político. Tenhoa tua história toda na garganta, e um soluço intenso, desenvolvido paradentro. Era ao anoitecer, eu entrara no teu quarto do hospital:- És tu, Paulo?- Sou eu. Vê se sossegas.- às vezes já não sei se são pessoas se é a minha cabeça.- Sou eu. Vê se descansas.Então, lá do fundo do vale, de novo, pelo céu carbonizado, é o cantod a v i d a , e m b a t e a o l o n g e p e l o s m o n t e s . E é c o m o s e o m u n d o t o d o , convocado para a alegria, éum canto lento, ao ritmo genesíaco da Terra.Ouço, ouço, não quero pensar - e que é que tens que pensar? Ordenar av ida na desordem da tua v ida , esparso , fugaz , a a tenção d is t ra ída às c i n t i l a ç õ e s d a m e m ó r i a . D a i m a g i n a ç ã o . O h , t i n h a g r a ç a e u a g o r a a p l i c a d o o r g a n i z a d o e s c r i t u r a d o . E s t o u a m a r g e m d e t o d a s a s organizações possíveis. Desperdício dejecto um fruto podre. Mas nãome s in to ma l . Vou mesmo escrever uma car ta de amor . É um d ia de neve enquanto estou aqui à varanda - onde é que te deixei? Estavas namata com as tuas amigas, estás parada na corrida, uma festa de luz. Erau m d i a d e n e v e e d e s ú b i t o u m a r f r i o c o n g e l a - m e a f a c e . É u m f r i o antiquíssimo, estala-me a face como uma estrela. Cristalizado o mundo,de que é que eu estou falando? instantâneo, transfigurado, um halo del e g e n d a . N a v e r t i g e m d a m e m ó r i a , v e j o - o . L í m p i d o l e v e p u r o , n o surgimento longínquo da minha imaginação. Atropelo-me de palavras,e q u e h á m a i s d o q u e i s s o ? a p a l a v r a q u e r e v e l e , a q u e i n t e i r a , e o mundo abrindo nela para o entendimento da vida. Oculta procuro-a nasesqu inas ráp idas da minha desor ien tação , no medo, na angús t ia , naa f l i ção exorb i tada - mas des temperos , não . Na g r i ta r ia do mundo, no53clamor da verdade que não era, minha mãe estava estendida na cama,encostei-lhe o ouvido à boca- Tu sabes o que foi que ela disse?na confusão terrestre do enigma, no desespero a prumo de uma bocap a r a a

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n o i t e - a p a l a v r a . T e n h o a v i d a d e d u z i d a a t é à s ú l t i m a s conclusões - não a sei. Pois. Mas mariquices, não. Era um dia de neve,p rec iso u rgen temente de escrever uma car ta de amor . De que é que n e c e s s i t o m a i s ? H o u v e f i l ó s o f o s e p o e t a s e a v e n t u r e i r o s e h o m e n s programados rigorosamente para a felicidade, que. O amor. Mas há queescrever p r ime i ro uma car ta para e le ser p laus íve l . Escrevo . Sandra ,gosto muito de si. Escrevo-a com aplicação, em febre pós-prandial. Eusaíra a comprar papel e envelope, era uma carta cor-de-rosa, custou-mec inco tos tões . Sandra - esc revo . Foram t rês fo lhas de rascunho, que o amor é tão difícil. Mas construirei com ele uma teoria do universo - deque é que preciso mais? Meu pai partiu, minha mãe encostou-me a faceao pe i to , sagrou-me da sua loucura . E ra um d ia de neve , tenho ca lo r bastante para aquecer o mundo., Então, quando Sandra descia do liceu.A r u a c o r r i a a o l a d o d a S é , e u l e v a v a a c a r t a n u m l i v r o . E r a p r e c i s o a lcançá- la an tes da Rua da Tor re , Sandra morava a l i . E la en tão o lhou atrás e calculou a minha intenção brutal. Eu ia destruir-lhe a infância e ola r e o segredo te r r í ve l da sua in t im idade . Eu levava comigo o poder divino, ia construir o mundo fora das leis estabelecidas, ela assustou-se.Devia levar nos olhos o sinal da minha determinação, da minha fúriaomnipotente, ela achou que era de mais. Então acelerei o passo para aalcançar, ela desatou a correr, corri eu também. Mas de súbito Sandradissolveu-se, uma espuma de névoa. Um vapor ténue no ar. Fluida, ap a s s o s l e n t o s . M o v i a a g o r a a s p e r n a s v a g a r o s a s , a s m e i a s a z u i s , a cabeleira solta, pairando solta no movimento, eu próprio retardado logo54num balanço de fluidez. Respiro forte - atingir-te, tocar-te. O intervaloencurta-se, parece-me, o braço estendido, o livro com a carta na mão. Equase a atinjo, disparado todo ao limite do meu esforço, o corpo tensoem desespero . S in to -o , todo eu p resen te ne le , to rc ido no a r ranque da minha decisão. Mas uma paralisia pelos braços, pelas pernas, entravadotodo eu nas minhas articulações. Houve todavia um momento em que omecan ismo se desprendeu. E so l to , a passos la rgos . Es tendo o b raço com o livro - atingir-te o mais depressa. Há um intervalo subtilíssimo,dobramos a curva para a Rua da Torre. Há um intervalo infinitesimal.- Sandra!e ela oscila à minha frente no etéreo do seu fumo. Túrbida, aquosa.As fo rmas ocas de névoa . Lança as pernas devagar , todas aber tas de fuga , f i ca um momento suspensa . A cabe le i ra so l ta ao ba lanço , toda a b e r t a n o a r . A v a n ç a m o s a s s i m p e l a r u a d e s e r t a , h á n e v e a i n d a n a s bermas , do a l to , dos te lhados , p ingam grossas go tas de agua . Mas acerta altura, como se a uma aragem uma nuvem. As formas esgaçadas,t o d o o v u l t o d e S a n d r a d i s s o l v i d o l e n t a m e n t e , e m v e i o s c o l o r i d o s derrama-se deformado à sua volta, eu tenho o livro estendido na mão.Pedaços de névoa pe lo s i lênc io da neve desprend idos ade lgaçam-se ,enro lam-se no seu fumo, desaparecem ao a l to . Quedo-me a inda um instante, o braço estendido, no meio da rua escura - quedo-me ainda umi n s t a n t e à v a r a n d a p a r a o h o r i z o n t e , q u e é q u e t e d i v e r t e e s t a r e s

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a inventar? Sandra não existiu nem nesse ano, nem nos outros, espera-te àbeira do rio da cidade da Soeira, creio que vem de Solária, é uma cidaden u m a c o l i n a , t o d a b a t i d a d e s o l . M a s e s t a u r g ê n c i a d e t e v e r , t e conhecer . Mon amour . Demo-nos sempre tão ma l . E todav ia . Que me r e s t a p a r a a v i d a s e n ã o o i m a g i n a r ? P o r q u e a r e a l i d a d e p e s a t a n t o - estou à varanda para o sem-fim, é uma casa deserta. Criar-te na palavra55que te invente e é toda a tua verdade. Como os deuses de outrora. Criaro mundo inteiro na palavra que o diga e ele ser a realidade de ser real -minha mãe à hora da morte.- O que é que foi que ela disse?Invento a realidade nas palavras que a inventam - se eu soubesse apalavra dessa realidade. Uma palavra de beleza, de paz, de harmonia.De exa l tação esperança ev idênc ia . Não a se i . De con fo r to e a l tu ra , dealegria. De loucura mesmo que fosse, qualquer coisa assirri, qualquermerda assim, oh, qualquer coisa. Não a ouço, nada a sabe. Vou inventá-l a r a p i d a m e n t e a n t e s d e a l g u é m m a n e g a r - m e u a m o r . E s t o u b e m necessitado de ti, tanto. Um entendimento à minha volta. e o teu olharc a l a d o , c h e i o d e c o m p r e e n s ã o c a r i t a t i v a . C r i a r à m i n h a v o l t a a h a r m o n i a q u e n ã o h á n ã o h o u v e , e o t o r p o r d o m e u s o n o , e a jusc i f i cab i l i dade de tudo na v ida , de eu es ta r aqu i , de haver mor te no mundo.. Estou bem só. Há um tempo enorme que o Pinto da Bibliotecaestá lá na capital à minha espera, com o discurso de despedida na mão.D e i x á - l o e s t a r . E s t o u à v a r a n d a , é u m a c a s a m o r t a . E m b a i x o , a vegetação confusa, como é clássico num jardim abandonado. Tenho dei r c h a m a r a D e o l i n d a . E s t á u m a t a r d e q u e n t e . A m o n t a n h a à m i n h a d i r e i t a , d e s d o b r a d a n a s u a a r i d e z , o s o l r e q u e i m a - a d e m a l d i ç ã o . À esquerda, o vale. E soerguidas um pouco, na cor violácea da distância,na encosta de outros montes, cintilando breves em brancura, indistintoss i n a i s d e a l d e i a s i m a g i n á r i a s c o m o e c o s d e u m g r i t o . V e m p e l a montanha esse grito, vem das origens do mundo. Ouço-o palidamente.D e l o n g e e m l o n g e , b r a n c a s m a n c h a s d e a l d e i a s . S ã o a s p e g a d a s d o homem.56XE em face d isso , vou chamar a Deo l inda . Vou chamá- la daqu i aosberros.- Deolin ... in ... da!Não chamo. Que é que posso eu chamar e a inda venha? Chamar a Deolinda, e o padre Parente que me ensinou violino, e a Xana perdidanas trapalhadas do mundo, mesmo o seu filho que é o meu neto mulato,e a M u n d a b e a t a q u e f o i a L u r d e s e v o l t o u c a r r e g a d a d e t e r ç o s e m e d a l h a s ( « t o c a d o s n a g r u t a » ) p a r a h a v e r r e l i g i ã o e c o m é r c i o , e a i n f â n c i a e a j u v e n t u d e e a i d a d e a d u l t a , e t u d o o q u e e r r e i e o q u e m o r r e u , e o s a m i g o s , o s c o n h e c i d o s , n u m i n s t a n t e o r g a n i z a d o s n a tessitura de mim ao mundo, e a melancolia que vem de longe como oolhar de uma tísica, e mesmo Deus que é um chato e tem sempre aindauma palavra a dizer. Não

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chamo. Fundar em mim a minha vida, no quehouver ainda em mim em que fundar. E todavia. Sandra. Que obsessãoesta - na tarde imensa de fogo. Saborear-te o nome, há tanto tempo jáme não sabia. Tem uma cor pálida. O teu nome. Como um fruto numatarde de Outono. Estou só - e tudo tem explicação. E a altura de se serlouco, de as coisas existirem mais do que nós, de o pânico nos explodirsem se saber de quê,- Pauli ... i ... nho!de nada ter importância, por não termos importância, de as ficçõesinfantis terem razão por nada a ter, de haver em nós um fantasma que énós e o terrível que é. Bom. Mas tragédia, não. A tragédia precisa de umespaço em que ainda se é humano. Como a loucura que só se comparado lado donde ela não está. Eu sou a tragédia sem nada para comparar.57Es tou bem aqu i , debruçado da varanda para o nor te . uma d i recçãocheia de convergência para os olhares humanos. O Norte. Em frente davaranda hav ia um pomba l . E ra um cas inho to esburacado , e rgu ido aoalto de um pinheiro. Ainda lá está, derreado, já sem plausibilidade paraa columbofilia. Imagino a largada de asas numa manhã, a casa fechada,n u m a m a n h ã e s c u r a d e I n v e r n o . A s p o m b a s v i n h a m à v a r a n d a , b o r r a v a m t u d o , t i a L u í s a a o s b e r r o s , e u d a v a - l h e s d e c o m e r . H a v i a s e m p r e a h i p ó t e s e d e p o m b o s c o m a r r o z . I a m f i c a n d o , n u n c a s e s o l i d i f i c o u a h i p ó t e s e - m e u D e u s . T u d o i s t o t e m a p e q u e n e z d a in fânc ia , que tem a in fânc ia aqu i que fazer? tem a g randeza de já nãohaver a idade adu l ta , o tamanho in imag ináve l da te rnura . Um d ia f i zuma experiência que significa ser diferente? A sociedade e as suas leis,a s l i g a ç õ e s f a n á t i c a s e o c u l t a s d e u m a c o m u n i d a d e , u m d i a f i z u m a exper iênc ia de soc io log ia . As pombas v inham à mão comer o m i lho , rancorosas desunhavam-se a a tacarem o papo , f i cava r i j o como uma pedra, um pouco deslocado à banda naquele furor glutão(- Paulo! Palpa aquie eu cor r i - te a mão pe la suav idade do ven t re , hav ia ao fundo uma ligeira dureza. Do lado direito.- Quando deste conta?uma hérnia? um volvo possivelmente- T e m - s e d i s s o t a n t a v e z . F e z e s e n d u r e c i d a s , g a s e s e r a d e n o i t e , ficámos depois em silêncio)e en tão tome i uma pomba, leve i -a para longe , leve i um f rasco de t i n t a v e r m e l h a . J á d e o u t r a s v e z e s , m a s s e m t i n t a . E l a s v o l t a v a m sempre, batidas de inquietação doméstica. Podiam ficar por lá, largadasà d i v a g a ç ã o , a o s u p l e m e n t o p e t i s q u e i r o d o s c a m p o s , d o s e i r a d o s . Vinham logo, batidas de insegurança. Levei uma na mão, a cabeça viva58em disparos mecânicos, ou enconchada em si, centrada no coração, queera onde estava o medo. Então tirei o frasco do bolso e com um pinceld e a l g o d ã o . E r a d i f í c i l , a t i n t a e s c o r r i a - o u e r a m e r c u r o c r o m o ? des l i zava- lhe pe las penas . In tang íve l em s i , e ra uma pomba, voava . Separada linearmente de toda a conspurcação. Mas com persistência,e r a u m a p o m b a b r a n c a . M a n t i n h a - l h e c o n t r a a s p e n a s o a l g o d ã o ensopado. Nas asas , no pe i to . E pouco a pouco , porque a degradação tem

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mui ta fo rça , pouco a pouco , aqu i e a lém, um verme lho v ivo , e rauma pomba or ig ina l , excên t r i ca ao cos tumismo das pombas . So l te i -a das mãos, ela espadanou com energia, ergueu-se no ar, uma mancha desangue. Subi de novo à varanda, queria ver a recepção. Inocente da suad i fe rença , po isou numa be i ra do pomba l , i ns ta lou-se na comun idade q u e e r a s u a . E n t ã o u m a d a s p o m b a s m a i s c o l e c t i v i s t a s , f a n á t i c a d e c o m u n i d a d e i g u a l i t á r i a , b i c o u - a l o g o . E l a f u g i u , c o n v i c t a d e a l g u m engano ou b r incade i ra , ins ta lou-se de novo . Mas ou t ras pombas lhesaltaram em cima à denúncia da primeira, havia uma sobretudo, deviaser a cabeça de casa l . Mach is ta p impão tes t i cu lado - que fan tas ia e raa q u e l a ? d e u - l h e d u r o . D e v i a r e c o n h e c ê - l a a i n d a p o r a l g u m t r a ç o comunitário, arreou-lhe forte. Então mais afoito e em massa gregária,todo o bando colectivista - que arraial. Adivinhava-se-lhe o olhar torvo,esganado de escândalo, nas bicadas frenéticas- Pauli ... i ... nho! Vê se te despachas!n o a r r u l h a r r o u c o d e ó d i o - m a s n ã o p o s s o v e r o r e s t o , t i a L u í s a chama-me. Estou sentado na sanita, é alta como um trono, vejo-me. Éalta, as pernas ficam suspensas, entretenho-me a badalá-las enquantofaço o trabalho está quieto!- Está quieto! - digo.59Sorrio do alto da sanita para mim que estou mais alto, paro de dar àperna suspensa . Mas nes te ins tan te t ia Lu ísa , vem che ia de b rave i ra .Deita-me abaixo do trono, vira-me o cu para a luz, limpa-me, lava-me,leva-me aos tropeções pela escada abaixo. Deve estar a sopa na mesa, éna cozinha, implanta-me na cadeira com almofadas. E daí a pouco, pormais que eu me esforçasse- Está quieto!e um ardor v i vo na coxa , da pa lmada. Por ma is que p rocure es ta r atento, sento-me na cadeira e daí a pouco, as pernas suspensas a dar adar - está quieto, porque é que se mexe tanto em pequeno? Não há quemexer, há que estar em ordem - porque é que? Não corras, está quietocom as pernas , não mexas nas co isas - porque é que? Teço o des t inoenquanto ele me não tece a mim, agora estou quieto para sempre. Estouà varanda para o in f in i to , em f ren te es tá o pomba l desmante lado , os campos que se estendem a perder de vista e mais longe a linha diluídada montanha. Em bloco, sobre a terra, o calor opaco, cerram-se -me osolhos à estridência da luz. Aérea a memória ondeia-me a uma ternuraoculta e oblíqua, a casa adormece no silêncio. Precisava tanto de ti, umpouco de te rnura para o f im. De compreensão p iedade mútua , a tua presença aqui. Ouvir-te lá dentro, não trocarmos talvez uma palavra emtodo o dia. Mas saber que tu lá dentro ou aqui ao pé, no silêncio fechadosobre nós como um manto . Um sor r i so b reve ou mesmo a tua i ra f i na cerzida, qualquer coisa de ti ao pé, o lume de ti, tu. Vou fazer-te existiro u t r a v e z e m P e n a l v a , v o u f a z e r - t e e m t o d o o p o s s í v e l d a m i n h a imag inação . Es tou só - que é que he i -de fazer? Tenho de te r a lguémpresente e mesmo um pouco de futuro, no que puder ser. É irritante queseja assim, gostava de ser homem como está estabelecido nos códigosda grandeza, não vou ser capaz. Ser homem, ter-me todo a mim sob a

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60v ig i lânc ia de mim, rec r ia r em pedra tudo o que em mim fo r humano.N ã o v o u . A g o r a m e s m o , p o r e x e m p l o , q u e é q u e t e n h o q u e i r t e r contigo a Penalva? Há um espaço vazio de ti - e com que é que hei-depreenchê-lo? É uma tarde de Verão, eu passeio no largo da Sé. Pássarosnegros desprendem-se dos frisos, descem em vagas, elevam-se de novoc h e i o s d e g r i t o s . P a s s e i o d e p o i s d e j a n t a r , d e v e s e r c o m o s c o m p a n h e i r o s d o c o s t u m e - o M a n a ç a s , o M i r a n d a , o P a c h e c o . E s t á quente, sem uma aragem, uma claridade imensa vai morrendo no ar. Ede repente, na minha memória longínqua - donde virá a música? ergue-se ao a l to , embate com a luz nas jane las dos p réd ios , encobre com a claridade todo o espaço da Sé. Poema-tango» - deixem-me ouvir. Vem amúsica não sei donde, é uma música pobre. Mas está cheia de memória,que é onde es tá tudo o que sou . Passe io ao longo do la rgo , a mús ica o n d e i a p e l o a r . É u m a t a r d e q u e n t e d e V e r ã o , a c l a r i d a d e d i f u s a , a s casas à volta iluminam-se de uma luz irreal. Vêm em revoadas, as vagasda música abatem-se no largo, elevam-se numa coluna, dispersam-se,r e g r e s s a m , c o m o u m b a n d o d e a v e s m u l t i p l i c a d a s e m e c o s , n u m a desor ien tação lab i r ín t i ca . Hora imóve l da minha evocação - que vem fazer aqui o que passou? o, que nunca resistiu? «Poema-tango, magicaharmonia de passional sentimento. » Mas de súbito, esta necessidade det e f a z e r e x i s t i r , d e e n c h e r e s d e r e a l i d a d e o v a z i o d o m e u s e r . N u m extremo do largo há uma pequena rampa à direita e ao fundo, está aí atua casa. Não tenho tempo de te ir procurar mais longe, estás aí. É umacasa velha, duas varandas de ferro enferrujado com vasos de flores. Aporta da entrada é à esquerda. Depois sobe-se por uma escada estreitaíngreme. Vou lembrar-me de estar contigo lá ao alto, a porta da sala ao lado . E à no i te , ao escurecer , ta l vez ao f im da ta rde . , Den t ro , na sa la , talvez a tua irmã mais velha e a outra irmã, coniventes no nosso arranjo61a m o r o s o . E a r d e n t e s , m u l t i p l i c a d o s d e m ã o s e p e r n a s , a t u a c a r n e branca pura , in t r ínseca in t im idade , a lvu ra ténue con t ra o fundo das sombras. Então, um desejo trilhado na serrilha dos meus dentes, frisadog r i t o n o e n v i e s a d o d o s m e u s n e r v o s . T u r e c u a s à d u r e z a d a m i n h a agressividade, espumosos os cabelos louros, amarroto-os nas minhasmãos e a tua boca . Babu jada ensopada os sucos da nossa fe r t i l i dade , humedecemos na profunda fermentação da vida. Depois saio, frustradoirritado írtito, mas hoje não. Hoje não venho para isso, enquanto lá fora,no céu enorme da tarde. «A...quele poema embria...gador» - porque melembras? na invenção da tua memória, onde não estás. Vais adoecer àminha decisão, morrerás mais tarde, quando eu nada decidi. Gostavab e m d e s a b e r p o r q u e t e a d o e ç o a g o r a , e n q u a n t o s u s p e n s o d o m e u f u t u r o e n c e r r a d o , e s t o u a q u i à v a r a n d a e q u e é q u e h e i - d e f a z e r ? G o s t a v a b e m d e s a b e r p o r q u e é q u e . T e r o t e u d e s t i n o n a s m ã o s , e humilde, a minha piedade por ti. Um pouco ridículo tudo isto, mas nãomo digas. Vou-te adoecer de uma doença estranha, um dia

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adoecerás deoutra terrível que te há-de destruir, envilecer. Um aneurisma - é assim?va i se r ass im. Um d ia apareces te para l i sada de um lado , quero - te verassim. Um braço, a perna, a fala presa. Estás deitada na cama, os cabeloslouros à volta. Tinhas o olhar parado sobre mim, no entendimento inútildo desas t re . O lhávamo-nos de um lado e dou t ro da v ida e en tão eudisse teu nome- Sandra!Era pálido. O teu nome. Como um fruto de Outono. Estavas pálidacontra o travesseiro e então concentrei em mim toda a minha força vital,ce r re i os o lhos a té à pon ta do meu ser . E desde as v ísceras , os ossos , lento o fluido da vida, pelo corpo, pelo braço, sinto-o. E a minha mãoe r g u e - s e d e v a g a r , g e n e s í a c a , D e u s a r d e - m e n a p o n t a d o s d e d o s . A62minha palma abre-se, um calor de sangue côncavo do meu poder. Todaa f o r ç a m i r a c u l o s a d a l e n d a e d o p r o d í g i o , a m i n h a m ã o , e s t e n d o - a devagar , pouso-a na tua f ron te . E um c la rão de sor r i so , len to , como o indício do dia. Alastra no teu rosto, e o braço paralisado e a perna suavesob a colcha branca. Ao fluido intenso da minha força, movendo-se nodespertar primordial do universo.- Levanta-te - digoo h , n ã o , n ã o d i g o . F i c a - t e a s s i m , n o e n t e n d i m e n t o s u r d o d e u m sorriso. Não digamos nada, enquanto a tarde quente imóvel, e os meuso lhos fa t igados de hor i zon te , debruço-me da varanda , a casa vaz ia , sonora de ausência, gostava bem de saber estar. Defendido de tudo, nai n t e i r e z a d e m i m . P o d e r r e s p e i t a r - m e n o s r e s t o s d o q u e s o u . E n t ã o m i n h a m ã e v o l t o u - m e d e v a g a r p a r a s i , i m p ô s - m e a s m ã o s s o b r e a cabeça. Depois subimos à enfermaria, ela estava encostada a almofadas,fez-me sinal para me dizer qualquer coisa.- Tu sabes o que ela disse?Estava uma tarde quente, os choupos imóveis no ar. Uma ave passoucomo um grito. O céu carbonizado.63XIE agora falta só a outra janela. È no extremo do corredor no andar decima. A passo lento como para retardar o fim. Vou pelo corredor, a casad e s e r t a , o a r m o r n o e o o d o r m o l e a b a f i o . M e s m o c o m a s j a n e l a s abertas, o cheiro a mofo dos recantos envelhecidos, selado opaco, cheiroí n t i m o a o q u e a p o d r e c e u . E é c o m o s e n o s o l h o s , n a b o c a , a impregnação do tempo e da morte. O soalho range sob os meus passos,c a m i n h o d e v a g a r . E o a s s o m b r o e o e n i g m a n a c a s a d e s e r t a , a interrogação do silêncio, a vertigem dos séculos subitamente erguidos àminha face. Quem vem ter comigo? mas é inútil, tia Luísa e a tia Joana,p a r a c o m p a n h i a , n o l i m i t e c e r r a d o d a m i n h a n u l i d a d e . A m e i o d o corredor, de um lado e do outro, o esquadriado das janelas, abrem-sep a r a o i n f i n i t o . S ã o o s c a m p o s l o n g í n q u o s , a m o n t a n h a , p l a c a d o s à d is tânc ia do meu o lhar . Torneados em vaz io , eu , a casa , e rgo-me ao espaço da minha solidão. Quedo-me um instante, olho do corredor paralá da janela ao fundo do quarto. Há um intervalo enorme entre a janelae a realidade, preencho-o com o alarme da minha pequenez. Uma vozs o b e i r r e a l , n o h a l o v e r t i g i n o s o d o m e u f i m . É a

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v o z a n ó n i m a d e outrora, de sempre. De nunca. Ressoa no ar aberto, ecoa no côncavo dem i m . N o e x t r e m o d o c o r r e d o r , a p o r t a f e c h a d a . E s t á p r e s a . R o d o a maçaneta com o trinco, forço-a com o joelho, os dois batentes unidos.Oscilam à pressão, bamboados - se rebento com a porta? Para cá e paralá, tento descolá-los, em manobra ritmada, para dentro e para fora, osdois batentes pegados sempre. Mas nem que rebente com os fechos. Atéq u e , u m g o l p e m a i s p r e c i s o . A p o r t a e s t a l a , a b r e - s e p a r a o q u a r t o obscuro, o outro batente a tremer. Silêncio. Entro medroso, travado de64prevenção, na decifração do insondável. A luz entra comigo, suspendo-me à porta, tudo imobilizado no fundo do tempo. Há um amontoadoconfuso de memória, mas sem recordações para a preencher. Memóriaafogada, memória intensa, o pó no limiar das eras. Uma voz fala, tentoouv i - la , sub t i l . No in te rs t í c io das co isas inv is íve is . Es ta lo de a tenção , i n d í c i o d o m i s t é r i o , n ã o a o u ç o . É p r e c i s o e s t a r d o l a d o d e l á , n a vertigem primordial - estou aqui, parado à porta, no limite da realidade.À l u z o b s c u r a d a s a l a d i s t i n g o s i n a i s , p r o c u r o d i s t i n g u i - l o s , s i n a i s dispersos e atropelados de um caminho onde já ninguém passa. Imóvelà p o r t a , d e q u e s e r v i u e s t e q u a r t o ? S a l a d e e s t a r , d o r m i a l i a l g u m a s vezes , sa la de Inverno , levan tada de ven to . A um can to , o es t rado dabrase i ra , o rebordo do buraco com a made i ra t i snada , sen tava-me lá . Quando levantavam a braseira para aquecer os lençóis. Sentava-me lá, omorno que lá f i cava . A bar ra de fe r ro de uma cama, encos tada a uma parede. Um irrigador partido, dependurado ainda, tia Luísa, quanto aintestinos, tinha os seus engarrafamentos. E mesmo o clister anual oumensal? limpar o sarro como se limpa o lixo acumulado. Um colchão defolhelho dobrado, um caneco sem asa, um bacio de louça - eram muitopesados os bacios, para a seriedade das funções. Santos encaixilhadospelas paredes, retratos incrustados em moldes de gesso, eu recortava-osà tesoura punha-os no fundo de um pra to , de uma t ravessa , de i tava- l h e s o g e s s o , o g e s s o e n d u r e c i a , f i c a v a m p r o n t o s p a r a d e p e n d u r a r . D e p o i s , a j a n e l a , a v a n ç o c a u t e l o s o , a j a n e l a e s t a v a p e r r a , o s f e c h o s soldados a ferrugem. Até que, como numa revelação. As portas abertaspara os lados, as vidraças, o espaço aberto para a lonjura. As oliveirasdescem o dec l i ve , v inhedos , pomares , a r ibe i ra ao fundo . O te r reno v o l t a a s u b i r u m p o u c o . E d e s ú b i t o , l á a o l o n g e , e n t r e m e a d o d e brancura, o cemitério. É longe, perde um pouco a credibilidade. Olho-o65com simpatia no vapor da distância, com um indistinto sinal de graça,i n c o m p r e e n s í v e l e a é r e o d e f l u i d e z . E é p r e c i s o u m e s f o r ç o d e i m a g i n a ç ã o p a r a i m p l a n t a r n e l e o m e u d e s t i n o m o r t a l . S i n a l d e c o n v e r g ê n c i a d e t o d o s o s c a m i n h o s d a v i d a , d o ó d i o , d o s o n h o , d a a n g ú s t i a , d o s t r i u n f o s - a l i . D o s a t r o p e l o s e m q u e s e d ã o e l e v a m c a n e l a d a s - u m

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p o u c o m e e n t r e t e n h o n u m f i l o s o f a r l i g e i r o . D a s conquistas, das derrotas, dos físicos poderosos de força e de esplendor,e d o s f í s i c o s e s t r o p i a d o s d e c o x e i o e d e m a r r e q u i c e - u m p o u c o m e entretenho. É uma filosofia fácil, a mais profunda. Com ela se ganhou op a r a í s o q u a n d o o h a v i a p a r a s e g a n h a r e s e c o n s t r u í r a m g r a n d e s c a t e d r a i s d o p e n s a r - o l h o e r r a n t e n a d i s p e r s ã o d o h o r i z o n t e . D o s tísicos, que morreram no que se chama a flor da vida e dos que suaramq u e s e f a r t a r a m p a r a m a n t e r e m u m c o r p o v i s t o s o c o m g i n á s t i c a e banhos frios e ódio aos farináceos, mas que também morreram que sefoderam - meu Deus. O homem é um ser tão extraordinário. O que eleinventa para ver se é eterno. Não apenas na eternidade da grandeza, aq u e e m o b r a e m o n u m e n t o e e m H i s t ó r i a s e f a b r i c a , m a s a i n d a e m d i m e n s ã o p e q u e n a e c o r r i q u e i r a , n u m c o r p o b e m t r a t a d o e p a r a d i g m á t i c o q u e a m o r t e n ã o v i e s s e c o d i l h a r . M a s v e m s e m p r e . Tapam-se todos os buracos de acesso à Natu reza para se cumpr i r , há sempre um que fica aberto.E e s t a v a e u n e s t a r e f l e x ã o m e d i t a t i v a , q u a n d o d e h o r i z o n t e a horizonte, é um brado de sinos de pólo a pólo do mundo, ouço-o, quemmorreu? É uma tarde de Inverno, o céu de cinza, quem esticou? Ponho-me a contar os toques, são dois para as mulheres, três para os homens,como compete à sua supremac ia macha, mas não chego a acabar de c o n t a r . P o r q u e n e s t e i n s t a n t e , a c a m p a i n h a d o s m o r t o s m a i s p e r t o , chego à varanda do nosso quarto, a que dá para a montanha. E logo no66caminho que vem dar ao portão, é uma massa escura de beatas, o padrede sobrepeliz a rezar e o sacristão de opa vermelha e cruz alçada - será opadre Parente? não pode ser, há quantos anos ele deve ter morrido, umcão uiva. É o Matraca, o meu cão. Arranjei-o para companhia, Deolindaé que mo trouxe.- Deolinda! Vá-me fechar esse cãoele uiva sempre, Tenho horror aos avisos da morte. Ser mortal, sim,mas devagar, ela foi fechá-lo na loja. E imprevistamente, alguém abriu oportão - é boa, vêm para cá. Venho rápido ao alto da escada, o marulharde passos mu l t ip l i ca -se à en t rada da casa , como um t ropear de ra tos p e l a n o i t e n o c o r r e d o r o u c o i s a a s s i m . E l o g o u m d e s v a i r a m e n t o d e gritos - não, não. Há realmente um choro que se distingue por sobre ot rope l de gen te , mas g r i tos não - é a Deo l inda . É uma mu lher ba ixa e r e d o n d a , a í u n s c i n q u e n t a a n o s , t r a t a v a - m e d a c a s a e d e o u t r a s n e c e s s i d a d e s , l á e s t á a c u m p r i r o s e u d e v e r d e c a r p i d e i r a . E s t á à cabeceira do caixão, acabrunhada de negro em xaile e lenço, no caixãoes tou eu . O lho-me com es tupe facção , n inguém me vê . A í es tás , po is ,es tend ido como o t raço de uma soma. Ou nem bem es tupe facção -a surpresa relativa de que estejas enfim estendido. Não estás mal. Maisvelho ainda, decerto, muito encolhido mirrado, no fato agora um tantol a r g o . E s c u s a s d e p e r g u n t a r a g o r a q u a l a ú l t i m a p a l a v r a . A q u e essencial decifração da vida toda, oh. Bem complicada trabalhosa a vida- é essa. A palavra difícil

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fundamental enigmática- Tu sabes o que a mãe disse?ensar i lhada na vozear ia in fe rna l - é essa . A boca cerz ida recos idare f lu ída - não levarás a den tadura? mas de ixa-me ver - te bem. É umatarde de Inverno , t raba lhe i -a a f r io e c inza para o teu f im verdade i ro ,deixa-me olhar-te bem. As mãos curtas de cera velha, bem feias. Saem-67te apon tam- te das mangas do casaco . Es tão pousadas uma na ou t ra eentrelaçado entrelaçado a elas - mas como?- Deolinda!mas Deolinda não me ouve. Entrelaçado a elas, emaranhado ao meuateísmo evoluído e majoritário - um terço. Tem a sua piada, deixa-mer i r . A recompensa do gozo que a inda lhe de i? ó Deo l inda . De ixa-me s o r r i r n o s i n t e r v a l o s d a m i n h a i r r e l i g i o s i d a d e a d u l t a . O c ã o u i v a s e m p r e , m a i s d i s c r e t o , c o m e d u c a ç ã o . M a s u i v a . T o d a a m i n h a f a c e re t ra ída de s isudez , com um pouco de ressen t imento e desprezo por isto tudo, a face. Mas ainda se notam as bossas com que foste gente. Abossa do pensar que es tá a l i , ma is cá para a f ren te , sob u rna rés t ia do teu cabelo escasso. A bossa do sentir, com várias ramificações laterais. Ea do sonhar com que fabr i cas te o fu tu ro que não houve , lá ma is para t r á s , p a r a o s í t i o o n d e a v i d a t e d a v a c a r o l a d a s . E a b o s s a d e s e r i m p o r t a n t e e d e t e r v a i d a d e c o m q u e f a b r i c a s t e o s c a t á l o g o s d a Biblioteca Geral e recebeste as homenagens do Pinto que lá está aindade papel na mão à espera de ter a palavra num dos próximos capítulos.E a bossa de conquistador das empregadas da Biblioteca Geral que seriam de ti e só to davam se tinham algum benefício. E a de conquistadord a D e o l i n d a a q u e m e s p r e i t a v a s a s p e r n a s a l v a s e r o l i ç a s q u a n d o limpava o chão da casa. E a bossa de chefe de família que nunca foste enão teve ap l i cação . E a da po l í t i ca , da soc iab i l i dade , da s impat ia , que t a m b é m n ã o . E a d a d e s g r a ç a , q u e s i m . L á e s t ã o t o d a s a i n d a b e m v i s í v e i s , v ê - s e b e m q u e v i v e s t e c o m m u i t a i n t e n s i d a d e . A g o r a a D e o l i n d a f a l a d a s t u a s m i s é r i a s f í s i c a s , n ã o d e v e s o u v i r . T o m o u o governo da casa, é esse o seu direito, é melhor não ouvires- Co i tad inho , para o f im já nem sus t inha as aguas . E surdo . Mu i to surdo.68é melhor. E não eram só as águas, vai dizer- Quantas vezes eu não tinha de o lavar.A s c o d e m i m p r ó p r i o , r e p u g n â n c i a v i l . A í e s t á s . R e l e m b r o - t e n a cama, era lá o teu sítio de seres gente, nos restos de o seres. Toda a tuavida complicada inútil. Aí. Resumida ressequida encorrilhada - é umat a r d e d e I n v e r n o . A l i . À s v e z e s j á n e m t e l e v a n t a v a s . N o I n v e r n o sobretudo, que é o tempo de se encolher tudo até à essência de nós. Umtanto taralhouco, entanguido, a Deolinda trazia-te o caldo - e como estáo tempo?- Está um dia de louvar a Deusmas tu ficavas no choco.- Vá-me calar esse cão!E mesmo no Verão, uma manta aos pés, na cadeira. Descia a ti o frioda matéria morta, foras perdendo pela vida o teu calor humano - e queé que pensavas? Ideias erradias como pirilampos no ar, as coisas ao pé:Os frascos de remédios, as moscas, o penico fora de mão. E as ideias quetiveste outrora, farrapos

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incompreensíveis. O tecido uno que foi, agorac h e i o d e b u r a c o s . E a s q u e s t õ e s q u e t e a q u e c e r a m - r e s t o s e s p a r s o s i n c o n s e q u e n t e s . C o m o e c o s d e p a l a v r a s l o n g í n q u a s , o c ã o s e m p r e , embate uma na parede , ou t ras ba tem nou t ro s í t i o , não se ouvem. Ovento às vagas - nou t ro s í t i o , e às vezes as pessoas . As que amaste e tiveram a vida contigo - onde estão? As vezes uma imagem, uma face.Demoram-se . P lác idas imóve is f r ias . Ténues f lu idas . F icam. O o lhar vago, fitam-te. O olhar trémulo, fitá-las - quem são? Reflexo longínquod o a m o r , d o ó d i o , d a l o u c u r a - q u e m s ã o ? E s t á s p a r a c á d e t o d a a p o s s i b i l i d a d e d e s e r e s p a r a l á - o o l h a r s u m i d o r a q u í t i c o p a r a l í t i c o . Estás só, mais só do que se estivesses só, montículo dos dejectos do queés - mas tenho de i r i ndo . O cor te jo põe-se em mov imento , tens de i r69indo . Vou a t rás , à f ren te vou eu no ca ixo te de p inho . Não vou poucoacompanhado, temos de confessar. Para quem já não era, não vou mal.Ve lhas sórd idas de negro , um ou ou t ro garo to pe la fes ta , não vou . À frente vai o padre, o sacristão com a cruz, um miúdo com a caldeirinha.É uma tarde de Inverno, nuvens ao alto pelos montes. O céu grosso. Ed e v e z e m q u a n d o , l e v e a g u d í s s i m o . O v e n t o . V e m d a s z o n a s primordiais estéreis, de onde a vida não começou. Ouço-o longínquo,resp i ração do vaz io , g rava-me a face da sua es te r i l i dade . De vez emq u a n d o o c o r t e j o p á r a , p a r o e u t a m b é m . O p a d r e v i r a -s e p a r a t r á s , e x o r c i s m a - m e d e á g u a b e n t a . D e p o i s l a n ç a u m p a d r e - n o s s o e u m murmúrio alastra no encovado de todas as bocas velhas, depois segue.Rezo também, não prejudica, depois sigo. O cemitério é longe, há tempode se med i ta r que o homem e mor ta l . j á vem nos l i v ros , não se sabe .Gente às vezes nas bermas , pára a ver o cor te jo e de uma vez de i um berro- O homem é mortal!O cortejo parou, todas as cabeças das velhas se voltaram para mim,os olhos todos em fuzilaria. Depois o cortejo retomou o andamento como escândalo entremeado à reza, ou o espanto, a reflexão compadecidas o b r e a l o u c u r a , o h o m e m n ã o é m o r t a l . Q u a n d o c h e g a m o s a o cemi té r io , uma pro l i fe ração de c ruzes , de mármore b ranco - onde é o teu lugar? Era num talhão novo, ainda. pouco frequentado. Tia Joana etia Luísa, na parte velha, num terreno provisório marginado de pedra,estavam lá os pais e os avós, outros parentes, numa sarrabulhada ósseade família. Devia haver já osso a mais, não fiquei lá. Estou bem assim,n u m a c o v a s o l i p s i s t a , t o d o e u c e r r a d o n a p r i v a t i v i d a d e d e m i m . O coveiro ao pé da cova aberta, as mãos apoiadas ao cabo da pá, prontotodo e le a fazer -me desaparecer a m inha nu l idade- Um ven to la rgo ,70vindo das origens do cosmos, passava em vaga de augúrio. Ao fundo amontanha, plácida de eternidade. Abriram ainda o caixão, quero olhar-me ainda. Lá estou. Fechado de resignação, gosto de te ver assim. Maisminúsculo talvez, retraído a um fragmento de estrume. Em todo o

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caso,feliz. Sem prolongamentos de sonho, projectos, memórias - feliz. Semqua lquer ag i tação que te f i zesse remexer para lá donde já não mexes .Feliz. A felicidade é isso, estar quieto nos limites em que se está a dizerque não ao que es tá para a lém. Ser -se todo onde se é e não onde não , gosto bem de te ver. O padre abre o livro em que troca impressões como A l t í s s i m o s o b r e t i n ã o o u v e s . N ã o o u ç a s . E m q u e s e p e d e compreensão para ti no além, imagina, tu que gramaste uma pastilha etan to no aquém. Depo is , o s i lênc io . Só o ven to cor r i o seu te r ro r i smo para as crianças. Ri-te por dentro,, com a tua boca sem. dentadura. Porf im o padre fechou o l i v ro e toda a gen te desandou, O cove i ro cusp iu nas mãos. Era a vez dele. Depois de uma vida inteira e da imensidaded e c o i s a s c o m q u e s e e n c h e u m a v i d a . D e p o i s d o q u e r e a l i z a s t e e p e n s a s t e e s o f r e s t e e t e a l e g r a s t e e f o s t e m u l t i p l i c a d a m e n t e e m c o l a b o r a ç ã o c o m o u n i v e r s o , d e p o i s d o l a t i m e m q u e o p a d r e t e embrulhou aprontou para o despacho. Era a vez dele, cuspinhou nasmãos, cheio de profissionalidade enérgica. Toda a gente virou costas eraa a l t u r a d o t r a b a l h o d a s e r v i d ã o , c o m o d e p o i s d e u m b a n q u e t e a lavagem da louça com as marcas da nossa imundície, como depois det o d a a f e s t a , m e s m o a d a r e t r e t e q u e é a f e s t a m a i o r , c h e i a d e proclamações auditivas - a limpeza do que ficámos em lixeira. Toda agente virou costas, não queria ver. Eu quis. Agora era uma questão defossa e despejo - ninguém quis, eu fiquei. Na tarde abandonada de frio earidez. A terra cai fofa às pazadas, o homem afadigado. Estou eu e ele eeu que já não estou. Na tarde grande, raiada imensa de horizonte. Na71terra final dos mortos. Minha vocação humana. Rodo em torno os meuso l h o s n a i m e n s i d ã o d a d i s t â n c i a , p e q u e n o , e u , c e n t r o d o m u n d o . Sentada enorme a montanha, flocos lentos de nuvens flutuam-lhe noscumes, silêncio. A palavra final. O coveiro arma um pequeno túmulo deterra ao longo da sepultura, alisa-a com a pá até à perfeição, Silêncio. Apalavra do fim. Um vento que vem dos começos do mundo.72XIIE v i n h a e u a i n d a c o m u n s r e s t o s d e m e d i t a ç ã o f u n é r e a q u a n d o a lguém se me pôs a par . É boa . Sou eu , ou t ra vez , conheço-me, mas agora muito mais novo. A pele luzida de juventude, o cabelo luzido debr i lhan t ina . Gos te i de me ver . Não mu i to . Aque le cabe lo à « tango», empastado de pomada. E o nó da gravata muito largo como almofadad o s a n d o r e i r o s , a q u e l a e m q u e p r e g a m o s a l f i n e t e s c o m q u e v ã o armando os andores. E a calça à marujo, em boca de sino, o casaquinhocurto e de trespasse, muito apertado à cinta. Não gostei muito. Estavaum dia de Inverno, não tinha frio, ele, sem sobretudo, todo insolente de juventude.- Pau lo - d igo- lhe no repen t ino da surp resa , quando não há nada ainda para dizer.Depo is é que repare i , enquanto me ia recompondo. Na cabeça , na gravata, no cabelo

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envernizado. E no corpo bem feito.- Como é que não tens frio?eu, sepulto em agasalhos, cachecol flanelas sobretudo- D e q u e t e m p o é q u e t u v e n s ? D e q u e i d a d e ? c a q u é c t i c o e u , ressequ ido , um cer to aper to inopor tuno na bex iga . Mas não hav ia a l i sítio, aguentei - donde vens?- Vê se adivinhascom um leve remexer de ombros , em d ispon ib i l i dade p ron ta . Não sei. Do último ano de Penalva. Dos primeiros da Universidade - não sei.A m o d a q u e s e u s a v a e n t ã o , d e i x a - m e v e r . F i c o a e n t e n d ê - l o u m m o m e n t o , e l e r i a . T e n s o r i s o d a e s t u p i d e z , t e n s a b a r r i g a c h e i a d e f u t u r o , - d e i x a - m e o l h a r - q u a n d o é q u e e u e s t a v a e m p a n t u r r a d o d e73fu tu ro? não sou capaz . E le en tão ace le rou o passo , eu a f l i t o , che io deb r ô n q u i o s . P a r o u à f r e n t e , a e s p e r a r p o r m i m , e u a t r a p a l h a d o d a s articulações. Ele sorria. Teve mesmo uma palavra compreensiva do altoda sua estupidez juvenil:- Deve ser chata a velhice. E como é que conseguiste morrer? Como éque se consegue?e eu falei-lhe da mãe, a exemplificar - já se não lembrava? e ele ficoumuito sério.- Coitada da mãeficou muito sério. Depois puxou de um cigarro, estendeu o maço aoferecer, a minha bronquite disse que não. E logo se pôs a esfumaçar,s a c u d i a a c a b e ç a a i d e i a s p a r v a s , c u s p i n h a v a p a r a o s l a d o s c o m desprezo e despachado.- Fiz o liceu - disse. - Entrei para a Universidade. já não estás pois emPenalva.- Fiz o liceu.E imed ia tamente - meu Deus , como é que a mor te pode ser uma - f i cção? como é que a v ida pode ser uma ev idênc ia , sem um in te rva lo p a r a n ã o s e r ? E i m e d i a t a m e n t e , q u a n t a c o i s a r i s o n h a e i n o c e n t e e ridícula? Contava histórias de professores. A do Pinguinhas que davab o a s n o t a s s o b a m e a ç a d e p o r r a d a . A d o M o c a q u e s ó c h u m b a v a o s a l u n o s c o m n o v e s . A d o P n e u F u r a d o q u e d a v a t r a q u e s n a s a u l a s . Contava. Estava uma tarde triste.-- Fiz o liceu. Fizemos a Festa de Despedida.Imagina.- Fiz a letra para o hino.- A letra?- Pois. Não saiu mal. Versos?74Po is . Às vezes faço . O Subs tan t i vo Ep iceno , que e ra o p ro fessor deportuguês, uma vez leu. Não achou mal.Como é que?- Posso-te dizer a primeira estrofe, sei-a de cor. Sei a letra toda de cor.Posso-te dizer acomo é que? «Adeus cidade» - começou a dizer sem lhe pedir. Comoé que pode ex is t i r a a r te na tua imbec i l i dade? Mesmo a a r te imbec i l?« A d e u s c i d a d e c o m q u e s a u d a d e v a m o s p a r t i r . » T i n h a p a r a d o n a e s t r a d a , e u o l h a v a n e l e u m b i c h o d e u m a e s p é c i e j á e x t i n t a . « D e t i l evamos nos corações as ma is sen t idas recordações para o porv i r , - esubitamente, que vontade por dentro de chorar. Olho-o ainda, estamosp a r a d o s u m d i a n t e d o o u t r o , i n c o m p r e e n s í v e i s a b s u r d o s , n a t a r d e obscura imóvel.- Tens visto a Sandra?- Quem é a Sandra?- Não a tens v is to? Uma rapar iga lou ra , os o lhos azu is , usava umcasaco de malha. Não tens?e ele cuspinhou para os lados- N ã o c o n h e ç o . C o n h e c i f o i a P a u l a , a D o r a , a I n ê s , t o d o o pequename. Deves estar a fazer

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confusão.- Era loura.Cusp inhou ou t ra vez - con fusão . Conhec ia todo o garo tame, t i nhauma sor te danada com e las - hav ia a í t rapa lhada . Sandra? Só se fosse u m c a n h ã o z i t o r a m e l a d o , a n d a v a n o q u i n t o a n o , b a t i a - s e indecentemente com ele. Mas não em loura. Era ruiva. Com sardas.- Loura.- Sandra loura? Havia uma loura que era a Albertina. Namorava como Zeca, um tipo da Abrunheira.75- E como estava o senhor Paixão?- Estava bom. Quando vim embora, estava a comer lulas. É o homemque melhor sabe comer em Penalvana ta rde escura de nuvens - es tava uma ta rde quen te . O lho-a pe la jane la , o cemi té r io m inúscu lo ao longe . E de novo , v indo do campo -meu Deus. Era um canto grande como o mundo. E triste. Torrentes degerações , passam, o can to f i ca . Como ondu lação pe las águas . F ica e o m e u p e i t o s o e r g u e - s e d e u m a e m o ç ã o o c u l t a a b s u r d a . C h o r o p a r a d e n t r o d e m i m - e t o d a v i a . É u m c a n t o a l e g r e , d e t r i u n f o . S o b r e a misér ia a fome a esc rav idão . É um can to ingénuo e puro - «ó minhaamora madura, quem foi que te amadurou». Como um sorriso infantilentre ruínas. « Foi o sol e mais a lua e o calor que ela apanhou» - entre oresto de uma praga que passou. Subitamente, porém,- Paulo!quem me chama? Debruço-me da janela - ah, és tu ainda?- Paulo!o lho-me lá em ba ixo sou eu a inda . Es tou em mangas de camisa , a tarde sufoca de calor, estou sentado na borda do tanque, vejo-me cá decima da janela.- Não te fa le i do Pacheco , do Manaças e do Mi randa . Não queressaber?Estou mais jovem, desembaraçado. Não apenas na disponibilidadereactiva mas no que gim em energia por dentro.- O Miranda anda a escrever um romance, chama-seO Cristo Falhado.É muito contra os padres.- O romance?- O Miranda. Um dia pegou-se contra o Manaças que é muito reaça.Agora fuma cachimbo, tem o queixo muito saído, não te lembras?76na tarde imensa de horizontes, meu olhar de perdão. Perdão à vida,a o s s o n h o s c o m q u e f u i d e f u t u r o , n o m i s t é r i o c o m q u e f u i d e intetrogação.- O Pacheco continua tarado. Sabes a última dele?- E tu?- Estou porreiro. Vou este ano para a Universidade. E às vezes ja nãovou à missa. Olha se a tia Luísa soubesse.- Es tá lá ba ixo . Es tá parada à máqu ina de cos tu ra . Tem um lenço lpara coser. Não se moven a t a r d e q u e n t e d e A g o s t o . E m b a i x o , e n t r e o s r e s t o s d e p l a n t a s s e c a s , o t a n q u e d e l a v a r . E s t á s e c o . H a v i a p o r c i m a u m t o l d o d e g l i c ín ias , um per fume in tenso de Pr imavera . Enroscara -se em cordasg r o s s a s n o s v a r õ e s d e f e r r o , d e r r a m a v a a s u a s o m b r a n a s á g u a s trémulas do tanque. Está seco, o fundo coberto de lixo. Os varões tortos.A inda enroscados dos ramos. O lho-o in tensamente - n inguém. Só o rasto da memória que quer falar, por trás das coisas visíveis. De vez emquando, bate-me na face, uma lufada de ar quente sopra não sei donde.A o l o n g e , o c e m i t é r i o , t r e m u l a e m c h a m a s n a s b r e v e s m a n c h a s d e brancura. Vêem-se os

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ciprestes, esguios como gritos, intervalam-se aomármore dos jazigos, à multiplicação das cruzes, depois é o sem-fim.Esbate-se em cores surdas, na dissolução da distância, o sem-fim. Matas,g ies ta is , te r ras lav radas na d ispersão aérea do meu o lhar . Es tou só . É uma tarde de Agosto.77XIIIE acho que é a altura de o Pinto enfim falar - e vou descendo para oandar de baixo. Devia abrir também as lojas, ver ao menos o que lá háde mim. Desço à sala de jantar, e que é que hei-de fazer? não tenho nadaa fazer . Tenho de i r chamar a Deo l inda , tenho apenas de a r rumar asminhas coisas, que não chegam a ser coisas, que e que tens a arrumar?está tudo ainda por vir. A casa abre-se para todos os lados, entra por elaà von tade todo o a r quen te da ta rde , os rumores long ínquos da te r ra . Sento-me na sala de jantar, num sofá frente à varanda, enquanto o Pintopigarreia de inquietação. Eu estou em pé, as mãos apoiadas no tampoda secretária, enquanto me vou sentando num sofá.- Excelentíssimo Senhor Director. Vai Vossa Excelência abandonar ad i r e c ç ã o d e s t a c a s a , d e p o i s d e a l g u m a s d e z e n a s d e a n o s n o d e s e m - penho exempla r da missão que lhe fo i con f iada . Para quem como eu teve o privilégiosão trinta e sete empregados - terão vindo todos? a ver se os conto.Sandra não veio. Nem Xana. Era da cidade. Sandra, um dia eu disse-lheque depois de nos aposentarmos- Que vamos fazer na aldeia? Olhar as couves?E r a d a c i d a d e . L á f i c o u . D e v e s a g o r a o u v i r o t r á f e g o n a c o v a , n a convivência mecânica do estrépito dos carros,e e n q u a n t o o p e n s o , P i n t o f i c a a d i z e r q u e p a r a q u e m t e v e o «privilégio», fica de boca redonda, a dizer a última sílaba, vejo-o. Vejotoda a assistência imóvel, o Pinto com a cara toda comida de barbas eno cen t ro o o r i f í c io da boca na p ronúnc ia da ú l t ima s í laba . Como um instantâneo, fixado naquela posição, tenho tanto que pensar, enquanto a78tarde lá fora, é uma tarde espessa de calor. Tenho tanto que pensar, emS a n d r a , m i n h a q u e r i d a , e e m X a n a , e l a h á - d e v i r t e r c o m i g o , t a l v e z a i n d a n e s t e c a p í t u l o e a n t e s d e e u m e a p o s e n t a r , v a m o s t e r u m a conversa difícil, sou tão do passado, eu, ela é tão do futuro, minha filha.E mesmo, pensar nesta coisa extraordinariamente sublime e rudimentar- a fala, enquanto o Pinto imóvel, sempre, a boca em, cu de galinha, àe s p e r a . P o r q u e n ó s n ã o r e f l e c t i m o s . A f a l a . A t r a n s u b s t a n c i a ç ã o d a m a t é r i a , d a s c o i s a s . A q u a n t i d a d e e s p a n t o s a d e m ú s c u l o s , d e instrumentos vocais, para dizer esta coisa simples que é por exemplo«cu». A quantidade espantosa de movimentos, de adaptações. Sem falar já da trapalhada dos comandos cerebrais. Ou dos arranjos emotivos queacompanham a operação , com o seu t raba lho nervoso que é regu lado pela educação que se teve e a religião que nos deram, e as amizades e osód ios e as inc l inações sangu íneas . Ou do es fo rço enorme para dar ao fole que faz vibrar as palhetas dos sons. E depois, falar é tão vagaroso.Dizer por exemplo «está uma

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tarde pavorosa de calor» leva um tempoimenso a despachar. A gente diz a primeira palavra, que leva já muitot e m p o , e t e m d e e s p e r a r p e l a s e g u n d a q u e t a m b é m , e a i n d a p e l a terceira, até que já não haja mais nenhuma. Mas o calor é rápido, sente-se logo . E esc rever a inda é ma is longo e le r é ma is t raba lhoso . Há os caracteres que se desenham, e há depois a sua transposição para os sonsq u e q u e r e m d i z e r , e h á d e p o i s t o d o u m c o m p l i c a d o t r a b a l h o d o s m e c a n i s m o s d a i n t e l i g ê n c i a m e m ó r i a i m a g i n a ç ã o - u m a é t ã o rudimentar. Um dia Xana fez-me uma prelecção, mas tenho primeiro deouvir o Pinto. Espera, não o ouço ainda.- Xana!- Diz.- Podes vir falar comigo ainda neste capítulo?79- Sim.- Mas não depois da homenagem em que o Pinto está a orar. Ficouparado no «o» de «pr i v i l ég io» . Tem o o r i f í c io da boca aber to en t re o c h u m a ç o d a s b a r b a s p r e t a s . T e m a b o c a p a r a d a e m c u d e g a l i n h a . Depois da homenagem quero ficar só.Só. Aqui deambulando pelos corredores da Biblioteca, coalhados atéao tecto de livros mortos, na acumulação incansavel do saber morto dossécu los . Es ta lam-me os passos no mosa ico , ecoam-me pavorosos noe s p a ç o d a v e r t i g e m . U m a c l a r i d a d e b r e v e d e s c e d o a l t o d e u m a clarabóia, resvala pelas estantes, transcende-me ao halo do enigma e doaugúr io . Es tou SO, os passos re tumbam. E is que de uma v ida no seu l i m i t e , a m u l h e r m o r t a , m i n h a f i l h a o n d e ? o s a l d o d o s a b e r q u e acumulei, das ideias multiplicadas, emaranhadas de discórdia, perdidasde uma a uma, retiradas da circulação como as modas e as moedas, doque amei e já não amo, dos sonhos que sonhei e não foram realidade ouforam realidade e todavia não foram porque a realização de um sonho ésó o sonho dessa rea l i zação , do que devo te r quer ido com o que não tive, com insónias subsequentes e abundância de lágrimas internas atéao a fogamento da a lma e de que Ia me não lembro , e de a legr ias em delírio que também já não recordo, e de risos e gritos e amizades e ódiosaté à morte e morreram antes disso - eis que. Hora final de mim, silênciof i n a l d o h o m e m , t ú m u l o d o s a b e r d o s s é c u l o s , 6 e s p e r a n ç a m o r t a l humana. Obs t inada inqu ie tação , quan tas lu tas , guer ras de mor te por uma palavra a mais numa lei ou a menos, uma distinção subtilíssima deduas ide ias que se não d is t inguem, uma v í rgu la que e ra um pon to e vírgula, um ponto que eram três para se dizer o que se não queria dizer.Guerras, tumultos, condenações à morte por uma lei que nos condenoudepois ao contrário, um turbilhão de falatório pelas eras para se provar80o que existia, porque se não existisse ninguém sabia que existia para sepoder p rovar , e para se p rovar que ex is te o que não ex is te senão nanossa vontade, porque se não existisse aí também se não podia provarp a r a e x i s t i r e m n ó s e n o s o u t r o s - m e u s p a s s o s l e n t o s p o r e n t r e a s c a t a c u m b a s d e u m s a b e r m o r t o , e c o a d o s a o s i l ê n c i o d e u m m u n d o lunar. Foi quando Xana enfim, vinha procurar-me porquê?- Por nada . Passe i Por aqu i ,

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l embre i -me de en t ra r . Es tou sen tado àsecre tá r ia , a B ib l io teca fechou . Mas não é a inda o d ia da homenagem pela minha aposentação, há ainda várias coisas a acontecer antes dissoquando delas me lembrar, estou sentado num sofá diante da varandaaber ta , a montanha desdobrada lá ao fundo , é uma ta rde de Agos to ,p a r a d a d e c a l o r , c o m o j á d i s s e e n ã o h á m a l e m r e p e t i r . T e n h o a s e c r e t á r i a c h e i a d e p a p e i s , a n d o a o r g a n i z a r u m c a t á l o g o d e manuscritos do século XVII. Xana faz a ronda da mesa, folheia algunslivros com displicência, corre-lhe as folhas sem ler como a um baralhode cartas, depois senta-se. Depois acende um cigarro. Sinto que vamost e r u m a c o n v e r s a e x c i t a d a p r o f u n d a . T o m a u m v o l u m e , o c i g a r r o pendente a um can to da boca , não gos to desse teu a r fad is ta , m inha filha.E u m v o l u m e d a s « O b r a s d e H o r á c i o p r í n c i p e d o s p o e t a s l a t i n o s líricos, com o entendimento literal & construição Portuguesa, ornadasd e h u m i n d e x c o p i o s o d a s h i s t ó r i a s , & F á b u l a s c o n t e u d a s n e l a s » d e M.D.C. LXXXI. Lê: ,Ne credas, não creias, ó amigo Lollio,forte interituraque acaso hão-de acabarVerbaas pa lav ras ou versos ,quae loquor asquaes eu fallo,socianda cor d is d ignas de se porem à v io la . » Lê em voz a l t a , e u c o p i o c o m a t e n ç ã o o t í t u l o d e u n s v e r s o s g l o r i o s o s a M a r i a imperadora dos Mares em metáfora de mareação.81- T u n ã o t e s e n t e s u m a m ú m i a ? Q u a n d o a c o r d a s p e l a m a n h ã n ã o sen tes a a lma num in - fó l io? As ide ias , mesmo as domést i cas , não te cheiram a mofo?De janelas abertas, a aragem passa leve pela casa toda, traz ainda dosrecantos o odor das eras mortas. O silêncio pesa sobre a terra como uma u g ú r i o , a l u z é i n t e n s a c o m o u m a t r e v a . O l h o - a d e s l u m b r a d o a t é à cegue i ra , quase esquec ido de mim. A mor te a las t ra à m inha vo l ta nos i lênc io , sobe pe lo meu corpo a té aos meus o lhos parados . Que é que quer dizer a vida e a vertigem do seu milagre? Onde se gera o espanto eo arrepio do seu alarme? Estou só, esvaziado de tudo. Ideias, projectos,e a s s ú b i t a s r e v e l a ç õ e s , e o m u n d o , e a v i s ã o o r i g i n a l d a s c o i s a s , a r e c u p e r a ç ã o d o s e u s e r d e i n í c i o m e s m o d e p o i s d e j á s a b i d a s , e o encan tamento da be leza p r imord ia l onde es tão? Só , na nu l idade de mim, na frieza linear e vegetativa. E todavia, por vezes: que é que vaimorrer de mim na morte? Por vezes, esta vontade inteira de recuperar os e n t i r . R e c u p e r a r a s e v i d ê n c i a s q u e d e s ú b i t o m e i l u m i n a r a m . Reentender a vida e a sua fulguração. Recuperar-me na fúria explosivad e s e r , n o r e a p a r e c i m e n t o d a i l u m i n a ç ã o d e m i m , d a a f i r m a ç ã o c a t e g ó r i c a d a m i n h a p r e s e n ç a a o m u n d o , d a n e c e s s i d a d e

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b r u t a , endemoninhada, do meu ser eterno. Não sou capaz. Ou de recuperar opânico da revelação da vida, o abalo como um soco no baixo-ventre, asu focação a o lhos exorb i tados , o g r i to hor r í ve l en ta lado na gargan ta , frente à grande noite de pedra. Entender, entender. Esmigalhar o crânioc o n t r a o m u r o , e n t e n d e r . N ã o q u e r o j á e n t e n d e r - p a r a q u e h á s - d e q u e r e r e n t e n d e r ? O u s e n t i r -m e e s c o a d o d e a b i s m o n o s i l ê n c i o d o s grandes espaços, no turbilhão do sem-fim e do incompreensível. Estouquedo, recos tado no meu l im i te , enco lho os ombros sem os enco lher . U m m o n t í c u l o d e p e l e s e n c a r q u i l h a d a s - q u e r e s t a e m m i m d e u m82homem para dar à te r ra em d ign idade? em va lo r que me preencha oe s p a ç o d a m i n h a m o r t e ? Q u e m m o r r e e m m i m p a r a s e d i z e r q u e alguém morreu? Olho a luz, as coisas, um cão que vai passando na rua,olho as cores. E a sua realidade é a sua superfície como a pele do que éo c o . R e c u p e r a r a v i r g i n d a d e d e s e r . F i t o v i v a c í s s i 6 0 , a u n i o l h a r d e dente rilhado, o que me parece uma mancha de flores azuis, em baixo,no jardim e é talvez um pedaço de pano. A cor o mundo está tão cheiod e u m a b e l e z a d e o r i g e m . U m a c o r . O l h o o a z u l d o c é u , l i m p o d a s nuvens , de tudo que lhe amor tece a v io lênc ia . F i to -o só a e le , no seu absoluto de ser. É uma cor nítida, por dentro, viva luminosa intensa dev i t a l i d a d e . U n i c i d a d e d e s l u m b r a n t e - c o m o u m p i n t o r , p e n s o , s e r á a s s i m q u e e l e a v ê ? ú n i c a . E s p l e n d o r o s a . C o m a f o r ç a d a t e r r a reben tando-a abr indo-a como a uma mús ica que vem de uma cordap e r c u t i d a . É u m a c o r f e i t a s ó d e u m a l u z d e d e n t r o , v i o l e n t a m e n t e marcada, diferente, com a força original de uma original criação. Olho-aintensamente, os meus olhos tremem de deslumbramento. Há um azulnascido no mundo, uma cor prodigiosa de invenção, um milagre de luzd i fe ren te . Es ta la - lhe a luminos idade na reve lação da pe le , b r i l ha semest r idênc ia , des tacada de quan to à vo l ta quer também ex is t i r . Deus c r i o u o a z u l n e s t e i n s t a n t e e e u a s s i s t o f u l m i n a d o d e s t e p r o d í g i o terrível. Uma cor. Um modo de a luz ser em maneira mais terrena, paraos limites de eu ser humano. Palpo o azul com os meus olhos, afloro-oem imaginação, assisto ao constante da sua substância terna que vem ded e n t r o d o s e u m i s t é r i o i n v i s í v e l . O s m e u s o l h o s d i l a t a m - s e n o envolvimento do milagre, da realização fantástica de ma revelação. Oa z u l . N ã o a f l o r e o c é u e a t e m q u e o s f e z s e r . S ó a c o r n o s e u m o d o v i o l e n t o d e m e e n c h e r o s o l h o s , o s f u n d i r à s u a i n t r í n s e c a v i b r a ç ã o luminosa, os transfigurar na sua substância interna e ser com ela a sua83aparição. Olho ainda um momento, mas o instante da revelação passou.São umas flores no jardim, à entrada do portão, banais, normalizadas,sem uma interrogação na um Profundeza. Perto, as folhas dos chouposes t remecem brevemente a a ragem quente que passa .

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Olho a inda , os meus olhos ardem de atenção, um trémulo de chamas ou de lágrimas. Omi lagre ex is te , oh , e o cansaço - que é que va i con t igo a en te r ra r? Um maço de peles encarquilhadas- Tu não te sentes uma múmia?minha filha, mas não é disso que ela &Ia- Um montículo de lixo quese esqueceu. Mas acho que é enfim a altura de o Pinto falar.84XIVXana, porém, tenho de arrumar a minha conversa com ela- Não sentes de manhã a alma num in-fólio?arrumar duas ideias, pertenciam ao outro capítulo, agora tem de ser,enquanto o lho à vo l ta da sa la , uns f rescos na parede , lembro-me, em pequeno, veio pintá-los o José Joaquim que era de Figueiró. E o relógiode pêndu lo , parado nas t rês e me ia . E os vár ios quadros nas paredes . Há um, belo e doce, fixei-o desde a infância, mas Xana está à espera, nãot e n h o t e m p o d e f a l a r d e l e t a n t a g e n t e à m i n h a e s p e r a , e c o i s a s q u e acontecem e coisas que eu fui sendo, para ser agora tudo no balanceard a m e m ó r i a , i n s t a n t â n e o f u l g o r , e n a d a d e i x a r d e m i m q u a n d o o silêncio me cobrir. Tenho a tarde toda para cumprir, tenho de ir chamara Deo l inda , o m iúdo não a te r ia av isado? tenho de . No despegar demim, na abdicação de mim até ao estrume, no revolutear da memóriac o m o u m p o e n t e - d e i x e m - m e e s t a r . X a n a e n t r a s e m a v i s a r , j á a conhecem, naturalmente, senta-se num sofá em frente, olha em volta osm u r o s d o g a b i n e t e . L i v r o s , q u a d r o s , l i v r o s . D u a s g r a n d e s j a n e l a s descem do a l to do tec to a té ao chão , a luz coa-se , pá l ida , na renda de cortinados.- Passei aqui por acaso, entrei só para ter ver.- E vieste só.- Vim só. Tinha um trabalho aqui perto para o jornal.L á e s t a v a d e g r a v a d o r a o o m b r o c o m o s a c o d e t u r i s t a . A l g u m inquér i to , repor tagem. Minha f i l ha . E todav ia desde aque la ta rde de Março. Tu fazias vinte anos nesse dia. Não quero lembrar, agora não.S u b i t a m e n t e , o m u n d o i n t e i r o d e p e r m e i o , t u p e r d i d a l o n g e ,85d e s a p a r e c i d a , j á n ã o m e e r a s n a d a . S o f r i . T a n t o . E t u a m ã e - S a n d r a vibrou toda de cólera reprimida. Pequena, vivíssima, os olhos vidrados.- Tu é que tiveste a culpa! Tu é que tiveste!foi uma noite horrível! Saí à toa pela cidade, ah, se te encontrasse. Sete vislumbrasse numa esquina, num café, numa rua solitária. Tua mãef i c o u . V i m e n c o n t r á - l a s e n t a d a n u m s o f á . F u m a v a , o u v i a m ú s i c a . Fulminantemente, a vida inteira recuou diante de nós. Um vazio imensosem ti, como se tivesses morrido há muito tempo. Entro na sala, sento-me também sem dizer nada. Acendo um cigarro, ouço a música. E tudofoi calmo e triste e definitivo como o erguer da mão da noite.- Quando te aposentas?Displicente, falando de lado enquanto sacode a cinza do cigarro. Masnão t inha sobrancer ia na cara , t i nha sempre só um sor r i so . E ra a l ta ,minha filha. Alta e magra, uma vergôntea dura e flexível, mais alta doque eu . E sempre um sor r i so de água , t rans lúc ida na boca e no o lhar . Podia dizer coisas horríveis. Mas sempre a sorrir. Tinha olhos grandes elímpidos como uma surpresa inocente.- Bem sabes que não posso aposentar-me já. Faltam-me ainda algunsanos para uma reforma

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completa.- A s v e z e s c a l h a f a l a r d e t i , d i g o q u e é s « b i b l i o t e c á r i o g e r a l » . A s pessoas riem.- Porque é que riem?- Não sei, acham piada, levam assim a vida, para aqui enterrado emlivros. Acham divertido.- Também achas, tu.- E cómico.e no entanto, porquê? ela sabia. Mas não de um saber militarizadoem razões que avançam d isc ip l inadas , p reparadas para a h ipó tese de86qualquer razão contrária, mesmo uma razão miúda como uma rasteira,um cotovelo lateral, um tiro avulso para o ar. Ela sabia pela evidêncianatural como haver sol, no sítio em que se não argumenta e se tem a~piedade por quem ainda argumentasse. Verdade humana tão evidentecomo ser jovem e ter saúde.- Também achas divertido, tu.- É c ó m i c o p e n s a r q u e u m a p e s s o a l e v o u a v i d a t o d a a s s i m , t r a b a l h a d a a t r a ç a e a b a f i o . D á v o n t a d e d e r i r , q u e é q u e q u e r e s ? a gente pensar que lá fora há coisas, acontecem coisas, revoluções, e genteque nasce e que morre, e alegria, e ar livre, e uma cama para se fornicarcom prazer até rebentar, e passeios, e paródias, e convívio, e o prazere n o r m e d e e s q u e c e r , d e n ã o l i g a r , d e i r v i v e n d o , d e e s p r e m e r c a d a ins tan te a té de i ta r sangue, e de es ta r l i v re por den t ro e por fo ra , e de não ter ligação com nada, tecer a teia das relações mas com os fios todospar t idos . E de repen te pensar que há um t ipo , que és tu , que levou a vida a cheiriscar os palimpsestos. É de rebentar a rir, hás-de concordar.Não a ouço. Olho a tarde para lá da varanda, a montanha escura nohor izon te - A ta rde a rde em s i lênc io , abrasada de so l . É um so l quasee s c u r o , u m c é u r e q u e i m a d o d e z i n c o . E u m t u r b i l h ã o d e i d e i a s a t r a p a l h a m - s e - m e n a m e m ó r i a , a c e n d e m - s e u m m o m e n t o , p a s s a m . Como um comboio na noite que passasse. Sigo-as um momento, fogem-m e , u m a c o n v u l s ã o d e v e r t i g e m . I d e i a s , i m a g e n s , e c h o r o s e r i s o s ininteligíveis. E vozes de chamamento, de insulto. E gritos, e gritos. Queé que tudo isto quer dizer?- Como é que te não chegou ainda a noticia de que um livro é de umtempo que já morreu? de que é do tempo da memória e que a memóriafindou? Escrever um livro imagina o tempo de vida que se perdeu. E lê-87lo devagar , com no tas à margem. E guardá- lo em es tan tes como umcadáver num jazigo.- Tu escreves para os jornais.- É diferente. Escreve-se um artigo como se toma um café. As pessoaslêem e de i tam fo ra . Se a lguém o apanha, é para uma necess idade demomento. Para embrulhar castanhas. Para utilizar na retrete, quandonão há papel.E vozes de insu l to . E g r i tos , e g r i tos . Ouço-os mu l t ip l i cados pe lo mundo, numa alucinação universal.- O tempo do l i v ro é o tempo do a r tesana to . Co isa des t inada a um indivíduo, fabricada com vagares, consumida com vagares. Não temosv a g a r , e s t a m o s c h e i o s d e p r e s s a . O t e m p o d o l i v r o - o d a s s a i a s , compridas, do coco e da bengala, dos espartilhos com varas de baleia,dos colarinhos engomados até ao queixo. Tu ainda usas bengala?O l h o à v o l t a d a s a l a o s f r e s c o s n a p a r e d e . V e i o p i n t á - l o s o J o s é J o a q u i m d e F i g u e i r ó , l e m b r o - m e .

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S e n t a d o n u m a n d a i m e , e r a u m a pintura com assobios. Assobiava, ia pintando. Às vezes o assobio comoque lhe fugia da boca, saía-lhe com o cuspo que vinha atrás. Então numsorvo, trazia o cuspo para dentro e o assobio. Olho à volta os frescos, láestão, coisas talvez que aprendeu de cor. Ou coisas da sua invenção, jác r i s t a l i z a d a s . U m c ã o p e r d i g u e i r o c o m u m a p e r d i z n a b o c a , o o l h o r e d o n d o e p a r a d o . U m a c a s a d e c a m p o d e t e c t o b a i x o , u m c a m i n h o rústico e oblíquo. Uma azenha com a sua grande roda. Mas em baixo, aum lado da porta, havia um quadro.- O t e m p o d o l i v r o é o d o c a n d e e i r o d e p e t r ó l e o , o d a s m e i a s d e a lgodão fe i tas em casa à agu lha , o das papas de l i nhaça e do ó leo de fígado de bacalhau. O das ceroulas compridas com atilhos. É o tempo88d o s b o t i n s e d a s c u i a s , d o s p a l i t o s p a r a p a l i t a r o s d e n t e s d e p o i s d a sobremesa. O tempo das perucas, das lamparinas e dos penicos.O q u a d r o t e m u m a m o l d u r a g r o s s a e l a v r a d a . S e n t a d a a u m a e s c r i v a n i n h a , o s p é s c r u z a d o s n u m e s c a b e l o d e s e d a , u m a g a r o t a s u s p e n d e u m e n v e l o p e n u m a d a s m ã o s , o o l h a r e r g u i d o p a r a a professora enquanto ela lhe lê a carta. Deve ter acabado de a escrever.D e v e e s t a r à e s p e r a q u e a p r o f e s s o r a l h e d i g a s e e s t á b e m . O l h o e u também atrás e espero. Espero desde a infância que a professora acabe,o m e u o l h a r e x p e c t a n t e , p r e s o a o d a c r i a n ç a . É u m o l h a r b r e v e d e e s p e r a , t u d o v a i d e c i d i r - s e n u m m o m e n t o . A p r o f e s s o r a é a l t a , u m vestido apertado de cinta, amarelo e lilás até aos pés, um carrapito louroa o a l t o . P e l o s o r r i s o d e l a , a c a r t a d e v e e s t a r b e m . A c r i a n ç a s o r r i também, tranquilizada pelo sorriso da mestra. Faltam apenas decertoalgumas linhas, concentrado tudo num instante, o breve ápice em que acena se vai desatar. Mas o instante prolonga-se desde há sessenta anos, imóve l , sub t i l , a v ida suspensa na g raça de l i cada de uma c r iança que sorri.- O tempo do livro é o tempo da morte e nós estamos vivos e cheiosde coisas a fazer. O tempo do livro é o da imaginação trabalhosa e nóses tamos che ios de rea l idade- Descreve es ta sa la e vê o tempo que se leva , tu a esc reveres e eu a le r . Mas eu o lho a sa la e se i l ogo tudo . O tempo do livro é o do carro de bois- Tenho mais que fazer.Olho a minha filha, som sempre. Tem o cabelo solto pelos ombros,sorri sempre. E com um ar um pouco desleixado no vestir, parece-me, oar improvisado de quem não teve tempo de se arranjar. Pelas grandes janelas de cima a baixo, entra em todo o gabinete a claridade da tarde, osurdo rumor do tráfego ao longe. Nada tenho a dizer, ela sorri ainda.Sou do tempo dos mortos, os mortos não falam.89- ... Para quem como eu teve o privilégioo l h o o P i n t o - v o u d e i x á -l o f a l a r ? T e m a b o c a p a r a d a n o « o » d e «privilégio», vou deixá-lo acabe o seu elogio fúnebre? Os trinta, e setee m p r e g a d o s e s t ã o i m ó v e i s n a f i x i d e z d a m i n h a i m a g i n a ç ã o . E s t ã o a ten tos concen t rados , coa lhados na pa lav ra do o rador - vou de ixar? Imóvel a tarde à Praga, do calor, o sol cai a prumo na

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areia branca docaminho . O s i lênc io es ta la à compressão do a r , v ib ra -me à memór ia uma maldição de secura, um tinir árido de bichos de metal. Para o alto amontanha. Plácida, imensa, Definitiva. Repousa nos origens do tempo,no lugar imóvel do meu pensar. Assim às vezes me parem que é que mediz? a sua palavra inaudível- Tu sabes o que é que a mãe disse?a palavra primordial, a da loucura, a palavra informulada, anteriorp o s t e r i o r a t o d o o v o z e a r d o m u n d o . A p a l a v r a d o a b i s m o . A d o c a n s a ç o s a t u r a ç ã o – S a n d r a . P r e c i s a v a b e m d e t e v e r . V e r - t e p e l a primeira vez que te vi, foi na cidade da Soeira, Solária - ó Cidade do Sol.A que pela primeira vez, não antes, a da procura, nem depois, quandoe s g o t a d a u m p o u c o n o q u e f o s t e , e e u p r o c u r a v a - t e a i n d a c o m o s e procura sempre o que já se encontrou.- É c ó m i c o . L e v a r e s a s s i m a v i d a , p a r a a q u i e n t e r r a d o e m l i v r o s velhos.Xana ergueu-se, tem um gesto de ajeitar o gravador no ombro. Sorrisempre. É alta, está ao alto, donde tudo é em baixo e para rir.- Passei aqui por acaso, entrei só para te ver.Ajeita o aparelho, torcendo um pouco o busto flexível. Enterrado eml iv ros ve lhos , ide ias ve lhas , es tou aqu i . Soz inho na ve lha casa , é umcasarão, estou aqui. Há um grande silêncio comprimido sobre o mundo,atento escuto urna voz que não vem. Um ralho, um chamamento, um90f io que l i gue em v ida duas p resenças humanas . Ou o cân t i co do va leque nos liga ao universo. Estou só, é uma tarde de calor. Então lembrei-me de outrora, ouvia-se ao menos o pêndulo do relógio. Olho a paredeno meio da sala, por cima do aparador, está lá ainda o relógio. Tem ummostrador redondo que se alarga para baixo até à caixa do pêndulo. Natampa da caixa há uma cena guerreira um homem empertigado numafarda napo león ica , a mão esquerda na c in ta , a ou t ra pegando fogo a uma peça de artilharia. Está parado nas três e meia. Devem ser horas danoite, que é quando o tempo se suspende. O silêncio em toda a casa. Osilêncio dentro de mim.91XVQuem sou? Tem p iada , não me lembro de jama is mo pergun ta r -quem sou? E desde quando comecei a sê-lo? Deve ser útil sabê-lo, que éq u e e s t á d e n t r o d e m i m ? p a r a a o m e n o s s a b e r o q u e v o u e n t r e g a r à morte. Acaso saberei jamais quem sou? ou o que sou, que é um poucop a r a c á d i s s o ? E q u e é q u e s o u , f o r a d o q u e f u i s e n d o ? Q u e é q u e perdura em mim do que fui sendo? O que sou, é curioso, o que sou é.Não se i . Vou dar co rda ao re lóg io , es tá parado nas t rês e me ia . O que s o u é a a u s ê n c i a d e m i m , e s p a r s o t r é m u l o e r r a d i o , m e u o l h a r f r i o cansado. Fluido esboço de formas ocas de névoa, vejo-as. Instantâneasimagens do que passou. Farrapos avulsos de. São coisas que vagas, nãoc o n s i g o i n t e g r á - l a s n o t e c i d o u n o d e m i m - q u e é q u e p o s s o d a r à morte? São coisas dispersas, mas elas devem ter formado o que sou queignoro - que é que posso dar à mor te? tenho só os ossos de mim. As pedras do que se desmoronou. As secas peles de uma múmia em urnade vidro para a dez

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tostões a entrada - que ideia. Nem de borla - quem éque ia con templa r -te? ó tu ! M isér ia es t rume excrescênc ia - é ve rdade : ainda não fui abrir as lojas. Lixo esquecido à porta da vida - ainda nãofui. Tenho de ir abrir as portas das lojas, varrê-las do mofo acumulado, f e c h a r a s j a n e l a s l á d e c i m a , d a r c o r d a a o r e l ó g i o . T e n h o d e . P ô r o relógio a trabalhar, restaurar o tempo na casa mas agora não. Agora hámuita coisa atravancada na memória, arrumá-las no espaço da minhamovimentação. Venho à varanda, olho a aldeia, paralisada ao calor. Nasobreposição dos telhados, tento ver o da nossa casa, aquela onde mecriei. Minha mãe lá está, debruça-se da janela, esguedelhada- Senhor Augusto!92O carteiro nem levanta os olhos, ergue um dedo sintético a dizer quenão. Meu pai partiu uma madrugada, lembro vagamente a agitação dacasa, minha mãe aos gritos, meu pai em silêncio, apertando as cordas deum fardo. Depois falou - que é que disse?- Logo - escrevodev ia te r d i to . Depo is não se i se esc reveu a lguma vez . Depo is não voltou a escrever. Foi então que minha mãe entendeu que eram horasd e f i c a r l o u c a . E u f i c a v a p a r a t r á s , p a r a a q u é m d a l o u c u r a , e , n ã o entendia.- Senhor Augusto!e ele nem olhava, ia andando, com um dedo no ar a dizer que não.Estou debruçado à varanda, o sol embate contra a montanha, queima-at o d a a t é a o s o s s o s d a a r i d e z . M a s n e s t a a l t u r a - é b o a - U m c e r t o estardalhaço no andar de cima. E vozes. Apuro o ouvido, uma voz dehomem e de mulher. Vou pé ante pé, subo a escada de corrimão. É nomeu quar to , que f i ca por c ima da sa la onde es tou . Ouço um d iá logosurdo, nuns arranjos de malhoada. Deolinda.- Esteja quieto. Ora para o que o diabo lhe havia de dar.Espre i to à fechadura - não , não , a por ta es tá en t reaber ta - sou eu . Vejo-me. Um pouco mais velho, a barba talvez por fazer - sou eu. Vejo-me debruçar-me sobre Deolinda, ela está a limpar o chão. Vergada, de joelhos, a saia sobe-lhe pelas pernas gordas e brancas. Mas é evidenteque ele sou eu - como podes tu ainda com a mulher? tens de ter arranjosprév ios para o a r ranque f ina l . As pernas gordas b rancas , a mão por entre elas até ao forno. Mas ela, brusca, sacode-o, não pára de limpar.Brusca, sem contemplações, continua na limpeza- Se isto são propósitos...93E l e e n t ã o n u m g o l p e d e c i d i d o , a m ã o e n t r e a s p e r n a s r e d o n d a s , Deolinda rebolada pelo chão- Aqui não, que me suja todaa juda-a a levan ta r , a resp i ração d i f í c i l , e la quebrada já por aque ladecisão- Feche ao menos as janelas, que podem ver.- Quem é que vê?encosta as portadas da varanda, ela adianta o serviço, tira as saias,guarda o pudor da par te de c ima onde não quer saber o que se passaem ba ixo , v i ra a cara . E le to rna- lhe uma mão - tens já de p rocura r os arranjos prévios. Ela ausente deixa ir a mão, ele instala-lha onde deve,i m p r i m e - l h e o m o v i m e n t o n e c e s s á r i o q u e c o n t i n u a p o r s i e b e i j a - a , b e i j a - a , e l a v o l t a a c a r a , n ã o q u e r . M a s e l e , n o p e s c o ç o , . u m a m ã o à procura do pudor oculto, e apto, enfim, plasmado, desce, não está bem,d iz co isas surdas , deve es ta r a comandar as operações . E por f im

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emp l e n o . U m a p a u s a . D e c e r t o a t o m a r b a l a n ç o . M a s e l a j á l a r g a d a a o entusiasmo, um rolar lento de quadris - deves ter cuidado. Lembro-mede o avisar - deves ter cuidado. Regressar ao ponto do andamento delapara caminhares a par. Pode-te perdoar tudo, excepto a frustração – eledeve ter-me ouvido. Porque, breve, um toque, ela rola por cima. Agoraé de la a in i c ia t i va - l embro-me de o av isa r , ouve ! Lembro-me de lhe fazer recomendações - ouve! Pensa noutras coisas para atrasar! Pensa namorte, pensa em coisas horríveis - ele pensa. Pensa na Biblioteca Geral eno discurso do Pinto - enquanto que Deolinda diligente, trabalhando.Pensa no violino, no padre Parente e nos seus desatinos abdominais qued is fa rçava p igar reando. Mas não r ias , não penses de ma is - Deo l inda azafamada trabalhando bem. Fá-la parar de vez em quando, aguenta!Pensa agora no senhor Paixão que era o homem que melhor sabia comer94em Penalva, pensa, Deolinda, dá sinais do seu delíquio, deixa-a ir, tensd e a a p a n h a r , p e n s a s e m p r e . C o n s e g u i s t e e n f i m o t e u e q u i l í b r i o f i s io lóg ico , podes tu agora comandar - Deo l inda quer dar por f i nda a s e s s ã o , n ã o d e i x e s . R e c o m e ç a r . P e r d e u a g o r a t o d o o p u d o r , p o d e s revelar-lho até ao limite da intimidade. Deolinda já sorri.- Que dois malucos... j á e s t á i n t e i r a m e n t e i n t e g r a d a n a r e v e l a ç ã o a b s o l u t a , p o r s i s ó recomeça, não precisas de lhe dar sinal para recomeçar. Mais expansivadá-te ordens de acomodação Para um arranjo perfeito, agora é rápida ac h e g a r a o f i m - n ã o t e a p r e s s e s . A o m e i o i n d í c i o d e l e , d á t u o s i n a l i n t e i r o - p e n s a n a M u n d a , n o P r e g a d o r , m a s j á e s t á s s e g u r o , n ã o precisas de pensar em nada. As mãos no contorno volumoso, Deolindan ã o c e s s a d e a s s a l t a r o E m p í r e o . D u a s , t r ê s , q u a t r o v e z e s - n ã o t e apresses. Então ela pergunta quando é que, e é a altura de recuperar asposições naturais. Devagar, pleno, ajustado. Deolinda sua de esforço erealização. Trabalha agora na tua execução perfeita, um pouco apiedadad a t u a i n c o m p l e t u d e , c o m o u m r i c o a b a s t a d o a u m m í s e r o p e d i n t e . Trabalha ardorosamente, mas agora o terreno é mais longo. Recôncavosd e u m c o r p o a b a n d o n a d o e s p o j a d o , c o m t o d o s o s s e g r e d o s a o t e u alcance, a dádiva absoluta de um segredo nenhum, esforça-se por quehaja justiça no mundo. E insofrida impaciente, os sinais todos de umae s c a l a d a d i f í c i l , o t e r m o , o l i m i t e , a p o s s e t i t â n i c a d o i m p o s s í v e l absoluto, os dois emparelhados enrolados de fúria, agora, agora, agora,o estoiro final, a explosão inteira no absoluto do vazio, Deolinda, sorri.Quem diria, este maluquinho. Abana a cabeça, sorri. Eu estou na sala, éuma tarde quente. Ouço-me descer a passo cambaleado, ouço-me abrira porta.- Devias ter juízo - digo-me para trás sem me olhar.95- Que é que me resta para a vida? - respondo-me.- Dev ias reco lher - te à tua inu t i l i dade , à ace i tação humi lde da tua miséria.- Que é que me resta? Inventar-me vivo de vez em quando.- E inventaste-te mesmo?O l h o -m e a e x p l i c a r - m e - e s t á s b e m d e c a d e n t e . A b a r b a c r e s c i d a branca , o a r des le ixado de quem já nem em s i tem

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um púb l i co - es tás bem em baixo.- Ela gosta. O desleixo aproxima.- E como te aguentaste?- Male e x p l i c o u , o u ç o - m e . É u m a e x p l i c a ç ã o q u e p a s s a p e l o v e x a m e , a tristeza cerzida de ironia para não parecer tão triste. Tu sabes - eu sabia- Tu sabes como é, nunca te aconteceu? Tem-se a impressão de queestá tudo a postos, que se tem decisão como um guilho para partir umrochedo. E depois ela diz-te que ainda não, e tu vais verificar e concluisq u e t e t r o c a r a m a d e c i s ã o p o r u m a m i n h o c a . M a s a D e o l i n d a é compreensiva, oh, ela traz em si a experiência acumulada através dasgerações. Então ela colaborou activamente. E tudo foi perfeito como noParaíso Terreal.- E s t á s i m u n d o . T e n s a l í n g u a s u j a c o m o u m a c a v a l a r i ç a . M a s a obscenidade, como a blasfémia, denuncia é uma carência.Meu Deus. Como estou nas lonas - que é isso de «dignidade»? Que éque quer dizer a honra e o brio e o respeito por nós próprios quando àvolta só há degradação? e miséria e decadência e estrume?- Agora sabes uma coisa?- Diz.96- Não deixou que a beijasse na boca. Ela tem uma boca horrível, coma q u e l e s d e n t e s t o r t o s e s u j o s . M a s h o u v e u m i n s t a n t e e m q u e . P o i s virava a cara. Lá o resto acabou-se, é para isso que existe. A boca, não.Tu não les te qua lquer co isa sobre i sso? Que o be i jo , não se i quê , só o Ocidente é que? Tenho ideia de me teres dito que leste. Mas já uma vez,não se i se te lembras . Fo i em Pena lva , na Rua Poço do Gado, hav ia lá uma tipa, era a Severa. Grande, uma calmeirona. Pois beijo na boca, nãosenhor, deves estar lembradon a t a r d e a r d e n t e d e A g o s t o . E s t o u s ó , o t e m p o i m o b i l i z a - s e n o m u n d o . O r e l ó g i o p a r a d o . N a s e r r a e m f r e n t e a l u z e s t a l a c o n t r a a ar idez do pedrega l . Toda a casa em s i lênc io . Só de vez em quando aaragem, passa leve nas fo lhas dos choupos , passa leve na minha face ,e s c o a - s e p e l a s j a n e l a s t o d a s a b e r t a s , m e m ó r i a d e u m t e m p o m u i t o antigo. Tardes de Verão, tardes de outrora. No limiar aflito da vida. Noincer to ind íc io das o r igens . O lho a montanha e é como se só en tão a o l h a s s e . E u m a a m a r g u r a c a l m a i n u n d a - m e c o m o s e n a d a m a i s houvesse para d ize r . E en tão , de l i cada , Sandra . F rág i l , o teu bus to de adolescente. O teu riso, o teu sorriso. Fino agudo sempre e os teus olhospretos vivíssimos. Tinhas um vestido transparente em certos jeitos doteu moveres-te. E os teus seios brevíssimos e todo eu retraído ao terrorde te tocar. Ver-te, ver-te, oh. Debruço-me rápido da varanda, olho-teem baixo irisada de luz - só o jardim morto. Chamo-te aos gritos- Sandra!estás a demorar-te tanto. Combinámos um passeio, e tanto como tedemoras. Estou só, aflitivamente só. Estou na vida como nesta casa deabandono. E b rusca , uma pancada oca no ven t re , uma vaga náusea avomi ta r . Não . Recompor tudo sem o que lhe fa l ta . Que é que te fa l ta?Es tás v ivo e és capaz a inda de fabr i ca r ide ias , e de te r op in iões , e de97ent remear p ro jec tos aos in te rva los do teu vaz io tão che io . Es tá bem.M a s p r e c i s o a b s o l u t a m e n t e d e v e r S a n d r a , a s

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s u a s p e r n a s f i n a s d e criança, sentá-la na palma da mão e erguê-la até ao sol e gritar, gritar.Precisava tanto de gritar. Desafiar todos os poderes do céu e do inferno.Não d ize r uma pa lav ra , que não há pa lav ras para o excesso de mim. Q u e r i d a . V o u - t e v e r à C i d a d e d o S o l , S o l á r i a , S o e i r a d a m i n h a juventude. Tenho horror de mim. Precisava de me desfazer em cuspo,e m c h o r o e r a n h o , e s t o i r a r - m e t o d o n u m a r r a n c o . E f i c a r d e p o i s a a p o d r e c e r . N ã o m e m o v o . S o u u m h o m e m . T e n h o o b r i g a ç õ e s imprescr i t í ve is d ian te do sexo macho a que per tenço . Como é t r i s te o dever. Queria não ter um dever. Perante quem o dever? Estás só. Baba eranho se te apetece. E como depois respeitar-me? Tenho um olho virilde mim a f i sca l i za r -me a desordem. Es tou só . De f in i t i vamente a té àmor te . Es tou t r i s te a té à mor te . Cr i s to nas O l i ve i ras sem encargos deredenção. Tenho de ir abrir as lojas. Tenho de ir fechar as janelas. Tenhod e . E s t o u b e m . A c e n d o u m c i g a r r o , o l h o o v u l t o d a m o n t a n h a . É grande. Majestosa. Tarde imóvel de calor.98XVIMas o mais urgente é ir ter contigo, conhecer-te, cruzar a minha vidac o m a t u a . Q u e h á m a i s n o q u e v i v i ? m a i s n a d a , m a i s n a d a . S o l á r i a . Cidade do Sol. Estás lá, como a evidência de te querer, com o teu brilhof i xo e a tua face ocu l ta que jama is te conhec i . Mas não é ass im toda abe leza? e a verdade , e a jus t i ça , e a nobreza , mesmo o c r ime? Porque tudo o que é grande tem o lado que se conhece e o lado misterioso que jamais poderemos conhecer para poder ser grande. Soeira, Cidade daLuz, 6 cidade da ilusão, legenda da juventude, terra natal do excesso demim. De acordo. Mas retórica, não. Desenrola-se à volta de uma colina,vai descendo até ao rio que lhe corre em baixo, como roupa estendida, ocasario a corar ao sol. Suspensa da eternidade, vejo-a, ó memória ternamas linfatismo, não. Projectada contra o céu azul, olho-a desde a minhaaflição - para quê? para quê? - sê calmo. Memória suave, recostar nela om e u c a n s a ç o , a m i n h a c a b e ç a d e s o m b r a - s i l ê n c i o . M a s d e s ú b i t o , plangente, é uma guitarra enorme, preenche todo o espaço do céu. Nãoquero ouvir, não quero ouvir - não ouças. Um arrepio no ventre, comooblíqua, uma vertigem. Tremem as cordas a todo o espaço, tremem osm e u s o l h o s . V i b r a m a s c o r d a s n o t e m p o , r e s s o a m à e t e r n i d a d e . E à o n d u l a ç ã o d a b a l a d a - q u e m e u ? E m q u e p o n t o d o u n i v e r s o s o u verdade? Em que pon to posso ou t ro conhecer -me? mas nada ad ian ta interrogares-te. Vem a balada atrás de mim como tanta memória morta -é da inu t i l i dade da v ida . Como pa lav ras ouv idas no acaso do tempo, v i e r a m v i n d o a t r á s d e m i m , n ã o o s a b i a . P a l a v r a s s e m s i g n i f i c a ç ã o , vieram vindo. Estão aqui - para que ouvi-las? Veio vindo a balada paraa e te rn idade da no i te , ouço-a - para quê? Cordas p langen tes de uma99profunda amargura como uma grande alegria. Dobram no tempo e namorte, são as vozes do augúrio. Silêncio. 4 montanha arde sob o

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sol aprumo, não passa n inguém no caminho da a re ia b ranca . A luz ba te -operpendicular, na fieira de casebres com algumas portas abertas parafo ra , só uma t i ra de sombra jun to às paredes . Mas n inguém sa i à rua , nenhuma voz pelo ar.E f o i q u a n d o S a n d r a - q u e c o n v i t e i n e s p e r a d o . N e m e r a d e l a o conv i te , e ra do Ka l i fa . Chamavam- lhe ass im, t i nha mesmo um K no nome, ninguém sabia porquê. Mais lógico por exemplo chamarem-lhes ico fan ta , ou meteco , ou per ieco ou te ta , qua lquer co isa que metesseg r e g o , p o r q u e e r a p r o f e s s o r d e g r e g o . E r a K a l i f a . S a n d r a e e u frequentávamos grego elementar. Ela porque andava em germânicas eera obrigatório, eu porque andava em história e filosofia e também era.Ou não era e eu matriculei-me para um saber mais aprofundado, já nãom e l e m b r o . K a l i f a e r a i n t r a t á v e l . M a s e s t i m a v a o s q u e j u l g a v a i n t e l i g e n t e s , t a l v e z p o r s e r e s t ú p i d o , t i n h a f a m a . E u e r a j u l g a d o inadvertidamente, Sandra, oh, sim. Inteligente - eras tanto. Desde a tuafigurinha delicada fina.O teu r i so b reve . Os teus o lhos v id r i l hos negros v iv íss imos . O teu porte senhoril. E então disseste-me- Paulo.- Sim.- Você e eu estamos convidados para um concerto. Não sei se aceita.- Que concerto?- Do filho do doutor Meneses.- Do Kalifa?- Não lhe chame Kalifa. Não é bonito em si.100Sempre . Não é bon i to , não é p rópr io , é inde l i cado . Desde sempreassim. Mas eu amava-te tanto e todo o teu rigorismo ficava logo na zonada perfeição. Desde antes de te conhecer eu te amava como é próprio deum grande amor. E Sandra explicou. Era baixo o Kalifa. Baixo e grosso.O u p a r e c i a b a i x o p o r s e r g r o s s o . C a b e ç u d o l e n t o b o v i n o , u s a v a u m sobretudo com uma tranca atrás onde faltava sempre um botão. E umasmãos inesperadamente de l i cadas como de donze la - se r iam f i l has do e s p í r i t o ? s e r i a m e s m o i n t e l i g e n t e ? D e q u a l q u e r m o d o , a m a v a a i n t e l i g ê n c i a d o s a l u n o s - e c o m o e q u e e l a p o d i a d a r s i n a l n o g r e g o e l e m e n t a r ? D a v a . E l e p e r c e b i a . E e n t ã o , c o m o s e e m p r é m i o d e s s a inteligência- Estamos convidados para um concerto. Aceita?T i n h a d o i s f i l h o s o K a l i f a . O m a i s v e l h o e r a u m p i a n i s t a f a l h a d o , d i z i a - s e . T i r a m o c u r s o n a c a p i t a l , d e v i a v i r a s e r c o n c e r t i s t a o u p r o f e s s o r . M a s n ã o s e i e m q u e e x a m e f i n a l , c h u m b a r a m - n o . K a l i f a , d i z i a - s e , v i e r a à c a p i t a l p a r a b e n g a l a r q u e m l h o c h u m b o u . N ó s exu l távamos com esse chumbo que v ingava a chumbar ia com que o homem nos codilhava. E então para glorificar o talento do filho. Era umvadio, o filho, derretia as massas ao jogo. Para sua glorificação, Kalifac o n v i d a v a o s a l u n o s m a i s h á b e i s , p u n h a o f i l h o a t o c a r p a r a e l e s - Sandra.- Aceita?Oh, e como não? Estarei contigo, estivemos só os dois. Era numa salada Faculdade onde havia um piano - só os dois. E o Kalifa para recolheros cumprimentos, lembro-me bem. Tu levavas um casaco em xadrez atéquase ao joelho e o teu sorriso miudinho circunspecto travesso - que éque o homem tocou? Mas havia uma música, recordo-me muito bem,e r a

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u m a t a r d e o b s c u r a d e n é v o a . E r a u m a m ú s i c a a l e g r e , t r i l a d a ,101lembrava-me não sei que sapateado de dança. Tinha-a ouvido não seionde, tentara reproduzi-la no violino - eu disse que nunca mais tocarav io l ino? Não é verdade . O padre Paren te ens inou-me, he i -de con ta r .Fora um v io l ino de t rês quar tos , por causa da incompat ib i l i dade do m e u t a m a n h o . M a s d e p o i s q u e v i m p a r a a S o e i r a , h a v i a u m a t u n a e s t u d a n t i l , t i a L u í s a c o n s e n t i u - m e q u e o t r o c a s s e p o r u m n o r m a l - es tamos por tan to em que mês? jane i ro ou Fevere i ro , nós já t ínhamoscomprovado a nossa inteligência. Era uma musica saltitada e no fim eudisse:- Campanela de Liszte tu d isses te que não , ou se ja , não bem. L isz t f i ze ra um ar ran jo , a música era de Paganini. E eu não sabia se era assim, mas como podiastu errar, Sandra? tão bela, tão perfeita. A verdade foi sempre contigo. Ea b e l e z a . E a e n c a r n a ç ã o h u m a n a d a d i v i n d a d e . C e r r o o s o l h o s à incandescência da tarde, ouço de novo a música do nosso encontro noe t e r n o . É u m a m ú s i c a v i v a z , c h e i a d e e n e r g i a d a m i n h a e x c i t a ç ã o interior. Toca ainda uma vez, filho mortal do Kalifa. Toca por sobre otempo e a morte, por sobre a solidão. A alegria floresce nesta tarde deincêndio como um sorriso, primordial. E no limite da montanha, umadança pesponta a un ião da te r ra e do céu . Toca a inda e sempre , que m a i s q u e r o p a r a a v i d a , p a r a o c a n s a ç o e a r u í n a , q u e o i n s t a n t â n e o f lo r i r da g raça , na imóve l evocação? E repen t inamente lembre i -me: pedir-te que toques aAve-Mariade Schubert - não fui capaz:Dó ... ó ...si, dó, mi...Não tive altura até à coragem de pedir. Música longínqua, not r a ç a d o r e m o t o d a m i n h a v i d a i n t e i r a . S a í m o s d a F a c u l d a d e , e r a j á tarde, todo o céu se nublava de memórias de fim do dia. Sandra moravaali ao pé, era uma casa esguia, subida ao alto da esquina de um café, euprecisava tanto de estar contigo, de existir para ti. Porque eu estava em102desequ i l íb r io , tu ex is t i s te logo b ru ta lmente para mim. Ex is t ias numfervor íntimo finíssimo na fímbria dos meus nervos, na fundição comoum metal de toda, a minha personalidade. Ob, nunca a tive diante de ti.Eras linda minúscula graciosa. Espuma leve de um vinho no limite daembriaguez. Delicada flor. E o terror de que o meu bafo te queimasse.Era assim.- Então até amanhãoh, não. Um momento ainda, só um momento, mas que é que te hei-de dizer? Que restos de mim aproveitáveis para ser decente à tua face?- Não me disse ainda como achou o pianista.- Bem. Acho que bem. E então até amanhã. Segurei-lhe a mão breve -ouça- Ouça, Sandra.- Sim. Mas não me vai levar a mão?...- Precisava tanto de falar consigo.- Pois. Mas não hoje, está bem?- Quando?- Oh, sei lá. Qualquer dia.Abri a mão, tirou a dela, fiquei com a minha ainda no ar como se aimplorar que não. Foi quando de novo a música da terra, vem na voz deuma mu lher , ouço-a . Es tou só , como d i f i c i lmente imag ino . As

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vezes , instantânea, a imagem da realidade. Fico suspenso, a respiração presa,os olhos exorbitados. É uma explosão de evidência sem uma ideia parae la . Como se pode ser homem sem esquecer? é -se homem sobre tudo pelo que se esquece. Mas entretanto, Sandra virara costas, frágil, leve,delineamento subtil. Um homem passava em frente da Faculdade, erabaixo, parecia, talvez de fronte pendida, centrada ao íntimo de si.- Eh, Pregador103os rapazes atiravam-lhe coroas, ele apanhava. Estendia a um lado eoutro os braços em gestos curtos, ia gesticulando, não dizia palavra.- Precisava tanto de falar consigo.- Mas não hoje, está bem?Foi quando de novo, era a voz da terra. Uma harmonia invisível nacoordenação dos astros - que é que significa na minha solidão? Vem naaragem leve , é a voz de uma mu lher . Vem da desgraça , da ru ína , da fadiga, passa. Depois regressa. Sobe alto até aos astros, abre como umaflor, embate no silêncio do mundo. Nada mais há a dizer. Para o vozearf rené t i co das gen tes que é o seu modo de es ta r ca lado , para o g rasnardos políticos artistas sem arte e os apóstolos e moralistas sem moral e oseducadores sem educação, para o cacarejar infernal de toda a praça domundo. Uma voz canta no impossível. E é preciso uma vontade brutaanimal para me não matar.- Mas não hoje.- Quando?- Oh, sei lá. Qualquer dia.- Quan ... an ... do?Mas já assentámos que destrambelhos, não. Gritos histéricos, paraaqui, não. Seja calmo na evidência natural, na aceitação. Todo o absurdode uma vida que se cumpriu no absurdo, todo o espaço realizado paranenhuma s ign i f i cação , todos os p ro jec tos e angús t ias e insón ias parau m a j u s t i f i c a ç ã o d i s s o e q u e n ã o v e i o . P o i s . R e a b s o r v e r t u d o n a nulidade de ti.- Precisava tanto de falar consigo.Na tarde compacta sufocante. Tenho sede.104XVIIMas quando vou à cozinha para beber água- Paulinho!- Senhora!tia Luísa que me chama. Tenho sede, vou primeiro beber água. Masquando vou à coz inha - e como me não lembre i Decer to a água es tá fechada, tenho de i r ab r i - la ao qu in ta l . É jun to ao por tão , o cac i fo docontador tem a portinhola aberta. Rodo a torneira, ouço a água correr.- Paulinho!- Já vou! Quero primeiro beber águav o u b e b ê - l a m e s m o a o t a n q u e . A b r o a t o r n e i r a , d e b r u ç o - m e e d e lado, a boca de esguelha, estou morto de sede. E de súbito lembro-me:bebe devagar , concen t ra - te no p razer de beberes , sê o teu corpo queb e b e . A v i d a e s t á t ã o c h e i a d e m i l a g r e . M a s c o n v u l s o s r á p i d o s d i s t r a í d o s , t a n t a c o i s a q u e s e p e r d e . E s t á s n o f i m d a v i d a , v i v e -a mi l imet r i camente . A té porque o p razer da boca dura só enquanto o tens. Curioso, só enquanto se tem. Fecho os olhos e imagino uma cor.Concen t ro -me nos ouv idos e imag ino uma mús ica . Mas é imposs íve l r e c u p e r a r u m c h e i r o , u m s a b o r , s ó p e l a i m a g i n a ç ã o . V e r g o - m e à torneira, entorto a boca para beber. Molho primeiro só os lábios, mesmoa face . E uma f rescura de repouso a las t ra -me a í , desce um pouco emre f lexo

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por todo o corpo . Abro a boca , um go le de água e um fundob e m - e s t a r d e s c e - m e a o i n t e r i o r . H á u m a a v i d e z e m m i m p a r a m e i n u n d a r d e f r e s c u r a , o s s í t i o s d a s e d e a b r e m - s e à i n u n d a ç ã o , à n e c e s s i d a d e u r g e n t e d e u m r e p o u s o q u e a l a s t r e e m m i m - b e b o d e v a g a r . M e s m o n ã o s e b e b e e m t o r r e n t e , o s m e c a n i s m o s d e b e b e r105seccionam as porções e é um gole de cada vez - bebo. Uma paz naturaldesce-me com a água e tudo em mim alastra de abandono feliz. Estendomesmo as mãos, rodo-as à água corrente e sinto que há sede a morrer naminha pe le , na f rescura v iva da pe le . E é ass im como se já sa t i s fe i ta asede eu tivesse ainda vontade de a ter para o prazer de a não ter. A vidaestá tão cheia de milagre. Estás no fim, aproveita-a em cada átomo deser, não lhe desperdices a mínima oportunidade.Reergo-me, resp i ro fundo . Es tá um ca lo r de febre , não o s in to na minha plenitude. Depois subo, tia Luísa espera-me, quer-me falar. Masp r i m e i r o - q u e a r r a i a l d e p a l a v r e a d o . M e l h o r a r r e a r l o g o , t i a L u í s a quando bate fala pouco para não haver discussões. Gosta sobretudo dem e d a r n a s p e r n a s , f i c o c o m e l a s a a r d e r . D e p o i s , r á p i d a , d i z a lea to r iamente o mot i vo da sur ra e acabou. Mas de ou t ras vezes , que gritaria.- Ainda hoje se vestiu de lavado, seu coisa reles. As moiras não têmmais nada que fazer senão lavar-lhe a roupa todos os dias. Seu porco.Seu ordinário. Quero aqui saber onde é que você andou a espolinhar-separa se pôr nesse estado. Olhem para estes Joelhos. Olhem para estasmãos, esta camisa.O lho para as mãos , a camisa , a con f i rmar . O lho daqu i , do a l to dav i d a f i n d a , e s t o u r e a l m e n t e o q u e s e c h a m a s u j o . E e s t a m o s n i s t o quando tia Luísa decide:- Venha cá acima (à casa de banho) para o lavar.Mas estou admirado da decisão. Teremos visitas? Iremos de visita?Tia Luísa põe-me debaixo do chuveiro, aplica-me as mãos de lixa numesf reganço d rás t i co de raspade i ra . A água é quen te , mas tenho f r io . D e v e s e r S e t e m b r o , t a l v e z , h á u m a m e m ó r i a d e f i m d e V e r ã o , d e começos de Outono , já com d ias ráp idos de so l doen te . De pé numa106larga bacia de zinco, as mãos esfregando-me sempre. Levantam a água,a s m ã o s , e s c a r o l a m - m e t o d a s a s z o n a s d o c o r p o , a c a b e ç a , d e p o i s o sabão. É um sabão de veios azuis, fico todo enfeitado de flocos, as mãostrabalhando-me sempre. Depois mais água, fico luzidio, a pele treme-me como a das mulas com a mosca. Depois um lençol, fico todo envoltonum sudário. A cabeça bem esfregada, as orelhas, sem dó nem piedade,devo te r o co rpo róseo da massagem. E a inda com o lenço l t i a Lu ísasen ta -me numa cade i ra , en f ia -me as peúgas , as cerou las . É o fa to deca lção , o casaco , p rende-o um bo tão na c in ta , a camisa de go la la rga saída para os ombros como de marinheiro- Onde é que vamos?- Vais tu.ia eu sozinho- E onde?- Vais a casa do senhor prior.- Sozinho? Não vou.Descem ambos do andar de c ima, venho bem-pos to , agar rado ao corrimão.- Não vou.Olho-me quase com ternura, as orelhas despegadas, o cabelo puxadoà escova para a frente, o

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ninho de, carriça a saltar,- Vai! - digo-lhe eu. - Vais ter uma revelaçãomas ele não me ouve. Venho à varanda olhar-me lá em baixo, a tardefinda breve. Saio ao portão, está uma tarde linda. Ao fundo da rua háuma casa em construção, esqueço tudo, fico um momento a ver.- À volta passa pela loja e traz uma manga para o candeeiro - diz-mea tia Joana ao passar junto à cozinha107uma chaminé de v id ro , chamavam- lhe «manga». Rep i to para mim«manga, manga», fico um momento a ver. As pedras eram subidas comum maqu in ismo engraçado . Ma is ta rde sub iam-nas com um gu inchoque e ra uma maqu ine ta de aço com man ive la dup la . Agora e ra uma g r a n d e r o d a d e m a d e i r a c o m o a d a s a z e n h a s . S ó q u e e m v e z d e a lca t ruzes t inha uns paus espe tados a todo o redondo. E os homens empoleiravam-se neles para fazerem peso e a roda enrolar o cabo quee r g u i a a o a l t o a s p e d r a s . P a r o u m p o u c o a v e r . U m h o m e m encarrapitado, pés e mãos filados aos paus como um macaco, o própriopeso fazia rodar a roda, eles subiam para os paus mais acima e o giro dar o d a c o n t i n u a v a , e n r o l a n d o o c a b o q u e i a e r g u e n d o a s p e d r a s . Desengonçado, o homem ia sub indo pe la roda , a roda desca ía com o peso, o homem subia de novo para os paus acima e não saía do mesmosítio. Era assim como uma dança aérea, o homem minúsculo trepandoinde f in idamente pe la roda imensa , a roda desca indo , e le sub indo de novo. Olho ao alto a pedra suspensa, balançando devagar, enrolando-see desenrolando-se na ponta do cabo, outros homens segurando cabosl igados à pedra para e la desca i r por f im no seu dev ido lugar . Suado, colado à roda, o dançarino movia as pernas e braços, como um insecto,aéreo aracnídeo, via-lhe só o movimento dos membros, o tronco imóvele a roda girando sob ele, vagarosa e enorme. Até que a pedra chegou aoalto, o homem pôs os pés no chão, controlando a descida da pedra atéao a l to do muro onde po isou com ou t ros homens a o r ien ta rem- lhe a posição. Lanço-me em corrida para compensar o atraso, digo para mim«manga, manga, manga, manta». Vou pela quelha de baixo que é forada povoação , não gos to que me esp io lhem, depo is subo ao te r re i ro evou dar a casa do senhor p r io r que é no adro . Mas quando passo ao Canhoso veio uma grande massa de gente - que será? é ao pé do Chico108da Cuca e da Munda, ao lado da do Manuel sapateiro que tinha a lojaem ba ixo , um núc leo de casas ve lhas - que será? E quando v i ro parasaber - é boa. O senhor prior de sobrepeliz e o sacristão de caldeirinha,a l g u m d o e n t e a e s t i c a r . j u n t o - m e a o p o v o , m u l h e r e s d e l e n ç o embiocado, mas o padre Parente viu-me:- Ias lá a casa?- Ia, sim, senhor prior.- Vem daí e espera um pouco. j u n t e i - m e a o p a d r e , e n t r e i . E r a u r n a c a s a d e t e c t o s b a i x o s , t o d a esquinada de corredores. E ao fundo, uma sala. No chão, espolinhando-s e c o n v u l s a , a P a t r o c í n i a M u n d a c o m u m a t a q u e . T i n h a d a q u i l o à s vezes, era uma beata. Ia a Lurdes, que era em França, uma vez ou outra,t r a z i a u m c a r r e g a m e n t o d e

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o b j e c t o s r e l i g i o s o s , t e r ç o s m e d a l h a s crucifixos. E vendia, fazia o seu negócio celeste. De uma vez a ria Luísainterrogou-a, queria partilhar da maravilha e do milagre e então comoera? Patrocínia contava:- Mas sabe que lá não fa lam como cá . D izem «Ave Mar ia» e co isas assim como nós. Mas a certa altura dizempru, pru, que nem é co isa de gentee o prior, tia Luísa um dia disse-lhe, e o prior explicou do alto do seusaber- O que eles dizem em francês épriez pour nous, que é o mesmo que dizer «rogai por nós».Depois davam-lhe os ataques. Houve alguém que disse que aquiloera o demónio, padre Parente ia expulsá-lo em latim que era língua parao sobrena tu ra l . Toda a gen te resmoneava que e ram in t r igas da san ta M o r e i r a , b e a t a - v e l h a c o n t r a a P a t r o c í n i a q u e e r a t a m b é m b e a t a e concorrencial, mas como saber? Padre Parente avançou para o monturo109da Patrocínia que se revoluteava no chão, agachou-se, pôs-lhe a mão nat e s t a e n q u a n t o d i z i a c o i s a s l a t i n a s , P a t r o c í n i a d e u u m u r r o e convulsionou-se mais como se a queimassem, padre Parente desviou-sep a r a n ã o a p a n h a r a l g u m c o i c e . E d e n o v o a v a n ç o u p a r a o d e m ó n i o . Com mais latim, punha-lhe outra vez a mão espalmada na testa, traçavacruzes no ar. Patrocínia agitava-se outra vez mas agora menos, escorria-lhe o veneno da boca. Até que por fim grunhia já apenas e finalmentequase só arfava de cansaço como se fosse dormir.- Deitem-na na cama e deixem-na descansar - disse o priore saiu. Tirou a sobrepeliz, dobrou-a, dependurou-a no braço, saiu porentre alas de povo aterrado. O xaile passado sobre a boca, o olhar vítreode hor ro r , uma reza c i rcu lava de boca em boca como um responso , opr io r e rgu ia a mão a d ize r boa ta rde , ia passando. E fo i só quando já íamos na estrada, saídos da quelha, padre Parente pôs-me a mão quentena nuca e perguntou-me Tu queres ir para a Tuna?P a d r e P a r e n t e t o c a v a v i o l i n o , s a b i a o u t r o s i n s t r u m e n t o s , t i n h a organizado uma tuna na aldeia.- Mas eu não sei...- Claro que não sabes. Mas vais aprender. já falei com tuas tias, vaisaprender violino,V i o l i n o . E r a u m a t a r d e d o c e , c o m e ç o d e O u t o n o , e u i a a p r e n d e r v io l ino . Não sab ia bem o que e ra i sso , mas já t i nha ouv ido , um sommagoado de um choro te rno . Padre Paren te e rgu ia de lado a cabeça a l t a n e i r a , a f r a l d a d a b a t i n a a t r a p a l h a n d o - l h e o a n d a r , a s o b r e p e l i z dobrada no braço.- Não podes a inda tocar um v io l ino norma l , mas já fa le i com tuas tias, vão comprar-te um de três quartos.110Subíamos a calçada que leva à igreja, ao fundo do Canhoso e a certaa l t u r a . É b o a . F i q u e i n a d ú v i d a . P a d r e P a r e n t e a l t a n e i r o , s e m p r e , a sobrepeliz no braço, pigarreou forte para disfarçar. Depois continuou ac o n v e r s a , e r a a s u b i r , e u m u l t i p l i c a v a a p a s s a d a m i ú d a p a r a acompanhar. já íamos ao pé da igreja e outra vez trrac, trrac, como se arasgar pano . Mas agora com um f ina l esva ído f in inho

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e sub i tamenteuma pressão de r i so nas minhas bochechas . Padre Paren te to rnou a pigarrear para compor, mas eu agora tinha a certeza - e como travar oriso na garganta? devia estar roxo de desespero. Até que chegámos aoquintal, era um jardim de pedra e havia no ar uma luz aveludada comoum olhar terno. Padre Parente entrou adiante, eu puxei a portinhola deferro, de i meteu a chave na porta do presbitério- Entra.E n t r e i , e n t r á m o s p a r a u m a s a l a a o l a d o , n o c o m e ç o d o c o r r e d o r devia ser o escritório ou coisa assim. Então do alto de uma estante, erauma caixa comprida, pô-la na mesa e abriu-a. Belo, de verniz, o interiorda ca ixa fo r rado de pano verde , sobre as cordas um pano de seda - ov io l ino . Imed ia tamente começou a exp l i ca r -me o ins t rumento , e ram quatro as cordas, mi lá ré sol, o braço, as cravelhas, o estandarte, que erau m t r i â n g u l o d e m a d e i r a p r e t a q u e s e g u r a v a a s c o r d a s e m b a i x o , o nervo que o prendia, os SS, o cavalete. Depois ergueu o instrumento dacaixa, manipulava-o leve, fez-me espreitar pelos SS ao lado do cavaletee entre os tampos, vi lá dentro, era um pauzinho que aguentava os doistampos e se chamava alma. junto ao cavalete havia uma poeira como defarinha, era a resina, explicou-me. Mas não se limpava- Um violinista nunca limpa a resina111e tomou depo is da tampa aber ta da ca ixa um pau que e ra o a rco e t i n h a f i o s c o m o c r i n a s d e c a v a l o q u e e r a m a s s e d a s . P a s s o u - o longamente pela resina, dedilhou brevemente- Senta-te,Ded i lhou levemente as cordas , deu um aper to às c rave lhas para a a f i n a ç ã o , m e t e u o v i o l i n o a o q u e i x o e t o c o u a s c o r d a s d u a s a d u a s , r a n g e n d o a i n d a a s c r a v e l h a s n u m a a f i n a ç ã o s u p l e m e n t a r . P r i m e i r o rodava-as para trás, puxava-as de novo ao seu lugar e o som das duascordas era bom.- Senta-te.Sentei-me. E então, na corda mais grossa- Vou-te tocar aAve-Mariade Schubert.A mão corria-lhe tremente abaixo e acima no braço do violino e natarde que se evolava, uma música suave e longa e misteriosa como nãosabia o quê. Evoco agora essa música e também não sei. Qualquer coisame arrepia e suspende, sobe em mim até um limite e desce de novo ea l a s t r a c o m o a i m e n s i d a d e d e u m m a r . D e p o i s e r g u e - s e d e n o v o , a r r a n c a a i n d a a t é a o i m p o s s í v e l , q u e b r a d e n o v o n u m r e p o u s o espraiado. Música do meu abismo, ó mistério inacessível e tão perto daminha comoção. Ardem-me os o lhos agora que a evoco , ao anúnc io i n d i s t i n t o d a a m a r g u r a e d a p a z . D e v e s e r i s s o a o r a ç ã o , m a s n u n c a rezei assim. Uma ascensão de nós, um esvaimento de nós e uma forçahumana, todav ia , numa i rmanação d iv ina . So l que se levan ta ou uma lua enorme e clara num céu imenso e intensamente escuro, ou um maraber to a té ao in f in i to de nós , qua lquer co isa de p lác ido e ma jes toso , padre Parente tocava, eu ouvia abismado no incognoscível, no excessoque me es t r iava de f r io . E ra uma ta rde de Outono , hav ia s i lênc io nomundo. E eu sentia-me confrontado com o secreto e terrível e todavia112

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doce e fascinante como o mistério de uma lenda da montanha. E ternou m t r e m o r e s t r e m e c e - m e o o l h a r e l e m b r e i - m e , n ã o s e i p o r q u ê , d a palavra inaudível de minha mãe- Tu sabes o que ela disse?A tarde quieta, é uma tarde de Agosto. A montanha estala à praga docalor. Na parede ao lado, o relógio imóvel. Deve ter parado pela noiteq u a n d o o t e m p o s e s u s p e n d e . S e e u l h e d e s s e c o r d a ? E x t á t i c o o universo. Tenho de ir abrir as lojas. Tenho de ir chamar a Deolinda.113XVIIIMas enquanto não vou, Sandra diz-me- Sim. Podemos experimentar.F ina . Senhor i l . A boca resumida em dec isão . Toda a v ida tu fos teassim. Breve. Distante. E eu sempre enrodilhado de pequenez diante doincomparáve l de t i . Agora mesmo, que é que podere i d ize r -te , fazer?um gesto, uma palavra certa que encaixasse perfeita na nova situação.Agora . Recomeçar . E ra como se todo o meu t raba lho len to de en le io , sedução com as palavras de nada e o calor trémulo que as animava, erac o m o s e t o d o o m e u e s f o r ç o d e c o n q u i s t a e s g o t a s s e o f u t u r o n o s e u consentimento, no «sim» que o dissesse. E agora sentia-me desapossadode mim, de uma qualquer fracção de mim próprio que pudesse entrarao serviço da nova etapa a começar. Tínhamos saído das aulas, Sandramorava ao pé da Faculdade, eu dissera-lhe- Se fôssemos até ao pátio da Universidade?que e ra a l i um pouco ao lado , v ia -se em ba ixo e ao longe o r io e do outro lado do rio havia mais cidade que subia por uma colina. E entãoali, junto ao gradeamento grosso de ferro, esvaídos de horizonte, Sandradecerto numa falha de inteireza rigidez. E disse-me- Sim. Podemos experimentar.Céus. Eu era feliz até ao desequilíbrio mental. Fiquei gago, não tinhauma palavra, tomei-lhe apenas a mão, apertei-a e olhei-lhe em febre osolhos pequenos e negros. Ela sorriu compreensiva, um, pouco de foradonde eu estava. E então disse-me- Tenho de ir indo.114E eu não opus objecções, no fundo contente de me desenvencilhar daen ta lação . Mas um d ia , a lgum tempo depo is , não a v i . E la t inha uma irmã que estava no fim do curso, eu conhecia-a, se lhe perguntasse? Via-a de longe, evitava vê-la de perto, como é que lhe havia de falar? E eracomo se uma vergonha mu i to g rande , um pecado ou co isa ass im, ou uma inferioridade muito baixa e que vinha de uma superioridade muitoa l t a e m q u e e u v i a S a n d r a . E u s e n t i a -m e e s m a g a d o d e h u m i l h a ç ã o , como é que lhe havia de falar? Quem é que disse que o amor aproximan ã o s e i q u ê ? n ã o é v e r d a d e . S o u u m h o m e m e x p e r i m e n t a d o - n ã o é verdade . Se eu amasse pouco Sandra ou não a amasse , e ra -me mu i toma is fác i l fa la r com e la , l i da r com e la e com a i rmã e com quem quer que fosse dela, eu livre e independente. Amar é pôr ao alto e ao longe,treme-se como diante de um deus tresloucado. Amar muito é ter poucode nós com que se possa ser gente. Amar é ser desgraçado e eu era. Masum d ia . Sandra morava por c ima de um ca fé , e ra num te rce i ro andar , perto do paraíso. Não ora o café do meu uso mas agora era. Arrastava-me pelas mesas, jogava o bilhar e pensava que

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ela estava por cima. Deu m a v e z n ã o p u d e m a i s , e s c r e v i -t e u m a c a r t a e n o r m e e m q u e m e sangrei todo. Disse «vou dizer-te tudo». O que eu disse. Um dia Sandra,oh, quantas vezes me disseste coisas assim. Um dia Sandra, ela nuncaperdia o pé. E então arreou-me- V o c ê f a l a d o s o b r e q u a l q u e r c o i s a t e m o s e u i n t e r e s s e . M a s e m conversa amorosa (abanava a cabeça) é tão adolescente.Assim. Escrevi-lhe uma carta do tamanho da minha paixão, meti-aao bo lso , sa í . Mas chegado ao marco do cor re io . Pare i , met i a mão ao bolso, fui dar mais uma volta de reflexão. Saber a palavra certa, o gestocerto, a atitude justa. Mas o que é que está certo para ti? Voltei ao marcod o c o r r e i o , m e t i a m ã o a o b o l s o . M a s q u a n d o e s t a v a j á a m e t ê - l a n a115ranhura. Fui dar mais uma volta. Entrei no café, ela estava por cima. Ede súbito, uma ideia fulgurante, uma dessas resoluções com que se faz oheroísmo, subi ao terceiro andar. Mas quando ia a meio já não levava ohero ísmo todo - te re i co ragem que chegue a té ao c imo? Tenho de i r a b r i r a s p o r t a s d a l o j a . V a r r ê - l a s d e a r n o v o e q u e n t e d e s t a t a r d e d e A g o s t o . P r e p a r á - l a s p a r a o r e i n í c i o d e m i m . F u i s u b i n d o , q u a n d o cheguei ao cimo, o heroísmo quase esgotado bati- Entrefo i Sandra quem abr iu . D i r -se - ia es ta r à m inha espera - te r -me- ia v i s t o ? d a j a n e l a e n t r a r a p o r t a d a r u a ? E n t r e i . D o u d o i s p a s s o s , o s sapatos rangiam. E, imediatamente, saída de uma porta, a mãe de olhosexorbitados- N ã o f a ç a m b a r u l h o ! E s t ã o a f a l a r d e p o l í t i c a ! P a r e i , d e p é n o a r , todo eu vergado para a frente, era a senhora Georgina, a mãe - venhampara aqui- Para aqui para esta salae e u f u i . A p o i a v a a p o n t a d o p é , v e r g a v a - m e s o b r e e l e , o s a p a t o rang ia . Depo is suspend ia -me, e rgu ia cau te lo1so o ou t ro pé como se avançasse para uma malfeitoria.- E o meu amigo Paulo, mãe, quero também apresentá-lo ao pai.E u e s t a l a v a d e g l ó r i a . e d e t e r r o r , d i s s e n a c o n s c i ê n c i a i n j ú r i a s violentas ao Manuel sapateiro que me talhou os sapatos de verniz e medisse com o seu riso equídeo- Quanto quer que lhe bote de chiadeiras?e e u n o f u n d o a c r e d i t a v a e g o s t a v a q u e o s s a p a t o s r a n g e s s e m chiassem para proclamar que eu existia em sapatos de verniz quandoe n t r a s s e p o r e x e m p l o n a i g r e j a o u e m c a s a s d e l u x o m a s n ã o a l i , e u es tava che io de rancor assass ino . Fu i andando a té à sa la , punha o pé116suave, descaía sobre ele todo o meu peso devagar, os sapatos de vernizchiavam de um modo, ordinaríssimo. Até que chegámos à sala.- Que é feito de si? Eu vim para saber - disse eu- Chegou o meu paichegou donde? e ela juntou as mãos breves à frente e sorriu grave.- Tinha tantas saudades suas- Tst, tst, que tolice.- Mas tinha!Ela cerziu o rostinho numa censura muda - quero que conheça o meupai.- Gosta muito dele.- Adoro-o.P o l í t i c o a c t i v o , e x í l i o s , r e g r e s s o s d e v e z e m q u a n d o q u a s e clandestinos, dificuldades económicas subsequentes, mas Sandra nãod isse , só mu i to ma is ta rde . A f r io . D isc ip l ina rmente . Em l inguagemdireita como um preceito ético - querida. Eu amei-te sempre

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tanto. Mast u f u r t a v a s - t e , u m b r e v e d e s v i o , o m e u a m o r t r a ç a v a - t e s e m p r e tangentes.- Como se chama? - perguntei para dizer coisas.E r a C a r l o s d a S a l v a ç ã o , o s e u n o m e c o n h e c i d o e r a C a r l o s d a S a l v a ç ã o . A t é q u e c h e g á m o s à s a l a . M a s a o e n t r a r m o s - e r a m t r ê s indivíduos- São amigos do paiadversários políticos, mas velhos amigos desde a escola, em que se écomunitário, estavam os três em triângulo virados todos para a porta,que devia dar para o futuro, Carlos da Salvação era o do meio. Era umt i p o c o m o s o l h o s c o n g e s t i o n a d o s d e u m a p a i x ã o q u e o r e c o z i a p o r117dent ro , t i nha uma cabe le i ra fu lva , escarpada - -na f ron te e f r i sada deanéis.- É o Paulo, o amigo da Sandrae o s e n h o r S a l v a ç ã o s é r i o , o s o l h o s a r d e n t e s d e u m a d e v o r a ç ã o interior. Depois estendeu a palma da mão a fazer sinal que me sentasse- sentámo-nos. Depois o diálogo entre os três recomeçou:- ... no desvairamento da vida moderna- sem leis- nem ideias- nem valores que lhes ordenem o seu destino de homensde uns para os outros as palavras num responso, nos ouvíamos, osolhos e a atenção balanceados no jogo.- na cegueira de uma noite cerrada- na fome na peste e na guerra- na dissolução dos costumes- na depravação das leis- na degradação da misériacomo num jogo de ping-pong as nossas cabeças da verdade de umpara a do outro- é preciso- absolutamente necessário- é de todo imperiosocada um mais enérgico do que o outro- erguer uma barreira que- por um travão queOuço a reza, vou ouvindo- é a verdade da natureza humana- do convívio dos homens118- da paz e justiça universal até ao fim dos séculos. Amém. Quietos, oo l h a r a r d e n t e d e p r o f e c i a - a t é a o f i m d o s s é c u l o s , q u e v e r d a d e ? ó visionários aluados para as necessidades de um homem.- É a v e r d a d e q u e n a c o a b i t a ç ã o i d e o l ó g i c a , o s u s o s e c o s t u m e s , i n d e p e n d e n t e m e n t e d o s e x o e d a r a ç a c r e d o s r e l i g i o s o s e p o l í t i c o s porque a liberdade alicerçada na espontânea realização individual coma l im i tação tá tá tá no d i re i to ina l ienáve l de cada uma das l i be rdades dos outros na harmonia do bem-estar e na concórdia pela fraternidaden o s c o r a ç õ e s e a s s i m p a r a a g l ó r i a d o p o r v i r a b a n d e i r a d a j u s t i ç a erguida bem alto na aurora do dia radioso ah, ah, de uma só pátria, oh,oh, de um só povo, uh, uh, as mãos dadas na fé única que nos abrasa oscorações . Por i sso eu d igo que . Pos te rgados para bem longe todos osmot ivos de d iscórd ia dos que por ignorânc ia ou má- fé , t r i pud iando impunemente sobre a ignorânc ia e o c r ime por i sso eu d igo que . As mãos dadas na tolerância e na compreensão no respeito mútuo, ricos ep o b r e s , c r e n t e s e d e s c r e n t e s , p a t r õ e s e a s s a l a r i a d o s , n o a m o r a o t r a b a l h o , n o r e s p e i t o d a d i s c i p l i n a e o c u m p r i m e n t o i n t e g r a l d o s d e v e r e s c í v i c o s f . . . r . . . à - f r á , a f r o n t e e r g u i d a p a r a o a m o r q u e s e l e v a n t a e o a m o r s i n c e r o e o a m o r p r o f u n d o e o a m o r s e m l i m i t e s à liberdade, viva a liberdade, chiça! Por isso eu digo f... r... é, por isso eudigo f.. r... é, por isso eu canto a paz e o trabalho, que a nossa política é

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ot r a b a l h o e a f r a t e r n i d a d e d o s c i d a d ã o s e a p a z e a h a r m o n i a n o s corações pelos séculos dos séculos.- A verdade humana a... ap! selecção dos mais aptos e a eliminaçãodrástica dos débeis, piolhosos, igualitários, esterco da raça humana pelav i tó r ia a p rumo dos que na lu ta pe la sobrev ivênc ia e apuro dos ma is fortes mais dignos nas purezas do sangue hip... hip! no fortalecimentos a n g u í n e o e é v e r n a n a t u r e z a a v e r d a d e i n s o f i s m á v e l d o s m a i s119in te l igen tes quá quá os ma is l impos os ma is hábe is no desprezo ascom o f o p e l a m i s é r i a a f u n d a r - s e n o e s t e r c o v a z ã o d o s d e j e c t o s e o apuramento da f lo r in tac ta do que t r iun fan te res ta para o fu tu ro do homem limpo pó pó destro e soberano centro por sobre as escorrênciasd o p o d r e i n f e c t o d a m i s é r i a p ú s t u l a d o e n ç a , a í , o h , r a ç a s i n f e r i o r e s m a r c a d a s a f e r r o p a r a u m d e s t i n o e s c r a v o s u j i d a d e i m u n d í c i e n o v a z a d o i r o d a H i s t ó r i a p a r a q u e e m b e l e z a c ó c ó r ó c ó f r e s c u r a d a j u v e n t u d e e t e r n a d a h u m a n i d a d e r e d i m i d a s e l e c c i o n a d a a p t a a enfrentar o rigor do futuro e hossanas e cânticos de triunfo na alegriadas manhãs coroadas de glória e força e glória do porvir com a força acoragem na alma contra o que é fraco e miserável e perecível, arre arre,a compaixão beata pelo chamado semelhante e o doente e o estúpido e omiseráve l onde a semelhança com o fo r te e o háb i l e o poderoso quesobra da luta pelo triunfo e o mando? e que o escravo assim cumpra os e u d e s t i n o d e m a n d o p a r a o a n i m a l d e c a r g a , x ó a í , q u e d e s t i n o d e mando para o animal de tracção? e glória aos gloriosos e baixeza e lamaaos ratos e escaravelhos a... ap!- A v e r d a d e c o n h e ç o - v o s a t r a v é s d a s I d a d e s e l u t a d e c l a s s e e a s contradições internas a super e a infra-estrutura e os meios de produçãobla bla a aristocracia e o triunfo da burguesia e as contradições internase o t r iun fo do p ro le ta r iado e ass im a d i tadura con t ra o imper ia l i smo fase última do capitalismo e a classe dominante porque a verdade, blab l a , b a , d o u t r i n a c l a s s i s t a c o m o t r i u n f o d o s m a i s a p t o s o s q u e n a v a n g u a r d a d a H i s t ó r i a o f u t u r o e o s a m a n h ã s q u e c a n t a m e o e s m a g a m e n t o d a s c o n t r a d i ç õ e s a f o r ç a p r o d u t i v a e o s m e i o s d e p r o d u ç ã o , a c l a s s e h i s t ó r i c a g l u g l u , o p r o l e t a r i a d o e a r e p r e s s ã o i m p l a c á v e l d o s q u e a r r a n j i s t a s s a b o t a d o r e s i n i m i g o s d e c l a s s e e o igualitarismo burguês pela igualdade na supressão de classes120- Ão... ão!- Béu.. béu!- Morte aos- pelo triunfo decomo cães ra ivosos e ram agora como mu i tos d ia logan tes , ve jo -os multiplicados, avançam o pescoço rancorosos rosnavam, tinham umapalavra de ódio sem palavras- Tu sabes o que ela disse?e s m o r d a ç a v a m - s e e m p a l a v r a s i n i n t e l i g í v e i s , a o n o m a t o p e i a d ó r a n c o r d e u m l a d o p a r a o o u t r o , f r e n é t i c o s , e n r a i v e c i d o s , b a b a sangrenta, música do ódio, comidos de raiva, de um lado para

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o outro,avançavam os pescoços, vomitavam-se em ladridos, os dentes caninos àmostra no arreganho, será essa a vossa palavra essencial? por baixo dasmultiplicadas maneiras de terem razão e verdade histórica, eram agoramuitos engalfinhados num ladrar enriçado sem se saber onde começavae a c a b a v a o r a n c o r c o m o c ã e s e n r o l a d o s e s m o r d a ç a n d o - s e u n s a o s o u t r o s . E d e r e p e n t e - é b o a . D e v o t e r p a s s a d o p e l a s b r a s a s , b a t o a s pálpebras chamuscadas do calor esbraseante que incendeia a tarde atéao alto da montanha. Estou só. Silêncio.O calor que me sufoca.121XIXS u s p e n s o d a t a r d e , s u s p e n s a a h o r a n a r a d i a ç ã o f i x a d e t u d o , o tempo. É um, tempo de eternidade sem passado nem futuro, eu aqui,t ranscend ido de ab ismo. Ao rés dos te lhados a té ao l im i te da a lde ia uma tremulina de fogo. A vida mede-se pela quantidade de futuro, nemque seja o de cada hora, não tenho horas a haver, abstractização de mimna i r rea l idade do mundo. En tão lembre i -me de dar co rda ao re lóg io , dependurado da parede. Abro a portinhola em baixo que tem a gravurade um militar vestido à século XVIII, uma das mãos atrás das costas, ao u t r a a c h e g a r f o g o a u m c a n h ã o , a c h a v e d a c o r d a e s t a v a a í . E s t á i m ó v e l o p ê n d u l o , a c h a v e s u s p e n s a d e u m p r e g u i n h o a o l a d o . D e s p r e n d o - a , a b r o o v i d r o d o m o s t r a d o r . E e n c a i x a d a a c h a v e n o or i f í c io das horas , há ou t ro para le lo , para o car r i l hão que as ba te . E devagar como um deus que instaura o tempo na duração humana, ose s t a l i d o s d a r o d a d e n t a d a d a c o r d a . R e s s o a n o s i l ê n c i o d o v a z i o d e eternidade. Rodo a chave, a tensão da corda sinto-a à pressão dos dedosn o r o d a r . S ó e u e o r e l ó g i o n a s u s p e n s ã o d o m u n d o . I n s t a u r o o escoamento do tempo no absoluto do meu instante. Até que travada achave não roda mais, retiro-a para a rodar no outro orifício. Rápido od e n t e a d o d a r o d a i n t e r i o r , m a i s v a g a r o s o à m e d i d a q u e a t e n s ã o aumenta , a h is tó r ia suspende-se do mecan ismo que eu acc iono . Umaave passa ren te à varanda , percebo- lhe o rumor num breve ru f la r deasas. A sala imobiliza-se no fundo das eras, a sala, a casa, a toda a rodae s p e c t r a i s o s f r e s c o s d o p i n t o r . S u s p e n d o e u p r ó p r i o o m e u g e s t o , atento a um qualquer indício de vida que não sei. O sol escalda a areiado caminho, ao longe a montanha estala de aridez. Rodo ainda a chave122em alguns dentes que faltam, estaco por fim no limite da corda. E breve,com um susto de uma rápida vertigem, o turbilhão dos séculos no meudedo subtil, o pêndulo impulsiono-o na sua cadência perpétua. E comose nos começos do mundo, um relógio bate a sua pancada pendular nasmargens do grande rio. Acerto os ponteiros pelo meu relógio de pulso, fecho as tampas, fico a ouvir o seu bater. É um bater compassado e levem a s f o r t e m e n t e m a r c a d o n o r i g o r d a s u a i n f l e x í v e l d e t e r m i n a ç ã o . Tor ren tes de fac tos a r ras tados pe los anos , toda a minha h is tó r ia tão m u l t i p l i c a d a e n u l a , t o d o o

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p o s s í v e l d o m e u f u t u r o i m p o s s í v e l , marcados, traçados, centralizados em inexorável precisão. Fico a ouvi- l o , p e r d i d o e m m i m , a o c o m p u t a d o r d o t e m p o , c o m o u m c o r a ç ã o mecânico da vida. Olho-o, fito-o, na voragem do meu vazio, fascinadode terror. Um relógio bate na vertigem do tempo. Ouço-o.Mas estou nisto quando à entrada da porta- Tia Luísa!e ela responde da sala da escada- Estou aqui! Vem cá dizer!Venho ao corredor, sou eu que regresso do padre Parente- Já lá fui!- Vem cá contar!Venho excitado, vou contar. Antes porém, de começar- Mas sabe, tia Luísa, quando íamos a subir para a igrejan e m m e l e m b r e i d o e x o r c i s m o d a M u n d a , l e m b r e i -m e f o i s u b i t a m e n t e d o p a d r e , d e m ã o s u b - r e p t í c i a a t r á s a i m p e d i r q u e a pressão estalasse viabilizando a compostura, ao pigarrear quando o nãoconsegu iu . E uma von tade b ru ta l . de r i r a tacou-me o corpo todo . Era um riso total, apanhava-me os intestinos, o peito, as bochechas, todo ocorpo me estremecia como num ataque de tosse convulsa, Ria, ria, ria,123as lágr imas sa l tavam-me dos o lhos , sen t ia -me su focado pe la von tadea b s o l u t a d e r i r m a i s e j á n ã o p o d e r . P r e c i s a v a d e r e s p i r a r p a r a recomeçar de novo, arrancar de novo desde o ventre com nova risada,mas havia ainda a necessidade de rir mais e eu sentia que ia morrer desufocação. Depois lá conseguia respirar um pouco. Mas imediatamenter e c o m e ç a v a a r i r c o r n o q u a n d o s e e s t á e n g a s g a d o e s e t o s s e a t é rebentar, tia Luísa tentava travar aquele destempero- Menino! Que termos esses!mas eu não cessava de rir ainda. Travava os dentes para estancar oriso, mas como uma hemorragia o riso esguichava-me de todo o lado.Retornava ao princípio, voltava a rir como se então começasse, as vezestinha mesmo o meu ronco como um porco no estertor, ria outra vez emterríveis sacões que me abalavam todo. Sentia-me esgotado, uma afliçãohor r í ve l e cansaço , os o lhos es to i rados de r i so , quer ia a r t i cu la r uma palavra, descarregar a pressão que me rebentava, mas não conseguia. Eoutra vez me inchava a estalar uma vontade bruta de rir, rir. Dobrava-m e s o b r e m i m , a s m ã o s a p e r t a d a s n a s i l h a r g a s q u e m e d o í a m c o m o numa có l i ca , a cada sacão de r i so do íam-me os in tes t inos , a gargan tae n t a l a v a - s e - m e d e r i s o c o m o d e u m a p e d r a q u e m e n ã o d e i x a s s e respirar. já o suor em todo o corpo, escorria-me da testa, a boca babava-se-me no descontrolo total de mim. E a uma dor mais forte no ventre,u m i n s t a n t e o r i s o s e m e t r a v o u . M a s i m e d i a t a m e n t e , a i m a g e m d o padre, a mão atrás, o traque rasgando-se incontrolado, de novo o risosúbito brutal esguichado desde, os ossos, as unhas das mãos e dos pés.- Acabe imediatamente com isso!Mas esta ordem recompunha-me ainda o motivo do riso e outra vezo riso me dobrava de hilaridade e de dor. O corpo vergava-se-me para afrente, eu atirava as mãos ao ventre, a convulsão abalava-me desde as124raízes da vida. Tudo o que eu era e os sonhos e medos e interesses e aM u n d a e o p a d r e e o v i o l i n o , t u d o s e c o n t r a í a n o e s p a s m o q u e m e v i o l e n t a v a t o d o , m e e s p u m a v a a

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b o c a , m e r e b e n t a v a a s v e i a s d o pescoço , me inchava os o lhos a té ao l im i te de reben ta rem. En tão t ia L u í s a , d e p a c i ê n c i a p e r d i d a , o u j u l g a n d o q u e s ó a s s i m p o d i a t r a v a r aquele destempero mas nem quero ver. Estou à porta da sala, veio tiaL u í s a t o m a r b a l a n ç o c o m o b r a ç o p a r a a c h a p a d a n a c a r a , v e j o - m e subitamente compreendendo o estalo forte que aí vinha, o meu braçoc u r v o , e r g u i d o i n s t i n t i v a m e n t e e m d e f e s a d a c a r a . E n e s s e e x a c t o instante tudo se imobilizou. Como um grupo de cera, imóveis ambos,tia Luísa com a mão atrás a tomar balanço, eu com o braço curvo dianted a f a c e . A c a s a a f u n d a - s e n o s i l ê n c i o d a t a r d e , v e j o - o s a a m b o s espectrais, imóveis de cera no fundo do tempo, na irrealização do meuolhar fito. Olho-os intensamente, estão intactos na eternidade. Tia Luísatem um ricto de esforço ou de cólera, o braço fixo no gesto de bater, euaguardo com o meu, braço recurvo em defesa. Não se ouve um rumorna ta rde parada . Pe la jane la a t rás ve jo as te r ras d is tan tes , sombras de matas, aldeias perdidas no horizonte. Das terras do vale não sobe umavoz, das que retinem no silêncio dos campos. Aguardo instintivamentea q u e h á , p o u c o c a n t o u . U m a a v e p a s s a n o e s q u a d r i a d o d a j a n e l a , f u g i d a a o c a l o r . S ó o b a t e r c o m p a s s a d o d o r e l ó g i o r e s s o a n a c a s a , marcando o tempo do cosmos. O lho a inda o g rupo de cera , t i a Lu ísapron ta a agred i r -me, eu na de fesa . Depo is , pouco a pouco , as f igu ras d i s s o l v e m - s e n u m e s f u m a d o d e b r u m a , d e s f a z e m - s e n o a r . A s a l a deserta. A casa deserta.125XXE foi quando a tia Joana- E a manga? Não trouxeste a manga?Eu chorava com alarido, tia Luísa não batia muito, mas eu choravamuito para não bater muito. Não, não tinha trazido a manga- V á j á i m e d i a t a m e n t e à l o j a b u s c a r a m a n g a q u e e r a c o m o s e chamava a chaminé de v id ro do candee i ro , es tava sempre a es ta la r . Lavavam-na do fumo, punham-na ainda húmida e estalava. A loja forad o m e u p a i , e l e p a r t i r a . M i n h a m ã e n ã o s a b i a t o m a r c o n t a d e l a , tomaram minhas tias, puseram lá o Almas a dirigir. Eu ia lá buscar asc o i s a s , e l e a p o n t a v a , c r e i o q u e d i r i g i a c o m m ã o a d u n c a . V o u à l o j a b u s c a r a m a n g a , m a s e s t o u t ã o c h e i o d e c o i s a s q u e a c o n t e c e r a m , lembro-me sobretudo do violino que irei aprender. E então para que menão esquecesse . Vou repe t indo comigo , mesmo em voz a l ta manga,manga, manga, manga. Mas quando chego à lo ja a pa lav ra na minha b o c a f o r a - s e a l t e r r a n d o c o m o é p r ó p r i o d a s p a l a v r a s s e g u n d o a s u a evo lução foné t i ca . Vou d izendo manga, manga. Mas impercep t i ve l - mente, quando chego à loja já levo outra palavra na boca. E digo- Senhor A lmas , as m inhas t ias d isseram que lhes mandasse uma manta.- Uma manta?Realmente. Mas não me lembro de mais nada.- E de que cor é que é a manta?- Isso não me disserame o Almas põe-me ao ombro uma manta

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azul, venho carregado comela, tia Joana deu-me ela própria uma sova para a divisão do trabalho:126- Para que quero eu cá uma manta , seu a lvo reado? Vo l te já à lo ja e traga uma manga para o candeeiro!mas eu nunca soube a pa lav ra essenc ia l - qua l a pa lav ra que é tua p a r a e n f r e n t a r e s a m o r t e ? S e m p r e d i s s e m a n t a e m v e z d e m a n g a , sempre errei os sons na minha boca- Tu sabes o que ela disse?s e m p r e d i s s e o q u e n ã o e r a d e d i z e r . E s t á s s ó , a g o r a , b i l i õ e s d e palavras se transformaram na vida - uma só que soubesses, a única, aabsoluta, a que te dissesse inteiro nos despojos de ti. A que atravessassetodas as camadas de sermos e as dissesse a todas no fim. A que reunissea vida toda e não houvesse nenhum possível da vida por dizer. A quedissesse o espírito do nosso tempo e no-lo tornasse tão inteligível quenem afinal o entendêssemos, o víssemos, como se não vê a luz mas só oque e la i l umina . A que red im isse tudo o que enche um v ive r e nadade ixasse de fo ra como inú t i l ou desperd íc io . A que t i vesse em s i um significado tão amplo que tudo nela significasse e não fosse coisa vã. Aq u e r e u n i s s e e m s i u m h o m e m i n t e i r o s e m d e i x a r m e s m o d e f o r a o animal que também tem de ir vivendo. A palavra final, a palavra total.A única. A absoluta.- Tu sabes o que foi que ela disse?E e s t a v a e u n i s t o q u a n d o a l g u é m s e s e n t o u a o p é d e m i m . O h , conheço-o, sou eu do tempo da juventude. Estou em mangas de camisa,uma camisa de rede para me pôr em relevo os peitorais.- Que calor, hem? - digo eu para mim e para haver conversa antes dea haver.- Não dev ias andar de camisa de ma lha . Há as cor ren tes de a r . Há uma dor na pleura que nunca te passou.127- Po is . Mas há co isas mu i to ma is impor tan tes do que uma s imp lesdor de p leura . É p rec iso te r conversado com o pa i de Sandra para osaber. Eu conversei.E i m e d i a t a m e n t e d e s e n c a d e o u u m a o f e n s i v a t á c t i c a c o n t r a u m in im igo inv is íve l ou con t ra o in im igo v is íve l que e ra eu . E imed ia ta -mente a luta de classes e a ideologia da classe dominante. E a infra e asuperestrutura, e o fim da História com a ascensão do proletariado. E om a t e r i a l i s m o i d e a l i s m o d i a l é c t i c a e p a s s a g e m d a q u a n t i d a d e à qua l idade . E o mate r ia l i smo h is tó r i co , E o t r iun fo soc ia l e da paz no universo. Depois calei-me, eu olhava-me quase com ternura - ó tempoda juventude e da verdade ao nível do músculo. A tarde lá fora, a aldeiaabrasada em silêncio. E então perguntei:- E depois?- Como depois?- Porque ou tu não realizas o absoluto sonhado e então falhou, ou or e a l i z a s e f i c a s à b o a v i d a . E e n t ã o d e p o i s ? C o m o v a i s v i v e r e m pasmaceira? E em que alínea do teu programa político se trata tambémdo problema da morte?E eu então dispararei contra mim:- Que problema de merda é esse do absoluto e da morte?- Fala baixo que as tias podem ouvir.- Que p rob lema de caca é esse de desocupados? Tu dev ias passar fome para teres razão de falar. Os teus problemas são um insulto paraq u e m n ã o t e m q u e c o m e r . E u e s t o u - m e

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n a s t i n t a s p a r a t o d o e s s e mistifório de meninos mimados pela sorte. Quero lá saber do depois dod e p o i s . Q u e r o é s a b e r d o a g o r a , a q u i , q u e r o s a b e r d e p r o b l e m a s c o n c r e t o s , d a q u e l e s q u e s e r e s o l v e m c o m a s m ã o s , c o m o s p é s , n o estômago. Toda essa metafísica de merda128- Fala baixom a s e l e n ã o p a r o u . I a l a r g a d o n o s e u p r o s e l i t i s m o , a s p a l a v r a s encadeavam-se-lhe automáticas em engrenagens precisas. Ouvi com apac iênc ia que me cab ia . Porque uma verdade ma is juven tude não dá p a r a a p a c i ê n c i a . P a c i ê n c i a t e m - s e é q u a n d o n ã o h á j u v e n t u d e n e m verdade. Oh, tu hás-de ficar velho e de monco caído. Mas mesmo agoraque ainda estás em estado novo. Daqui a pouco e neste mesmo capítuloa Sandra há-de-te dar com a porta na cara. E então toda a verdade quete enche os peitorais há-de-se-te esvaziar. Estou-o pensando enquantoacendo um cigarro para a tarde quente e suspensa.E quando sopro a primeira baforada estou de novo só. Vou de novoà S o e i r a , t e n h o u m e n c o n t r o c o m S a n d r a . É u m e n c o n t r o e s p e c i a l , trabalhei-o a diligência e imaginação. Sei que ela vai ficar derretida dete rnura com a minha lembrança . Der re t ida como eu que conceb i esse lance com a alma desfeita em sumo e em açúcar. Venho à Baixa à loja,levo a prenda numa bolsa de papel. Oh, ela vai ficar encantada, há-desor r i r che ia de comoção in te r io r , sem um in te rva lo onde nasça umapalavra plausível. E eu ficarei mudo também, tomar-lhe-ei a mão parafalar sem dizer. Venho de novo a casa, moro na Rua do Loureiro. É umar u a d e s o m b r a , c o m e s c a d a s h ú m i d a s v i s c o s a s , c o m u m c h e i r o a fe rmentações nos recan tos . Ve jo no p r ime i ro andar um t ipo magro à janela, passa ali os dias. E em frente, também à janela, está um tipo deMedicina «a respirar». junta os braços, diz ele, para criar uma coluna dear quente e respira. Vejo-o às vezes nas ruas, parado, os braços paralelosem frente do peito. Está a respirar. Mas do outro lado, a casa. Dá parauma vaga da c idade que se a l te ia depo is a té à to r re da Un ivers idade . Vou a casa, ao quarto, quero escrever uma dedicatória. Vou-a pensandoentalado pelos rangidos do eléctrico, distraído entre os passos que vou129alongando até à porta. «Para você, querida Sandra, com todo o» - o quê?Amor a fec to pa ixão , po is . As fo rmas cer tas da leg is lação namorada -q u e e s t r a n h o . H á u m s e n t i r p r o f u n d o , s ó e u o s e i . D e r r e t i m e n t o f in íss imo de cada f i l amento de mim - quem mo inven tou? Porque ocód igo amoroso inven ta -se em cada época em que se amou - como e possível? Como é possível que o que eu sinto e me abala e me dissolvecomo um fruto espremido de podre - como é possível? Mas agora toda ainvenção que me inventaram é a verdade em que não cabe erro algum -v o u t e r c o n t i g o a c a s a d a t u a c o l e g a , m o r a a o p é d o A r c o d o B i s p o . E s t u d a m a s d u a s , v o u t e r c o m e l a i n e b r i a d o d e p r a z e r . É u m p r a z e r todo espiritual, vibra-me desde as unhas dos pés, incide sobretudo nasz o n a s o c u l t a s d e m i m q u e s e a l o n g a m a t é à r o d a d o u m b i g o e d a gargan ta . Não an tes . E todo dado a e le não

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t enho , espaço para mete r u m a p a l a v r a c a l m a a l t a n e i r a d e u m a c o n f i a n ç a m a c h a . T o c o a campa inha , é a co lega que espre i ta de uma jane la , eu em ba ixo a f l i t o , c o m a p r e n d a n a m ã o . _ E s t a l a o t r i n c o d a p o r t a , s u b o a e s c a d a d e degraus ba ixos . E quando en t ro na sa la , a co lega re t i ra -se , Sandra va i aparecer.- Sandra! - digo-lhe eu, todo escoado de deslumbramento. - Lembrei-me de lhe trazer uma pequena lembrançae imediatamente, da bolsa de papel, extraio devagar para o encantode Sandra - uma fotografia. É uma fotografia grande, só o busto, todoesfumado nos contornos como a minha adoração. Mas Sandra, breve, amão curta no ar, não, não.- Vamos acabar com tudo isto que não tem sentido nenhum.Assim. Fria, sintética. Cerzida a fala entre dentes. Travado eu de nósem todo o corpo, a súbita evidência do desastre e humilhação. Tenho afotografia nas mãos, emparvecido em amargura e vexame130- Mas porquê, Sandra? O que é que eu fiz?- Nada. Tudo isto é estúpido, é assim. De repente um dia a gente vêque uma coisa é estúpida. Só isso.- Mas eu...eu quê? Qualquer palavra que eu dissesse, palavra de riso, desprezo,a r r e b a t a m e n t o . Q u a l q u e r p a l a v r a , q u a l q u e r a t i t u d e . T u d o f a l s o e d e s c a b i d o e m a i s v e x a t ó r i o a i n d a . F i c o e m s i l ê n c i o a l g u m t e m p o , à espera de saber o que dizer. Porque estou só, desacompanhado dela.O amor é um jogo, tenho de ter um parceiro, Sandra põe-se de fora aver-me jogar sozinho. Recolho as peças do jogo que é a fotografia, aindabem que ela não leu a dedicatória, tenho pena de mim. É uma pena tãogrande. Pena para quando estiver a sós, agora não. Sou capaz de chorard e p e n a , d e p o i s d i g o q u e é d e r a i v a , S a n d r a s o r r i . S e r á d e p e n a também? ve jo - lhe os den tes pequenos cer tos cerz idos . A boca b revevermelha do bâton. Não temos mais nada a dizer. Estendo-lhe a mão,seguro-lhe a dela um instante. Mão pequena, toda Sandra é brevíssimae é decerto o que mais me humilha. Fosse ela uma mulher grande, seriado tamanho da sua ofensa. Assim é como se ela não tivesse o direito deofender tanto. Entardece na sala, da rua vem o ruído do tráfego em quea minha dor se perde e se humilha mais. Então, no desespero - que ideiaabsurda. Em realmente absurda mas a minha desgraça ainda era mais.Eu é que sabia. De modo que foi assim: se eu fosse homem e te aplicasseum es ta lo? fo i rea lmente ass im. Acordava na minha g randeza machaofend ida o que pudesse es tabe lecer o equ i l íb r io . Sen t ia um impu lso enorme na minha mão espalmada. Crescia-me do ombro até ao rodadod o s d e d o s . M a s n ã o a d e i x e i i r , f i c o u a í . M e s m o , s e c a l h a r , j á n ã o s e usava. E então disse apenas- Boa tarde131e f o i s ó o q u e e n c o n t r e i p a r a e q u i l i b r a r o d e s n í v e l . E s ó q u a n d o descia já a escadaria eu me lembrei, como é da psicologia, do que deviad i z e r . P a l a v r a s q u e n t e s d e r e v o l t a . P a l a v r a s c a l m a s d e q u e m v ê n a reacção de la um capr icho tác t i co e passage i ro . Ou ins is t i r em querer saber o que e que eu tinha feito de inconveniente. Ora. Se eu sabia. Aliásum dia, mais tarde, Sandra esculpiu-

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mo a escopro num sítio escuro daalma:- Ridículo. Muito. É só. Não sabes ter à-vontade. Que fazer? Não seif i n g i r q u e a m o p o u c o q u a n d o e m m i m a m a t u d o . E à m i s t u r a , u m a ternura sub t i l . Uma inde f in íve l regressão à men in ice . É ass im. Sor r ioagora na minha amargura adu l ta . O lho à vo l ta o s i lênc io do mundo.O lho em f ren te o caminho deser to . Tenho de i r fechar as jane las lá dec ima para a casa não aquecer . Tenho de i r ouv i r o P in to que f i cou no «o» de «privilégio». Tenho de ir abrir as lojas para arejarem.132XXITenho de . O pequeno in te rva lo en t re a m inha d ispon ib i l i dade e apequena ta re fa a rea l i za r . É o meu fu tu ro . Reduz ido minúscu lo . Nãoo lhes ma is longe . Agora o teu fu tu ro é o pequeno passo que dês para fechar as jane las , para abr i r as lo jas . Agora a tua v ida é o ins tan te emque v ives . Nada ma is , nada ma is , mas não te lamentes . Sê in te i ro na dignidade de ti. Uma mosca entrou, é uma mosca vareja, pela varandaaberta, vêm furiosas do calor à procura do fresco. Ouço-a no traçado dos e u r u m o r n a s o m b r a e a t a r d e f o i m a i s q u e n t e . T a r d e s d e V e r ã o n a sufocação de outrora, na minha memória aflita - sê inteiro na verdadede t i . T ia Lu ísa , t i a Joana , manhãs a l tas de ca lo r no espaço aber to da minha solidão - meu Deus. Que significa uma vida realizada em tremor,em agonia, em pequenas alegrias do que se conquistou e foi logo o nadad e s e t e r c o n q u i s t a d o ? A g o r a o m e u f u t u r o é o m e u p a s s a d o n u l o . F a c t o s i d e i a s e s p e r a n ç a s d e s a s t r e s e a r e c u p e r a ç ã o d e t u d o i s s o n o encan tamento t r i s te a té ao a rdume do choro . Sê ca lmo e fo r te como averdade da v ida . F r io ind i fe ren te neu t ra l . O lho a montanha , não me canso de a olhar. Tem a potência nula de apenas ser. Extática majestosa,a c o r e s c u r a d a i d a d e d o c o s m o s . I m a g e m f r i a d a s c o m b u s t õ e s d o u n i v e r s o e i n s t a n t â n e o a í o r i d í c u l o d o p e r c u r s o h u m a n o . S i l ê n c i o c o n g l o m e r a d o n a t a r d e d e f o g o . O l h o - o n a i m o b i l i d a d e d e t u d o , n o recorte da montanha contra o céu requeimado - porque se calou a vozdo fundo do va le? não a ouv i ma is can ta r . En tão e rgo-me de súb i to , venho à janela da sala atrás, dou um berro imenso para ’a distância- Can... an... ta!133E f o i c o m o s e o m e u b e r r o e m b a t e s s e d e m o n t e e m m o n t e desorientado louco, foi como se. Devia haver, submersas petrificadas,vozes de outrora de quantos homens um dia em esperança em loucurapela infinidade dos milénios acordai! gritai! afirmai a vossa força contraa surdez ob tusa do un iverso . F ico t rému lo à jane la , o que ixo , s in to -o , t remente no absurdo da minha có le ra . Tenho de i r fechar as jane las , tenho de ir abrir as lojas, tenho de. Escuto ainda o silêncio do mundo,escu to a voz que não vem, a cabeça l i ge i ramente inc l inada ao g rande espaço vazio. Ao fundo do vale, pequenos campos de verdura, ao longen o t r a n s l ú c i d o d a d i s t â n c i a , s ã o a s p e g a d a s d o h o m e m , p e q u e n o s indícios brancos de aldeias. Uma voz que se

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erguesse, uma voz ouvida eque se calou - estou só. Ah, o elo de uma voz que nos defenda contra aagressão das coisas. São coisas mudas enquanto a nossa voz fala maisa l t o , d e p o i s s ã o e l a s q u e f a l a m . F a n t á s t i c a s l ô b r e g a s . C o m o o l h a r e s trocados na sombra. Um espírito vive nestes móveis, nos desvãos dasescadas, nos esconderijos do sótão, das lojas - tenho de as ir abrir, tenhode. Cons t ru i r o fu tu ro sem fu tu ro para cons t ru i r . Inven ta r um rumocont ra um muro - se tu can tasses , voz anón ima da te r ra . Vem-me de novo o apelo à garganta, tenho medo de mim. Desta coisa que está emmim, viva alucinante. Esta presença que tenho de esquecer para que euviva tudo à superfície. À minha volta o universo, dentro, na sala, o baterdo re lóg io . E um ba te r len to , como a cadênc ia do des t ino . É um ba te rcompassado como os passos da mor te - e onde es ta rão as chaves5 Da lo ja . An t igamente e ra na coz inha , hav ia um prego a t rás da por ta . A minha volta, o silêncio dos espaços de um universo por nascer. E entãoi m a g i n o - m e - q u e i d e i a . C o m o s e e u f o s s e o p r i m e i r o h o m e m m a s nascido já na decrepitude - o último homem? o que recolheu em si todaa herança dos séculos sem ninguém a quem a transmitir. Sábios santos134heró is . E a montanha de obras de a r te da nossa invenção in fan t i l . Embreve o rnontículo de estrume para o vazadoiro da terra - onde estarãoas chaves? Há uma porta da frente e duas de trás. Mas só a da frente seabria, as outras abriam-se por dentro. Não recolho a herança do mundonem a minha existe, é a herança de um homem. Morrerá comigo tudoquanto soube. Não soubeste muito, é a verdade. Oh, sofri, amei, crieiuma f i l ha - onde es ta rás tu? Que é que de mim es tá em t i? excep to o sangue que foi meu mas tu não o sabes. Invenção de ti mesma como ade todo o homem que abre os olhos para a luz. E escrevi catálogos deobras mortas para um pouco existirem ainda. Canta, voz ’ignorada etão pura . Tão a l ta como a d is tânc ia a té aos as t ros ma is a l tos . E en tão ,como se ouv isse o meu ape lo , de súb i to no espaço in f in i to da minha solidão. Vem lá do fundo do vale, estremece com o ar trémulo do calor.Vem dos ab ismos de mim, da minha deso lação , abre no a r como do is braços de triunfo. «ó minha amora madura» - não entendo a letra masadivinho-a pela música. É uma música de bailado mas agora espacejadanum ritmo religioso, longo, espraiado como um dobre de sinos. Reboapelo espaço, os montes estremecem como a urna palavra divina. Estou à janela e tudo de súbito é longe. Disperso na voz que se expande, sobeem coluna, abre em majestade como um poder terrível. Não sei onde demim a escu to , marav i lhado e t remente como c r iança que não sab ia . Ee m t u r b i l h ã o t o d o , o p a s s a d o , v e m c o m o v e n t e n ã o p o r q u e s e j a d e comover mas porque ina t ing íve l es tendo em mim os b raços imóve is p a r a o t o c a r . D e p o i s a c a b o u - s e e t o d o o u n i v e r s o à v o l t a v e j o - o d e súb i to c rescer . É imenso e o seu s i lênc io a tu rde-me. A chave es tava s e m p r e n u m p r e g o a r r a s d a p o r t a d a c o z i n h a . À s v e z e s t i a J o a n a mudava-lhe o sítio, pousava-a no primeiro móvel que encontrasse para

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135ir primeiro a qualquer lado e depois esquecia-se, tia Luísa furiosa, a falabaixa, rilhada entre dentes- Onde é que puseste a chave?- Ai, mulher, olha, não sei, pousei-a aí não sei ondet ia Lu ísa i rada , um be l i scão no b raço por c ima da b lusa , t i a Joana arregaçava a manga para mostrar a sua infelicidade. Mas vou à cozinha,a chave está lá. Desço as escadas da rua, um calor espesso de fornalha.O sol quase na perpendicular, não há sombras. Olho em volta o jardimselvático, os canteiros esboroados, o dossel do tanque desmantelado. Achave entra na fechadura, range perra de ferrugem.E de súbito, quando desloco a porta. Eu suspenso no limiar, invade-me uma vaga de mistério e de assombro. Não é a minha casa, esta, nãoabri nela os olhos para o ser. A minha casa é na praça, onde minha mãe,e l a d e b r u ç a v a - s e d a j a n e l a , o A u g u s t o c a r t e i r o , u m d e d o n o a r s e m sequer olhar para ela a dizer que não. Mas vim para esta muito cedo, aoutra alugada nem sei a quem, nasci aqui pela segunda vez. E ao frescord a s c a t a c u m b a s , e u p a r a d o s e m p r e n o l i m i a r , v e m s o b r e m i m o mistério, das eras desde as raízes do meu lar. Fora já do meu avô, nuncao conhec i , beb ia , co r r ia os f i l hos à pau lada , t i nha mau v inho . Ra ízes profundas desde o escuro do tempo, ouço nela a palavra que não sei, ap a l a v r a c e r t a d a s c o i s a s , a v e r d a d e p e r f e i t a d e s e r . M a i s d o q u e e m cima, nos andares de cima, eu abrira as janelas como se de há pouco aa b a n d o n a s s e , a g o r a s i n t o - m e e m f a c e d o s e u m i s t é r i o . G e n t e s q u e passaram mesmo antes do meu avô, não lhes soube nunca o nome. Masd e s s a g e n t e i g n o r a d a é c o m o s e f r i a m o r t a l a s u a l e g e n d a a q u i s e gravasse depositasse e ao meu olhar incerto se abrisse no dom da suarevelação. Como se de urna passagem breve o calor arrefecido perdu-rasse em cada co isa e a sua resp i ração humana eu a sen t i sse no ros to136vinda do escuro dos fundamentos. Como se o fantasma da sua presençavago de sombra , aqu i no s i lênc io sepu lc ra l , desse um sen t ido a tudo ,minha morada, como o da primeira palavra que o homem disse sobre aface da Ter ra . O lho em vo l ta , a luz c rua da ta rde en t ra comigo , ten todecifrar a escuridão. Teias de aranha no encontro dos muros, um fogãode fe r ro a um can to , co r ro ído do tempo, cade i ras sem pés , uma mesac o m m e t a d e d o t a m p o , v e l h o s q u a d r o s d e c a i x i l h o s d e s e n c a i x a d o s , encostados às paredes. E tudo em mim ressoa à infinitude, envolto deum halo sagrado que me fascina e repele. Verdade primordial filtradaa t ravés dos anos , pur i f i cada pe lo so f r imento e o sonho e a agon ia do c a n s a ç o . V e r d a d e s i m p l e s e p u r a e d e f i n i t i v a c o m o o o l h a r d e u m a n i m a l . V e r d a d e e t e r n a , p a l a v r a o r i g i n a l c o m o a d e u m d e u s . O l h o ainda, não me canso de olhar, escuto o silêncio intrínseco dos começosda vida. A loja tem ao meio uma parede mestra com o vão de uma portaa um extremo. Passo por ela para o outro lado da loja que tem tambémuma porta para fora mas que não abro. Ao alto há uma pequena vidraçacober ta de uma grossa camada de pó . F i l t ra -se por e la uma luz baçacom que dec i f ro todo o in te r io r . A rcos de

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p ipa , um t r i c i c lo sem umaroda , uma arca que e ra sa lgade i ra , um es tanque ao fundo em que se guardava a batata nova. Tudo quieto, no fundo do tempo. Então reparein u m a p r a t e l e i r a a o l a d o - u m f e r r o d e e n g o m a r , f o t o g r a f i a s c o m o c a i x i l h o p a r t i d o , u m a m a c h a d a f e r r u g e n t a e e n t r e o u t r o s v á r i o s des t roços , com um braço par t ido , um an jo de tún ica azu l dos que se punham outrora no presépio. Tomo-o devagar, olho-o à luz poeirentado alto. Havia dois lá em casa, lembro-me. Tinham um joelho em terra,erguiam o outro, tinham as mãos postas em adoração. De um lado e deou t ro da lap inha , adoravam o men ino Deus no sem- f im da legenda. T o m o e s t e d e v a g a r n o t e r r í v e l d a q u i e t u d e d a s c o i s a s e m r e d o r , n o137s i l ê n c i o c o a l h a d o d e s o m b r a , n a m e m ó r i a s u f o c a n t e d o t e m p o q u e passou. Não abro a outra porta da loja, gravado de terror. Meus passosde medo na perturbação do sono da morte, na imobilidade dos séculosque se acumula ram nas co isas . Ter ro r sagrado da p ro fanação de um sepulcro. Coaguladas à minha volta as vozes de outrora, fixas à minhavo l ta como um cerco de o lhos t r i s tes . Sa io pé an te pé , levo comigo o a n j o m u t i l a d o . N ã o d e i x o a p o r t a a b e r t a , f e c h o - a d e n o v o s o b r e a s s o m b r a s d a g r u t a , s o b r e o s s é c u l o s d e r u í n a e d e m e d o s . F o r a , o s o l crava-se fundo na terra, requeima de pólo a pólo toda a vastidão do céu,s u b o a e s c a d a r i a c o m o a n j o n a m ã o . A n j o m u t i l a d o e d e s ú b i t o m e parece que qualquer coisa que me ligava a ele se mutilou também. Horade infância, saudade estúpida pelo que nunca existiu. «Roxozinho estáde i tado» - Na ta l . Sen to -me de novo na sa la o lho o an jo da mut i lação .«Em pa lh inhas Deus in fan te» - can ta ! Can ta na p ro fund idade do meu ser, na súbita ternura que me humedece o olhar. «Oh, quem viu florirno prado botãozinho mais galante» - na obscuridade de uma lembrançaobs t inada e sem sen t ido nenhum. Es tá quen te - es tá f r io , é uma no i te limpa, noite côncava de estrelas. Que é que relembro no que é tão pobrep a r a r e l e m b r a r ? E s t á s s ó , t o d a a v i b r a ç ã o p a r a a l é m d e t i é u m e r r o in fan t i l . «Do varão nasceu a vara , da vara nasceu a f lo r» - e todav ia . Mísero montículo de pequenas recordações ampliadas com o espíritoque cresceu em mim. «Da flor nasceu Maria, de Maria o Redentor» - nad i s t â n c i a d e v e r t i g e m d a m i n h a s o l i d ã o . S ê i n t e i r o e d i g n o , s ó h á dignidade e grandeza e virilidade na calma do sofrimento. Como se oque se lembra fosse só o relembrar, como se a saudade fosse feita de sip r ó p r i a . T o r r e n t e d e a c o n t e c i m e n t o s q u e i n u n d a r a m u m a v i d a e o minúscu lo r id ícu lo c in t i l a r de u rna luz mor t i ça - que es t ranho . É uman jo de bar ro , tem uma tún ica azu l , fa l ta - lhe o b raço d i re i to . Tem as138m ã o s p o s t a s , s ó u m a m ã o q u e é a e s q u e r d a . L e m b r a a s s i m d e c e r t o â n g u l o , é c o m o s e a b e n ç o a s s e o q u ê ? S i n o s d e o u t r o r a , l e g e n d a d o tempo. Como se abençoasse essa memória perdida, mas não te comovasna in tegr idade de t i . Es tá

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quente . Todo o espaço v ib ra às chamas do incêndio. A terra abrasada, concentrada de silêncio. Anjo das ruínas een tão pergun to -me desde quando se quebrou a nossa cumpl i c idade .Embut ido em re l ig ião desde pequeno, ensopado a tacado de re l ig ião desde a infância - desde quando é que? Pouco a pouco à medida que iacrescendo, como a lua que vai subindo e vai perdendo o tom sangrentodo ventre da montanha. Como um fósforo que se vai apagando. Como.Então há um je i to que f i ca como quando se pergun ta «es tá bom?» ou b o m d i a , c o m o v a i ? » , h á u m m o d o a r t i c u l a d o d e s e r m o s , u m g e s t o desencadeia outro nessa articulação, a vida é tão feita de automatismos.E t a n t o q u e e n q u a n t o s e e s t á a r e z a r s e p o d e e s t a r a p e n s a r e m assassinar alguém. Ou dizer «bom dia! em dia de tempestade. Ou dizer«não sou crente, graças a Deus». Ou dizer «oxalá» e ter fibra de cristão-velho. Assim é que se em vez de dizer «boa noite» se disser «noite boa» já se faz uma revo lução e nos ju lgam ta rados - desde quando é que?Ponho-me a pensar , não é fác i l . Hav ia uma le i i nsc r i ta no e te rno , t i a Luísa e tia Joana tinham-ma inscrito no sangue. E a própria sucessão dotempo a observava - Natal, Páscoa, os domingos, dias santos. E o tempoh u m a n o t a m b é m , b a p t i s m o , c r i s m a , c a s a m e n t o , e n t e r r o - h a v i a u m esquema em que tudo se enquadrava , uma le i que não de ixava nada fora do seu alarme. Havia sobretudo um sentido a dar à vida, a fúria doporquê à espera de uma resposta. Todavia desde cedo eu tive, objecçõesh e r é t i c a s , l e m b r o - m e d e q u e n a p r a i a . A s m i n h a s t i a s t i n h a m distribuído entre si o tipo de matérias de educação religiosa, tia Joanatinha a parte negativa ou terrorista, os condenados ao inferno, as almas139do ou t ro mundo que aparec iam de no i te para assus ta r , apar i ções do diabo em feitio de burro ou de cabra e outras coisas educadoras assim.Tia Luísa tinha a parte positiva e militar, estar a horas na igreja, não mecoçar durante a reza sobretudo no lado de trás, ter as mãos bem postas,inc l ina r a cabeça para o pe i to depo is da comunhão e ou t ros deveres rigorosos. De modo que a heresia. Foi com a tia Joana, ela dizia-me queo céu ficava por cima e por baixo da terra ficava o fogo do inferno. Masu m d i a , e s t á v a m o s n a p r a i a , e u e n t r e t i n h a - m e a f a z e r u m a c o v a n a areia. E a certa altura começou a haver água, eu tinha ali a prova de queo fogo debaixo da terra não era verdade. Tia Joana encolhida no toldo iarezando as contas pelos pecados de indecência que ia vendo na praia, fui ter com ela orgulhoso da minha heresia.- Não há fogo! Tia Joana, debaixo da terra há agua, eu fiz uma cova evi! Não há fogo do inferno!- Cale-se, seu herege. Seu bardino! Há fogo mas é nas profundas doinferno que é para onde você vai se disser essas coisas horríveisos olhos esbugalhados de terror.Bruscamente, é na sala ao lado que há-de ser o escritório, estala umclamor- Deolinda!um clamor despropositado, sou eu, conheço já a minha voz - algumaurgência amorosa? mas já não estás em condições desses destemperos.Acorro eu à pressa, lá estou. Mais encarquilhado de velhice, a barba porfazer- Tu não sabes barbear-te todos os dias?- Não cha te ies . E barbear para quê?

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Não tenho v is i tas , sou eu só a minha visita, mas não me vejo ao espelho. Não chateies.140- Mas que é que se passa? Acode aqui a aldeia- inteira. Há livros portodos os lados, uma mesa com livros, tenho um livro na mão.- Já d isse mi lhen tas vezes a essa ana l fabe ta que me não mexa nos papéis. Mexe sempre, põe tudo fora do seu lugar.- Que livro era? Posso-te ajudar. E que andas tu a ler?Ele sentou-se - estás bem arruinado. Que livro era? Como podes tuter ainda a paixão dos livros? Não é tempo de arranjares novas ideias,agora é tempo de gastares as que te restam. Olho-me sentado num sofáesbeiçado, uma selecta velha na mão- Uma selecta?Que sabes tu disso? Trazes ainda em ti uns restos de intelectual, quesabes tu? Uma selectau m a s e l e c t a v e l h a , s i m , e d e p o i s ? E r a s a b o r o s o r e l e r t r e c h o s d a escola. Recuperar a inocência num tempo em que se gastou. Lia selectas,cadernos de exercícios que tinham sobrevivido à ruína. Lia os restos quehav iam de v i r em ca ixo tes que eu de ixara já fechados emba lados na capital.- E v o u a r r a n j a r d i s c o s d e t o d a s a s m ú s i c a s q u e c o n h e c i n a juventude.Tangos, fados, músicas de revistas que tinham andado em voga hátrinta quarenta anos.- Lembras-te do «poema-tango»?E r a u m a t a r d e d e V e r ã o e m P e n a l v a , a l g u m a l t i f a l a n t e l a n ç a v a a mús ica às revoadas da a ragem. E todo esse passado recen te em mim.Que é que queres que leia e ouça? Talhei talharam-me a fracção de vidaq u e m e p e r t e n c e . A í q u e r o v i v e r o q u e m e r e s t a . T u d o o m a i s n ã o é comigo.141- Estava aqui a ler uns versos idiotas que aprendi na infância e queme fazem quase chorar . Mas a Deo l inda mudou o s í t i o à se lec ta e já anão encontro. Deolinda!berrou outra vez. E ela veio e entrou e não me viu. Era ainda roliça, am a m a s ó l i d a , a a n c a d e n s a e b o l e a d a . M a s i a a a b r i r a b o c a e a s s i m f i c o u . U m p o u c o v e r g a d a d e r e s p e i t o e p r e s t i m o s a , a s s i m f i c o u . E u também ia a repe t i r que mexer nos l i v ros não , e t i rá - los do seu lugar ,n ã o , l i m p a r o p ó e d e i x a r c o m o e s t á . M a s t a m b é m n ã o d i g o n a d a . F i c a m o s a m b o s i m ó v e i s , v e j o - n o s e s t á t u a s d e c e r a v e l h a , f i x a s n a eternidade. Depois uma aragem leve, pouco a pouco. Formas vagas denévoa , esgaçadas de neb l ina , como um pó tudo se aqu ie tou , eu só nasala deserta, cheia de destroços do que foi.142XXIITu. Olha agora se não havias de dar sinal - que tens aqui que cheirar?Está no fim o meu percurso de humanidade - e depois? Está no fim, jásei - e daí? Oh, a vida. Maravilhosa coisa, sim, sim. Mas que estúpida.Por qualquer lado que se lhe pegue, de vez em quando tenho de me pôra m a t u t a r . P o r q u a l q u e r l a d o , u m a a v e n t u r a m i n ú s c u l a r i d í c u l a , é ass im, uma prega b rev íss ima na ex tensão do cosmos que também émui t í ss imo es túp ido . Por ma is que lhe dê vo l tas para lhe descascar o porquê. Não tem porquê, é bruto de sua natureza. Não, não, vou deixar-me de mar ra r . Es tá no f im o meu

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encargo de ser homem, vou de ixar .En t re tan to , sub- rep t íc io , manhoso - tu . Ou não tu , mas a ab jecção da ideia de que pudesses ser. Vou ser homem como se deve, não pensar.P o r q u e n ã o é b e m o q u e s i g n i f i c a n ã o s i g n i f i c a r e s n a d a . O n ã o significares nada por significar muita coisa. Pode querer dizer o estar-me nas tintas, ou inquietação, ou irritação, ou compreensão para os queacred i tam, mob i l i zação de um combate con t ra os que ac red i tam, ou curiosidade divertida como diante de um ritual selvagem ou ignorânciato ta l do p rob lema de quem nunca pensou ne le como há quem nuncapensou em po l í t i ca ou em ar te ou na teor ia da re la t i v idade de que já t e r á s o u v i d o f a l a r - q u e é q u e e u t e n h o a v e r c o m i s s o ? E t o d a v i a . Arrumar duas ideias sobre essa coisa, não deixa de ser utilitário. Saberq u e m m o r r o , n ã o d e i x a d e . C u m p r i r a v i d a e m c o n s c i ê n c i a s o u u m a n i m a l r a c i o n a l , e u . Q u a n d o a n d a v a e m P e n a l v a , q u e d i s c u s s õ e s tremendas. Era a hora da juventude, a gente começa a ter um homemp o r d e n t r o . H o r a d e f o l h e a r a s i d e i a s p a r a e s c o l h e r , d e e s c o l h e r a s gravatas e o penteado, de não sermos por procuração. Tinha um grupo,143era o Miranda, o Manaças, o Pacheco, nunca mais os vi. Só mais tarde,na capital, marcámos um encontro? Miranda era o mais velho mas nãoo mais idoso. Tinha um ar lento de ser, creio que usava cachimbo parapausar com e le o andamento das ide ias . Manaças e ra um br inca lhão e q u i l i b r i s t a , t o d o f a l s i f i c a d o e m a r a m e s , s o f i s t i c a d o d e p a r a d o x o s , Pacheco era um vadio. Ia à missa pelos namoros, um dia inscreveu-senum curso de catequese porque no fim, para a sossega, havia patuscadaa l iment íc ia . Também i r ia a cursos de i r re l ig ios idade se os houvesse ehouvesse de comer . Toda a v ida , soube um d ia , andara met ido com monárquicos e republicanos, fascistas e comunistas se havia comes noprograma, passeatas ou coisas assim. Esticou em miséria num hospital eera um puro. A que propósito vinha isto? já não sei. Estou sentado nasala, olho o anjo mutilado, olho o grande espaço do Verão já quebradoum pouco de luminos idade . À hora da missa na Miser i có rd ia , e ra aomeio -d ia . Nós v ínhamos ass is t i r à en t rada e à sa ída , mas eu en t ravas e m p r e , M a n a ç a s q u a s e s e m p r e . M i r a n d a m o r a v a n u m e x t r e m o d a c idade , jun távamo-nos lá nas no i tes f r ias de Inverno . E le t inha uma braseira, jogávamos a sueca e havia aguardente. Pacheco bebia muito,Miranda tirava-lhe a garrafa. Depois discutíamos coisas imensas sobreDeus e a v ida e a mor te . Fora , a no i te e ra uma pedra . F r ia , l i sa . Ten to r e c o r d a r a s d i s c u s s õ e s a g o r a a q u i n e s t a t a r d e v a z i a . F r a s e s v a g a s dispersas, vêm-me em fulgurações da memória. Frases insignificantesvieram vindo atrás de mim desde a improvável juventude. Lembra-mesobretudo o Miranda. Grave pausado. E os risos do Manaças como umcacarejo, eu assistia quase sem dizer nada. Mas decerto alguma coisa iaficando. Como um verme.- Olha, tu és um parvoo cachimbo a marcar a acentuação.144

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- Tu acreditas na Virgem e na Assunção e na Ascensão de Cristo aocéu. E tudo isso é para atrasados mentais. Manaças ria saltitado, um risomiúdo como granizo.- Mas se não fosse para atrasados não era crença. Tuqueres que a crença seja racional. Mas então não era crença. A quedados graves não é uma crença. Dois e dois são quatro não e uma crença.Houve um santo que disse «creio porque é absurdo». Pois está claro quese não fosse absurdo, não era coisa de se crer.Pacheco bebe. Diz que se vai meter a sacristão para beber o vinho dasg a l h e t a s , e u o u ç o . M a s q u a l q u e r c o i s a f i c a e m m i m c o m o i n v i s í v e l poeira. Manaças insiste que- E tu vens com essas coisas miúdas. Só te falta dizer mal dos padrese das indulgências. O problema é: crer ou não crer. O resto são religiões,variantes da mesma coisa. Sou apostólico romano por ser o que me saiue é de todas as variantes a que me vai mais ao calhar.Fora, a noite é um cristal de gelo. Miranda retoma a sua- Tu és um idiota. Acreditas em Deus porque és parvo e tens cagaço.Se te p rovassem que depo is da mor te só há a bar r iga das minhocas , mandavas Deus às malvas.- Mas quem é que fez isto? Tudo tem de ser feito por alguém.- E quem é que fez esse alguém?- Se a lguém o f i zesse t inha de haver a lguém que f i zesse esse ou t ro alguém.- En tão eu d igo- te : i s to não fo i fe i to por n inguém. Paro logo aqu i eeconomizo tempo. Tu d izes que é p rec iso para r em a lguém. En tão eu paro logo aquid i z i a m c o i s a s t e r r í v e i s . M a s c o m o c r i a n ç a s q u e b r i n c a s s e m c o m granadas. Sandra era descrente mas nunca discutia por sê-lo realmente.145Dizia que há coisas, o amor, a graça de uma anedota, a simpatia de umclube que nunca se discutiam. Mas às vezes, ocasionalmente. Às vezesfalávamos e eu dizia que a educação, eu era crente, as minhas tias desdeq u e e u c o m e ç a r a a f a l a r , a t a c a d o d e r e l i g i ã o d e s d e a i n f â n c i a m a i s l o n g í n q u a , e u e r a c r e n t e . U m a m a n e i r a d e s e r c o m o a s r e g r a s d a civilidade. Ponho só uma condição, os filhos se um dia quiserem. Pois,não ponho objecções se em inteira consciência resolverem ser crentes. I n f l i g i r -l h e s a c r e n ç a , q u e v i o l ê n c i a . C o m o i n f l i g i r - l h e s q u a l q u e r orientação. Havia só que explicar, pôr-lhes diante toda a sorte de opçõese eles que se desenrascassem. Mas eu sentia que ela me julgava inferiorcomo um ser primitivo. Passeio no Largo da Sé Nova, vou à missa dasonze . Como fumar , tomar um ca fé depo is do a lmoço , dar uma vo l ta pela Baixa, à tarde, na véspera de feriado. Estou no Largo da Sé Nova aver quem en t ra , es ta re i no f im a ver quem sa i . E no in te rva lo es tou láden t ro para cumpr i r o r i tua l como se a fazer um ges to . N inguém fa la sem fazer gestos, seria uma voz amordaçada. Mas o gesto é exterior àpalavra, vou à missa, é o meu gesto dominical. Estou cá fora e nisto. Éum tipo baixo, levemente encurvado, atira os braços para um lado comose estivesse a pregar. Mas não diz nada, deve ser surdo-mudo. Então ose s t u d a n t e s q u e a g u a r d a v a m a m i s s a , n ã o d e v i a m s e r d o s q u e a g u a r d a v a m a m i s s a m a s s ó o p e q u e n a m e q u e l á i a . P e g a r a m n e l e , empurraram-no, puseram-no no alto da escadaria. Abriram um espaço,e l e s ó , n o a l t o d a s e s c a d a s . A t i r a v a o s b r a ç o s p a r a u m l a d o e o u t r o , algumas vezes erguia-os acima da cabeça

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nalguma tirada mais enérgica,mas não dizia nada. Era cómico e triste, os estudantes faziam roda, elefalava sem falar a uma multidão. Muito sério, gesticulava, ouvia-se-lhede perto a respiração ofegante. Até que um tipo grandalhão, devia serda católica146- Vai pregar para outro ladoempur rou-o pe las escadas , e le ve io descendo sempre a ges t i cu la r .A t i ra ram- lhe moedas para o chão , e le ba ixava-se a reco lhê- las com a mão mais disponível, continuava a gesticular. Até que desapareceu aofundo do largo, viam-se-lhe só os braços na sua pregação muda. Estoucá fora e nisto. Sandra. Uma dor horrível, ela vinha com um tipo, via-oà s v e z e s n a F a c u l d a d e , t i n h a s p o i s o u t r o p a r c e i r o . E l a p a s s a , f r á g i l minúscula delicada. Equilibra-se nos saltos altos num subtil movimentorendilhado. Vem a direito da minha aflição, não me vê, um fino estiletena garganta sinto-o. Está linda como a manhã de domingo. Ao lado ot ipo , um ca lme i rão . Vem d i re i to a m im, eu v ib ro - lhe um o lhar t r i s te . Mas nesse instante qualquer conversa que já traziam. Riu-se, ter-me-ávisto? Penso que não, queria que sim, passa. Rodo os meus olhos comela, vejo-a agora de costas. Vibrante nos sapatos altos, as ancas finas embreves movimentos, ligeiros estremeções. Ter-me-ia visto, o calmeirãotambém. Teriam dito um gracejo para o eu estar ali à espera da missa.Uma deso lação in f in i ta , quase náusea de mim. Dev ia pôr -me do meu lado, sentir náusea por eles. Não. Do lado deles e por mim. Entro na Séo re lóg io da sa la ba te horas . Ba te -as em dup l i cado , são o i to ao todo ,q u a t r o h o r a s . É l e n t o o t e m p o e t o d a v i a r á p i d o . O t e m p o é a n o s s a modificação, estou pronto, eu, definitivo. Tão estúpido estar assim paraaqui, não me apetece estar noutro lado. No alto de um monte há umacasa equ i l i b rada no ab ismo, ve jo -a . Agora o so l ba te -a um pouco de lado, a face branca iluminada. A cadência do relógio, ouço-a. Como asr e m a d a s d e u m b a r c o , o t e m p o s e g m e n t a d o - e n t r o n a s s o m b r a s d o templo . Uma luz coada do a l to , um s i lênc io coa lhado f r io . É a m issa chique da cidade, fala o Carlos da Ascensão. É a missa mundana, Deuse n t r e m e a d o a o r e q u i n t e , a o s o l h a r e s d e n a m o r o , D e u s d a m o d a e147femeeiro, o grande número da festa é a prédica do Ascensão. É um tipoasce ta , escor r ido de magreza , uma cabe le i ra ao a l to desgrenhada de eloquência. O templo cheio, fico ao fundo, uma luz coagulada de pedra.M a l v e j o o p a d r e o f i c i a n t e , d e d u z o o a n d a m e n t o d a c e r i m ó n i a d o s movimentos da assistência. Tenho Sandra entremeada aos meus gestos,o seu r i so ind i fe ren te e acu t i l an te , so f ro . So f ro e o so f r imento a las t ra pelos intervalos da minha devoção mecânica, como se o riso, uma troçade eu estar ali, não tenho na crença uma força que me imponha o estarali. Quantos gestos e palavras e reais comoções sentidas são a fórmulaem que se condensaram, a casca aparen te do que não há lá de mio lo?sofro. É um vexame fundo, arrasta consigo todo os vexames do mundo,dói-me de novo como se pela primeira vez a recusa fria displicente

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dafotografia, eu levava-a tão comovido de um gesto cheio de significadosens íve l . Fo i quando o padre . Sub iu ao pú lp i to , sacud iu a sobrepe l i z para uma facilidade de gesticulação, toda a vasta assistência se sentou,eu fico de pé na secção viril dos homens. Depois, a mão foi subindo comum dedo profético, esticado fino subia, a palavra subiu com ele:- Das três virtudes teologais a primeira que aprendeis, há as outrassem dúvida, que é o mundo sem esperança? sepultos na materialidadedo mundo, nos in fo r tún ios do d ia -a -d ia , mas a esperança como fa ro l r a d i o s o n o m a r e n c a p e l a d o d a v i d a . P o r q u e s e m e s p e r a n ç a , i r m ã o s meus em Cristo Senhor nosso, Cristo implantou a esperança quando noc a l v á r i o , c o m o â n c o r a n u m a n a u b a t i d a d e t e m p e s t a d e . M e s m o a caridade, pois como é que sem nos reconhecermos irmãos, no confortode uma mão que se estende, na esmola com que minorais o sofrimento,sem a caridade em Cristo que é amor por todos os homens e os homenstambém uns para os ou t ros mas eu não es tou com a tenção teo loga l . Estou, mas a outras coisas. Sandra, uma rapariga no segundo banco a148contar do fundo que por trás se parece com ela, e mesmo uma frase deu m a c a n t i g a o u v i d a n a v é s p e r a , e u r e g r e s s a v a a c a s a , d i z i a q u e t i r o l i r o l i r o e a i , a i , a i . E n q u a n t o o A s c e n s ã o , a g o r a a s d u a s m ã o s erguidas como em exortação ou a pedir clemência- porque sem caridade como poderíamos viver? mundo de ódios, deg u e r r a s , o h o m e m é o l o b o d o h o m e m , a v o z d o d o m í n i o , m a t a - s e es fo la -se , reduz-se a c inzas , é a voz do homem, mas há uma v i r tudemais a l ta , e la é a p r ime i ra na esca la teo loga l e qua l é e la meus i rmãos em Cristo Senhor nosso? ela é a virtude da féenquanto ao lado no relógio, a cadência do remar para a eternidade,oh , tenho a e te rn idade comigo , es tou fo ra do tempo da v ida , sou um excesso na escala dos seres- ó tempo de descrença geral, S. Tomé ainda viu para crer, mas hoje,mesmo vendo,q u i a v i d i s t i , T h o m a , c r e d i d i s t i : b e a t í q u i n o n v i d e n t , e t crediderunt,mas ho je , mesmo vendo, a descrença ob tusa , a descrençasoberba,quia vidisti credidisti,a descrença petulanteenquanto o infinito da montanha, são três fiadas de montes, a últimadissiPa-se em ténue neblina, quase da matéria do céu.- porque uma coisa é o que temos debaixo dos olhos do corpo e outradebaixo dos olhos da alma, uma coisa é o que nos é obrigado pela lei eoutra o que nos vem da vontade livre,lex autem non est ex fide,mas sópela fé sois irmãos em Deus,omnes, enim, filii Dei estis per fideme já o sol vai estendendo as sombras do mundo, olho o muro de umq u i n t a l , é f e i t o d e p e d r a s n e g r a s d o s s é c u l o s , p l a n t a s s i l v e s t r e s irrompem dos interstícios, do outro lado os milhos ainda verdes, umaterra de oliveiras escurase s t o u c a n s a d o d o p r e g a d o r , m a i s s e c o a g o r a ,

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e m a g r e c i d o d e a p o s t o l a d o . S a n d r a p a s s a a o m e u o l h a r e r r a d i o , a a n c a s u b t i l n u m a149dança alada, que é que estás para aí a dizer, ó palrador automático, quepalavra essencial sob o teu cacarejar? que verdade submersa? a verdadeque se não sabe dizer, a que tem de inventar palavra para ser, ó homensde pouca fé,- porque Cristo o dissesi habueritis fidem, dicetis monti hinc: Transi hincilluc et transihit et nihll impossibile erit vobis, a fé que move montanhas , mas vós não conseguis mudar sequer um grão de milho painçode oliveiras escuras e couves, a terra já arenosa, devem ter tirado jáas batatas novas, percorro a um olhar errante as encostas dos montes,m a t a s e s c u r a s , e m b a i x o a i n d a a l g u n s c a s t a n h e i r o s , t e r r a s s e c a s d e restolho, há um caminho que irrompe cá de baixo, serpeia pelo monteacima até ao impossível, uma casa em equilíbrio num pico isolado, bate-a agora o sol na face deslumbrada de vertigem- vós não so is capazes de mover um grão de a re ia , porque v indes aqui ao domingo, mas onde vai a vossa fé à segunda-feira? rezais comoum re lóg io dá horas , mas vós não lhe da is co rda , invoca is o nome de Deus mas estais pensando no merceeiro.estou pensando no matulão que ia com Sandra, conheço-o de vista et e n h o p o r e l e u m a a d m i r a ç ã o t ã o g r a n d e q u e o o d e i o d e s d e o s in tes t inos , enquanto para a esquerda , em d i recção ao nor te , d igamosnoroes te , montes á r idos , a longados a té ao esva imento do meu o lhar , meus olhos cansados sem nada que ver e uma mancha ou outra aindade restolho esbranquiçado - canta! E ao meu apelo o canto ergue-se dad i s t â n c i a e d o m i s t é r i o « o m e u a m o r q u e r q u e e u u s e a s c h a v e s d o c o r a ç ã o » - c a n t a ! N a s o l i d ã o a s t r a l d e u m a t a r d e a b a n d o n a d a , n a vertigem do fim, na esperança impossível de quem a esgotou-Spes autem, quae videtur, non est spese então qual é?na absurda estupidez de se estar vivo sem vida em que se esteja.150-Unus Dominus, una fides, unum baptismum.Amém.E foi quando numa tarde, eu vagueava pelo jardim da Universidade,havia o rio ao fundo e ao longe, havia o casario na colina em frente, euerrava ao acaso, encostava-me ao gradeamento, tinham passado anos ea multidão de coisas que vêm nesse passar, Sandra cruzou-se comigo.E u e s t a v a n o f i m d o c u r s o , e l a t a m b é m , n u n c a m a i s a v i r a c o m o matulão e subitamente ardentemente estupidamente- Sandra! Você quer casar comigo?E ela sorriu.151XXIIIE nessa altura tia Luísa, via-se que estava desesperada, foi um berroque me fez estremecer a coluna:- Paulinho! Vê se te despachas!E r a a h o r a d o e n s a i o d a t u n a n u m s a l ã o d a M i s e r i c ó r d i a , e l a i a acompanhar -me. Depo is esperava-me em casa da

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madr inha Amél ia ,que e ra uma espéc ie de c lube das bea tas , ia -me buscar no f im. Era à noite, era Inverno e tenho a memória toda branca de neve. E de súbito am i n h a l e m b r a n ç a e s t r e m e c e à v i b r a ç ã o d e u m v i o l i n o . E r a d e t r ê s quar tos , o v io l ino , para o meu fo rmato pequeno - eu d isse que nunca mais peguei no violino? Não é verdade. já crescido, nas festas do liceu,eu troquei o violino por um outro de tamanho de um homem. E depois, já na Universidade. Havia também uma tuna, aprendi outras músicas,não mais adultas. E mais tarde, sim, abandonado o violino definitiva-mente , es tá lá em c ima cober to de te ias de abandono. Mas o que me lembra é o tempo da infância, como é próprio da senectude, que avançapara o futuro de costas. E a música foi-me então a invenção da belezaf o i a s s i m . « O m e u a m o r q u e r q u e e u u s e » - n ã o e n t e n d o a l e t r a m a s adivinho-a pela música que conheço, música que me chamas e eu estout ã o c a n s a d o . C o m o s e s o b r e o s d e s t r o ç o s d e u m a r u í n a , e u m h a l o luminoso como de uma estrela, vejo-o. Mas não te lamentes. Cumpresuma vida na execução perfeita da terra. Cumpres um mandato, a ordemd a s c o i s a s t e m d e s e r e x e c u t a d a e t u n ã o e s t á s l á . O u e s t á l á a t u a miséria, a degradação que te pertence e o espectro de todas as mortesque se te foram adiantando.- Vê se te despachas!152Visto um casaco, suspendo a caixa do violino pela argola. Mas o friocoalha-me através dos calções, mesmo com meias preventivas até acimado joelho. E tia Luísa toma-me logo a caixa, leva-a ao peito debaixo dox a i l e c o m o a c r i a n ç a q u e i a n e l a e e r a e u . A m e i o i n s t r u m e n t o c o m pa ixão , comece i pe lo so l fe jo , como amava tudo o que semeavam em mim, vamos pela noite, ruas escuras ou já havia electricidade? suponhoque não. A electricidade veio andava eu já no liceu, um dia vim a fériase a n o i t e e s t a v a t o d a i l u m i n a d a . O u e u m e l e m b r o d i s s o a g o r a subitamente como se tudo tivesse sido súbito, não sei. Sei é de histórias,con tavam-se , e a m isér ia en t rava ne las como decoração , a da Mauga, por exemplo. Tinha a cara comida de barba como um homem e usavau m l e n ç o a t a p a r a m a l d i ç ã o . V e i o a e l e c t r i c i d a d e e a s g e n t e s subs t i tu íam a cande ia de aze i te ou de pe t ró leo - mas e a despesa dos fósforos?- Ó vizinha, tem lá lume?O l u m e f i c a v a a c e s o , a l g u m a s b r a s a s s o b a c i n z a , m a s à s v e z e s apagava-se e ia-se pedir lume à vizinha - tem lá lume? era assim. Entãoa Mauga. Qu is t i ra r a l impo essa co isa da e lec t r i c idade , poupar ia e la fós fo ros? E quando uma v iz inha teve luz e léc t r i ca fo i l á . Levava umacarque ja , chegou-a à lâmpada a ver se pegava fogo , não pegava , nãoqu is a luz - j á haver ia luz nas ruas? ju lgo que não , a m inha memór ia está cheia de negrume até ao fundo, tia Luísa suspende uma lanterna deum braço, com o outro leva a caixa ao colo. Tenho a memória cheia deno i te e de neve que fos fo rece no escuro . Memór ia escura da in fânc ia ,mas é necessár io que o v io l ino v ib re no tempo e a sua mus ica chegue a t é m i m . L e m b r o a s t a r d e s , e u

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e s t u d a v a s o l f e j o à l u z i n d e c i s a d o entardecer. Semibreves, mínimas, semínimas, colcheias e o mais, e ostempos de cada uma, e os compassos desde o qua te rnár io . Ca i neve153pe lo hor i zon te , es tou só no meu quar to ao a l to da casa onde agora oviolino, teias de aranha velam o seu abandono. Todo o espaço em redorse cong lomera de f locos de neve , eu ensa io no v io l ino aAve-MariadeSchuber t para tocar na ig re ja .D ó . . . ó . . . ó . . . , s i , d ó , m i . . . i . . . i . . . ,músicaeterna do meu silêncio final, a palavra última, a fundamental por sobt o d o o l i n g u a j a r d o m u n d o . É u m a m ú s i c a d i f í c i l , c o m a t e r c e i r a e quar ta ou qu in ta pos ição , tudo na quar ta corda , ó mús ica te rna . Ca i neve, é necessário que ela cala para a minha memória existir. Há o vastocéu de cinza, a revoada da neve a toda a roda do horizonte, há o silêncioi n t r í n s e c o d o m u n d o a o a b i s m o d e u m o l h a r m a r a v i l h a d o . T e n h o o v i o l i n o n a m ã o , s u s p e n d o - m e e u t a m b é m , o l h o p e l a j a n e l a o s u a v e encantamento. Vou à roda da casa, vou de janela em janela. Não talvezpara cap ta r todo o espan to do mi lagre , mas como se para dec i f ra r de algum modo o inquietante do mistério. Quedo-me enfim suspenso dagraça que me visita, olho a neve poisar na pobreza das coisas. E pouco ap o u c o u m a d i v i n i z a ç ã o d e b r a n c u r a t r a n s c e n d e t u d o a o i r r e a l e imag inár io , a um des lumbramento in fan t i l . Te lhados das casas e as oliveiras e os caminhos e a massa da montanha entrevista tremulamenteatravés da neve que tomba, tudo se transmigra ao incerto da levitação eassombro . En tão , no s i lênc io un iversa l , enquanto len ta , i r rad iada de h o r i z o n t e , a n e v e c a i d e v a g a r , s u b m i s s o a u m a v o z o b l í q u a q u e m e trespassava de maravilha e eu não entendia, integrado numa harmoniaque ignorava , en tão tomo de novo o v io l ino . O a rco raspava áspero ame lod ia da corda , mas hav ia por ba ixo ou t ra me lod ia per fe i ta que euescutava no anúncio dela que me coubera e me arrepiava de uma belezat r a n s c e n c e n t e c o m o o d i a d e m a d e u m s o r r i s o q u e n ã o a c a b a s s e d e sorrir.Dó...ó ... ó.... si, dó, mi ... i...cai neve no universo, uma voz cantaentre os meus dedos inábeis, prolonga-se aos limites da vida e da morte.154T o c a . T o d o o m i s t é r i o s e c u m p r e n a p a l a v r a ú n i c a f u n d a m e n t a l , a p r i m e i r a e a ú l t i m a , a q u e r e i n v e n t a e r e s u m e t o d a a c o m p l i c a d a maneira de dizer, todo o complexo e humilde e profundo modo de ser.Atravessamos a aldeia pela noite de estrelas, as ruas revolvidas den e v e , t i a L u í s a l e v a - m e o v i o l i n o a o p e i t o , s u s p e n d e a l a n t e r n a à dec i f ração dos pés . Quando chegamos à Miser i có rd ia , ensa iávamos numa galeria ao lado que dá para a nave da igreja, tia Luísa entregou-m e a o p a d r e P a r e n t e , f o i p a r a c a s a d a m a d r i n h a A m é l i a . É r a m o s q u a n t a s f i g u r a s ? a í u m a s q u i n z e o u v i n t e , r e p r e s e n t a v a m a s a r t e s e o f íc ios , a lguns dos tunos

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v inham pe la no i te de qu in tas long ínquas à procura do mistério com as suas violas e bandolins. E durante uma horaou duas as enxadas de cavar, as plainas e as enxós, os instrumentos debarbearia esqueciam entre os dedos nodosos do trabalho e o que existiae ra a de l i cadeza f inu ra da i r rea l idade da mús ica em que a b ru teza se t ranscend ia ao in tocáve l da be leza . Mãos g rossas , desa je i tadas , mãos humildes, ó mãos gravadas de uma condenação milenária, mãos brutastrabalhadas a rudeza, mãos elementares ao nível duro da terra, tanadasa c a l o s e a I n v e r n o s s e c u l a r e s . T e n t e i a m a g o r a i n c e r t a s t í m i d a s n o des lumbramento da de l i cadeza , como desamparadas no me io de um palácio, tenteiam com finura as cordas finas de arame, desenham para anoite, no terror do deslumbramento, a arquitectura do impossível. Umdos tunos e ra o Gabr ie l cavador , re lembro-o . Cavava-nos o qu in ta l , morreu tuberculoso, tocava bandolim. De pés fincados no chão, erguia aenxada, arrancava grandes torrões que ia deitando para os pés. E a certaa l tu ra , a te r ra cobr ia -o a té quase aos joe lhos , b ro tava e le p rópr io da terra, irmanado à sua origem e ao seu destino. Tocava agora bandolimcom as mãos calejadas, construía delicado a fracção mínima da belezaque lhe cab ia , es ton teado de que a be leza ex is t i sse . Cravado na te r ra155como uma árvore, os torrões que arrancava iam-lhe sepultando os pés.Escorrido de uma magreza óssea, tia Joana deitava-lhe vinho no copo,ele aparava, emborcava, voltava a cobrir-se de torrões. Pelas noites deI n v e r n o , u m a t o s s e c a v e r n o s a , u m r e b a n h o d e f i l h o s a m a r e l e n t o s , tocava cheio de aplicação as cordas ásperas do bandolim. Num Invernomorreu, o bandolim dependurado de uma parede. Era lento a aprender,p a d r e P a r e n t e p e r d i a a p a c i ê n c i a , e l e v o l t a v a a t o c a r c h e i o d e entusiasmo e humildade, à procura da beleza difícil. Irmanado à terra,coberto de torrões, reintegrado à humildade da sua origem. Depois oensaio acabava, tia Luísa estava já ali com o lampião. Mas havia ainda oensaio só para mim, tia Luísa esperava. Os homens formavam círculo,a l g u n s , e s p e r a v a m t a m b é m . H a v i a u m v e l h o ó r g ã o , p a d r e P a r e n t e ensaiava comigo aAve-Mariade Schuber t . Eu es tava de pé , ao a l to de um estrado como um pedestal erguido em pasmo e maravilha para oshomens embevecidos que assistiam. Na aspereza da corda, deslizando am ã o p e l o b r a ç o d o v i o l i n o , p o r e n t r e a s i m p e r f e i ç õ e s d a m i n h a i m p e r f e i ç ã o , a m e l o d i a e r g u i a - s e n a c o n f u s ã o d a n o i t e a o e s p a n t o p r i m i t i v o d o s h o m e n s r u d e s q u e e s c u t a v a m . E h a v i a u m m i s t é r i o absurdo de uma perfeição adivinhada e que estava para lá do desastredos meus dedos, da miséria cansada de um dia de trabalho, para lá dafome, da necess idade , das t revas e da ma ld ição . Hav ia a v ida da suasorte de condenados, o clamor dos filhos, o suor, O destino da rudeza eelementaridade, havia a desgraça e a sua condenação. E havia por sobret u d o i s s o , i r m a n a d a a o i n d i z í v e l q u e p e r d u r a ,

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p a r a l á d o i m p é r i o milenário de uma grande noite de Inverno, uma estranha melodia feitad e t o d o s o s s o n h o s , i n v e n t a d a p e l o s d e u s e s d e s d e q u e u m h o m e m sofreu e exigiu um algo mais que o acolhesse e defendesse e inventassea imagem de um abr igo con t ra a dor e a m isér ia . E rgu ido do a l to do156e s t r a d o , c r i a n ç a m í t i c a n o m u n d o d a s o r d i d e z e d a d e g r a d a ç ã o , estranha vítima imolada à grandeza e ao assombro, a mão procurandono segredo do violino a voz oculta do deslumbramento, sozinho como amajes tade e o impér io , l ongamente eu t race i na ó rb i ta de um as t ro od iagrama da be leza que encande ia e en ton tece . T ím ida , humi lde , ao fundo do sa lão , t i a Lu ísa escu tava também. Por f im a mús ica acabou. Ficámos todos ainda em silêncio, até que a aparição se dissipasse. TiaLu ísa fo i be i ja r a mão do padre Paren te , tomou a ca ixa do v io l ino aoco lo e sa iu à m inha f ren te , suspendendo o lamp ião . A no i te e ra umapedra escura, raiada de estrelas. Do caminho revolvido crescia para alanterna a alvura ténue da neve, perdia-se de novo no escuro. Levava asm ã o s n o s b o l s o s , e u , a g o l a e r g u i d a , m a s o f r i o p e n e t r a v a - m e p e l o s calções compridos, repassava-me as meias que as ligas me seguravamacima dos joelhos. Tia Luísa mal falava, avisava-me apenas de vez emquando- Vê onde pões os péspor causa das poças de água que a neve e a lama formavam. Gravadad e c e r t o d o m i s t é r i o d e t u d o o u p r e s a d o q u e t r o u x e r a d e c a s a d a madrinha Amélia, silenciosa e rápida, alumiava o caminho envolvidade Inverno. Depois dava-me leite quente e metia-me na cama, aquecia-m a c o m a b r a s e i r a q u e r e p a s s a v a p e l o s l e n ç ó i s c o m o u m f e r r o d e engomar. E eu adormecia, com a música nos meus dedos que a criaram,distraído na melodia como num balouço. Havia uma paz profunda nasolidão da noite. E era como se um regaço, eu enrolado na sua macieza,os olhos pesados de sono, tia Luísa levava a luz, eu ouvia-lhe ainda ospassos que se afastavam e eu ficava só comigo, quebrado de lassidão,contente de conforto como se a própria noite me sorrisse.157E d e u m a v e z a d o e c i . T a n t a v e z a d o e c i , c o m o é p r ó p r i o d a imperfeição. Disenteria da fruta verde, sarampo para cima quando teved e s e r , e l o m b r i g a s , e a n e m i a . M a s a i n f â n c i a é j á d e s i m e s m a u m a doença para um homem. Excep to quando ser homem é a inda doença maior. E todavia. Só de uma vez me lembro de estar doente, por causad o v i o l i n o - d e q u e é q u e a d o e c i ? F e b r e n a c a m a v á r i o s d i a s , e r a Inverno, não ia aos ensaios da tuna. Pelos vidros da janela via só o céue s c u r o , e r a m d i a s l o n g o s e n o i t e s a i n d a m a i s . E a c e r t a a l t u r a , q u e s a u d a d e g r a n d e d o v i o l i n o . N ã o e r a s ó o r e c e i o d e m e a t r a s a r d o s ensaios, não era só. Trabalhávamos agora aCanção de Solveje, aMorte de Ase

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, oMomento Musical. E o s m e u s d e d o s c o m e ç a v a m a t o l h e r - s e d e inacção. Mas não era isso, era qualquer coisa que tinha que ver com umpacto muito antigo entre mim e o que eu não sabia. Um dever sem lei,um gos to ou p razer que e ra ou t ra co isa , um ma l -es ta r inde f in ido em todo o meu ser. Então pedi à tia Joana que me pusesse a caixa aberta doviolino numa mesa aos pés da cama. Não o pedi à tia Luísa porque elacomeçava logo a querer saber o porquê e o para quê e eu que sabia?, tia Joana e ra ma is compreens iva ou ma is p róx ima do meu tamanho, não fazia perguntas. Era à tarde e havia olhos tristes nas coisas. O céu estavaescuro e talvez caísse neve. Tia Joana pôs-me uma mesa ao fundo e aolado da cama mas obrigou-me a prometer que me não levantaria, e euprometi. Tudo. o que quisesse para haver de parte a parte concessões eno in te rva lo a m inha ambição cumpr ida . En tão fo i buscar o v io l ino e p ô - l o s o b r e a m e s a c o m u m l i v r o d e b a i x o d a c a i x a a b e r t a p a r a e u o p o d e r v e r b e m . D e p o i s s a i u e f e c h o u a p o r t a e e u f i q u e i s ó c o m o mis té r io de o o lhar . As co isas à m inha vo l ta fechavam os o lhos paraouvirem a melodia inaudível. As cadeiras, a cómoda, mesmo a imagemda Virgem dependurada à cabeceira. Eu estava deitado mas soergui-me158o mais possível para não estar. Olhava o violino anichado na sua caixa esentia-o fisicamente no meu queixo e nas mãos. Calcava as cordas comos dedos imagináveis, apertava o tampo com o queixo contra o ombro.E os dedos gravavam-se dos sulcos das cordas, a articulação movia-secom o tempo das no tas . Mas sobre tudo hav ia em todo o meu corpo o arrepio da passagem da melodia, a suspensão subtil da sua maravilha.Era um prazer intenso e inexplicável. Porque não era o prazer apenas deum brinquedo que nos transporta de bem-estar com o movimento ou oque nos exalta a imaginação. Era para lá disso a execução de todo o meucorpo e à c r iação de qua lquer co isa que perdurava em mim como umbom sabor que não e ra sabor e ench ia o a r como o esp lendor de uma festa. Todo eu participava assim na criação desse mundo e na privaçãodele parecia-me que alguma coisa muito importante se não cumpria nomeu des t ino , na minha ape tênc ia na tu ra l . Por i sso a v is ta do v io l ino c r i a v a - m e n a i m a g i n a ç ã o a s a t i s f a ç ã o d e s s a u r g ê n c i a , p r e e n c h i a o e s p a ç o q u e i a d e m i m a t é e l e , r e c r i a v a - m e o r g a n i c a m e n t e a m i n h a totalidade. Um pouco me esquecia assim a febre que me queimava oue r a u m a f e b r e q u e a m ú s i c a m e v i b r a v a c o m o s e t u d o f o s s e a transcendência de mim, o frémito em que eu me transfundia como se amúsica e o instrumento e eu próprio fôssemos a mesma forma de ser.Longo tempo olhei o violino ou fechava os olhos para o ver melhor ourepetia incansavelmente a mesma música até ela quase existir por si. Ee l a a c a b o u p o r e x i s t i r e e u n e l a e a f e b r e q u e m e c o n s u m i a f o i a s u a vibração como a memória submersa de uma mão na minha face.

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159XXIVE finalmente, a Deolinda. O miúdo deve ter-lhe dado o recado, filhoou neto? na aldeia a distinção das gerações é difícil. Filhos têm-se até àm o r t e , h á t i o s m a i s n o v o s q u e o s s o b r i n h o s . M a s d e v e s e r n e t o , Deolinda já é idosa para fabricar filhos. Toda em formas torneadas, vempelo caminho batido pelo sol. Olho-a com atenção específica, sigo-lhe ospassos pe la a re ia esca ldan te . Mande i -a chamar , que é que eu lhe vou dizer? Nada de especial, combinar os arranjos da casa. Varrer, limpar,pôr a casa habitável, fazer-me de comer talvez. Sigo-lhe os passos, dev e z e m q u a n d o p á r a a c o n s i d e r a r o s q u i n t a i s . D e p o i s s e g u e . M a s à medida que se me esclarece, olho-a com mais aplicação, talvez não sejaela. E com efeito. Chegada ao portão, olha para a casa, e de súbito deixeide a ver. Possivelmente não estava, o miúdo não lhe podia dar o recado.Tenho de i r p rocurá - la , onde d iabo posso i r p rocurá - la? E es tou n is toq u a n d o m e e n t r a m p e l a p o r t a , o u ç o p a s s o s a o l o n g o d o c o r r e d o r . Depois a porta da sala abre-se, um cão avança até à varanda. Cai sobre ocorpo , es tende-se ao compr ido . É um cão g rande e ve lho , tem cor decão , uma cor inde f in ida e su ja de um negro ac inzen tado . A t rás de le venho eu, amarrotado de velhice.- Paulo! - digo-lhe compadecido.Fita-me, não me responde, não me vê? Senta-se noutro sofá, olho-oeu agora in tensamente . O ros to encor r i l hado , a barba por fazer . Não traz gravata nem nada que equilibre ou compense o não trazer gravata,as pelangas do pescoço entre o colarinho aberto. Tem o olhar apagadode quem já viu tudo, a boca um pouco retraída, não terás já dentes?160- Foste dar o teu passeio com o Matraca? Mas está um calor infernal.E l e d e s d o b r a a s g e l h a s d o s o l h o s p a r a m e f i t a r , o s v i d r i l h o s d o s olhinhos a entreluzir.- Podias levar um livro, sentar-te a uma sombra do quintal, no frescod a l o j a . P a s s a s t e a v i d a e n t r e l i v r o s , d e v e - t e s e r a g r a d á v e l a s u a companhia,enquanto ele agora, mais atento, me escuta com estranheza.- Foi uma boa ideia teres arranjado um cão. Podes conversar com ele,nunca te chateia com discussões. Podes-lhe contar a tua vida, mesmo amais íntima, mesmo aquela que nunca se confessa, que não se vai contara ninguém. Podes-lhe dar pontapés quando estiveres chateado. que eledá apenas uns gan idos e depo is ca la -se como é do seu dever de cão . P o d e s n ã o l h e d i z e r n a d a q u e e l e n ã o s e q u e i x a d e s e r e s p o u c o conversador como se queixava a tua mulher e está sempre ao pé de tipara a hipótese de mudares de opinião. O cão é o mais antigo amigo dohomem, deves saber. Desde os tempos mais remotos, quando ainda senão tinha inventado a História, já se tinha inventado o cão para parceirod o h o m e m . U m a f i d e l i d a d e a s s i m p r o v a d a p e l o s , m i l é n i o s é u m a g a r a n t i a . O c ã o é o n o s s o o u t r o s e m a s c h a t i c e s , a s b a n d a l h e i r a s d e todos os ou t ros ou t ros . O cão é o homem em melhor . É a mora l ma is p e r f e i t a p o r q u e é f e i t a d e d e v e r e s s e m d i r e i t o s . T u p o d e s m a n d á - l o matar, dependurar de um arame numa oliveira, que ninguém te

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chamaa juízo. Podes corrê-lo a pontapé, ele volta de rabo submisso. Podes pô-lo na rua à chuva e ao frio, ele espera pela manhã e entra em casa outravez logo que apanhe a porta aberta. Podes sonhar-te um imperador ouu m d é s p o t a , q u e t e n s n e l e u m s ú b d i t o q u e s e n ã o q u e i x a . P o d e s d e s c a r r e g a r n e l e t o d o s o s t e u s c o m p l e x o s p a r a e q u i l i b r a r e s a t u a psicanálise. E podes chorar sobre ele que ele lambe-te as lágrimas. Só foi161u m e r r o t e r e s - l h e c h a m a d o M a t r a c a . A m a t r a c a é a q u e l a t á b u a d e argolas que se batem pelas ruas quando está o Senhor morto e se nãopodem tocar os sinos. É um nome fúnebre. Mais fúnebre que qualqueroutro porque lembra a morte da divindade. Lembra Sexta-Feira Santada Paixão, no sábado de Aleluia já não se toca. Era nome para um cãodo prior ou do cangalheiro. Não para ti que tens todo o passado de umh o m e m e u m f u t u r o p a r a o e n c h e r e s d e l e . M a s e u e s t o u p a r a a q u i a falatar e tu não me ligas. Professaste silêncio e o cão se calhar tambémtem que ver com isso . Es tou para aqu i a fa la ta r porque a inda me nãoresignei. Tenho um futuro ainda a disciplinar e a ordenar, embora nãosaiba como. Está calor. Tenho sede.E ins t in t i vamente levan te i -me para beber água . Deve haver agua aqui em casa, não preciso de ir ao tanque. O velho, que sou eu, fita-meainda, mas tem os olhos passados de gelatina. Está imóvel na cadeira, asmãos brancas de morte, a face de cem. O cão estende-se de lado como oscães mortos das estradas, atropelados pelos carros. Depois, as formas deu m e d e o u t r o e s g a ç a m - s e l e n t a s , f o r m a s f l u i d a s , c o m o s e a u m a aragem, filamentos distendidos dissipam-se no ar. Olho no sofá a minhai m a g e m d e s a p a r e c i d a , o u ç o o s p a s s o s d o r e l ó g i o n a p a s s a g e m d o tempo. Fora , a ta rde a fogueada, sempre , a montanha imensa aba t idasobre s i no hor i zon te , a las t rando em l ige i ra ondu lação a té perder de vista. Olho-a infinitamente no diálogo mudo desde, a infância, plácidaimutáve l na sua e te rn idade . Es tá quen te , mor ro de sede , p rec iso de fumar um c igar ro , não posso com a boca seca . É cur ioso que nem me tem apetecido fumar. Estou cheio de mim, não me tem apetecido. Ou édo ar novo purificado, não tem. Quando Sandra morreu, tão destruídoque fiquei, fumei, fumei.- Paulo! Palpa aqui!162Era um nódu lo no ba ixo-ven t re , do , lado d i re i to . Depo is fo i umaa g o n i a l o n g a , e t u d e s f i g u r a n d o - t e d i a a d i a a t é a o h o r r o r , a t e a o macabro. Mas não agora. - Agora estás no jardim da Universidade, eupergunto-te abruptamente se queres casar comigo e tu ficaste a sorrir.V o u b u s c a r - t e e a o t e u s o r r i s o , t e m o s u m a v i d a t ã o l o n g a a i n d a a c u m p r i r . V i d a l o n g a , v i d a r á p i d a , t u d o p a s s o u . S e e u t i v e s s e u m a palavra que te dissesse, que te resumisse, que eu articulasse na minhab o c a e f o s s e v e r d a d e i r a c o m o a v e r d a d e q u e e x i s t i u e m t i . S a n d r a , minha quer ida , fos te sempre tão d i f í c i l . A tua capac idade espan tosa p a r a i n v e n t a r e s m o t i v o s d e r i x a s , p e g u i l h i c e s , g r a n d e s z a n g a s d e palavras altas. Não as tuas

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- tua inalterabilidade fria. A tua última máa c ç ã o , i r e s - t e e m b o r a e e u q u e a g u e n t e - u m a p a l a v r a s ó q u e t e reinventasse à minha solidão. Mas tantas palavras, milhões biliões, umf a l a t a r p e l o u n i v e r s o i n t e i r o , e o s b i l i õ e s d e p a l a v r a s e n l a t a d a s n o s livros, à tarde eu ficava na Biblioteca Geral, meus passos perdidos porc o r r e d o r e s g a l e r i a s , e e u o u v i a - o s a t r o a r e m - m e a m e m ó r i a e a o p r i n c í p i o e r a o V e r b o i n s t a u r a d o r d a m i n h a c o n d i ç ã o h u m a n a , n ã o tenho uma palavra. No grande pátio da Universidade, o rio em baixo eao longe, querias tu casar comigo? e tu sorriste. Vou à cozinha, a águacorre, abri o contador no quintal, a água corre. Abro a torneira, deixo-acor re r um pouco , água choca , de ixo -a cor re r ma is um pouco a ver se v e m m a i s f r e s c a . B e b o u m c o p o a r a s a r , p a s s e i o a g o r a a o l o n g o d o corredor povoado de fantasmas. Estão mudos, espreitam-me das portas,o lhos f i t os e compadec idos . Reco lhem depo is as cabeças como se um rasoiro passasse, espreitam de novo, olhos vítreos e grandes, escondem-se ou t ra vez . Memór ia do meu abandono - sé ca lmo. Rever t ido a t i , à tua estrita nulidade, ah, tu não aprendeste bem a morte. E tanto como a163estudaste, aplicadamente, raivosamente, invocando até ao limite a tuacoragem de homem.M a s S a n d r a , r a p i d a m e n t e , u m s o r r i s o c e r t o n o s s e u s d e n t e s Pequenos- Desculpe mas tenho agora auladespede-se breve, eu venho ainda sobre ela - temos tanto que dizer.Caminho a seu lado, entramos tia Faculdade.- Não posso. Tenho agora aula.Debruçado sobre ela, eu, falava ainda, falava, as palavras nasciam-me em turbilhão, acumulara-as na separação de longos anos, ela seguiaum pouco à frente de mim, direita, flexível. Subi com ela a escadaria daesquerda, entrei no corredor, falava sempre.- Mas eu tenho agora aula, compreendae em face disso, precipitadamente, entrei eu também na aula. Era del i n g u í s t i c a o u f i l o s o f i a , n ã o p o d i a s e p a r a r -m e d e S a n d r a , a a u l a e r a muito concorrida, entrei de roldão, sentei-me lá ao fundo, Sandra opôs-se terminantemente a que eu me sentasse ao pé. O professor era um tipon o v o , m u i t o m a g r o e a l t o , a f a c e e s p e c t r a l . E s t a v a e m p é a t r á s d a secretária, o contínuo veio tomar nota das faltas, ele aguardava. E logoque o contínuo saiu, começou. Automaticamente as nucas de todos osalunos vergaram para as carteiras sobre os cadernos de apontamentos.Ped i uma fo lha a um co lega , tome i também apontamentos para nãodestoar. Era uma tarde de sol, a luz coava-se pelas grandes janelas decima a baixo, uma claridade difusa por toda a sala. Alto, esgrouviado. Af a c e c o a d a d e p a l i d e z , i m ó v e l c o m o u m p o s t e t e l e g r á f i c o a t r á s d a secretária. Separado de todos, eu olhei-o ainda, espreitando de baixo,rente ao papel, ao professor.164- Retomemos portanto o problema desde a base, retomemos todos osproblemas, porque a história, filosofia, arte, religião, as mais vulgaresrelações entre, os homens, tudo assenta no passaporte da evidência dapa lav ra . Nós vamos submeter essa ev idênc ia a um exame: que é uma palavra?o s l á b i o s b r e v í s s i m o s ,

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a r t i c u l a d o s m e c a n i c a m e n t e , o f l u í d o d o discurso escoando-se-lhe da boca como uma fita.- Rede aérea de sons, a mais frágil produção dohomem, e la res is te ma is do que a pedra e o aço . Mor rem as le i s os costumes os impérios, ela resiste. Submetida a um desgaste constante,e la res is te . De manhã à no i te um só homem norma l d iz m i lhares de palavras, são precisos muitos séculos para que o seu simples sentido sea l t e r e . N ó s l e m o s o s t e x t o s d e h á t r ê s , q u a t r o , c i n c o s é c u l o s e o s e u sentido fundamental permanece. Mesmo as línguas já mortas perma-necem como línguas, como conjunto de palavras que chegaram até nós.Uma palavra exige uma quantidade enorme de movimentos dos lábios,d a l í n g u a , d e t o d o o a p a r e l h o f o n a d o r , c o m p r e e n s í v e l e r a q u e n o s enganássemos nos mov imentos , que na passagem das gerações esses movimentos se alterassem, e a alteração é mínima para a complexidadeda p ronúnc ia de uma s imp les pa lav ra . Pensemos agora na espan tosa e s t r u t u r a d e t o d a u m a l í n g u a p a r a m e d i r m o s b e m o m i l a g r e d a s u a resistênciaenquanto a tu rma in te i ra , debruçada sobre os cadernos e a ta rde luminosa no espaço da sala.- Mas neste extraordinário prodígio, meditado ao longo dos séculos,só o nosso tempo verdade i ramente se in te r rogou sobre o s ign i f i cadoexacto de uma simples palavra. Porque eu digo «isto é uma mesa» e nãose i o que e uma «mesa», que re lação se es tabe lece com esse rea l a que165chamo «mesa». Imag inemos que eu não en tendo a f rase « Is to é umam e s a » o u s e i o q u e s i g n i f i c a m a s e x i j o a e x p l i c a ç ã o . E e n t ã o d i r e i qualquer coisa como «isto sua significa uma coisa que eu designo aquia o p é » , m a s i n t e r r o m p o p a r a p e r g u n t a r « o q u e é q u e q u e r d i z e r ”s ign i f i ca ”?» Respondo que « ”s ign i f i ca - é uma pa lav ra que» . E que é que quer dizer «é»? E assim de explicação em explicação, de palavra empalavra, eu acabo por ter de dar a volta à língua toda, sem uma abertapara sair de lá.Finjo que escrevo, ouço apenas, olho o homem hirto à secretária, éum jovem ainda, alto, repassado de uma palidez de sombra, estriado demagreza. Imóvel, as mãos pousadas na pequena estante em que tinha osseus papéis, só os olhos febris bulindo activamente na caveira da face.- Concluímos daqui que a língua constitui uma rede fechada sobre si,um tec ido de ma lha que as le i s da l íngua tecem, um quadr icu lado de palavras sobrepostas ao que chamamos «mundo real». Não há portantoum mundo rea l t raduz ido em pa lav ras , mas um mundo de pa lav ras sobreposto a esse real. Porque cada língua tem as suas leis, o seu modode ver a realidade, o seu modo de a pensar. Assim mudar de língua ém u d a r d e m u n d o e n ã o p o d e m o s p o r t a n t o p e n s a r q u e e s s a l í n g u a traduz esse mundo porque teríamos tantos mundos quantas as línguase ser ia es tu l to admi t i r que essas l ínguas o t raduzem na rea l rea l idade que é a dele.Sandra está à frente na sala, olho-a obliquamente na diligência comque escreve. Direito, escorrido de magreza, na impessoalidade de umcorpo só voz, o professor sempre. Move os lábios imperceptivelmente,

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ata rde evo la -se na c la r idade lá de fo ra . Mas nesse caso , que quer d ize r«real»?166- Que re lação pode es tabe lecer a pa lav ra com e le? E nós d i remosentão que o real não existe, que a palavra não o designa mas se basta asi mesma e em si mesma se fecha. Nós diremos então que o real é umailusão incrustada na própria palavra que o diz. Nós diremos então que avida mental do homem é uma ficção de si própria. Não precisamos deascender à filosofia para se supor que filosofamos. Na mais breve fraseestá implícito um raciocínio, nem que seja pela ausência dele. Nos textosa r c a i c o s n ó s a s s i n a l a m o s o p r e d o m í n i o d a s c h a m a d a s « o r a ç õ e s coordenadas», sobretudo com a copulativa «e», como fazem os homensrudes e as crianças. Significa isso que se não estabelece urna relação dev a l o r e s c i r c u n s t a n c i a i s m a s s e s o m a m f a c t o s c o m o q u e m f a z u m a co lecção . Mas nós usamos as chamadas «orações subord inadas» e ao fazê-lo introduzimos logo um raciocínio, assinalando uma «condição»,uma «causa», uma «concessão,. Chegados, porém, ao seu nível superiorque se chama a « f i l oso f ia» , o rac ioc ín io apura-se e apro funda-se . Mas que é que quer dizer um «raciocínio»?E n i s t o , d e v a g a r , c o m e ç o u a c r e s c e r l e n t a m e n t e , a v o z s o n o r a re tumbante , o p ro fessor . A face d i la tada de ma jes tade , c resc ia todo ocorpo tomo um c í r io , uma pa l idez te r rosa ma is funda , os o lhos ocos l u z i n d o - q u e e r a u m r a c i o c í n i o ? U m j o g o m e c â n i c o d e p a l a v r a s , harmonia fútil de arame, coordenação orgânica de sons - que é pensar?Porque se não pode pensar senão nos limites da língua, todo o esforçoraciocinante se fecha na articulação das palavras.- N inguém pode sa i r das f ron te i ras da l íngua , a ob jec t i v idade da r a z ã o e s t á n a r e d e q u e u m a l í n g u a t e c e u . A s p a l a v r a s v i v e m p o r s i , pensar é articular um sistema de vocábulos, de sons ocoseu o ouvia na sua voz clara como um martelo embatendo contra asqua t ro paredes da sa la , a luz do so l escureceu . E is porque p rob lemas167j u l g a d o s q u a s e i n i n t e l i g í v e i s o u i n f a n t i s o u d e s p r o p o s i t a d o s s ó s e en tend iam na sua razão de ser quando en tend íamos a l íngua em que fossem formulados.- E i s p o r q u e a q u a s e t o t a l i d a d e d o s p r o b l e m a s f i l o s ó f i c o s s ã o problemas sem fundamento, problemas feitos de palavras a que nadacor responde a lém dessas pa lav ras vaz ias , o homem tem ar ras tado ao longo dos sécu los um en t re ten imento vão como as c r ianças nos seus jogos de faz-de-contaenquanto a classe inteira, vergada sempre para os cadernos, imóvel,só as mãos diligentes cursiyas no traçado minúsculo dos apontamentos,enquanto eu, já um pouco desprendido da aplicação em escrever, ouviasurp reso e suspenso do homem a l to , tocando o tec to , os ges tos agora amplos à largura da sala.- C o u b e - n o s a s s i m a n ó s d e s m i s t i f i c a r e s s a i l u s ã o m i l e n á r i a d o pensador entretido com os seus fantasmas, da massa enorme dos quel h e m u l t i p l i c a v a m o j o g o e

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d e s e n v o l v i a m a s u a r e d e d e f u m o d e prob lemas inex is ten tes . Ass im en tendemos que jama is como ho je se tenha vivido de palavras ou a tenhamos reconhecido na nossa lucidez.F i loso f ia , po l í t i ca , re l ig ião , re lações vu lgares humanas , mesmo a a r te quando mais discursiva, tudo é uma rede formal de ilusão e de vazio.Ass im nós nos pergun tamos no ru ído des te l i ngua ja r f rené t i co , nes ta in fe rna l fe i ra de pa lav ras , ass im nós nos in te r rogamos se é poss íve l existir uma palavra fundamental, a que inarticulada exprima o homemp r i m e i r o , o q u e s u b s i s t e p o r s o b o m o n t ã o d e v o c á b u l o s e i d e i a s e prob lemas, se acaso é conceb íve l que e le ex is ta an tes d isso . D iz -se às vezes que essa palavra a sabem os artistas, o poeta, o músico, o pintor,ou se ja os que não d izem o que d izem, mas d izem apenas o s i lênc io168primordial, ou seja o que não se diz. Deixo o problema em aberto, a elevoltaremos na próxima lição.E de novo o professor regressou ao seu tamanho, magro, hirto, a faceescaveirada de olhos vítreos e encovados, a sala iluminou-se de novo àclaridade da tarde. Devia ter a lição cronometrada, porque nesse precisoinstante uma campainha estrídula ressoou pelos corredores a anunciaro fim da aula. Arrumaram os seus cadernos os alunos, eu saí, aguardeiSandra que me sorriu sem dizer nada.É uma ta rde de Agos to . A meu lado na sa la , mesmo por ba ixo do relógio- Tu sabes o que ela disse?E s t o u e u d e c a l ç ã o , o a r a b a n d o n a d o e t r i s t e . M i n h a m ã e e s t á encostada a almofadas, a boca pregou-se-lhe numa articulação difícil,era um dia de Inverno, chovera toda a viagem- Tu sabes o que ela disse?A boca contorcida. A palavra difícil.169XXVPorque pensar? recordar? Convocar o passado que nada aqu i temque fazer? A tua v ida são os es t r i tos l im i tes em que tens de te mover ,cada momento i r redu t íve l em que tens de ex is t i r . Es tá quen te . O so ldec l inou um pouco , ve jo -o pe las sombras que começam a a longar -se , mas o calor de fornalha persiste. Ouço o tempo no relógio, no seu batercompassado. E assim me parece que se me levantasse, fosse cuidar já doq u e é p r e c i s o , d e q u e s e r v e t e r p r e s s a ? d i l a t a r o m a i s p o s s í v e l c a d a instante que passa, olhar em volta e ver e ouvir. A vida está tão cheia dem i s t é r i o , d e c o i s a s n o v a s . V e r a s c o r e s , o u v i r b e m o s s o n s q u e n o s rodeiam – canta! De vez em quando não dou conta de essa voz cantar,porque se ca la e não reparo no s i lênc io depo is . Ver , ouv i r , as p i ra r osperfumes que passam na aragem, tocar os volumes das coisas, o maciodeste tecido do sofá. Recuperar a virgindade de ser para ser em toda ap len i tude . Absorver in tensamente a v ida que a inda t i ve r a v i ve r . Oh,para quê. Toda a minha razão de ser deve estar na integração perfeitad e m i m , d o m e u s e r n u l o a p r e s t a ç õ e s – e t o d a v i a . É b o m r e c o r d a r . Recuperar a vida desde onde ela morreu. Prolongar ao futuro que nãohá o passado que houve – querida Sandra. Mas eu tenho de ir pensandoem preparar o quarto - em que quarto vou dormir? Não vou ficar lá emcima, a subir e descer escadas. Idas é belo criar à

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volta um longo espaço,ir levado na ascensão. Não vou. Em todo o caso, não vou. O quarto emque mor reu a t ia Joana , é ao fundo do cor redor , vou f i ca r a í . Fo i em Outubro? ou já em Novembro, Sandra telefonou-me para a Biblioteca,v ie ra um te legrama da Deo l inda «sua t ia mor reu» . Sandra não pod ia170v i r , Xana e ra a inda pequena, v im eu só . Tomei o p r ime i ro combo io , tomei um táxi na estação, noite plácida de Outono.- Paulinho!- Tia Joana!- Julguei que não viesses.- C o m o n ã o v i n h a ? E v i d e n t e m e n t e q u e v i n h a . V o u a o l o n g o d o cor redor , t i a Joana es tá no quar to ao fundo , o do te r raço , os c í r ios à volta, estendida no caixão.- Julguei que não viesses - diz-me ainda.Ressequida de velhice, a face retraída até ao osso, as mãos no peitoc o m u m t e r ç o . À r o d a d a p a r e d e , v á r i o s n ú c l e o s d e s o m b r a d e mulheres.- Não te esqueças de escolher as batatas.- Não esqueço.- Guarda as vermelhas para o fim, que não se estragam.Fico algum tempo de pé ao lado do caixão, olho-a sempre.- Vê se pagas à Deolinda.- Descanse. E como se sente?- Bem. Que estava eu cá ainda a fazer? Depois que morreu a tua tiaLuísa...- Sentia-se mais só. Tinha saudades dos beliscões.- Olha agora para o que te havia de dar. Que beliscões?Então eu não sei? Então vossemecê não me mostrava o braço com osvergões?- Isso é uma mentira. Ela nunca me deu cá agora beliscões.O c h e i r o d a s v e l a s , d a s m u l h e r e s a n i n h a d a s . A b r o a s p o r t a s d o t e r r a ç o , v e n h o a t é c á f o r a . E s t á u m a n o i t e l i n d a , s u a v e . A s e s t r e l a s171m u l t i p l i c a m - s e a o s m o n t õ e s p e l o e s p a ç o e s c u r o . P r o c u r o d e p o i s a Deolinda que está lá para dentro nm4 cozinha.- Deviam tê-la posto na Igreja, na Casa da Fábricaq u e é u m a e x c r e s c ê n c i a d a i g r e j a , s i m é t r i c a c o m a s a c r i s t i a , chamavam-lhe Casa da Fábrica não sei porquê- Ou na capela da Misericórdia.Deo l inda exp l i cou . Houve quem achasse ma l . T i rá - la logo de casaa i n d a q u e n t e . F u i - m e d e i t a r n o a n d a r d e c i m a , D e o l i n d a t i n h a p r e p a r a d o o q u a r t o d a v a r a n d a , v o l t a d o p a r a a m o n t a n h a . F i c o u m m o m e n t o a i n d a à v a r a n d a , o l h a n d o a n o i t e . E a v i d a e a m o r t e e o s biliões dos destinos dos homens desapareciam-me irreais na indiferentee te rn idade do b r i l ho das es t re las . De i to -me, revo lvo-me na cama, sóadormeço pe la manhã. Depo is fo i o en te r ro , es tava um l indo d ia de O u t o n o . C a m i n h a m o s p e l a e s t r a d a e n v o l v i d o s d e s o l . É u m s o l d o u r a d o , p o i s a s u a v e m e n t e n a s c o i s a s s e m a s t r e s p a s s a r . D o ç u r a l u m i n o s a , t r a n s l u z n a f a c e d o m u n d o , e n l e v a - m e d e e n c a n t a m e n t o c o m o u m a m e m ó r i a a p a z i g u a d a d e u m t e m p o q u e m o r r e u . É u m padr i to novo , quando mor reu o padre Paren te? de vez em quando o cortejo pára, ele reza um responso pela paz eterna da tia Joana. Quandoent ramos no cemi té r io , o cove i ro já lá es tá , p lan tado à be i ra da covaaber ta . Houve a inda uma reza para a v iagem de f in i t i va , o ca ixão fo i baixado à cova com umas cordas, nós saímos, tia Joana ficou entregue àtarefa do coveiro. Era uma manhã luminosa, o sol ia já alto. De vez emquando

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soprava urna aragem que arrastava pelo chão as folhas secas damorte.Mas tenho de ir pensando em preparar o quarto - em que quarto vouficar? Fico no da tia Joana, o que dá para o terraço, o elo de ligação aomeu destino. Há uma cómoda a um canto, a ver se há roupa da cama.172Lençóis, travesseiros - onde os cobertores? mas nem é preciso com estecalor de fornalha. Estendo os lençóis, enfio a travesseira, não preciso dotravesseiro, não gosto da cabeça alta, tenho não sei quê na coluna. Doterraço vê-se o horizonte para os lados do cemitério. Há por baixo umg a l i n h e i r o s e m g a l i n h a s e d e s m a n t e l a d o . A l g u n s p a u s d a a r m a ç ã o caíram, a rede desprendida bamboleia no ar. Um dia vou pôr-lhos defe r ro , repovoá- lo de ga l inhas , re inven ta r a v ida a té onde puder se r . E recuperar os canteiros, plantar roseiras novas. E lilases, malmequeres,dálias e malvas. Restaurar a alegria de uma simples flor aberta. Sandranão virá mais regá-las com o seu chapéu de grandes abas, o sol irisandoa água do regador de i tada do a l to . Ou ta lvez venha quando a so l idão for insuportável. Agora espera-me no pátio da Universidade enquantovenho para a sala e me sento de novo com um cigarro.- Sandra, você quer casar comigo?Ela sorriu e olhou-me um pouco triste, quase com pena:- Você já pensou bem no que está a dizer?O re lóg io da sa la dá horas . Não as con to . O lho apenas pe lo céu adissipação da memória.- Não há nada que pensar. Uma ideia muito intensa não dá mais quepara vivê-la. Não tenho nada que pensar.- Admitamos que aceitava. E o resto?Fazia-me uma pergunta e isso era espantoso. PorqueSandra rarissimamente me perguntou fosse o que fosse, ah, sei bemporquê . Pergun ta r , s i tua rmo-nos num p lano de dependênc ia onde se recebe-a dádiva, o favor de uma resposta. Havia o resto e esse resto eramuito maior que a pequena coisa que eu queria.- Estou pronto a pôr de lado o meu interesse e discutir consigo tudoo que você quiser.173Ela olhou-me, a testa ligeiramente franzida, como se me visasse dep o n t a r i a c e r t e i r a n o m a i s o c u l t o d e m i m . E s t á v a m o s s e n t a d o s n u m banco discreto e eu tomei-lhe as mãos e invencivelmente aproximei am i n h a f a c e d a s u a , e l a , r á p i d a , v i r o u o r o s t o p a r a f o r a d o m e u atrevimento.- É tarde - disse-mea s s o m b r a s s u b i a m l á d e b a i x o , d o r i o , a s c a s a s e m p a l i d e c i a m n a colina fronteira.- Vemo-nos. amanhã? Dá-me uma resposta amanhã?C o m o t u d o é b e l o , q u a n d o e s t á p e r t o e l o n g e . T o d o o f u t u r o i m a g i n a d o n o s t e u s o l h o s p e q u e n o s e v i v o s , n a t u a f a c e g e n t i l . T ã o perto e tão longe o teu amor, a intimidade do teu corpo. E mais longeainda, já fora do meu imaginar, a tua morte. E a minha solidão.D e p o i s n ã o s e i b e m c o m o t u d o a c o n t e c e u , s e i s ó q u e a c o n t e c e u . Sandra tinha que fazer o estágio do magistério, eu tenho a frequentarum curso de b ib l io tecár io -a rqu iv is ta . E no me io d isso houve o nosso casamento. Um dia fui recebido em casa dela, eram três irmãs com ela eum irmão. Mas o irmão, já casado, estaria presente? e o pai não estava,e r a u m m i t o , v i v i a f o r a d o p a i s , n a n o s s a i m a g i n a ç ã o , o s e u d e s t i n o marginal., Sónia, Sandra,

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Nastásia eram as irmãs e o irmão chamava-seV lad im i ro . T inham d i f i cu ldades , eu perceb i , v i v iam com a mãe. Mas tinham em tudo um requinte de distinção. E então, talvez por isso, nãosei. jamais Sandra teve para mim um gesto, uma palavra, uma atitudemais aberta de intimidade. Dominada controlada frígida de correcção.E u e x p l o d i a d e e x p a n s ã o e m o t i v a , e l a t r a t a v a - m e c o m u m a p a l a v r a breve cor rec ta neu t ra l , e ra ass im, não se i se a lguma vez en t re nós se pronunciou a palavra amor.- Que ridículo! - ela dizia. - Importa é o que se vive,174o que d isc re tamente se anunc ia , se denunc ia , se suben tende , umapa lav ra ma is ín t ima põe logo uma ques tão de pudor , de respe i to por nós próprios. Há tanta coisa íntima que se não diz, só talvez ao médico- Tudo tem o seu mundo para existir. Ao nível mais alto ou profundoas palavras são intrusas.P o r q u e t o d a s a s p a l a v r a s e r a m g r o s s e i r a s e v ã s . D e p o i s d e s e d izerem não f i cava ma is nada para se d ize r . E há co isas que nunca se p o d e m d i z e r d e t o d o . A s s i m n ó s c o n v e r s á v a m o s s o b r e c o i s a s circunstanciais, um filme que íamos ver juntos, um livro que um de nósandava a ler, coisas referentes ao meu curso, ao estágio dela, ao nossos e r e m m o d o c o r r i q u e i r o . À s v e z e s e u t o m a v a - l h e a s m ã o s p a r a l h e d izer o que não es távamos d izendo e e la não reag ia , as mãos mor tas sem colaborarem, um lampejo na face de um sorriso tolerante - comoserás tu depois? Discreta correcta fria mecânica - como serás? às vezesperguntava-me. Mas o mais provável seria acontecer tudo como tinhade acontecer e ela desprendida disso na zona neutra da discrição. Umdia não pude mais. Estávamos à porta de casa do seu terceiro andar, eutomei-a nos braços e houve um beijo longo e a minha mão direita pelamodu lação do seu corpo te rno . E e la não d isse nada e o lhou-me comu m s o r r i s o b r e v e e c o m p ô s - m e n a t u r a l o c a b e l o q u e s e m e desmanchara. E abriu a porta e olhou-me ainda com um leve sorriso efechou a porta sem uma palavra.E u m d i a d i s s e - l h e , o m e u p r o j e c t o e r a c a s a r m o - n o s i a a n t e s d e a c a b a r m o s o c u r s o , u m d i a d i s s e - l h e . V i v e r í a m o s n u m q u a r t o , e u recebia a mesada da tia Joana, radicalmente, cortantemente, mas semalterar a voz, Sandra disse- que não. Foram assim dois anos, encontrosmarcados, desencontros, às vezes eu escrevia-lhe de comportas abertas,ela nunca me respondeu, mesmo quando ia para férias e ela ficava na175cidade, eu escrevia-lhe de lá, ela nunca me respondeu, não tive nuncade Sandra uma carta sequer. Eu regressava de férias cheio de avidez, elarecebia-me em casa, falávamos numa sala ou passeávamos pelo jardimou íamos ao cinema, neutral correcta fina fria subtil. Como se nos nãovíssemos apenas desde a véspera, milimetricamente igual.Mas de súb i to , na escada que desce do segundo andar , ouço umatrovoada de passos atropelados- Já vieram! já vieram!é a voz da Deolinda.- Jávieram?T ia Joana pergun ta da coz inha e vem ao cor redor ao encon t ro deDeo l inda - quem é que t inha v indo?

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espre i to da varanda . Um táx i ao portão, espreito, alguém sai do táxi a abrir, e então reconheço-me, soueu. Sou eu bastante mais novo - espera. Ah, somos nós, em que pontoi n c e r t o d a m i n h a m e m ó r i a d o e n t e ? s o m o s s ó s , S a n d r a e e u , v i m o s visitar tia Joana após o casamento. O táxi entra pelo portão, tia Joana eDeo l inda descem a escadar ia da en t rada . Es tou à varanda , o lho . Mas tudo se me dissipa a uma névoa de legenda - quando? quando? Em queponto vertiginoso de um passado imaginário? Olho ainda, olho sempre,ten to dec i f ra r o fan tás t i co por en t re a m inha tu rbação . E tú rb ido , aomeu o lhar fa t igado , tudo len to f lu tua numa vaga ondeação . O car ro dobrara o portão, ficou aí, talvez para facilidade de manobra, tia Joana eDeolinda deslizam fluidas pela álea de areia - sou eu que saio do carro?u m v u l t o b r e v e v e m a o e n c o n t r o d a s d u a s , s o u e u . A b r a ç o - m e a t i a Joana , fo rmamos um só vu l to de névoa na t remu l ina do a r . É Verão t a m b é m , A g o s t o a i n d a o u j á S e t e m b r o , e u m s i l ê n c i o d e f a n t a s m a s . Devemos estar a dizer coisas para assinalar o momento, nada ouço, vejoapenas a flutuação das formas de sombra. Vestes claras ondeiam à sua176volta num redemoinho de ovação, lentas oscilam na indecisão dos meuso lhos . São gen te de um tempo an t iqu íss imo, têm o s igno da loucura .Depo is a mancha b ranca onde ia na sombra do vu l to de t ia Joana , as formas esfumam-se na vaguidão do ar, diluem-se na vertigem dos meusolhos. Vêm do fundo das eras, trazem o sinal da sua dissolução. Formasocas de neblina, dissipação da lonjura, os meus olhos tremem, esvaídosde distância. Tento fixá-los no entendimento claro da imagem flutuante.Tento fixá-los no fugitivo irrecuperável. São manchas ténues da matériada lenda, os seus contornos apagam-se na imobilidade da tarde. Depoisd i s t e n d e m - s e e m f i a p o s l e n t o s , d e s v a n e c e m - s e n o a r . O l h o a i n d a ’intensamente, vejo apenas a areia branca da estrada, o portão fechadopara o caminho deserto. Tarde fixa, impregnada de calor, a montanhaimob i l i za -se à a rdênc ia do so l . Ve jo -a na sua imens idão , toda nua de aridez até ao mais alto do seu impulso. A luz estala contra os telhadosda aldeia, o céu é baixo, carbonizado.177XXVIE por fim casámos. Mas tenho de ir primeiro fechar as janelas lá decima, já o disse, mas não há mal em repetir. Tenho de desfazer as malas,saber realmente o que vou propor à Deolinda. Tenho de dar uma volta atoda a casa, revolver as gavetas, saber o que lá há. Tenho de estabelecerr igo rosamente um p lano para a m inha v ida - como vou o rgan izar as coisas organizáveis para ter passe como um homem? Tenho de remexertudo o que t rago den t ro de mim, de i ta r fo ra o que não p res ta , apura r u m a o u d u a s i d e i a s c o r r i q u e v á v i v e n d o e q u e b a s t e m p a r a m e cumprir. Tenho de. Mas é preciso antes de tudo - que é que é preciso?Arrebanhar todos os restos de coragem, ou de dignidade, ou de sensohumano para me levantar sofá. Estou aqui tão bem. Fumo, olho ao altoo m e u v a z i o q u e l á e s t á , o u ç o o t i q u e t a q u e d o r e l ó g i o . E u m

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b a t e r p a u s a d o d e q u e m n ã o t e m p r e s s a d a s g r a n d e s d e c i s õ e s . O p ê n d u l o desce do a l to do mos t rador , osc i la para um lado e ou t ro na ca ixa que fica em baixo. Bate a sua pancada, ressoa-me nela o eco de uma ameaça,os seus passos inexoráveis. A volta, fixos na eternidade, os frescos do J o s é J o a q u i m . E s t á o c ã o c o m a p e r d i z n a b o c a , o m o i n h o c o m o caminho rústico. E atrás, junto à porta, o quadro de moldura lavrada. Eu m a m i ú d a d e b r a ç o s u s p e n s o c o m u m e n v e l o p e , a g u a r d a q u e a professora em pé termine com a leitura da carta e lhe diga de uma vezse está bem. Aguarda desde a minha infância, têm ambas o ar risonhode um jogo infantil. Sorrio eu também como sempre sorri, ansioso, porque a professora se despache e a criança meta a carta no envelope e vábrincar.178Mas Sandra espera-me, é o dia do nosso casamento. Espera-me ela,os irmãos e a mãe, o pai não esta continua exilado no seu mito? ou Porqualquer razão está para fora do meu lembrar. Tia Joana também nãof o i , m a n d o u - m e u m a l o n g a c a r t a - « t u s a b e s q u e n ã o p o s s o f a z e r grandes viagens, peço a Deus que vos abençoe e cá vos espero quandoquiserdes». Sandra está linda. Pequena subtil delicada. Não me lembrodo teu vestido, lembro-me só que era vaporoso e ponho na memória umbreve ramo artificial que levavas ao peito. Também me lembro de quenão havia em ti visível a mínima excitação. Discreta, grave. Só quando oo f i c i a l d o r e g i s t o d e u p o r f i n d a a c e r i m ó n i a , t i v e s t e p a r a m i m u m v i s l u m b r e d e s o r r i s o q u a s e e n v e r g o n h a d o . E d e p o i s p a r t i m o s p a r a Oliveira, que é uma cidade próxima, à beira-mar. Levavas uma pequenamala, um chapelinho de graça volátil e estavas finalmente a sós comigo,en t regue toda a mim sem a de fesa de n inguém - oh , não mor ras , nãomorras, NÃO MORRAS! Sê calmo. Estás só. Tudo findou. Mas eu nãoquero! Sê discreto, na inteireza da tua solidão. Oh, relembrar ao menos,rev ive r o fug i t i vo ins tan te do que fo i pe r fe i to , an tes de tudo o que o c o r r o m p e u . P o r q u e t a n t a c o i s a o d e s t r u i u , a c o r r u p ç ã o d o t e m p o , a pureza febr i l an tes do que te bana l i zou . Quantas vezes o pense i e teo lhe i a p rocura da tua inveros ími l de l i cadeza g rac ios idade e já lá não estava. Quantas vezes vulgar quotidiana doméstica, eras ainda frágil ed o c e m a s j á n ã o e r a s . S ó q u a n d o m o r r e s t e e m e v i s o z i n h o , m a s e r a ou t ra co isa que mor r ia , ou t ra p resença de t i , ou t ro modo de es ta res comigo e eu te ver. Recordo-te agora no instante primordial, hora únicada revelação, do indício da tua maravilha ficámos numa pensão à beira-mar . S in to a inda na mão o rodar da chave do quar to , vo l te i -me para dentro, tu imóvel em pé, delicada frágil e serena. Tomei-te nos braços,retomo-te nos braços para antes do que te foi, apagando.179- Queres que saia?- Não.L e v e c o m o p e n a , a l u z a p a g a d a , a i n c r í v e l d o ç u r a d o t e u c o r p o . Frágil minúsculo na ponta dos dedos da minha mão. Apanhar-te toda,a m a c h u c a d a t o d a n a p a l m a d a m i n h a m ã o . F r i s o s u b t i l d o s m e u s nervos, ah,

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o veludo do teu calor. Carne virgem, a seda da tua pele, os t e u s s e i o s o c u l t o s c o m o f l o r e s d e e s t u f a . T a n t o c o m o t e s o n h e i e imaginei no meu querer de crise e estava agora ali total, tinha medo dete tocar, destruir. Tão melindrosa evanescente. Então devagar. Queriater-te toda e parecia-me que alguma coisa de ti me fugia e não entravano domínio da minha posse, da minha absorção. As minhas mãos peloteu corpo franzino, na face, nos seios, nas pernas de criança. Estavas emsilêncio, respiravas alterada no meu ombro, ave trémula. Uma serrilhafina, subtil ácido na fímbria dos meus nervos, não tinhas uma palavra,r e s p i r a v a s f e c h a d a e m t i . F e c h a d a , s e c r e t a , a j u s t a d a c e r r a d a m e n t e , p e q u e n i n a d ó c i l - d e s v e n d a r - t e . T e n h o d o r e s e m t o d o o c o r p o , n a s articulações. Tremo todo eu no mistério do teu corpo guardado desde ae t e r n i d a d e p a r a m i m . T r e m o e u t o d o n a i m p o s s í v e l i n v e r o s í m i l presença da totalidade cálida de ti. Febre que grita em cada átomo demim, grito na profundidade das vísceras ao excesso do meu delírio, tuqu ie ta à m inha p ro fanação . Corpo suave na mis tu ra in tensa da nossamútua fecund idade , p lasma ígneo de nós e tu sub t i l sem a fo rça que a g u e n t e a m i n h a a b u n d â n c i a p o d e r o s a . L e v e a p e n a s , a v e f e r i d a , submisso fino um queixume, toda a tua pessoa furtiva, todo o fugitivode ti, toda a tua pessoa arisca e graciosa fechada agora em mim, no meuexcesso a trasbordar. E aí te perdes longamente, aí te perco, até que omundo renasceu e tu ao cen t ro e ao pé de mim. Rap idamente en tão e r g u e s t e - t e , e u o u v i a - t e a l i a o p é n a p u r i f i c a ç ã o d e t i , r e n a s c i d a ,180purificada e imediatamente adormeceste. E ergui-me eu também, vime n c o n t r a r - t e n a d i s t â n c i a a é r e a d o s a n j o s e d a s c r i a n ç a s . - S ó e u n ã o dormia, pregado na noite como uma estrela. E de mim a «ti uma bênçãoq u e e u n ã o t i n h a m a s s e n t i a n u m i m p u l s o a u m s o r r i s o , a u m a p a c i f i c a ç ã o q u e s e e x p a n d i a d e m i m e i a a t é a o s l i m i t e s d a v i d a e t e inundava de uma imponderáve l te rnura . Ass im es t i ve longo tempo,m a s e u p r e c i s a v a t a n t o d e t e t o c a r . R e c u p e r a r a t u a r e a l i d a d e inacred i táve l , a tua p resença no cen t ro do un iverso . A mão suave na fronte, o lume de um meu dedo na fímbria do teu corpo. A respiraçãosubtil da minha boca na tua face. O halo fugidio da minha presença natua - e tu rodaste sobre ti, um apagado ciciar da tua boca. Pregado nanoite como uma vigília, irradiada de uma luz viva e trémula - dorme.Que é que eu amo em ti? Não é o teu corpo, não é o teu espírito, mas atransfiguração de um pelo outro, a transcendência da tua carne frágil, aabordagem de quem tu és no mais profundo de ti, na posse compactad e t o d a t u , n o e s p a s m o d e u m p u n h o c e r r a d o - d o r m e . N ã o p o s s o dormir, não quero. Como perder esta hora máxima de ser, de tocar todaa tua rea l idade secre ta , d ras t i camente separada , segregada da minha ânsia em agonia? Porque tu eras para mim o puro irreal e imaginário, osubtil incorpóreo, a pura iluminação sem consistência, a aparência don ã o - s e r , a t e r r í v e l b e l e z a

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i n t o c á v e l , a g r a ç a a é r e a i m a t e r i a l . E a g o r a es tavas ao pé de mim, e eu es tendo a mão devagar para condenar emrea l idade a tua imate r ia l i zação . Como dormi r e perder - te e acordardepois - tu não estares aqui e S« tudo fantástico de impossível? Estendoa minha mão, és tu real na febre da minha mão. Então rolaste de novos o b r e t i e e u t i v e m e d o . M e d o d o m e u e x c e s s o , n a a f l i ç ã o d a m i n h a angústia. Tremente, perdido- Sim?181ouse i à tua face a súp l i ca de que fosses de novo verdade i ramente rea l . E a tua mão de in fânc ia p rocurou a minha e num in te rs t í c io desuspe i ta respondeu. Meu Deus . Não é só na amargura que se so f re , o p r a z e r p o d e s e r u m a i n v e n ç ã o d e t o r m e n t o . P r a z e r t o t a l , d e t u d o quanto es tá no corpo desde o ma is ba ixo das v ísceras a té à agon ia deuma iluminação divina. Desde o mais miserável em nós até à vertigemda mais alta transfiguração. Desde os fundamentos de nós até ao que ján ã o t e m n o m e e é a i n d a s a g r a ç ã o e b e a t i t u d e . T o d o s o s p r a z e r e s acumulados pelos séculos, toda a felicidade que se não pode já imaginar- tudo fechado condensado naquele corpo presente e tudo quanto vivianele do mais incrível impossível que era meu - meu Deus. Tão ridículo,eu se i . Es ta f i cção que eu inven to e a m inha en t rega abso lu ta ao que inventei. Que realidade foi a minha lembrança que é agora Tão ridículoassim? Em face de que, maior e envolvente? Sandra. Nada mais, nadam a i s . M e u a b s o l u t o , m i n h a f i g u r a ç ã o m a i s a l t a q u e o s d e u s e s . M e u absurdo, minha tara. Sandra pequenina. Meu vexame sem força para oreconhecer. E então adormecemos os dois. Sandra adormeceu nos meusbraços e eu nos dela, para que a irrealidade fosse real até aos limites damorte.P e l a m a n h ã , a l u z . P a s s a v a e n t r e o s e s t o r e s e t o d o o q u a r t o s e iluminou, Sandra dorme ainda, respira. Olho-a intensamente, dorme nocentro do mundo. Olho-a e tudo em mim se transporta de deslumbra-mento e terror. Está inteira a meu lado e todavia, envolve-a o mistério ea ameaça. Sacralizada imponderável sustida do imaterial da legenda. Eassim me parece que um sopro ligeiro do real a dissiparia em neblina.Quieto, tremente, eu. Afloro-lhe um dedo na fronte, a fímbria do meudedo arde. Dorme. Serena, no intocável da beleza, do que se não podedecifrar, reconverter ao mundo da consistência - fui eu que te tive? eras182tu? Porque tu és tão mais que tudo isso, tão do mundo incriado e que jama is pode aceder à c r iação . Não fo i con t igo que eu me expr im i naminha abundância terrível, tudo foi um espasmo da minha imaginação.D o r m e . O l h o - a a i n d a , o l h o - a s e m p r e . R e s p i r a n o i n s e n s í v e l e n a suspeita, mal lhe ouço a respiração. Preciso de me mover, tenho medo.Mas insensivelmente ela abre os olhos, abre-os devagar, fita-me. Sorri.E n t ã o a b s u r d a m e n t e a a m e a ç a d e n ã o s e i q u ê c o n t r a o m e u deslumbramento. E puxei a dobra do lençol e cobri-nos a ambos com elee olhámo-nos sem uma palavra no obscuro da nossa clandestinidade.Excluíamos assim o mundo exterior na secreta volúpia de estarmos sónós, um em face do outro, no entendimento

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cúmplice de existirmos sónós diante dos deuses e da vida. Sandra não diz nada, sorri - um dedona tua face, medroso da tua realidade. A aresta do nariz, a tua fronte, aa r e s t a d a t u a b o c a . S o r r i o e u t a m b é m n o c e n t r o c l a n d e s t i n o d a i m e n s i d a d e d e n ó s . A l u z n o q u a r t o é a g o r a q u a s e t o t a l , o s e s t o r e s deixam-na festejar-nos a alegria. E a certa altura não pude mais. E disse,e disse, secretamente, dificilmente. E disse. Devagar.- Amo-te.E ela sorriu- Também te amo.Uma palavra. Disse-a. Amo-te - uma palavra breve. Quantos milhõesde pa lav ras eu d isse duran te a v ida . E ouv i E pense i . Tudo se des fez .Pa lav ras sem in te i ra s ign i f i cação em s i , o p ro fessor dev ia te r razão . Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas àsoutras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve umap a l a v r a - m e u D e u s . U m a p a l a v r a q u e e u d i s s e e r e p e r c u t i u e m t i , palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minhavida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas183a s o u t r a s p a l a v r a s e s t a v a m a m a i s e d i s p e n s a v a m -s e e e r a m u m a articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica demim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo dom e u o l h a r n o t e u , p a l a v r a i n f i n i t a c o m o o v e r b o d i v i n o . R e c o r d o - a a g o r a - o n d e e s t á ? c o m o s e d e s f e z ? o u n ã o d e s f e z m a s - s e a l t e r o u e res f r iou e absorveu apenas a f racção de mim. onde es tava a te rnura triste, o conforto humilde, a compaixão. Não haverá então uma palavraque perdure e me exprima todo para a vida inteira? E não deixe de mimum recanto oculto que não venha à sua chamada e vibre nela desde osmais finos filamentos de si? Uma palavra. Recupero-a agora na minhaimag inação doen te . Amo- te . Na in t im idade exc lus iva e c iumenta donosso mútuo e encan tado . Fecha-nos o lenço l na c la r idade d i fusa doamanhecer , es tás per to de mim no in tocáve l da tua doçura . F rág i l de n é v o a . F í m b r i a d e s o r r i s o e d e r e c e i o , d e p a v o r , n o m e u o l h a r embevec ido . Uma pa lav ra . A p r ime i ra que em toda a minha v ida me esgotou o ser. A que foi tão completa e absorvente, que tudo o mais foium excesso na criação. Deus esgotou em mim, na minha boca, todo oprodígio do seu poder. Ao princípio era a palavra. Eu a soube. E nadamais houve depois dela.Depois descemos à praia - porque relembras? porque reconstróis av ida no oco da imag inação? eu se i . Eu se i que tudo é vão e es túp ido como a invenção infantil. E todavia. Recuperar o absoluto, mesmo queem ficção. Mas toda a vida é um fingimento e só uma pedra é real. E oes t rume. Es tou só e cansado e a v ida pesa tan to , depo is descemos àpra ia . Es tá uma manhã a l ta de luz , o mar é azu l . Sandra fechou-se na b a r r a c a , n ã o q u i s q u e e u e n t r a s s e , . e s p e r e i . E e l a v e i o e n f i m n o s e u mai l lo t p re to , p lasmado ao seu corpo f ino . P repare i -me eu também, partimos os dois para a alegria. Está uma manhã de resplendor, o mar184

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quebra na areia em breve ondulação. Sobe em mim um impulso que meergue à cúpula do dia. Sandra, discreta, pisa leve a areia molhada. Dev e z e m q u a n d o u m a o n d a m a i s f o r t e a b r e e m l e q u e u m a r e n d a d e espuma e nós nascemos das águas como num mito da criação. Novos efrescos, fechados no nosso segredo quente. Há gente à nossa volta, nãoo sabemos. Há o sol e azul e a infinitude do mar. Mas tudo nasceu paranós, é a festa de uma alegria oculta. Da distância do meu vazio, vejo-nosd e c o s t a s a p a s s o s l e n t o s à b e i r a d a á g u a . V e j o a s p e r n a s s u a v e s d e Sandra no seu branco doce de creme, contrastados na brancura com op r e t o o u a z u l d o m a i l l o t , v e j o - m e a m i m . A l t o , m a g r o , u m c a l ç ã o compr ido , camiso la in te r io r sem mangas , um pouco desa je i tado no a n d a r . M a s n ã o h á d e s a j e i t a m e n t o a l g u m n a i n t e n s i d a d e c o m q u e e x i s t o . O l h o d e l a d o S a n d r a , n ã o m e c a n s o d e a o l h a r , d a s u r p r e s a incrível de ela ir ali sem a irrealidade de lhe imaginar os seios pequenos.Revelada desvendada, inteira, a curva delicada do ventre até ao centroda sua intimidade, os seus olhos riem. Uma onda de luz e de festa pelocéu, erguemo-nos sob ela como numa apoteose. Estamos vivos, vemo-nos, estalamos no excesso da nossa plenitude. Uma vontade enorme dete erguer na ponta dos dedos, levantar-te à altura do sol. Uma vontadee n o r m e d e t e t o c a r , f e c h a r - t e d e n o v o n a p a l m a d a m i n h a m ã o p a r a seres rea l , i n tegra r a tua rea l idade na cer teza da minha carne . Sandra pequena débil, exacta e verdadeira até ao ridículo de mim. Deus deveexistir para caber nele esta minha magnitude, para haver qualquer coisamaior que nós, qualquer coisa em que caiba tudo isto que é muito maiorque a vida. Passo por sobre os anos em que o excesso se perdeu, recu-pero a o r ig ina l idade do sen t i r como se nos sagrassem de e te rn idade .Caminhamos à be i ra -mar , t rans f igu rados de so l , sondamos todas aspa lav ras poss íve is e não há nenhuma bas tan te . Es ta lo por den t ro na185necessidade de explodir e só me acode à garganta a necessidade de umgrito. E ela deve ter-mo ouvido porque sorriu compreensiva e feliz. Masassim mesmo a pressão dentro de mim é de mais e levanto-me do sofá evenho à janela de trás da sala e rebento num grito horroroso para o vale- Canta!e a mulher anónima cantou. E eu retive-me confundido no limiar dal o u c u r a . C a n t a . E u o u ç o . N a d i s s o l u ç ã o t r i s t e d e u m a v i d a i n t e i r a - p o r q u e t e n ã o d o m i n a s ? Q u e t e m q u e f a z e r a q u i t o d a a i n v e n ç ã o infantil? Milhares milhões de vidas como a tua no apagamento final. Apaz, o silêncio. É a tua medida. Sê digno e respeita-te até aos limites deti.Depois regressámos à nossa barraca, havia um ajuntamento de gentea l i a o p é . C h e g á m o -n o s t a m b é m a v e r - e m c i m a d e u m b a n c o u m homem gesticulava. Abria os braços, erguia-os, num grande espectáculode oratória- Agora está a falar sobre o orçamento geral do Estadomas não dizia uma palavra. Depois parou.- Fala lá agora sobre o preço da castanha pilada e imediatamente elecomeçou a gesticular. Erguia um dedo ao alto, incendiado de ameaça,espalmava a mão adiante a suster uma objecção, enrodilhava a boca nom e c a n i s m o d e p a l a v r a s

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s e m s o m , r a s g a v a - a , i m i s c u í a o s l á b i o s , a f u n i l a v a - o s , r e v u l s i o n a v a - o s , e s c a n c a r a v a a g o e l a à p a s s a g e m d e a lguma ide ia ma is ca tegór ica . Mas não se lhe ouv ia um som. Depo isacabou o d iscurso , sa l tou do banco e a t i ra ram- lhe moedas . Ca íam na areia, era difícil apanhá-las, esgaravatava o chão à procura. Sandra fezum breve momo de boca de quem não aprova ou sorriu compreensiva eeu disse-lhe- Sandra. Se fôssemos tomar banho?186E d i a s d e p o i s v i e m o s à a l d e i a v i s i t a r a t i a J o a n a , e l a d i s s e r a - m e «espero que te cases pe la ig re ja» , mas Sandra fo i rad ica l e Deus para mim começava a entrar na mitologia.- Em todo o caso, não lhe vou dizer que casámos só pelo civil.- Não é bonito mentir.- Não é uma mentira. É uma reserva mental...Chegámos há pouco ao portão num táxi. Olho-nos ao portão numarevoada de festa. O portão fechado. Ninguém.187XXVIIE e s t o u a s s i m , e n t r e g u e à m i n h a m e l a n c o l i a - q u e b a r u l h o n o corredor. Alguém a arrastar os pés, um resmonear confuso de palavrasininteligíveis. Olho a porta, sou eu que entro, ah, como tu vens. Sento-m e a o m e u l a d o , M a t r a c a v e i o a v a r a n d a l a d r a r p e l o i n s t i n t o d e propr iedade - como tu es tás . O fa to enxova lhado , che io de nódoas , ocolarinho sem gravata, a barba por fazer.- Esses filhos da puta, canalha ordináriam a s q u e é q u e t e a c o n t e c e u ? O l h o - m e c o m p i e d a d e , c o m o e s t á s acabando mal, em desleixo e degradação.- A Deolinda não te pode limpar o fato?- Garotos malcriados! Mas eu vou ao regedorque é que vais fazer ao regedor?- Já um homem não pode andar pela rua em sossego! Espumava decó le ra , reparo mesmo que aos can tos da boca , nunca t inha reparado , uma espuma de saliva- Limpa a boca!- Limpo o quê?- Estás surdo! --Está o quê?B e r r o - l h e a l t o , e s t á s s u r d o , e l e a c a b o u p o r m e o u v i r , e s q u e c e u mesmo o que contava, dizia agora que estava surdo. Um dia depois doalmoço fora como nesse dia dar uma volta. E quando menos esperava -pum! - um estoiro nos ouvidos. julgou mesmo que fosse um tiro, olharaem vo l ta , se r ia um t i ro? e não e ra . F ica ra com os ouv idos en tup idos como quando depois de um banho, os ouvidos cheios de água. Metia-188lhes o dedo mend inho , sacud ia a mão a es fu rancar , es tava surdo , euolhava-me com piedade, mas que é que tinha acontecido?- O que é que aconteceu?- O q u e é q u e s u c e d e u ? F i q u e i s u r d o . M a s n ã o p r e c i s a s d e b e r r a r tanto que ainda ouço que chegue.- Porque é que ias ao regedor?e ele contou. Saía com o Matraca a dar uma volta às vezes para nãoenferrujar. E os filhos da puta dos garotos corriam-no à pedrada a ele ea o c ã o , e r a a s s i m . M a s h a v i a d e i r a o r e g e d o r , a u m d o s g a r o t o s conheço-o , pergun ta ra a uma mu lher , e ra f i l ho do En je i tado , ou e ra neto, havia de se queixar. Escória, dejecto, escumalha da humanidade,c o r r i a m - n o à p e d r a d a p a r a o e x p u l s a r e m d o

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c o n v í v i o h u m a n o , e u o l h a v a - o , i a p e n s a n d o . R e s t o q u e s o b r o u d e u m a i d a d e c o n s u m i d a , es to rvo de quem passa , aber ração da na tu reza , imagem degradada a expulsar, lixo a varrer, ofensa pública para o novo homem que nasceu,e u i a m e d i t a n d o . E o l h a v a - l h e d e n o v o t o d a a m i s é r i a n o f a t o amarrotado, cheio de nódoas.- Estás sujo!- Estou surdo, já o disseste, não é preciso repetire eu sorri de pena. Estirado aos pés, o cão tão velho como ele. Era umcão de pêlo anegrado-cinzento da cor da sujidade. Assim o teu desleixote contaminou todo de porcaria até ao cão. Assim a tua falta de respeitopor ti, o respeito que te devia merecer a pessoa humana que ainda viveem t i . Ou já não v ive A inda és uma pessoa humana? ou és apenas os teus despo jos que só fa l ta en te r ra r . O lho- te compass ivo em p iedade infinita por ti, que é o último sentimento humano que se tem. Quandosaíres não pares, não te encostes a uma esquina, tu e o cão, senão quempassa atira-te coroas de esmola, ou talvez que fosse essa a tua melhor189s o l u ç ã o . L e v a v a s a r a b e c a , t o c a v a s q u a l q u e r c o i s a , aAve-MariadeS c h u b e r t p a r a a g r a d e c e r e s . E i a e u a d i z e r - l h o e m v o z a l t a , a s a l a d e s e r t a , o t i q u e t a q u e d o t e m p o n o r e l ó g i o - q u e s e r á f e i t o d o p a d r e P a r e n t e ? l e m b r e i - m e a g o r a a p r o p ó s i t o d e S c h u b e r t . J á d e v e t e r m o r r i d o , a g r u p a d o e m p a r e l h a d o a o s m o r t o s d a m e m ó r i a . E s e m a possibilidade, como padre, de se continuar em descendência na terra -ou talvez não. Um dia fui à estação da vila com as minhas tias esperarum familiar que vinha de comboio. E a certa altura, um homem fardadon a p l a t a f o r m a , t i n h a u m a c o r n e t a , s e r i a o c h e f e ? N ó s o l h á m o - l o e sub i tamente , que es t ranho . Era o den te sa ído , o o lho azu l , o je i to de erguer de lado a cabeça, tudo. Tia Joana não aguentou mais. Dirigiu-seao homem, nós atrás:- O senhor desculpe. Mas é alguma coisa ao senhor padre Parente?- Sou filho.Tia Joana varada. Tia Luísa chegou-se a ela, torceu-lhe a pele de umbraço:- Sua estúpida. Quem a mandou a si ser curiosa.- Ai, ai. Eu podia lá adivinhar - tia Joana à rasca com o beliscão.Toda a a lde ia soube da h is tó r ia , quem a con tou? Cer tamente a t ia J o a n a . E m a l g u m f a l a t ó r i o b e a t o a p ó s a i g r e j a , c o m a M u n d a p o r exemplo, certamente. E um dia que eu fui à loja não sei porquê, o Almasperguntou-me, estava lá um caixeiro-viajante que quis saber, lembro-medestes caixeiros. Vinham à aldeia pelo Verão, bem-postos, colete gravatalenço ao peito, bem-falantes. já não sei como viajavam, de bicicleta não,só os ourives, a mala da mercadoria no suporte, guarda-chuva depen-d u r a d o n a g o l a d o c a s a c o . T a l v e z n a c a m i o n e t a , n ã o s e i . E n t r a v a m , começavam uma grande conversa. Contavam anedotas, iam olhando oq u e h a v i a p e l a s p r a t e l e i r a s , a a n o t a r e m o q u e f a l t a v a . E e n t ã o190propunham as encomendas . Tec iam em pa lav ras a sua rede , depo is ten tavam a pesca . Dessa vez o v ia jan te ouv iu a h is tó r ia , r iu -se mu i to . Depois disse:- Você ó Almas, já não tem

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daquele riscado que lhe vendi da últimav e z . V a i o u t r a r e m e s s a ? E l e n ç ó i s , c o t i m , a t o a l h a d o s ? A l h o n ã o l h e pergunto se quer. É uma coisa que se não deve perguntar se se quere r i sos ou t ra vez . Mas não perceb i . Perceb i fo i o que e le con tou asegu i r , eu f ique i como um tomate - e sa í a co r re r . De vez em quando lembrava-me e ficava outra vez encavacado mas não ria. Custava-memesmo entrar na igreja com aquele coisa feia na alma. Mesmo dormirera custoso, podia acordar no inferno e então disse comigo- Tens de te ir confessar.Mas como? Como ter uma coragem maior que a vergonha? Tive deter. Confessei primeiro os pecados miúdos ou já tão corriqueiros que eracomo se - desobediências às tias, distracções na igreja, porrada com osamigos, coisas assim. Por fim, atirei-me. O que eu não iria ouvir. Atirei-me. Senhor prior, ouvi uma história indecente.- E que história, meu filho?- F o i u m v i a j a n t e q u e c o n t o u a s s i m : U m a v e z u m h o m e m v i u u m m e n i n o e p e r g u n t o u - l h e : ó m e u m e n i n o , q u e m é q u e t e f e z e s s a c a b e c i n h a t ã o p e q u e n i n a ? E o m e n i n o d i s s e : f o i o u t r a a i n d a m a i s pequeninae aqui o padre Parente, em vez de ficar varado de cólera, meu Deus.Começou a rir, a rir, estalava de riso nas bochechas para se pôr sério emandar-me rezar não sei quantas ave-marias - que horas são? Ouço Or e l ó g i o , n ã o o o l h o . O l h o a t a r d e q u e d e c l i n a l á f o r a , a s s o m b r a s nascidas das coisas, o calor mais surdo, fechado na terra. E um cheirono ar, cheiro a tarde quente, a restolho queimado, a terra árida, não sei.191Concentro-me todo neste cheiro, tento isolá-lo em mim, torná-lo nítidona confusão do meu corpo. Quanta coisa a vida nos dá e a perdemos e aperdemos em distracção - o cheiro, o som, a cor. O sabor, o tacto. Ah,tornar vivo e nítido o que podemos sentir, sobretudo quando a morte jác h e i a d e p r e s s a s e a p r e s e n t a p a r a n o - l o r o u b a r . R e s p i r o f u n d o e lentamente, atento ao que o embaraça e o confunde, este aroma ao chãoda minha origem. Vem-me nele o sol escaldante e a terra gretada e oslonges de uma imóve l a r idez . Tardes quen tes de toda a in fânc ia e as sombras húmidas de alguma árvore frondosa e a memória de algumafon te de água f r íg ida . Che i ro a pó dos caminhos , a es t radas b rancas e calcinadas, a romarias longínquas, cheiro a secura e a suor. Fecho aindaos olhos, aspiro com atenção, concentrado todo eu neste odor quente dat a r d e . E é c o m o s e e u t o d o m e d i l a t a s s e à v a s t i d ã o d o h o r i z o n t e , à montanha reque imada, ao céu de z inco , ao a r espesso de poe i ra e de luz. Silêncio no mundo, a terra arfa de cansaço. O relógio dá horas. Nãoas conto.192XXVIIIPorque eu estou tão saudoso de ti. Ou não de ti, talvez, mas de umt e m p o e m q u e t u d o e m t i s e c e n t r a l i z a v a . O u n ã o d o t e m p o m a s d e quanto fo i a m inha v ida e eu p rocuro numa pa lav ra que v iesse desde então até mim e não encontro. Uma vida inteira, assisto ao seu remate,que pa lav ra me sobrou? Que é que eu tenho comigo para en f ren ta r a morte? Que é que a morte vem matar? Tanta coisa sublime eu ouvi davida humana, que é que ma

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resume jogo a morte num prato da balançacom a vida que ela vai suprimir. Que é que a equilibra no outro pratoem va lo res que conqu is te i? Não posso apresen ta r -me ass im de mãos vazias perante a morte, a morte tem de matar alguma coisa, não tenhoquase nada para matar. Oh, que se coza a morte, estou tão bem assim apensar. A recuperar na memória o tempo em que transbordava de vida,que colheita então a morte faria, és tão ingrato. Viveste até agora, que importa se a morte te levar só os restos, a carcaça onde tudo aconteceu?é fe io o pecado da ingra t idão . Re lembra , que é que tens a re lembrar?Tanta coisa - Sandra. E é o que no fim de contas me lembra só. Como setoda a vida se reunisse nela, passasse nela e nela se iluminasse e tivessesen t ido . Nesse ano fu i co locado em Santa Mar ia , no Su l , Sandra ve io c o m i g o « a o a b r i g o d a l e i d o s c ô n j u g e s » , f o i c o l o c a d a a í n o l i c e u . E imediatamente, porque a memória é assim. Concentra-se num ou doiselementos significativos, imediatamente vejo-nos aos dois no meio deuma revoada de alegria em sol e mar. Passeios à praia enquanto o Verãos e d e m o r a e o m e u p e r e n e e n c a n t a m e n t o p e l a t u a d o ç u r a i n f a n t i l . Escrevo doçura infantil e cubro-me logo de ridículo. E no entanto nãos e i q u e o u t r a c o i s a d i z e r d e t i , à i m a g e m s ú b i t a d a s t u a s p e r n a s d e193i n f â n c i a , d a t u a f a c e m i ú d a d e b o c a p e q u e n a e s é r i a , d o s t e u s o l h o s brilhantes como duas pontas de atenção. Penso-te assim, vejo-te assimenquanto não fores um dia uma censura constante cortante, enquanto ot e u t o d o , p e q u e n o e d ó c i l , n ã o f o r u m a c o n t r a c ç ã o d e s e c u r a , u m a retracção de conduta - que é que se modificou em ti ou no meu modo dete olhar com que te modificava? Não quero pensá-lo, agora não, nestevazio do meu imaginar. Vou contigo à praia, tu minúscula frágil, marminúscu lo por tá t i l como tu , a p ra ia quase deser ta e a auréo la do so l . Deitamo-nos na areia, olho-te intensamente na tua intimidade oculta e àminha mão. O lho- te nos o lhos , na pequena boca verme lha e es ta lo à pressão das palavras que nada dizem e te quero dizer de novo e te nãodigo e tu ouves sem eu dizer. Meu Deus. Como se é feliz na felicidadeimag inada de , quando se imag ina que se fo i . E todav ia , o imag inár io , que é onde a felicidade está, estava ainda em ti antes de se reabsorverna realidade do teu corpo, vibrava ainda à tua volta e era à sua vibraçãocomo de uma febre que eu a inda es t remec ia . Às vezes o f rémi to à tua volta refluía à estrita realidade de ti, aos poros visíveis da tua pele, aosc r e m e s e t i n t a s v i s í v e i s d a t u a f a c e , à t u a m ã o d e o s s o s e p e l e . E e u olhava-te então a distância, para te distanciar de mim. E olhava-me lád i lu ída con fusa . E regressava a t i como a uma imposs ib i l i dade , e tu estavas lá e eu era feliz outra vez. E tu ajudavas a essa reinvenção de tiporque falavas pouco, palavras breves, certíssimas, e cobrias entre elaso espaço da indec isão , do suben tend ido , do ocu l to indevassáve l e eua m a v a - t e t e r r i v e l m e n t e o u t r a v e z n o d e l í r i o d a m i n h a i m a g i n a ç ã o . Porque nunca houve em ti a expansão em que tudo se extravasa e tornar e a l s e m n a d a d e r e s e r v a - e d e i n t o c á v e l .

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N u n c a f o s t e n a t u r a l a t é à naturalidade em que existia o teu corpo visível e tocável e redutível aoimed ia to da f i s io log ia . Porque essa mesma f i s io log ia te e ra como se a194furtasses ao meu domínio e conhecimento, mesmo quando te conheciad e s d e a f l u i d e z í n t i m a d e t i , d o m a i s r e c ô n d i t o e p r o i b i d o d e t i . Q u a l q u e r c o i s a m e f u r t a v a s s e m p r e e f i c a v a s i n t e i r a n a - t u a inv io lab i l i dade rec lusa , no teu mis té r io por desvendar e não sab ia oque em Qua lquer co isa que te res tabe lec ia na d is tânc ia de t i a que eu n u n c a p o d e r i a a c e d e r , q u e t e p a r a t i , p a r a a t u a i n d e p e n d ê n c i a e a minha do lo rosa sedução . Pod ia tocar - te desde os dedos dos pés aos c a b e l o s c r e s p o s e l o n g o s , t o c a r l o n g a m e n t e a s t u a s p e r n a s , o s t e u s flancos, os teus seios de puberdade, devassar-te da minha procura - tureservavas disso tudo o que te reconstituía na tua pessoa inteira que sem e a n u n c i a v a n o t e u s o r r i s o q u a s e c o m p a s s i v o d e t e r n u r a e t r i s t e Porque nunca foste alegre. Reservada discreta mesmo no teu sorriso.Depois, quando o tempo arrefeceu - que bom, nós passeávamos debicicleta. Morávamos agora no Largo do Januário,. em casa da D. Maria,ocupávamos o quar to de ângu lo para o la rgo e uma rua . Do chão ao tecto subiam quatro- janelas, era um quarto espaçoso. Só de noite, nola rgo hav ia uma taberna . Só de no i te , os bêbedos v inham da taberna , ficavam ali a conversar. De uma vez, deviam ser uns dois, despediam-se, então até amanhã, ficavam outra vez, estiveram a despedir-se até dem a d r u g a d a . S a n d r a e m t o d o o c a s o a d o r m e c e u , e u a p a n h e i u m a insónia. Mas ao sábado, Sandra não tinha aulas, eu também não tinhas e r v i ç o o u f a z i a q u e n ã o t i n h a , m a s a v i d a é a s s i m . U m n a d a f i c a a lembrar-se para sempre, nós alugávamos duas bicicletas, partíamos aosol pela estrada fora. já alguém falou do prazer de uma bicicleta? Mastanta coisa dá prazer e não sabemos de quê. Andar, movimentarmo-nos,contemplarmos um horizonte marinho, como eu o via da Biblioteca. Ous e n t a r m o - n o s à s o m b r a n u m b a n c o d e j a r d i m o u d e e s p l a n a d a . O u t o m a r u m d u c h e q u e n t e o u f r i o . O u m u d a r d e r o u p a , s o b r e t u d o d e195lençóis. Ou cantarolar na banheira - há quem. Ou ver um espectáculomas acompanhado. Ou. Andávamos de bicicleta - porque é que isso dáprazer? muda-se de paisagem mas é o fruto do nosso esforço, sentimo-nos compensados. E há o triunfo do equilíbrio na aresta das duas rodas,t o d o o n o s s o c o r p o s u b t i l i z a d o n e s s e m í n i m o d e s u p o r t e . E h á a ascensão de nós nesse movimento alado. E há a simplicidade, quase oesquematismo dessa máquina de andar. Alugávamos bicicletas, Sandrai a n u m a d e « s e n h o r a » c o m a s u a s a i a - c a l ç ã o , i a n a m i n h a f r e n t e . Saíamos da cidade, havia uma grande rampa, depois era uma estradaplana por entre hortas e quintais. Vejo-a na minha frente como fiquei avê- la para sempre , a sua sa la de xadrez , camiso la , a bo ina ao a l to da cabeleira que lhe descia para os

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ombros. Cerro os olhos ou abstraio doque estou olhando - e vejo. Mas o que vejo não é bem o desenrolar deseja o que for mas uma imagem imóvel, uma mancha de luz ou cor, umpormenor. E extraordinário como de um acontecimento inteiro, de umacena, de um episódio - é assim. Um pormenor resume-os, é o que ficapara a memória de uma vida. Olho a montanha sem a ver ou vista numi n t e r v a l o d a m i n h a d e s a t e n ç ã o j á n ã o q u e i m a d a d e u m s o l c r u m a s envolvida das chamas do sol final - estás lá. E o que te resume nesse é a imagem de ti vista de costas, as pernas finas no movimento dos pedais,a bo ina no a r . S igo eu a t rás na p len i tude da manhã, enquanto à nossa v o l t a , d e u m l a d o e d e o u t r o , é u m g r a n d e p l a i n o d e v e r d u r a , v a i passando lentamente, árvores rasteiras, poços com a sua nora e ao alto océu azul e o ar cheio de luz, uma luz nítida arrefecida, sem o frémito àvolta aquando do calor. E é quase só o que ficou, sobretudo a luz. Umaluz condensada tác t i l , esquadr iada em r igor , l uz ca lma, po isada nas c o i s a s s e m a s t r e s p a s s a r , p e r c o r r e n d o -l h e s a p e n a s o r e l e v o p a r a emerg i rem in te i ras na suav idade da manhã. Vou o lhando em vo l ta ,196o l h o S a n d r a n o s s e u s m o v i m e n t o s m e c â n i c o s , p e q u e n a e m c i m a d a máquina, as pernas pequenas no sincrónico pedalar, a boina, os cabelosf lu tuan tes , a té que a cer ta a l tu ra . Pôs os pés no chão dos do is lados , a bicicleta era baixa, aproximei-me.- Descansamos um pouco?Descansamos um pouco . Hav ia a l i ao pé um mac iço de a rbus tos ,descansamos. Encostamos as máquinas numa berma e felizes, a haustosfundos- Aqui?numa relva, respiramos o ar fino da manhã. Sinto-me sem nada paradesejar, preenchido em todos os espaços do desejo, no repouso de tudoo que em mim estremece de inquietação. Olho Sandra e a sua face, o seucorpo o seu todo de ser quedam-se nos seus l im i tes , reduz idos à sua inteireza material, sem a franja à volta em que se me instale o imaginar.Nada digo, nada dizemos, olho-a apenas como se a procurasse onde elanão está, ela olha-me brevemente, sorri, queda-se distraída a olhar emvo l ta a manhã. E a cer ta a l tu ra , toque i -a , e la nem reparou . Tocava-a como para confirmar que ela estava ali com todo o mistério que era seue e u p u d e u m d i a d e s v e n d a r p a r a l á d e t u d o o q u e o o c u l t a v a e m o fu r tava e mo negava por de t rás de un ia massa enorme de obs tácu los imposs íve is de vencer . En tão fo i como se de novo todo esse imped i -mento , eu qu is de novo reapossar -me de la toda , como se todas essas barreiras, em todo o caso agora um pouco destruídas, como se quisesseconfirmar-me na posse do seu todo, e de novo uma pequena angústiadesenvolvendo-se no centro de mim. E as minhas mãos trementes, eusentia-as quase independentes de mim na procura do impossível. Elaa u s e n t e o l h a v a p a r a l á d o q u e o l h a v a , a f a c e s é r i a c o m o s e e u n ã o existisse. Mas a certa altura, devo ter tocado a sua exclusividade - acaso197me pertenceu alguma vez? deves tê-la furtado a todas as cláusulas docontrato e apenas de vez em quando, por tolerância ocasional, um diap e n s e i - o , j á d e v i a s t e r m o r r i d o . E n í t i d a , c e r c e ,

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m a s s e m n a d a d e excessivo sequer no tom de voz- Não, não. Isso nãosem sequer um olhar, apenas uma breve rispidez na face, levementee n d u r e c i d a . E e u d e s a p o n t a d o , u m p o u c o t a l v e z o f e n d i d o - p o r q u ê amar-te ali? Oh, não sei. Como se mais revelada à devassa da luz, e eutomando posse enfim do recôndito de ti como nunca na clandestinidadee tu fu r tando-me isso mesmo para haver a lguma co isa que nunca me c o n c e d e s s e s , n ã o o d i s s e j á ? E e n t ã o e r g u e m o - n o s , u m p o u c o m a i s s e p a r a d o s c o m a s u a r e c u s a d e p e r m e i o . E s e g u i m o s e s t r a d a f o r a , S a n d r a v a i à f r e n t e , m a i s f o r t e p a r e c i a - m e d o q u e a t é a í , c o m o u m a ado lescen tes em fé r ias va i peda lando na maqu ina , peda la den t ro decom um es fo rço também meu, a té que chegamos à c idade da V ig ia . É uma terra de cubos brancos ao pé do mar. Pelas sombras estendem-sepescadores desocupados esbar r igados , um che i ro in tenso a pe ixe e a suor.E estava nisto quando ouço passos alvoroçados no corredor- Menino que são horas! Vê se te despachasé a voz da tia Luísa - se te despachas para quê? Sandra avisa-me daporta do quarto- Vão sendo horashoras da conferência, aliás da mesa-redonda, é no Círculo Culturaldo Sul, não falei já disso? então ouço-me descer a escada de corrimão apassos ba t idos len tos , devo i r a aper ta r a inda o casaco . Chego en f imabaixo, tia Luísa resmoneia qualquer coisa que não entendo, deve estara corrigir ainda qualquer imperfeição em mim, tia Joana espera decerto198j á n o b a l c ã o - e e u d i g o a S a n d r a q u e é u m m o m e n t o . V o u c o m i g o e minhas tias, tia Luísa leva leva-me o violino, vou com Sandra pelas ruastortuosas da cidade. E quando chegamos perto da igreja, tia Luísa secaavisa-me- Agora vê lá como te portas. Está toda a gente à espera de te ouvire f i n a l m e n t e l e m b r o - m e . L e m b r o -m e n ã o a p e n a s p o r i s s o , m a s p o r q u e h á u m p e r f u m e e s t o n t e a n t e p e l o a r . M ê s d e M a i o , a r c á l i d o como a ternura, entardece devagar na distanciação da noite. Tia Luísal e v a - m e o v i o l i n o , e u r e p i t o , n o s b o l s o s a p o s i ç ã o d o s d e d o s e a s arcadas. À mesa-redonda foi sobretudo Sandra que quis assistir. Tenhoem mim uma deformação que me perverte as palavras que me recuso ao u v i r . N ã o p o r q u e r e c u s e r e a l m e n t e m a s p o r q u e e l a s p r ó p r i a s s e degradam e perver tem ao meu ouv ido ap l i cado . Pouco a pouco , masquase logo de in íc io , en t re m im e Sandra há um vaz io incomun icáve l para as questões mais profundas com que se faz uma vida. E como senum tác i to convén io não as d iscu t imos , não as permutamos. Para segastarem no que não é comum aos dois e ficarem apenas no que delasres is t i sse e fosse en f im de um e de ou t ro . Ass im nos comun icávamosapenas na l i nguagem do amor ou do que o im i tava e res is t i sse para a nossa continuação. Sandra multiplica os passos miúdos, eu acompanhoa passo solto - acompanho-me e às duas tias a caminho da igreja. Está aabarrotar de povo, a igreja, o altar da Virgem fica ao lado, o Círculo estárepleto de assistência. É o último dia do mês de Maria, o altar cobre-sed e f l o r e s , é o d i a d o A d e u s .

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N ã o h á a f i n a l n e n h u m a m e s a - r e d o n d a , Sandra fez confusão, há é uma conferência de um Carlos da Assunçãosobre a «Função Moderna da Cultura». Entramos na igreja pela porta daesquerda, o altar arde de velas, a Senhora no meio, branca e azul. E por t o d o o a l t a r à v o l t a d o t r o n o d a S e n h o r a , a o p é d a s c o l u n a s b r a n c a s199d o u r a d a s , u m d i l ú v i o d e f l o r e s . T i a L u í s a a b a n d o n a r a -m e à m i n h a sor te , dá-me a ca ixa do v io l ino e eu que vá soz inho a té ao es t rado doórgão . Enquanto Sandra , um pouco à minha f ren te , caminhamos por entre a massa de gente que preenchia toda a sala e instalamo-nos pertoda mesa do o rador . O che i ro in tenso das f lo res e das ve las acesas , o incerto cheiro não das pessoas mas de estarem ali juntas em multidão,uma ind is t in ta me lanco l ia de toda a fes ta i r f i ndar . Ac tuava i sso emmim não sei onde e despertava uma vaga de saudade. Como de tudo oque finda e vem até nós antecipadamente de um indeciso momento dofuturo donde estamos, já lembrando tudo no passado, antes de aconte-cer. Quando chegasse o momento do adeus, toda a gente arremessariapunhados de pétalas que num cesto sob o xaile toda a gente guardava.O ó r g ã o e s t a v a e m c i m a d e u m e s t r a d o m a s p u s e r a - s e u m a p e a n h a s o b r e e l e p a r a t o d a a g e n t e m e v e r e l e v a d o a o p r o d í g i o q u e e r a e u . Padre Parente começou a cerimónia - enquanto o orador tomava o seulugar na mesa da conferência. Era um tipo ardente, o cabelo cobreado,a l t e a d o d e r e t ó r i c a , c o m g r a n d e s e n t r a d a s n a t e s t a , v i a - s e p e l a f a c e ardorosa que a pa ixão devorava . Padre Paren te começou o te rço e o orador disse:- Falarmos de cultura é demarcarmo-nos imediatamente dos tempospassados em que se não falava dela. Ou se se falava, era em função deq u a l q u e r c o i s a m a i s i m p o r t a n t e d o q u e e l a e a c u l t u r a e r a u m instrumento como ler e contar. Ninguém aprende a ler se não for paraler qualquer coisa e não aprende a contar a não ser para contar mesmo,nem que sejam os trocos do merceeiro. A cultura é como a dos campos,o objectivo é dar peras e batatas. A cultura na civilização ocidental tevesempre uma f ina l idade re l ig iosa . Aprend ia -se a le r para le r os l i v rossagrados ou conhecer as vidas dos santos, com vistas não só ao exemplo200mas ainda e sobretudo a acudirem-nos às maleitas. De qualquer modo,e ra -se cu l to para o céu e não para a ca lde i ra de Pêro Bo te lho . En tão acu l tu ra não e ra um va lo r por s i , po rque hav ia ou t ro va lo r de que e la fosse uma mu le ta . E como o ob jec t i vo f ina l e ra o para íso , não hav ia m u i t a n e c e s s i d a d e d e s s a c o i s a m a ç a d o r a q u e é a p r e n d e r a l e r e a p r e n d e r o q u e s e l ê . E i s p o r q u e a e s t r a d a r e a l p a r a o p a r a í s o e r a o analfabetismo. E daí esta coisa curiosa e é que quanto mais se sabia ler,menos concorrida ficava a estrada para o céu. E foi quando definitiva-m e n t e s e d e s i s t i u d o p a r a í s o , q u e s e c o m e ç o u a f a l a r d e c u l t u r a . A c u l t u r a v i u - s e a s s i m p r o m o v i d a q u a n d o s e d e s p r o m o v e u a s u a utilização. Cultura e

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religião dão-se como o cão e o gato. Quanto maisu m a , m e n o s a o u t r a . E q u a n t o m a i s o u t r a , m e n o s u m a . N ó s h o j e falamos de cultura, porque deixámos enfim de Falar no Padre Eternoenquanto o padre Parente cantava. Cantava no intervalo dos misté-r ios do te rço e as a rcadas da ig re ja t remiam. No seu a l ta r de luzes , aV i rgem, de cabeça levemente inc l inada , os o lhos pos tos no a l to , e eu olhava-a. Olhava-a e os cânticos inebriantes, erguidos em espiral, erac o m o s e m e l e v a n t a s s e m n o s e u m o v i m e n t o q u e e m c í r c u l o m e apanhavam todo e espiritualizavam desde as botas que me apertavamos pés aos cabe los que já não es tavam pen teados . Ou eu o s in to ho je assim, revertido ao sentir de então. Porque sobretudo, e como não serassim? eu tremia todo na ideia de falhar na minha exibição. Tão difícilAve-Mariade Schubert com as várias posições desde primeira creio quea té à qu in ta . Hav ia uma sub ida doláaté aomie o padre Paren te não queria aquele crescendo pela corda acima e havia osol. Era a corda semo trémulo do dedo a corrigir a desafinação. O sol caía em bruto no meioda melodia como um calhau. Tudo isto eu o pensava enquanto o terço,eu ia cantando os mistérios que faltavam até que chegaram ao fim - era201agora. Padre Parente veio para o órgão, afinei olá, ele tocava-o na tecla.T o m o u - m e e l e o i n s t r u m e n t o p a r a o a f i n a r t o d o , h a v i a u m s i l ê n c i o sub i tamente a r re fec ido nas a rcadas de pedra . Sub i para um pequeno estrado posto sobre o outro e à minha volta cresceu um enorme vazio.Só eu e o infinito da grandeza que eu havia de preencher. Então padreParente deu a entrada e eu ataquei. Sou agora lá a misteriosa beleza deuma paz solene que alastra pela igreja.Dó... ó..., si, dó, mi... i...i.Que éuma vida inteira com os atropelos e a corrupção dos dias e a barafundainfernal de um falatar desvairado? Que me é a vida cumprida até à horada desagregação? Uma c r iança a lgures que eu não mereço , ó in fânc ia absoluta como diadema da decrepitude, uma criança e a melodia quesobe como co luna de incenso , uma comoção es t remece ao meu o lhar apodrecido. Todas as religiões da história do homem, todas as alegriascomo um lago ca lmo, e as esperanças e rgu idas como uma vaga pe las e r a s , e t o d o o s o f r i m e n t o e t u d o o q u e é e t e r n o n o m o d o d e s e s e r h u m a n o , c o n g l o m e r a d o s n o i n s t a n t e ú n i c o d e u m a m ú s i c a s e r e n a e simples e enorme como um amanhecer. Estou lá, aqui, neste abandonof r i o . P r e c i s a v a b e m d e m e

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c o m o v e r u m p o u c o m a s n ã o t e n h o importância que chegue. Comovermo-nos é estarmos cheios de nós e eues tou vaz io . T ive a m inha impor tânc ia quando a t i ve , que fo i quando havia coisas dentro de mim, ideias e opiniões que custaram a conquistare a vida me olhava com cerra consideração porque eu era um homem elutava pelo futuro que me era devido. Estou só e o próprio corpo quesem ser exempla r e ra ac t i vo e d i l i gen te e t raba lhava para mim, comaplicação, atento obediente às minhas instruções e desejos e até capri-chos que não eram obrigatórios, o próprio corpo - como me confrangese q u a s e e n v e r g o n h a s , m e u c o r p o l i m i t a d o e s c a s s a m e n t e à s f u n ç õ e s e lementa res e já com fa lhas da tua es t r i ta obr igação . Es tou lá com o202v i o l i n o , e s t o u a q u i e m a l o o u ç o n a s o l e n i d a d e d e u m a p a z q u e n ã o tenho porque o que tenho é a nulidade que está depois, e. o cansaço e aind i fe rença a r re fec ida para o passado e o fu tu ro . De vez em quando escuto com mais atenção e ela fala-me ainda essa magnitude em que omeu desastre se absorva. Como quando, vinda do fundo do vale, não aouço agora, calada enfim decerto corno tudo na tarde que se estende,voz de inocência primitiva estúpida, voz da força da terra, enquanto oorador no Cí rcu lo Cu l tu ra l do Su l . Fa lava agora ou não fa lava e eu é que.- Mas na realidade toda a cultura destina-se a qualquer coisa, toda acultura tem um fim. Não é por passatempo que a agricultura trabalha at e r r a , é p a r a d a r p ã o , a b ó b o r a s o u p e p i n o s . C u l t i v a m o s o c h a m a d o espírito para quê? Não lhe chamemos cultura laica como às vezes, nãosei, é possível, mas cultura laica subentende a religiosa e nós já vimosque o paraíso fechou as portas por falência. Há só uma cultura que é ah u m a n a e n ã o h á o u t r a m e s m o s o b r e s s a l e n t e . E a c u l t u r a h u m a n a é para dar frutos de homem.- É machista - disse eu a Sandra e ela varou-me apenas curtamentecom os seus olhos como estiletes, breves negros duros.- Frutos de homem, frutos para o homem, mas como conseguirem-seesses frutos? Porque toda a árvore precisa de que a cultivem e não é sóchegar ali e deitar a mão, a idade de ouro acabou. Ou não é como tirar f ru tos de uma f ru te i ra e que f ru tos quere is co lher? porque é p rec iso f a z e r - s e u m a e s c o l h a , h á f r u t o s q u e n ã o p r e s t a m , h á f r u t o s q u e envenenam e é preciso saberdes que se quereis frutos para um homem,que frutos é que são úteis ao homem? hoje que de todo o lado pá pá, pápá, tomai lá a verdade que vos é útil, de todos os lados a cantiga sornacobarde e mor ta l , deve is saber que a verdade é só uma, é aque la com203q u e u m h o m e m é h o m e m q u e e a d a l i b e r d a d e c o n c r e t a , a q u e s e levanta contra a escravatura moderna que se disfarça numa liberdadesonora oca vazia schiribibi tá tá e dizei-lhes na cara que a cultura, víciode ociosos parasitas elitistas, a que como espuma de sabão desfeita nonada do seu ser , mas nós sabemos f ina lmente que concre tamente na certeza das mãos que agarram e seguram e dos pés que calcam a terrada sua condição

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porque as portas do paraíso encerraram para obras quenão são obras porque liquidaram o negócio com um desfalque que nãotem mais cobertura e é isto que na terra da verdade e na estrada direita,a estrada real que corta a direito através da mentira e dos seus atalhos eflorestas e montes e montanhas e durezas de pedregal, se torna o quedesde há mi lén ios en t re e r ros e hes i tações e cedênc ias e i l usões bem-intencionadas e promessas não cumpridas laironas música celestial ai,ai, mas como tornar exequível pratico eficiente um projecto que, porquenão basta querer, não basta sonhar e dizer que, é necessário concretizaruma organização táctica, desmascarar concretamente desfazer os véusi d e a i s d a u t o p i a q u e p e r s i s t e n t e o b s t i n a d a , o f a d o é a n o s s a d o e n ç a vencidista derrotista e só a organização partidária que rudemente obsti-na cru se iso na for da aço nervo bi bi bi, u u u que um dia efeitos prá-ticos da selva de enganos organi dária rompa contra e músculos ferrocontra uá uá uá na forja dia a dia homem novo porque não há culturade nada e é esta para o futuro contra a cegueira e a utopia. Disse.E f ina lmente , na te rce i ra pos ição , c re io , dou a a rcada suavemente ,uma paz solene na tarde que esmorece, a Virgem tinha os olhos no alto,a cabeça levemente inclinada, padre Parente, no acorde final, como seesvaído de esforço e comoção, vergou a cabeça toda para o teclado doórgão.204XXIXPelas ruas so l i tá r ias , Sandra , Sandra . T ro ta a meu lado minúscu la ,estalamos de coisas a dizer. Vamos caminhando sob o céu escuro, umcéu do Sul, corno polpa madura, escorrente de estrelas, nada dizemos.Há um d iá logo surdo , esperamos que um comece, não sabemos qua l nem corno, há um cheiro fresco vindo do mar. Às vezes íamos assistir àlota, ainda nessa manhã, Sandra gostava. Eu pasmava com a velocidadev e r t i g i n o s a c o m q u e o p r e g o e i r o c a n t a v a o s p r e ç o s d o f i m p a r a o p r i n c í p i o . A t é q u e o a r r e m a t a n t e o f a z i a e s t a c a r n o p r e ç o q u e l h e conv inha . Vendede i ras de g randes ces tos , os homens e as mu lheres tinham as mãos e a boca rebentadas de salsugem. E então eu disse- Gostaste da conferência?e ela disse- Muito.E eu disse- Porquê?e ela disse- D i f í c i l e x p l i c a r . G o s t o d a s c o i s a s a r r u m a d a s , ’ f i c a r a m - m e m a i s arrumadas. Havia a cultura, não servia para nada. jogo estéril, a vida émais séria do que isso. Havia a cultura para um lado, sem significação.E havia um trabalho político e social para o outro. O homem juntou-os.Talvez isto seja banal, não o senti assim.- É falso.- Mesmo que seja falso. Desde que tenha uma função, é verdadeiro.Fa lava ass im, sempre fa las te ass im. A f rase cur ta , ta lhada a p ique ,para não dar rép l i ca , sa l ta r -se o p rec ip íc io . E ra uma no i te l ímp ida e205húmida, o mar coalhava no céu. Então eu disse - ou sou eu que o digoagora? sou eu que a t ravesso tudo o que s in to e sou e me condensou av ida para o ser lá agora? Porque poss ive lmente eu es tava de acordo c o m S a n d r a - q u a n d o é q u e a v e r d a d e s e m e a l t e r o u n a s u a s ó l i d a maneira de ser

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coerente e de já não ser a mesma? Quando é que eu fui oq u e n ã o e r a p a r a s e r a g o r a o q u e n ã o t i n h a s i d o ? Q u a n d o é q u e f u i outro num modo de ser o mesmo? - tudo isso é uma falsificaçãop e l a c i d a d e d e s e r t a , v a m o s c a m i n h a n d o à d e r i v a S a n d r a ! S e fôssemos agora vaguear pe los montes? d i la tados do espaço que me e s t a l a n o p e i t o , h á u m a p a l a v r a i n f i n i t a q u e n ã o s e i , é a P a l a v r a d o limite, do excesso de mim, a palavra que assoma quando rebentamos doe x c e s s o d e n ó s - s e s u b í s s e m o s à m o n t a n h a , v e r p ô r o S o l ? E s t o u cansado, a tarde alonga-se, sou de mais comigo só.- Porque eu não sei se a cultura foi apenas religiosa e estava agora àboa vida. Não sei se a cultura é uma palavra do tempo das palavras. Oque sei é que, mesmo antes de se inventar, ela existia parase fôssemos subir os montes? porque ela existia, ela tinha de existirpara d ize r a sub l imação do homem. Sandra , Sandra . Para nomear a ascensão sobre o animal. Que ela fosse religiosa, ela dizia a subida atéDeus . De qua lquer modo, uma sub ida . De qua lquer modo, e la nunca s e r v i u p a r a s u b m e t e r o h o m e m a u m a a c t i v i d a d e s e r v i l , a u m a actividade utilitária como a do varredor municipal. Tu queres a culturap a r a a p o r e s a o s e r v i ç o d o s p o l i t i c ó i d e s , d e s s a c a t e r v a d e n o v o s senhores, para a reduzires a uma condição servil. Tu queres a culturapara lhes serv i r à mesa , para lhes l impar a casa , para lhes despe ja r o penico.- Sandra! Não entendo o meu tempo!- Sei.206- Não sou capaz de me pôr ao serviço de nada.- Os outros que te sirvam. É mais cómodo.- De todas as verdades só consigo assumir uma fracção.- Mas é porque os outros a assumem toda que tu podes assumir umafracção.- N ã o s o u c a p a z . H á u m a b a r u l h e i r a i n f e r n a l n o m u n d o , q u e r i a entender uma palavrasó uma palavra que ficasse em mim e eu me reconhecesse nela. Hátanta palavra bela, deve haver ainda. Não a distingo. O mundo concen-t r a v a - s e n e l a s e e l a s d i z i a m - n o e e l e e r a v e r d a d e . É u m f a l a t ó r i o ensurdecedor, não entendo nenhuma. Lembro-as ainda numa memóriaantiquíssima. Apuro o ouvido, nesta tarde opressiva, lembro-as. Fala-vam de amor e justiça e Deus e paz, não tenho nenhuma aqui. Sandra.Querida. Tu és uma «moralista» por falta de coragem. Tens o horizontec u r t o p o r p r u d ê n c i a . A n d a s à p r o c u r a d o q u e t e s i r v a c o m o u m a farrapeira pelos caixotes do lixo. Qualquer idiota te impressiona, logoq u e e n t r e n a s t u a s r e g r a s . N ã o t e n h o r e g r a s , e u - c o m o q u e r i a s q u e t i vesse regras? Regras tem-nas o cava lo com os a r re ios . Desco le i da v i d a , p o r q u e t u d o s e m e p ô s d e p e r m e i o . E s t o u s ó e s e m r e m é d i o . Agora é aguentar. Descolei da vida; nunca pude colar-me bem. Outrorahavia coisas, a gente punha-lhes as mãos e eram coisas de ser. As coisasa g o r a n ã o e x i s t e m . E x i s t e s ó u m a g r a n d e b a r u l h e i r a e a s c o i s a s escondem-se cheias de terror, Eram coisas delicadas, a gente sorria-lhese elas deixavam-se tocar. Então dávamos-lhes um nome e elas existiam.Q u e r o u m a p a l a v r a ! Q u e r o q u e f l o r e s ç a n a m i n h a b o c a , m e t ê - l a n o b o l s o e e n c o n t r á - l a l á c o m o q u a n d o s e

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f a z u m t r o c o . Q u e r o o u v i - l a quando me deitar e ela estar ali durante a noite. Quero deixá-la quandomorrer e ela estar nova como se não tivesse servido.207- Que palavras tens tu para teu uso?m a s e l a n ã o d i s s e n a d a . C a m i n h á v a m o s p e l a n o i t e , n i n g u é m n a s ruas , as pedras luz id ias da humidade , Só de vez em quando, a lgum noctívago, rente aos muros, um gato, um cão, súbitos de suspeita - eud igo- te uma pa lav ra . jus t i ça . Amor . Verdade . Sabedor ia . V i r tude - tuq u e d i z e s ? E m q u e é q u e a c r e d i t a s ? P o r q u ê ? E m q u e é q u e p o d e s e n c o s t a r a c a b e ç a ? C o m o é q u e v a i s m o r r e r s o s s e g a d a ? Q u a n t a s palavras vais deixar em testamento? Quais palavras?- Um café?Passávamos em frente de um café ainda aberto, entrámos, não gostode tomar café antes de deitar, vou apanhar uma insónia - vou dar umavo l ta pe los montes? vou só , tu não queres v i r . O sa lão es tava quase deserto, só um ou outro homem taciturno aqui e além, à sua mesa, porentre as outras Pequenas mesas de mármore. Um criado sonolento veiopassar a mesa a pano, ficou ali à espera de ordens. Estamos em silêncio,no resmonear profundo do que não vale a pena dizer. Porque só se dizo que julgamos poder conquistar sobre o outro e nós já não julgamos.Mas a conversa continua nos olhares, nos gestos, naquilo que ainda sed i z m a s j á n ã o p e r t e n c e à o u t r a c o n v e r s a . E f o i q u a n d o e n t r e t a n t o , e n q u a n t o f i c o a q u i n o s o f á , v o u s u b i r a o s m o n t e s , v o u e u s ó , t u n ã o queres v i r . E quando ia sub indo , paro de vez em quando a resp i ra r o espaço imenso da tarde, nós descíamos a avenida, estávamos na capital,passámos diante de um café. E eu disse- Sandra. Se tomássemos um café?Tínhamos saído do médico, ele fora reservado,pareceu-me, eu segurava--me desesperadamente ao que não era dareserva . Sandra não d iz ia nada , fechada na sua d isc r i ção , num cer to208respe i to por s i p rópr ia , ou o rgu lho , ou amargura tão funde que nãochegava à superfície. Um dia, eu voltava da Biblioteca- Amanhã vou ao médicoSandra dissera, como se dissesse- Vou ao correioo u q u a l q u e r c o i s a a s s i m e n t r e m e a d a a o c o r r e n t i o e b a n a l o n d e perdesse importância.- Que é que se passa?- Apareceu-me uma coisa. Palpa aqui.Era ao fundo do ventre, do lado direito, palpei. Do tamanho de umovo. Duro . Pa lpe i . E absorvendo imed ia tamente um cer to d i re i to desoberania- Não deve ter importância - eu disse. - Tem-se disso tantas vezes.Mas o médico instalou-se logo no lugar do destino:- Deve entrar já numa casa de saúde.Biopsia. Velocidade de sedimentação. E se tudo correr bem. Opera-ção rápida, sem consequências agora estávamos ali num café. Hora doentardecer, pela avenida um corropio de carros, de gente, numa fugar á p i d a à n o i t e . H o r a l ú g u b r e , o s m o r t o s s a e m a r u a , v e l o - o s n a morbidez do ar, na cor funérea do céu - Sandra. Que terás tu? olho-te naf a c e , e s t á s s é r i a , i m p e n e t r á v e l , s o u u m i n t r u s o n a g r a v i d a d e e n a melancolia que é tua. E de súbito o seu corpo fino e perfeito imaginei-oe m d e g r a d a ç ã o . N a d a m a i s b e l o q u e o t e u c o r p o

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e t o d a v i a p o r i s s o mesmo nada de mais horrível e repelente do que a sua desagregação.Vejo-te, vejo-te, era ao entardecer, ias descer à cova e nesse instante oc o v e i r o , c r e i o q u e e r a u m a o b r i g a ç ã o l e g a l , l e v a n t o u - t e d o r o s t o o pan inho que o cobr ia . Hor ro r , hor ro r , a tua boca , a tua face , os teusden tes à mos t ra . O lho a ta rde que sobe pe la montanha , ve jo - te v i va ,209quero- te in te i ra na tua g raça sub t i l e invu lneráve l - o lho o teu corpo i n t e i r o à m e s a d o c a f é . P a s s a m o s c a r r o s d e s a r v o r a d o s , f o g e m d a ameaça de s i mesmos, da ameaça da no i te . Um leve pano de sombra tolda-lhes a inteireza, balança-os numa imponderável irrealidade. Parac ima e para ba ixo f i l as de car ros cor rem sem des t ino numa ronda de loucura, nos passeios centrais, são rios de gente para um lado e outro àp r o c u r a d e u m r u m o , a c e l e r a m e m u r g ê n c i a s u f o c a n t e , v e j o - o s n a corrida para a morte. Estou fora dos encontros do possível, estou longede uma comunidade de insectos. Milhares de palavras estalam-lhes nab o c a , a l g u n s p a r a m p a r a u m c u m p r i m e n t o b r e v e , d o i s m o t o r i s t a s insu l tam-se pe los v id ros dos car ros , como vaga , rumores d ispersos , palavras de ódio, de sonhos, de projectos que se acumularam durante od ia , de concórd ia , de suspe i ta , pa lav ras que es ta lam no o rgu lho , na ambição inconfessável, milhões de palavras que ondeiam na correntezadas gentes, no espaço da avenida. Estou em silêncio, Sandra ao pé demim, es tamos che ios de um segredo te r r í ve l que se não d iz para que n a d a d o q u e s e d i s s e r s e j a r e a l - e s t a m o s s ó s , n o s i l ê n c i o d a n o i t e , v iemos da con fe rênc ia do Cí rcu lo Cu l tu ra l do Su l . Quando sa ímos à rua, se fôssemos vaguear por aí? sem a opressão do dia, sem a luz queimed ia tamente nos to rna compromet idos com o que d izemos, sem a p r e s e n ç a d o s o u t r o s q u e s ã o l o g o t e s t e m u n h a s , m e s m o q u e n ã o testemunhem nada e se fôssemos por aí? vontade de falar, desoprimir-nos, abrir passagem ao louco de nós que está sempre à espreita de umaoportunidade para se manifestar. Mas Sandra não quis- É tarde já. Tenho aulas cedo.Na taberna do largo há já bêbedos à porta, é a hora de eles tambémse desoprimirem. Estão em grupos, alguns vêm mesmo até ao meio dolargo comunicar com as estrelas suas irmãs. Dois bêbedos despedem-se,210dizem até amanhã mas não despegam. Sandra mete a chave à porta dar u a e n q u a n t o e u d e a m b u l o p e l a c r i s t a d o s m o n t e s q u e e s t o u a q u i a f a z e r ? a o l h a r o h o r i z o n t e p a r a e u s e r m a i s p e q u e n o , r e s t r i t o , t ã o minúscu lo g rão de pó - que ando por aqu i a fazer? Vou sen ta r -me no s o f á d o n d e n ã o s a i , v o u f e c h a r a s j a n e l a s l á d e c i m a j á n ã o O u ç o a mulher cantar. E um grito de terror sob em mim- Can ... an ... ta!entala-se-me na boca, a minha fronte verga ao peso de um choro quen ã o v e m . D e v i a s p o d e r c h o r a r , t e r p i e d a d e d e t i q u e n i n g u é m t e m . Devias escorrer-te todo de lágrimas, ficares enxuto como cortiça. Pode- rias então moldar-te no boneco que quisesses como os artesãos com umc a n i v e t e . S e c o e n x u t o i n v u l n e r á v e l . T e r ã o a c a b a d o o s

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t r a b a l h o s n o campo? não ouço a mulher cantar, mas não é possível que acabassem.Trabalha-se o dia inteiro para a Bíblia ter razão, às vezes de noite comuma cande ia para uma razão sup lementa r . Ah , can ta res uma só vez ainda na vasta melancolia desta tarde sufocante. Estou só, era bom quesoubesses. Mais só do que tu, que tens o canto por companhia. Estou só,sem futuro e é absolutamente necessário que eu invente um futuro parate r um espaço de c i rcu lação . Dev ias te r um bocado de fu tu ro para aomenos te espregu içares , pobre homem tão en ta lado nas faxas da tuamúmia . Exerc i ta res a v is ta a té a um hor izon te razoáve l para sub i res além de ti. Teres um olho de alcance aceitável para não esbarrares nasparedes de t i . Es tou míope e para l í t i co , a m inha verdade es tá toda nasabedoria de um cangalheiro.S u b i t a m e n t e , p o r é m , m a s d e v a g a r , S a n d r a t o m o u - m e a m ã o . De i tados já , es távamos a inda no Su l , e ra junho ta lvez , nós t ínhamos vindo da praia, extenuados de um dia de mar. Sinto ainda a minha mãona sua , e la pousa-ma no ven t re , mão la rga de camponês sobre o seu211v e n t r e d e l i c a d o . A b r o - a a t o d o o t a m a n h o , à l a r g u r a d o s e u c o r p o , minúsculo ventre sob a minha possessão. Está quente, Uma das janelasaltas ficou entreaberta, pela cortina suspensa vejo a claridade de umalâmpada lá fora. Intrometo-lhe a mão entre as roupas, pouso-a agora namac iez da sua pe le . E serenamente , no s i lênc io da no i te , g ravada domis té r io dos mi lén ios de quando o p r ime i ro homem nasceu , Sandra disse- Vou ter um filho.F i c o m u d o , t r a v a d o d e a s s o m b r o e d e m e d o e m t o d o o c o r p o , fulminado de humildade. Atropelam-se-me em turbilhão mil palavras ad i z e r , n ã o m e o c o r r e u m a q u e s i r v a . S u b i t a m e n t e s a g r a d a d e u m a g r a n d e z a q u e n ã o é s u a n e m m i n h a , q u e é t a l v e z a p e n a s d a v i d a , soergo-me no cotovelo, apetece-me só beijá-la da testa aos pés, mas eladiria- Isso não!g r a v e , s é r i a , d e u m a s e r i e d a d e q u e l h e e r a i n t r í n s e c a a o s e u s e r . A p e t e c e - m e a j o e l h a r , t r a n s t o r n a d o d e i m p o s s í v e l , a p e t e c e - m e v i r à janela e gritar para a noite, apetece-me absurdamente ser infeliz. _Háuma distância enorme entre mim e Sandra, ela está do lado do mistérioe infinitude, eu sinto-me excluído, do lado da miséria que é minha, Nãos e i q u e d i z e r , e s t o u a l i p e t r i f i c a d o , s o e r g u i d o u m c o t o v e l o , a m ã o crispada sobre o seu ventre, mas sem o tocar. Então perguntei apenas- Tens a certeza?e ela disse- Absolutaimediatamente, como se esperasse a pergunta. Estendo-me de novona cama, ma is per to de Sandra e todav ia ma is separado . Como se eu estivesse agora excluído da sua vida e tudo quanto acontecia fosse dela212apenas e eu fosse da zona subalterna de si. Ou como se o que havia deprofano em mim precisasse primeiro de ser sacralizado para aceder aograndioso e terrível. De leve toco-lhe o corpo para que ele me seja real, oventre de novo, os seios, a curva fina do ombro, um dedo de lume natua face.- Tens a certeza?- Absoluta.U m a n j o d e a n u n c i a ç ã o d e v e t e r v i n d o s o b r e t i e e u n ã o s e i . H á silêncio na noite, os

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bêbedos da taberna próxima devem ter regressadoa casa , uma aragem branda bande ia o cor t inado suspenso . Tenho os olhos abertos, não tenho sono. Queria ter uma palavra, não a sei. Umap a l a v r a d e a l e g r i a , d e t e r n u r a , d e q u a l q u e r c o i s a e s t r a n h a q u e m e invade e tem o tom da compa ixão . Não se i . Uma pa lav ra de o rgu lho , talvez, uma palavra prática de solicitude. Não sei. Que mundo originalse nos separa assim do dizer? Da fundura do tempo, de todas as partesdo mundo, ouço-a que vem a in te r rogação que . não ousa d ian te -do milagre e do augúrio e do excesso de um homem que vai nascer. Tomoa mão de Sandra na minha, é frágil e minúscula, os dedos finos passivosd e u m a u m , a m ã o d e l a m i n i a t u r a l c a b e t o d a n o í n f i m o d a m i n h a posse. E assim falei, assim disse. Pelos interstícios do meu gesto, pelaminha incapacidade de dizer. Está uma noite quente - está uma tardequente, no sol que vai subindo da aldeia para a montanha. Desce sobremim a gravidade reclusa. Desce e uma amargura nova alastra em mim.N ã o s o f r a s . S ê h o m e m a t é o n d e f o r n e c e s s á r i o e s t a r e s . T e n h o d e i r fechar as jane las . Tenho de i r chamar a Deo l inda . Es tás só . Mas não o penses muito. Não o digas. É estúpido e sem significação. Não o penses.Olha a tarde que se evola. E sê contente do teu nada. Sim. Mas estou só.213XXXMuito bem, estás só, e vai daí? É a sorte de todo o homem no fim davida contratada, querias agora uma lei especial para seres excepção eprivilégio. É a sorte de todo o homem à hora de esticar, e então? Nemme d igas agora que amea lhas te um mundo em t i , não se i quê , e que ninguém vai saber. Saber o quê, homem vão e supranumerário? Sim. Etodavia. Pensar que tudo foi irrisão. Esperanças, sonhos, projectos. Deacordo. E amarguras do tamanho da vida toda. Pois. Mas é o que estavano contrato de todo o homem que nasce - e tu nasceste, já não foi mau,acaso o merecias, homem vil de ingratidão? Sim. Mas o mundo e o quee u s o u é a p e n a s o q u e m e e x i s t o , n ã o o q u e e x i s t e n a f r i e z a d a t u a máquina de filosofar. Interroga-te um instante, aquece o teu cálculo nom e u s a n g u e q u e a i n d a é v i v o . H á d u z e n t o s , q u i n h e n t o s a n o s e s t a aldeia, que é que quer dizer agora o que quis dizer então? Onde é quequer dizer ainda? Em que ponto cruzado de delírio e aberração? Houvet ipos d ignos e band idos , t i pos a legres ou com a t ine ta da me lanco l ia . H o u v e o s q u e q u i s e r a m d e i x a r u m a b o a r e p u t a ç ã o o u q u e f o r a m corridos pelas suas malhoadas. Os que sofreram porque um filho lhesesticou ou apanharam noites de insónia por causa de um negócio malcalhado ou que estoiraram um vizinho porque lhes roubou a água dahorta. A sombra caiu sobre tudo isso - onde é que isso tem significação?Honestos ou patifórios, triunfadores ou vencidos - onde é que? Cresceua erva por cima - que é que quer dizer a moral por baixo da erva? Muitobem. Somente o absoluto existe no absoluto da tua vida. Realiza-a noslimites do teu trajecto visível. Treva e irrealidade o resto e é só. Tu aí, atua v ida é essa para p reparares o que te fa l ta . É pouco o que te fa l ta -

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214bem pouco. Prepara o resto por cima da erva, enquanto não estás porb a i x o q u e é o n d e j á n ã o h á p r e p a r a ç ã o . j á d e v i a s t e r c h a m a d o a Deo l inda , dar um ba lanço r igo roso a quan to ex is te em casa para teugoverno , i res amanhã à v i la para abas teceres o fu tu ro , se res homemcomo se deve ser , com d ign idade e sensa tez em quant idade soc ia l . E acabares a lamúria com que se é apenas infantil.S i lênc io . Es tou bem. Há tan to tempo a inda para não es ta r . O lho amontanha i l uminada a inda de so l . Quero vê- la a inda , não com o ver fortuito e sabido de cor, mas corri um ver intrínseco à realidade únicade haver sol e montanha e o fantástico até aos gritos de haver essa coisa,de haver uma montanha contra o céu toda iluminada de sol. Enterro omeu olhar nessa realidade febril de um lume vivo que traz à vida essacoisa pesada e escura que é um vasto aglomerado de terra e de pedras, afaz brilhar contra a treva e inexistência que é a sua com um milagre deesplendor. Tenho de reparar vivissimamente nas coisas, enquanto sãoa i n d a c o i s a s p a r a r e p a r a r , f i x a r - m e n o i n s t a n t e e m q u e u m a c o r é m i r a c u l o s a m e n t e u r n a c o r , e u m c h e i r o m e a f e c t a n a s u a r e a l i d a d e misteriosa e um som, um ruído- Can ... an ... ta!um som mesmo um ru ído ins tauram a sua es t ranheza e rea l idadeenigmática e aflitivamente estranha num mundo denso obtuso mudoina l te ráve l , e perceber o que há de concre tamente rea l no tocar uma pedra, no passar a mão na pelúcia deste sofá, no segurar as grades deferro da varanda. Há tanta coisa espantosa no que já não tem espanton e n h u m . T e n h o p o u c o t e m p o j á p a r a r e a p r e n d e r o m u n d o . V e r u m amarelo, um azul como nem sequer os vê já um pintor. Apanhá-los noexacto instante de se revelarem na sua maravilha. Um som, um sabor,uma forma e a sua dureza ou maciez. Aprendê-los não apenas para cá215d e u m s a b e r s e g u n d o , m a s n o i n f i n i t e s i m a l d a s u a a p a r i ç ã o , n o momento infinito em que começam a ser uma coisa inteiramente nova ef a n t á s t i c a e d e s l u m b r a n t e . R e c u p e r a r a v i d a t o d a d e s d e o n d e a f u i perdendo, ser em espanto o espanto do próprio Deus quando isso criou.Entaramela-se-me a língua no acto de dizer mas não a inteligência e osentir no acto de sentir e entender. Mundo virgem no infinito mistério erealidade de si no instante de se criar, de existir, de aparecer. Oh, não tedistraias. E economiza átomo a átomo, filamento a filamento a virgin-dade de toda a reve lação . Para que a tua v ida se esgo te no esgo tá - la . Para que nada fique do que ainda te pertence quando te não pertencer.P a r a q u e s o b r e a t e r r a h a j a u m h o m e m q u e é s t u q u e n a d a t e n h a desperdiçado do que velo ter consigo. Para que todo o mistério da vidase aprove i te no teu . aprove i tá - lo . Para que toda a magn i tude do que existe não tenha sido em vão. E ’tudo possa morrer contigo e não fiquedepois de ti na sua inutilidade. Para que Deus não tenha sido em vão.O r e l ó g i o d e u h o r a s . N ã o a s c o n t o , v i v o n a e t e r n i d a d e . O l h o a s p in tu ras das paredes da sa la . Ve io p in tá - las o José Joaqu im, ve io deFigueiró, pintava-as empoleirado num andaime, assobiando como

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ump á s s a r o . E e n q u a n t o a s s o b i a v a v i n h a v i n d o c u s p o a t r á s . E n t ã o e l e , acabado o fôlego, inspirava pela boca, engulindo o cuspo e o assobio -mas tenho sede. Não vou lá abaixo à torneira do tanque, já corre águan a t o r n e i r a d a c o z i n h a . B e b i a a g o r a e r a u m á l c o o l q u a l q u e r , m a s a s m i n h a s t i a s n u n c a t i v e r a m a l c o o l t e c a p o r r i g i d e z m o r a l . V o u p e l o corredor, as portas todas abertas, tenho de ir fechar tudo lá acima. E foiq u a n d o d e n o v o , n a r e a l i d a d e j á a n ã o e s p e r a v a , v e m p e l o g r a n d e espaço t r i s te da ta rde , en t ra por todas as jane las , sa i pe las ou t ras da frente à procura do cosmos. «O meu amor quer que eu use/as chaves aocoração» - canta. Mas não a tinhas cantado já? repete-se talvez. Porque o216que se repete cria o sem-fim e a eternidade. Suspendo os meus passos, ocan to é len to como o da ig re ja , como a sua voz de in f in i tude . «Dá-meum abraço que eu mor ro / dá -me um aper to de mão», repe te a inda amús ica e os versos , depo is ca la -se . É uma voz de mu lher , deve es ta r agora aplicada exclusivamente ao trabalho - que trabalho? Deve ser atira das batatas, os cestos cheios, o transporte da carga para alguma loja,avanço quase em bicos de pés para a cozinha. E de facto, quando vou atranspor a porta, a grande voz dos espaços voltou a erguer-se. «O meua m o r q u e r q u e e u u s e » - t r a n s p o n h o a p o r t a e s u b i t a m e n t e v e i o t i a Joana sentada num banco raso ao pé da janela. Está imóvel, tem no colou m a l g u i d a r , c o m a m ã o d i r e i t a s e g u r a u m a f a c a , c o m a e s q u e r d a segura um molho de couves. Deve estar a migar o caldo-verde. Mas nãose move. Tem a cabeça inclinada para o trabalho das mãos, a faca meiae n t e r r a d a n o m o l h o d a s c o u v e s , p a r a l i s a d a c o m o n u m i n s t a n t â n e o fotográfico. A luz da janela bate-a de lado, tem uma cor de cera, toda elalembra um modelo de cera fixada numa posição. Mas as folhas do caldos ã o v e r d e s , e m b o r a d e u m v e r d e d e s m a i a d o d e c i n z a . E s t á a s s i m sentada, imóvel na tarde que esmorece, batida na face da luz pálida da janela. Tem um alguidar no colo, as mãos imobilizadas a cortar o caldo-verde, o busto vergado, os olhos fixos nas mãos. Parada na eternidade,olho-a sempre, não se move. Vou à torneira, a agua corre. Olho ainda tia Joana, já lá não está. Mas neste instante- Paulo!Quem me chama?- Quem me chama?- Sou eu! Tenho uma coisa a contar-te!217Vem a voz da sa la , vou para lá . Sen tado numa cade i ra - és tu? que tens aqui que fazer? E uma alegria jovem na face toda aberta - sou eu.Mal me reconheço, há quantos anos?- Vou ser pai pela primeira vez, tinha de te vir contar.Olho-me um instante em silêncio, saberás tu o que dizes? a grandezae o terror do que estás a dizer?- Tínhamos voltado da praia e a Sandra disse-me: «Vou ter um filho.»Fiquei muito perturbado, duvidava que fosse verdade. Mas ela disse-me que tinha a certeza.- E ficaste em silêncio. Abismado de mistério.- Não , quero d ize r , s im. Mas não fo i bem isso . F ique i fo i do ido de alegria, contei a toda a gente, vim-te contar também a ti.- E f a l a s t e c o m e l a . N ã o a d e i x a s t e s o z i n h a c o m o e x t r a o r d i n á r i o milagre.Perguntei como tinha sabido.

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E beijei-a muito, ela parece-me que nãogos tou . E passe i a no i te sem dormi r , a pensar no meu f i l ho , no nome que lhe daria, se se pareceria comigo, e o futuro que iria ter, a melhorcarreira a seguir.- E no fantástico de um ser nascido do vosso sangue.- Sim, senti-me orgulhoso. Tudo quanto eu fizesse agora já tinha umsentido. Sentia-me realizado como homem, mas sobretudo agora queestou a pensá-lo. O que senti então já não me lembro bem. Lembro-mesó de lhe procurar um nome, levei a noite nisso. Vai-se chamar Paulo.Achas bem? E o nosso nome.- Estás magro. Vais deixar crescer bigode?- Veio-me a ideia, não sei porquê. Mas a Sandra não gosta.- Claro que sabes porquê.218- Porque é que tens a mania de querer saber sempre as razões? Es umpouco como Sandra, acabou por te contagiar. Adiro ou não seja ao quefor espontaneamente. Sinto ou não que uma coisa está certa e é o queb a s t a . T a l v e z p r o c u r e s ó a s r a z õ e s p a r a o q u e é i m p o r t a n t e . E o resultado é que nunca as acho bastantes. E por isso que não adiro senãoao que é acessório. A Sandra diz que isso é cómodo. Ter sempre um pédentro e outro fora para alçar. Nunca ponho os dois dentro. E tu? Masnão vim para filosofar. Vim só para te dizer que vou ser pai pela...- Paulo! Onde estás?Venho à varanda, grito para o horizonte- Onde estás? Quero-te dizer umas coisas que ainda não sabes! Volta!Volta!«Dá-me um abraço que eu morro / dá-me um aperto de mão» - vozlonga, ampla. Sob o tecto do céu, expande-se, pela montanha. É a vozgrave da Terra, traz em si todo o peso da germinação. Escorre nela- osuor do esforço e do triunfo, da fatalidade e da resignação. É a voz daescuridão e das raízes.- Volta! - digo-lhe aindamas quem entrou foi oMatraca, o cão. Vinha sozinho.- Que é do teu dono?Vinha mais velho na sua cor de um cinzento sujo que é do teu dono?- Onde é que o deixaste? Que estupor de cão és tu que deixas o donoe vens para casa sozinho? Se calhar os garotos correram-no à pedrada etu cavaste com medo, de rabo entre as pernas. Cão cobarde, mas tu já ésquase tão velho corno ele. Onde é que deixaste o teu dono? Quero aquisaber onde é que o deixaste.219E le o lha para mim, o o lho t r i s te , a r rasado de fa ta l idade . Mas nes te instante ouço alguém, entrar em casa. A porta bate, uns passos lentosarrastam-se pelo corredor. Grito-lhe- Paulo!m a s o s p a s s o s n ã o s e d e t ê m . O l h o a t r á s , e l e p á r a , v e r g a d o , n o esquadriado da porta, entra na sala da escada. O cão ergue-se nas patasda f ren te , levan ta -se todo devagar e res ignado , va i a t rás de le de rabo murcho. Silêncio. Só os passos pesados pela escada acima, ressoam-mea inda sobre a cabeça no cor redor . Depo is , de novo o s i lênc io . A casa deserta.220XXXIMas insinuadamente, sub-repticiamente, insidiosamente - outra vez tu. Não te tinha chamado, que tens aqui que fazer? Havemos de ter umac o n v e r s a a s é r i o , m a s l á m a i s p a r a o f i m , d a q u i a q u a t r o o u c i n c o c a p í t u l o s . A g o r a a i n d a é c e d o .

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Q u e r o t i r a r s a t i s f a ç õ e s d e s s e t e u fan tasma, dessa tua sons ice que se va i metendo onde não é chamada, dessa tua cobardia que se investe de historietas de crianças para a gentenão dar conta, dessa maneira sorna de te intrometeres na conversa e dete sentares na roda como se te tivessem convidado. Mas não foste. Soumaior e vacinado, já sei que não vim de França num bico de cegonha, jás e i q u e n o m i t o d o h o m e m q u e n ã o q u e r o m i t i f i c a r c a b e m t o d o s o s mitos, mesmo o que nos põe prendas no sapatinho, como se o homemn ã o f o s s e m i t o b a s t a n t e p a r a n ã o h a v e r m a i s n e n h u m . N i n g u é m t e chamou, mas tu aproveitas. Há uma conversa a haver, entre o Mirandae o Manaças, talvez também o Pacheco, e eu a assistir, agora todos nacapital. Mas se a conversa existe e eu a ouvir, é porque preciso de a ligara uma outra, passada em Penalva quando lá estávamos todos e de quetenho ideia de já ter falado. E como a conversa te mete na conversa, tumetes-te na conversa. Metes-te mesmo, para começar nos intervalos daminha le t ra m iúda , in te rca las o teu andar no andar da minha escr i ta . Imediatamente vão dizer que eu te dei confiança. Mas não é verdade.Tu é que a tomaste como a tomas sempre, quando a gente se descuida,como se por falar da chuva se tivesse fatalmente de apanhar uma cargad e á g u a . M a s é a s s i m , « n ã o s e p o d e f a l a r d e c o r d a s e m c a s a d e enforcado» e há um enforcado em cada consciência. Devo dizer-te caraa c a r a q u e n ã o h á u m e n f o r c a d o n a m i n h a . É s u m n o m e b a s t a n t e221incómodo como todos os nomes que só o são . Porque a gen te fa la emgrifos ou lobisomens ou duendes e eles começam logo insinuadamentea ex is t i r . Há a rea l idade que ex is t ia quando se admi t ia que ex is t i sse e essa realidade fica quando já não existe, se o nome ainda existe. Comoquem habitou uma casa e já lá não está. Preciso de te dizer isto na carada rua i r rea l idade para nos en tendermos . E agora , se me dás l i cença , tenho de i r ao ca fé onde os t rês amigos me esperam sem saberem de mim nem eu deles.E c o m e f e i t o n ó s v i é r a m o s d o S u l , e u f o r a c o l o c a d o n a B i b l i o t e c a Gera l , Sandra ve io também «ao abr igo da le i dos côn juges» . Sandraes tava g ráv ida , o f i l ho va i nascer não se i a inda em que cap í tu lo e eu t e n h o d e i r b u s c a r u m a s a n á l i s e s e e n t r e i n u m c a f é a f a z e r h o r a s . E imed ia tamente , e ra um ca fé em túne l , eu percor re ra -o à p rocura de lugar e lá no fundo. Primeiro houve a surpresa paralisante. Já nos nãovíamos desde os tempos de Penalva, eles tinham vindo para a capital,eu fo ra para a un ivers idade da Soe i ra . Depo is fo i a exp losão , tu por a q u i ? ó p á , h á q u e a n o s e e n t ã o d i z l á . O s a n o s t i n h a m c o a l h a d o e m rugas e outras degenerências, houve um tempo de acerto de contas, eua t ravessava todos esses es t ragos no ros to de cada um e e les tambémdecerto, até encontrarmos a face primitiva da nossa memória comum. Ereorganizada toda essa arrumação, imediatamente eles, recomeçaram adisputa- É só para acabar. A gente já conversamas bruscamente eu reconstituía o que diziam, mas em Penalva. EraInverno,

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reuníamo-nos em casa de um ou de outro, sobretudo no quartodo Pacheco que se d ive r t ia imenso , a lhe io a d iscussões . Sen tados emvo l ta da b rase i ra . Pacheco t inha sempre uma gar ra fa de aguarden tep a r a a q u e c e r a a r g u m e n t a ç ã o . E r a I n v e r n o , ó P e n a l v a d o s g r a n d e s222espaços gelados, enquanto o criado pára junto a nós, a cabeça inclinada,e eu digo que tomo um café.Então Miranda, já então fumava cachimbo, ainda fuma cachimbo, fazges tos com o fo rn i lho apunhado d iz que a C iênc ia é uma c rend ice e M a n a ç a s p e r g u n t a c o m o é q u e s e n d o j u s t a m e n t e a s s i m , e n q u a n t o remexe a braseira.- C o m o é q u e s e n d o j u s t a m e n t e a s s i m , t u e x p l i c a s a o r i g e m d o mundo? A ciência só existe em função da causa/efeito- Mas toda a causa/efeito só funciona no domínio natural e tu meteslogo um elemento antinatural para explicares – diz Mirandamas Miranda é que pergunta agora- Como é que sendo a Ciência a conquista do nosso tempo tu explicasa origem do mundo? A Ciência só existe em função da causa/efeitoe Manaças responde- Mas toda a causa/efeito só funciona no domínio natural e tu meteslogo um elemento anticultural para explicaresde modo que, enquanto tomo o café e remexo a braseira em Penalva,há uma conversa vinda de Penalva para a capital exactamente igual masd i fe ren t íss ima, porque o pape l dos d ia logan tes de se t rocou . Há uma d a n ç a d e p a l a v r a s d e l á p a r a c á , D e u s i n t r o m e t i d o n o m e i o , c o m o enguia vai curveteando entre elas empurrado de um lado, enquanto eusentado junto à montanha vou ouvindo.- De todo o modo, alguém teve de fazer istoquem falou? É Manaças em Penalva, é o Miranda na capital, trocam-m e o p a s s o , s i n t o - m e b a r a l h a d o a a c o m p a n h a r . H á u m f i o d e a r g u m e n t a ç ã o e d e r e s p o s t a à a r g u m e n t a ç ã o c o m u m a c o n t r a -argumentação, existem ambas por si e há quem tome urna à sua conta e223quem tome a Outra, o que é afinal secundário porque o desenrolar dosargumentos é que é.- Mas como não posso sair do mundo em que estou, eu digo que istoexiste por si.São palavras que já sei, que já ouvi e disse e pensei, elas são donas desi mesmas, são uma casa com escritos, qualquer um as pode habitar- M a s e n t ã o t u s ó n ã o q u e r e s é u s a r u m a c e r t a p a l a v r a e e u u s o - a para teu governo e digo que Deus está no mundo, de qualquer modo,tenho de dar um nome a uma coisa diferente onde comece o movimentoa b r o b e m a m i n h a a t e n ç ã o , e s t o u n o c a f é à e s p e r a d a s a n á l i s e s e r e p a r o q u e q u e m d i s s e i s t o f o i o M i r a n d a m a s j á o t i n h a o u v i d o a o Manaças em Penalva mas agora o Manaças repele energicamente essaintromissão sub-reptícia de qualquer coisa que vem à frente para logoa t rás v i r o padre e a ca lde i r inha da água ben ta e as bea tas a rezarem jaculatórias e diz que- Mas como não posso sair do mundo em que estou, eu digo que istoexiste por si e não tem de vir mais nada meter-se onde não é chamado.M i r a n d a e n t ã o r e a c e n d e o c a c h i m b o c o m u m t i ç ã o d a b r a s e i r a e estende o cálice ao Pacheco para mais aguardente. E diz- No fundo o que tu tens é cagaço de não aguentar a vida como ela ée Manaças f i cou fu r ioso , mas d is fa rçava com o seu r i so

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gran izadocom tremidos em ih, iii, ih ou em eli, eh, eli, quando queria mostrar oseu espanto diante de uma asneirola mais grossa e disse que- Cagaço tens tu de que te preguem com o enxofre e o caldeirão deP ê r o B o t e l h o , e u s o u a p e n a s r a c i o n a l e n ã o t u q u e e n c h e s a b o c a d e razão e pretendo racionalmente achar uma justificação para esta coisade um tipo ter nascido e ter de morrer sem saber para quê224mas quem diz isto, enquanto peço outro café e acendo outro cigarrosen tado à varanda para a ta rde que va i mor rendo , quem d iz i s to é oMiranda com o cachimbo aparado pelo fornilho na mão esquerda parages t i cu la r à von tade com a d i re i ta , enquanto Manaças f i ca fu r ioso e replica que- No fundo o que tens é cagaço de não aguentar a vida como ela é.Sinto-me estonteado nesta dança e contradança de cá para lá e de lápara cá, a cabeça anda-me à roda, aspiro fundo o cigarro e recosto-men o s o f á . P e l o c o r r e d o r d o c a f é , e r a u m t i p o j á d e i d a d e , v i n h a e m s i l ê n c i o , e s t e n d i a o s b r a ç o s a u m l a d o e o u t r o e m p r e g a ç ã o m u d a . C o n h e c i - o - d e s d e o n d e t e c o n h e ç o , ó v e r b o e n c a r n a d o ? T i r o u m a moeda do bolso, meto-lha, à força na mão, ele não queria, aperto-lhe osdedos sobre a moeda. Então ele deitou-a ao chão e depois apanhou-a.Mas no fundo admiro o Manaças e - o Miranda, porque têm argumentosm e s m o d e p a p e i s t r o c a d o s , q u e a r g u m e n t o s t e n s t u ? n ã o t e n h o argumento nenhum. A verdade vai e vem, eu deixo-a vir e passar. Devez em quando ins ta la -se e demora-se , eu de ixo-a es ta r e so r r io - lhe .Não a vou jus t i f i ca r porque não se i , de ixo -a es ta r . Es tá cer ta comigoenquanto está e nos ajustamos um ao outro como no amor levado até aofim. Depois o amor acabou e então dou conta de que a verdade já nãoes tá - que a rgumento é o teu? Pod ia te r mu i tos se qu isesse , não es tou p a r a m e m a ç a r . T e n h o t o d o s o s a r g u m e n t o s e t o d a s a s f i l o s o f i a s , s e quiser. Não quero. Dá trabalho e não vale a pena - estou aqui sozinho etenho comigo assim toda a verdade do mundo. Pacheco ouvia e diziapiadas de vez em quando, Miranda insultou-o- Tu és um t ipo sem vergonha nenhuma. Tu fos te a um congresso católico do Norte e comeste à tripa-forra. Depois foste a um congressoateu do Sul e comeste à tripa-forra. Tu és um imoral cheio de estômago225e era verdade - que verdade era a sua? Ninguém sabia, ele não sabia.T a m b é m n ã o s a b e r e i , t a l v e z , m a s s e i q u e n ã o s e i e i s s o j á é s a b e r . Pacheco tinha a sua verdade entremeada nos dentes com que sorria ec o m i a . E u t i n h a a m i n h a e n t r e m e a d a à a m a r g u r a o n d e e r a j á s ó res ignação . Percor r i todas as que me apresen ta ram e nenhuma qu isv i v e r c o m i g o . À s v e z e s e u v i n h a à p o r t a q u a n d o m e d e i x a v a m e gritava-lhes- Fica!mas não f i cavam. Uma ou ou t ra o lhava a t rás com p iedade como é próprio de quem se é bastante e vê tudo o mais aos pés. Mas não ficava.Então eu fechava a porta até que outra batesse, agora já nenhuma bate.E escusas tu de.

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sorrir com esse ar melífluo que detesto, porque não éspara aqui chamado. Havemos de ter talvez uma conversa a sério daquia alguns capítulos, agora por favor não me chateies. Estou só na minhacasa deserta. A tarde finda lenta, a terra respira enfim à desopressão docalor.«O meu amor quer que eu use / as chaves ao coração» canta. De sol asol, a fadiga a condenação. E estúpida, inverosímil e límpida - a músicae o a c e n o d a m a r a v i l h a e t e r n a . « O m e u a m o r » - q u e a m o r ? T u d o é sombra e fim e terror e cansaço. Canta, mulher ignorada, na ilusão e noab ismo do mis té r io e do absurdo . A ta rde evo la -se na d ispersão dos meus olhos. Desaparece no imperceptível irreal, vai com ela a insolúvelrazão de todas as minhas razoes, a parte de mim disponível que alastraa t é o n d e n a d a d e m i m p e r m a n e c e . O s o l b r i l h a a i n d a c o m o n u m a e s p e r a n ç a d e r r a d e i r a q u e f i c a a i n d a q u a n d o j á n ã o h á e s p e r a n ç a nenhuma e se ac red i ta no mi lagre para a haver . Desvanece-se no a r a226totalidade de mim, que é que eu olho e fito no nada do meu horizonte?Estou só e escuto. Uma voz canta como o braço de um náufrago.227XXXIIF a z i a v i n t e a n o s - o u v i n t e u m ? e r a o d i a e m q u e a t i n g i a a m a i o r i d a d e , m i n h a f i l h a . E r a o d i a v i n t e e u m d e M a r ç o , S a n d r a preparara um jan ta r de fes ta . Tarde já de uma ténue tep idez , os d ias ,c r e s c i a m j á p a r a l á d a s j a n e l a s o n d e e u o s v i a r e t a r d a r - s e c o m u m anúncio de alegria. Vinha aí a Primavera, a minha memória florescia emlembranças de aldeia. E então Sandra quis festejar especialmente essefacto inconfessável no fundo de nós de que a filha ia ter o destino nasmãos - como vais tu ter o destino nas mãos? Como te entenderás com avida? Mas nós estaremos já de fora como quem fecha os olhos na morte.Sandra incumbira-me de várias compras, era uma fruta numa casa aof u n d o d a a v e n i d a , u m c a f é e s p e c i a l n a B a i x a , u m a l â m p a d a p a r a o c a n d e e i r o d a s a l a , A l e x a n d r a c o l a b o r a r a n o a r r a n j o d a m e s a . E u irritava-me- Porque é que não me encomendas logo tudo de uma vez? Passo atarde fora e dentromas Xana também não estava sempre em casa. Até que uma vez, eu ju lgava que ia en f im descansar . Mas hav ia a inda , c re io que fo ram asv e l a s p a r a o b o l o , q u a n d o v o l t e i d e n o v o X a n a n ã o e s t a v a . E e n t ã o S a n d r a c o n t o u - m e . N ã o s a b e m o s s e a f i l h a j á t i n h a o u n ã o d e c i d i d o tudo , mas eu penso . que s im. E la chegou, pergun tou por m im, a mãed isse-lhe que não dev ia demorar . O lhou a mesa , o a r de fes ta da sa la ,e ra uma fes ta só para os t rês , Xana esse ano não conv idou os amigos . Todos os anos era uma invasão, com um berreiro, estúpido de discos aa t r o a r e m a v i z i n h a n ç a , n ã o c o n v i d o u . O l h o u a m e s a , e n t r e t e v e - s e mesmo a retocar-lhe o arranjo, substituindo alguns copos, compondo o228centro das flores. Depois sentou-se, acendeu um cigarro - acendo eu umcigarro na fadiga de mim.- Bom. O pai demora-se, dizes-lhe tu depois.- Digo o quê?-

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Vocês f i ze ram um seguro para mim. Fa la ram d isso vár ias vezes ,que quando eu atingisse a maioridade. Sabes onde está?Sandra sabia. Mas eu demoraria pouco tempo- É melhor que venha o teu pai.- Não. Dás-me o seguro já. Quero que esteja. tudo decidido quandoele vier.S a n d r a n ã o e n t e n d e u - u m c a p r i c h o , u m a c o n f i r m a ç ã o d a s u a maioridade, um certificado do seu investimento da vida? Toda a face damontanha rebrilha no deslumbramento do fim, sufoca-me um grito noexcesso do lembrar. Não estou presente, Sandra esforça-se vivamentep o r d o m i n a r - s e , s i n t o q u e e s t a l a e m c a d a p a l a v r a q u e d i z . P r o c u r a numa gaveta da secretária do lado direito, encontra os papéis. E exactaprecisa, como executora de uma fatalidade - mas Xana tirou-lhe logo ospapéis das mãos, examinou-os, à luz. E então disse- S a i o j á d e c a s a . É m e l h o r a f i n a l q u e o p a i n ã o e s t e j a . H á m e n o s cenas.T i n h a u m a p e q u e n a m a l a p r o n t a n o q u a r t o , f o i b u s c á - l a , S a n d r a disse-lhe ainda que- Tudo isto é estúpido. Tens de dar uma explicação.- Não há explicações. Vou sair. Vou viver a minha vida. Não tenhoaqui nada que fazer.- Espera ao menos pe lo teu pa i . E jan ta . E espera por amanhã, por depois. Tens muito tempo para pensar.- Não há nada que pensar. já decidi229e sa iu por ta fo ra , Sandra f i cou só . Es tava sen tada quando chegue i , havia já escuro na sala, a mesa posta como irrisão.- Tu é que tiveste a culpa!vibrou súbita de cólera represa, o que nela falava alto não era o tomda voz mas o que eu adivinhava nela. A culpa, toda a vida fui culpado- Não mexas aí! Está quieto com os pés!toda a vida a acusação, a censura, a imposição de uma ordem que met ranscend ia . Cu lpado desde nascença , de te r nasc ido . Sa io à toa pe la cidade - ver-te, encontrar-te. Um dia, já há um certo tempo, havia umc a f é s e c r e t o , l o n g e , X a n a u m d i a c o n f e s s o u . O h f o r a s ó p a r a experimentar- Que é que tu tens con t ra a d roga? Sabes quan tos a lcoó l i cos há no país? Mas o álcool não tem já mística nenhuma. Tu um dia contaste queem miúdo não se podia dizer de alguém que era re... pu... bli... ca... no!A metafísica das palavrasq u e é q u e e r a u m a p a l a v r a ? S o n s v a z i o s , i n o c e n t e s , o r e s t o e r a a n o s s a e s t u p i d e z q u e o f a z i a - h a v i a u m c a f é d i s t a n t e . U m d i a f u i l á . E n t r a v a a c h u v a c o m o s q u e e n t r a v a m , h a v i a s e r r a d u r a n o c h ã o . Custou-me dessa vez a encontrá-lo, entrei, Xana não estava. Encontrar- t e n u m a e s q u i n a , n o a c a s o d e u m a r u a . V a g u e e i à t o a p e l a c i d a d e , regressei já tarde. Sandra estava sentada num sofá, um cigarro na mão -mas tu é tão ra ro fumares . E ao can to da sa la , o g i ra -d iscos aceso . Amesa pos ta , a Pr imavera v inha a í . Sen te i -me eu também, ouv íamos música e era tudo excessivo para a minha comoção. Depois procurei noquar to de A lexandra , dev ia te r a sua l i s ta de te le fones , v i na nossa se a l g u n s n o m e s n ã o e r a m d a s n o s s a s r e l a ç õ e s . T e l e f o n e i , t e l e f o n e i . R e g r e s s o à s a l a , S a n d r a e s t á s e n t a d a n o s e u l u g a r , n ã o t e n h o u m a palavra para lhe dizer - que é uma palavra? E assim ficámos, fechados230

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na destruição de nós, enquanto a música, sempre, e era como se algumacoisa de nós para ela passasse e a amargura fosse nela a nossa imagem enela se prolongasse e um pouco se diluísse. A noite ia crescendo lá forae o r u m o r d o t r á f e g o l e v a v a - a c o m e l e e i a t r a n s m i t i - l a l o n g e e e l a prolongava-se até ao mais remoto horizonte e era noite desde a fundurada memória. Estávamos assim e não tínhamos uma palavra, uma ideiaque nos recompusesse a vida, com que pudéssemos reconhecer onde elacontinuava. E de súbito lembrei-me- Sandra!sala. mas ela não se moveu, quase apagada nas sombras da- Sandra! - repeti.- Sim.- Nós vamos jantar. E vamos fazer a festa como a tínhamos pensado.E vamos fazer tudo como tínhamos destinado. Não sei porque pensei isto, mas sinto que está certo.Ela não respondeu. Mas correu os estores da sala e acendeu todas asl u z e s . D e p o i s f o i à c o z i n h a e t r o u x e o c o m e r . A m e s a e r a o v a l , n ó s es távamos nos topos , a me io es tava a ausênc ia de Xana no ta lher que não fora levantado. Celebrávamos a entrada da filha na vida como se setivesse casado ou partido para longe ou como se simplesmente, comode facto acontecia, tivesse saído de casa para seguir o seu destino. Podiate r esco lh ido ou t ro d ia . Mas e ra aque le que t inha o s ina l da g ló r ia do r e c o m e ç o , d e r e c o n q u i s t a d a v i d a q u e n ã o f i n d a . E u o p e n s a v a e o queria dizer e todavia calava porque seria logo mentira e absurdo se odissesse. Porque a verdade das palavras não está só na sua verdade masna coerência com o momento em que se dizem. Comemos em silêncio,em silêncio ouvimos o tinir da louça e isso é como o anúncio ou avisoou ameaça do que nos explode por dentro. Há uma ausência entre nós,231tensa ocupa-nos a mesa toda, o espaço de toda a sala. E é assim como seessa tensão da compacta ausência da filha fosse um volume explosivo euma palavra que disséssemos o fizesse explodir. Sandra tem palavrasbanais- Mais sopa?como anteriores a estarmos ali sob pressão. Não quero mais, nuncaquis mais, ela sabe, mas também precisava de dizer o que não é de dizerpara ter que dizer e tudo parecer que sim. Enquanto eu me levanto dosofá e venho ate a varanda, percorro-a de um extremo ao outro, sinto-me suspenso aí da altura ao chão do pátio, respiro fundo à amplidão doe n t a r d e c e r . C h e i r o à t e r r a c r e s t a d a , a f e n o s , e r v a s s e c a s , p e r f u m e s desconhecidos de uma tarde de Verão. Tenho de ir chamar a Deolinda,tenho de fechar as janelas, instaurar o meu recolhimento à nulidade demim, a ace i tação , imposs íve l de que o fu tu ro se encer rou . E é ass im como se, pois como ter a coragem sobre-humana de o reconhecer? Dechamar a Deolinda e de dizer-lhe- Cheguei. Vou ser póstumo a tudo o que já fui. Cheguei. Aqui estou.Preparar a casa, a cama, tudo aquilo que cabe a um morto. Preparar adoença, a degradação, os apetrechos da morte - pois como ter a audácia,a t e m e r i d a d e m a i s q u e h u m a n a ? T o d a a f a c e d a m o n t a n h a r e b r i l h a a inda no des lumbramento do so l poen te , há uma casa equ i l i b rada nop ico de um monte , suspende-se sobre o ab ismo, tem uma a legr ia de l o u c a n a l u z q u e a s u s t e n t a n o a r . O l h o - a a i n d a , o l h o - a s e m p r e n o e s p a ç o d a m o n t a n h a e d o c é u . B r e v e v i r á

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a n o i t e e e u e s t a r e i s e m remédio na agitação da insónia, no turbilhão da memória, enrodilhadode espectros que me atormentam o sono. Enquanto fomos jantando comum certo terror indizível de que o jogo acabasse e acabasse o expedientede termos entre nós a realidade concreta de estarmos à mesa e ouvirmos232c o m a s u a f o r ç a i m p o s i t i v a o r u í d o d a s l o u ç a s e t a l h e r e s . E e n t ã o lembre i -me, sou eu sempre a te r de lembrar -me, pod ias lembrar - te , Sandra, e estares comigo e colaborares neste esforço arrasante de nosa f i rmarmos v ivos con t ra o s ina l da mor te que nos marcou . Eu suger i bebidas, havia champanhe para o remate da festa- Tu também vais bebere e l a h i r t a c o m o s e m p r e , f o i b u s c a r m a i s u m a t a ç a , d e r r a m o u algumas gotas e eu disse-lhe- Bebe.T inha duas co isas a d ize r , eu , não me levan te i , o lhe i a toa lha que estava mais perto da minha humildade ou aniquilação.- Sandra! - disse eu. - Criámos uma filha, é alguma coisa importante,é mesmo o que há de mais importante na vida, criar um filho. Ela foi-se,escolheu calculadamente o dia em que havia de ir-se. Não há razão paraestarmos tristes, o que era de fazer fizemo-lo, o resto já não é connosco.Porque a v ida e ra ass im fe i ta , c r ia rmos o que nos nega , o que nosexpu lsa . Cr ia rmos a mor te de nós , que é o que podemos todos c r ia rdesde que nascemos. Um f i l ho que par te é a expressão v is íve l dessa m o r t e . U m f i l h o s ó é n o s s o q u a n d o p r e c i s a d e n ó s , q u e é e n q u a n t o realmente nós precisamos dele. Não tinha palavras para te dizer, vê tu,e agora as palavras nascem inteiras sob o meu descuido. Devem estarcertas porque as não pensei. É noite, os carros ainda se ouvem na rua, éa hora de recolherem. É a hora de estarmos a sós connosco. A filha é dotempo que continua, não temos lá nada que fazer.- Sandra!E la o lhou-me como se eu não fosse da l i . Não me deve te r ouv ido , deve ter ouvido outras palavras que alguém disse dentro dela. Mas naface inteira presente, nem um breve estremeção.233- Bebe.E r g u e u a t a ç a , m o l h o u o s l á b i o s . D e p o i s o l h o u e m v o l t a d a m e s a como se para verificar que tudo estava concluído. Doía-me numa fendade estarmos ali a sua condenação.- Tu é que tiveste a culpa!Mas não quero defender-me para lhe não acirrar a acusação. Toda avida fui culpado, corno o não seria agora? Culpado de existir para haveru m c u l p a d o q u e é o q u e p e r t e n c e a o s o u t r o s . P o r q u e m e s m o q u e o sejamos nós, é já um outro que o é, esse outro de nós.- Tu é que tiveste a culpa.E já noite. Mas é já uma noite de Primavera, calma, sem a memóriado que é excessivo, revertida à esperança e à pacificação. Ajudo a levara louça para a cozinha. Calço as luvas de borracha para ajudar a lavar alouça. Mas Sandra diz-me apenas que- Não é preciso.234XXXIIICulpado de existir. E de te ter feito existir. E todavia. Que excitação am i n h a à h o r a d a t u a v i n d a . P e l a m a n h ã , m a s o m é d i c o o u e u j á tínhamos marcado lugar na maternidade. Tu disseste- Chegou a horae eu não fui à Biblioteca. Era uma ruazinha que sobe a pique de

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umaavenida, o táxi num largo um pouco acima, virou à direita e estacou emfrente. Avisou-se o médico, meteram-me para uma sala de espera ondeoutros homens esperavam. Tinham todos o olhar culpado de estarem alip o r u m a f a l t a d e q u e o s a c u s a s s e m e d e q u e e s t i v e s s e m i n o c e n t e s , culpabilizei-me eu também e sentei-me. Depois ergui-me, depois sentei-me ou t ra vez , o lhava a face dos homens . jovens quase todos , o o lhar in t r igado de quem não compreende bem, um ou ou t ro ma is idoso , já integrado na sua condição pelo hábito de enfrentar um juiz que deviah a v e r . E r a u m d i a t r i s t e d e c h u v a , a P r i m a v e r a n ã o d e s p e g a r a d o I n v e r n o , e r a t r i s t e o l h a r o f u t u r o . A l g u n s j o v e n s e r g u i a m - s e d a s cadeiras, passeavam de um lado para outro numa inquietação presa. Ouparavam à jane la , o lhavam a chuva como se o lhassem o des t ino - emque é que pensa is? A rua e ra es t re i ta , v ia -se per to o ou t ro cor re r decasas , as v id raças - em que es ta is a pensar? E per to e longe , d ispersope lo a r , o ru ído do t rá fego como desor ien tado de loucura . De vez em quando chegava uma enfermeira de bata branca, dizia alto um nome.Um indivíduo erguia-se, ia lá para dentro. Os outros entreolhavam-sen a c o m u n i d a d e j u d i c i á r i a q u e e n t r e t o d o s s e i a c r i a n d o . P a s s e i o in te rminave lmente ao longo da sa la , venho à jane la o lhar a chuva . O t e m p o e s c o r r i a d a s g o t e i r a s , n a v a l e t a d a r u a a á g u a f o r m a v a u m235p e q u e n o r e g a t o . Q u a n d o a e n f e r m e i r a v o l t o u , o u e r a o u t r a t a l v e z , perguntei-lhe pelo meu caso. Dei-lhe informes, ela retirou-se ainda lápara dentro, veio muito tempo depois:- Ainda está demorado.- Alguma coisa de novo?- Não, não. Tudo normal. Pode ir almoçar que dá tempo.N e m m e l e m b r a r a , o l h e i o r e l ó g i o . P o r t a n t o , n ã o t e n s p r e s s a d e , chegar. E escolheste um mau dia, tempo de aguaceiro. Oh, qualquer diaé b o m p a r a v i r e s v e r c o m o i s t o é . C h u v a o u s o l o u v e n d a v a l o u t rovoada, todo o tempo é bom para começares a aven tu ra . Serás um homem novo, serás o primeiro homem e inventarás de novo a terra e os o l e o s a n i m a i s . E i n v e n t a r á s a d o r e a a l e g r i a e a c o m u n i d a d e d o s homens que te esperam. Está um dia de chuva. E a minha expectativaturba-se de uma incerta amargura ou suspeita, qualquer coisa em mims e s u s p e n d e d e u m a o b s c u r a i n t e r r o g a ç ã o . T o m o a g a b a r d i n a e o guarda-chuva, invisto contra o temporal. Há um restaurante ali perto,entro no salão ruidoso, vagamente toldado de uma humidade viscosa.Ninguém sabe que o meu filho vai nascer - se eu o dissesse? Aos berros,a a l t o s b r a d o s p a r a q u e o m u n d o i n t e i r o o e s p e r e . U m m i l a g r e v a i acontecer ali ao pé e toda a gente o ignora que diriam se eu o dissesse?i r i a m r i r c o m c e r t e z a , a t r o m b a d o s à g a m e l a d o s e u s u s t e n t o , i r i a m olhar-me com piedade ou com receio de andar assim um louco fora domanicómio a perturbar a ordem humana. Descubro um lugar vago lá aum canto, o criado atende-me e eu digo-lhe que estou com pressa, estouà espera que me nasça um filho ali na maternidade. E ele encara-me umins tan te sem s impat ia , com uma espéc ie de surp resa e

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d is tanc iaçãocomo se eu me dec la rasse um doente con tag ioso . Ser ia ta lvez pa i de muitos filhos, sentiria uma ameaça na minha declaração. Sinto-me eu236m a r c a d o d e u m q u a l q u e r s i n a l n o m e i o d a q u e l a m u l t i d ã o a c o m e r . A lguém va i e rguer -se , o c r iado ta lvez , a denunc ia r -me àque la gen te estranha e todos sentirão piedade de mim, ou inveja, ou admiração, dequalquer modo um sentimento ignorado pelo destino que me marcou.Mas o criado serviu-me sem uma palavra, eu despachei-me depressa,r e g r e s s e i a o m e u p o s t o d e v i g i l â n c i a . L o n g o t e m p o e s p e r e i a i n d a , enquanto a tarde envelhecia na cidade e a chuva às vagas vinha vindos o b r e a r u a c o m o u m a b a l a d a t r i s t e . A s a l a e s t a v a q u a s e d e s e r t a . Tinham acendido as luzes. Nas janelas em frente havia também já luzesacesas , a lgumas pessoas passavam em f ren te na zona i l uminada em aparições mágicas. Bato a sala de um lado ao outro, sento-me, acendoc igar ros , a ten to aos rumores v indos de lá de den t ro . Esgo ta -se-me acapac idade de esperar e um pouco mesmo a expec ta t i va , sem ide ias n e m s e n t i m e n t o s p a r a a p r e e n c h e r , f i c o s u s p e n s o d a c h u v a e d a s sombras que vão tendo uma presença física à minha volta. Até que umaenfermeira abriu a porta sem que eu a tivesse ouvido e disse alto o meun o m e . S a l t e i s o b r e o s p é s , a g o r a c o n f u s o d e i d e i a s s u s p e n s a s q u e i m e d i a t a m e n t e s e m e a t r o p e l a r a m n a m e n t e . A o f u n d o d o p e q u e n o corredor havia outra porta que abria para outro corredor mais extenso,c o m s a l a s , q u a r t o s , g a b i n e t e s d o s d o i s l a d o s . E m m u i t o m a i o r , a matern idade , do que poder ia supor , a longava-se à be i ra da aven ida , tinha entrada por uma rua secundária. At que a enfermeira me desvioupara um pequeno corredor, havia uma sala envidraçada e no meio umpequeno cubículo também em vidro e um pequeno ser ao meio.- É uma meninaa enfermeira disse.- Só uns minutos - acrescentou.- Como está a minha mulher?237- Depois pode visitá-la.U m a m e n i n a . F i c o e m b a r a ç a d o e n t r e a v e r d a d e i n c o n t e s t á v e l d o pequeno ser humano ali e a quantidade de coisas que eu preparara paraque o não fosse. Olho suspenso o pequenino rolo de carne avermelhada,tem a face distorcida num choro. já? Tão cedo? Porque choras? Fizeram-te vir ao mundo, não pareces muito de acordo. De qualquer modo é ump o u c o c e d o p a r a a l a m ú r i a . E s t á b e m q u e v a i s s o f r e r o t e u b o c a d o . T a n t a c h a t i c e , h á s - d e v e r . G u a r d a a l g u m a s l á g r i m a s p a r a d e p o i s . Sonhos para engalanar o futuro e que depois não são. E traições dos queh á s - d e a m a r . E s a c a n i c e s q u o t i d i a n a s d e a m i g o s , m e s m o d o s m a i s chegados. Tu vais ver. Não chores. Corno é que vais depois arranjar-tes e m l á g r i m a s ? U m a l á g r i m a d e v e z e m q u a n d o f a z j e i t o . D e s o p i l a o s is tema nervoso e a gen te f i ca ma is d ispon íve l para a pu lh ice que se segue, Quando já não há lágrimas é que a coisa é a doer. Estou eu aquiq u e s o u t e u p a i e t e r e c o r d o à h o r a d a t u a v i n d a , n e s t a h o r a l o n g a e so l i tá r ia em que não es tou à espera de nada . Guarda o choro

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para asprimeiras impressões que isso não chega a ser as primeiras. Estavas noquente, puseram-te à força cá fora e agora é aguentar. Não chores, sorri.M a s a i n d a n ã o s a b e s , o s o r r i s o é p a r a q u a n d o j á s e a p a n h o u m u i t a mossa . Em todo o caso , vê se fazes um es fo rço . Sor r i pa ra eu te reco- nhecer no meu alvoroço de te ver. No fim de contas, isto tem também asua piada. Verás o sol, as flores, os animais. Verás os teus confrades emhumanidade e pode ser que algum não seja de todo destituído. E verásos rios, as montanhas, hás-de ver esta que eu vejo e é grande bastantepara encher uma infância e a morte. Verás as cores dos campos, a neve,ouvirás a balada das chuvas, ouvirás as aves pelo alvorecer. Tudo isto éimportante, tu é que não fazes ideia. Tudo isto é importante como eu tonão sei dizer e tão importante, vê tu, que foi preciso inventar Deus para238a g u e n t a r e s s a i m p o r t â n c i a . E v e r á s a n o i t e e a s e s t r e l a s e s e r á s meditativa às horas do poente e à hora de uma grande lua nascer. Tudoi s t o v a l e a p e n a e t u p a r e c e q u e o a c r e d i t a s p o r q u e o t e u r o s t i n h o parece-me que já não tem as contracções do choro. Mas é possível quetu chores só de remorso . Porque não e ras tu que es tavas para nascer .Que f i zes te ao teu i rmão? Era a vez de le , dev ias saber . Onde é que odeixaste? Como é que fizeste para o empurrares para o lado e meteres-te tu à frente? Devias saber que quem eu tinha mandado vir não eras tu.S o s s e g a , n ã o t e v o u m a n d a r e m b o r a . M a s a s c o i s a s s ã o c o m o s ã o e quem devia vir era ele. Quem devia vir era um homem porque a vida écoisa extremamente grave e difícil e só um homem está em condições deaguentar. Se tivesses deixado vir o teu irmão, tenho a certeza de que elese não tinha posto para aí a chorar como tu. Um homem, como hás-desaber , não chora , por v i r tude de uma le i macha que lhe põe p regos eco i ro g rosso no s is tema s impát i co . E não me d igas que é mach ismo, p o r q u e a i n d a n ã o é t e m p o d o v a z i o d a s p a l a v r a s . V ê t u q u e m e s m o Deus, como hás-de descobrir, é macho. Deuses fémeas só para papéissubalternos. Mas a mulher é mais hábil, o homem é tão intrujado. Devete r s ido por i sso que enro las te o teu i rmão e te ad ian tas te a e le paranasceres . Descansa , não me vou zangar por i sso . Mas já agora quer iasaber como é que fizeste. O homem tem essa fraqueza da trouxice e tuaproveitaste logo para o empalmares. Acabou-se. Agora é aguentar tu eeu. Está um dia de chuva, mas é o começo da Primavera que e a estaçãod a s o r i g e n s e d a r e i n v e n ç ã o d á v i d a . Q u e p a l a v r a m e t r a z e s ? É a P r i m a v e r a , q u e p a l a v r a m e a n u n c i a s p a r a e u d i z e r ? M a s c a l a s - t e , acabou-se. Dorme. Vê se descansas. Eu vou ver a tua mãe que já deveter estranhado a minha demora.Mas a enfermeira aparecia neste instante239- Posso ver a minha mulher?E la não respondeu e apenas abr iu a por ta para eu passar . Sandra estava no seu quarto um pouco adiante, quando me viu sorriu apenas oseu sorriso tímido, discreto- Como estás?estendeu-me a mão, apertou ligeiramente a minha.- Viste-a?perguntou-me.- Não é linda? - perguntou ainda mas eu não sabia.- Já lhe escolhi o nome -

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disse-me depois. - É Alexandra.- Porquê? Não gosto do nome.E l a e n t ã o c o n t o u d e u m a t i a - a v ó . E q u a n d o S a n d r a e r a m i ú d a , obrigou-a a prometer-lhe a dar o seu nome à primeira filha que tivesse.Chamava-se Alexandra. Morrera solteira. Era meia louca.- Quando regressas a casa?mas não sabia. Se tudo corresse bem, coisa de oito, quinze dias. Namaternidade havia pressa em despachá-la. Para entrarem outras partu-rientes e se manter abastecido o mercado da humanidade. E iniciarem-se outros percursos, outras aventuras, outras lágrimas e interrogações. Efindarem por sua vez depois de terem lançado à vida Outros seres quechorassem e se interrogassem e findassem numa grande noite tão cheiae perfeita como as que findam imperfeitas e vazias.240XXXIVD e p o i s f o i t u d o d i f í c i l - q u e é a « e d u c a ç ã o » ? H á n o h o m e m u m a parte essencial, propriedade dele intransmissível, intransaccionável. Eh á a o u t r a . E s s a é q u e e l e p o d e d i s p e n s a r p a r a o e d u c a d o r f a z e r j a r d i n a g e m . É u m a i d e i a q u e d e v e a n d a r n o s l i v r o s e n o s a b e r d a s nações , com Xana pense i -o . Men ina rebe lde , imp l i ca t i va , oh . A gen tedizia-lhe «está sol» e ela por princípio de autonomia dizia que estava achover . E não va l ia a pena te imarmos . En tão a gen te por esp í r i to desabedor ia abandonava a zona c l imaté r i ca e a tacava uma zona menos d e f e n d i d a e d i z i a - l h e p o r e x e m p l o q u e f o s s e l a v a r a s m ã o s o u q u e f i zesse os t raba lhos de casa para i r à ta rde ao c inema ou co isas ass immenos con tes táve is e ma is ú te is . Mas e la ca lcu lava sempre o g rau de in te resse que púnhamos nas , o rdens para reag i r para le lamente e ao contrário. E assim foi crescendo neste jogo de desencontros e nós fomosdiminuindo em ladeios e curveteios. Menos Sandra na sua moral laica e jansenista. Porque era assim, tinha os seus princípios sem razões paraalém deles, mas talvez para compensar-lhes a ausência de uma dívindi-d a d e q u e o s g a r a n t i s s e , c a r r e g a v a - o s d e r i g o r i s m o c o m o s e f o s s e m divinos. E eu que nunca joguei forte em nada por nada me, ter força, eramais compreensivo e flexível, era assim. E certo dia - e que significa issonesta tarde que esmorece? ó noite que te avizinhas inteira nua perfeita -sê calmo. Xana viera tarde, começara a vir fora de horas, eu suspeitavade que, e como não? Havia uma história nova da juventude, que é ques i g n i f i c a v a m a s n o s s a s c a u t e l a s d e o u t r o r a e o s e n c o n t r o s c a s u a i s e calculados, e a nossa troca preambular de olhares entendidos, e a cartade namoro, e as fotografias trocadas e o primeiro beijo após um longo241período de tarimba, e o pau-de-cabeleira para moralizar o noviciado?Havia uma história nova da juventude, Xana rapidamente aprendeu asregras do jogo que nem chegavam a ser regras . E ra o abr i r na tu ra l de toda uma situação e foi assim que um dia, após outros de entradas forade horas . Fu lm inan temente perceb i . O o lhar tú rb ido , um cer to a r de desafio e cansaço.- Que é que tens?mas nem me respondeu. Sandra f r íg ida , não teve pergun tas , Xana não queria comer, queria só um copo de leite e deitar-se. Sandra foi come l a p a r a

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o q u a r t o , d e m o r o u - s e o t e m p o d e u m a l o n g a c o n f e r ê n c i a . D e p o i s s a i u , e u p o s t o d e l a d o c o m o e x c e d e n t á r i o a o s p r o b l e m a s domésticos.- Que se passa? - pergunteie Sandra acendeu um cigarro para me significar que se passava algode g rave . F ique i a o lhá- la sem ma is pergun tas . E só quando percebeu que eu já não perguntaria mais nada, só quando se convenceu de que aexplicação que me desse era uma concessão que me fazia e não cedênciaao que eu exigisse, quando entendeu que o que dissesse era mais parae la ouv i r do que para ouv i r eu , só en tão d isse . Breve , recor tando as sílabas, esculpindo-mas na alma:- O que se passou era de prever. Droga. Sexualidade. Fez hoje a suaprimeira experiência sexual.- Experiência? Quinze anos.- Não gostou. Disse-lhe: tudo se conquista. Mesmo o prazer. Nada éatar e pôr ao fumeiro.- Quinze anosrepetia eu para ser tudo mais inverosímil.242- Drogas fracas. Por enquanto. Depois irá o resto. Disse-lhe o que lhetinha a dizer.Q u e é q u e t i n h a a d i z e r e u ? N ã o o s a b i a . S u b i t a m e n t e a i n f â n c i a morta. Um dia disse a Sandra- Um outro filho já decerto prevendo que este cedo não seria nosso, ela vivíssima, umbrilho trémulo nos olhos pequenos, não, não.- Porquê?- Não te humilhes. Tu sabes porquê. Eu é que te perguntaria porquê.Não, não. Isso nunca.Que é que eu teria a dizer? Mas um dia disse- Xana. Tua mãe informou-me. É horrível pensar o que fizeste. Cadaidade tem o seu modo de ser. Não percebes que és ainda uma criança?De resto o vício não pertence a idade nenhumae ela riu-se-me na cara - sabia eu quantos alcoólicos havia no país?D e z e n a s d e m i l h a r e s . M a s o m i t o d o á l c o o l a c a b o u , n i n g u é m j á f a l a nele, até se achava piada. A droga é que ainda era mitológica:- Mas sempre foi assim. Quando apareceu o primeiro comboio fez-seurna guerra tremenda. Iria pegar fogo aos campos, estragar a moral. Eos p r ime i ros au tomóve is . E ram o An t i c r i s to . Ho je já nem os cães lhes l a d r a m . P o r q u e e q u e n ã o p r e g a s c o n t r a o v i n h o ? M a s t u m e s m o o bebes às refeições.E tudo isto me é confuso e triste e incompreensível na vertigem destef i m d o d i a . O s o l d e m o r a - s e n o s m o n t e s , e u d e m o r o - m e n a m i n h a inacção, neste modo difícil de preparar a minha morte. O sol demora-se,u m a a r a g e m s o p r a d e v e z e m q u a n d o n a f o l h a g e m d o s c h o u p o s , ape tece-me gr i ta r . Desopr im i r -me da su focação . Uma aragem sopra vindo do vale, venho até à varanda, respiro-a profundamente até a uma243vontade ocu l ta de choro . Tão len ta a aprend izagem do f im. Nunca osaberei. O mais que posso conseguir é. Realiza-te nos gestos mecânicos,n a f r i a m e c â n i c a d a c o r r e c ç ã o . U m a m á q u i n a n ã o t e m s i s t e m a simpático. Trabalho apenas perfeito até se escangalhar. Mas nessa alturat i v e m o s d e t e r u m a i d e i a , u m a h i p ó t e s e d e a r r a n j o p a r a o d e s a s t r e doméstico. E eu disse:- Sandra. Se a metêssemos num colégioE ela não disse nada como sempre que eu tinha razão. Estava a ler o jornal, baixou o jornal para o intervalo de eu dizer e ela pensar, ergueuo jornal outra vez.- H á u m c o l é g i o a o l a d o d o P a r q u e G r a n d e , c r e i o q u e d e

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f r e i r a s . Internava-se, vinha a casa nos fins-de-semana. É um sítio bonito.Ela voltou a baixar o jornal mas desta vez esteve assim longo tempocomo se a pensar noutras coisas que eu não dissera. Eu olhava até eladizer qualquer coisa e eu perceber se tinha tido uma ideia aceitável. Porfim disse que- Se achas que dá resultadoe Xana entrou no colégio, creio que logo daí a dias enquanto eu med e m o r o a i n d a a o l h a r a m o n t a n h a , b a t i d a d o c l a r ã o d o p o e n t e . E r a realmente um colégio de freiras, ou talvez não fosse porque não usavamháb i to , f re i ras la i cas , suponho, ou de qua lquer modo l igadas a uma religiosidade moderna, sem hábito nem cheiro perceptível a sacristia.Limpas de vestígios de beatério, vestindo quase mundanamente, mass e m p i n t u r a , c r e i o , c o r r e c t a s l i m p a s d i s c i p l i n a r e s . S a n d r a e x p ô s o p r o b l e m a ’ e r a a d i r e c t o r a d e c e r t o , m a s s e m e n t r a r e m p o r m e n o r e s cr í t i cos . A d i rec to ra t inha a face imóve l , o o lhar qu ie to de quem já há muito viu tudo. Não perguntava nada, ia ouvindo e dizendo, decerto,porque no que ouv ia ia já a respos ta ao que não pergun tava . Sandra244mantinha o diálogo, eu estava ali a mais, não tinha sequer uma palavraque intrometesse para parecer que não estava. Houve sobretudo umaquestão, nós tínhamos conversado sobre isso, fora mesmo o ponto vivodo p rob lema. Era mesmo uma ques tão an t iga , não vou agora pensar muito nisso. Xana fora educada «fora da religião» e se no colégio a iamobrigar à missa e à novena? Sandra herdara uma jacobinice feriria, tinhauma i ra seca con t ra a padra lhada , às vezes d iscu t íamos . Eu pusera aques tão de lado . Deus sumi ra -se-me sem eu dar con ta d isso , às vezes d i s c u t í a m o s . E u e r a a g n ó s t i c o , e l a e r a a t e i a , e u f a z i a q u e s t ã o e m distinguir. Ah, não queiras vir agora chatear-me, ó tu, talvez que daquia um ou do is cap í tu los quando a sombra fo r ma io r no hor i zon te e o m e u o l h a r c a n s a d o , q u a n d o e u f o r m a i s s ó e a m e m ó r i a d o q u e re lembro se me ex t ingu i r . Tan ta pa lav ra se me esgo tou com a ve lha divindade, não vou pensar. Palavras de infância, palavras já da idadeadulta, uma fracção enorme do meu vocabulário, do meu entendimentocom a v ida e a mor te , não vou agora pensar . Sandra ap l i cava a Xana doses maciças de irreligiosidade activa, tinha comentários secos contra ap a d r a r i a , e u t e n t a v a a p e n a s e x p l i c a r , h a v i a o s c r e n t e s , h a v i a o s descrentes como havia os adeptos dos clubes de futebol. A educação, astradições de família, a inclinação das pessoas como há quem goste davida ao ar livre ou da vida de casa, de usar gravata berrante ou gravatamais escura, de andar em cabelo ou de usar chapéu, era assim. E posta aquestão, cada qual que escolhesse, estava-me bem nas tintas para queX a n a f o s s e a t e i a o u a n d a s s e p e l a s s a c r i s t i a s , m a s S a n d r a u i . R í g i d a drástica recta, mas Xana ia organizando a sua vida e as suas opções. Umdia uma vizinha - era uma senhora religiosa. Xana travou com ela umad iscussão sér ia . Depo is con tou-nos . Que Deus e os an jos e o céu nas alturas e o fogo no inferno nas profundezas. Pois sim. Xana era miúda e245

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arrasou-a - ou fui eu que lhe contei de mim?- Mas quando faço covas na praia, o que aparece não é fogo, é água.E a directora liquidou a questão. Não havia educação religiosa senãopara quem a desejasse. Mesmo só para as internas - e Sandra aceitou aexperiência. Xana partia de manhã, andava uma carrinha a apanhar asalunas pela cidade. E à tarde regressava esgotada e feliz. Tinha novasamigas , te le fonavam-se mu i to . O co lég io desempenhava-se bem das suas funções, não apenas das essenciais, que era meter as matérias pelaboca aba ixo , mas das que f i cavam nos a r redores que e ram mo ldar as partes externas da alma. Sandra aí tinha um olho fiscal muito activo, eusor r ia . Um d ia fomos mesmo convocados , hav ia uma par lenga sobre não sei quê de educação e família. Fomos lá para sermos educados, eraum tipo que, havia homens também no elenco pedagógico, lembro-mem u i t o b e m d o n o m e , e r a C a r l o s d a E n c a r n a ç ã o . T i n h a u m a t e s t a imperial, uma cabeleira ruiva e um olho ardente de doutrinação. Haviamuitos pais para serem doutrinados, meteram-nos a todos numa grandes a l a , o h o m e m a p a r e c e u d a í a i n s t a n t e s . V i a -s e q u e a r d i a t o d o p o r den t ro mas as chamas só lhe sa íam pe lo o lhar . Passo t ravado , ges tos cheios de rédeas. Entrou por uma porta ao cimo da sala, fez um gestolento para nos sentarmos, mas nós não nos tínhamos levantado. Não seise e ra padre , mas t inha casaco cur to , camisa e g rava ta , tudo la ico . E e n t ã o c o m e ç o u . M a n d o u p r i m e i r o à f r e n t e a m ã o c o m u m d e d o espetado, a voz veio logo atrás. Disse:- A famí l ia é a cé lu la da soc iedade e a educação p repara as cé lu las futuras. Todos nos queixamos da desordem dos tempos presentes, maspoucos nos perguntamos onde começa essa desordem. Começa aquie apontou com o dedo para vermos onde começava e vimos que eraem nós que estávamos ali para o saber.246- Não vos vou fa la r dessa p raga moderna , essa lepra , esse venenocorrosivo, essa vergonha, esse insulto aos filhos, es se insulto aos paisporque os denuncia como mentirosos nas juras feitas e que é o divórcio,porque vós não so is d ivo rc iados e p roc lama is aos céus e aos in fe rnos que sóis fiéis a vós próprios. Não vos vou falar, mas cuidado. Porque oc a n s a ç o e a c e g u e i r a e n t r e m e a d o s n a s e d u ç ã o q u e a r q u i t e c t a d a n a simbiose da dupla inventiva ou corrupção degradada ao nível do queem carne e espírito tomando o aspecto ou as virtualidades do que maise f i c ien te e em respos ta ao s imét r i co do lado opos to converge para a destruição do que a virtude a paz e tranquilidade do viver comum emsociedade conglomerada à aposta no triunfo benéfico de uma aspiraçãoco lec t i va e da í que pe los mu i tos desgas tes da hora consumpt iva que l e n t a e n e f a s t a m e n t e p a r a l e l a a u m a a c ç ã o d e m o n í a c a s o b r e o b e m comum e vivência na ordem e vivência na ordem instituída pum pum! ee m b o r a u m a d i s c i p l i n a i n t e r n a t r a v a n d o o e m b a t e d e f o r ç a s d e l a contrárias bla bla por isso a educação nas raízes do que emerge há-deemergir para os combates diurnos do sol que, não digais que iluminam,há-de custar o que na fertilidade ba ba depois de um esforço contínuopara que triunfal na guerra que os instintos e a

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comodidade e a atracçãocriminosa do que paralela arrasta confunde aniquila Ia Ia e ainda... osmimos criados... na medida em que, funestos e atrabiliários... os filhosassim... pelo que hora a hora ... ra ... ra e minuto a minu... limpamente...lu ... lu ... ó ...ó... na lamúria e prece e pressa... consoante as correntesfavoráveis ao que sepulto e inculto no indulto ao que... de pó pó pó pócom que catapulto as forças eficazes para o combate e a vitória. Disse.Depo is houve a inda uma t roca de op in iões para que esc la rec ido o problema da família e da educação. Mas ouvi mal. Depois Xana armou247não sei que arraial no colégio e houve um ultimato a sério. Depois Xanasaiu de casa no dia em que foi maior. Depois eu saí à sua procura e nodia seguinte também, bati em devassa a cidade inteira com probabili-dades de e la es ta r . Depo is , tempos depo is , uma vez ve io a no t íc ia deque a t inham v is to , eu sa ía sempre para essas redondezas . E tempos d e p o i s t e l e f o n o u , q u e v i v i a c o m u m c o m p a n h e i r o , t i n h a a s u a v i d a organ izada , se pod iam i r v i s i ta r -nos . Sandra t inha o a r las t imoso de q u e m v i r a o e r r o e n ã o t i n h a n e n h u m a v e r d a d e à m ã o . E u t o m e i o telefone e disse que sim, que sim, que sim. E com efeito, no dia seguinte,à t a r d e , e u t i n h a v i n d o d a B i b l i o t e c a G e r a l . X a n a e n t r o u c o m o companheiro. Era um tipo muito grande e muito preto. Tinha o nomeimprevisível de Tobias.248XXXVÉ quase no i te , que horas são? o re lóg io va i puxando o tempo, masnem o olho. Olho apenas o céu de cinza a tarde que se vai fechando. Sãohoras de Sandra mor re r e de eu en f im f i ca r só . O méd ico pa lpara - lheaquele volume como um ovo no baixo-ventre do lado direito e disseraque sim, que- Pode-se operar.Mas havia que primeiro internar-se e repouso e análises não sei queprepara tó r io da in te rvenção . A casa de saúde e ra numa rua apagada silenciosa, Já com contratos secretos com a morte. A morte multiplicava-s e e m p a s s o s m i ú d o s d i s c r e t o s d e b a t a s b r a n c a s , c o r r e d o r e s l o n g o s cruzados calafetados, carrinhos que passavam com tabuleiros de remé-dios, um cheiro mole caldeado a corpos e a doença. Flácida amolentadav iscosa . A mor te pegava-se-nos en t re os dedos como a subs tânc ia danáusea , Sandra f i cou no quar to doze . Hav ia duas camas, uma para o acompanhante, Sandra não quis. O médico e a enfermeira - que podias e r ú t i l , q u e p a r a u m a u r g ê n c i a d e n o i t e , e m b o r a u m a a s s i s t ê n c i a , permanente, que por simples companhia. Não quis. O quarto refinavad e b r a n c u r a , a c o r d a e s t e r i l i z a ç ã o . P a r e d e s , m ó v e i s , c o b e r t u r a s . O r u m o r d a c i d a d e m o r r i a l o n g e n u m a f r a n j a d e f e b r e . E n t ã o f i q u e i apenas até ao escurecer. Xana apareceu ainda, cheia de disponibilidadeenergética, demorou-se pouco. Eu acompanhei-a pelo corredor até umasala ao cimo da escadaria. Que tinha dito o médico. que não tinha, cheiade pressa ia perguntando eu ia dizendo atrás, depois não sei quê que oTob ias , es tava à espera de la , f i ca ram de se encon t ra r

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em, d isse a inda que tudo se ia resolver, fiquei ainda um pouco na sala. Havia que fazer249uma co lhe i ta de tec idos ta lvez a inda nesse d ia , no d ia segu in te pe la manhã, fui ficando ainda. E com efeito, daí a pouco. Sandra vinha numamaca de rodas empurrada por uma enfermeira, eu sorri para ela- Ainda aí estás? Vai-te embora que não és cá precisoe e u s e m s a b e r q u e f a z e r . M a s o m é d i c o c h a m o u - m e , f o s s e e u a o l a b o r a t ó r i o d e t a l l e v a r o , n o d i a s e g u i n t e à t a r d e d a r - m e - i a m o resultado, suponho. Despedi-me de Sandra- Mas não venhas de manhã, só à tardefui ao laboratório, regressei a casa, que estranho. Como se a morte jáa hab i tasse , a sa la , o quar to , os móve is , uma es t ranha f i x idez de tudo num ponto longínquo da memória. Havia em baixo um restaurante, nósíamos lá às vezes , jan te i só . A sa la es tava quase deser ta , ench ia -se aoa lmoço , gen te que t raba lhava a l i pe r to . Mas a minha so l idão não e rabem t r i s te . Ma is p ro funda , rad ica l , o súb i to te r ro r do desamparo , osúbito rompimento das mil ligações invisíveis - se tu morresses. Era ainstantânea evidência do refluxo a mim próprio de tudo quanto de mimia à v ida p rocura r um apo io , se não penso ne le , mas e le es tá . Quantacoisa impensada nos sustém de pé, eu não sabia. Há um equilíbrio den ó s p r ó p r i o s e m m i l f i n í s s i m o s i n v i s í v e i s s u s t e n t á c u l o s , n ó s n ã o sabemos. E de repen te a ro tu ra , co rno à p ressa sem von tade , não meapetece passear , reen t ro em casa - se tu mor res . Somos po is fe i tos da nossa ficção, uma fracção enorme de nós é propriedade dos outros, maso que é es t ranho é que . Como é que tu es tavas tan to na passagem de m i m à v i d a ? S u b i t a m e n t e a c a s a t o d a , o s m ó v e i s , o s p u x a d o r e s d a s portas, não apenas aquilo em que estavas tu, mas até mesmo aquilo emq u e n ã o e s t a v a s . S u b i t a m e n t e t u d o m e a p a r e c e i m p r e g n a d o d a t u a presença, pegado a ti, e tu não estás lá. Subitamente, um intervalo demim às salas às portas às paredes. Eu dizia a mim mesmo que voltarias250e a tua p resença impregnar ia tudo de novo , eu d iz ia , eu d iz ia - que éque no fundo de mim não ac red i tava? Xana pod ia te r f i cado comigo , mesmo talvez com o seu preto Tobias, ela devia saber. Mas um filho étambém uma nossa ficção, estou só. Tento ler, tento ouvir rádio, tenhouma pedra no crânio. Rígida nítida absoluta. Sem uma fenda por ondepasse uma ideia estranha a ela. Os carros passam em baixo na avenidacom o seu pân ico . A c idade es tá toda acesa nas ruas , nas jane las , e é assim mais visível a sua auréola de loucura. O que mais me surpreendeé q u e . P o r q u e a d o e n ç a q u e s e a d i v i n h a e m S a n d r a é u m a d o e n ç a grande, grave, própria para um confronto com alguém forte, poderoso.E ’ela é tão frágil. Ficava-lhe mais certa uma doença de fragilidade, dec o n s u m p ç ã o s u b t i l , q u a l q u e r c o i s a q u e a a p a g a s s e c o m o u m s o p r o . D e i t o - m e , r e v o l v o - m e n a c a m a t o d a a n o i t e . D e v e z e m q u a n d o e sorrateiramente, o deslizar para a zona da pacificação. Mas súbita, comouma facada ob l íqua ,

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es ta la -me no cérebro a f lag rânc ia da rea l idade . Ideia fixa, as vezes afasta-se, fica à espera. E logo brusca, plantada nocérebro como uma estaca, levanto-me cedo, vou à casa de saúde. Tenhode esperar na sala de entrada, fria de muros, antecâmara de uma cripta,por fim posso subir. Sandra passara a noite mal, vómitos, matéria verde- fígado? bílis, coisas assim, a enfermeira dissera. Sandra tem os olhosfechados- Sandra!entreabre-os, fecha-os de novo, centrada em si.- Como te sentes?- Bem.O h , n ã o q u e r e s b a i x a r a o n í v e l d a d o e n ç a , d a m i s é r i a , d a necessidade.- Tens tido vómitos.251- Sim. Coisas repelentes. Um corpo é um saco de lixo.- Vou logo buscar a análise. Não deve ser nada. Fui à tarde, trouxe-ac o m i g o n u m e n v e l o p e f e c h a d o . S e o a b r i s s e ? M a s e u p r ó p r i o t i n h a medo da verdade. A minha vida ali fechada num envelope-mistério.Procurei o médico no consultório, ele abriu, o rosto franzido- Negativo.Dei um urro dentro de mim, sufocava-me na garganta.- Portanto é de operar.Mas havia não sei quê de «velocidade de sedimentação».- Dentro de dias deve estar em condições.Cor r i à Casa de Saúde, Sandra f i cou imóve l , i nd i fe ren te? como se tivera outros avisos que não passavam pelos médicos e laboratórios.- Não ficaste contente?- Sim. Fiqueisem me o lhar , os o lhos f i t os na parede b ranca do quar to . Repare i , então que pela sua face tinha passado alguma coisa estranha e escura etinha deixado o rasto de uma condenação. Sulcos profundos, os olhosgelatinosos, toda a face esvaziada da substância da vida. E com efeitodias depois- Não houve melhoriao médico dissera, chamou-se ou ele chamou outro médico. Eu estavana sa la ao fundo do cor redor e de novo Sandra passou se lada numa maca para a sala de observação. Sandra chamou-me, disse-me- Ouve. já, não saio daqui. Prepara o que tens a preparar.- T e n s o , b l o q u e a d o d e u m a e v i d ê n c i a h o r r í v e l - c a l m o . A n á l i s e negativa, tudo o mais é fácil. Quis responder, não sabia, a enfermeira foiempurrando a maca. Esperei o tempo de fumar um cigarro) mas não ofume i , só , na sa la de en t rada e o novo méd ico fo i de f in i t i vo e ra eu o252marido? Era eu, ninguém mais o culpado, O merecedor da sentença, ocuspido dos deuses, O réprobo, o escolhido para a condenação.- Está a desfazer-se. Agora há só que esperar.- Mas a análise.- Acontece às vezes. Nada a fazer. E duro, todo empedrado de mim- Quantos dias?- Quem sabe? Oito dias, quinze dias.Fo i um mês. Len ta , obs t inada , t raba lhando-lhe a veneno todos os recantos do corpo, a corrupção. Meu corpo que amei. Corpo da minhaalegria, do meu prazer, corpo delicado do meu encantamento. Dia a diar e s s e q u i d o , e s v a z i a d o d o t e u e s p l e n d o r . F a c e ó s s e a , e s v e r d e a d a d e matérias repelentes, olhos baços de matérias viscosas.O asco, o asco - meu corpo lindo. Dias e dias a destruição implacávela té ao no jo , a té à repe lênc ia - meu amor de b r inquedo. Xana v inha às v e z e s , v i n h a s e m p r e s ó . N u n c a s e l h e p e r g u n t o u p e l a c o m p a n h i a . Ficávamos pela noite, ela de vez em quando, Sandra já nada dizia. Deuma vez o coração falhou. A enfermeira veio logo, uma seringa no ar.Sandra recompôs-se no sofrimento. Recomeçar. Porque te não deixaramm o r r e r ? M a s

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e r a a s s i m a l e i d a c a r i d a d e h u m a n a , m e s m o u m condenado à mor te . Não se mata doen te . T ra ta -se e mata -se depo is . Havia que remediar até onde houvesse remédio, Sandra restabeleceu-see pôde continuar a sofrer. Agora era a dissolução e o horror. Horror det e v e r d i a a d i a n o e s c á r n i o d e t i , q u a n t o t e m p o a i n d a ? a d e s c i d a à i m a g e m d o u l t r a j e , p u t r e f a c ç ã o r e p e l ê n c i a , o c u l t a n a s r a í z e s d e u m homem. Daí à sua figuração plausível, a ficção da beleza, da simpatia,de tudo o que o d is fa rça para a t ransacção da p laus ib i l i dade - não op e n s e s . E m p é a o f u n d o d a c a m a , q u a n t a s v e z e s , o l h o - a . A r o u p a acama-se no volume raso do seu corpo, em pé eu, meus olhos túmidos253de sombra. Asco da tua face, onde tu? a graça, a fúlgida luminosidadedos teus o lhos b reves , o teu sor r i so de uma i ron ia cerz ida , onde tu? escavada óssea esverdinhada oca. Olhos mortos na figuração da terra.Estrume de ri, ó figura grácil da minha adoração. De vez em quando, asm ã o s e n c l a v i n h a d a s p o r c i m a d a r o u p a , n o v e n t r e , n o p e i t o , n a repugnância de todo o corpo apodrecido. Chamo a enfermeira, ela vem,a r r a s a d a d e f a d i g a , e n c o l h e o s o m b r o s , o l h a - m e p a r a e u e n t e n d e r - como vou eu entender? Então sugiro qualquer coisa que faça parte davida, comer, coisa leve, beber, qualquer coisa que entre no esquema deuma ordem elementar.- Paulo. És tu?- Sou eu. Vê se repousas.- Às vezes não sei se es tu, se é tudo a minha imaginação.- Sou eu. Vê se descansas.Era pela tarde, saio um pouco do quarto. Encontro a enfermeira nocorredor - quanto tempo?- Quanto tempo ainda? É horrível.- Uma hora. Duas horas. Não deve passar da noite. Xana apareceu,digo-lhe- Fica!P o r q u e e u i a s a i r . M a s e n t r e i a i n d a , t i n h a a i n d a u m a q u e s t ã o a resolver. Abeiro-me da cama, olho de cima a baixo o corpo de Sandra,olho com atenção fria, faço um cálculo. Tenho ideia de ela me dizer ummetro e sessenta, não sei onde pára o bilhete de identidade.- Vou sair, Xana, tu ficas, não é assim?Saio para a rua, é a hora do tráfego intenso. Sabia ia que era ali perto,fui lá. Era perto da morte, os negócios querem-se ao pé do que os façaexistir. Loja escura, as prateleiras cheias de mercadoria, o reforço estava254dentro. Entrava-se por uma portinhola ao fundo, o homem trouxe umcatálogo- O mais simples possível - disse eu.- Mogno. Pinho. Temos outras madeiras.Em todo o caso, folheei o catálogo. Com crucifixos, sem, desenhos defo lhagens , l i sas , de fo rma regu la r , de fo rmas capr ichosas . Fu i den t roexaminar de perto os modelos, bati-lhes mesmo com os nós dos dedos asolidez.- Tamanho?- Um met ro e sessen ta , d igamos sessen ta e c inco . Soube os p reços .D iscu t i . Repugnava-me d iscu t i r , repugnava-me con tab i l i za rem-me o d e s e s p e r o , d i s c u t o . A c o n t a e s t a v a p r e s a p o r q u i n h e n t o s e s c u d o s . R e d u z i u - s e e n f i m p a r a d u z e n t o s e c i n q u e n t a . E r a n e c e s s á r i o q u e a morte não tivesse toda a razão sobre a vida. Tinha o meu estômago nagarganta. Travei-o aí durante a discussão.- E para quando?Dei os informes da probabilidade, regressei. Xana tinha

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a mão sobrea tes ta de Sandra , e la a rque java levemente no ba lanço f ina l . E en tão subitamente todo o corpo se lhe inteiriçou em agitação, tentou mesmosoerguer -se . A té que b ruscamente . O corpo c resceu- lhe desmed ida-mente , os pés sa l ta ram- lhe para fo ra da cama, sa í ram- lhe da bar ra ao f u n d o , a f a c e v o l t o u -s e - l h e d e l a d o e a s s i m f i c o u . T i n h a o s o l h o s s e m i a b e r t o s , a b o c a r e s s e q u i d a n u m e s g a r h o r r e n d o . C h a m e i a enfermeira, disse duas coisas a Xana, saí. A noite descera sobre a cidade.Caminhei à toa pelas ruas iluminadas.255XXXVIEstá bem, está bem. Diz lá então agora tu o que queres, vil senhor danossa abjecção. Estou cansado, é quase noite, não há muito tempo paraconversa . E conversar sobre quê? es tá já tudo esc la rec ido en t re nós .S u m i s t e - t e p a r a o n ã o - s e r , c o b a r d e m e n t e , s o r r a t e i r a m e n t e , a g e n t e quando deu conta tinhas esticado o pernil, estavas pronto para enterrar.Oh, foi longa a agonia, bem sei. Mas a gente habituara-se a ver-te assimdefinhado, com flanelas e botijas na tua cadeira de rodas e foi mesmoadmitindo que era esse o teu estado natural. De certo modo era como sef o s s e e s s e o t e u e s t a d o v e r d a d e i r o , a m a i s p e r f e i t a f i g u r a ç ã o d e t i . Porque os grandes senhores, como deves saber, não são precisamentegrandes quando estão cheios de vitalidade, mas quando o seu senhorios e r e d u z à s u a e s s ê n c i a , e x i s t e a p e n a s p o r s i , n a p u r e z a d a s u a abstracção. Mas possivelmente nunca aprendeste isso e muitas coisasmais como só nós homens sabemos pela subida da ignorância ao saber enão assim como tu que sabias logo tudo de uma assentada. Devias sertriste quando existias pela incapacidade da surpresa no aprender, pelac o n s c i ê n c i a c o m p l e t a e e t e r n a d e t u d o q u a n t o f o s s e d e s e r s a b i d o . Devias ser triste e infeliz pela impossibilidade de ser feliz. Porque só seé feliz contra a infelicidade e em ti não havia contra nenhum. Devias serum tipo incompleto por desconheceres a incompletude. Nunca tiveste os a b o r d a v i t ó r i a , p o r q u e n u n c a v e n c e s t e . M a s t u d o i s s o é a s o r t e d e quem é grande e nada pode conquistar. É a sorte de quem é grande e éessa a sorte de quem e pequeno para ter onde se apoiar. Qualquer faltaque a gente tivesse tinha em ti a compensação por não haver em ti essafalta. A gente era pobre e sabia que havia em ti a riqueza. A gente era256ignoran te e sab ia que hav ia em t i o saber . A gen te e ra pa t i fe e f raco ecego e desgraçado e sabia que em ti havia a justiça e a força e a luz e afelicidade e podia dormir descansado. A gente era mudo ou não sabiaque dizer e tu tinhas a palavra. Esta coisa, não sei se sabes, era talvez am a i s i m p o r t a n t e . P o r q u e u m a p a l a v r a é u m a b s o l u t o . A g e n t e d i z justiça e é logo infinito o mundo das coisas justas. Não sei se fazes bemide ia no teu ser essa ide ia , mas e ra ass im. De ta l modo que qua lquerband ido pod ia ser o ma is sacana poss íve l em nome da jus t i ça . E ra -se justo fazendo cócegas no umbigo a um tipo ou dependurando-o numacorda pelo pescoço. A gente dizia amor e podia mesmo dar porrada. Ag e n t e

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d i z i a l e i e e m n o m e d e l a p o d i a f a z e r t o d a a s o r t e d e t r a n q u i - bérnias. E agora como é que é, ó safado? Toda a lei e justiça e amor e omais tinha-los no cofre do teu poder e era só conferir. Nós inventámos omet ro pe la med ida do g lobo te r ráqueo e é só ver se os nossos met rosquo t id ianos es tão cer tos . Tu t inhas o es ta lão da pa lav ra e a gen te iausando as pa lav ras que qu isesse . Tu e ras o Verbo , tem p iada , nunca t inha pensado n isso . Mas o que tem ma is p iada é que a gen te d isse- te acabou e tu tomaste a coisa a sério ou como ofensa e acabaste mesmo.Apetecia-me mandar-te onde tu não imaginas. Mas o mais curioso e quenão acabas te de uma vez depo is de te r acabado de uma vez . Porque ficou o teu fantasma como nos castelos do Norte - acabaste!- Acabaste! Vai para o raio que te parta!largo um berro ao tamanho da montanha - espera. Estás louco, comoé que te deixas enlouquecer? Sê calmo. Há o universo vazio e tu nele.Recupera em ti a grandeza no que de grande inventaste fora de ti. Soueu! Vou inven ta r a pa lav ra ! Vou c r iá - la a r t i cu lada na minha boca , nad u r e z a d o s m e u s o s s o s - ó f i c ç ã o d a m i n h a g r a n d e z a p a 1 r a a m i n h a misér ia excess iva ! Para o ra io que te par ta ! Es tou só , sou eu , não há257nada que possa ser em vez de mim - espírito da montanha, dos astros,do universo. Porque afinal, ó tu, deixa-me pensar bem, há uma lei acimade ti, que é que eras tu afinal? Há uma ordem universal, tu eras apenasa expressão imediata dessa ordem, tu eras um funcionário, um regente,um delegado- Espírito do mundo!q u e o r d e m , q u e m e r d a ? v e n h o à v a r a n d a , g r i t o p a r a o u n i v e r s o , sento-me de novo confundido. Estás só, estás só e em silêncio, aguentaem ti o tudo que é de ti - berro desvairado, calo-me no grande silêncioque a las t ra pe la ta rde , os o lhos dor idos , o que ixo t remente . Es tou sócomigo , que des t ino dar a i s to? Es tás só con t igo , imenso e miseráve l , sossega . O so l desaparece dos montes , só um breve c la rão a inda pe lo céu. Não quero nada, não quero nada, quero só estar tranquilo - mas tuestás tranquilo. Um acesso de loucura, um excesso de ti - estás bem. Seestiveres calmo, estás bem. As ideias são fabricadas nos nervos, põe osnervos no seu lugar. Há uma ordem da vida mais alta do que os deuses,há um Deus ma is a l to que todos e les , ma is a l to do que o que pensaspara os deuses e para essa o rdem. Há as mãos que de la se es tendem para o repouso do teu cansaço. Dorme. Há uma harmonia do universo,r e p o u s a n e l a o t e u e x c e s s o . H á u m a h a r m o n i a d e s e r – s ê . C o m o coração puro e tranquilo – meu coração. A noite vem aí e o seu silênciodefinitivo. Haverá estrelas no céu e o seu sorriso de piedade para ti.- Espírito da montanha!n ã o g r i t e s . C h a m a r á s a a t e n ç ã o d a s g e n t e s , m e t e r - t e - ã o n u m hosp íc io , sê ca lmo. Se fo res ca lmo e sensa to , tudo será tão ev iden te . E v i d e n t e a m o r t e d e S a n d r a e o d e s v a r i o d e X a n a e a t u a s o l i d ã o . R e s p i r a f u n d o a i m e n s i d ã o d a t e r r a e o s a s t r o s q u e v ã o c h e g a r e o aroma que se desprende da ex is tênc ia de tudo . Resp i ra fundo e o lha258

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apenas. Virá a morte quando for a altura de tocares o teu limite e o teucorpo esgotar tudo o que nele existiu. Reconhecerás então que todas asi d e i a s s o b r e e l e s ã o d e m a i s – q u e é u m a i d e i a ? P o r q u e u m a i d e i a é também um acto de vontade – não penses. Toda a vida se cumpre porsi, facilmente, espontaneamente – não penses. Toda a vida tem em si asideias de que precisa, não há necessidade de promovê-las. Elas nascemdo próprio acto de existires, não as procures para além disso. Procurá- l a s é t e c ê - l a s n o v a z i o d e s i , n ã o p r o c u r e s . U m a i d e i a é u m a c t o d e e n e r g i a , e l a s s ã o a e x p r e s s ã o v i t a l d a j u v e n t u d e , t u e s t á s t ã o v e l h o . Recolhe-te à humildade de ti, a velhice não pensa. Como um sono final,a grande noite. Como um sono, o mais que te pertence é ter vontade dedormir. Bruxuleio subtil e débil no céu da tua mente, dorme. Constrói-s e u m a t e i a e n o r m e d e i d e i a s , a v i d a p a s s a s e m p r e p o r o n d e a n ã o teceste, as ideias servem só onde não servem. Olha apenas à tua volta,d i s t r a i d a m e n t e o l h a . M o r t e e v i d a e p a i x õ e s e s o n h o s e v i t ó r i a s e d e s i l u s õ e s , c o m o u m f e r r o - v e l h o d a s v a l e t a s , a v i d a c u m p r e - s e indiferente pela sua estrada real – esquece. Então terás inscrito o teu sern a G r a n d e O r d e m d o U n i v e r s o , a G r a n d e L e i s e r á a t u a l e i s e m q u e procures saber qual é a tua lei. A tua lei é existires com um mínimo dea tenção ao que fo res ex is t indo . Cumpre- te como homem que ex is t iu , n ã o t e n t e s i r a l é m d e t i , p o r q u e a O r d e m e s t á e m t i , v a s t a , transbordante, imensa como os limites do mundo. Repousa aí no centroda tua vida misteriosa e tão simples. É o aviso da noite que se aproxima,recolhe-te a ela com a gratidão e a humildade com que deves entender-te.- Espírito do universo!não grites. Já assentámos que não- Mas eu quero saber!259que é que queres saber? Tudo es tá sab ido desde o in íc io , o res to éo r g u l h o e e s t u p i d e z . L e v a n t a - t e . E r g u e c o n t i g o t o d o o t e u e x c e s s o , reúne em ti tudo o que se te furta. Tens de ir fechar as janelas lá de cima.T e n s d e f e c h a r a s j a n e l a s t o d a s . T e n s d e i r o u v i r o P i n t o q u e f i c o u parado no «o» de «pr i v i l ég io» . Tens de i r chamar a Deo l inda . Terás fome? podes ir à vila jantar ou talvez Deolinda te prepare alguma coisap a r a h o j e . O d i a m o r r e d e v a g a r , o t e u c a n s a ç o , a t u a d e s i s t ê n c i a . A mulher que cantava calou-se definitivamente. O seu trabalho cumpriu-se e houve música ainda como um enfeite desnecessário. As aves riscamo céu na satisfação do fim. Conta-se de algumas que cantam ao morrer.M a s m e s m o q u e n ã o c a n t e m , o a n i m a l c u m p r e - s e n a a c e i t a ç ã o . S ê calmo. Aceita. E a vida inteira se reverá em ti como numa fracção do serque não es tava a ma is e rea l i zou em s i a per fe ição . A ta rde f inda . Os campos recolhem-se para a noite que vem aí.260XXXVIILevanto-me do sofá, atravesso o corredor. Mas quando entro na salada escada para o andar de cima. A um canto está a máquina de costura,tia Luísa senta-

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se-lhe em frente. Está imóvel, um pouco dobrada. À luzdúbia da tarde que entra pela janela, vejo-lhe a face de cera, os óculosPar t idos , na pon ta do nar i z . Da tábua da máqu ina ca i - lhe em pregaspara o chão um lenço l todo em fo lhos . Deve es ta r a remendá- lo , masn ã o s e m o v e . T e m a s m ã o s p a r a d a s j u n t o à a g u l h a n o a c e r t o d o t raba lho . F icou decer to as im desde sempre , parada na e te rn idade . A casa adormece no silêncio, só de vez em quando passa uma ave com oseu grito no esquadriado da janela. Ao lado, encostado à parede, estáu m g r a n d e b a ú d e c o u r o . É u m b a ú d e p ê l o a m a r e l o , c o r r i d o d e pregaria nas arestas, assente em dois suportes de madeira. Nos sítiosmais manuseados o pêlo raspou-se, ficou só o couro à mostra. É um baúonde se guardavam as grandes roupas das camas, lençóis, cobertas demalha com relevos. Por cima, na parede, há uma imagem do Coração deMar ia co lada num rend i lhado de pape l já a des fazer -se . E de repen te reparo que há um vulto sentado no baú - conheço-te, conheço-te, desdequando? minha imagem de outrora, de um tempo perdido na memória.Veste o seu fato de veludo preto, os calções desajeitados até abaixo dos joe lhos . O casaco p rende por um c in to com um bo tão , a camisa abrenuma go la b ranca sa ída do casaco . Es tá sen tado no baú de couro , as mãos inertes no colo, os joelhos unidos de um encolhimento interior, osolhos perdidos no chão. Sapatos e meias pretas até quase aos joelhos, éum fato de luto. Conheço-te, fito-te ainda um pouco na hesitação de tever aqui, estás só.261- Paulinho - digo-lhe a medo.- Que é que queres?Ergue a face devagar - que é que queres? Tens o cabelo corrido paraa testa, mas a um canto arrepiava-se, formando ninho.- Que é que tens? - pergunto-lhe ainda.- Ainda perguntas?A o l a d o , t i a L u í s a i m ó v e l . T e m a s m ã o s p a r a d a s n o t a m p o d a máquina. Tinham-nos avisado do asilo, minha mãe ia morrer. Quandochegámos e me reconheceu, toda a boca se lhe contorceu num sorriso,fez-me um sinal para eu me aproximar.- Tu sabes o que foi que ela disse?U m a p a l a v r a , o r u í d o d e u m s o p r o , t i n h a a f a c e e n c r e s p a d a d o esforço.- ... uma coisa que não, entendi. Tu sabes o que foi? Então ia explicar-l h e o q u e f o i , o q u e n u n c a p o d i a t e r e n t e n d i d o , o q u e m i s t e r i o s o e impossível numa face de loucura, ia dizer-lhe, Paulinho não estava, só obaú encos tado à parede , p ico tado de p regar ia re luzen te , e ao lado , a máquina de costura abandonada desde a eternidade. Subo a escada, osmeus passos ressoam no silêncio. Nos dedos da mão esquerda que puxao corrimão sinto as arestas dos buracos dos bichos da madeira. Cá emcima, o cheiro a mofo clareou. Mas há ainda o odor forte à sombra e aotempo, sinal de abandono e solidão, que se não desvaneceu. Caminhodevagar pelo corredor, rodo ao centro sobre mim, olho as quatro janelasabertas de espaço. Suspendo-me à escuta de um imperceptível rumor, orumor que sobe sempre das eras acumuladas e anuncia uma invisívelapar ição . Tudo qu ie to e de f in i t i vo como um túmu lo esquec ido . Só de v e z e m q u a n d o u m b r e v e e s t a l i d o d e m a d e i r a n o f o r r o , a v i v a n d o o s i l ê n c i o . A j a n e l a d o p o e n t e d á p a r a o c e m i t é r i o . V e j o - o a o l o n g e ,

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262marmoreado de branco entre os fusos dos ciprestes. Vejo-o minúsculo,a p a g a d o e n t r e o s c a m p o s , u m p o u c o c o n f u n d i d o n a s s o m b r a s d o en ta rdecer , i rmanado em ind i fe rença ao que em mim des is t iu . Es tou aqui. Restos de ser eu, que e que sou eu? Estou aqui e a fadiga comigo eas lembranças que se apagam até serem apenas recordação. Detenho-meum pouco a olhar o horizonte, fecho a janela, o quarto fechou-se maiss o b r e s i . D e p o i s v e n h o a o m e u q u a r t o d a v a r a n d a , S a n d r a e e u dormíamos ali. Xana dormia também quando pequenina, uma vez fezum desenho, está ainda na parede. Então cheguei à varanda que dá paraa montanha, se Sandra estivesse em baixo? um dia vi-a lá, eu estava emcima, ela, regava as plantas com um regador, o sol irisava as gotas deágua num festival de colorido. E olho realmente para baixo, não estava.Mas nesse instante, pelo portão de madeira ao fundo do arruamento -quem era? Era um ve lho magro encurvado , t raz ia um bordão . Com a m ã o l i v r e f a z i a g e s t o s a t i r a n d o a o l a d o o b r a ç o c o m o s e e s t i v e s s e a explicar.- Eh, Pregador!mas ele não se interrompeu. Veio vindo até debaixo da varanda, euatirei-lhe uma moeda, a moeda rolou no Passeio. Segui-a com os olhospara a não perder de vista, ela rolou bastante tempo, depois olhei atrás,não estava ninguém. junto ao portão os dois choupos estremeceram nafo lhagem ao b reve sopro da ta rde . O caminho es tá deser to , não ve jom e s m o n i n g u é m e m f r e n t e d a s c a s a s . A d i a n t e c o m e ç a o n ú c l e o compacto da aldeia. Olho os planos dos telhados embrechados uns nosoutros até ao arranque da montanha. Daqui donde a vejo, desdobra-sea té ao a l to em vagas de montes . A cada nova sub ida , a massa a las t ra para os lados, concentra-se em amontoados para ganhar ascensão até aop ico ma is a l to . Subo com e la ao ape lo de a l tu ra , demoro-me no p ico263c i m e i r o o n d e o s o l m e p a r e c e a t a r d a r - s e a i n d a u m p o u c o . O u é s ó o c l a r ã o d o c é u q u e o r o d e i a d o s e u h a l o . E s q u e ç o - m e a i u m p o u c o , i rmanado ao espaço da ampl idão que se abre em mim. Depo is desçopara o ou t ro lado da a lde ia , a m inha casa em a í . A empena ma is a l ta reveste-se de lousas como escamas, minha mãe vinha à janela, os braçosestendidos fora, o carteiro nem a olhava, erguia ao alto um dedo a dizerque não. A pedra da varanda sobressai do quarto, estou suspenso sobreo jardim abandonado. A vegetação cresceu inculta e os canteiros não sedistinguem. Fecho a janela, recolho-me a mim, tenho ainda de fechar asduas que fa l tam. A da casa de banho es tá per ra , dá para do is vãos de sótão a casa de banho. É preciso entestar os dois batentes um ao outro ef a z e r f o r ç a d e p o i s p a r a o s r e p o r n a p o s i ç ã o c e r t a . A g o r a h á s ó q u e f e c h a r a d o o u t r o q u a r t o q u e d á p a r a o v a l e e u m a s e r r a l o n g í n q u a . T o d a a f a c e d a s e r r a e s t á j á n a s o m b r a , b r e v e s m a n c h a s b r a n c a s assinalam aldeias de que não sei o nome. A um canto há um cubículocom restos de almofadas, cruzetas partidas, um bocado de espelho. Ee n c o s t a d a a u m â n g u l o , a c a i x a d o v i o l i n o . T o m o a c a i x a ,

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a b r o - a d e v a g a r s o b r e o c o l c h ã o d e f o l h e l h o d a c a m a . T e m a i n d a a s c o r d a s todas, deixei-o definitivamente quando concluí os estudos. Tem resinaa i n d a n o s í t i o d o c a v a l e t e , a s c o r d a s e s t ã o a i n d a a f i n a d a s d e s d e h á pouco. E de novo tento nele uma melodia. Só me lembro de uma, é naquarta corda, a corda de sol. Ou lembro ainda mais alguma mas só estasobe da minha memór ia obscurec ida .Dó. . . ó . . . s i , dó , m i . . .A me lod iaenche o silêncio da casa, enche todo o meu passado que a procura. Todaa terra vibra nela, todo o universo se explica numa palavra final. A maisalta, a mais profunda. Mas não sou eu que a faço vibrar, é ela só que a simesma se d iz . Mús ica áspera a m inha , na d i f i cu ldade dos dedos , daa r c a d a c e r t a e n í t i d a , o u t r a m ú s i c a p a r a l á d e l a s e s u b t i l i z a a o m e u264o u v i d o a t é a o s i l ê n c i o f i n a l o n d e s e p e r d e a a s p e r e z a d a m i n h a execução. Que palavra se diz neste dizer? não a sei. Sei apenas que esses i l ê n c i o s e p r e e n c h e d e t u d o o q u e n ã o s e i d i z e r n e m s o b r e t u d o m e apetece dizer. Como uma rede que sustivesse todas as impurezas, o fioda água passa e a sua pureza me comove e só e la me ex is te . Fecho a caixa do violino, fecho a janela. Desço de novo à sala, olho ainda a tardeque se apaga. E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e demim f i casse o que ú t i l e necessár io me sus ten tasse o v ive r . Tudo tãopouco - que é que res ta - sempre de uma v ida humana? Mesmo a dosheróis, dos grandes génios da arte e do saber. Depositaram a grandezaque fo i sua , o que lhes f i ca e o nada que os sus ten ta , a m isér ia de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agoracom uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-semultiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nadaou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só - estás só. Nãopenses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa maisa l ta do que tu te assumiu e re je i tou como a á rvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existee c o n t i n u a p a r a f o r a d a t u a a c i d e n t a l i d a d e s u p r i m i d a . O q u e t e d i s t i n g u e e o p r i m e é o p e n s a m e n t o q u e a p e d r a n ã o t e m p a r a s e e x e c u t a r c o m o p e d r a . E a s e s t r e l a s , e o s a n i m a i s . F u n d a a í a t u a grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que tee x c e d e . H á u m a p a l a v r a q u a l q u e r q u e d e v e p o d e r d i z e r i s s o , n ã o a sabes t- e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério eque o mistério conhece - não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais eo eco de uma música em que ele se reabsorva. Pensa-o ardentemente,profundamente, absolutamente. Não és grande, terás apenas a maniadas grandezas? Como queres igualar-te ao imenso e imperscrutável? O265d i a a c a b a d e v a g a r . A s s u m e - o e a c e i t a - o . E a p a l a v r a f i n a l , a d a aceitação. Só os loucos e os iludidos a

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não sabem. Não sou louco. Nãos ã o h o r a s d a i l u s ã o . V o u f e c h a r a v a r a n d a . T e n h o d e i r a v i s a r a Deo l inda . É uma ta rde quen te de Agos to , a inda não a r re feceu . Pensa com a grandeza que pode haver na humildade. Pensa. Profundamente,serenamente. Aqui estou. Na casa grande e deserta. Para sempre.Fontanelas, 5 de Maio de 1982